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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação IX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Dourados – 5 a 7 de junho de 2008.
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Mato a Dentro : As Expedições de Viajantes Estrangeiros no Discurso Jornalístico
do Século XIX em Mato Grosso1
Silvia Ramos BEZERRA2 UNIC – Universidade de Cuiabá, Cuiabá, MT
RESUMO
Compreender como se articulou o projeto de modernização em curso em Mato Grosso no século XX, no que tange tanto ao espaço urbano, desenvolvimento econômico como dos comportamentos e práticas culturais, através da análise do discurso jornalístico presente nos periódicos regionais sobre as expedições de viajantes estrangeiros, especialmente, a expedição da equipe alemã coordenada por Karl Von Den Steinen.
PALAVRAS-CHAVE: relatos de viajantes; jornalismo; Mato Grosso; modernidade.
Introdução
Nas primeiras décadas do século XVIII a descoberta das minas auríferas na
região centro-sul do atual estado de Mato Grosso começou a delinear a configuração do
espaço urbano e moldar as relações sociais e culturais neste eixo oeste do Brasil.
O século XIX, momento posterior à corrida pelo ouro e depois dos primeiros
instantes da instituição de órgãos administrativos e burocráticos nesta recém-
conquistada face da Colônia, é marcado pela consolidação da ocupação portuguesa
graças aos avanços das bandeiras paulistas, que, inicialmente, estava economicamente
alicerçadas na atividade garimpeira e, mais tarde, com o avanço capitalista no
extrativismo, agricultura e pecuária.
Desde o início, o sinal de uma modernização a todo custo sempre estivera
presente, seja nas iniciativas governamentais ou nos discursos acalourados da elite que
se formava ligada à extração mineral ou aos cargos da Corte portuguesa.
A dominação da natureza por meio da empresa civilizatória era conseqüência de
uma determinada noção de Cultura e de Natureza que fundamentava a relação dos
primeiros habitantes com a natureza inóspita e dotada de segredos recônditos.
Neste momento, tanto as viagens exploratórias como o discurso jornalístico são
indicativos de que forma era travada a batalha cotidiana pelo progresso decorrente da 1 Trabalho apresentado no GT – Mediações e Interfaces Comunicacionais, do Inovcom, evento componente do IX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste. 2 Mestra em Estudos Culturais MeEL/UFMT, professora do Curso de Design de Moda e Jornalismo UNIC – Universidade de Cuiabá-MT. Email: [email protected].
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modernidade. Isto acontecia, em grande parte, num processo de identificação e
constituição subjetiva deste povo que se formava: primeiro, por meio das imagens de Si
Mesmo, como eram ou como deveriam ser (imagem esta que era convenientemente
formulada pelo discurso jornalístico); e dois, como resultado do encontro/confronto com
o imaginário do Outro sobre este Mesmo (ou seja, sobre como as narrativas dos
viajantes definiram a população e sua cultura).
É, pois, com o objetivo de compreender a relação entre os relatos da imprensa
mato-grossense e o relato dos viajantes estrangeiros no processo de desenvolvimento do
projeto de modernidade capitalista para o sertão brasileiro que esta pesquisa foi
elaborada.
Nosso recorte privilegia a expedição ao Xingu realizada por Karl Von Den
Steinen e sua equipe em meados de 1884, uma vez que, sobre esta, existiu um certo
noticiamento por parte da imprensa local, segundo que pudemos constatar em consulta
ao acervo de jornais do Arquivo Público Estadual em Cuiabá, Mato Grosso.
A emergência da imprensa como agente modernizador da região central do
Brasil e a maneira como esta incentivava as expedições de viajantes estrangeiros para a
promoção do reconhecimento, esquadrinhamento e aproveitamento da natureza são
elementos primordiais para a compreensão da atuação do jornalismo na constituição
tanto do espaço (e tempo) modernos, como dos sujeitos modernos, dando-lhes feições
mais próximas das atuais.
As expedições estrangeiras em Mato Grosso – homem versus natureza
Lenine Póvoas classifica a ocorrência das viagens à Capitania de Mato Grosso
em dois ciclos: o primeiro ciclo, o dos cronistas que início na fundação de Cuiabá até o
final do século XVIII – marcado por narrativas esparsas, oficiosas3, sem “mérito
literário”, mas que revelam uma literatura de informação em que se pode reconstituir os
acontecimentos que tiveram destaque na vida da Capitania; e o segundo ciclo, das
investigações científicas que datam do final do século XVIII até século XIX – com
objetivos políticos e científicos (Póvoas, 1982, p.19).
3 No final do século XVIII, o governo português e espanhol decidem que determinar que expedições exploratórias e de reconhecimento realizassem a demarcação das fronteiras estabelecidas no Tratado de Madri.
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Estas expedições de caráter científico tinham a intenção precípua de “consolidar
de vez a ocupação dessas terras – de cujas fabulosas riquezas davam contar não só os
cronistas que descreviam as minas” (1982, p.23-24).
O século XIX, contudo, é marcado por viagens voltadas ao reconhecimento das
potencialidades geográficas do cerrado e da amazônia mato-grossenses. Assim, durante
todo o século, as expedições palmilhavam o solo, muitas delas como parte dos projetos
políticos governamentais que intencionavam a investigação da floresta amazônica e
demais ecossistemas inexplorados, sendo que as demais incursões eram organizadas por
organismos internacionais, principalmente europeus, com comitivas compostas por
astrônomos, médicos, naturalistas, minerologistas, etnólogos, entre outros especialistas.
As principais delas são: expedição austríaca de Johann Natterer, de1822;
expedição Langsdorff, de 18254; expedição francesa de Francis Castelnau de 1843;
expedição chefiada por Moutinho, de 1850; expedição italiana de Bartolomé Bossi, de
1862; missão Morgan, com Carlos Hartt e Herbert Smith, de 1870; e finalmente, no
final do século, a expedição belga de Ferdinand Nijs.
Como características fundamentais que determinavam as representações que os
estrangeiros fizeram da província de Mato Grosso temos: concepção eurocêntrica de
cultura que concebia modos, hábitos e costumes da população local com base em
valores culturais europeus, razão que se encontra para as severas críticas que
manifestavam em seus relatos; noção particular de natureza que compreendia o
território como um manancial de riquezas (minerais, animais e vegetais) em estado
bruto, pois “os seus habitantes não se empenhavam em explorá-la”, cabendo, pois, ao
imigrante o papel de extrair as riquezas que os nativos desconheciam ou desprezavam
(Siqueira, 2002, p. 136).
A expedição de Karl Von Den Steinen ao Xingu
Em 1884 tem início uma das mais documentadas expedições estrangeiras à Mato
Grosso: a expedição comandada por Karl Von Den Steinen5, psiquiatra alemão que se
dedicou aos estudos etnográficos. Além de Von Den Steinen, os expedicionários que
4 Financiada pelo Czar russo Alexandre I, a expedição foi chefiada pelo Cônsul da Rússia no Brasil, Barão Jorge Henrique Langsdorff. Cf. KOMISSAROV, Boris. Expedição Langsdorff: acervo e fontes históricas. São Paulo: Ed. UNESP, 1994. 5 Karl Von Den Steinen, nasceu em 7 de março de 1855,na cidade de Mühlheim-na-Ruhr, e morreu em Cromberg, Alemanha central, em 4 de novembro de 1929.
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compunham a comitiva eram: seu primo Guilherme Von Den Steinen, desenhista e o
astrônomo Oto Klaus. O objetivo da viagem era explorar o rio Xingu e seus afluentes,
bem como estudar as tribos indígenas desta região parcamente conhecida do território
provincial.
Foram os visitantes prontamente acolhidos pelo presidente da província, Barão
de Botovi, e puderam conhecer durante sua estada a cidade de Cuiabá e as
características culturais de uma localidade situada na fronteira entre as importantes
cidades do litoral e as tribos indígenas.
As duas expedições realizadas pelo pesquisador alemão a Mato Grosso foram
realizadas em 1884 e 1887. Entre as diversas descobertas está a primeira identificação
de povo indígenas desta região.
A expedição inaugural partiu de Cuiabá e atravessou o rio Paranatinga,
localizado entre os rios Xingu e Tapajós, tendo alcançado os povos Bakairi de
Paranatinga, Krutenaus, Trumais, Jurunas, bem como os Suyá. Seguindo o rio Xingu, de
sua nascente até a foz, Von Den Steinen chega a Belém do Pará, cinco meses depois de
sua saída de Cuiabá.
As diversas observações recolhidas nesta primeira viagem foram reunidas no
livro “Brasil Central” 6, editado em 1894 na Alemanha e continha um mapeamento
cartográfico extenso do território do Alto Xingu e diversas fotos exclusivas da região e
das tribos que ali habitavam.
Três anos depois desta expedição, Von Den Steinen retorna a Mato Grosso para
uma segunda incursão, agora com a companhia do antropólogo Paul Ehrenreich e o
matemático Pedro Vogel7. Neste regresso o encontro se dá com os Kurisevo e demais
povos do Alto Xingu8. Daí decorre a publicação da obra “Entre os naturais do Brasil
Central”. Sobre esta segunda expedição Von Den Steinen proferiu uma conferência para
a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Assim descreve suas impressões sobre o
que viu:
“Qual será o futuro dos nossos amigos do Xingu? São três mil aborígines que apresentamos, primitivos como saíram das mãos da natureza, portanto, capazes
6 Cf. STEINEN, Karl von den. O Brasil Central: expedição em 1884 para a exploração do rio Xingu. Trad. de Catarina Baratz Cannabrava. São Paulo:Comp. Ed. Nacional, 1942. 7 Ehrenreich desempenhava a função de fotógrafo, enquanto Vogel ficou responsável pelas observações “astronômicas, magnéticas, meteorológicas e geológicas” (STEINEN, s/d, p.03). 8 Cf. COELHO, Vera Peneado (Org.). KARL VON DEN STEINEN : Um Século de Antropologia no Xingu, São Paulo: EDUSP, 1993.
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de desenvolvimento intelectual e moral se foram guiados propriamente ou brutais se forem maltratados” (Steinen, s/d, p.25)
Von Den Steinen na imprensa de Mato Grosso
Para a realização desta pesquisa, de acordo com a documentação disponível no
Arquivo Público Estadual de Mato Grosso, no acervo de jornais, pudemos encontrar
duas menções nos periódicos relativos à expedição de Von Den Steinen.
Ambas datam do dia 29 de maio de 1884, mês e ano da partida da expedição. O
primeiro registro jornalístico, aqui em análise, é encontrado no periódico “O
Expectador”9, noticioso publicado em Cuiabá por um imigrante alemão. Assim descreve
o compatriota, em pequena nota, a viagem de Von Den Steinen:
“A COMMISSÃO allemã, de exploração do rio XINGU, partio d´aqui no dia 26 do corrente. Acompanharão a Commissão, os senhores Srs. Capitães Paula Castro e Tupy Caldas que vae commandando a força. Boa estrella os guie” (sic) (O Expectador, 1884, p.02)
Imagem 1: Nota sobre expedição Von Den Steinen, em 29 de maio de 1884, jornal “O Expectador”
Nesta publicação, a expedição ganha proeminência ao ponto de merecer algumas
linhas e os votos de boa viagem. Curioso observar, que o editor, apesar de destacar a
presença dos capitães locais (Paula Castro e Tupy Caldas), ao evocar a importância do
conhecimento nativo sobre o que aquilo que os aguardava na matar, evidencia já no
início da nota o que efetivamente dá um caráter noticioso ao fato: a comissão ser de
origem estrangeira, européia, mais especificamente, alemã10.
9 “O Expectador” foi fundado em 1884, de propriedade do imigrante alemão Pedro Moseller, era editado e redigido por este. Tinha como slogan: “orgão dos interesses sociais” ou “ridendo castigat mores”. Teve vida curta, circulando por apenas alguns meses (MENDONÇA, 1963, p.65). 10 Podemos supor que o interesse pelo fato resida na proximidade do editor com os envolvidos, afinal, eram compatriotas.
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Contudo, é no periódico “Echo de Cuiabá”11 que a expedição ganha numerosas
linhas (seis parágrafos) publicadas:
“A exploração portanto empreendida pela Commissão Allemã nos descortinando, essas riquezas esses tantos productos que fornecerão, trabalho a uma multidão (...) e esclarecimentos á sciência, nos será por certo de muita vantagem e ninguém negará, com justiça, a grande importância que nossa terra (Matto-Grosso) poderá colher de um tal empreendimento; maximé, sendo como nos consta, essa commissão acompanhada de um distincto oficial do exército brazileiro, o Sr. Capitão Francisco de Paula Castro, em quem sobra illustração para assegurar o bom êxito de um tão importante commetimento” (sic) (Echo de Cuiabá, 1884, p. 02)
Das páginas do “Echo de Cuiabá” é importante extrair algumas noções em voga
à época e que confirmam a sede modernizadora que se propagava nos discursos da elite
local, e conseqüentemente, no discurso jornalístico.
A primeira delas, diz respeito à idéia de que a natureza desconhecida que
preenchia este sertão brasileiro deveria ser alavanca do crescimento econômico e do
desenvolvimento humano, pois a expedição aparece na argumentação jornalística como
meio de revelar “essas riquezas, esses tantos productos que fornecerão, trabalho a uma
multidão”. Natureza explorada era convertida em capital útil à modernização regional.
Isto está claro também no trecho que segue:
“Os (...) elementos para a futura grandeza de Matto-Grosso consistem nas immensas riquezas naturaes que se encontram em cada um de seus rios, em cada uma de suas escuras florestas e nas entranhas de suas terras, que guardam os seus maiores thesouros” (sic)
Em segundo lugar, Mato Grosso se evidencia, nacional e internacionalmente,
como fomentador de conhecimentos, fornecendo com suas riquezas naturais
“esclarecimentos á sciência”, compartilhando assim da busca moderna pelo progresso
científico e racional do homem em seu enfrentamento com a natureza.
Por último, é preciso salientar que, assim como em “O Expectador”, há um
destaque à figura do nativo, representado pelo oficial do exército que acompanha a
caravana. Observa-se que ao evocar o componente humano da paisagem mato-
grossense, o narrador demonstra, em primeiro lugar que, o reconhecimento da região já
estava em curso pelos habitantes (civilizados) tão estudiosos e com “ilustração” quanto 11 “Echo de Cuiabá”, segundo Rubens de Mendonça, foi o “fiel escudeiro” do periódico ligado ao Partido Conservador, “A Situação”, de 1867, radicalmente ligados aos interesses políticos desta agremiação política. O “Echo” foi fundado anos mais tarde, 1884, e circulou por apenas dois meses (Mendonça. 1963, p. descobrir)
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aqueles que chegavam; e segundo, que a colaboração dos agentes regionais
(principalmente o Estado) garante a soberania do território a ser explorado. É o que
demonstra este outro trecho do jornal:
“é incontestavelmente digna de louvor a protecção que o governo dispensou á dita commissão, concedendo para garantir as vidas de seus membros contra as agressões dos índios uma escolta considerável de soldados” (sic)
Outro componente político também se revela na leitura do documento: a
expedição pode servir de auxílio na luta pela autonomia da Província de Mato Grosso
em relação às demais províncias brasileiras, como pretendiam as elites locais. Sobre a
autonomia da Província de Mato Grosso, temos: “essa época se aproxima; a exploração
do Xingu, um dos mais importantes affluentes do Amazonas será um passo gigante dado
para ella: porquanto” (sic).
Imagem 2: Notícia sobre a expedição Von Den Steinen, em 29 de maio de 1884, jornal “Echo de Cuiabá”
A Sibéria Brasileira ou Das impressões alemãs sobre o sertão brasileiro
Sibéria brasileira12. Está é a alcunha que Karl Von Den Steinen atribuiu à
Província de Mato Grosso encravada no centro brasileiro em idos de 1884. Maciel
explica o termo:
“Considerada por muitos a “Sibéria Brasileira”, lugar de degredo e exílio para civis e militares sediciosos, mesmo a visão mais suave, reiterada pela quase
12 A comparação com a região inóspita e desabrigada na Rússia, local de degredo e de morte, é apresentada no texto “O Brasil Central: expedição em 1884 para a exploração do rio Xingu”.
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totalidade dos viajantes, é a de uma tranqüilidade muito próxima da monotonia, quando não da decadência” (Maciel, 1992, p. 19).
Graças a uma vegetação densa (coberta em parte pela floresta amazônica e em
outras por cerrados e pantanais), a província, localizada numa região pouquíssimo
povoada e de difícil acesso, era considerada no imaginário nacional como, por um lado,
uma terra selvagem, lendária e misteriosa, e por outro, como o Eldorado de riquezas e
tesouros.
É com este espírito aventureiro que as expedições passam a cruzar o território,
influenciadas por imagens muitas vezes idílicas, outras assustadoras, que viam as
formações urbanas como incipientes vestígios de civilizações modernas. Pois,
“caminhando pelas suas ruas, quase se tem consciência de que se está vivendo nos
trópicos (....) tudo é de tal modo cheio de indizível tranqüilidade idílica” (2002, p. 143)
Assim, a capital da Província era descrita pelo expedicionário alemão:
“Apenas um acontecimento perturba essa serenidade. É que todo mês a voz do século XIX ressoa no Rio Cuiabá... Um tiro de canhão e a corneta do quartel anunciam a presença do vapor, ancorado no porto. Todos correm para o correio e em pouco tempo os que conhecem a leitura e a escrita se acham reunidos para a chamada” (Steinen, 1942, p. 68).
A serenidade da cidade contrastava com outra imagem que também recheava os
relatos de viajantes: a de “terra de ninguém”, onde se cometiam toda a sorte de
violências, corrupções e atrocidades sem condenações, nem punições legais. “Vemos
que estas impressões sobre a cidade, presentes nos discursos científicos dos viajantes,
revelam duas interpretações diametralmente opostas: a cidade distante, do sossego e da
paz; e de outro lado, o paraíso do vício, da devassidão e da violência impune (Bezerra,
2007, p. 63).
Confirmando esta dualidade presente nos relatos de viajantes, Von Steinen fala
sobre como a população local tinha por hábito o uso indiscriminado de armas e
instrumentos belicosos. Como prova disto, ele comenta certa passagem de um jornal
local um anúncio público informando a proibição do porte de armas:
“A fim de darmos uma idéia das várias tendências de diferentes povos e épocas que se defrontavam nessa ocasião, citaremos ainda aqui uma ordem expedida pela Polícia de Cuiabá, de então: ‘É proibido nas ruas desta Capital, o uso das seguintes armas: espingarda, carabina, pistola, revólver, espada, florete, punhal, navalha, faca de ponta, canivete grande, bengala de estóque, sovela e cacête” (Jucá APUD Steinen, 1986, p. 57).
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As manifestações culturais de Mato Grosso são, na maior parte dos relatos,
desconsideradas como indicativo do avanço modernizador. Certa passagem em “Brasil
Central”, de Von Den Steinen, parece confirmar a impressão de incivilidade e
anacronismo que marcava os relatos estrangeiros:
“quem ainda duvida, porém, que as idéia modernas não penetram até este confim do mundo, deverá ler o seguinte anúncio do barbeiro Teobaldino Severino que ‘oferece aos seus clientes um novo atelier para o exercício da profissão de barbeiro” (Steinen, 1942, p. 73)
O eurocentrismo alemão permitia a Von Steinen apresentar Mato Grosso e sua
capital como resultado de um agrupamento humano atrasado em suas manifestações
sociais e culturais e envoltos num provincianismo completo.
O bairrismo mato-grossense, para o autor, era o que o impedia de vencer
culturalmente a distância geográfica em relação aos grandes centros produtores de
cultura. Exemplo disso é que, segundo Von Steinen, a imprensa local não tratava de
temas exteriores: “Não traziam em suas páginas mais do que política partidária,
acontecimentos locais, notícias diversas, injúrias pessoais e poesia. Durante nossa
permanência jamais vimos notícias que se referisse a outro continente, ou pelo menos,
relativas ao Paraguai” (Siqueira APUD Steinen, 2002, p.56)
Na narrativa do visitante alemão confirma-se a idéia de que a riqueza da
natureza mato-grossense seria muito mal aproveitada por seus habitantes, já que, como
primeiros a chegar a este “Eldorado”, deveriam ser também os primeiros a explorá-lo.
Von Steinen atribui a isto a idiossincrasia da população: “os cidadãos cuiabanos são
dotados de certa indolência e mesquinhez. Apesar do ouro da terra e dos diamantes dos
rios, o mato-grossense é pobre, falta-lhe a necessária mão de obra, assim como
suficiente disposição para o trabalho”. E ainda faz uma profecia aterradora: “as
perspectivas do homem cuiabano são muito piores do que ele mesmo pensa (...) Não se
habita impunemente o centro de semelhante continente” (2002, p. 144).
É importante destacar quais eram os valores em trânsito no contato estrangeiro
com a população urbana local, em que as noções de barbárie e irracionalismo pareciam
carregar as cores das descrições sobre os costumes, valores e práticas culturais dos
habitantes locais. Compreendendo o choque cultural fruto deste contato, Eni Rodrigues
em “Panorama do mercado livreiro mato-grossense do século XIX” argumenta:
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“(...) como os demais viajantes estrangeiros, Steinen trazia consigo determinados parâmetros definidores de cultura válidos para seu país de origem e não para um país jovem que ainda vivia as agruras impostas por um processo de colonização. Os estrangeiros não concebiam as atividades locais como componentes específicos de uma determinada cultura. O alemão menosprezava a possibilidade de idéias modernas chegarem a este ‘confim de mundo’. ‘Confim de mundo’ para quem? Desta forma o que os viajantes viam de diferentes dos costumes europeus era logo associado à negligência e inferioridade intelectual e cultural. Inferioridade que será, às vezes, assumida pelos próprios mato-grossenses ao se referirem a sua Província” (Rodrigues, 2004, p. 03).
Relatos de viagem versus relatos jornalísticos – a imprensa construindo a
modernidade
Justamente contra esta visão que imputava a Mato Grosso, e a seus habitantes, a
condição de incivilizados, é que se insurgia a elite mato-grossense em meados do século
XIX. Fomentar a imagem de uma região com potencialidades econômicas impares, em
franco desenvolvimento cultural, aberta às inovações tecnológicas, aos valores
capitalistas e as práticas modernas era uma tarefa para toda a sociedade mato-grossense.
Tarefa esta em que a imprensa deveria caber boa parte.
Na segunda metade do século XIX, os ideais abolicionistas e republicanos se
aliavam a luta pela liberdade de expressão, como símbolo de uma cultura política
emergente que se voltava aos anseios populares, ou a opinião pública. No Brasil,
opinião pública passou a significar opinião publicada em uma impressa que atendia a
interesses políticos determinados. Além disso, a imprensa passou a representar o
discurso competente, emitindo julgamentos e ideais políticos para seus leitores
(Cordeiro, 1998, p. 84).
Sobre o papel dos jornais no processo de modernização da Província de Mato
Grosso, especificamente sua capital, temos:
“A cidade foi descrita e analisada e os seus problemas foram esmiuçados através dos jornais. Neles podem ser encontradas as descrições de como era Cuiabá e também as ‘receitas’ do que fazer para tornar-se civilizada e moderna. Através da imprensa pretendeu-se reformar os hábitos, imprimir novos costumes e moldar outra imagem da cidade” (Maciel, 1992, p.61).
Os jornais e seus cronistas convertem-se em meios eficazes na mudança das
práticas tradicionais da Província nas últimas duas décadas do século XIX, insistindo na
necessidade de modernização dos espaços urbanos, bem como das práticas culturais que
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farão Mato Grosso “ingressar na ‘civilização moderna’ e fazer com que [este] se insira
no projeto de nação brasileira advindo da República” (Bezerra, 2007, p. 74).
Há que se destacar que a própria presença estrangeira serviu de fomento para o
desenvolvimento e alteração das manifestações culturais. É o que afirma Natália Moraes
em “O fazer jornalismo no século XIX em Cuiabá”:
“A presença dos estrangeiros trouxe mudanças de comportamento e novos conhecimentos para a população que aqui vivia, além de influenciar para a transformação de pensamentos e atitudes” (Moraes, 2005, p. 19)
Durante todo o século XIX, influenciado pelos discursos jornalísticos e pelos
relatos que maldiziam Mato Grosso, o governo local, bem como a iniciativa privada,
passam a agir decisivamente na consolidação de melhorias para a Província, materiais e
culturais.
Entre estas podemos destacar: o retorno da sede da capital da província para
Cuiabá; o nascimento da imprensa em 1839; a abertura de canais de navegação; grandes
obras no cenário urbano como o Palácio do Governo, a Intendência, o Armazém, o
Arsenal de Guerra; incremento das vias de tráfego como a Rua Bela do Juiz (Rua 13 de
Junho) e Rua Nova (atual Rua Dom Aquino) da Rua Cândido Mariano, na Rua do
Campo (atual Rua Barão de Melgaço) nas proximidades do córrego da Prainha e nas
ruas do bairro do Porto; alterações estruturais em função de novas frentes agrícolas em
razão da produção da erva-mate; possibilita a navegação pelo Rio Paraguai, que teve
como conseqüência a viabilização do transporte de cargas e a redução da crise de
abastecimento de importados na cidade, bem como entrada de novas tecnologias e
investimentos; e por fim, a instalação da linha de bonde com tração animal (Romancini,
2005: 38).
Tantos incrementos culturais e econômicos seguem o rastro de um “complexo de
inferioridade” acentuado naqueles que em Mato Grosso residiam. Os relatos de
viajantes colaboravam decisivamente para a construção de duas imagens distintas: a
primeira delas, exterior, em que a cultura local era subestimada em relação às
manifestações das demais províncias e os mitos sobre o barbarismo e a indolência dos
nativos formatavam a visão que se tinha sobre Mato Grosso; e a segunda, interior, onde
habitantes da Província, num verdadeiro “trabalho de Sísifo”, renegavam as práticas
culturais locais em face de uma cultura letrada e eurocêntrica.
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Considerações finais
No Brasil, as expedições são fomentadas como parte do processo colonizador. É
a vinda da Família Real para a Colônia brasileira que propicia a abertura dos portos, fato
este indispensável para despertar uma forte expectativa internacional de conhecimento e
reconhecimento das paisagens e riquezas ainda não-reveladas.
“O interesse pelo Brasil não residia unicamente na ampliação de conhecimento, mas igualmente na avidez pela exploração econômica dos recursos da terra visitada. Este fenômeno articula-se à concepção predominante de natureza vigente na Europa a partir do século XVIII e XIX, marcada pelo pensamento racionalista que exortava o progresso material e seu pressuposto: a intervenção humana por intermédio da tecnologia sobre a natureza” (Delgado e Caume, 1999, p. 353).
Tanto as incursões governamentais, como as estrangeiras dedicam-se a
domesticar uma natureza indomável, conhecer, controlar, explorar passam a ser
mecanismos para exercer um controle pleno das potencialidades naturais.
Os expedicionários acabam por re-encenar a viagem de Ulisses em seu retorno
para Ítaca: vencer a natureza e seus desafios é garantir não só a sobrevivência, como as
possibilidades de emancipação da condição de sujeitos naturais.
Concordamos com Adorno e Horkheimer para quem a ação civilizatória da
natureza é uma ação dupla no sentido de dominar tanto o natural, quanto o humano
neste natural. O homem ao exercer o controle sobre a natureza busca a contensão do
componente selvagem que lhe constitui. A dominação da natureza é, pois, no
desenvolvimento capitalista, pressuposta da dominação do homem pelo homem. Assim:
“Com a negação da natureza no homem, não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco. No instante em que o homem elide a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins para os quais ele se mantém vivo - o progresso social, o aumento de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a própria consciência - tornam-se nulos, e a entronização do meio como fim, que assume no capitalismo tardio o carácter de um manifesto desvario, já é perceptível na proto-história da subjetividade” (Adorno e Horkheimer, 1985, p.60-61).
O sentido da entrada “mata à dentro” que se revela tanto no relato jornalístico
como no relato dos viajantes é único: progresso científico e progresso material e cultural
caminham juntos, pois, conhecer a natureza é, precipuamente, criar mecanismos para
explorá-la.
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Assim, a imprensa mato-grossense ao promover o registro da passagem de Von
Den Steinen pelo território provincial atesta, ao contrário do que afirma certa
historiografia13, que deposita nas expedições não somente a esperança de verem
exploradas reservas naturais, mas também que estas auxiliem no progresso cultural e
social da Província.
Os jornais efetivamente encampam o projeto modernizador e tornam-se, ao
mesmo tempo, porta-vozes (“echos”) dos desejos das elites locais por “ares modernos”
e observadores atentos (“expectadores”) das ações em prol das benesses capitalistas
modernas, seja com adesão a práticas e costumes exteriores (vindos do litoral ou do
exterior), ou mesmo com a possibilidade de domar a natureza tão rica, mas também tão
indócil e irredutível.
Assim, o jornalismo revela-se, no avanço civilizatório pelo sertão brasileiro,
como um agente indispensável não só para a construção do ideário de um Brasil
Moderno, como efetivamente, contribuiu para a edificação das estruturas, sejam estas
materiais ou espirituais, indispensáveis ao alcance da Modernidade e das feridas sociais,
naturais e culturais que esta teve e tem causado.
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13 Em “A Capital de Mato Grosso”, Laura Maciel acredita que “não é, portanto, sem razão que não existem registros sobre a passagem destes aventureiros (...). Mesmo nas crônicas de jornais e revistas nenhum registro foi encontrado” (Maciel, 1992, p. 50). Como demonstramos nesta pesquisa, isto não corresponde aos fatos verificados, pois, apenas no que tange à expedição Von Den Steinen, encontramos dois registros em diferentes jornais da época.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação IX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Dourados – 5 a 7 de junho de 2008.
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