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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MEMÓRIA SOCIAL E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM ALÉM PARAÍBA MARIA CECÍLIA DE ALVARENGA CARVALHO Belo Horizonte 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MEMÓRIA SOCIAL E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO

EM ALÉM PARAÍBA

MARIA CECÍLIA DE ALVARENGA CARVALHO

Belo Horizonte 2010

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MARIA CECÍLIA DE ALVARENGA CARVALHO

MEMÓRIA SOCIAL E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO

EM ALÉM PARAÍBA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Tarcísio Botelho

Belo Horizonte 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Carvalho, Maria Cecília de Alvarenga C331m Memória social e patrimônio ferroviário em Além Paraíba. / Maria Cecília de

Alvarenga Carvalho. Belo Horizonte, 2010. 159f.: il .

Orientador: Tarcísio Botelho Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. 1. Ferrovias. 2. Representações Sociais. 3. Patrimônio cultural - Proteção. I.

Botelho, Tarcísio. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais. III. Título.

CDU: 719(815.1)

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Maria Cecília de Alvarenga Carvalho Memória Social e Patrimônio Ferroviário de Além Paraíba.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Prof. Doutor Tarcísio Botelho (Orientador) - PUC Minas

Prof. Doutora Luciana Andrade - PUC Minas

Prof. Doutora Maysa Gomes Rodrigues -FUMEC

Prof. Doutora Selma de Melo Miranda – PUC Minas

Belo Horizonte, 21 de Junho de 2010

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Aos ferroviários de Além Paraíba

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas fizeram parte desta caminhada que ora se conclui. Uns estiveram

presentes e participaram todo o tempo dessa larga (e árdua) trajetória. Outros tiveram

participação mais pontual, e nem sempre presencial, mas, de uma forma ou de outra,

contribuíram para a realização desse trabalho.

Agradeço primeiramente à minha família por todo o amor e por ser a todo o tempo meu

porto seguro.

À minha mãe, Gláucia Fontes, não sei como expressar minha gratidão por dedicar tanto

de sua vida às nossas. A você, eu não poderia agradecer a outra coisa se não for por TUDO!

Agradeço ao meu pai José Mariano, meus irmãos Pedro e Mariana, meus cunhados Valéria e

Railton e à minha “pequena” irmã Letícia, companheira de lar e de tudo o mais que isso

significa.

Às minhas amigas-irmãs Juliana Batista e Carolina Cabral, agradeço à amizade sem

tamanho. À querida Bianca Correa, à amizade e presença sempre oportuna e também à

disposição em ler este trabalho. Ana Luiza Neves companheira de todas as horas e Lizziane

Barros, sempre disposta a acolher.

Agradeço à Silvana Cançado pelas portas abertas, a amizade, generosidade e confiança.

À Samira Issa pela acolhida, dedicação e exemplo de pessoa dedicada ao amor.

Agradeço a Lúcia Romanelli e Adauto Clemente, profissionais nos quais confiei minha

saúde: caminhemos em busca de uma vida sã!

Meus sinceros e devotos agradecimentos a José Geraldo Esquerdo e André Borges pela

generosidade desinteressada e toda a disposição em ajudar. Abrindo-me as portas em um

campo por completo desconhecido, vocês foram indispensáveis no desenvolvimento desta

pesquisa.

Agradeço ao meu professor e orientador Tarcísio Botelho, pela compreensão,

acompanhamento e auxílio no desenvolvimento deste trabalho.

Saúdo a todos meus colegas de classe e agradeço, em especial, à Mayara Abreu, Renato

Fontes e Karime Gonçalves por tudo que compartilhamos ao longo dessa jornada.

Agradeço a todos os ferroviários que me confiaram suas histórias de vida e suas

memórias: Cleber Dias Dutra, José Heitor Silva, Ivanir de Souza Bastos, Armando Trancoso,

Valério José Otero, José Carlos Farias, Juarez Ribeiro Gonçalves, Ivanoê Vasconcelos

Barbosa e Moacir Tamarino. Esta dissertação dedico a vocês.

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Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa concedida que me possibilitou cursar o

mestrado. Obrigada pela confiança. De uma forma ou de outra, espero ter podido contribuir

com a construção do conhecimento em nosso país e que esse trabalho possa reverberar e

fazer cumprir sua função social.

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RESUMO

A história da ferrovia no Brasil aponta para sua constante transmutação simbólica, alterando

as representações e os discursos ideológicos que sustentaram a política nacional de

transportes e que, na atualidade, instauram uma nova política de memória. A trajetória

histórica das ferrovias brasileiras - compreendida sob três marcos principais - possibilita

identificar sua transmutação simbólica como representante do progresso, da modernidade e

da integração nacional nos séculos XIX e primeiras décadas do XX; como meio de transporte

decadente e atrasado a partir de meados do século passado; e atualmente como emblema da

memória e da identidade social, propondo e engendrando sua valorização como patrimônio

cultural. Na atualidade as ferrovias são lidas à luz do patrimônio cultural e como emblema da

memória social, uma vez que, após a consolidação do cenário de ruínas dos remanescentes

ferroviários, assiste-se a inúmeros empreendimentos de patrimonialização, seja nas esferas

municipais, estaduais ou federais. Em face das contradições e ambigüidades que envolvem a

questão do patrimônio cultural na contemporaneidade, esta pesquisa se propôs a conhecer as

razões da patrimonialização das ferrovias, pensadas a partir da relação entre tempo histórico

e patrimônio. Propôs-se, também, conhecer as relações estabelecidas entre a comunidade de

trabalhadores ferroviários de Além Paraíba com os remanescentes ferroviários localizados na

cidade, por acreditarmos em uma relação entre corpos físicos e urbanos geradora de

qualidades de vida, e de uma possível vivência sensível e orgânica entre sujeitos e

patrimônio, para além do mero fetiche e entretenimento conferidos pela indústria cultural.

Palavras-chave: Ferrovias. Representações. Patrimônio. Memória.

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ABSTRACT

The history of railways in Brazil tends towards its constant symbolic transmutation,

thereby altering the representations and ideological discourse that sustained the national

transport policy and which, in this present time, spurs a new policy of memory. The

historical path of Brazilian railways - understood under three main milestones – makes

it possible to identify its symbolic transmutation as a representative of progress, of

modernity and of national integration in the XIX century and in the first decades of the

XX century; as a means of decadent transport and outdated from the mid of past

century; and at present as an emblem of memory and social identity, proposing and

engendering its value as cultural patrimony. In the present time, the railways are

perceived in the light of the cultural patrimony and as emblem of social memory, since,

after consolidation of the scenario of ruins from the remains of railway, we have been

witnessing a huge amount of entrepreneur patrimonial undertakings, be it in the local,

state or federal spheres. In view of the contradictions and ambiguities about the issue of

cultural patrimony in contemporary society, this research proposed to ascertain the

reasons for patrimonialization of railroad, developed from the relationship between

history’s time and patrimony. It was proposed also know the relations between the

community of railway workers of Além Paraíba with the remaining rail located in the

city, because we believe in a relationship between physical bodies and urban generating

qualities of life, and a possible experience sensitive and organic between subjects and

patrimony, beyond mere entertainment fetish conferred by the culture industry.

Keywords: Railway. Representations. Patrimony. Memory

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Imagem de material de trabalho abandonado no interior da antiga oficina de

manutenção e restauro da extinta E.F.L. em Além Paraíba (MG). Foto da autora em

julho de 2009.........................................................................................................................106

Figura 2: Mapa rodoviário de localização do município de Além Paraíba. Fonte:

GOMES, 2006.......................................................................................................................109

Figura 3: Além Paraíba entre montanhas, rio e trilhos. [s/d]. Acervo Museu de história

e ciências naturais de Além Paraíba..................................................................................110

Figura 4: Detalhe da data de inauguração da Estação de Porto Novo da Estrada de

Ferro Dom Pedro II. [s/d]. Acervo do Museu de História e Ciências Naturais de Além

Paraíba..................................................................................................................................113

Figura 5: Mapa: Além Paraíba em inserção regional de ferrovias.................................114

Figura 6: Vista parcial da Estação de Porto Novo. [s/d]. Acervo Museu de História e

Ciências Naturais.................................................................................................................115

Figura 7: Vista do complexo ferroviário da Estação de Porto Novo. Construída pela

Pedro II. [s/d]. Acervo: Museu de Historia e Ciências Naturais de Além Paraíba........116

Figura 8: Torreões centrais e pátio de pequenas manutenções de locomotivas do

complexo da antiga Estrada de Ferro Dom Pedro II. [s/d]. Acervo: Museu de História e

Ciências Naturais de Além Paraíba...................................................................................116

Figura 9: Vista parcial da Estação de São José, ponto inicial da Estrada de Ferro

Leopoldina. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba...117

Figura 10: Vista do complexo ferroviário da Estrada de Ferro Leopoldina em Além

Paraíba, com destaque para a rotunda de estacionamento de trens. [s/d]. Acervo:

Museu de História e Ciências Naturais de A. P................................................................117

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Figura 11: Linha de bonde ligando a Estação São José, inicial da Estrada de Ferro

Leopoldina à Estação de Porto Novo. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências

Naturais de Além Paraíba...................................................................................................118

Figura 12: Vista aérea do complexo da oficina (aproximadamente 1995). Acervo: José

Geraldo Esquerdo Furtado.................................................................................................130

Figura 13: O transporte inter-regional de passageiros sendo substituídos pelas viagens

de ônibus. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba......137

Figura 14: Complexo arquitetônico da Estrada de Ferro Central do Brasil em Além

Paraíba em arruinamento, 2006. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de

Além Paraíba........................................................................................................................139

Figura 15: Vista do antigo hotel e restaurante da estação de Porto Novo em

arruinamento, 2006. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além

Paraíba..................................................................................................................................140

Figura 16: Imagem do interior da rotunda do complexo da Estrada de Ferro

Leopoldina em Além Paraíba.. Foto da autora em agosto de 2009.................................140

Figura 17: Imagem do desabamento do teto da rotunda do complexo da Estrada de

Ferro Leopoldina em Além Paraíba.. Foto da autora em agosto de 2009......................141

Figura 18: Trem da FCA trafegando no centro da cidade. Agosto de 2009. Foto da

autora....................................................................................................................................144

Figura 19: Trem da FCA transportando bauxita. [s/d] Acervo: Museu de História e

Ciências naturais de Além Paraíba....................................................................................144

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABPF

Associação Brasileira de Preservação Ferroviária

FCA

Ferrovia Centro Atlântica

ICMS

Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços

E.F.D.P.II

Estrada de Ferro Dom Pedro II

E.F.L

Estrada de Ferro Leopoldina

IEPHA/MG

Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais

IPHAN

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais

SEC

Secretaria de Estado de Cultura

S/D

Sem Data

SETOP

Secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas

SETUR

Secretaria de Estado de Turismo

SPHAN

Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

SPU

Secretaria de Patrimônio da União

RFFSA

Rede Ferroviária Federal S.A

ONU

Organização das Nações Unidas

UNESCO

Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................12 2 AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A FERROVIA NO BRASIL...................................18 2.1 As representações sobre a ferrovia no Brasil...............................................................18 2.2 Ferrovia como progresso e modernidade......................................................................22 2.2.1 O contexto brasileiro de modernização: progresso via ferrovia...............................29 2.3 Ferrovia e Decadência.....................................................................................................39 2.3.1 O Moderno tornou-se démodé: a destruição da ferrovia no contexto da modernidade...........................................................................................................................39 2.3.2. O processo de decadência e abandono do transporte ferroviário...........................42 2.4 Ferrovia e Patrimônio......................................................................................................52 2.4.1 A “salvação” pelo patrimônio: política de memória e patrimonialização da ferrovia....................................................................................................................................52 2.4.2 A patrimonialização da ferrovia nas três esferas da federação................................57 3 CONCEITO DE PATRIMÔNIO E PATRIMONIALIZAÇÃO DAS FE RROVIAS. 3.1 Tempo e Patrimônio: a relação entre as práticas preservacionistas e regimes de historicidade...........................................................................................................................63 3.2 Patrimônio, Estado e Identidade Nacional....................................................................65 3.2.1 Memória-Esquecimento nas Narrativas Nacionais...................................................65 3.2.2 Patrimônio e Poder.......................................................................................................71 3.2.3 O patrimônio no Brasil.................................................................................................74 3.3 Do Nacional ao Global-Local: a expansão do campo do patrimônio..........................79 3.3.1 As transformações no campo.......................................................................................79 3.3.2 Relativização do valor histórico e o declínio do nacional..........................................80 3.3.3 O diálogo com outras áreas do saber: antropologia e história.................................85 3.3.4 Pós-modernização da cultura: turbulências culturais identitárias..........................87 3.4 A ferrovia hoje: um lugar de memória?........................................................................96 4 CIDADE, PATRIMÔNIO, MEMÓRIA 4.1 Cidades ferroviárias no limbo da história.....................................................................99 4.2 Espaço, poder e memória...............................................................................................100 4.3 Além Paraíba: história de uma cidade ferroviária......................................................108 4.4 Memória social em Além Paraíba ................................................................................119 4.5 Atualidade e patrimônio ferroviário em Além Paraíba..............................................138 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................150 REFERÊNCIAS...................................................................................................................152 APÊNDICE...........................................................................................................................159

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1 INTRODUÇÃO

A minha história com a ferrovia remete ao contexto da minha cidade natal, Itabira

MG, onde a presença da ferrovia sempre se fez marcante, através da Vale Rio Doce

transportando o minério de ferro retirado das minas. Havendo por lá uma ferrovia que se

desenvolveu em função da mineração - atividade econômica ainda bastante rentável nos dias

atuais - essa ferrovia ainda é ativa, permanecendo, sobretudo, como meio de transporte do

minério de ferro para os portos localizados no Espírito Santo. Ainda em operação, a Estrada

de Ferro Vitória-Minas é mantida pela Vale, sendo que a empresa permanece com o custeio

do transporte de passageiros neste trajeto. Desse trem de passageiros, pude aproveitar as

viagens indo visitar meu padrinho no Vale do Aço. O vento e a vista na “varanda” do trem, o

carrinho de lanches passando pra lá e pra cá, e as andanças e bagunças realizadas pelos

vagões são lembranças que guardo desse tempo.

A história da minha cidade se diferencia daquelas que nasceram e se desenvolveram

em torno da ferrovia, onde esta foi o elemento fundamental para o desenvolvimento sócio-

econômico local. Itabira nunca foi diretamente dependente do transporte ferroviário, pois

este, em primeira instância, era o meio de levar aos portos o minério retirado das minas.

Sendo o minério a matéria propulsora do desenvolvimento local, pode-se dizer que a cidade

cresceu e se desenvolveu em função dessa atividade econômica. Nesse contexto, a ferrovia

não foi aquele ponto de paradas, encontros, despedidas, fluxo de mercadorias e de notícias

vindas de fora. Lá não houve esse movimento de ida e volta, de leva e traz que caracteriza o

fluxo dos trens em uma cidade ferroviária. Cortando a cidade com seu movimento

ininterrupto, que se confundia com o próprio ruído da empresa, a matéria ali transportada

jamais retornava: os vagões carregados de minério voltavam sempre vazios, para novamente

saírem de lá carregados, seguindo um movimento incessante de extração e exploração.

Assim, cresci vendo e ouvindo “o maior trem do mundo” transportando a minha terra, que

levava consigo o coração do poeta: “O maior trem do mundo / leva minha terra para a

Alemanha / leva minha terra para o Canadá / leva minha terra para o Japão / [...] / O maior

trem do mundo / transporta a coisa mínima do mundo / meu coração itabirano”1.

E o soar dos trens e vagões pelos morros carregando minha terra para outras terras

sempre me acompanhou. Talvez por isso tenha escolhido o tema das ferrovias para minha

1 O Maior Trem do Mundo. Carlos Drummond Andrade. In. http://relicariominado.blogspot.com/2009/06/o-maior-trem-do-mundo.html

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pesquisa, e também por isso as memórias que nesse trabalho vieram à tona cheguem bem

perto de mim. Contextos à parte, há um trem que liga essas histórias de vida à minha própria.

A segunda parte da minha história com os trens aconteceu quando me formei no curso

de história no final de 2005, quando tive, como proposta para a minha primeira atividade

profissional, trabalhar no Programa Trem de Minas, desenvolvido por várias secretarias do

governo do Estado para preservação do patrimônio ferroviário, sendo sediado no Instituto

Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico - IEPHA MG.

Audacioso, o programa tinha como objetivo último resgatar o transporte de

passageiros, cujo passo inicial seria dado pela recuperação e preservação patrimonial dos

remanescentes ferroviários com a implementação de trens turístico. Nesse sentido, competia

ao IEPHA MG realizar os trabalhos de inventário, proteção legal, educação patrimonial e

diagnóstico e conservação emergencial. A cidade de Além Paraíba figurava como local

estratégico para a atuação do Programa, escolhida para os primeiros projetos de proteção

legal, dadas as atribuições de valor histórico, artístico e cultural direcionadas aos

remanescentes ferroviários locais.

Trabalhando no programa, tive a oportunidade de entender um pouco mais sobre a

história das ferrovias no Brasil e sobre a situação atual pelo qual elas passavam. Assim,

dados os conhecimentos adquiridos, pude desenvolver a capacidade de me chocar com o

abandono que recaia sobre as ferrovias e com o que era feito da memória e dos

remanescentes da indústria ferroviária brasileira.

Nas viagens realizadas, tive também a oportunidade de conhecer esses loucos

apaixonados pela ferrovia, a buscarem em sucatas, galpões abandonados e arquivos mortos,

os documentos e objetos desse riquíssimo patrimônio, que no contexto era tratado como lixo,

abandonados nos porões da história. Estou certa de que o pouco que se tem preservado desses

remanescentes, sobretudo os de natureza móvel, dependeram dessas pessoas, Dom Quixotes

dos tempos modernos, que deram o ponta-pé inicial e chamaram a atenção para o

reconhecimento do valor histórico e cultural desse patrimônio.

Conheci a cidade de Além Paraíba através do processo de tombamento estadual

desenvolvido por técnicos do Programa Trem de Minas. Impressionava-me a estrutura física

do patrimônio ferroviário local, tão grande, tão bonito, e tão arruinado! Aquele estado de

abandono e decadência foi por mim visto como um paradoxo da própria história local, pois a

ferrovia, que tempos antes tinha sido símbolo de poder e prosperidade local, tinha, em seus

próprios remanescentes arruinados, a representação da decadência, não só da cidade, mas

também da indústria ferroviária como um todo. Ouvir que ainda havia na cidade um

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contingente de 500 ferroviários aposentados mostrava-me um campo fértil para um trabalho

de memória, sobretudo considerando o papel social que a ferrovia detinha ali.

Importava-me saber como é que aquela cidade, representada por aquelas pessoas,

ressignificava a própria história social, uma vez que os elementos que foram símbolos de

poder e prosperidade agora remetiam à decadência, trazendo, na própria estrutura física, as

marcas do abandono e da perda de valor.

Entendendo o patrimônio local a partir de uma relação afetiva guardada por parte da

população, cujas identidades e consciências individuais e coletivas encontram-se fortemente

demarcadas pelo trabalho e experiência cotidiana com a ferrovia, desejava pensar, então,

sobre as possíveis transformações nas subjetividades dos trabalhadores e populações que se

referenciaram na relação com esses espaços, cuja materialidade encontrava-se bastante

degradada. Partia do pressuposto de que a transformação desses lugares, figurados por uma

“estética do abandono” (JEUDY, 1990), estaria fomentando novo enredo para as memórias

individuais e sociais, ressignificando não apenas o olhar sobre o devir - horizonte de

expectativas e possibilidades - mas, também, sobre o próprio passado, transformando as

narrativas da história individual e social. Nesse caso, a problematização tratava de como

indivíduos e coletividades construíam as significações de si e do mundo circundante

referenciados pelos objetos materiais, suportes e mediadores da vida coletiva, e como

transformações simbólicas e materiais seriam capazes de promover a ressignificação desses

espaços.

Ao conhecer um pouco mais a história da ferrovia no Brasil, com suas ambigüidades

e contradições, insurgia, a meu ver, uma figura central que perpassou os três marcos

estabelecidos no âmbito do processo histórico das ferrovias brasileiras. Destacava-se o papel

ativo do Estado brasileiro como agente dessa história, seja através dos incentivos para a

construção de ferrovias particulares entre final do século XIX e primeiras décadas do século

XX, seja através da elaboração de uma política nacional de transporte a partir de meados do

mesmo século, que culminou na erradicação do transporte ferroviário, seja empreendendo

sua ressignificação como patrimônio cultural, evidenciado no processo recente de

patrimonialização das ferrovias brasileiras, reconhecido nos três âmbitos da federação.

Inquietava-me saber que o Estado, que promovera o abandono e o sucateamento da

indústria ferroviária, empreendia a tentativa de sua recuperação através de sua ressignificação

como patrimônio cultural. Afinal, naquele contexto, trabalhava em um programa arranjado

dentro das secretarias de Estado para recuperação e preservação do patrimônio ferroviário

mineiro. Interessava-me entender a construção das diferentes representações que

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perpassavam a história ferroviária brasileira, e entender como a deusa do progresso havia se

tornado símbolo do arcaico e do obsoleto, e porque o Estado, que havia promovido uma

política de descarte e abandono do transporte ferroviário, agora empreendia sua

patrimonialização. São essas questões que orientam as reflexões presentes no primeiro

capítulo, referenciadas pelos objetivos de entender como, em três momentos distintos, a

ferrovia foi representada: 1º) sob o ideal do progresso e como símbolo da modernidade; 2º)

como símbolo da decadência e do arcaísmo, quando os discursos sobre desenvolvimento e

modernização passaram a se referenciar no transporte automobilístico em oposição ao

transporte ferroviário, dando inicio à desativação e ao sucateamento da malha ferroviária

brasileira; 3º) como patrimônio cultural, ou seja, como discurso de “segunda ordem” acerca

memória e da identidade coletiva referenciada na experiência com a ferrovia.

Responder às questões postas no primeiro capítulo, sobretudo a de entender o porquê

de o Estado empreender a patrimonialização das ferrovias brasileiras após ter se pautado por

uma política de transporte baseada em uma lógica de concorrência e substituição entre

ferrovias e rodovias, levava-me a adentrar na compreensão do próprio campo do patrimônio,

e entender porque, nesse momento específico da história contemporânea, se empreendia a

patrimonialização das ferrovias. Isso me levou a deslindar sobre a história do campo do

patrimônio e das mudanças ocorridas nesse meio em interface com outros campos e

estruturas sociais, econômicas e culturais, buscando responder às razões para a

patrimonialização contemporânea das ferrovias.

Assim, o segundo capítulo se debruça em realizar uma “história” do desenvolvimento

do campo do patrimônio e de suas transformações, passando desde sua criação, como

discurso ideológico produzido para legitimação dos Estados nacionais em formação, à

contemporaneidade, tendo como foco o lugar da “conveniência da cultura” e da esfera dos

direitos culturais na perspectiva do pluralismo e da diversidade.

Dediquei o terceiro capítulo dessa dissertação à reflexão sobre as questões acima

levantadas, tendo, como norteadores principais, os objetivos de: 1º) analisar a memória dos

ferroviários: suas lembranças, representações e discursos políticos, pensando a memória

como processo inexorável de seleção, produção de sentido e de expressão política. 2º)

conhecer as relações estabelecidas entre população local e comunidade de ex-ferroviários

com os bens da ferrovia, considerando o evidente arruinamento como aspecto propício a

novas apropriações simbólicas.

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Como procedimento metodológico realizou-se pesquisa documental no Instituto

Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais - IEPHA/MG, com a finalidade

de conhecer, por meio dos documentos administrativos e técnicos, os discursos sobre os

quais se pautam e justificam os projetos de proteção legal dos remanescentes ferroviários de

Além Paraíba. Nas instituições culturais desta cidade foram buscadas fotografias e fontes

bibliográficas com o intuito de evidenciar interpretações e representações simbólicas

direcionadas à história da ferrovia em âmbito local.

A história oral em campo representou o principal recurso com o qual se foi ao

encontro da memória social e dos discursos e apropriações simbólicas sobre os

remanescentes ferroviários locais, aferidos pela comunidade de trabalhadores ferroviários.

Além da possibilidade de apreensão das diferentes interpretações e apropriações

simbólicas propostas por indivíduos e grupos sociais acerca de um mesmo tema, entende-se a

validade da memória oral por abrir-se para uma gama de sujeitos históricos cuja principal

fonte de conhecimento e registro no mundo encontra-se na oralidade, e de cujo artifício

decorre os processos de transmissão e elaboração.

Considera-se cada depoimento valioso não apenas pelo que relata sobre eventos da

história, mas, sobretudo, pelo que evidencia sobre a realidade social cotidianamente

construída, dotada de conflitos, lutas, escolhas, traumas, esquecimentos, silêncios,

dinamismo e interpretações. Mais do que os contornos específicos sobre acontecimentos do

passado, a história oral evidencia como cada sujeito se apropria da história e constrói a

narrativa da vida individual e social. De acordo com Khoury (2001), nesse viés

metodológico, a história é abordada como processo construído pelos próprios homens, de

maneira compartilhada, complexa, ambígua e contraditória, cujos sujeitos históricos são

pensados como pessoas vivas, que se fazem histórica e culturalmente, num processo em que

a dimensão individual e social encontra-se intrinsecamente imbricadas.

Como advoga Khoury (2001), a história oral tem legitimidade em seu fim e em seu

processo, cuja natureza dialógica produz efeito analítico, quando os sentidos são elaborados e

forjados processualmente na ação da fala. É no próprio enredo que os sujeitos constroem e

organizam os materiais apresentados pela história e pela experiência, gerando narrativas

únicas e singulares, repletas de nuances subjetivas e melindrosas acerca de uma mesma

realidade social. Um depoimento não se esgota nos dados e informações apresentados. Em

cada um subjazem significados profundos e sutis que valem ser delicadamente desvelados.

Além das lembranças, a memória encobre também dores, traumas e descontinuidades.

Dessa pluralidade de questões emaranhadas vão se forjando os sentidos, cuja escolha espelha

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o que consciente e inconscientemente deve ser lembrado e esquecido, dito e silenciado.

Trabalhar com memória oral como fonte significa abrir-se à pluralidade de apropriações e

interpretações forjadas numa relação circular entre indivíduos e sociedade, apresentado-se

como fonte inesgotável e evidente das relações de identidade, disputas e conflitos elaborados

no interior do processo histórico.

Em relação ao tipo de entrevistas, fez-se a opção por entrevistas temáticas,

priorizando, não obstante, a biografia, a vivência e a experiência dos entrevistados. Os

conteúdos de interesse concerniram aos seguintes tópicos: a experiência do trabalho

ferroviário; a influência do mundo do trabalho e da identidade profissional sobre as relações

sociais fora do âmbito da ferrovia; a influência da ferrovia no cotidiano da vida na cidade; a

percepção atual sobre o estado de conservação dos remanescentes ferroviários da cidade e

sua relação com a dinâmica das memórias e das identidades coletivas.

As entrevistas foram realizadas com antigos ferroviários, priorizando um perfil

variado de profissionais, como os que estiveram diretamente envolvidos com as questões

políticas, como, por exemplo, lideranças do movimento sindical e outros trabalhadores que

não atuaram diretamente na esfera política. A escolha por perfis diferenciados de

trabalhadores justifica-se pelo anseio por representações polifônicas no contexto da própria

classe profissional.

Foi realizado um número total de nove entrevistas, entre as quais se utilizou oito. Fez-

se também uso de uma entrevista realizada pela equipe técnica do Programa Trem de Minas

no ano de 2006.

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2 AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A FERROVIA NO BRASIL

2.2 As representações sobre a ferrovia no Brasil

“Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os

esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.”

Jacques Le Goff.

Num período aproximado de um século e meio, as ferrovias brasileiras se

inscreveram num tempo de duração no qual se identificam três momentos distintos de sua

trajetória histórica. A história da ferrovia no Brasil aponta para sua constante transmutação

simbólica, alterando as representações e os discursos ideológicos que sustentaram a política

nacional de transportes e que, na atualidade, instauram uma nova política de memória. A

trajetória histórica das ferrovias brasileiras - compreendida sob três marcos principais -

possibilita identificar sua transmutação simbólica como representante do progresso, da

modernidade e da integração nacional nos séculos XIX e primeiras décadas do XX; como

meio de transporte decadente e atrasado a partir de meados do século passado; e atualmente

como emblema da memória e da identidade social, propondo e engendrando sua valorização

como patrimônio cultural nacional, estadual e municipal.

Inicialmente, pode-se dizer que as representações sobre a ferrovia serviram para

tornar inteligível a existência desse meio de transporte em interface com a própria

modernidade, já que no contexto de sua implantação, ela impactou sobremaneira as

percepções sobre o tempo e o espaço. Assim, a invenção do transporte ferroviário foi

representativa da própria modernidade, acompanhada da idéia de progresso, pois na

interseção entre tempo – velocidade e aceleração temporal – e espaço – alcance de longas

distâncias num curto espaço de tempo – tornou-se emblema deste referido tempo histórico.

Neste contexto, as ferrovias surgiram também como proposta das elites nacionais que

a viam como meio de superação do paradigma do atraso em que se encontravam as

províncias do interior, procurando integrar o território nacional e fortalecer o poder do estado

na construção da nação, balizada pela expansão da ideologia do progresso e da modernização

capitalista em todo território nacional.

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Todavia, pode-se também considerar que, no esteio da própria modernidade, assistiu-

se à decadência e ruína das ferrovias brasileiras. A retórica da modernidade foi empregada

tanto no contexto de sua implantação quanto de sua desativação, já que nesse segundo

momento a ferrovia passou a ser representada sob os ícones da decadência e do arcaísmo,

pois os emblemas da modernidade se deslocaram para o transporte rodoviário, expresso

também nas idéias do novo, do progresso e do desenvolvimento. Os discursos produzidos a

partir de meados do último século associaram o transporte ferroviário como símbolo do

atraso e da decadência, escamoteando proposições políticas e econômicas específicas, que

anunciavam a indústria automobilística como novo paradigma da modernidade e do

desenvolvimento (PAULA, 2000).

Na atualidade, acredita-se que se inscreve um terceiro momento de representação

sobre as ferrovias, lidas agora à luz do patrimônio cultural e como emblema da memória

social, uma vez que, após a consolidação do cenário de ruínas dos remanescentes

ferroviários, assiste-se a inúmeros empreendimentos de patrimonialização, seja nas esferas

municipais, estaduais ou federais.

Observa-se que a tendência atual à patrimonialização dos remanescentes ferroviários

está relacionada ao esfacelamento de sua atribuição funcional e com a degradação e

abandono da malha ferroviária, intensificadas a partir do processo de privatização e de

liquidação da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA). As ferrovias brasileiras, após

passarem por um processo intenso de esquecimento, fomentado por discursos de natureza

pejorativa produzidos no âmbito do Estado, são agora recuperadas e transfiguradas como

importantes emblemas da memória e identidade regional e nacional. Assim, após décadas de

uma amnésia instituída, que tem como resultante o risco de supressão de parte significativa

da malha ferroviária brasileira, as ferrovias são acionadas a comporem o corpus do

patrimônio cultural e a seguirem pela posteridade, através de sua transmutação simbólica

como emblemas da identidade e da memória coletiva, referenciadas por seus remanescentes.

As representações sociais podem ser caracterizadas por uma gama extensa de

expressões, subjazendo normalmente às de tipo pictóricas, retóricas, sonoras ou imagéticas.

No caso das ferrovias brasileiras, pode-se dizer que passaram por diferentes tipos de

representações, mas considera-se sobretudo que os discursos oficiais se fizeram presentes nos

três recortes nos quais identificam-se as diferentes representações sobre a ferrovia.

Pode-se dizer que discursos oficiais presentes em falas de autoridades e relatórios

técnicos prosperaram nessas diferentes representações, pois, em todos os momentos, é sabida

a atuação crucial do Estado brasileiro no setor ferroviário de transportes, seja inicialmente

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favorecendo os empreendimentos privados através de concessões e subsídios fiscais, seja

encapando e estatizando ferrovias deficitárias, ou através de posteriores privatizações,

quando o extenso acervo ferroviário do Brasil viu-se literalmente sucateado. Atualmente,

observa-se novamente o papel do Estado num trabalho de tentativa de recuperação desse

patrimônio, sob a ênfase em seu valor como herança histórica e cultural. Sendo assim, é

importante compreender como os desígnios da política nacional de transportes – e mais

recentemente a política de patrimônio cultural e memória - estiveram substanciados por

representações sociais que serviram, em última instância, de instrumento ideológico e de

justificativa para as transformações no setor. Assim, torna-se crucial entender o que são as

representações e como a elas subjazem o poder simbólico, capaz de emitir aparente

neutralidade a representações encobertas por ideologias especificas, que produziram as

políticas de transportes em consonância com políticas econômicas específicas.

As representações sociais podem ser entendidas como leitura, fonte de entendimento

e ao mesmo tempo de criação da realidade social. Uma representação se constitui de forma

dialética, pois à medida que interpreta e significa o mundo social, ela o recria, designando-o e

tornando-o inteligível. Essa força dialética e ontogênica das representações sociais é

ressaltada por Bourdieu (1990), pois de acordo com este autor, as representações detêm o

poder de criar o mundo, já que “o que nós consideramos realidade social é em grande parte

representação ou produto da representação” (BOURDIEU, 1990, p. 70/71). O simples fato de

ser nomeado, ou seja, instituído por meio da palavra, é capaz de dar existência ao conteúdo

enunciado. Para o autor,

O mundo social é um lugar de lutas a propósito de palavras que devem sua gravidade – e às vezes sua violência – ao fato de que as palavras fazem as coisas, em grande parte, e ao fato de que mudar as palavras e, em termos gerais, as representações, já é mudar as coisas. A política é no essencial uma questão de palavras. É por isso que luta para conseguir cientificamente a realidade quase sempre deve começar por uma luta contra as palavras. Ora, para transmitir o saber, devemos recorrer às próprias palavras que precisaram ser destruídas para que se conquistasse esse saber (BOURDIEU, 1990, p. 71/72).

Assim, pode-se considerar que as palavras contribuem para fazer as coisas e que os

discursos atuam muitas vezes no sentido não só de interpretar a realidade, pois nele reside

também o poder de construir a realidade, criando-a e tornando-a inteligível sob a égide

ideológica do discurso que a pronunciou. Neste caso, resta-nos compreender de que maneira,

à medida que a ferrovia foi pronunciada como instrumento do progresso, posteriormente

como decadente e deficitária e atualmente como patrimônio cultural, esses discursos, na

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maior parte das vezes enunciados pelas elites e pelo poder estatal, foram capazes de

naturalizar socialmente seu conteúdo, sendo capaz de recalcar e reverberar as representações

sobre a ferrovia em homologia com o conteúdo ideológico enunciado por essas

representações.

Isso nos induz a compreender como as representações, elaboradas em estruturas

sociais de poder, são imantadas pelo poder simbólico, que naturalizam representações sociais

elaboradas por grupos e interesses específicos, que acabam reverberando como representação

de vasto alcance social e coletivo.

De acordo com Bourdieu (1989), os sistemas simbólicos agem em consonância com

as estruturas sociais que lhe deram origem, e, ao ser incorporado de forma subjetiva pelos

grupos e agentes, exercem um poder estruturante, pois esses se voltam às estruturas sociais

de modo a reificar o poder estruturado. Assim, através da disseminação de conteúdos

simbólicos de caráter estruturante, o poder simbólico atua como mecanismo ideológico e de

dominação, produzindo uma concepção da ordem estabelecida como ordem natural. O

desconhecimento de sua existência e de seu poder de inculcação de visões de mundo, que

servem aos interesses dos poderes dominantes, corresponde à sua principal função de

manutenção dos sistemas de dominação e, portanto, de violência simbólica. De acordo com

Bourdieu (1989), qualquer possibilidade de contestação e transformação dependerá do

desvelamento desse poder invisível, que é “capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio

aparente de energia”. Segundo ele,

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, que dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 1989, p.14).

Assim, em todas as representações sociais, sobretudo aquelas cujo conteúdo se parece

tão evidente, homológico à própria realidade, seu discurso é muitas vezes apreendido como o

discurso da verdade, ocultando seu caráter arbitrário e de combinação com a manutenção dos

sistemas de dominação. No caso das ferrovias brasileiras, sobretudo nas representações que a

associaram à decadência e atualmente como patrimônio cultural, é interessante pensar como

a voz do poder estatal foi e é capaz de provocar a naturalização desses conteúdos. Se

primeiramente a ferrovia foi emblema do progresso e da modernidade, em menos de um

século ela tornou-se démodé, uma vez que relatórios técnicos a definiam como decadente e

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anti-econômica, omitindo nos dados aparentemente imparciais o papel crucial dos interesses

políticos e econômicos vigentes, que disseminavam representações de modernidade

associadas à indústria automobilística, apontada em oposição ao transporte ferroviário. No

caso do patrimônio cultural, uma vez que a ferrovia oficialmente é consagrada como tal,

parece inviável qualquer possibilidade de contestação, pois rapidamente ela torna-se assim

reverberada, mesmo que seu conteúdo simbólico possa não vir a ser tão partilhado

socialmente. E em que medida a patrimonialização das ferrovias brasileiras não pode ser

entendida como ação paliativa, a fim de ressarcir uma escolha equivocada do Estado

brasileiro, quando sucateou o patrimônio ferroviário público e, agora, após liquidá-lo, tem

que reinvestí-lo de recursos públicos na sua recuperação?

2.2 Ferrovia como progresso e modernidade

O que define a Modernidade? De acordo com Le Goff (2004), a noção de “moderno”

tem larga trajetória histórica, sempre posta na relação antinômica e dialética com a noção de

“antigo”. A grosso modo, o termo “moderno” pode significar a consciência de ruptura com o

passado. Sendo assim, diversos tempos históricos se inscreveram na categoria “moderno”,

uma vez que, em seu próprio tempo presente, esteve aguçada a percepção de distanciamento

e ruptura com o ‘passado’. Como mostra o autor, os conflitos de geração que colocavam os

modernos contra os antigos estiveram presentes desde a antiguidade, embora o termo

“moderno” estivesse sido por muito tempo subsumido pelas noções de ‘novo’ e ‘progresso’.

Assim, a idéia de modernismo pode ser remetida a diferentes momentos da história, pois é

notória a tendência de os diferentes contextos históricos, inscritos em seu próprio tempo

presente, considerarem-se a si próprios como modernos, embora, em termos semânticos, nem

sempre tenha existido a palavra específica que servisse para designar a expressão2. Como

mostra Le Goff, “as sociedades históricas, mesmo que não se tenham apercebido da

amplitude das mutações que viviam, experimentaram o sentimento de moderno e forjaram o

vocabulário da modernidade nas grandes viagens de sua história” (LE GOFF, 2004, p. 371).

2 Le Goff (2004) observa que termo “antigo” transita no campo semântico da antiguidade, enquanto “moderno” segue por muito tempo atrelado à noções semelhantes e concorrentes, como novidade e progresso.

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Para o autor, é pois a “tomada de consciência das rupturas com o passado e a vontade

coletiva de as assumir que se chama modernismo ou modernidade”. Trata-se do modo como

as sociedades experimentam as relações contraditórias com o passado, sobretudo quando se

trata de um passado recente, podendo esse conflito ser definido como um conflito de

gerações (LE GOFF, 2004, p. 389).

De acordo com Le Goff (2004), a herança dos entraves entre antigos e modernos, que

perpassou a longos períodos da história, viu-se radicalmente transformada com o advento da

revolução industrial. Sem dúvida, esta deu contribuições definitivas para que, no século

XVIII, se desenvolvesse um contexto de vida que, transformando sobremaneira a interseção

entre as categorias “tempo” e “espaço”, se delineasse um novo contexto de vida moderna, ou,

mais precisamente falando, a modernidade. Assim, é durante o século XIX que o

aparecimento do conceito de modernidade surge como uma reação da cultura às

transformações impostas pelo mundo industrial. Lançada na França por Baudelaire em

meados do século XIX, a idéia de modernidade surgiu como resposta aos efeitos da

revolução industrial sobre as transformações na vida social e urbana que estavam a se impor,

sendo o termo atribuído de um significado ligado ao comportamento, ou “ao simples fato de

ser presente” (LE GOFF, 2004, p. 384).

A modernidade pode ser entendida no esteio de uma aceleração temporal sem

precedentes. Nesse contexto, o trem de ferro – criação da revolução industrial e do

conhecimento técnico e científico a favor da produção industrial - pode ser lido como

símbolo desse tempo histórico, uma vez que, nas interfaces entre as categorias de tempo e

espaço, tem-se nele seu principal emblema, representando expansão da velocidade e alcance

de longas distâncias. Pode-se dizer que a ferrovia representava a aceleração do tempo, cujo

alcance ampliava também as possibilidades de acesso a diferentes destinos. Assim, a

aceleração temporal em sua relação com o alcance espacial pelo transporte de trem (antes

todo feito em tração animal) pode ser entendido como escopo do próprio sentido da

modernidade, uma vez que, nos regimes de historicidade, a modernidade figura como

aceleração tempo X espaço, num movimento em que o horizonte de expectativa subjuga o

campo da experiência.

Em várias representações produzidas no contexto da modernidade, sejam pictóricas,

arquitetônicas, literárias ou técnicas, a ferrovia foi um tema frequentemente revisitado.

Hardman (2005) e Maia (2009) enfatizam a emergência desse novo meio de transporte e sua

influência nas artes e na literatura. Essa idéia de movimento é responsável por sua

reverberação também nas artes visuais, seja no impressionismo ou na própria invenção do

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cinema. Em todos os casos, trata-se de representações, cuja modernidade vê-se ali

representada como forma de tornar assimilável e inteligível o próprio tempo histórico no qual

os artistas se vêem inseridos.

Entre as artes plásticas, pode-se citar a “Gare Saint Lazzare” de Claude Monet. De

acordo com Maia (2009) a estação, representada pelo artista, traz à cena uma mensagem do

futuro, anunciando o porvir, figurando, no contexto da modernidade, imagens imantadas

entre realidade e representação. Nas palavras da autora,

[Trata-se de uma] imagem do fim do século. A tela do pintor da vida moderna fala do futuro, se remete ao porvir. É como se realidade e representação já não fossem tão diferentes, pudessem caminhar lado a lado. No final do século XIX fica cada vez mais difícil dizer com precisão onde termina a história e começa o mito. E os pintores impressionistas talvez já soubesse disso. Monet, ao dissolver a forma em luz e clima, com contornos suaves, buscando a “impressão” da cena retratada, apresenta justamente o espírito da modernidade (MAIA, 2005, p. 36).

A imagem do trem desponta como fantasma, apresentando ao fundo a desordem da

vida urbana: a paisagem da modernidade. Fazendo uma correlata interpretação entre a obra e

a idéia de modernidade associada à ferrovia, Hardman (2005) também interpreta a imagem.

Segundo ele,

Decomposta a luz em partículas, podem as tonalidades deslocar-se no espaço, fixando silhuetas etéreas e transeuntes anônimos, das plataformas de despedida ou desembarque dos modernos meios de transporte. A gare, ela mesma, converte-se na figura animada de uma princesa rumorosa, com cara de um relógio, bufando ferro e fumo (HARDMAN, 2005, p.48).

Bastante representada nas artes visuais, com traços borrados pela noção de

movimento, as representações da modernidade e da ferrovia penetraram também outros

campos das artes, como é o caso dos motivos arquitetônicos, destacados, por exemplo, na

literatura de Proust.

Se Victor Hugo vai enfatizar o movimento e a evasão em sua narrativa, Proust por sua

vez narra o mistério das estações ferroviárias como lugar de partida para o desconhecido e o

novo. A estação, em arquitetura de ferro e vidro, abarca em si a paisagem exterior da cidade;

é a ilusão de ótica trazida pelas vitrines da modernidade. O encantamento é também

produzido pela grandeza de escala de motivos arquitetônicos, já que os projetistas das

estações ferroviárias souberam, como ninguém, dar forma, nome e lugar aos novos contornos

da experiência da modernidade (HARDMAN, 2005). Nas palavras de Proust:

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Infelizmente esses maravilhosos lugares que são as estações, de onde se parte para um destino afastado, são também lugares trágicos, pois se ali se cumpre o milagre de que as terras que ainda não tinham existência senão em nossos pensamentos vão ser aquelas em que viveremos, por essa mesma razão, ao sair da sala de espera, cumpre deixar toda esperança de voltar a dormir em casa, uma vez que resolvemos penetrar no antro empestado por onde se tem acesso ao mistério, numa dessas grandes oficinas envidraçadas como a estação de Saint-Lazare, onde fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventrada um desses imensos céus crus e prenhes de amontoadas ameaças de drama, semelhantes a certos céus de Mantegna ou Veronese, de uma modernidade quase parisiense, e sob o qual só se podia cumprir algum ato terrível e solene, como uma partida de um trem de ferro ou o levantamento da cruz (Proust “Sobre as raparigas em flor”, apud, HARDMAN, 2005, p. 50-51).

As construções burguesas, entre elas as estações ferroviárias, deixavam seu caráter

estritamente utilitário, tornando símbolo ostensivo da modernidade. Enormes reservas de

dinheiro e energia eram investidos para construir o caráter monumental dessas edificações.

Como observa Berman (2008), cada mesa e cadeira num interior burguês se assemelhavam a

um monumento. No caso das estações ferroviárias, em arquitetura de ferro e vidro, tornavam-

se verdadeiros templos da modernidade. Como observa Costa (1994):

[...] em pouco tempo a estação ultrapassou seu papel estritamente utilitário, ligado ao transporte, e tornou-se espaço social de poderoso poder de atração por significar o novo ligado ao sentido de desenvolvimento e porque as pessoas aí encontravam um local adequado as aspirações mundanas, ou de lazer, além de uma visualidade nova. Wiliam Turner, na tela “Chuva, vapor, velocidade”, fez a primeira representação em pintura de uma locomotiva, muito à sua maneira, imersa em vapores e brumas de delicadas gradações e cores. Os impressionistas muitas vezes se aproximaram deste assunto como pretexto para dar vazão ao gosto pelas atmosferas, pela realidade efêmera da luz, brumas de fumaça. As vanguardas históricas, principalmente os futuristas, enfocam as gares destacando sua principal função: lugar de transito, mundo das sensações dinâmicas e símbolo da modernidade (Costa, apud PAULA, 2003, p. 66).

A paisagem vista de dentro do trem em movimento remete também ao espírito da

modernidade. Nada se mantém estático, a imagem torna-se borrada, é impossível representa-

la de forma estática, “tocá-la com as duas mãos”. Trata-se do poder transfigurador da

locomotiva e os efeitos da velocidade sobre a percepção espaço-temporal, alterando a visão

da paisagem e dos passantes. É uma cena de movimento, passagem e evasão. Nada se

mantém estático, “tudo que é sólido desmancha-se no ar”. Essa cena é percebida no trecho de

Victor Hugo:

As flores ao longo da ferrovia não são mais flores, mas manchas, ou melhor, fachos de vermelho ou branco; não há mais pontos, tudo se converte em traços. Os campos de trigo são grandes cabeleiras loiras desgrenhadas... As cidades, as torres das igrejas e as árvores desempenham uma dança louca que se fundem no horizonte (Hugo apud MAIA, 2009, p. 37).

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Hardman (2005) e Maia (2009) observam os efeitos dessa visão de movimento e do

impacto das novas tecnologias sobre as artes visuais. Se na pintura tem-se a capturação da

irregularidade e movimento pelos impressionistas, sua reverberação recai também pela

invenção da sétima arte, cujo movimento dos quadros reflete na criação das cenas. Maia

(2009) cita “A chegada do trem na estação” de Louiz Lumière em 1895, por este também

fazer inferir os significados da modernidade em sua relação com a locomotiva. Citando

Máximo Gorki, lê-se a impressão sobre a película:

De repente há um estalo, tudo se apaga e um trem numa ferrovia aparece na tela. Ela dispara como uma flecha na sua direção – cuidado! A sensação que se tem é como ele se arremessasse na escuridão até onde você está sentado e fosse reduzi-lo a um saco de pele estropiado... e destruir esse salão e esse prédio... tornando tudo em fragmentos e pó... (apud MAIA, 2009, p.37).

Os casos acima apresentados tratam de representações sobre a modernidade em sua

relação com o advento do transporte ferroviário, nas quais a noção de ‘movimento’ –

interseção entre aceleração temporal e espaço – é pontuada de forma constante e marcante. O

que essas representações procuram transmitir é o espírito da modernidade e sua

transformação sobre as paisagens, a vida social, o trabalho, as artes e até mesmo sobre novas

visões de mundo, tudo reverberado pela modernidade, da qual tem-se na emergência do

transporte ferroviário notoriamente um de seus principais emblemas.

Pode-se inferir que o advento do trem de ferro desencadeou um impacto cultural sem

precedentes nos vastos territórios nos quais se disseminou a modernidade, gerando, por onde

passava, sentimentos de encantamento, espanto e admiração. Paisagens e relações sociais se

desarranjavam perante as novas relações estabelecidas entre as novas técnicas e a sociedade,

ressoando de imediato no imaginário coletivo dos povos e países percorridos pela

modernização. Exemplo de perplexidade trazida pelo novo artefato de ferro pode ser vista na

fala de Edward Stanley, observador atento à viagem inaugural da linha de Liverpool –

Manchester, em 15 de setembro de 1830. As imagens do ‘progresso’, tão marcadamente

presentes nas falas das elites brasileiras em relação à implantação desse meio de transporte –

como será visto mais adiante - já eram aí esboçadas. Percebe-se também como o tempo

futuro tornava-se aí um campo de incertezas, uma vez que sua relação com o campo da

experiência quebrantava-se com o advento do trem de ferro. De acordo com Edward Stanley:

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Não há palavras que possam dar uma idéia adequada da grandiosidade (não posso usar palavra menor) do nosso progresso. A princípio era relativamente lento; mas logo sentimos que verdadeiramente estamos em marcha, e então todos aqueles para quem o veículo era novo devem haver-se dado conta de que a aplicação da força locomotora estava estabelecendo uma nova era no estado da sociedade, cujos resultados definitivos é impossível colocar-se (HARDMAN, 2005, p.34).

A citação de Stanley é emblemática, pois toca em um aspecto que é crucial para a

definição da modernidade. Quando ele afirma que os “resultados definitivos da partida da

locomotiva seria impossível colocar-se”, ele toca no ponto em que se define o regime de

historicidade da modernidade, no qual o Futuro – o ‘horizonte de expectativa’ - atinge

amplas projeções e embasamento na vida presente, subjugando, como nunca dantes, o

passado como ‘campo da experiência’. Nesse aspecto, a construção ideal de um tempo

contínuo e linear trazido pelo iluminismo coloca o ‘devir’ numa perspectiva progressista, em

que o futuro tende a subjugar numa escala valorativa o passado. Futuro, progresso e evolução

aproximam-se como sinônimos de um mesmo processo, do qual uma importante referência

era evidenciada pelo maquinário da modernidade.

Na perspectiva de Berman (2008), a modernidade é construída por suas máquinas,

uma vez que a tecnologia moderna e conseqüente organização social condicionaram de

maneira sem precedentes os destinos dos seres humanos. Segundo o autor, a criação das

máquinas foi responsável pela criação de uma variedade de sentimentos humanos, que foram

ganhando novas cores à medida que as mesmas foram sendo criadas. São paisagens de

engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, zonas industriais que dão os timbres e

ritmos da modernidade do século XIX. É esta paisagem desenvolvida, diferenciada e

dinâmica que dá lugar à experiência moderna. O clima de efervescência, aceleração e

intensidade marcam a vida moderna, num estado em que a instabilidade passa a ser a marca

permanente e identificadora da vida dos sujeitos. O cenário e o clima enérgico da

modernidade podem ser apreendidos pela citação de Marinetti, extraída do Manifesto

Futurista tal qual referido por Berman (2008) em sua obra:

Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer e pela sublevação; nós cantaremos as marés multicoloridas e polifônicas da revolução nas capitais modernas; nós cantaremos o fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros resplandecendo sob violentas luas elétricas, gulosas estações ferroviárias que devoram serpentes emplumadas de fumo; fábricas suspensas nas nuvens pelos cordéis enrolados de suas fumaças, nuvens que cavalgam os rios como ginastas gigantescos, brilhando ao sol com uma cintilação de facas; vapores aventureiros [...] locomotivas de peito proeminente [...] e a luz insinuante dos aeroplanos (Marinetti apud BERMAN, 2008, p. 36).

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O trecho acima traz à tona, entre outras questões, o caráter empreendedor

característico da modernidade e os grandes projetos de construção física, dos quais a

burguesia é a principal construtora. São moinhos, fábricas, pontes, canais e ferrovias. Trata-

se do poder produtivo da burguesia, do ritmo e do drama do ativismo burguês. Sobre o poder

de construção da burguesia diz Marx, citado por Berman (2008):

A burguesia e seu reinado de apenas um século, gerou um poder de produção mais massivo e colossal do que todas as gerações anteriores reunidas. Submissão das forças da natureza ao homem, maquinário, aplicação da química à agricultura e industria, navegação a vapor, ferrovias, telegrafia elétrica, esvaziamento de continentes inteiros para cultivo, canalização dos rios, populações inteiras expulsas de seu habitat – que século, antes, pôde sequer sonhar que esse poder produtivo dormia no seio do trabalho social (Marx apud BERMAN, 2008, p. 115)?

A passagem acima tem por referência o século XIX, contexto da segunda fase da

modernidade e que, talvez, tenha sido o período mais intenso em que a experiência moderna

teve vez. De acordo com Berman (2008), a modernidade pode ser divida em três fases. A

primeira liga-se do século XVI até o fim do século XVIII, quando as pessoas estariam apenas

começando a experimentar a vida moderna. A segunda tem início com a revolução francesa

(1789) e se entende até o final do século XIX. Neste contexto, embora tomados por um clima

revolucionário, o qual desencadeara um arrebatamento convulsivo em todos os níveis da vida

pessoal, social e política, restaria a esse público ainda as lembranças e referências do que era

viver num mundo que ainda não fora moderno por inteiro. Desta dicotomia surgiriam as

idéias de modernismo e modernização. O século XX conteria a terceira fase da história da

modernidade, na qual o processo de modernização já teria se expandido a ponto de abarcar

todo o mundo, e a cultura mundial do modernismo estaria atingindo os domínios do

pensamento e da arte (BERMAN, 2008; MAIA, 2009). Neste período ocorre o processo de

modernização e expansão do modernismo para outros lugares do globo. No caso da

implantação das ferrovias no Brasil, pode-se dizer que ela se situa entre os dois últimos

períodos. Embora não se fizesse um contexto pleno de modernização, a ferrovia era apontada

pelas elites burguesas e governantes, ainda no século XIX, como promessa para o futuro,

motor do progresso e da civilização, sendo vista como panacéia a curar todo o cenário de

atraso do vasto território brasileiro. Durante o século seguinte, assistiu-se à expansão do

transporte ferroviário e, em pouco mais de meio século, da sua própria ruína. É como Berman

caracteriza a terceira fase da modernidade, quando esta perde as referências com suas

próprias raízes (BERMAN, 2008, p. 25-26).

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2.2.1 O contexto brasileiro de modernização: progresso via ferrovia

“o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortada de estradas de ferro”.

Machado de Assis – “Evolução”

É sabido que a revolução industrial teve papel fundamental na definição da

modernidade. Embora sua origem remonte ao continente europeu, as prerrogativas da

modernidade não tardaram a serem disseminadas no Novo Mundo. De acordo com Hardman

(2005), é pelo menos a partir da década de 70 do século XIX que começam a ser

introduzidos, nas culturas brasileiras, temas e percepções pertinentes ao universo do

modernismo.

A introdução da modernidade no Brasil surge via critério econômico, em que a

modernidade seria alcançada por meio da mecanização, ou melhor dizendo, da

industrialização. Contudo, pode-se também dizer que as transformações do mundo material

não ficam aí restringidas, pois exercem também o poder de transformar as culturas. Para as

elites advogadas da modernização do país, a modernização econômica ultrapassaria as

atribuições originais, desencadeando também num progresso da própria mentalidade. No

Brasil, pode-se dizer que as primeiras manifestações do universo do modernismo

aconteceram através das ‘exposições universais’, com a exibição das inovações tecnológicas

e industriais. Tais manifestações se davam também no universo das mentalidades, uma vez

que a idéia de viver em uma sociedade moderna ganhava cada vez mais força no imaginário

das elites burguesas e governamentais da época.

As exposições universais estiveram presentes no Brasil desde a segunda metade do

século XIX e princípios do século passado. Elas eram tidas como a entrada do Brasil na

modernidade via catalogação e exposição das principais invenções tecnológicas e da

indústria, tudo percorrido por um clima de euforia pelas inovações técnicas. Nesse cenário, a

engenharia ferroviária desempenhava papel de destaque. Assim, o Brasil avançava com passo

firme à conquista de todas as novidades, dentre as quais destacavam-se as principais,

provenientes dos meios de transporte e comunicação - eram portos, correios, vias férreas,

telégrafos e bondes: tudo para concluir que o Brasil poderia “corresponder-se com o

Universo” (HARDMAN, 2005, p.107). Sobre as exposições universais, espetáculos de

entrada do Brasil na modernidade, lê-se a descrição de Hardman (2005),

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Exposições universais: um nome para cada coisa, um lugar para cada nome e para cada coisa, um tempo-espaço para exibir os resultados. O Brasil, desde 1861, candidatou-se a tomar parte ativa nessa representação. Catalogou tudo que podia; decorou seus compartimentos; entrou na cena do desfile mundial das mercadorias; completava-se, assim, o ritual de passagem que o fazia atuar por inteiro no concerto das nações. A imagem do país moderno dessa forma se construía. Já era possível se mostrar in totum e nos detalhes. Até as fraturas estavam expostas (HARDMAN, 2005, p.109).

Embora parte das elites nacionais estivesse empenhada em empreender a

modernização do país, o processo constitutivo do ideário da modernidade no Brasil veio

acompanhado de muitas tensões. O par antinômico “atraso” X “progresso” perpassou os

discursos que advogavam a modernização do país. A ferrovia, contudo, espetáculo-síntese do

capitalismo industrial, era a promessa de transformação do país atrasado em civilizado. No

esteio por onde passasse, arrastaria consigo as ondas do progresso.

Nesse contexto, não havia dúvida sobre um ideal de progresso linear e determinado,

assim como não se questionava o modelo de civilização ocidental como sendo o único

possível. Como observa Maia (2009), o orgulho e a afirmação da burguesia européia se

faziam presentes sobretudo pelo ideal da mecanização, cujos avanços tecnológicos, tão bem

representados pela ferrovia, eram também conhecidos como os “trilhos da civilização” .

Embora as expressões “moderno” e “modernização” não estivessem expressas na fala

das elites nacionais, elas se fizeram por outros termos, como “progresso” e “civilização”.

Como foi ligeiramente pontuado acima, a noção de moderno esteve, ao longo da história,

muitas vezes subsumida por expressões como “novo” e “progresso”. De acordo com Le Goff

(2004), os semelhantes do “moderno”, o adjetivo “novo” e o substantivo “progresso”,

embora também assinalem a consciência de ruptura com o passado, estão carregados de mais

sentimentos que o primeiro. De acordo com o autor, o moderno defronta-se com o que se

situa na esfera do ‘progresso’. Pensado em oposição ao passado, ele tem lugar na linha de

uma evolução positiva. Como observa Maia (2009) “no ocidente, a idéia de progresso está

intimamente ligada ao conceito de modernidade, que continua sempre negando o passado, o

esquecimento e a reificação do novo.” (2009, p.20).

Apesar da idéia de progresso remeter ao nascimento da imprensa no século XV, o

máximo de sua ideologia deu-se, porém, durante a revolução francesa com Esquisse d’um

tableau historique des progrès de l’espirit humain (1793-1794) de Condorcet (MAIA, 2009),

quando a idéia de progresso no campo do conhecimento esteve associada ao progresso social,

gerador de liberdade e igualdade. Entretanto, o grande período da idéia de progresso com a

conotação adquirida durante a revolução francesa foi o século XIX. Nesse contexto, o

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progresso esteve embasado nos avanços científicos e técnicos, como os sucessos da

revolução industrial.

A noção de progresso associado à civilização surge na primeira lição do livro Cours

d’ histoire moderne’ de Guizot (1829), quando a idéia de progresso e desenvolvimento

aparecem fundamentalmente contidos na palavra “civilização”, sendo esta uma idéia

essencialmente envolvida de conotação econômica e social. Auxiliado pelas teorias

científicas e filosóficas de Darwin e Spencer, o período entre 1840 e 1890 tornou-se o do

triunfo da ideologia do progresso (MAIA, 2009, p. 42).

Apesar das dúvidas em relação à ideologia do progresso pelo choque da Primeira

Grande Guerra (1914-1918), o progresso é, na década de 1920, um valor largamente

reconhecido no ocidente, quando da publicação do The Idea of Progress. An Inquiry into its

Origin and Growth, de Bury. De acordo com Maia (2009):

Aí define a idéia de progresso como o “ídolo do século”, o conceito que impera e regula a noção de civilização ocidental; lembra que a expressão “civilização e progresso” se tornou um lugar comum e que se encontram a todo o momento os pares “liberdade e progresso”, “democracia e progresso”. Sublinha o papel preponderante desempenhado pela França no desenvolvimento dessa idéia. Lembra também oportunamente os principais componentes da ideologia do progresso. “É antes uma teoria que engloba uma síntese do passado e uma profecia do futuro”. É, em seguida, uma interpretação da história que considera que os homens avançam mais ou menos depressa, mas em geral bastante lentamente, numa direção definida e desejável (implica pois, como finalidade, a felicidade) e supõe a indefinida continuação desse progresso (Le Goff apud MAIA, 2009, p. 42).

No caso brasileiro, as elites – parte delas muito favorável à implementação do

transporte ferroviário como alternativa ao atraso – usaram as imagens do progresso e da

civilização para contrapor à noção de atraso que caracterizava o vasto território nacional. Nos

discursos produzidos no período, percebe-se o transporte ferroviário como disseminador do

progresso e de um projeto civilizador necessariamente comum em todo o território.

Dentro da nova ordem mundial, baseada na relação entre os Estados nacionais, o

Brasil despontava como país atrasado, uma vez que necessitava de requisitos econômicos,

infra-estruturais e técnico-científicos fundamentais ao status de nação civilizada. O padrão de

desenvolvimento era encontrado na Europa ocidental, o centro do capitalismo industrial. No

Brasil, o conflito entre “atraso” X “progresso” tornou-se agudo na metade do século XIX,

gerando tensão entre os obstáculos ao desenvolvimento nacional e a realidade

socioeconômica interna (LIMA, 2003).

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Embora o par dicotômico “atraso X progresso” tenha sido utilizado de forma

imponderada, tal uso não se fez sem ambigüidades, pois a despeito de sua utilização de

maneira indiscriminada, ele se trata, subjetivamente, de um conceito relativo. Como observa

Lima (2003):

O atraso, termo utilizado com freqüência nos textos analisados, é um conceito histórico relativo, que pressupõe uma linearidade cronológica, dividida em estágios evolutivos de desenvolvimento com referência nas nações industrializadas, consideradas avançadas. Desde a independência, o mito do progresso – a crença na universalização do desenvolvimento econômico como praticado pelos países que lideraram a Revolução Industrial – encontra-se no imaginário brasileiro, alimentando ações concretas. Um de seus desdobramentos seria a possibilidade de países atrasados tornarem-se avançados. Por um lado, este processo demandaria um esforço interno, através de uma acumulação de capital e um impulso da ciência aplicada à tecnologia. Por outro, na medida em que a economia do centro do sistema capitalista, em meados do século XIX, tornava-se cada vez mais dependente de recursos não renováveis de países atrasados, a inserção destes no mercado mundial garantiria um retorno de capital e tecnologia (LIMA, 2003, p. 67-68).

No Brasil, o discurso pautado pela lógica “atraso” X “progresso” se deu permeado

por uma lógica de dependência. As condições necessárias ao desenvolvimento econômico

nacional dependeriam do grau de integração à economia mundial, pois para a criação dessas

condições seria necessário importar tecnologia e maquinário, enquanto caberia ao Brasil o

papel de exportador de matéria-prima agrícola e mineral (LIMA, 2003, p.71).

É importante salientar, todavia, que o projeto de modernização do país era defendido

por uma elite burguesa e governante, para a qual o Brasil era apontando como atrasado,

necessitando importar e criar tecnologia para tornar-se uma nação civilizada. Sobre a

afirmação da modernidade como projeto da elite, observa Le Goff (2004):

A afirmação da modernidade, mesmo que ultrapasse o domínio da cultura, refere-se antes de mais a um meio restrito de intelectuais e tecnocratas... fenômeno da tomada de consciência de um progresso, por vezes contemporânea a uma vida social e política, a modernidade mantém-se ao nível da elaboração de uma elite, de grupos, de capelas (LE GOFF, 2004, p. 389).

Todo o setor expressivo das elites brasileiras, a começar pelo imperador, estava

propenso a modernizar o país, a converter cada elemento da paisagem em matéria-prima, e,

como aponta Hardman (2005), deixar-se seduzir pela atmosfera da “chuva, vapor,

velocidade”. Ao adentrar o universo do espetáculo da máquina, via-se aí a entrada do país no

“concerto econômico dos grandes Estados” e, ao mesmo tempo, de sua entrada no

movimento genérico da modernidade.

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Os idealizadores da ferrovia no Brasil compartilhavam do diagnóstico da situação

atrasada da sociedade brasileira e concordavam que a construção de uma nação civilizada

exigiria a integração do território por meio do transporte ferroviário, pois da integração

territorial decorreria o fortalecimento do Estado nacional (LIMA, 2003). A consolidação e o

fortalecimento do Estado nacional passariam pela integração territorial via ferrovia. De

acordo com Lima (2003):

O transporte ferroviário nasceu na mesma década que o Império do Brasil e logo despertou o interesse do Estado em sua tarefa de construir a nação. Esta inovação técnica seria um meio de integrar o vasto território, fortalecer o poder central e a união imperial, divulgar códigos civilizados da Corte pelos sertões mais remotos, consolidar rotas de comunicação e comércio, estabelecer elos mais dinâmicos entre o interior e o litoral, além de fortalecer o controle estatal sobre um país de dimensões continentais. A partir de meados do século XIX, as questões do desenvolvimento sócio-econômico e da modernização cultural tornaram-se temas principais das agendas políticas, nacionais e regionais. Importar tecnologia, queimando etapas nesse processo, parecia ser o motor do progresso (LIMA, 2003, p. 11-12).

O ideal de modernização do país via ferrovia extrapolou os âmbitos econômico,

político e social, alcançando domínios de transformação cultural. A ferrovia transformaria os

mais vastos rincões em palco da civilização, inaugurando cidades e lhes dando nomes.

Para as elites nacionais, a ferrovia seria fundamental no processo de desenvolvimento

sócio-econômico e progresso cultural almejado para o Brasil. Os argumentos a favor da

modernização do país passavam desde propostas a favor de políticas de expansão do controle

efetivo do Estado pelo território até a defesa da necessidade de mudanças nos hábitos das

populações sertanejas.

No Brasil, as manifestações a favor da construção de ferrovias aconteceram a partir

da década de 1830, mas sua expansão inicial deu-se apenas na segunda metade do mesmo

século, respondendo, sobretudo, às necessidades das regiões agro-exportadoras de café,

produto central no quadro das exportações de então. Nos primeiros planos ferroviários

brasileiros e nos escritos de seus idealizadores, a ferrovia aparece como principal instrumento

da integração nacional e do progresso capitalista, embora somente no século seguinte tenha

havido expressiva expansão das ferrovias consideradas de integração (PAULA, 2000, p. 34).

O Barão de Mauá e Christiano Ottoni foram, respectivamente, empreendedores e

políticos ligados à construção e ao funcionamento das primeiras ferrovias brasileiras,

trazendo em seus textos reflexões sobre as condições e perspectivas de futuro das ferrovias

no país. Mauá construiu a primeira ferrovia brasileira e participou, entre outras, da fundação

da Estrada de Ferro Dom Pedro II (EFDPII), empresa dirigida por Christiano Ottoni durante

seus primeiros dez anos de funcionamento. Nos escritos deixados por ambos, encontra-se a

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perspectiva civilizatória contida nas propostas de construção ferroviária. Eles são

documentos de memória sobre a história das ferrovias brasileiras e trazem interpretações

sobre seus momentos iniciais. Como observa Lima (2003), nas obras deixadas por estes

homens:

[...] encontra-se uma tensão latente entre o sertão e a civilização. A necessidade de transformação de regiões atrasadas em palcos da formação de uma nação moderna constitui seu tema principal. Para alcançar este objetivo, os autores apontaram que seria essencial formular, através do Estado, um planejamento estratégico das vias férreas. A ordem aparece como pré-requisito para o progresso. A ferrovia teria a função de emblema do ideal de modernização do sertão. Os produtores destas memórias deixaram marcas de uma sociedade em vias de transformação, de um tempo em que as expectativas apontavam para a difusão inquestionável do progresso material da cultura industrial. Os principais sujeitos das narrativas são os grandes homens e seus construtos: as máquinas (LIMA, 2003, p.27).

Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, foi o empreendedor ferroviário

pioneiro no Brasil, ao organizar em 1852 a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e

Estrada de Ferro de Petrópolis, a primeira via férrea do Brasil. Em 06 de Setembro de 1853,

Mauá encenou a primeira viagem de trem ocorrida no Brasil, convidando jornalistas e

embaixadores. O trecho abaixo corresponde ao relato de um dos presentes e nos apresenta as

dimensões de encanto e a inauguração de uma nova temporalidade e projeção de um novo

tempo histórico, no qual a perspectiva de futuro é lançada pela ferrovia:

Enquanto o mundo político se agitava essa manhã, e a espada de Dâmocles deixando de oscilar por um momento, caía sobre o ministério, íamos eu e mais alguns curiosos, entre os quais o ministro da Inglaterra e da Áustria, arriscarmo-nos no primeiro carro a vapor que trilhava o primeiro caminho de ferro do Brasil. Adotou-se à locomotiva um carro grosseiro de transporte de materiais e sem demora deitamos-nos todos neste wagon improvisado. De repente um grito prolongado, estridente, um sibilo de força de cinqüenta sopranos, estrugiu pelos ares e nos fez levar as mãos aos ouvidos. Era o anúncio da partida, era o aviso a quem se achasse à frente para acautelar-se do bote mortal, aviso dado por um tubo da própria locomotiva. Muito veloz do que uma flecha, do que o vôo de uma andorinha, o carro enfiou-se pelas trilhas, embalou-se, correu, voou, devorou o espaço e atravessando campos, charnecas e mangues aterrados, parou enfim arquejante no ponto onde o caminho não oferece segurança. O espaço devorado foi de uma milha e três quartos. O tempo que durou o trajeto foi de quatro minutos incompletos. Que futuro para o Brasil estamos vendo nas rodas daquela locomotiva! Felizes entre nós os que tiverem uma longa vida: estes passarão por grandes cidades, por grandes estabelecimentos rurais, recordando-se de que os sítios que o transitam foram paus e matas. Paz no entanto e descanso à pobre raça muar. Vem o motor invisível substituí-la nos serviços, com as primazias e vantagens que uma bela manhã sucede a uma noite escura e feia (Caldeira, apud PAULA, 2000, p. 58).

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O trecho acima exemplifica as imagens de progresso e futuro trazidas pela ferrovia e

disseminadas entre os expectadores que puderam presenciar as primeiras viagens. Contudo,

para seus fundadores caberia mais, pois ela correspondia ao meio fundamental de civilizar o

país, difundir o valor do trabalho entre as populações dos sertões e integrá-las à economia

nacional, transformando em riqueza o que ainda não tinha nenhum valor. Para o governo,

importava integrar o território, fortalecendo o processo de construção da nação.

Em 1878, Mauá realizou a exposição aos credores, na qual defendia o transporte

ferroviário em função da extensão geográfica do país. Visava ter os recursos naturais

transportados até os centros industriais, contribuindo para o desenvolvimento econômico

nacional. A ferrovia seria o carro-chefe do progresso e da civilização, integrando à economia

nacional os vastos territórios e populações espalhadas pelos sertões. Em suas palavras:

Ninguem desconhece que o Imperio do Brazil patenteia aos olhos de todo o homem pensador que contempla no Mappa-Mundi a extenção de seu territorio e respectiva posição topographica, a necesidade indeclinavel de vias de communicação aperfeiçoadas para que os thesouros que elle esconde em seus sertões venhão auxiliar o desenvolvimento dos grandes recursos que encerra essa zona privilegiada, contribuindo assim para que a nacionalidade espalhada sobre essa superficie, alcance, porventura em um futuro não mui distante, a posição que lhe compete no congresso das nações, isto é, o primeiro lugar. Com effeito, será pouca cousa fazer penetrar um caminho de ferro nos mais afastados confins do nosso territorio, conquistar ao deserto dezenas de milhares de leguas quadradas, levar-lhes a população, os meios de trabalhar, habilitar enfim os habitantes de tão remotas paragens a produzir e a consumir, concorrendo dessa fórma com o seu contigente para a prosperidade e grandeza da pátria? Será pouca cousa arrancar, por assim dizer, as ricas producções que encerram as entranhas dessa região afastada e conduzi-las por um rápido trajecto de 50 horas a um porto de mar, convertendo em riqueza o que não tem hoje valor algum apreciável (Mauá apud LIMA, 2003, p. 48)?

Como observa Lima (2003), as imagens eternizadas por Mauá correspondem à de

uma elite ocidentalizada em sintonia com as inovações tecnológicas européias e que buscava

iniciar o processo de industrialização nacional. O transporte ferroviário era visto por esses

atores como um instrumento de construção da nação e de integração territorial. Nesse

contexto, o trem de ferro assumiu também o papel de ícone do progresso, marcando o inicio

de uma nova etapa no processo civilizatório, no desenvolvimento econômico e na

consolidação do Estado nacional moderno, como pode ser visto nas palavras de Mauá:

Hoje dignão-se Vossas Magestades de vir ver correr a locomotiva veloz, cujo sibylo agudo echoará na mata do Brazil prosperidade e civilisação, e marcará sem dúvida uma nova éra no paiz. (Mauá apud LIMA, 2003, p. 51)

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Cristano Ottoni, defensor de uma política ferroviária para o Brasil, diretor da

E.F.Pedro II por indicação do Imperador, escrevia em 1859 “O Futuro das Estradas de Ferro

no Brasil”, no qual apresentava suas perspectivas sobre o papel do setor ferroviário em

território nacional. Dentre as idéias apresentadas, a Integração Nacional aparecia de forma

expressiva, tal como se lê:

Os trilhos de ferro constituem o verdadeiro, e talvez o único meio de bem conciliar a unidade e integridade do império com a descentralização administrativa a que as províncias, sejamos justos, não podem deixar de aspirar...os trilhos de ferro, ligando diversas províncias, serão laços de uma união, que não pesa nem oprime (OTTONI, 1958, p. 39).

Ressalta-se a integração nacional como um dos principais projetos ideológicos

presentes nos planos ferroviários imperiais e republicanos. A ferrovia seria o meio de ligar e

manter a unidade federativa das províncias e estados, estabelecendo o progresso

socioeconômico e uma matriz cultural comum às mais distantes regiões do Brasil. Para

Ottoni, Minas, como as províncias litorâneas, deveria ser beneficiada pelo transporte

ferroviário, solução para o atraso regional:

Em primeiro lugar ocorre que a província de Minas Gerais não possui uma légua de trilhos de ferro e que ela não merece menos, com ser Província interior, do que a Bahia, S. Paulo e Pernambuco [...] para uma tal população, atrasada e acanhada pelo seu isolamento no interior, nem está ainda decretada uma estrada de ferro, pois a de D. Pedro 2º apenas toca a sua raia. Assim, deve desejar-se que esta estrada lance um ou mais braços penetrando para o Interior (OTTONI, 1958, p. 39).

Nota-se, no discurso de Cristiano Ottoni, a integração nacional respaldada pelo

discurso civilizatório, no qual a ferrovia seria o motor do desenvolvimento sócio-econômico

e cultural do Brasil. Nesse quadro evolucionista, progresso e civilização contrapunham-se à

idéia de atraso, situação encontrada nas províncias do interior. Ícone da modernidade, o trem

de ferro era apontado como panacéia, solução aos problemas de variadas ordens.

As imagens apontadas por Mauá e Ottoni, empreendedores e defensores da ferrovia

para o Brasil, apresentam um Brasil atrasado em que a ferrovia seria motor do progresso,

promessa de futuro e disseminadora dos padrões de civilidade. Para a formação da nação,

seria o meio de integração do vasto território nacional e concretização do poder estatal.

Alçaria o status de nação industrializada e civilizada, integrando à economia capitalista com

a exportação de gêneros agrícolas e naturais e com importação de tecnologias.

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A ferrovia transformou sobremaneira as localidades pelas quais passou, fundando e

desenvolvendo pequenas cidades. As novas relações capitalistas trazidas pelo setor

ferroviário foram capazes de transformar estilos e códigos peculiares às populações afetadas

por ela.

A ferrovia, além de seu papel econômico, deteve também uma profunda dimensão

política e social, proporcionando uma nova dinâmica nas áreas pela qual passou e

transformando significativamente a vida social nas regiões adjacentes.

Apesar de sua relevante dimensão econômica, ela obteve, no contexto de sua

implantação, um significativo conteúdo simbólico. Acompanhado do motivo econômico,

estava associado o aspecto cultural que com ela emergia, ao servir de emblema das

representações sobre modernidade e progresso.

A inauguração da ferrovia no país guarda estreita relação com o ideal da

modernidade. Se a ferrovia não desponta como responsável por sua origem, ela, todavia, é

concebida como um de seus principais sintomas. A ferrovia foi representada e incorporada

como símbolo da modernidade e de todos os ideais que estiveram a ela associados, ou seja,

progresso, civilização e futuro.

No contexto de sua implantação, o trem de ferro pode ser lido como um dos mais

significativos símbolos da modernidade, ao incorporar, como objeto e emblema, a interface

entre economia e progresso científico e tecnológico. As estradas de ferro e as locomotivas

tornaram-se símbolos do que era moderno e, juntamente, daquilo que significava progresso e

futuro. Entendida por meio do sentimento de ruptura com o passado, ou seja, numa nova

articulação que mais favorece o “horizonte de expectativa” que o “campo de experiência”, a

modernidade introduzia uma aceleração temporal bem representada pela velocidade do novo

meio de transporte.

Deste modo, é necessário compreender a construção da ferrovia no Brasil relacionada

ao desenvolvimento de um pensamento que trazia o ideal de modernidade e de progresso.

Assim, progresso, locomotiva e estrada de ferro eram lidos como símbolos de mudança, do

novo e do futuro.

Há que enfatizar que as falas acima encontradas correspondem a imagens e

representações dos momentos inaugurais da ferrovia no Brasil, pois os planos de progresso e

civilização não foram plenamente realizados. O impacto da ferrovia foi muito mais

significativo enquanto representação da modernidade, do progresso e do futuro.

Como observa Maia (2009), não houve na história da ferrovia aquele chamado

período áureo, tão amplamente difundido no imaginário e em parte da historiografia sobre as

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ferrovias. Mesmo no momento de sua implantação, período inconteste das representações da

modernidade, progresso e civilização, o que houve de fato foi, na micro-história dos

trabalhadores, exploração do trabalho, baixos salários, maus tratos, insegurança e, até

mesmo, em seus primórdios, a contradição da expansão de relações capitalistas atreladas ao

trabalho escravo. Os rastros de morte e a exploração do trabalho foram também enfatizados

por Hardman (2005):

[...] as grandes obras publicas e privadas – inclusive com destaque, o processo de expansão planetária das ferrovias - produzem, sob a égide da concorrência de capitais e mercados que se internacionalizam, esses novos exércitos de trabalhadores nômades, recrutados em sua maioria compulsoriamente, cuja atividade subterrânea e anônima vai deixando um enorme rastro de morte (HARDMAN, 2005, p. 60).

A história da ferrovia no Brasil foi inaugurada no deslumbramento do progresso e

modernidade, mas em menos de um século elas perderam esse brilho civilizatório, pois as

representações de progresso, futuro e modernidade transmutaram seus símbolos e as ferrovias

deram lugar a representações de decadência e arcaísmo. As ferrovias brasileiras se

desenvolveram durante um curto período até meados da segunda década do século XX, e

começaram, a partir da década de 1920, a perderem investimentos no Brasil, até chegarem à

década de 1960, fim da era ferroviária no Brasil. Como observa Paula (2000):

A era ferroviária chegava ao final no Brasil. Não houve durante todo esse período e nos posteriores, qualquer tentativa de recuperação e implementação do setor ferroviário como um todo. A tendência marcante foi a de privilegiar as “ferrovias estratégicas” militarmente, ou aquelas que atendessem a zonas comerciais e/ou industriais voltadas à exportação, relegando as demais ao completo abandono ou à extinção. Portanto, até a década de 20, o aparelho de Estado incentivou a ferrovia, criando uma legislação apropriada, além de bonificações e isenções às empresas do setor. Dessa época em diante, lentamente, essa tendência se inverteu e, cada vez mais, o Estado assumiu a coordenação de uma política de desmonte do setor ferroviário. O argumento do progresso se vincularia, agora, à rodovia, sendo a ferrovia identificada ao arcaísmo e, principalmente, ao antieconômico (PAULA, 2000, p. 73).

Como foi acima apresentado, a ferrovia surgiu não só no Brasil, mas mundialmente,

atrelada à modernidade e à ideologia do progresso. Em diversas representações produzidas

do contexto, sejam imagéticas ou discursivas, ela foi tida como um tema frequentemente

revisitado, dada seu atrelamento enquanto símbolo e representação da modernidade e do

progresso. Todavia, como observa Le Goff (2004), “o moderno tende, antes de tudo, a se

negar e a se destruir”. Assim, os símbolos, representações da modernidade, precisam se

renovar, para que a modernidade cumpra seu papel de renovação permanente. Trata-se do

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poder autodestrutivo-gestativo da modernidade, ou, como posto por Berman (2008), de sua

destruição criadora. Assim, tendo os discursos da modernidade passados a ser representados

por outros símbolos que se contrapuseram ao transporte ferroviário, a ferrovia viu-se,

progressivamente, desinvestida, abandonada e sucateada, até transformar-se em cenário de

ruínas.

2.3 Ferrovia e Decadência:

2.3.1 O Moderno tornou-se démodé: a destruição da ferrovia no contexto da modernidade.

“esse movimento extremamente rápido de construir e de destruir é o mais fascinante e o

mais amedrontador do mundo capitalista” Dilma Andrade de Paula

“aqui tudo parece construção e já é ruína”

Caetano Veloso

As epígrafes acima fazem referência ao tempo acelerado, inserido na longa duração,

de construção e destruição do transporte ferroviário no Brasil. Em cerca de um século a

ferrovia foi substituída de ícone da modernidade e do progresso por representações de

decadência e arcaísmo, quando os emblemas da modernidade passaram a ser referenciados

pelo rodoviarismo. Caracterizado enquanto projeto ideológico inserido nos quadros da

modernidade, a supressão do transporte ferroviário pode ser lido como readaptação desse

mesmo projeto, que pressupõe a auto-destruição constante para que tudo se conserve

(PAULA, 2000).

Inaugurada sob representação do progresso e da modernidade, em pouco tempo a

ferrovia foi desmanchada pelo mesmo discurso que a fundou. Assim, a modernidade é

pensada como projeto inacabado, que engendrando rupturas e continuidades, justifica a

construção e descontração das ferrovias no Brasil ao longo do século XX. Como observa

Paula (2000), trata-se de um

projeto inserido nos quadros da chamada ‘modernidade’, tanto a sua emergência quanto sua desarticulação são sedimentados pelo discurso do novo e da necessidade da transformação constante. Mudando-se, o status quo permanece intocável (PAULA, 2000, p. 46).

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De acordo com teóricos da modernidade, é certo que esse processo de construção e

destruição constante é parte do movimento de retro-alimentação da própria modernidade, que

se auto-destrói para se manter. Referindo-se aos paradoxos e contradições da modernidade,

escreve Le Goff (2004):

O moderno tende acima de tudo, para se negar e se destruir. [...] Definindo o moderno como um presente, chega-se a fazer dele um futuro passado. Já não se valoriza um conteúdo, mas um contingente efêmero. [...] Tende a valorizar o novo pelo novo, esvaziar o conteúdo da obra, do objeto e da idéia. [...] O moderno adquiriu um ritmo de aceleração desenfreado. Deve ser cada vez mais moderno: daí um vertiginoso turbilhão da modernidade (LE GOFF, 2004, p. 390-391).

Marshall Berman (2008) chamou este processo acelerado de construção e destruição

como a destruição criadora. Trata-se do processo pelo qual a modernidade, inserida no

esteio da produção capitalista, se refaz constantemente por meio das inovações dos meios de

produção, quando o velho démodé (ainda tão jovem) tem que ser destruído para a emergência

do novo. Desse espiral de construção, destruição e reconstrução decorrem os sistemas de

manutenção da própria modernidade e, por meio dela, do próprio sistema capitalista.

Os instrumentos de renovação da modernidade decorrem do poder de revolução

permanente da burguesia. A classe mais empreendedora já vista na história não pode manter-

se sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, assim, as relações de

produção e as relações sociais. Como observa Marx, citado por Berman, a “revolução

initerrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável

incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores” (BERMAN, 2008, p.

30). Sobre a necessidade de transformação ininterrupta empreendida pela classe burguesa

escreve Berman (2008):

Sobre pressão, todos os burgueses, do mais humilde ao mais poderoso, são forçados a inovar, simplesmente para manter seu negócio e a si mesmo à tona, quem quer que deixe de mudar, de maneira ativa, torna-se-á vitima passiva das mudanças draconianamente impostas por aqueles que dominam o mercado. Isso significa que a burguesia, tomada como um todo, “não pode subsistir sem constantemente revolucionar os meios de produção”. Mas as forças que moldam e conduzem a moderna economia não podem ser compartimentalizadas e separadas da totalidade da vida. A intensa e incansável pressão no sentido de revolucionar a produção tende a extrapolar, impondo a transformação também naquilo que Marx chama de “condição de produção” (ou relações produtivas), e, com elas, em todas as condições e relações sociais (BERMAN, 2008, p. 117-118).

Na ordem do sistema capitalista, a produção não é feita para durar, mas para o breve

perecimento, para que tudo seja refeito sob novas formas, novos paradigmas e trazendo

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novas representações sobre o progresso, o moderno e o novo. Como aponta Berman (2008), a

maior ironia da classe burguesa é que ela não pode olhar de frente seus feitos, voltar-se pra

trás, mas deve seguir em frente progredindo e transformando, enquanto tudo, por detrás, vai

se fazendo em ruínas, cujo único expectador torna-se o “anjo da história”. Nas palavras de

Berman (2008):

Ora, para constrangimento dos burgueses, eles não podem olhar de frente as estradas que abriram: as grandes e amplas perspectivas podem converter-se em abismos. Eles só podem continuar a desempenhar seu papel revolucionário se seguirem negando suas implicações últimas e sua profundidade (BERMAN, 2008, p. 117).

Todas as construções e objetos devem se perder de forma breve, tornarem-se

obsoletos pouco tempo após terem sido criados. Todas as relações se tornam antiquadas

antes que cheguem a se ossificar (BERMAN, 2008, p. 31). Trata-se do poder produtivo da

burguesia e conseqüente impulso de destruição e auto-detruição. Tudo se converte pela

mudança permanente, para a perpétua renovação dos modos de vida pessoal e social. Manter-

se estável significa morrer lentamente, já que o sentido de progresso e crescimento

corresponde ao único meio de manter-se vivo. Como escreve Berman (2008),

[...] a verdade é que, como Marx o vê, tudo que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo. “Tudo que é sólido” – das roupas sobre nossos corpos aos teares e fábricas que as tecem, as homens e mulheres que operam as máquinas [...] vilas e cidades [...] tudo é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez pra sempre, sob formas cada vez mais lucrativas. [...]O pathos de todos os monumentos burgueses é que sua força e solidez material na verdade não contam pra nada e carecem de qualquer peso em si; é que eles se desmantelam como frágeis caniços, sacrificados pelas próprias forças do capitalismo que celebram. Ainda as mais belas e impressionantes construções burguesas e suas obras públicas são descartáveis, capitalizadas para rápida depreciação e planejadas para se tornarem obsoletas; assim, estão mais próximas, em sua função social, de tendas de acampamentos que de pirâmides egípicias, dos aquedutos romanos, das cátedras góticas (BERMAN, 2008, p. 123).

A passagem acima parece exemplar para compreensão do processo de construção e

destruição das ferrovias brasileiras. As construções monumentais que caracterizam a

arquitetura e engenharia ferroviária encontraram-se, em cerca de um século de seu auge

enquanto símbolo do progresso, da modernidade e do novo, transformadas em símbolos do

que é passado, obsoleto e antieconômico, encontrando-se, ainda atualmente, em estado de

arruinamento, dado o progressivo processo de esquecimento a que foram relegadas desde

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aproximadamente meados do século passado. Nascidas sob a representação do progresso e

modernidade, ela foi drasticamente abandonada em função do mesmo discurso que a fundou,

já que a indústria automobilística passou a ser palco dos discursos de progresso e

desenvolvimento, enquanto a ferrovia tornava-se representada pelo seu contrário, ou seja,

símbolo do que é arcaico e decadente. Há que enfatizar que nesse processo de mudança, não

houve no Brasil o desenvolvimento de uma política conciliatória entre os meios de

transportes, mas sim de concorrência e de substituição.

Num período de aproximadamente um século, a ferrovia assistiu ao seu auge e à sua

decadência. Como mostra o trabalho de Paula (2000) e Maia (2001), a mesma retórica do

progresso e da modernidade foi utilizada tanto para a o surgimento quanto para a decadência

da ferrovia que, no contexto da política desenvolvimentista das décadas de 1950 e 1960, se

via substituída pelo transporte automobilístico como novo paradigma da modernidade. De

acordo com Maia,

Em nome do progresso e do futuro, tanto construiu-se a ferrovia no Brasil, como destruiu-se no momento em que ela parou de representar tais ideais modernos. Esse é talvez o grande paradoxo da modernidade e, em se tratando de um projeto nacional, é um dos muitos paradoxos da política brasileira. Afinal, como lembra Le Goff, “o moderno tende, acima de tudo, para se negar e se destruir” (MAIA, 2001, p. 12).

2.3.2. O processo de decadência e abandono do transporte ferroviário

De uma forma geral, o período de desenvolvimento das ferrovias brasileiras esteve

situado entre o final do século XIX e início do XX, período o qual, em função da economia

agro-exportadora, registrou-se a construção de muitas ferrovias, troncos e ramais

ferroviários. Mas esses investimentos começaram a declinar, sobretudo, após a década de

1930. A passagem de uma economia baseada na exportação de produtos primários para uma

mais voltada para o mercado interno, baseado na industrialização, foi responsável pelo

desgaste de grande parte das ferrovias brasileiras. A partir da década de 1930, com o

desarranjo da economia agro-exportadora, as ferrovias ligadas à região começariam a perder

progressivamente importância. Mais tarde o processo se mostraria ainda mais agudo. Grande

parte da malha ferroviária que foi construída para exportar o café se viu em desfavorecimento

aos primeiros sinais da crise do produto e sentiram sob seu efeito iniciando a trajetória de

déficits. Com freqüência, as empresas constituíram-se de linhas que se tornaram obsoletas em

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pouco tempo. Nesse processo, muitas ferrovias que operavam o transporte de passageiros se

viram em desfavorável situação, haja vista a pesada demanda de modernização de

equipamentos, correção dos traçados e adaptação aos novos rumos econômicos (PAULA,

2008).

De acordo com Paula (2000), os discursos sobre a ineficiência das ferrovias

começaram a ser esboçados ainda a partir de 1913, que acontecia paralelamente aos

argumentos de exaltação às rodovias. O formato do debate produzido sobre os meios de

transporte no Brasil, que, desde a década de 1920, centrou seus discursos numa oposição

entre ferrovia e rodovia, tornou ausente a opção por projeto nacional e integrado de

transporte. Em 1926, diria Washinton Luís: “Governar é abrir estradas!” Desse período em

diante iniciou-se uma política efetiva de construção da rede rodoviária, quando o transporte

rodoviário deixava de ser um meio alimentador da ferrovia para compelir-se de uma função

desbravadora.

Até a década de 1920, o aparelho do Estado incentivou a ferrovia através de uma

legislação apropriada e de bonificações e isenções às empresas ligadas ao setor ferroviário. A

partir do final da década de 1930 e inicio da de 1940, com o crescimento de uma política

estatal voltada para a industrialização, foram postas em execução novas diretrizes de

transportes, e, nesse contexto, as ferrovias foram perdendo cada vez mais espaço e

investimento, enquanto a indústria automobilística tornava-se alvo de maiores investimentos.

A partir da década de 1930, houve uma progressiva retração de investimento estatal no setor

ferroviário, sem que tenha ocorrido qualquer tentativa de recuperação e implementação do

setor como um todo, principalmente na articulação entre o transporte de cargas e de

passageiros.

A partir de meados da década de 1940 intensificou-se a expansão rodoviária com a

construção de estradas paralelas aos traçados ferroviários, fortalecendo a competição entre os

meios de transporte. Os déficits ferroviários iniciados em 1929 eram debatidos apenas como

conseqüência da depressão econômica, sem se considerar a relação guardada entre a

competição entre os meios de transportes, com a criação de estradas rodoviárias paralelas às

de ferro. Como observa Paula (2002):

Sem financiamentos e também sem uma política voltada para a construção ferroviária, acentuou-se a deterioração do parque ferroviário e, paralelamente, fortaleceu-se a política de construções rodoviárias, amplamente divulgada com um retorno financeiro mais rápido e de uma infra-estrutura mais barata. Ainda que, no período da guerra, se evidenciasse o problema da dependência dos óleos combustíveis, o lobby das rodovias se acentuava (PAULA, 2002, p. 08).

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A tendência à expansão do transporte rodoviário em detrimento do transporte

ferroviário foi fortalecida com o governo de Juscelino Kubitschek, a partir de meados da

década de 1950. Este período retrata a expansão dos bens de consumo duráveis e a livre

entrada de capital estrangeiro no país, a partir da atração definitiva das empresas do setor

automobilístico. Nesse período, os investimentos e a manutenção das estradas de ferro

apenas se justificariam caso atendessem às expressivas regiões econômicas ligadas ao setor

de exportação.

Segundo Paula (2008), a entrada de maciços investimentos estrangeiros no país a

partir de meados de 1950 foi significativamente direcionado à industria automobilística,

consolidada como pioneira no processo de industrialização. O ingresso volumoso de

investimentos estrangeiros acompanhou o processo de criação e consolidação da indústria

automobilística. O Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitscheck foi responsável por

um pesado investimento para implantação dessa indústria, incrementando a construção de

estradas e o setor de máquinas, equipamentos e auto-peças. Como evidencia a autora, nesse

processo, “a ferrovia deixava de ser objeto de investimentos internacionais e passava a ser

alvo de projetos de extinção e desativação, sobretudo dos ramais dedicados ao transporte

inter-regional de passageiros” (PAULA, 2008, p. 49).

De acordo com os interesses econômicos estabelecidos no contexto, a elaboração de

uma nova política ferroviária era realmente impossível. Para se ter uma noção, a autora

apresenta o dado sobre investimentos brutos em transportes no período, que demonstra que

em 1960 o transporte rodoviário recebia 76,4% dos investimentos, enquanto ao transporte

ferroviário era destinado apenas 7,9%. Daí pode-se entender a significativa perda econômica

da ferrovia que, segundo Paula (2008), era ainda prejudicada por uma “elaboração cultural

centrada no automóvel” e que também se alimentava da decadência do transporte ferroviário,

que estava sendo progressivamente abandonado.

O deslocamento do pólo de desenvolvimento regional para a região centro-oeste, a

partir do governo JK, explica também a desaceleração econômica das antigas áreas

produtoras de café – a exemplo da Zona da Mata mineira – consideradas sem expressão

econômica e cujas ferrovias, também consideradas anti-econômicas, acabaram por tornarem-

se alvo das desativações (PAULA, 2008). No contexto de expansão do transporte rodoviário

e de retração do setor ferroviário, criou-se a Rede Ferroviária Federal S.A, empresa de

economia mista e vinculada ao Ministério de Viação e Obras Públicas. De acordo com Paula

(2004), com a criação da RFFSA, “muito se construiu, interligando malhas dispersas e

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direcionando-as ao transporte de grãos nobres e minérios e muito mais se destruiu”.

(PAULA, 2004, p. 55)

O combate ao déficit ferroviário foi incentivado através da criação da Rede

Ferroviária Federal S.A com a unificação da rede ferroviária. Regularmente aprovada em 16

de março de 1957, sob a forma de lei n. 3115, a RFFSA encampou várias empresas tendendo

à reorganização e administração ferroviária. O principal acionista da RFFSA era o Governo

Federal com 87% das ações, os Estados com 10,2% e os Municípios com 2,66%. No entanto,

a RFFSA não era a única responsável pela operação do sistema ferroviário, que também

contava com a elaboração de políticas oriundas do Conselho Nacional de Transportes, do

Departamento Nacional de Estradas de Ferro e do Conselho Geral de Transportes (PAULA,

2008).

De acordo com Paula (2008), o Relatório anual da RFFSA de 1959 indicava que os

objetivos centrais da empresa eram a “correção da insuficiência crônica dos transportes

ferroviários no país e a redução do montante do déficit de operação” (PAULA, 2008, p. 51).

Apesar de apontarem a redução de pessoal como ação estratégica, identificava a carência de

pessoal especializado no setor. Em relação à evolução do déficit, para o qual o relatório

responsabilizava a política financeira e econômica de transportes, a solução encontrada

alegava a necessidade de aumento da densidade do tráfego e a eliminação de ramais ou

trechos ferroviários anti-econômicos. De acordo com a autora, os governos brasileiros

incentivaram o transporte rodoviário alegando a ineficiência, os déficits e a ausência de

recursos para a recuperação das ferrovias. Em suas palavras,

A ferrovia continuou sendo o meio de transporte mais importante para as regiões beneficiadas por empresas ferroviárias, até a inauguração das estradas de rodagem que, geralmente, seguiam paralelas ao leito ferroviário. Com a intensificação do tráfego nessas estradas e nas marginais e com o crescimento da indústria automobilística, muitas regiões servidas pela ferrovia durante 60 anos começaram a deslocar sua preferência para as rodovias. Com o sucateamento crescente, os trens se atrasavam com freqüência e os acidentes tornavam-se rotina. A obsolescência do material rodante fazia os trens perderem velocidade, tornando o transporte ferroviário de bens perecíveis mais arriscado do que pelas rodovias (PAULA, 2008, p. 52).

Em função do quadro calamitoso que recaia sobre o sistema ferroviário brasileiro, foi

montado o programa de erradicação dos “ramais anti-econômicos”. Nesse processo, foram

erradicados mais de 10 mil quilômetros de trilhos, sob a justificativa de fortalecimento dos

ramais mais rentáveis. A ferrovia brasileira abandonava, nesse processo, o transporte de

passageiros, voltando-se estritamente para o transporte de cargas e promovendo, com isso, o

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esfacelamento do vínculo social do transporte ferroviário inter-regional e deste com as

cidades que lhes davam sede.

As décadas de 1960 e 1970 foram as mais intensas no processo de erradicação das

ferrovias, sendo que a implantação do desmonte aconteceu de forma mais significativa após

1964 com a ditadura militar, “quando as ferrovias já estavam muito desgastadas, com a fuga

progressiva de passageiros e demais usuários” (PAULA, 2004, p. 55). Como afirma a autora,

“de 1966 a 1975 houve um decréscimo substancial da quilometragem construída, enquanto

aumentava a quilometragem erradicada” (PAULA, 2004, p.56).

TABELA: EXTENSÃO DAS LINHAS FERROVIÁRIAS, 1858-1980

Passageiros (103) ANO Km linhas Interior Subúrbio Ton útil (103) 1858 51 115 – 12 1870 221 221 530 151 1880 633 988 1.580 328 1890 855 1.317 5.304 483 1900 1.241 1.847 12.480 830 1910 1.789 3.827 23.541 1.846 1920 2.348 6.937 34.075 2.382 1930 2.932 14.468 64.628 3.349 1940 3.133 9.039 99.761 5.618 1950 3.642 13.825 189.504 4.479 1960 3.474 16.453 216.257 8.056 1970 2.823 4.052 174.477 11.756 1980 1.170 556 178.350 27.513 Fonte: Dados extraídos do trabalho de: David, Eduardo Gonçalves. 127 anos de ferrovia. Juiz de Fora - MG: Associação dos Engenheiros da E. F. C. B, 1985, p. 98-100. IN.: (PAULA, 2002:07)

O desenvolvimento da política de transporte, sobretudo da política ferroviária, era

balizada por critérios econômicos, oriundos de análises e relatórios técnicos empreendidos e

encomendados pelas agências especializadas do governo. Nesse processo, a categoria “anti-

econômico” era elaborada para definir as linhas cujo transporte de cargas representava

balança desfavorável acarretando déficits. A criação da categoria sugeria que as análises

eram realizadas exclusivamente via critérios econômicos e racionais, assim, constavam de

aparente neutralidade e isenção de interesses, escamoteando que o caráter “essencialmente

econômico” respondia também a interesses políticos organizados em torno do Ministério dos

Transportes (PAULA, 2000, p. 185). Nesse processo, os ramais anti-econômicos eram

erradicados e progressivamente substituídos por rodovias.

É importante também salientar que, ao privilegiar nas análises os critérios

essencialmente econômicos, esses estudos - suportes à desativação e erradicação das linhas –

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se suprimiam de uma análise global e de uma avaliação socioeconômica sobre os meios de

transportes, levando também em consideração as funções sociais e as economias

desenvolvidas “porta adentro” das ferrovias. Os efeitos indiretos provocados pelas ferrovias

foram isentados de tais análises, deixando fora de questão a relação dinâmica estabelecida

entre o transporte ferroviário e os espaços e sociedades por onde ele se estendia. De acordo

com Ángel, citado por Paula (2000):

Por lo anteriormente expuesto parece deducirse que el tren brasileño se limitó a cumplir um rol específico dentro de la economía agroexportadora. Esta visón tradicionalista le niega cualquir contribuicíon em cuanto a la dinamización de la economía de puertas hacia adentro. Si bien, el ferrocarril nasció pensado de puertas hacia afuera y las políticas ferroviárias fueran inspiradas por comerciantes y plantadores, cuyos intereses se centraban em el mercado mundial, no hay que depreciar los efectos indirectos que se derivaron de la implantación y expansión de um médio de transporte tan revolucionário. Está claro, a estas alturas de trabajo, que la própria configuración de un sistema desintegrado constituyó um serio handicap de cara a fomentar la integración de uma economia nacional, e incluso se les puede acusar de haber debilitado los lazos comerciales del interior estabelecidos por los tradicionales arrieros al potenciar um tipo de economía más rentable (PAULA, 2000, p. 84).

Constantes nos meios de divulgação do aparelho do Estado, expressões como

‘deficitário’ e ‘anti-econômico’ sintetizavam todos os argumentos em favor da erradicação

dos ramais, tendo por base a fraca produtividade da ferrovia como meio de transporte. Uma

vez posto esse argumento, alijavam-se demais fatores, como o interesse social, e justificava-

se a construção de rodovias substitutivas aos ramais extintos, considerando-se resolvido o

problema de ligação inter-regional. A força posta nos argumentos econômicos foi observada

por Paula (2008), enfatizando sua utilização em consonância ao novo padrão de acumulação

que se estreava.

Salta aos olhos a força que os argumentos de racionalidade econômica detinham: critérios econômicos, regiões economicamente inexpressivas. Para quem? Por que? Inexpressivas, talvez, para atendimento do mercado externo, pois algumas dessas abasteciam o mercado interno. O discurso sedimenta a estratégia de desenvolvimento e a mudança no padrão de acumulação, conciliando novos interesses e atores (PAULA, 2000, p. 194).

Os estudos realizados, estritamente vinculados a argumentos econômicos, deixaram

de fora a elaboração de argumentos globais, levando em consideração fatores positivos e

negativos de ambos os meios de transportes e deixaram de realizar uma contabilidade

sistêmica e equiparada entre eles. As categorias econômicas eram postas de modo auto-

explicativo, esvaziadas de argumentos mais detalhados e aprofundados sobre os dados

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apresentados. Encampados de argumentação econômica, os aspectos sociais e de interesse

coletivo, que deveriam também ser postos em pauta, eram, assim, deixados de lado. Destarte,

tratava-se de uma “metodologia econômica capaz de justificar decisões de cunho político”

(PAULA, 2000, p. 197). Como observa Ubirajara Baia, citado por Paula (2000):

Não se encontram estudos mais aprofundados sobre a erradicação das linhas em nosso meio técnico nacional. Normalmente, o que foi feito foram simples exercícios de contabilidade financeira, onde está bastante nítida a falta de fidelidade ao se tratar de estudos e precisões, sejam eles de cunho econômico ou social. Ao analisar mais detidamente qualquer um dos trabalhos existentes, nota-se claramente o rodoviarismo tendencioso que tangeu o planejamento ferroviário brasileiro nos últimos 30 anos (Baia apud, PAULA, 2000, p. 199).

Pensando os termos “anti-econômico” e “deficitário” como representações utilizadas

para caracterização das ferrovias, das quais decorriam as erradicações, remontamos a Becker

(1999) ao enfatizar o recorte parcial e enviesado que caracteriza todas as representações

sociais.

Para o autor, toda representação da realidade social é necessariamente parcial. Assim,

produtores e usuários de representações realizam várias operações sobre a realidade para,

destas, chegarem à compreensão da realidade social que pretendem comunicar (BECKER

1999, p. 141). Para Becker, toda representação é um recorte da realidade. Por mais que ela

pretenda ser abrangente e inclusiva, ela é parcial. Assim, quando diante de representações as

quais pretendemos compreender ou desnaturalizar, importa questionar sobre qual o recorte

operado e qual a finalidade dele. Para isso, se faz necessário pensar o contexto organizacional

da representação, ou seja, em qual locus no espaço social encontram os agentes produtores

das representações, e quais as finalidades visava ela responder. Assim, deve-se considerar

não apenas os elementos constantes nas representações, mas também aqueles deixados de

fora. Como enfatiza Becker (1999):

Visto que qualquer representação deixa de lado elementos da realidade, as questões interessantes e pesquisáveis são as seguintes: quais dentre os elementos possíveis são incluídos? Quem se queixa delas? Que critérios as pessoas aplicam para estes julgamentos (BECKER, 1999, p. 141)?

Assim, ao lidarmos com representações, deve-se ter em mente que as mesmas são

produzidas por agentes dentro do espaço social em campos específicos, e, deste modo,

visando responder aos interesses desse campo e dos agentes envolvidos. Deste modo, é

significativo entender que os conteúdos das representações jamais podem ser considerados

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imparciais, pois, como enfatiza o autor, são coerentes com o contexto organizacional que os

produzem. De acordo com ele:

Ver organizacionalmente representações de conhecimento sobre a sociedade significa incorporar à análise todos os aspectos das organizações nas quais elas são feitas: estruturas burocráticas, orçamentos, códigos profissionais, características e aptidões do público dão todos aspectos que marcam o falar sobre a sociedade. (BECKER, 1999, p. 138)

Assim, torna-se importante compreender o locus de produção dessas categorias e

quais os agentes e interesses envolvidos. Nesse sentindo, é importante ressaltar a penetração

nos órgãos e demais agências insuladas dos governos de membros ligados aos interesses das

empreiteiras brasileiras que muito lucraram com o projeto de desenvolvimento nacional

vinculado à industria automotiva e aos empreendimentos rodoviários nacionais. Ademais,

importa também ressaltar o recorte utilizado na criação desses estudos e representações, que

ao centrarem-se exclusivamente nos aspectos econômicos, deixaram escapar aspectos muito

relevantes, como, por exemplo, os interesses coletivos e as funções sociais que envolvem os

meios de transportes.

Apesar de ser uma qualificação limitada e enviesada, as representações elaboradas

para caracterizar as linhas e ramais ferroviários foram, pela insistência e repetição exaustiva,

naturalizados enquanto tal, ou seja, imediatamente aceitas sem demandarem uma produção

argumentativa sistêmica e problematizada. Como observa Paula (2000), “apesar de toda a

parcialidade, o termo anti-econômico adquiriu força de doxa” (2000:199), que corresponde a

um conjunto de pressupostos dados como evidentes, “aquém de qualquer discussão, porque

constituem a condição tácita da discussão” (Bourdieu, apud PAULA, 2000, p. 69). Desta

forma, ela se insere no que Bourdieu (1989) denomina como o poder simbólico, invisível e

quase mágico, para o qual a ordem estabelecida é figurada como natural, dificultando, assim,

seu questionamento ou qualquer possibilidade de contestação. Ademais, produzidos por

estruturas de poder dentro do espaço social, esses discursos de autoridades acabam sendo

apreendidos como discurso da verdade e, uma vez enunciados, eles são capazes de criar a

representação e forjar, assim, a própria visão sobre as coisas. Trata-se do poder de fala e de

enunciação. Como observa Mendonça, citada por Paula (2000):

As lutas simbólicas pela imposição de uma dada visão do mundo social são sempre lutas pela imposição de uma “fala” ou “ representação” legítima, destinada a mostrar e fazer valer uma dada realidade, que variará segundo as propriedades de posição de seus enunciadores. Cabe ao pesquisador deslindá-las para, ao fazê-lo,

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desnaturalizar a própria história, desconstruindo/ reconstruindo, ainda que noutro tempo histórico (Mendonça apud PAULA, 2000, p. 28).

Assim, o trabalho de Paula (2000) sobre a erradicação dos ramais da Estrada de Ferro

Leopoldina realiza uma desnaturalização dessas categorias, mostrando como foram

elaboradas visando, entre outras, interesses de grupos específicos, que, desde a década de

1950, expandiram e lucraram sobremaneira com os projetos de desenvolvimento ligados à

política de transportes. Entre os interesses últimos que subjazeram a uma aparente disputas

entre dois meios de transporte, estavam grupos empresariais brasileiros associados às

multinacionais e penetrados nas agências do governo. Tratando do período militar, período

de maior erradicação do transporte ferroviário, diz ela:

o fundamental neste trabalho é perceber o discurso legítimo que se impunha durante o regime militar, identificando o capital simbólico que atravessava as questões relacionadas ao transporte, observando a forma pela qual a opção rodoviária (imposta pelos grupos dominantes) era revestida de força simbólica e de legitimidade. Evidentemente, o que estava em jogo não era simplesmente a relação de disputas entre os dois sistemas de transportes, mas a transformação na estrutura do capital e a disputa pela hegemonia de novos grupos empresariais brasileiros entrelaçados com os interesses das multinacionais (PAULA, 2000, p. 181).

De uma forma geral, a visão que se disseminara era a de que o papel anteriormente

cumprido pela ferrovia tornara-se naquele momento melhor desempenhada pela rodovia.

Embora a ferrovia tivesse sido importante no passado, ela tornara-se obsoleta. Sobre a

rodovia, recaia então a função desbravadora e o papel de integração nacional e

desenvolvimento econômico. De acordo com Paula (2000), de forma geral, a lógica

argumentativa que comandava o setor de transportes era a seguinte:

A ferrovia embora tivesse atendido com eficiência no passado brasileiro, era obsoleta, ineficiente e dispendiosa seria a sua recuperação. A rodovia, ao contrário, estava em expansão (com flexibilidade e rapidez) e representava um importante caminho para a integração nacional, ligando os mais distantes rincões do país e possibilitando o transito de pessoas e, principalmente, de cargas. A integração nacional, por sua vez, era pressuposto do desenvolvimento econômico e da Segurança Nacional. Assim, desenvolvendo a rodovia e fortalecendo a economia, a população seria beneficiada, pois o bem estar social só se alcançaria mediante desenvolvimento econômico. Essa era a justificativa para os vultuosos empreendimentos em vias rodoviárias e para legitimar a rápida extinção dos ramais ferroviários. Por outro lado, se escamoteava os interesses econômicos dos grandes grupos nacionais e multinacionais ligados ao setor da indústria automobilística e da construção civil (PAULA, 2000, p. 187).

Após progressiva erradicação das linhas e supressão do transporte de passageiros

comandado pelo Estado, o processo de desestatização da Rede foi iniciado no período entre

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as décadas de 1980 e 1990 e culminou, em 1995, na privatização da malha ferroviária

federal. Em 1992, a RFFSA foi incluída pelo Governo Federal no Programa Nacional de

Desestatização, sendo, entre os anos de 1996 a 1998, dividida em seis malhas e leiloada. O

prazo de concessão das malhas foi de 30 anos renováveis por igual período. Após as

privatizações acentuou-se o processo de demissões em massa de trabalhadores e a extinção

de cargos e empregos. O quadro geral apontava uma empresa bastante endividada, com

aproximadamente 500 funcionários e o abandono geral dos patrimônios materiais e imateriais

das ferrovias brasileiras (PAULA, 2008).

O processo de liquidação da RFFSA encontrou resistência, embargo e intervenções

como, por exemplo, do Ministério Público Federal que, pressionado por entidades da

sociedade civil ferroviarista e preservacionista, demandaram o inventário e a preservação do

patrimônio ferroviário sob a guarda da Rede.

Após a liquidação da RFFSA e a privatização da rede, as ferrovias brasileiras têm

passado por um violento processo de sucateamento e abandono. Os remanescentes

ferroviários correspondem ao segundo maior patrimônio imobiliário da União (Tereza apud

Paula 2008, p. 61) e, segundo a relação do patrimônio público, correspondem também ao

maior índice de imóveis desocupados e em situação de abandono. O sucateamento das

ferrovias brasileiras recai sobre um abrangente patrimônio que engloba desde capital humano

a obras de infra-estrutura, passando por estações, bens imóveis e móveis, como artefatos,

arquivos, bibliotecas etc.

O esquecimento que recai sobre a ferrovia não se encerra no seu uso como meio de

transporte, sobretudo no que concerne ao transporte inter-regional de passageiros, mas,

também, sobre todos remanescentes da indústria ferroviária, cujos arquivos, documentos e

imóveis encontram-se no limbo da memória, aguardando um encaminhamento social que

representa sua condução à posteridade ou sua finitude enquanto referência da história e da

memória social. Como escreve Hardman,

O trem já partiu. Sua história passada contém elos perdidos das culturas não oficiais da modernidade. Sua presença desvela um universo singular de representações. Com as ferrovias, muito claramente, a técnica se desgarra das formas que a produziram e assume feição sobrenatural. A paisagem dos caminhos de ferro torna-se, assim, remota, cujo duplo sentido da conta das rupturas operadas simultaneamente nas relações com o tempo e com o espaço, podendo-se aí configurar tanto como localidade perdida quanto época irresgatável. A ordem cronológica quebra-se: o tempo da locomotiva - aquela que já fora celebrada como deusa do progresso- permaneceu parado. [...] o trem extraviou-se em algum ramal solitário, em alguma estação sem nome. Por isso, velhos ferroviários guardam esse idêntico ar de mistério. Seus relatos possuem um tom épico indisfarçável. Sua memória não tem começo nem fim (HARDMAN, 2005, p. 42).

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Enquanto não acontece uma efetiva política de preservação dos remanescentes

materiais e imateriais da história ferroviária, a memória sobre as ferrovias permanece como

elemento de resistência localizado na esfera do vivido por sujeitos que direta ou

indiretamente a conheceram por meio da experiência. Como observa Paula (2008)

Pesquisar sobre as empresas ferroviárias e sobre os ferroviários é quase um trabalho arqueológico, à procura de sinais e dos poucos vestígios que nos restaram, enfrentando arquivos “mortos” e porões. Na música, na literatura, nas memórias individuais, na rica trajetória dos trabalhadores ferroviários, nas estações e pátios afora, a lembrança dos trens permanece, sinais da latência da memória em luta contra o esquecimento (PAULA, 2008, p. 45).

Enquanto opera-se uma política de esquecimento sobre as ferrovias brasileiras por

parte das políticas de transporte, assiste-se, numa outra esfera, a concentradas iniciativas de

outras agências estatais e da sociedade civil no trabalho de preservação e salvaguarda dessa

memória, a partir da reivindicação de sua elevação à categoria de patrimônio cultural, seja a

nível nacional, estadual e municipal.

2.4 Ferrovia e Patrimônio

2.4.1 A “salvação” pelo patrimônio: política de memória e patrimonialização da ferrovia

Nos projetos e ideologias da modernidade assistiu-se tanto à construção quanto à

destruição das ferrovias brasileiras. Mas esse movimento de construção e destruição

permanente contém a própria ambigüidade da modernidade, que tende, antes de tudo, a se

negar e a se destruir (LE GOFF, 2004, p. 391). De acordo com o autor, após caminhar

sempre em frente e a buscar sempre o novo, o progresso e o desenvolvimento, fazendo

muitas vezes tábula rasa do passado, a modernidade se volta ao passado, fazendo desse

constante movimento mais uma de suas contradições. De acordo com o autor:

Outro paradoxo ou ambigüidade: o moderno, à beira do abismo do presente, volta-se para o passado. Se por um lado recusa o antigo, tende a refugiar-se na história. Modernidade e moda retrô caminham a par. Este período, que diz e quer totalmente novo, deixa-se obcecar pelo passado: memória e história (LE GOFF, 2004, p. 391).

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Não ensejamos entrar, nesse momento, nos embates entre modernistas e pós-

modernistas, já que, para os primeiros, a modernidade se atualiza constantemente por ter uma

capacidade de auto-crítica e de auto-renovação permanente, e que, para os segundos, os

projetos e horizontes da modernidade já se esgotaram, e a modernidade acabou, e que se

inscreve, na atualidade, um regime de historicidade que mais condiz com a pós-modernidade

(BERMAN: 2008, p. 17). Independente de qual seja o regime de historicidade que acomete a

atualidade, tomo como posição que se assiste, na contemporaneidade, a um movimento de

retorno a elementos do passado, não para revivê-los ou reabitá-los, mas sim como fruição ou

tentativa de amenizar as perdas que, embates teóricos à parte, provocam ambos os regimes de

historicidade, seja ele moderno ou pós-moderno.

Acontece que embora nos quadros da modernidade se tenha tratado da substituição e

conseqüente destruição do transporte ferroviário, devido à transformação dos paradigmas e

emblemas da modernidade, o universo das construções ferroviárias é composto de coisas não

feitas para o breve perecimento, mas feitas sim para durar; perpassando e deixando marcas,

ao longo de gerações, do universo material habitado no passado. Como observa Peixoto,

citado por Paula (2004):

Mas a ferrovia é também um mundo de coisas que se opõem ao movimento, que oferecem resistência. Coisas feitas para ficar, não disponíveis à manipulação. Elas têm peso, inércia, exigem grande esforço. Aqui nada tem a leveza e a transitoriedade dos objetos atuais. Tudo é feito para mover muitas toneladas. Puxar, empurrar. Trabalho sempre reiterado. É o mundo ferroviário: transporte feito por tração (Peixoto apud PAULA, 2004, p. 49).

A robustez das construções, peças e engenharias ferroviárias dão a elas duração no

tempo. A despeito de todo abandono e esquecimento a que foram relegados, o universo

material das ferrovias continua compondo paisagens, dando forma às cidades. Se não

demolidas para a completa substituição, elas continuam lá, apresentando marcas do tempo

transcorrido, que corre, mas que a nada deixa impune. Abandonadas e esquecidas, elas

continuam e transformam-se de acordo com um tempo que passa e cai como líquido que

escorre gota a gota, mudando as formas e transformando-se em ruínas.

Engana-se quem imagina que as construções ferroviárias restringem-se às estações,

rotundas e oficinas. Junto com elas surgiram muitas cidades. Com os imigrantes que vinham

a trabalho, surgiram as moradas que foram feitas por influência de arquiteturas européias.

Assim, é possível apreender na evolução urbana das localidades as marcas das ferrovias, seja

por aquelas construções evidentes, sejam por aquelas nascidas sob sua influência. São casas,

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hotéis, fábricas, escolas etc. Sobre o papel da ferrovia no desenvolvimento da cidade, escreve

Paula (2004), referindo-se, por exemplo, à cidade de São Paulo:

A ferrovia provocou na cidade de São Paulo, por exemplo, o surgimento da primeira fábrica, dos primeiros serviços públicos, das primeiras escolas técnicas, dos primeiros museus de arte e os primeiros prédios de apartamentos. E complementarmente surgiram as primeiras zonas mortas da cidade, com prédios e casarões aristocráticos abandonados. Paradoxo inerente aos símbolos modernos (PAULA, 2004, p. 50).

As sociedades históricas sempre se depararam com os remanescentes materiais das

civilizações passadas. O encaminhamento dado a esses remanescentes é uma operação

efetuada em relação à sua continuidade e transmissão às sociedades futuras ou ao

encerramento e supressão do existente não mais considerado funcional ao tempo presente. A

patrimonialização parece ser, na atualidade, um recurso evidente ao tratarmos com os

remanescentes dos sistemas de produção passado, sobretudo aquelas mais recentes oriundos

do capitalismo industrial. Todavia, esse tratamento evidente escamoteia o campo de forças e

conflitos originário do patrimônio, levando, atualmente, a uma aparente banalização do

campo, já que, em última instância, tudo tende a transformar-se em patrimônio.

O patrimônio deve ser pensado como um campo de forças, formado por aparentes

pares de opostos que se fundam numa relação de complementaridade. Assim, Preservação e

Destruição, assim como Memória e Esquecimento são relações antípodas e ao mesmo tempo

complementares. Não é à toa, como evidencia Choay (2001), que a noção de patrimônio

histórico urbano, acompanhado de um projeto de conservação, surgiu em decorrência de um

efeito de contraste, anunciado pela transformação radical do espaço urbano que seguiu à

revolução industrial e que reconheceu, “nas grandes obras de Paris”, seu emblema principal.

Esse mesmo efeito de contraste pode ser aferido na preservação do patrimônio ferroviário,

pois as iniciativas de preservação têm sido provocadas pela degradação e abandono da malha

ferroviária do país.

Não há preservação que não seja acompanhada da idéia de destruição. A questão de o

quê se preservar está no bojo da idéia de seletividade (MOREIRA, 2004) na qual se funda o

patrimônio. É a partir da seletividade que o patrimônio, calcado no tempo presente, funciona

como uma ponte entre o passado e o futuro, entre a história e o devir. Ao se pautarem sobre

os bens a serem preservados, as sociedades e grupos específicos deliberam, de forma

consciente e inconsciente, a respeito da história e da historicidade, da continuidade e ruptura:

o que, no cenário urbano, haverá de ser transmitido, tendo instaurada a sua continuidade, e o

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que haverá de ser suprimido e encerrado seu processo de transmissão. Dispor-se-á pela da

ruptura com a ordem existente ou pela permanência dos referenciais e modos de vida? No

Brasil, os remanescentes da indústria ferroviária encontram-se situados neste ponto de

conflito. De um lado, os órgãos de proteção que aludem à necessidade da preservação dos

bens, associando-os à história local e à manutenção das identidades e memórias sociais. De

outro, o processo real que recai sobre esses bens, ou seja, a sobressalente degradação física

que aponta para seu arruinamento.

A questão que se trata, então, é: o que fazer com esses bens, remanescentes do

capitalismo industrial que, destituídos de atribuição funcional, permanecem nas cidades

relegados ao completo abandono?

Encarregado de uma função “salvacionista” e defensiva, o patrimônio pode ser

pensado como espécie de “panacéia” a atribuir significado e valor a espaços e lugares

provenientes de sistemas produtivos esgotados pelo capitalismo industrial, que tem como

principio ativo sua própria destruição e renovação.3 Esta interpretação parece apropriada para

pensar o caso dos remanescentes da indústria ferroviária brasileira, grande parte localizada

em território mineiro, cujo recente reconhecimento e valorização parecem estar articulados

com sua decadência funcional e, conseqüentemente, com a iminência do seu

desaparecimento.

O aproveitamento das antigas áreas industriais para fins culturais é forte tendência nas

políticas urbanas. Jacques (2004) chama atenção para as chamadas revitalizações urbanas, a

partir da utilização da cultura como estratégia de intervenção em áreas degradas ou

esvaziadas, criando equipamentos culturais e espaços de entretenimento. A autora argumenta

que a presença de equipamentos culturais não permite necessariamente denominá-los como

culturais, pois muitos desses projetos têm como resultado o enobrecimento da área pelo

consumo cultural, impedindo seu usufruto diversificado por diferentes grupos sociais. Esse

processo de “culturalização” de espaços esvaziados da cidade também pode ser percebido nas

pequenas e médias cidades, como é o caso de várias estações ferroviárias que têm se

transformado em “casas de cultura” e museus.

Nota-se, dessa forma, a tendência à patrimonialização dos remanescentes ferroviários

acontecendo concomitante à perda de atribuições funcionais dos antigos imóveis da ferrovia,

que passam a ser ressignificados e revalorizados sob a ênfase de atributos de valor sócio-

3 Observa-se, todavia, que a recuperação desses bens culturais sob viés patrimonialístico não se encontra ausente de inspirações monetárias, pois tais empreendimentos têm, por finalidade, o seu consumo cultural.

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cultural. Essa tendência evidencia a ‘conveniência da cultura’ na contemporaneidade, quando

se assiste à patrimonialização de espaços e objetos esgotados pelo capitalismo industrial. O

poder de renovação da modernidade e do capitalismo pode ser compreendido nesse processo,

pois, após descartá-lo e destruí-lo, ele é novamente recuperado, agora pelo viés cultural, para

ser novamente reapropriado pelo sistema a partir de sua inserção no mercado da indústria

turística e cultural. Nota-se, todavia, o papel ativo do Estado Brasileiro nesse processo, pois

sob a égide da política de transporte em consonância com os projetos de desenvolvimento

nacional, as ferrovias brasileiras foram progressivamente desinvestidas, esquecidas,

abandonadas e literalmente sucateadas e atualmente, balizadas pelos discursos oficiais, elas

são elevadas à categoria de patrimônio cultural. Por ironia, é o próprio Estado - seja com

recursos diretos ou via leis de isenção fiscal - que investe novamente valores exorbitantes de

recursos públicos para recuperar o que ele próprio destruiu.

Apesar da importância da preservação desses remanescentes, que contam parte

importante da história do país, de muitos seres humanos que dedicaram a força do trabalho

nesse empreendimento, e de grupos e cidades que tiveram a vida fortemente referenciada

pela ferrovia, constituindo, muitas vezes, modos de vida peculiares a essas localidades, vejo,

com certa ironia, o papel atual do Estado brasileiro, a ter que reparar os danos por ele mesmo

provocado, ao sucatear o patrimônio ferroviário e agora recuperá-lo material e

simbolicamente por meio de sua elevação à categoria de patrimônio, tendo que reinvestir

recursos altíssimos na recuperação dos restos da catástrofe por ele mesmo engendrada.

Novamente parece se repetir a saga. O Estado brasileiro vem pagar o ônus provocado

pela privatização das ferrovias. A história de vai e vem entre o Estado e a iniciativa privada

nacional e internacional parece acompanhar a trajetória das ferrovias brasileiras. Como

observa Maia (2009), nunca ficou tão claro para os governantes sobre quem deveria ser o

melhor administrador da ferrovia, e sempre “a iniciativa privada tratava de lucrar e se

endividar com ela e o Estado, de encampá-la, melhorá-la e consigná-la novamente ao capital

privado” (MAIA, 2009, p. 23). Atualmente, o último governo tratou novamente de

desestatizá-la, deixando, como resultado, a desativação dos trilhos e do transporte de

passageiros, demissões em massa, além do leilão de todo o patrimônio mobiliário e

imobiliário. Após o completo abandono dado com as privatizações, acontece, novamente, um

retorno do Estado brasileiro, por meio dos órgãos de preservação, de recuperação e

patrimonialização de seus remanescentes.

Na atualidade, questionamos em que medida a ferrovia, anunciada como patrimônio

cultural, transformada em equipamentos culturais e circuitos turísticos e tratada como

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“elemento bucólico do passado”, desloca o debate sobre possibilidades concretas de um

investimento estrutural do retorno efetivo desse meio de transporte, já que a opção assumida

pelo Estado brasileiro em favor do transporte rodoviário parece dar, também, sinais claros de

esgotamento.

Questiono em que medida a patrimonialização das ferrovias brasileiras não está sendo

uma atuação tardia e remediável do Estado, após sucateá-las, colocá-las sob desperdício de

patrimônio público que apodrece em galpões, oficinas, estações; após ter empreendido o

abandono e decadência de pequenas localidades, que tiveram suas atividades econômicas e

sociais enredadas pela ferrovia, e com isso afrontado a história de vida de seus moradores e

funcionários que viram na ruína desse patrimônio o desrespeito, pouco caso e desvalor à sua

própria história de vida e identidade. O Estado que tempos antes empreendeu esse cenário de

ruína, vem a recuperá-lo agora sob eufemismo da memória e do patrimônio cultural, tendo

novamente que investir milhões na recuperação desses bens.

É importante ressaltar que aqui não se faz objeção à patrimonialização e recuperação

desse valioso patrimônio, pois trata-se, antes de mais nada, do direito dos grupos sociais

exigirem e terem para si o acesso aos remanescentes materiais e simbólicos de sua própria

história. Mas assumimos, todavia, que o patrimônio seja, talvez, o modo mais conveniente de

tratar os remanescentes do capitalismo industrial, recuperando e reapropriando-os para que

entrem no mercado planetário das culturas locais. A crítica aqui recai, sobretudo, sobre o

papel desempenhado pelo Estado brasileiro, que novamente precisa consertar o estrago

empreendido ao ter assumido uma política de transportes monolítica e de descarte.

2.4.2 A patrimonialização da ferrovia nas três esferas da federação

Com a extinção da Rede Ferroviária Federal S.A, em 22 de Janeiro de 2007 foi

transferido à União, por meio da Lei n. 11483/ 2007, todos os bens imóveis não operacionais

da extinta Rede4. A partir desse processo de transferência, a União computa, previamente, a

existência de cerca de 52.000 imóveis não operacionais localizados em mais de 1000

municípios espalhados pelo país e distribuídos entre terrenos urbanos, estações de trem,

4“Entende-se por não operacionais aqueles bens não vinculados a processos de arrendamentos celebrados pela extinta RFFSA bem como aqueles com operação ferroviária delegadas a Estados e Municípios”. “Programa de Destinação do patrimônio da Extinta RFFSA para apoio ao desenvolvimento local” In: http://www.rffsa.gov.br/principal/Destinacao%20do%20Patrimonio%20da%20RFFSA.PDF

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galpões e oficinas desativadas5. Somente em Minas Gerais há 2750 registros cadastrais de

edificações e 2775 registros cadastrais de terrenos, computando o total de 5525 imóveis

registrados, ou seja, cerca de 10% de todo remanescente ferroviário identificado no país6.

Para dar encaminhamento a esse número expressivo de imóveis provenientes da

RFFSA, os quais estão passando em todo o país por processo de abandono e degradação, a

Secretaria de Patrimônio da União (SPU) lançou o “Programa de Destinação do Patrimônio

da Extinta RFFSA para Apoio ao Desenvolvimento Local”, o qual destina o referido

patrimônio aos municípios e entidades privadas sem fins lucrativos, interessadas na utilização

dos imóveis da União oriundos da extinta RFFSA para implantação de programas e ações

locais de desenvolvimento social, urbano e ambiental.

Entre as prioridades do programa, localizam-se: ações que visem à divulgação da

memória ferroviária - projetos executados em parceria com o Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional - IPHAN; provisão de habitação de interesse social; e

regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda. O IPHAN é um dos

principais parceiros da SPU na implantação do Programa, haja vista que projetos de

reabilitação urbana e difusão da memória ferroviária - sobretudo por meio do aproveitamento

dos imóveis para fins culturais - serão executados em parceria com o Instituto.

Dada a enorme demanda que recai sobre o IPHAN a partir da parceria realizada com

a SPU, por meio do “Programa de destinação do patrimônio da extinta RFFSA para apoio ao

desenvolvimento local”, o Instituto tem-se debruçado na reflexão e criação de estratégias

para promoção do patrimônio ferroviário. O exemplo disso pode ser encontrado na realização

do “I Seminário sobre o Patrimônio Cultural Ferroviário Brasileiro”, acontecido em Belo

Horizonte, entre os dias 2 e 5 de Junho de 2009, tendo como parceria a Promotoria de Justiça

de Defesa do Patrimônio Cultural e Turismo de Minas Gerais do Ministério Público. O

objetivo do seminário foi estabelecer um fórum de discussão a respeito das atribuições e

objetivos das instituições envolvidas com a memória ferroviária brasileira, entre as quais

destacam se o próprio IPHAN, Ministério Público, grupos organizados da sociedade civil e

os poderes locais.

A parceria entre o IPHAN e o Ministério Público na promoção e defesa do patrimônio

ferroviário do país antecede, todavia, a realização do seminário. Em 2003, na ocasião do V

5 Os dados não são exatos, pois ainda não foi realizado o inventariamento completo dos remanescentes da indústria ferroviária espalhados pelo país. 6 Os Estados campeões em número de remanescentes ferroviários são São Paulo e Rio de Janeiro, cada um, respectivamente, com a presença de 10864 e 10434 registros cadastrais, distribuídos entre edificações e terrenos. O Estado de Minas Gerais é apontado como o terceiro da lista.

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Encontro Nacional do Ministério Público Federal sobre Meio Ambiente e Patrimônio

Cultural, acontecido na cidade de Recife (PE), foi elaborada uma Recomendação à Comissão

de Liquidação da RFFSA, solicitando uma lista completa dos bens móveis e imóveis, com

identificação daqueles de caráter cultural, os quais, a partir daí, não deveriam ser alienados

sem o prévio parecer do IPHAN (PAULA, 2008).

Para dar cargo às demandas apresentadas, criou-se no IPHAN uma Comissão do

Patrimônio Ferroviário, retificando a emergência do patrimônio ferroviário como tema de

amplo destaque assumido atualmente pelas agências culturais e outras entidades da sociedade

civil ocupadas com a preservação e salvaguarda dos remanescentes da indústria ferroviária

brasileira.

No Estado de Minas Gerais, a iniciativa de maior visibilidade em relação à

preservação do Patrimônio Ferroviário aconteceu por meio do Programa Trem de Minas

criado pelo Governo do Estado em dezembro de 2004, que teve como proposta fomentar o

desenvolvimento do transporte ferroviário para passageiros por meio da expansão e

modernização da malha ferroviária no Estado, com ampliação e aprimoramento de suas

condições de trafegabilidade e criação de mecanismos que possibilitem o uso de trens

turísticos em caráter auto-sustentável.

A Secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas – SETOP - foi designada

gestora do programa, responsabilizando-se pela coordenação do Grupo Especial de Trabalho,

instituído por meio do Decreto do Governador do Estado datado de 15 de dezembro de 2004.

Além da SETOP, compôs o grupo a Secretaria de Estado de Cultura- SEC; o Instituto

Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG - e a Secretaria

de Estado de Turismo - SETUR, tendo como principal objetivo a integração de ações

institucionais para o cumprimento dos objetivos do Programa. Para os estudos específicos da

implantação de trens turísticos, foi também criado grupo de trabalho coordenado pela

SETUR.

A primeira etapa dos trabalhos coube ao IEPHA/MG, por meio da formulação e

detalhamento de projetos e ações de reconhecimento e proteção dos acervos da ferrovia, por

meio da proposição e coordenação de execução do subprograma Preservação do Patrimônio

Cultural Ferroviário, integrado por quatro projetos, a saber: Projeto de Diagnóstico e de

Obras Emergenciais; Projeto de Inventário; Projeto de Tombamento; Projeto de Educação

Patrimonial.

A execução da referida primeira etapa do Programa Trem de Minas, sob coordenação

do IEPHA-MG, teve início em Março de 2006, tendo sido provisoriamente suspensa em

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outubro do mesmo ano. Até a ocasião, foram realizados dois estudos para projetos de

Proteção Legal por meio do Tombamento Estadual dos remanescentes ferroviários das

cidades de Ribeirão Vermelho e Além Paraíba, além do tombamento do Conjunto

Arquitetônico e Paisagístico da Estrada de Ferro Goiás, em Araguari. Foi também realizada

uma série de oficinas de educação patrimonial nas regiões adjacentes aos municípios de

Araguari, Ribeirão Vermelho, Além Paraíba e Belo Horizonte, além de inventários não

concluídos e ações emergenciais localizadas. A despeito de enormes expectativas geradas nas

cidades e comunidades com as quais chegou atuar em relação à revitalização de seus

referidos patrimônios, o Programa foi extinto em outubro do mesmo ano.

Todavia, a execução não concluída do Programa Trem de Minas não pode ser

identificada como a única que tem em vista a preservação dos remanescentes das ferrovias

mineiras. De forma indireta, a iniciativa de proteção do patrimônio ferroviário vem também

sendo fomentado pelo Governo do Estado por meio do programa de municipalização do

patrimônio cultural, sob responsabilidade do IEPHA-MG.

A partir da legislação brasileira que determina que 25% do Imposto sobre a

Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) arrecadado pelo Estado seja repassado aos

municípios, o Governo do Estado de Minas Gerais, passou a incluir entre os critérios para

distribuição do imposto os investimentos realizados na preservação do patrimônio cultural.

Com a implantação do “Programa de Municipalização do Patrimônio Cultural de Minas

Gerais”, dado a partir da LEI 13803 do ano 2000, o IEPHA/MG elabora e analisa os critérios

para o repasse dos recursos oriundos do ICMS, além de prestar assessoria aos municípios

mineiros para que estabeleçam e implantem sua própria política de patrimônio cultural

(BOTELHO, 2006).

Desde a criação da Lei em 1995, a legislação tem conseguido fomentar a promoção

do patrimônio cultural na maior parte dos municípios em Minas, registrando em abril de

2009 a participação de 692 municípios em todo Estado, número bastante expressivo levando

em consideração que este é composto pelo total de 853 municípios. O número de

investimento no patrimônio ferroviário é também sintomático, como demonstram os dados

obtidos a partir da “Relação de Bens Tombados em Minas Gerais apresentados ao ICMS

Patrimônio Cultural Ano 2008 Exercício 2009”

A partir dos dados extraídos do acima referido documento, há atualmente 237 bens

ferroviários legalmente protegidos (tombados) pelos municípios em todo o Estado,

distribuídos entre conjuntos paisagísticos, estações, pontes férreas, bens móveis etc, sendo

que grande parte dos tombamentos recai sobre as Estações.

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Dentre as 692 cidades que apresentaram tombamento municipal, desde a criação da

lei aos dias atuais, 137 cidades elevaram os remanescentes ferroviários à categoria de

Patrimônio Cultural local, correspondendo a cerca de 20% do total das cidades que

apresentaram seus tombamentos municipais ao Instituto.

Pensando que certamente nem todos os municípios que apresentaram seus trabalhos

para o IEPHA detêm remanescente ferroviário, esse número mostra-se ainda mais

expressivo. Se contássemos o número exato de quantos municípios em Minas detém

remanescente ferroviário, teríamos o número de quantos deles os têm protegido legalmente

por meio do instrumento jurídico do tombamento. Todavia, o alcance desse número é

atualmente inviável, pois nem mesmo a extinta RFFSA o detém.

Deve-se reconhecer o argumento de que a evidente patrimonialização dos

remanescentes ferroviários tem acontecido por influência da legislação do ICMS Cultural,

que tem gerado o efeito perverso de uma abundante patrimonialização pouco criteriosa,

argumento este considerado pertinente. Mas pensar que os municípios têm elegido os

remanescentes ferroviários, sobretudo as estações de trem, como um dos principais bens à

categoria de patrimônio cultural municipal é, certamente, evidente sintoma da recente

valorização e recuperação dos remanescentes da ferrovia sob novo atributo simbólico,

distanciado daquele que lhes deu origem.

Nos discursos e representações que sustentam as justificativas de patrimonialização,

recorrentemente aparecem argumentos que afirmam o caráter memorável e essencial do

patrimônio específico, associando-o ao que é ser e pertencer ontologicamente a uma

determinada comunidade. Todavia, pode-se afirmar que o patrimônio não corresponde a um

reconhecimento de categorias culturais essenciais a determinadas grupos, comunidades ou

estados nacionais, pois responde antes a critérios e escolhas localizadas no tempo e no

espaço, em virtude de demandas de caráter político, econômico e social. Assim, o patrimônio

não deve ser confundido com a própria memória, pois ele corresponde antes a uma abstração,

um discurso de segunda ordem construído para um recorte identitário de um grupo,

comunidade, cidade ou país.

Ortiz (1985) realiza uma distinção entre o que denomina “memória coletiva” e

“memória nacional”. De acordo com ele, se a primeira existe apenas enquanto vivência, isto

é, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas, a segunda, todavia, se refere a

um discurso que transcende os sujeitos sociais. Ao prescindir de manifestação direta no

cotidiano, a segunda se vincula à história e ao domínio da ideologia (ORTIZ, 1985). Assim,

nos argumentos do autor, o patrimônio se constitui por recurso simbólico comum ao da

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“memória nacional”, pois, historicamente, o patrimônio congregou, em diversas

“comunidades”, as bases identitárias e simbólicas para sua formação.

Esta abundante patrimonialização das ferrovias, considerada nos três níveis da

federação, como se pôde verificar nos argumentos acima apresentados, indica a inserção das

ferrovias no que pode ser considerado um terceiro momento de sua história. Se em

aproximadamente um século de existência, ela transmutou-se de ícone da modernidade e do

progresso para meio de transporte arcaico e defasado, levando-a ao sucateamento, percebe-

se, na atualidade, sua recuperação como Patrimônio Cultural, ao ser considerada como

emblemas históricos de cidades e como amálgama de identidades sociais e memórias

coletivas. Respaldados por argumentos dessa natureza, Estado e sociedade civil empreendem

a ressignificação da ferrovia e a elevam à categoria do patrimônio cultural.

A patrimonialização das ferrovias pode ser considerada como fomentada por um

fenômeno designado como a conveniência da cultura na era global (YUDICE, 2004), quando

a cultura surge acionada para resolver demandas e crises provenientes das esferas

econômicas, políticas e sociais. Nessa perspectiva, o patrimônio torna-se, então, a principal

estratégia de ressignificação de bens e lugares que se encontram defasados em relação à

atribuição funcional original. Ao serem reapropriados como patrimônio, tornam-se

preenchidos por novo atributo simbólico, sendo, a partir daí, muitas vezes reinseridos pelo

próprio sistema capitalista ao serem introduzidos nos circuitos culturais através da indústria

turística e do capitalismo cultural.

Não obstante, é importante ressaltar que a transformação das ferrovias brasileiras em

patrimônio não se explica por um único fenômeno, mas deve ser compreendido de forma

abrangente, pois se revela de forma coerente ao tempo histórico presente. A ampliação dos

direitos humanos, com categorias de direitos e cidadania cultural, mudanças epistemológicas

no campo das ciências humanas, a globalização e o desenvolvimento da economia da cultura

subsidiam a análise sobre a expansão da categoria de Patrimônio Cultural na

contemporaneidade, dentre a qual se verifica a inserção das ferrovias.

Assim, no próximo capítulo, por meio de uma análise sobre o campo do patrimônio,

desde sua emergência ao contexto atual, buscarei identificar as razões, motivações e

interesses em torno da preservação das ferrovias na contemporaneidade.

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3 CONCEITO DE PATRIMÔNIO E PATRIMONIALIZAÇÃO DAS FE RROVIAS.

3.1 Tempo e Patrimônio: a relação entre as práticas preservacionistas e regimes de

historicidade

Desde os primórdios de desenvolvimento do campo, o patrimônio surge da

consciência da transitoriedade do tempo e da história como processo de perda. De acordo

com Hartog (2006) o desenvolvimento de políticas de patrimônio e memória denota indícios

das relações das sociedades com o tempo, pois, como o mesmo diz, [o] “que destruir, que

conservar, que reconstruir, que construir e como construir, são decisões e ações que impõem

uma relação explícita com o tempo” (2006 p, 264). Para o autor, a ampla circulação da noção

entre os estados é evidenciada pela sua utilização em períodos de crise e de questionamentos

da ordem do tempo. Em suas palavras:

Inscrito na longa duração da história ocidental, a noção conheceu diversos estados, sempre correlatos com tempos fortes de questionamentos da ordem do tempo. O patrimônio é um recurso para o tempo de crise. Se há assim momentos do patrimônio, seria ilusório nos fixarmos sobre uma acepção única do termo. Após as catástrofes do século XX, as numerosas rupturas, as fortes acelerações tão perceptíveis na experiência do tempo vivido, nem o surgimento da memória nem o do patrimônio são surpreendentes (Hartog, 2006, p.272).

Inicialmente, o patrimônio como categoria jurídica tem emergência no período da

história moderna, no qual se assistiu ao desmantelamento das sociedades tradicionais frente o

desenvolvimento industrial e crescimento das grandes cidades. Ainda nos domínios da

modernidade, o patrimônio se associava à emergência dos Estados nacionais, uma vez que

este congregou, através dos bens culturais, as bases simbólicas para a concretização desta

comunidade imaginada. Neste contexto, o processo de patrimonialização caracterizava-se

pela seleção de poucos e exclusivos bens para comporem o patrimônio nacional, em

detrimento do universo de referências variadas que caracteriza as práticas sociais.

No regime de historicidade moderno, verificou-se um incontestável dever de

mudanças, no qual o horizonte de expectativas sobrepujou o campo de experiências. Era o

tempo de confiança no progresso e de crença no futuro, sendo os bens elevados a patrimônio

considerados como prenúncio e origem autêntica da arquitetura modernista. No Brasil, os

bens considerados patrimônios eram quase exclusivamente de origem barroca, uma vez que

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este estilo de época era entendido como antecedente da arquitetura modernista, os quais

ligavam-se por uma ponte que sobrepujava os demais estilos. Tendo a ideologia modernista

olhos de vanguarda, voltados para o devir, importava aquele elemento do passado enquanto

base para projeções futuristas. Não se tratava da preservação de elementos do passado em si,

mas somente daquele enquanto prenúncio do que se manifestara no estilo modernista: este

sim, considerado progressista e genuinamente brasileiro.

Atualmente, o patrimônio nacional, de caráter abrangente e homogeneizante é

contestado em nome de memórias parciais, que querem, também, se fazer reconhecer como

legítimas, e não se verem subtraídas em função de uma memória totalizante. No atual regime

de historicidade, a que chamam de pós-moderno, prevalece uma aparente obsessão pelo

passado, dada a entusiasmada patrimonialização dos mais variados elementos do passado e

seus referenciais e modos de vida. Todavia, o que se vê não é uma valorização do passado

em sim, da história como “mestra da vida”, mas um sintoma de quebra e ruptura de práticas

estabelecidas por continuidade e referência ao campo de experiência. A abundância de bens

elevados à categoria de patrimônio indica uma crise diante dos processos de perecimento, e a

preservação de elementos do passado surge como modo de abrandar as perdas e rupturas do

tempo presente. Como observa Hartog (2006) “desde o fim dos anos 1960, este presente se

descobriu inquieto, em busca de raízes, obcecado com a memória. À confiança no progresso

se substituiu a preocupação de guardar e preservar” (HARTOG, 2006, p. 270).

Assim, nota-se as diferenças entre os princípios para a preservação patrimonial nos

contextos da Modernidade, com a força dos Estados nacionais, e na pós-modernidade, no

qual a cultura atinge papel relevante, não apenas no nível dos direitos culturais, mas também

perpassado por inspirações de cunho econômico. Nesse contexto, a preservação dos bens

culturais, diferentemente do contexto moderno, prescinde do nacionalismo para legitimação e

justificativa da preservação dos bens culturais, uma vez os grupos sociais reivindicam pra si

o direito à diversidade e à auto-representação.

Apesar das diferenças entre os estímulos para as políticas patrimoniais apresentadas

acima, parece que a retórica da perda pode ser pensada como uma continuidade entre a

prática preservacionista de cunho nacionalista e a atual, uma vez que, no caso específico dos

remanescentes da ferrovia, parece ser seu quadro de degradação e abandono o principal

estímulo para as iniciativas de patrimonialização de seus bens.

Assim, neste capítulo procurar-se-á desenvolver uma análise sobre o desenvolvimento

do próprio campo do patrimônio e compreender os motivos da preservação dos patrimônios

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culturais nos contexto acima apresentados, visando localizar, à luz das análises efetuadas, o

locus atual das políticas de preservação dos remanescentes da indústria ferroviária.

3.2 Patrimônio, Estado e Identidade Nacional

“Nossa história é um texto cheio de trechos escritos com tinta negra e outros escritos com tinta invisível”.

Octávio Paz

3.2.1 Memória-Esquecimento nas Narrativas Nacionais

Na introdução de sua obra sobre a freira e poetiza Sóror Juana Inês de La Cruz,

Octavio Paz começa por argumentar que uma sociedade se define não apenas por sua atitude

perante o futuro, mas também por sua relação frente ao passado, pois, segundo ele, as

lembranças seriam tão reveladoras quanto os projetos (PAZ, 1998). Nesta passagem, Paz

(1998) retoma à pauta o contexto da Nova Espanha, período de cerca de três séculos que é

colocado entre parênteses na história do México, período para o qual a narrativa nacional

tende a neutralizar por meio da idéia de uma continuidade e identidade entre o México asteca

e a recuperação de sua independência a partir do século XIX. Certamente, é possível

argumentar que a análise do autor não é uma especificidade da história mexicana, já que a

dialética entre memória e esquecimento é prerrogativa de todas narrativas nacionais, pois,

enquanto comunidade imaginada (ANDERSON, 2008), sua existência, consolidação e

legitimidade demanda que suas histórias sejam produzidas nesse jogo de luz e sombra que, ao

sobrelevar aspectos específicos do passado, condenam ao esquecimento todos os outros que,

por oposição, podem fornecer elementos para um discurso de dissensões, pondo em cheque o

próprio conteúdo simbólico da amálgama comunitária.

Após a emergência dos Estados nacionais e do nacionalismo, as nações produziram

seu auto-discurso num olhar enviesado sobre o passado que sobrelevava algumas lembranças

por oposição a muitos esquecimentos. Todavia, essa também não é exclusividade dos Estados

nacionais, pois, em menor ou maior escala, todas as comunidades, sejam elas grupos étnicos

ou nacionais, se enquadram nessa perspectiva, pois selecionam, no escopo de sua história e

de suas “narrativas”, elementos com os quais produzem seu recorte identitário. Certamente,

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os discursos sobre a identidade nacional não correspondem imediatamente à própria

identidade nacional, mas antes a uma abstração, um discurso de segunda ordem (ORTIZ,

1985) que pode, ou não, ser incorporado de forma subjetiva e encontrar ressonância7 no

grupo ou população à qual ele pretende contemplar.

De acordo com Benedict Anderson, o primeiro paradoxo do conceito de “nação” é a

“modernidade objetiva das nações aos olhos do historiador versus sua antiguidade subjetiva

aos olhos dos nacionalistas” (2008:31), pois se a constituição da nação é datada e gerada em

contextos históricos específicos, a história que lhe é produzida, todavia, tem o efeito de gerar

a unificação, naturalizando-a num tempo contínuo entre o passado e o presente, que é

atualizado pelas celebrações da história-memória (NORA, 1995).

Assim, a história das comunidades nacionais tende à “reconstituição de um passado

sem lacunas e sem falhas” (NORA, 1995, p.10), produzindo a naturalização da própria

história da nação, pois, nessas narrativas, se a nação não era ainda em formação, ela era

certamente em potencial. Se a erupção dessa força contida aconteceu em um contexto

histórico específico, sua gênese, todavia, remonta a “tempos imemoriais”. Assim, as nações

se sustentam e se legitimam por narrativas que produzem o efeito ontológico da

nacionalidade, cuja história é escrita de modo a produzir uma narrativa coerente, homogênea

e isenta de conflitos. Como observou Paz (1998), as narrativas nacionais são escritas com

tintas negras, enquanto, em alguns casos, as de tinta invisível competem à historiografia e/ ou

memória da resistência e de grupos minoritários.

Em sua obra sobre a origem e difusão do nacionalismo Benedict Anderson (2008)

dedica um capítulo à “Memória e Esquecimento”, mostrando como as narrativas nacionais,

escritas a posteriori da consolidação dos Estados nacionais, promovem a releitura dos fatos

históricos (que são por si só frutos da seleção) a fim de construírem as narrativas

homogêneas, didáticas e pedagogizantes, com as quais os Estados nacionais se legitimam, se

sustentam e se difundem. Nesse quadro, as narrativas nacionais assumem papel de engendrar

e produzir o sentimento de identidade nacional, fundamental para manutenção e coesão da

nação - que precisa ser constantemente atualizada e imaginada como comunidade. Nesse

quadro, o patrimônio histórico nacional, agenciado pelo Estado por meio de instrumento

jurídico próprio, funciona como instrumento ideológico na produção verticalizada de uma

identidade nacional, que sob o escopo genérico e abrangente de sua narrativa, tende a

7 De acordo com Gonçalves, entende-se por ressonância o “poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante” (GONÇALVES: 2007, p. 215)

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abranger e a contemplar, por abstração, todos os indivíduos e grupos sociais que subjazem e

compõem a comunidade nacional.

No contexto de formação dos Estados nacionais, é por meio do patrimônio histórico e

artístico que a nação se legitima e se atualiza através dos conteúdos de disseminação

simbólica, pois, juntamente com as agências estatais de educação e comunicação, atua como

instrumento ideológico do Estado Nação na conformação de uma identidade nacional.

Neste processo, o patrimônio histórico nacional emerge como representante do

testemunho histórico e da longevidade da nação, promovendo um discurso que naturaliza sua

identidade fundacional e sua existência “imemorável”, produzindo a amnésia sobre sua

própria constituição historicamente contextualizada. Como enfatiza Cabral (2003, p. 516),

sendo “ o esquecimento e o erro histórico fatores essenciais à formação de uma nação, o

progresso dos estudos históricos constitui um verdadeiro perigo para a nacionalidade”, na

medida em que produz a desnaturalização e a desmistificação dos discursos de disseminação

simbólica da nação e evidencia, no tempo e no espaço social, o locus de sua produção.

Sendo assim, a análise da constituição das comunidades nacionais e de seus recortes

identitários não deve recair sobre uma concepção essencialista – que percebe o pertencimento

e a identidade nacional como dado ontológico, pré-existente à própria formação da nação – e

nem tampouco sobre uma concepção instrumentalista da comunidade e identidade nacional -

que a enxerga como uma artificialidade produzida no âmbito do Estado e exterior aos

indivíduos e grupos sociais. A análise do fenômeno do nacionalismo é melhor empreendida

quando posta em uma perspectiva conciliatória, para a qual o nacionalismo não é nem tanto

um dado construído a priori, em decorrência de um “essencialismo identitário”

(CABRAL,2003), cujo desenvolvimento resulta nos contornos assumidos pelo Estado

Nacional, e também não estritamente como artificialismo discursivo, produzido e

instrumentalizado pelo Estado, pois, muitas vezes, seu primado “ontológico” é comungado e

incorporado de forma subjetiva pelos sujeitos que o compõe. Desta forma, como observa

Cabral (2003), as reflexões sobre a identidade nacional devem se debruçar sobre as

“interações simbólicas e materiais entre comunidade e Estado na construção das identidades

nacionais” (2003, p. 516)

De acordo com Schneider, as análises de identidade nacional que recaem sobre um

pressuposto “essencialismo identitário”, visando desvendá-lo são, em principio, um “falso

problema”, pois, como produções discursivas, os processos de construções identitárias não se

encontram necessariamente vinculados a “comportamentos culturais” específicos

(SCHNEIDER, 2004, p. 98). Antes de ser uma revelação transparente dos conteúdos culturais

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e identitários que dão contorno à comunidade nacional, como toda “declaração identitária”, a

construção da identidade nacional é também imantada de um conteúdo sócio-político

coerente com o espaço social no qual os agentes de sua produção se localizam. Não obstante,

apesar de sua constituição histórica e socialmente situada, esses discursos, ao atuarem na

subjetividade de seus “membros”, são capazes de produzir o efeito de naturalização de sua

constituição, dando uma dimensão “essencialista” a esses processos que são construídos em

contextos políticos e sociais específicos. Como observa Agier (2001) “(...) uma vez que a

identidade é declarada, todo o “trabalho” cultural que a fabricou é apagado para melhor

afirmar o caráter evidente, natural e autêntico da suposta identidade, tornando-a

aparentemente mais verdadeira” (AGIER, 2001, p. 17).

A produção dessas “declarações identitárias” acontece por formulação de “elites

discursivas” que se distinguem das elites tradicionais. Assim, através do “poder de nomear”

essas elites detém o poder de atribuir um significado cultural a características “abstratas” que

não oferecem muitos “apelos sensoriais” (SCHNEIDER, 2004, p.100). De acordo com

Cabral:

[...] o estudo da etnicidade e da nacionalidade é, em larga medida, o estudo de mudanças culturais politicamente induzidas. Mais precisamente, é o estudo do processo através do qual as elites e contra-elites internas aos grupos étnicos selecionam determinados aspectos da cultura do grupo, atribuindo-lhes novo valor e significado, e usando-os como símbolos para mobilizar o grupo, defender os seus interesses e competir com outros grupos (Brass, apud CABRAL, 2003, p. 516).

A naturalização das identidades e da cultura é, assim, produto de seu próprio discurso,

que a despeito do seu caráter construído, tende a naturalizá-lo em sua narrativa. No caso da

identidade nacional, esses discursos foram disseminados por meio de “narrativas mestras” aos

membros da comunidade nacional, articulando, assim, um sentimento de identificação que

remete a uma “comunhão de origem” da qual a narrativa nacional lança mão. Segundo

Scheneider,

Nação articula sentimentos de “comunhão” que está intimamente associado à mediação e transmissão das “narrativas-mestras” da nação a seus membros [...] o discurso nacional não é apenas uma expressão de determinados sentimentos nacionais, mas também um mecanismo que cria a nação enquanto uma comunidade (SCHNEIDER, 2004, p.100).

Assim, independentemente da constituição historicamente situada da nação e da

nacionalidade, as biografias nacionais atuam de maneira a atualizar a identidade nacional por

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meio de narrativas que privilegiem o primado ontológico da nação. Nesse sentido, parece

irrelevante pensar sobre os fundamentos etno-culturais da nação, pois se acredita que a

centralidade da questão deva remeter ao processo pelo qual a nação, uma vez constituída, se

legitima, se mantém e se atualiza enquanto realidade empírica e enquanto simbologia

geradora de subjetividades individuais e coletivas, levando seus membros a compartilhar e

acreditarem nesta comunidade de origem e de destino.

Uma vez identificadas em estudos específicos as contingências históricas, políticas e

sociais da emergência dos Estados nacionais, torna-se relevante debruçar sobre a

compreensão dos “discursos nacionais”, dos processos de invenção, seleção e atribuições

valorativas a elementos históricos e culturais específicos com os quais a nação passa a se

representar de forma homogênea e agregadora de todos os membros abarcados por sua

narrativa. Não sendo a identidade nacional elemento pré-existente à formação do Estado

Nação, quando fundado, este precisa se atualizar numa formulação abrangente e totalizante

de uma identidade social, minorando, desta maneira, possíveis concorrências e lealdades

subtrativas à sua manutenção.

Sendo assim, se a emergência do nacionalismo se dá por contingências históricas, sua

manutenção acontece por uma história situada “fora da história”, ou seja, uma narrativa quase

mitológica da origem da nação, e que produz a naturalização da própria história. Esta história

comemorativa - como mito - deve ser constantemente revivificada, para que seu efeito de

solidariedade produza a identidade, o pertencimento e a coesão nacional, mesmo a despeito

de todos os conflitos que subjazem à idéia de uma formação harmônica da nação. Esta

narrativa totalizante produzida no âmbito do Estado, acompanhada e constantemente

revivificada por datas comemorativas, monumentos e emblemas da nacionalidade, foi

designada por Nora (1995) como História-Memória, cujo declínio, como se verá mais

adiante, implica, em parte, em uma mudança de paradigma no âmbito dos patrimônios

históricos nacionais e, conseqüentemente, na relativização de poucos e exclusivos emblemas

como os únicos representativos e abarcadores de toda a comunidade nacional.

A imaginação das comunidades nacionais de forma coerente e sem contradições

esteve, entre outras, fortemente referenciada pelas agências museais, das quais sobrelevava-se

o caráter eminentemente político, contando com a atuação de funcionários bastante eruditos e

de caráter excepcional. De acordo com Anderson (2008), o investimento do Estado no campo

museal induz à suspeita de sua relevância política na constituição da nação, pois colocava o

Estado como o “guardião de uma tradição” que era por ele revivificada. Em princípio

constitutivo e ideológico comum ao dos museus, destacam-se os patrimônios históricos

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nacionais, que mantiveram também profunda relação com as narrativas e biografias da nação,

denotando-lhe de uma “profundidade histórica”, cuja elaboração e mediação estiveram a

cargo de intelectuais. Exaltando correlativamente os fundamentos históricos, o patrimônio

(no qual se inscreve a imaginação museográfica) e a narrativas nacionais operaram de

maneira eficaz com a dialética memória X esquecimento na formalização da história da

nação, que eram divulgadas nos sistemas educacionais e agencias de comunicação do próprio

Estado.

Mesmo adquirindo validade e ressonância em contextos sociais específicos, isso não

significa que as imagens nacionais fundadas pelo patrimônio e pelas biografias nacionais

tenham sido expressadas por referência a práticas sócio-culturais correspondentes. Como

observa Schneider (2004), o poder das construções discursivas repousa justamente na

possibilidade de estarem desconectadas das circunstâncias sociais que alimentam seu

conteúdo. Sendo assim, como bem enfatiza o autor, “(...) a representação discursiva não

precisa ser a “pura reflexão” das relações sociais e das práticas cotidianas para poder

desempenhar a função de princípio estruturante de percepção e da interpretação”

(SCHNEIDER, 2004, p.102), pois, no caso do patrimônio, sua atuação enquanto exercício de

violência simbólica (BOURDIEU, 1989), torna-o capaz de produzir a naturalização de

categorias culturais especificas - produzida por grupos hegemônicos - como sendo

representativas de uma ampla coletividade que se encontra social e culturalmente distante no

espaço social.

Este argumento, que enfatiza a não necessária correlação entre a representação

discursiva e relações sociais correspondentes, vai ao encontro da análise de Ortiz (1985)

quando o mesmo realiza a diferenciação entre memória coletiva e identidade nacional. Na

perspectiva deste autor, embora a identidade nacional seja disseminada como extensão da

memória coletiva popular, ela sem dúvida não corresponde à própria memória coletiva, pois

esta, como vivência, tem por referência a realidade, a experiência e a atualização cotidiana,

enquanto aquela corresponde a uma abstração, um discurso de segunda ordem acerca da

memória coletiva popular, pertencendo, assim, ao âmbito da ideologia e da história. De

acordo com ele, esta operação simbólica, que reedita elementos da cultura e a re-insere no

âmbito de um discurso nacional, abstrato e abrangente, é realizado por intelectuais que, ao

atuarem como mediadores simbólicos, reinterpretam a experiência sócio-cultural empírica e

lançam-na à esfera da ideologia, atrelando-a ao Estado Nacional.

Todavia, emergida no âmbito da ideologia e do discurso, a identidade nacional sofre o

“efeito de naturalização”, e passa, assim, a ser ignorada como uma construção discursiva

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elaborada por agentes sociais específicos, que agem em consonância ao locus ocupado no

espaço social e às estruturas de poder dentro das quais atuam.

Não obstante, apesar de sua atuação quase “invisível” (BOURDIEU, 1989; 1983), a

desnaturalização desses discursos de dominação simbólica demanda que se lance luz sobre os

“lugares” nos quais os sistemas de classificações e representações são legitimados por

mecanismos arbitrários e de poder, na medida em que, por meio da ordenação, classificação e

atribuição de sentido, eles têm o poder de induzir a própria apreensão da realidade social, que

é vista - sob a névoa da evidência primeira - como dado pré-construído e, portanto,

naturalizado. Assim, faz-se necessário ler por detrás do discurso da autoridade - apreendido

como o discurso da verdade - que oculta seu caráter arbitrário e de combinação com a

manutenção com os sistemas de poder.

3.2.2 Patrimônio e Poder

O primórdio do campo do patrimônio encontra estreita relação com a emergência dos

Estados nacionais na Idade Moderna (FONSECA, 1997; CHOAY,2001). De acordo com essa

assertiva, a idéia de preservação que preponderou até mais de meados do século passado teve

sua origem durante a Revolução Francesa, numa tentativa de resguardar os ícones da nobreza

e da igreja da destruição do ataques revolucionários. Estes bens, apropriados como

patrimônio histórico da nação, e ressignificados como símbolos da identidade nacional,

constituíram, dentre outros, um instrumento ideológico do Estado Revolucionário. Desta

forma, agenciada pelo Estado por meio de instrumento jurídico, a preservação dos

monumentos históricos foi utilizada como recurso ideológico dos Estados Modernos a fim de

constituírem as bases identitárias e simbólicas para concretização desta comunidade

imaginada que se consolida com a formação nacional. Esta concepção que dá origem à

preservação patrimonial vingou durante largo período, sendo, ainda nos dias atuais,

fortemente impregnada da carga ideológica com a qual foi produzida.

Ao argumentar sobre as diferentes categorias de patrimônio histórico e cultural no

Brasil, Canani (2005) ressalta a herança, a sacralidade e o poder como elementos que se

encontram no bojo da concepção de patrimônio. A presença dos elementos acima ressaltados

manifesta-se no patrimônio, respectivamente, por sua dimensão de testemunho histórico; por

sua distinção como “símbolo da Nação” dentro do espectro maior dos bens culturais inseridos

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em práticas sócio-culturais cotidianas, e por ser selecionado de forma arbitrária pelo Estado,

embora sua disseminação promova a naturalização dos valores que lhe é atribuído.

Como observa Fonseca (1997), a produção deste universo simbólico é fruto de uma

ação política conduzida por agentes autorizados representantes do Estado, na qual os

intelectuais, detentores de alto capital cultural, assumem, em consonância com paradigmas e

vertentes hegemônicas em suas disciplinas, os critérios subjetivos de atribuição valorativa aos

bens que se elevam à categoria de patrimônio cultural. Assim, embora o interesse cultural

desponte como justificativa principal e mais evidente na ação preservacionista, a ele subjaz,

também, um fundamento ideológico que se atrela a interesses políticos.

Importa ressaltar que o princípio da seleção torna-se caro para a preservação

patrimonial de cunho nacional, pois, no escopo diversificado das práticas sócio-culturais

vigentes na sociedade, preserva-se apenas alguns bens visando a transmissão dos valores a

eles atribuídos enquanto símbolos da nação. Neste processo, os intelectuais assumem papel

de destaque enquanto mediadores simbólicos responsáveis pela atribuição de valores e pela

significação dos bens como representativos da cultural nacional Como observa Fonseca

(1997)

Sendo a preservação de monumentos uma atividade necessariamente seletiva, uma constante opção entre o conservar e o destruir (ativo ou passivo, no sentido de não impedir a destruição), ela será exercida por determinados agentes, e segundo determinados critérios, que orientam e também legitimam o processo de atribuição de valores – e conseqüentemente, a preservação. É exatamente nesse processo – que tem uma dimensão explicita, regulamentada, como, no caso do Brasil, a inscrição de bens nos livros do Tombo, e outra implícita, e muitas vezes até deliberadamente ocultada, que remete às relações de poder entre os agentes envolvidos com a preservação – que se manifestam os conflitos de interesse e jogo na prática aparentemente tranqüila da preservação de bens culturais em nome do interesse público (FONSECA, 1997, p. 52).

Como mostra Bourdieu (1998), o Estado está no princípio da eficácia simbólica dos

ritos de instituição, pois, por meio de princípios de ordenação e classificação, ele instaura

categorias de percepção e de sacralização a determinados bens e práticas. Nessa perspectiva,

a patrimonialização dos bens culturais pode ser entendida sob o conceito de rito, que detém o

poder de consagrar a diferença por meio da nomeação oficial. De acordo com o autor:

Qualquer rito tende a consagrar ou a legitimar, isto é, fazer desconhecer como arbitrário e a reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma transgressão dos limites constitutivos da ordem social e da ordem mental a serem salvaguardadas a qualquer preço (BOURDIEU, 1998, p. 98).

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Assim, o elemento Poder consiste no papel do Estado em atribuir significados a

determinados bens com a finalidade de congregar sentimentos de unidade em seu povo,

alimentando sentimentos de identificação com o Estado nacional. É nesse sentido que, tendo

em vista a natureza discursiva da qual se constitui o patrimônio, a retórica da herança resulta

na atribuição de sacralidade a objetos e lugares anteriormente diluídos no universo das

práticas sócio-culturais cotidianas.

A conseqüente sacralização de um determinado bem cultural decorre do fato de ser

instituído como testemunho histórico da nação e representativo da cultura de toda

comunidade nacional. Esse deslocamento de um bem cultural da vida social cotidiana para

situar-se como emblema de uma nação é capaz de promover sua ressignificação, tornando-o

distinto e sacralizado perante todas as demais práticas nas quais também residem expressões

da cultura e da memória coletiva.

Assim, pensando o patrimônio como discurso, e proferido pelo Estado, os órgão de

patrimônio e os técnicos envolvidos incorporam o discurso legítimo, autorizado e de

autoridade, cuja “sacralidade” limita possibilidades efetivas de sua contestação.

Todavia, como observa Fonseca (1997), a produção desse universo simbólico não se

abstém de desafios cruciais. O primeiro consiste na construção de uma representação de

nação que propicie um sentimento comum de pertencimento e que reforce a identidade

nacional, a despeito de toda pluralidade que caracteriza o universo social e cultural de uma

nação. O segundo decorre da demanda de que seja aceito como consensual, “não arbitrário, o

que é resultado de uma seleção - de determinados bens – e de uma convenção – a atribuição,

a esses bens, de determinados valores” (FONSECA, 1997, p. 12).

Como ressalta a autora, como exercício do poder simbólico, as políticas de patrimônio

parecem constar de alto grau de eficácia simbólica, pois dificilmente acontecem contestações

quanto ao valor dos monumentos que são objetos de proteção. Todavia, a ausência de

contestação não pressupõe que essa identidade nacional, que tem por referência os atributos

instituídos pelas agências de preservação, seja incorporada de modo subjetivo pelos membros

da nação. No caso brasileiro, instituída por um corpo de intelectuais dentro do regime do

Estado Novo (1937-1945), as imagens nacionais oficialmente instituídas nem sempre

encontram ressonância junto à população, uma vez que o imaginário de brasilidade

socialmente compartilhado, tem, de forma mais contundente, referências distintas às do

patrimônio nacional oficial.

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3.2.3 O patrimônio no Brasil

Segundo Fonseca (1997), a preservação patrimonial como uma atividade sistemática

apenas foi possível porque, aliado ao interesse cultural, estiveram presentes interesses

políticos e ideológicos. De acordo com ela, esta fórmula bem sucedida foi repetida em vários

momentos revolucionários, cujos governos em transição integravam os interesses da cultura –

como a preservação de bens de valores históricos e artísticos – a interesses políticos voltados

para uma mudança social.

Esta assertiva é também condizente com o caso brasileiro, pois o interesse estatal

voltado à criação e preservação de um patrimônio nacional aconteceu durante o período de

modernização do Estado brasileiro, que sob o corolário da Revolução de 1930 atuava na

tentativa de alteração das estruturas tradicionais de dominação. Esta tentativa de

modernização das estruturas burocráticas do Estado pode ser percebida através da própria

reforma do serviço público. O período da ditadura Varguista, conhecido como o Estado Novo

(1937-1945), atuou na “modernização” das instituições políticas e do aparelho burocrático,

fazendo uso de um corpo técnico altamente qualificado e afastado das disputas clientelistas

para assessorá-lo na formulação de políticas.

No Brasil, a criação de políticas culturais voltadas à preservação do patrimônio

nacional surgiu em 1937 dentro do Ministério da Educação chefiado por Gustavo Capanema.

Neste período, tendo como premissa a criação de um órgão burocrático respaldado por uma

dominação legítima de caráter racional legal, instituiu-se o Decreto-lei n. 25 de 1937, que

organizava o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Este mesmo

decreto criou o tombamento como instrumento jurídico e medida de proteção do patrimônio

histórico brasileiro, criando uma série de diretrizes e normatizações para o bem protegido.

Durante cerca de três décadas, o SPHAN, tendo à frente Rodrigo de Mello Franco de

Andrade, foi responsável pela institucionalização dos bens que viriam a compor o patrimônio

nacional, este, no período, bastante identificado com a herança colonial, que era entendida

pelos modernistas como o traço genuíno da matriz cultural brasileira.

A inclusão de técnicos qualificados e intelectuais ao governo retifica a ênfase posta

sob a racionalização dos arranjos institucionais e políticos durante o Estado Novo. No

SPHAN, a incorporação do corpo burocrático se deu da mesma forma, através da contratação

de intelectuais de renome. Em São Paulo, o órgão era representado por Mário de Andrade e,

em Pernambuco, por Gilberto Freire. Prudente de Morais e Afonso Arinos, embora não

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pertencessem ao quadro, participavam das reuniões e prestavam assistência jurídica quando

necessário. Manuel Bandeira, Joaquim Cardoso e Carlos Drummond de Andrade foram

também incorporados ao SPHAN, tendo o último assumido posteriormente o posto de Chefe

do Setor de Arquivos (CALVACANTI, 2000). Rodrigo de Melo Franco, por sua vez, atuou

como diretor do órgão desde sua criação por mais de três décadas.

A presença dos intelectuais introduziu, no SPHAN, uma questão que permeava o

pensamento dos intelectuais da época. Sabe-se que tal período foi fértil na elaboração de

interpretações sobre o Brasil, cujos questionamentos estiveram preocupados em desvendar as

características sociais, políticas e culturais da nação. Muitas dessas obras, que caracterizam o

pensamento social brasileiro, tentaram constituir a idéia de nacionalidade a partir da busca

das matrizes culturais e históricas do país, procurando “desvendar” o verdadeiro “caráter

nacional” De acordo com Oliveira (2008) “a cultura política da época, ou seja, a visão que

procurava na cultura o cerne da nacionalidade, conferia importância aos intelectuais nas

novas estruturas do estado” (OLIVEIRA, 2008, p.106).

Deste modo, o Estado e os intelectuais que ocuparam os postos centrais no campo da

cultura tiveram como foco a construção de uma nova idéia de nacionalidade que, emancipada

das imitações dos padrões estrangeiros, poderia ser desenhada a partir da noção de uma nação

híbrida, ao mesmo tempo mestiça e moderna, tradicional e industrializada (OLIVEIRA,

2008). Pensando sobre arte, história, tradição e nação, estes intelectuais formularam a idéia

de patrimônio, denunciando, numa estratégia de “retórica da perda” (GONÇALVES, 1996), o

perigo a que essa herança estava sujeita. Ocupando importantes postos na burocracia estatal,

eles tiveram papel crucial na definição da política de preservação e na elaboração de uma

identidade nacional para o país, através do reconhecimento e representação do passado

colonial barroco como a marca genuína de brasilidade.

Atribuídos de autoridade como interpretes e guardiões dos valores culturais da nação,

funcionários do SPHAN consagraram como patrimônio nacional os bens representativos do

passado religioso luso-brasileiro. Esta perspectiva evidencia o caráter elitista vigente na

prática preservacionista, ao sacralizar os bens representativos da versão colonizadora da

história do país. Ademais, ela deixa também entrever o predomínio, dentro do SPHAN, dos

atributos de valor cultural próprios à perspectiva estética vigente na versão modernista da

história da arquitetura. Desta forma, parece relevante o fato da maior parte dos tombamentos

terem se centrado, quase que exclusivamente, na arte e na arquitetura barroca presente

sobretudo em Minas Gerais (RUBINO, 1996).

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Pode-se considerar, assim, que os conceitos e idéias apresentadas por esses

intelectuais que assumiram os destinos da preservação patrimonial no Brasil tiveram o poder

de inaugurar e cristalizar uma imagem da nação. Alegando atuar em termos de interesses

nacionais, a equipe do SPHAN excluía da pauta política a noção de diversidade já expressa

nos estudos e projeto apresentado por Mário de Andrade8. O exercício da dominação

legítima, permitia a imposição de um recorte cultural enviesado como símbolo de toda a

nação, mas que correspondia, a uma perspectiva hegemônica de um grupo dominante. Como

observa Fonseca:

Durante o Estado Novo, os modernistas gozavam de franca hegemonia no meio intelectual e conseguiram resolver razoavelmente bem, naquele momento, a dicotomia entre o que consideravam seu papel de homens de cultura a serviço do “interesse público” e sua inserção na administração de um governo autoritário, mantendo junto ao MEC e ao governo federal um invejável grau de autonomia (FONSECA, 1997, p. 15).

Todavia, se a autonomia adivinha do poder de formulação de políticas no campo da

cultura para o país, o modelo implantado, juntamente com os conceitos que orientaram tal

prática, demandava a coerência com a “estrutura de poder” do Estado corporativo, servindo à

ideologia política de então. Desta forma, a política de patrimônio implantada atuava como

instrumento simbólico do estado corporativista, ao conjugar a formulação abrangente de

patrimônio e nação, com a visão corporativista de sociedade.

De acordo com Nunes (2003), a legislação corporativista surgiu na década de 1930

como um esforço para se criar uma solidariedade social e relações pacíficas entre as classes,

buscando inibir a emergência de uma ordem de conflitos entre grupos sociais. Fazendo uma

transposição do conceito para a esfera da cultura, atitude talvez herética para os mais

ortodoxos quanto ao uso dos conceitos no locus específico de sua gênese, pode-se pensar que

o princípio corporativista, de esvaziamento dos conflitos, deu as bases para a formulação de

políticas no campo da cultura, quando o SPHAN, ao conceber uma idéia totalizante de nação,

negou a pluralidade cultural brasileira e a própria cultura como um campo de disputas. Desta

forma, este órgão pode ter sua atuação relacionada à esfera do simbólico, promovendo a

aparente unificação de grupos e interesses distintos ao introduzir uma concepção de

identidade nacional homogênea e abrangente.

8 O pré-projeto do SPHAN foi elaborado por Mário de Andrade sob pedido de Gustavo Capanema. Este projeto levava em consideração a noção da diversidade dos patrimônios constituintes da cultura nacional. As idéias sobre os patrimônios “imateriais” ou “intangíveis” expressas a partir da década de 1970 já estavam aí esboçadas.

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Em coerência com a estrutura estatal de então, o SPHAN pode ser analisado como

representante do insulamento burocrático sobre as bases ideológicas do corporativismo, cuja

retórica da identidade nacional atuava como recurso simbólico e ideológico do Estado

corporativista, negando as contradições de classe e interesses divergentes. Essa colocação é

respaldada pela própria negação do pré-projeto de Mário de Andrade para o SPHAN, que

abriu mão das noções de pluralidade e diversidade para a adoção de um conceito de

patrimônio restritivo e totalizante.

O SPHAN também pode ser visto como exemplo de esfera orientada pelos princípios

do universalismo de procedimento, assim como pela formação de uma burocracia eficiente,

que o colocava em conexão com a modernização do aparelho estatal tal como empreendida

durante o Estado Novo. Além de contar com corpo técnico altamente qualificado, foi criado

por um decreto-lei que universalizava as normatizações para o bem protegido, para a ação

estatal e para as medidas de interferência dos proprietários sobre os bens. Não obstante,

apesar de ter sido operado por referência aos princípios de dominação de ordem racional-

legal, o órgão e seus representantes fizeram uso da retórica da dominação carismática como

legitimidade de sua atuação. A política do órgão era defendida por funcionários que se

sentiam salvadores, como missionários a defender o patrimônio histórico nacional. A retórica

dos “heróis do patrimônio” era ainda corroborada pela baixa remuneração dos técnicos e pela

deficiência de verbas disponíveis para as medidas de proteção. Essa falta de capital destinado

às políticas patrimoniais entra em coerência com a definição do líder carismático que abstém-

se da posse do dinheiro e da renda pecuniária (WEBER, 1982, p. 285). O período de atuação

de Rodrigo de Mello e Franco (1937-1967), que apresentou total continuidade com os

princípios que orientaram a definição de patrimônio e as práticas de preservação desde a

criação do órgão, ficou designado e entrou para a histórica como “fase heróica” do

patrimônio. A observação de Fonseca (1997) abaixo retifica a presença de elementos

subjetivos do tipo de dominação carismática presentes no órgão:

“A idéia de uma ação política monolítica, conduzida praticamente sem contestações pelo Estado em nome do interesse público, foi, inclusive, reforçada pela aura que, até hoje, envolve a fase “heróica do IPHAN ”” (FONSECA, 1997, p. 42).

Assim, pode-se entender a política preservacionista do SPHAN de forma coerente

com o período no qual emergiu e com a ideologia política do Estado na época. Inseridos num

contexto de mudança político-social e de formulação de uma identidade política nacional, o

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patrimônio surgiu como locus da representação da nacionalidade por meio do

reconhecimento e divulgação de seus atributos históricos e culturais.

Partindo de uma visão totalizante e homogênea de nação, as práticas de preservação

recaíram, sobretudo, em elementos interpretados e designados como emblemas da cultura

nacional. Assim, tem-se na atribuição do “valor nacional” a mola mestra para a criação e

preservação patrimonial, encobrindo, desta maneira, lealdades e identidades sociais

concorrentes por uma idéia coesa de nação.

Como enfatiza Fonseca (1997), o patrimônio instituído pelo SPHAN funcionou mais

como “símbolos abstratos da nação do que como marcos efetivos da identidade nacional com

que a maioria da população se identifique” (FONSECA, 1997, p.199), pois as imagens da

nacionalidade criadas pela agência parecem fazer sentido apenas a um grupo muito reduzido

de pessoas, evidenciando, assim, a distância entre a memória nacional construída pelo Estado

e a pluralidade cultural e das identidades coletivas inseridas no território nacional.

A criação de uma identidade social abrangente serviu para neutralizar a emergência e

a legitimidade de identidades sociais concorrentes, promovendo uma noção de identidade

coletiva engendrada pela visão holista de sociedade, que sucumbiu à afirmação de políticas

culturais voltadas ao reconhecimento e promoção das diversidades culturais. A política de

preservação desenvolvida pelo SPHAN e os princípios que orientaram a sua criação em 1937

mantiveram-se quase intactos por mais de trinta anos, recrutando e disseminando os mesmos

emblemas da identidade nacional, que se mantiveram uníssonos e incapazes de determinar

sua apropriação efetiva pelos diversos membros da comunidade nacional.

Assim, analisado sob o conceito de campo (BOURDIEU,1983; FRANCO, 2003), o

patrimônio operou por cerca de 30 anos por força e códigos próprios, mostrando-se autônomo

na formulação dos conceitos e da política de preservação. Todavia, como mostra Bourdieu,

sendo o locus de um campo estabelecido em relação aos demais campos dentro do mapa

maior que configura o espaço social, transformações ocorridas nas áreas acadêmica, do

direito e da economia serviram para atuar na própria transformação da concepção de

patrimônio e, conseqüentemente, nos princípios norteadores das políticas de preservação.

Desta forma, sobretudo a partir da década de 1970, o valor nacional deixa de ser único

elemento legitimado nas justificativas de preservação, sendo progressivamente transposto

pela noção de direitos culturais expressos em consonância à noção de diversidade cultural.

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3.3 Do Nacional ao Global-Local: a expansão do campo do patrimônio

3.3.1 As transformações no campo

De acordo com Bourdieu (1989), um campo se caracteriza como universo

relativamente autônomo de relações específicas, isto é, uma unidade autonomizada na qual

operam regras, conteúdos, idéias, identidades etc., que se configuram de modo a delimitar os

contornos e os processos de diferenciação que possibilitam a divisão com outros campos.

Assim, arte, ciência, direito, economia, etc. podem ser entendidos como campos

relativamente autônomos, pois apesar de operarem por códigos e conceitos próprios, eles

estabelecem relações nas interfaces do espaço social, este também configurado por

hierarquias e relações de poder entre os campos.

A análise das disputas localizadas no espaço social deve empreender,

fundamentalmente, a reconstituição da trajetória dos campos, desvendando sua lógica interna,

suas leis de funcionamento, os objetivos específicos, os princípios de divisão e organização,

as forças e as estratégias dos diferentes campos e como estabelecem as disputas uns com os

outros no interior do espaço social. Todavia, esta análise interna não deve ocorrer

isoladamente, pois a autonomia dos campos deve ser entendida de forma relativa, uma vez

que suas propriedades fundamentais constituem-se na relação que estabelecem com os

demais campos de poder. De acordo com Bourdieu (1989), uma compreensão acabada das

características singulares de cada campo só é possível por meio de uma análise sistêmica de

sua relação com as demais estruturas objetivas que compõem o espaço social.

Desta forma, a alteração das bases conceituais e empíricas do patrimônio - aqui

compreendido sob o conceito de campo - deve levar em consideração as transformações

oriundas de sua própria estrutura interna e das relações guardadas com as demais áreas do

conhecimento, que são também moldadas em contextos históricos e sociais específicos.

Destarte, o surgimento de novas conjunturas históricas, assim como transformações oriundas

de outros campos, que se encontram próximos e sujeitos a influências recíprocas dentro do

espaço social, explicam a expansão do conceito de patrimônio e, conseqüentemente, dos

princípios norteadores das políticas de proteção, que passaram a prescindir, atualmente, do

exclusivo “valor nacional” como retórica para a preservação, contemplando, na

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contemporaneidade, diferentes tipologias de bens culturais que se tornam objetos da

patrimonialização.

Assim, tem-se alterações dos campos da política e do direito – através da emergência

dos direitos humanos e, dentro deste, dos direitos culturais com a perspectiva da diversidade

cultural -, do campo acadêmico através das disciplinas das ciências humanas – na qual o

conhecimento historiográfico faz-se através da desconstrução das narrativas históricas

tradicionais, e a influência do conceito antropológico de cultura sobre as políticas culturais –

e do campo econômico – através da globalização e seus efeitos sobre as culturas locais, assim

como na mercantilização da cultura e da indústria turística - que explicam transformações no

campo da cultura e do patrimônio cultural, sobretudo a partir da década de 1970.

3.3.2 Relativização do valor histórico e o declínio do nacional

Como foi visto, o surgimento do campo do patrimônio histórico atrelou-se à

preservação de bens culturais sobre os quais se atribuía valor como testemunho do passado da

nação. Esta noção de patrimônio, estritamente atrelada ao valor de herança histórica nacional

e também ao valor artístico, orientou a prática preservacionista dos Estado nacionais

modernos no mundo ocidental. Todavia, apesar da permanência desse conceito nas políticas

de preservação - que no Brasil estendeu-se até a década de 1960 -, um autor austríaco, já em

1903 - Alois Riegl – promovia uma reflexão sobre do valor de ancianidade dos monumentos,

perspectiva esta que adiantava uma substituição da premissa da nacionalidade como a única

norteadora das iniciativas de preservação (FONSECA, 1997; CHOAY, 2001). Assim, numa

perspectiva bastante visionária, Riegl distinguia nos monumentos e no patrimônio edificados

traços considerados de valor universal, e não mais somente aqueles ligados exclusivamente à

civilização cristã-ocidental, que eram apropriados pelo discurso nacional como emblemas do

passado da nação. Desta forma, tem-se, tal como adiantado por Riegl, a emergência de uma

concepção ampliada do “valor histórico”, que deixava de ser exclusivamente ligado à nação

para recair sobre “tudo o que foi, e hoje não é mais” (Riegl apud FONSECA, 1997, p. 66).

Como mostra Fonseca (1997), Riegl ressaltava o interesse por determinadas obras não pelo

seu poder de rememoração dos fatos notáveis da nação e de seus “heróis”, mas por conterem,

em seu próprio conteúdo material, as marcas de sua historicidade e, com estas, o poder de

evocação de um tempo passado. Assim, na perspectiva desse autor, o valor de rememoração

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de certos monumentos explicar-se-ia por sua capacidade de “representação do tempo

transcorrido desde sua criação, que se trai [aos] olhos pelas marcas de sua idade” (Riegl apud

FONSECA, 1997, p.68). Haveria então, para ele, “uma progressiva ampliação do que é

considerado valor histórico, até que se [chegasse] ao interesse atual por” (1997, p. 66).

Todas as realizações, por menores que sejam, de todos os povos, quaisquer que sejam as diferenças que as separem de nós um interesse pela história da humanidade em geral, aparecendo cada um de seus membros como parte integrante de nós mesmos (Riegl apud FONSECA, 1997, p. 66).

Desta forma, Riegl antevia, ainda em 1903, a imagem narcísica sobre a qual se deteria

o patrimônio a partir das mudanças culturais conhecidas como a pós-modernização da cultura

(HARVEY, 2007), como será visto adiante. No entanto, vale adiantar que a imagem

antecipada por Riegl é atualmente desenvolvida nas análises de muitos autores do patrimônio,

como Choay (2001) e Jeudy (2005), para os quais o patrimônio assume, na

contemporaneidade, um comportamento narcisista, pois, devido à abundância de bens

considerados e elevados à categoria de patrimônio, tem-se uma busca pela acumulação dos

traços de todos os feitos humanos, como se através deles se pudesse figurar uma imagem

completa da identidade humana.

Para o momento, importa destacar que, de acordo com a concepção de patrimônio e

monumento lançada pelo autor, o valor nacional veio perdendo a centralidade dentro das

políticas de preservação, dando espaço, assim, para a emergência e promoção da diversidade

das identidades sociais que subjaziam à nacional, esta que por muito tempo atuou, através de

um discurso uníssono, na neutralização de identidades sociais concorrentes. Assim, tem-se,

em uma série de fenômenos provenientes de diferentes campos, as razões pelas quais o

patrimônio veio, na contemporaneidade, a assumir princípios e contornos distintos daqueles

sobre os quais emergiu. Atualmente, o Estado democrático de direito - juntamente com a

emergência dos direitos culturais e da noção de cidadania cultural; a globalização e a busca

pela preservação dos modos de vida e das culturas locais; e a apropriação econômica da

cultura, em interface com a indústria do turismo - tem influído sobre as políticas

preservacionistas e sobre a ampliação de bens abarcados pelo patrimônio cultural. Na

passagem que se segue, Fonseca (1997) pontua a pluralidade desses fatores combinantes e

deposita a ênfase sobre a nova conjuntura histórica e social na transformação das políticas de

preservação. Segundo ela:

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Não apenas a mercantilização da vida cultural, nem a difusão de valores da modernização que vão influir, neste século, sobre as políticas de preservação. O surgimento de novos Estados-nações sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, no terceiro mundo, e, posteriormente, a luta de grupos étnicos discriminados nos estados nacionais por seus direitos como cidadãos, levaram a mudanças na composição dos patrimônios históricos e artísticos nacionais (FONSECA, 1997, p. 70).

De acordo com Fonseca (1997), a ampliação da noção de patrimônio, não mais

estritamente vinculado ao nacional, explica-se pela emergência dos direitos culturais dentro

do escopo maior dos direitos humanos. A noção de direitos culturais transcende a idéia de

nacionalidade para justificativa da preservação dos bens culturais, que passa a ser expressada

por uma demanda social fundada em valores éticos e estéticos como forma de

democratização do patrimônio, que ao debruçar-se anteriormente sobre a guarda de bens de

valor excepcionais, excluía bens oriundos de parte significativa dos grupos sociais,

reproduzindo sistemas de valores e classificações próprios às classes dominantes. De acordo

com ela:

A idéia de democratização do patrimônio implica, qualquer que seja a perspectiva, no fato de que Estado não deve ser o único ator social a se envolver com a preservação do patrimônio cultural. Do mesmo modo, a ideologia do nacionalismo que, durante dois séculos, sustentou as políticas estatais de patrimônio, vem sendo substituída pela noção de direitos culturais com nova forma de legitimar essas políticas (FONSECA, 1997, p. 74).

Essa idéia de “democratização do patrimônio” é corroborada pela própria concepção

da democracia como regime político que enfatiza a legitimidade do conflito e da diferença

para sua consolidação. Se nas primeiras décadas do século passado - período no qual surge o

campo do patrimônio no Brasil durante o Estado Novo (1937-1945) - o Estado era orientado

sob a ideologia do corporativismo, que enxerga a nação como um todo coeso e coerente,

neutralizando a emergência e a legitimidade de identidades sociais concorrentes e

conflitantes, com a emergência de princípios norteadores de um Estado democrático de

direito, diferença e diversidade assumiram status de legitimidade, e passaram a ser

evidenciadas como virtude, demonstrando a riqueza cultural da nação, não precisando ser

mascarada por um discurso unidimensional acerca da identidade nacional.

Como mostra Chauí (2006), na democracia moderna, praticada por sujeitos

heterogêneos, o conflito é apontado não apenas como elemento legítimo, mas como

fundamental para sua própria constituição. Partindo de um princípio de igualdade inclusiva,

ou seja, estendida a todos os indivíduos, o regime democrático prevê, paradoxalmente, a

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própria desigualdade dos indivíduos, pois, como a aponta a autora, tão mais a democracia

será possível quanto mais pluralista for a sociedade.

Essa idéia se sustenta na noção de particularização dos sujeitos, cujas identidades são

concebidas de forma pluri-dimensional, ou seja, referenciada não apenas por uma identidade

monolítica e abrangente, supostamente capaz de abarcar a todas as esferas da existência do

indivíduo - como as categorias de classe e nacionalidade - mas sim por uma série de recortes

identitários ligados a grupos de pertencimento, sem que um deles específico seja capaz de

definir e assumir sua centralidade ou unicidade identitária.

Sendo a democracia um regime político que se apóia na idéia de conflito e de direito,

ela se caracteriza pela constante criação de novos direitos, como reflexo do surgimento de

novos sujeitos políticos que emergem dos conflitos. Como afirma Chauí (2006), a democracia

se caracteriza por um processo de criação de direitos, aberta, assim, às transformações sociais

postas pelo tempo e pela história (2006, p. 139).

Pode-se dizer que a idéia de direitos culturais - atrelada aos direitos humanos - deu-se

como resposta à fragmentação do mundo contemporâneo, no qual narrativas

homogeneizantes, sobretudo as de caráter nacional, tornaram-se incongruentes diante da

emergência dos movimentos sociais, no qual grupos minoritários postulavam a demanda por

uma afirmação identitária auto-proferida. Esse processo foi também influído pela

descolonização dos países africanos e asiáticos, os quais demandavam a reconstrução da

cultura nacional a partir da afirmação das fronteiras e das diferenças diante das culturas

trazidas pelo colonizador.

Assim, desde a década de 1950, houve uma progressiva expansão dos direitos

culturais, no qual o patrimônio, atrelado à noção de diversidade cultural, veio ganhando

ênfase. Em 1954 tem-se a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de

Conflito Armado, em 1966 a Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural

Internacional, em 1972 a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e

Natural, em 1976 a Recomendação sobre a Participação dos Povos na Vida Cultural, em 1982

a Declaração do México sobre Políticas Culturais, em 1989 a Recomendação sobre a

Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular e em 1996 o Informe da Comissão Mundial de

Cultura e Desenvolvimento, denominado “Nossa Diversidade Criativa” (MATA-

MACHADO, p. 2007)

Como se pode perceber, o direito à identidade cultural (ou de proteção do patrimônio

cultural) atrelado ao direito-dever de cooperação cultural internacional, apresenta uma

perspectiva descentralizada de patrimônio - não mais estritamente relativo a bens oriundos e

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classificados por uma elite discursiva sob a retórica da identidade nacional - e um sistema de

lealdades em relação ao patrimônio cultural (não mais patrimônio histórico e artístico) em

nível internacional, ou seja, não apenas para usufruto da comunidade nacional, mas

vinculados a uma identidade humana em sua ampla diversidade, embora os Estado Nacionais

sejam apontados como responsáveis pela sua salvaguarda. Como observa Mata-Machado

(2007):

Embora não apareça de forma explícita em nenhum dos documentos, pressupõe-se que a descentralização das políticas culturais, além de geográfica e administrativa, deva ser também sociológica. Historicamente, as políticas culturais têm tido como clientes preferenciais os intelectuais e artistas eruditos; e como público-alvo os estratos privilegiados da população. Salvo exceções, as políticas culturais têm sido instrumento de consagração de um grupo limitado de criadores e fator de distinção de uma classe social cujos membros se consideram mais capacitados para a fruição das artes e das ciências. Ora, se o direito à participação é garantido a todos, indiscriminadamente, segue-se que as políticas públicas têm por obrigação tratar cada cidadão como um agente cultural em potencial, seja ele autor, usuário ou ambas as coisas (MATA-MACHADO, 2007, p. 7)

Estimulados por uma idéia crescente de comunidade internacional acerca dos

patrimônios culturais, a deterioração dos bens culturais locais passou a representar uma perda

não apenas para as comunidades nacionais nas quais se inserem, mas para todos os povos do

mundo. Da mesma forma, a inscrição de bens na lista do patrimônio mundial pressupõe uma

espécie de globalização de referências culturais em sua dialética global-local, pois o

reconhecimento desses bens ocorre por referência a um patrimônio da humanidade – e não

como propriedade da nação, embora se localizem em território nacional.

Deste modo, pode-se dizer que a perda de exclusividade do valor histórico nacional

dentro das políticas de preservação pode ser notada através da conversão de objetos comuns

em bens patrimoniais, oriundos de sujeitos e grupos sociais que até o momento não haviam

sido foco de interesse dos conteúdos das narrativas históricas nacionais, que coadunadas ao

patrimônio, atuaram nas bases ideológicas do Estado Nacional. Essa afirmativa é retificada

pela expansão da categoria patrimônio, não mais ligada àqueles conhecidos como de pedra-e-

cal, mas a uma categoria extensa de bens culturais. Isso pode ser notado a partir da própria

Convenção do Patrimônio e a Declaração do México sobre as Políticas Culturais (1982) que

definiu como patrimônio cultural de um povo as obras de artistas, arquitetos, músicos,

escritores, sábios e criações anônimas surgidas da sabedoria popular. Foram incluídos

também a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, paisagísticos,

arqueológicos e etnológicos, além dos arquivos, bibliotecas e museus (MATA-MACHADO,

2007; IPHAN, 2004).

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Esse processo de expansão de categorias de bens culturais, além de associado ao

momento histórico favorável à reinvindicação de minorias, assim como a um contexto de

globalização, no qual se verifica uma ênfase sobre culturas locais, guarda, também, inter-

relação com transformação no campo das ciências humanas. Neste aspecto, tem-se a

apropriação da noção de cultura dos antropólogos, que contrária à idéias de civilização e

erudição, passa a ser extensiva a toda coletividade humana, sobre a qual não repousa, em si

mesmo, nenhum princípio de hierarquia e diferenças valorativas entre as culturas produzidas

pelos diferentes grupos sociais. O mesmo movimento pode ser também percebido na

transformação do conhecimento histórico, que deixa de ligar-se estritamente às grandes

narrativas nacionais, para voltar-se para a histórica produzida no cotidiano e por sujeitos

ordinários.

3.3.3 O diálogo com outras áreas do saber: antropologia e história

Tradicionalmente, o campo do patrimônio foi comandado por duas classes de

profissionais, cujas áreas do conhecimento se vinculavam aos respectivos valores atribuídos

aos bens considerados patrimônio, ou seja, o valor histórico e artístico. Assim, arquitetos e

historiadores estiveram à frente dos órgãos e das políticas destinadas à preservação

patrimonial, não só no Brasil como em todos os lugares nos quais preponderou esta

concepção ocidental de patrimônio. Destarte, não é de se estranhar que transformações

conceituais e metodológicas oriundas desses campos viessem também a refletir, de modo

direto ou indireto, nas formulações da própria noção de patrimônio.

Com o surgimento e consolidação da Nova História Cultural, o conhecimento

histórico estreitou as fronteiras com o conhecimento social, sobretudo antropológico,

enfatizando uma noção de história produzida e compartilhada por sujeitos sociais, que

passavam a ser considerados como produtores de cultura, esta entendida “como um conjunto

de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo”

(PESAVENTO, 2004, p.15).

Desta forma, concepções tradicionais de conhecimento histórico, como aquele

produzido numa perspectiva positivista de história, em torno das grandes narrativas que

enfatizavam os grandes feitos da nação e de seus heróis, foram sendo substituídas por

pesquisas históricas com um viés metodológico temporal e espacialmente mais circunscrito,

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enfatizando as construções e apropriações cotidianas de fenômenos sociais. Na verdade, o

que se observou de forma geral foi o esgotamento de explicações oferecidas por modelos

teóricos globalizantes e com tendência à totalidade, que mostraram-se incapazes de

interpretar a relação dos sujeitos e agentes sociais com a própria história.

Dentro de um debate produzido sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, vingou-se um

novo modo de se produzir história, mais voltada ao cotidiano e ao “homem ordinário”, que

passava a ser visto não como massa de manobra, mas como sujeito e produtor de sua própria

história. Com o nascimento da micro-história, a história passava a ser entendida como

produzida no cotidiano por sujeitos comuns, procurando lançar um olhar de lupa sobre a

sociedade, cujas esferas circunscritas da vida eram vistas como micro-cosmos de processos

sociais maiores. Assim, temas ordinários e voltados ao universo privado como culinária,

sexualidade, festas, religiosidade etc, assim como sujeitos anteriormente “esquecidos” pela

história factual, como operários, camponeses, imigrantes e minorias étnicas surgiram em

abundância, mostrando a história como processo vivido por sujeitos comuns, evidenciando

seus dramas e estratégias na vida cotidiana. Sendo assim, como observa Vainfas (2002), a

micro-história deve ser entendida como:

Uma história problematizadora do social, preocupada com as massas anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar. Uma história com estruturas em movimento, com grande ênfase no mundo das condições de vida material, embora sem qualquer reconhecimento da determinância do econômico na totalidade social, à diferença da concepção marxista da história. Uma história não preocupada com a apologia de príncipes ou generais em feitos singulares, senão com a sociedade global, e com a reconstrução dos fatos em série passíveis de compreensão e explicação (VAINFAS, 2002, p. 17).

Esse movimento de reformulação historiográfica coincide também com a expansão do

conceito antropológico de cultura, que embora encontre referência ainda no século XIX com

o conceito de Kulltur dos alemães, e com a Antropologia Culturalista norte americana em

meados do século XX, se expande sobretudo a partir do período mencionado, com o

predomínio da antropologia interpretativista sobre demais paradigmas do conhecimento

antropológico (CARDOSO, 1998). Sendo também deste período a própria consolidação da

antropologia como campo especifico de conhecimento sobre a cultura, ela passa a

influenciar, assim, diversos campos das políticas culturais. Como observa Fonseca (1997), foi

sobretudo “a etnografia e a antropologia que, inicialmente, legitimaram sua inclusão nesse

universo semântico, reforçando disciplinarmente seu valor cultural” (FONSECA, 1997, p.

73).

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Assim, tem-se uma série de fatores explicados de forma complementar, com a

expansão dos direitos culturais, na sua relação com as disciplinas da história e da

antropologia, razões que explicam a “democratização do patrimônio” que deixou de atrelar-se

exclusivamente ao valor nacional, ampliando-se em uma categoria mais complexa de

“patrimônio cultural”. Com isso, expandiram os bens abarcados pelo patrimônio, os quais

passaram a atrelar-se a sujeitos comuns e demais objetos cotidianos, dentro de um quadro em

expansão a nível tipológico e cronológico.

As prerrogativas de democratização do patrimônio e de expansão dos direitos

culturais associam-se, também, a um novo papel que a cultura vem assumindo no contexto da

era global. De acordo com Yúdice (2004), assiste-se atualmente a um processo o qual

denomina “a conveniência da cultura”, que consiste na utilização da cultura como recurso, a

qual é chamada a resolver “problemas que antes eram de domínio da economia e da política”

(YÚDICE, 2004, p. 46). Todavia, essa série de atributos conferidos à cultura na

contemporaneidade, não acontece sem que decorram efeitos perversos desse processo, dentre

os quais se pode apontar a difusão e banalização do patrimônio cultural na

contemporaneidade.

3.3.4 Pós-modernização da cultura: turbulências culturais identitárias.

É inegável os usos correntes da cultura na contemporaneidade. Talvez se possa

afirmar que nunca antes na história tenha se visto um tão abundante surgimento de museus; a

lista crescente de bens elevados à categoria de patrimônio cultural; reivindicações e

afirmações identitárias e culturais oriundas dos mais diversos grupos sociais; exibições

públicas de festas populares como reisados, congados, marujadas, festa do boi, (não apenas

em seu contexto de origem, mas sendo também apropriados por instituições culturais

formais) etc. A tudo isso, acresce-se ainda o papel relevante que o tema tem gozado nas

políticas públicas assim como nas agências privadas, cujos investimentos crescem a cada ano,

estimulados pelos incentivos fiscais e pelo eficiente marketing cultural que gozam as

empresas que investem no campo. Todavia, embora tais investimentos apontem à plena

legitimidade do tema na contemporaneidade, pode-se dizer que essas políticas não enxergam

o investimento cultural como um fim em si mesmo, pois, em grande parte, orientam-se por

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uma perspectiva utilitarista, cujos investimentos culturais acontecem orientados por

finalidades diversas que não apenas às do próprio campo cultural.

De acordo com Yúdice (2004), a expansão dos usos da cultura na atualidade se dá por

meio da absorção e deslocamento de suas definições conceituais originais, que tornam-se

instrumentais para os diversos empreendimentos identitários e culturais. Esse boom e

destaque que o assunto tem assumido no mundo contemporâneo são inspirados por razões de

ordem múltiplas, mas que, em última instância, têm se vinculado a uma revolução cultural

surgida no advento das sociedades globalizadas, cujo emergência e recorte cronológico

remonta aos primeiros anos da década de 1970.

Como observa Yúdice (2004), a área cultural assume na contemporaneidade um

protagonismo nunca antes visto em qualquer outro momento da história da modernidade.

Atualmente, tem-se assistido a declarações públicas oriundas de diferentes campos - tais

como arte, direito, política, economia, entre outros - que arregimentam a instrumentalização

da arte e da cultura como saída a todos os tipos de demandas. Assim, a cultura vem sendo

invocada a atuar na dissolução de uma série de conflitos, sendo incorporada nas agendas

públicas e privadas como forma de melhoramento das condições sociais, como promotora da

tolerância e diversidade cultural, como estímulo ao crescimento econômico por meio de

projetos e programas de desenvolvimento cultural urbano sob a égide do turismo cultural, e

também para a promoção da justiça social e expansão dos direitos políticos. Inspirado por

essa série de demandas atuais que são incorporadas ao campo da cultura, assim como por seu

imbricamento em áreas das quais até então estivera apartada, o autor constata e desenvolve a

análise sobre a “conveniência da cultura” na era global, que consiste em sua

instrumentalização como recurso, ou seja, a cultura mobilizada para fins que não ela própria,

permeando-se em projetos e programas das esferas econômica, social e política. De acordo

com o autor:

[..]a cultura caracterizada como uma cultura de globalização acelerada, como recurso. [...] a cultura está sendo crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sócio-político e econômica, ou seja, para aumentar sua participação nessa era de desenvolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania e do surgimento daquilo que Jeremy Rifkin (2000) chamou de capitalismo cultural (YÚDICE, 2004, p. 25).

Destarte, atribuições originais ao conceito de cultura, antes circunscritos à esfera

acadêmica ou espaços de distinção, vêm sendo absorvidos e deslocados para projetos

culturais cujas finalidades são múltiplas, mas que tendem, de forma geral, ao

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desenvolvimento econômico e social, ou à afirmação da cidadania cultural. Em ambos os

casos, pode-se afirmar que a indústria do patrimônio tem obtido papel importante e de

destaque, pois ela se mostra capaz tanto de absorver e transformar em projetos as noções de

alta cultura assim como as de cultura popular. Atualmente, tanto os museus de artes

instalados em áreas urbanas através das iniciativas de revitalização urbana, como

manifestações diversas da cultura popular, são abarcados no escopo dessa categoria, dada a

ampliação assumida nas últimas décadas e o papel “instrumental e conveniente” do qual vem

sendo incorporada. Esse lugar de destaque é também evidenciado por Yúdice (2004) no

trecho que se segue:

A cultura enquanto recurso ganhou legitimidade e deslocou ou absorveu outros conceitos a ela conferidos. A cultura é hoje vista como algo que se deve investir, distribuída nas mais diversas formas, utilizada como atração para desenvolvimento econômico e turístico, como mola propulsora das indústrias culturais e como uma fonte inesgotável para novas indústrias que dependem da propriedade intelectual. Conseqüentemente, o conceito de recurso absorve e elimina distinções até então prevalecentes nas definições da alta cultura, da antropologia e da cultura de massa. A alta cultura torna-se um recurso para o desenvolvimento urbano no museu contemporâneo. Rituais, práticas estéticas do dia-a-dia, tais como canções, lendas populares, culinária, costumes e outras práticas simbólicas também são mobilizados como recurso para turismo e para a indústria do patrimônio (YÚDICE, 2004, p. 11).

De acordo com o trecho acima citado, a conveniência da cultura consiste em sua

mobilização como recurso, com a finalidade de atingir metas e fins provenientes de outros

campos, sendo ela imbuída e chamada a solucionar demandas educacionais, conflitos étnicos,

criminalidade, deterioração de áreas urbanas - revertendo-as por meio do fomento ao turismo

cultural – e quadros de desemprego. Neste cenário, a medida de utilidade torna-se a principal

fonte de legitimação para o investimento social das instituições culturais e financiadoras,

quando a legitimidade advém da espera por resultados nos campos referenciados, levando,

entre outras, à incisiva permeação entre os campos da cultura e da economia.

De acordo com Yúdice (2004), a conveniência da cultura, ou seja, a cultura

mobilizada como recurso visando atingir um fim é o componente e característica principal do

que define como a episteme pós-moderna. Essa idéia contradiz a princípio aqueles

prognósticos que recaem sobre a globalização enfatizando seu efeito de homogeneização das

culturas locais, ameaçando solapatar a diversidade cultural em torno do globo, pois, numa

perspectiva contrária, o que se tem assistido na contemporaneidade é justamente uma ênfase

cada vez maior na afirmação e exibição da diversidade cultural planetária, dentre a qual as

culturas locais têm obtido papel de destaque. Todavia, importa ponderar que essa crescente

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afirmação e publicidade das culturas locais é, sem dúvida, um dos efeitos ambivalentes da

globalização, pois a expansão e a “iluminação” sobre a diversidade cultural em torno do

globo advém imantada do efeito de performatividade. Como aponta Yúdice, à medida que a

globalização aproxima culturas diferentes para um contato mútuo, ela contribui para a

performatividade da cultura, que consiste nas “estratégias implícitas em qualquer invocação

de cultura, em qualquer invenção da tradição no tocante a um objetivo e um propósito.”

(YÚDICE, 2004, p. 63). A performatividade, assim, pode ser vista como um efeito perverso

decorrente, pois esses processos de “ostentação” cultural muitas vezes caracterizam-se por

exposições espetacularizadas e ausentes de profundidade, efeitos esses considerados como

uma das principais características do momento histórico designado como pós-moderno.

Emergido a partir da década de 1970, numa passagem do capitalismo “fordista” para

um sistema de acumulação flexível, quando o advento massivo das tecnologias digitais

alterou as bases do capitalismo e das próprias relações sociais, o pós-modernismo caracteriza-

se por uma fase desestabilizadora do desenvolvimento econômico, político e cultural, cuja

principal manifestação - da qual se tem outras decorrentes – vincula-se a um esgotamento de

explicações e soluções totalizantes, à medida que categorias universais vão sendo substituídas

por noção de heterogeneidade, fragmentação e descontinuidades. Na perspectiva de Harvey

(2007), o pós-modernismo indica, antes de tudo, uma profunda mudança na “estrutura do

sentimento”, cujo sintoma principal recai sobre a rejeição às meta-narrativas, pretensamente

de aplicação universal, dando espaço, de maneira contrária, à plena aceitação do efêmero, do

fragmentário, do descontinuo e do caótico. Contrapondo-se à lógica universalista do

modernismo, cuja manifestação ideológica tem por referência a razão iluminista, o pós-

modernismo rejeita a idéia de uma única resposta possível para qualquer questão, assim como

uma única representação possível sobre as coisas. Desta forma, pode-se localizar sua

manifestação nas ciências humanas a partir do declínio de teorias “totalizantes”, como o

marxismo e freudismo, e a emergência de um campo de estudo voltado para o microcosmo

social. No universo social, que tem como correlata a própria produção acadêmica e os

campos da política, cultura e patrimônio, assiste-se à emergência dos grupos minoritários,

como mulheres, gays, negros e povos colonizados, dos quais o pós-modernismo é, sem

dúvida, plenamente simpatizante. Assim, tendo por perspectiva essa multiplicidade de atores

que emergem no contexto pós-moderno - antes neutralizados por uma produção de

conhecimento totalizante e uma atividade política desconectada da atividade social dos

diferentes grupos – as categorias de alteridade e pluralismo tornam-se caras no período

histórico em questão, cuja ênfase recai sobre multiplicidade de vozes e o direito e

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legitimidade da diferença e da auto-representação dos próprios grupos e comunidades. De

acordo com Harvey,

A idéia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmo, com sua própria voz, e de ter aceita essa voz como autêntica e legítima é essencial para o pluralismo pós-moderno, [que enfatiza as] novas maneiras de reconstruir e representar as vozes e experiências dos sujeitos. Huyssens, por sua parte, enfatiza a abertura dada no pós-modernismo à compreensão da diferença e da alteridade, bem como o potencial liberatório que ele oferece a todo um conjunto de novos movimentos sociais (mulheres, gays, negros, ecologistas, autonomistas regionais, etc) (HARVEY, 2007, p. 52).

No campo do patrimônio cultural, essa tendência tem-se reverberado na própria forma

de condução das políticas culturais. Como foi esboçado anteriormente, a emergência dos

direitos culturais no escopo dos direitos humanos enfatiza a participação dos próprios grupos

e comunidades na definição das atividades culturais e na eleição e preservação do próprio

patrimônio cultural, baseados em critérios afetivos e de ressonância, e não mais vinculados a

emblemas exteriores aos próprios grupos e comunidades que, anteriormente e sob a égide dos

modernistas, eram escolhidos apenas por técnicos qualificados e sem referência direta aos

grupos sociais e comunidades locais9. A emergência desse novo critério para proteção e

promoção dos patrimônios culturais é significativa para compreendermos a patrimonialização

dos remanescentes da indústria ferroviária brasileira, já que as reivindicações originais em

termos da patrimonialização e preservação dos bens partiram não dos órgãos de preservação,

seja a nível local, estadual ou federal, mas, sobretudo, dos movimentos sociais de

ferroviaristas, compostos por ex-ferroviários, “amantes” da ferrovia e membros das próprias

comunidades, cujas histórias e memórias estiveram fortemente impregnadas pela presença

das ferrovias. Diante do processo de degradação da malha ferroviária brasileira, cuja

emergência se dá durante a década de 1950 e detona na liquidação da Rede Ferroviária

Federal na primeira década deste século, foram esses atores que exigiram, junto ao Ministério

Público, as medidas a serem tomadas na preservação desse patrimônio, tendo partido da

mobilização da sociedade civil a visibilidade que vem sendo dada ao assunto nos últimos

anos. 9 Em termos de patrimônio oficial, designado pelo Estado, a seleção dos bens a serem patrimonializados ainda parte do crivo de técnicos inseridos na máquina burocrática ou de autoridades dentro dos órgãos, que utilizam da posição de poder e decidem com autoridade legítima sobre esta seleção. Não obstante, tem-se enxergado papel crescente nas últimas décadas das comunidades na indicação dos próprios bens a se submeterem à proteção legal. Além disso, deve-se ter em mente o lugar da municipalização do patrimônio, quando as próprias comunidades, sob o poder local, têm criado a legislação do patrimônio e se tornado responsáveis pela proteção dos bens que lhes são de interesse. Ademais, há que se considerar a promoção do patrimônio cultural não apenas vinculado ao Estado – mesmo sabendo que o patrimônio é uma categoria jurídica – mas sua apropriação como categoria simbólica pela sociedade civil e pelos empreendimentos privados de promoção do patrimônio cultural.

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Outra fonte de entendimento sobre o pós-modernismo, e que leva também ao

entendimento do processo crescente de patrimonialização dos bens culturais, e em especial

das ferrovias brasileiras por estarem circunscritas ao tema em questão, remonta, de modo

mais profundo e filosófico, à transformação nas formas contemporâneas de se experimentar

categorias essenciais da experiência humana, como o tempo e o espaço. De acordo com

Harvey (2007), a compressão ocorrida nessas categorias nas últimas décadas tem

proporcionado “um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas político-econômicas,

sobre o equilíbrio do poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural” (HARVEY,

2007, p. 257).

De acordo com autores (HARVEY, 2007; CHOAY, 2001), as transformações no

âmbito de apreensão do tempo têm detonado em um modo peculiar de tratamento do passado,

que consiste na tendência pós-moderna de reviver as formas urbanas relativas ao um tempo

transcorrido. Como observa Harvey, “a inclinação pós-moderna de acumular toda espécie de

referências a estilos passados é uma de seus característicos mais presentes” (2007, p. 85).

Esse processo de busca por referência de estilos históricos deve ser entendido sob a

forma contemporânea de apreensão da temporalidade, em que se verifica a ruptura da ordem

temporal das coisas e das experiências. O desmantelamento de uma apreensão linear do

tempo, amalgamado pelas dimensões de “passado, presente e futuro” deu origem, na

contemporaneidade, ao fenômeno do presentismo, que consiste na “redução da experiência a

uma série de presentes puros e não relacionados no tempo, [tornando] poderosa e

arrasadoramente vívida e material” a experiência do presente (HARVEY, 2007, p. 57). Embora

o contexto pós-moderno induza a uma aparente valorização do passado, dada a constante

citação de estilos históricos e a abundante criação de novos “espaços de memória”, pode-se

dizer que é pelo tempo presente que ele referencia-se de forma mais aguda, dado o atual

regime de historicidade que aboliu “o campo de experiência”, ou seja, o passado, e o

“horizonte de expectativa” isto é, o futuro, como dimensões influentes no tempo presente.

De acordo com Hartog (2006), o “regime de historicidade” informa sobre a forma

como as sociedades se relacionam com o tempo e como articulam as diferentes

temporalidades, ou seja, o modo como, no tempo presente, as dimensões do passado e do

futuro são postas em relação. De acordo com este autor, tem-se assistido desde as ultimas

décadas do século XX a uma expansão da categoria do presente, que, segundo ele, tem se

caracterizado por “um presente massivo, invasor, onipresente, que não tem outro horizonte

além dele mesmo, fabricando cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem

necessidade. Um presente já passado antes de ter completamente chegado” (HARTOG, 2006,

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p. 270). Desta forma, ele considera que a expansão contemporânea do campo da memória e

do patrimônio deve ser tratada como indícios e sintomas desta nossa atual relação com o

tempo, uma vez que o patrimônio “tem se tornado uma maneira de viver as rupturas, de

reconhecê-las e reduzi-las, referindo-se a elas, elegendo-as, produzindo semióforos”10

(HARTOG, 2006, p. 272). Nessa perspectiva, pode-se considerar que o patrimônio tem sido

uma maneira de se “eufemizar” a perda, a transitoriedade e insegurança proporcionada por

um regime de historicidade amplamente calcado no presente, quando o passado deixou de ser

espaço de “repetição” e de informação sobre o devir e quando a onipresença do presente

ofusca o olhar sobre o horizonte de possibilidades, esse já não mais concebido sob a

perspectiva do progresso e da fé no futuro – como experienciado no moderno regime de

historicidade - mas sob a incerteza e insegurança de um presente “avassalador” e que tende a

se auto-consumir.

Desta forma, embora a retomada de referências históricas e a expansão do patrimônio

aponte para uma aparente valorização do passado pelo pós-modernismo, uma de suas

características cruciais refere-se, paradoxalmente, a uma aguda valorização do presente, pois

nele o passado é apresentado não como referência de uma memória orgânica ligada e revivida

como experiência, mas sim reproduzido como objeto de fruição de um tempo presente

considerado eterno. Nesse contexto, os elementos do passado são apresentados de modo

“espetacular” e numa ausência de profundidade histórica, já que essas referências acontecem

por meio de uma citação extensa, eclética e superficial dos variados estilos históricos, tendo

em vista sua fruição do tempo presente.

Num processo de desestabilização das categorias espaciais e temporais, a exibição de

estilos passados é acionada de forma a camuflar as constantes transformações do universo

material e social e a ausência de uma memória coletiva revivida que tenha como objeto de

formação e referência o “campo da experiência”. Excluídos do universo da vida e da

experiência, o passado passa a ser apresentando por meio de referências históricas ocas.

Destarte, pode-se dizer que o patrimônio e todos os demais espaços e práticas que se

vinculam ao trabalho de preservação da memória são atribuídos de uma função defensiva,

10 De acordo com Chauí (2006), citando Krisztoff Pomian (1987), os semióforos formam os primeiros objetos que iriam formar a idéia de patrimônio. Segundo ela, “semióforo é alguma coisa ou algum acontecimento cujo valor não é medido por sua materialidade e sim por sua força simbólica, por seu poder para estabelecer uma mediação entre o visível e o invisível, o sagrado e o profano, o presente e o passado, os vivos e os mortos, e destinados exclusivamente à visibilidade e à contemplação, porque é nisso que realiza sua significação e sua existência. Um semióforo é algo único (por isso dotado de aura) e uma significação simbólica dotada de sentido para uma coletividade. Mediador entre o visível e o invisível, é dotado de valor sacral e político, mas não de valor de uso” (CHAUÍ, 2006, p. 117).

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com vistas a garantir uma aparente manutenção das identidades e culturas que se encontram

em processo de desestabilização.

Dessa forma, pode-se deduzir que não é à toa que se tem assistido ao processo de

patrimonialização cada vez maior de aspectos variados da vida social e do mundo físico.

Sistemas culturais, lugares, paisagens, objetos, monumentos, saberes, indivíduos e até mesmo

espécies de plantas e animais estão sendo inscritos na lista em ascensão dos bens

considerados patrimônio. Verifica-se uma escala crescente de bens abarcados pela máquina

patrimonial (JEUDY, p. 2005), inseridos num campo cronológico em expansão, em que o

passado se aproxima progressivamente do presente. A essa expansão cronológica do

patrimônio, acresce também a expansão tipológica e geográfica, já que a categoria

“patrimônio”, de caráter e origem eminentemente ocidental, tem influído e se disseminado

por quase todos os lugares do globo11.

A patrimonialização abundante dos mais diversificados bens inseridos no universo

social aponta para uma perturbação cultural que está, também segundo Choay (2001),

relacionada à nova configuração das sociedades globalizadas, que, para ela, promove a

libertação do liame do local e do tempo da duração, atingindo as sociedades humanas em seu

nível mais profundo, “no seu enraizamento ao mundo por meio das categorias do tempo

orgânico e do espaço local” (CHOAY, 2001, p. 243). Nesta perspectiva, a “síndrome

patrimonial”, com a preservação dos testemunhos de um passado cada vez mais próximo,

integrados em número cada vez maior ao corpus patrimonial, serviria para camuflar e

encobrir as rupturas provocadas pelas transformações em curso, através da afirmação de uma

identidade preservada. Essas constatações se relacionam ao processo citado por Harvey

(2007) como “cultura de museu” ou “indústria da herança”, que embora se tenha disseminado

de modo extremo nos países da Europa, não se eximiu em reverberar pelos diferentes lugares

do planeta. De acordo com o autor, essa nova “cultura”, expressa em palavras chaves como

memória, patrimônio e identidade, desponta como característica significativa do pós-

modernismo. De acordo com ele:

O desenvolvimento de uma cultura de museu e uma florescente indústria da herança que se iniciou no começo dos anos 70 dão outra virada populista à comercialização da história e das formas culturais. “O pós modernismo e a indústria da herança estão ligados” diz Hewison (1987,135), já que “ambos conspiram para criar uma tela oca que intervém entre a nossa vida presente e a nossa história”. A história se torna “uma criação contemporânea, antes um drama e uma re-representação de costumes do discurso crítico”. Estamos, conclui ele,

11 Neste aspecto, não se deve desconsiderar o papel que instituições de caráter pretensamente universal, como ONU e UNESCO tem tido nesse processo.

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citado Jameson, “condenados a procurar a história através das nossas próprias imagens e simulacros pop dessa história, história que permanece sempre fora de alcance”. (HARVEY, 2007, p. 65)

De acordo com CHOAY (2001) e JEUDY (2005), esse processo pode ser também

designado como uma “síndrome narcisista”, pois uma vez que o presente se caracteriza por

um processo acelerado de transformação, fragmentação e ruptura, ao patrimônio caberia

abarcar os elementos em “degradação”, mantendo-os como categorias estáveis do passado.

Se, no tempo presente, as referências do universo social tendem a estarem sucumbidas a

transformações cada vez mais fugazes, a destinação e ressignificação dos elementos já

“obsoletos” como patrimônio tende a abrandar e suavizar a ordem das rupturas, promovendo

a velada impressão de manutenção e estabilidade das coisas. Tendendo a abarcar todos os

feitos humanos, o patrimônio funciona como espelho da própria humanidade, já que as

realizações humanas tendem a se deslocarem da experiência e da re-atualização cotidiana

para se inserirem no corpus patrimonial12. Destarte, através da imagem refletida de todos os

feitos realizados, a humanidade pode ver a si de modo estável e seguro já que, adentrado no

campo do patrimônio, os bens e objetos saem da ordem da ruptura e da historicidade e se

inscrevem como espectro da “eternidade”.

Não obstante esse conteúdo de ordem “existencial” seja frutífero para

compreendermos nossa relação com o tempo e o conseqüente crescimento da indústria do

patrimônio, a compreensão desse tempo histórico, no qual se verifica a latência do tempo

presente e a aceleração da temporalidade, não deve se dar apenas por referência a uma

abstrata apreensão da ordem do tempo, mas deve ser também empreendida por meio da

localização dos agentes de sua produção dentro da economia capitalista, assim como das

formas de sua manifestação prática e cotidiana.

Assim, o referido regime de historicidade, cunhado como “presentismo”, se manifesta

por sensações de volatilidade e efemeridade que recaem sobre o próprio universo social,

tendo por referência a fugacidade da moda, de produtos, técnicas de produção, idéias, valores

e práticas estabelecidas. Esses fatores, apesar de indicarem um modo de vida característico

das médias e grandes cidades – alcançando, todavia, universos sociais distantes dos grandes

12 Sabe-se da legislação do patrimônio imaterial que, uma vez que o bem é registrado, ele passa, após um período de tempo a ser “reavaliado”, como meio de controle da ordem das mudanças, que, embora concebidas, passarão novamente sobre o crivo de especialistas para ver se ainda merecem a categoria. Jeudy fala que o patrimônio (de caráter institucional) produz muitas vezes a morte do próprio patrimônio (numa categoria antropológica que prevê a transmissão e as rupturas), uma vez que os grupos tendem a se centrarem mais numa repetição das formas de apresentação do que nos processos de transmissão nos quais as continuidades e descontinuidades são consideradas.

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centros -, são fatalmente decorrentes da aceleração no tempo de giro da produção, cuja

necessidade da troca e consumo num curto espaço de tempo, produz, como conseqüência, a

cultura da descartabilidade. Esse fenômeno é descrito por Harvey (2007) como obsolescência

instantânea, quando a demanda de consumo própria ao sistema capitalista transforma

rapidamente em démodé objetos e estilos de vida que há pouco eram novidade e desejo de

consumo. Para a análise aqui empreendida, esta é uma noção bastante relevante, pois se

entende que, na contemporaneidade, na qual impera a cultura do descarte e a obsolescência

instantânea, o patrimônio assume um papel crucial, pois absorve e abarca em si elementos

que já não servem mais aos interesses da produção capitalista. Assim, ao serem incorporados

como patrimônio, lugares e objetos são aproveitados como curiosidade de um tempo

“passado” e “antigo”, mas que, numa perspectiva cronológica, tendem a estarem localizados

cada vez mais próximos do presente. Não obstante, apesar de atuar como espécie de “rejeito

simbólico” que absorve bens considerados defazados do ponto de vista da produção

capitalista, ao serem ressignificados e apropriados como patrimônio, eles se reinserem no

sistema, sendo instrumentalizados como atrativos à indústria turística e ao capitalismo

cultural. Essa análise, embora a princípio extrema, me parece pertinente se considerarmos,

entre outros, os usos atuais que vem sendo atribuídos a lugares e objetos remanescentes do

capitalismo industrial, que têm se tornado nas últimas décadas alvos privilegiados das

políticas patrimoniais e dos projetos de revitalização urbana, como no caso exemplar da

indústria ferroviária com suas estações de trem, rotundas e armazéns, assim como as antigas

zonas portuárias, fábricas etc.

3.4 A ferrovia hoje: um lugar de memória?

O caso da patrimonialização contemporânea das ferrovias brasileiras parece inserir-se

de modo mais evidente nesse contexto. Após passarem por processo acentuado de descarte,

induzido pelo próprio Estado, que em consonância com o capital internacional priorizou a

indústria de transporte rodoviário em oposição ao transporte ferroviário, as instalações e

equipamentos ferroviários vêem recentemente sendo recuperadas sob o viés do patrimônio

cultural. Esse fenômeno, a meu ver, pode ser considerado a característica principal da

“conveniência da cultura” na contemporaneidade, já que a cultura tem sido acionada como

solução a uma série de situações enleadas, como, no caso específico, do destino a ser dado

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aos imóveis remanescentes do capitalismo industrial, no qual a ferrovia, detentora de um

vastíssimo patrimônio, é um dos casos mais agudos em relação ao número de imóveis

abandonados e sucateados no Brasil.

Dentre as várias questões que respondem à patrimonialização das ferrovias brasileiras,

entre as quais destaca-se o direito de grupos e comunidades de terem participação na

promoção do próprio patrimônio, assim como legitimidade do local e da ressonância no

escopo das políticas patrimoniais, acredito que não há dúvida de que uma de suas razões seja

dada pela questão acima pontuada, quando o patrimônio serve para recuperar bens

remanescentes de um sistema produtivo defasado, como é o caso dos remanescentes do

capitalismo industrial. Importa ressaltar que esses processos de patrimonialização, que ora se

vinculam à cidadania cultural e ao capitalismo cultural, não se dão de formas excludentes,

pois dentro da esfera do local, há também a apropriação das identidades e dos “lugares de

memória” pela indústria turística, uma vez que essa parece ser a forma principal de o local se

ver inserido no global. O patrimônio de âmbito local, o “pequeno patrimônio”, vinculado

mais fortemente à memória e ao território, tem retirado do Estado o monopólio de

classificação dos bens culturais, quando esses são promovidos também por associações da

sociedade civil. Essa abordagem pode ser verificada na citação abaixo, que embora pontue o

caso exclusivo da França, pode, não obstante, ser encontrado em igual medida no caso

brasileiro e demais países. De acordo com ele:

De 1980 a 2000, recenseou-se na França 2241 associações, cujo objeto declarado é o patrimônio ou o habitat (cadre de vie): o “pequeno patrimônio”. Em sua maioria, estas associações são jovens, nascidas após 1980. Dando-se algumas vezes definições muito extensivas do patrimônio, que não se ajustam necessariamente com as categorias oficiais da administração ocupada pelo “grande patrimônio”, elas tendem a desestabilizar a máquina administrativa de classificar. Pois, para elas, o valor dos objetos que elas elegeram reside, parcialmente, no fato de que estão elas mesmas na origem do seu reconhecimento. Trata-se, em suma, mais de patrimônio local, associando memória e território e de operações visando a produzir território e continuidade para aqueles que lá habitam, hoje. As associações do patrimônio mostram a construção de uma memória que não é dada, portanto, não perdida. Elas abrem à constituição de um universo simbólico. Também o patrimônio não deve ser visto a partir do passado, mas a partir do presente, como categoria de ação do presente e sobre o presente. Enfim, o patrimônio, ao tornar-se um ramo principal da indústria do turismo, é objeto de investimentos econômicos importantes. Sua “valorização” se insere, então, diretamente, nos ritmos e temporalidades rápidas da economia de mercado de hoje, chocando-se e aproximando-se dela (HARTOG, 2006, p. 270).

Os aspectos apresentados pelo autor se aproximam bastante do caso da

patrimonialização das ferrovias brasileiras, pois estas guardam também forte vínculo com o

local, com a memória de pequenas cidades, seus moradores e trabalhadores. Inicialmente, a

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classificação dos remanescentes da ferrovia como “patrimônio” se deu por meio das pressões

exercidas por organizações da sociedade civil, que, mais tarde, vieram a ser respondidas pelo

patrimônio oficial. Nota-se ser bastante recente os empreendimentos oficiais de

patrimonialização da ferrovia, sendo, a nível federal, escassos os registros de proteção legal,

embora o IPHAN tenha assumido recentemente, após a liquidação da Rede Ferroviária

Federal, a posse dos remanescentes, sob a perspectiva de serem repassados para as

comunidades de origem. A conveniência da cultura é demonstrada pelos destinos que vêm

sendo dados aos remanescentes ferroviários, pois em quase todos os projetos de patrimônio,

seja apenas como discurso ou como atividade concreta, enxergam-se projetos de apropriação

dos bens como equipamentos culturais vinculados ao turismo cultural, transformando

estações, armazéns e galpões em museus, casas de cultura e centros culturais, e fazendo dos

trilhos, trens e vagões, destinos de bucólicos passeios turísticos.

Todavia, embora muitos desses projetos apresentem-se de forma espetacularizada e

bastante comercial, modo como o patrimônio vem sendo tratado na contemporaneidade, é

possível também afirmar que, no que tange às cidades que deram sede às ferrovias, sobretudo

aquelas que nasceram e se desenvolver em torno dela, o patrimônio não deve ser entendido da

forma superficial e fugaz como vem sendo apropriado pela indústria turística, pois nesses

locais esse patrimônio guarda profundas relações afetivas e também biográficas com seus

habitantes. Embora esses sujeitos não habitem mais a memória-experiência, que se dá nas

relações aprendidas e atualizadas no dia-a-dia, dado que a ferrovia não é mais atuante, pois

adentrou no fluxo da história, na ordem da ruptura e da passagem, pode-se dizer que entre

essas populações habita-se ainda fortemente a memória lembrança, esta que se localiza no

limbo entre a perda e a permanência, entre a passagem e a continuidade, entre a memória e a

história, pois, para elas, as “pedras” da cidade são ainda forte referência: “lugares de

memória”.

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4 CIDADE, PATRIMÔNIO, MEMÓRIA

4.1 Cidades ferroviárias no limbo da história

A cidade acampou na beira do circo; o circo está de passagem.

Cacaso.

A epígrafe acima foi identificada como uma metáfora da história de Além Paraíba,

que como tantas outras cidades ferroviárias, nascidas e desenvolvidas em função da ferrovia,

se viram, nas últimas décadas do século XX, desmanteladas de um forte conteúdo identitário,

societário e econômico, em função da desativação do transporte ferroviário que ali se fez

presente.

Após pautarem-se durante grande parte de sua história pela economia e relações

sociais e de trabalho desenvolvidas em torno desse meio de transporte, não apenas numa

perspectiva de trânsito, mas também com seus lugares de permanência, com suas estações e

oficinas de manutenção, essas cidades viram-se, com a desativação desse referido meio de

transporte, desarticuladas no âmbito de um contexto social, econômico e cultural local, e

procuram, na atualidade, novas saídas econômicas e conteúdos identitários aos quais se

apegarem. Mesmo a despeito de todo o abandono que recai sobre os remanescentes

arquitetônicos da ferrovia, ainda permanecem cravados nessas cidades os emblemas materiais

da epopéia ferroviária, cujo contraste se evidencia entre a imponência dessas construções -

constantes de significativo conteúdo estético e simbólico - e a situação de completo abandono

e o estado de ruína em que se encontram na atualidade.

Guardadas as devidas particularidades, enxerga-se na cidade de Além Paraíba uma

exemplaridade referente a várias outras cidades vítimas do mesmo processo de erradicação do

transporte ferroviário, que se deu, vale dizer, não apenas no Brasil, mas também em outros

países da América Latina, como demonstra o documentário “La próxima estación” (2008) do

cineasta argentino Fernando Pino Solanas, que documenta sobre inúmeras cidades argentinas

que, nascidas em função da ferrovia, encontram-se num cenário fantasmagórico, por estarem

atualmente bastante abandonadas e ausentes de atividade econômica e desenvolvimento

social. Todavia, embora essas cidades se encontrem sob um quadro comum, e detenham as

mesmas características, dado o compartilhamento do mesmo processo histórico, importa

também salientar a singularidade da cidade foco desta pesquisa – Além Paraíba -, haja vista a

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dimensão que a ferrovia alcançou nesta cidade, tanto em aspectos materiais, dado o grande

complexo arquitetônico deixado pelos remancescentes da indústria ferroviária, como também

devido aos aspectos econômicos e sociais atingidos pela ferrovia naquele espaço, que

empregou parte significativa da população local e estabeleceu profundas relações sociais

naquela comunidade, capazes de penetrar não apenas as esferas circunscritas da ferrovia, mas

estendendo-se em uma rede de relações estabelecidas por toda a cidade.

Assim, neste capítulo, após discorremos sobre as relações estabelecidas entre espaço,

poder e memória, visando compreender as diversas dimensões que compõe o espaço, numa

perspectiva de contextualização do universo material que compõem o patrimônio ferroviário

abandonado da cidade, procurar-se-á compreender a história da ferrovia em Além Paraíba, o

papel social por ela desempenhado nos seus diferentes contextos históricos, assim como as

relações ali constituídas em função de sua presença.

Importa também saber sobre qual relação a população estabelece com o patrimônio

ferroviário local e quais as perspectivas de futuro que enxergam para essa cidade que, para os

mais velhos, guarda muito fortemente uma identidade ferroviária. Embasados pela história

ferroviária local, as projeções de futuro se dão por referência ao passado, quando as propostas

turísticas parecem tentar recuperar o passado ferroviário, para, com este, lançar-se no futuro.

4.2 Espaço, poder e memória

(...) os documentos não aparecem aqui ou ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência (...) dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e os problemas postos pela sua transmissão,

longe de serem apenas exercícios de técnicos, tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da

recordação através das gerações. Marc Bloch

O processo de encerramento de documentos e objetos do passado ou sua transmissão

às gerações presentes e futuras depende, em grande medida, do interesse das sociedades

históricas e grupos sociais de encaminharem à posteridade os referenciais de vida de seu

tempo histórico, amenizando, deste modo, a condição de ruptura e finitude que recai sobre os

seres, a matéria, e os grupos sociais. É certo que pode haver casos em que a permanência não

acontece por simples ação voluntária, pois pode ser dada por negligência e esquecimento,

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quando esses remanescentes, dado o abandono a que foram relegados, perpassam gerações

sem serem notados, sendo, em determinado momento, ressurgidos ou encontrados nos

escombros da história. Todavia, pode-se inferir que na maior parte das vezes, a permanência

desses elementos acontece como ato voluntário da atividade humana. A transmissão de bens e

objetos do passado às gerações futuras demonstra, entre outras, a presença de interesses

deliberados e específicos no interior das sociedades históricas, pois, como já foi dito em outra

ocasião,“tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as

sociedades históricas” (LE GOFF, 1990, p. 426). A permanência desses objetos e emblemas

do passado representa o esforço das sociedades históricas para imporem ao futuro as imagens

de si próprias.

Engana-se quem inocentemente acredita ser o espaço físico apenas matéria inerte,

cenário passivo para as atividades humanas. Como demais objetos, modos de vida e acervos

privados que caracterizam e lançam luz sobre seus proprietários, o espaço físico é capaz de

apresentar a própria configuração da sociedade que nele habita. Ler o espaço significa pensar

como ele atua e é atuado pelas relações sociais que se dão em seu interior, assumindo uma

postura e influência dialética entre o espaço e os grupos sociais que dele se apropriam.

A configuração do espaço físico das cidades demonstra as relações de poder presentes

no interior dessa sociedade. O preenchimento do espaço físico por símbolos grafa no espaço a

marca dos poderes e a força de ideologias específicas. A paisagem urbana pode fomentar

leituras diversas sobre as práticas e relações que se configuram no espaço. Como observa

Harvey (2007) “a aparência de uma cidade e o modo como os seus espaços se organizam

formam uma base material a partir da qual é possível pensar, avaliar e realizar uma gama de

possíveis sensações e práticas sociais” (HARVEY, 2007, p. 70).

A composição do espaço físico também evidencia a distribuição de poderes tal como

se configuram no espaço social, pois o espaço físico nada mais é que o espaço social reificado

(BOURDIEU, 1999). As relações de poder de uma sociedade podem ser evidenciadas através

da leitura sobre a configuração do espaço e, no caso da preservação patrimonial das cidades,

pode-se questionar quais são os lugares preservados, quais são destruídos, e a quais grupos

mostram-se relativos. Isso representa a preponderância na sociedade de memórias e imagens

de grupos específicos em detrimento de outros.

No caso das ferrovias brasileiras, a ausência de interesse por parte das elites

empresariais que se situam no locus altamente hierarquizado do espaço social é capaz de

influenciar seu próprio locus no espaço físico, que, atualmente, apresenta os remanescentes da

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indústria ferroviária de modo bastante degradado. A ausência de interesse em favor do

transporte ferroviário por parte dessas elites, altamente situadas no espaço social, está em

consonância com a situação deixada por grande parte dos remanescentes ferroviários, que

encontram-se atualmente em áreas degradadas das cidades. A política nacional de transportes,

traduzida em política de descarte e substituição, relegou os remanescentes da indústria

ferroviária ao completo abandono. Assim, creio que se justifica a razão pela qual os bens

ferroviários foram desvalidos de atribuição funcional, apodrecendo em inúmeras cidades que

deram sede a esse meio de transporte e que agora, tão tardiamente e depois de muito

patrimônio perdido, vêm sendo empreendidas da preservação patrimonial.

Além de evidenciar as relações de força presentes no interior das sociedades, o espaço

funciona como amálgama para a memória coletiva e guarda também as marcas das gerações

que nele habitaram. Sendo o tempo de vida da matéria urbana maior que da matéria humana,

ele perpassa gerações, sendo, em cada época, incorporado de alguns novos elementos. Assim,

ele apresenta a própria historicidade da cidade, com exemplares diversos das arquiteturas e

estilos de época que nele se abrigaram. Todavia, a manutenção dos exemplares da

diversidade da arquitetura urbana não se dá ausente de relações de força, pois mostra o peso

dos diferentes grupos na tentativa de cravar no espaço as suas marcas.

Pela comunicação que estabelece entre as gerações, o espaço é, também, fonte

inesgotável de memória. Mais que mero cenário para as atividades humanas, ele mostra-se

ativo e mediador do universo social, pois o mundo material cerceia e envolve a experiência

coletiva. A comunicação entre as sucessivas gerações acontece por meio da presença e

evocação do mundo material.

De acordo com Halbwachs (1990) o equilíbrio mental de uma sociedade decorre

muitas vezes do fato de que os objetos materiais que cerceiam a vida coletiva mudam muito

pouco, oferecendo uma imagem de permanência e estabilidade. A estabilidade do mundo

físico impõe ao grupo a imagem apaziguante de sua continuidade (HALBWACHS, 1990, p.

132). O entorno material é parte relevante da vida da coletividade e reino maior da memória

coletiva, pois leva, ao mesmo tempo, a marca do indivíduo e das outras pessoas, fazendo

lembrar acontecimentos familiares, de amigos, de vizinhos e de demais pessoas que se

encontravam também nesse quadro. Como observa o autor:

[...] cada objeto encontrado, e o lugar que ocupa no conjunto, lembra-nos uma maneira de ser comum a muitos homens, e quando analisamos este conjunto, fixamos nossa atenção sobre cada uma de suas partes, é como se dissecássemos um

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pensamento onde se confundem as relações de uma certa quantidade de grupos (HALBWACHS, 1990, p.132).

A dinâmica entre grupos sociais e espaço evidencia uma relação dialética, pois, de

acordo com Halbwachs (1990), “quando um grupo está inserido numa parte do espaço ele a

transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais

que a ele resistem” (HALBWACHS, 1990, p.133). O lugar recebe as marcas dos grupos e

estes as do lugar, assim, as imagens do lugar tornam-se inteligíveis a esse grupo, “porque

todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos diferentes

da estrutura e da vida de sua sociedade” (HALBWACHS, 1990, p. 133).

Mesmo quando transformações bruscas acometem o meio material, despossuindo-o de

sua imagem anterior, é a lembrança daquele espaço que mantêm os grupos unidos àquele

lugar. Assim, é precisa a afirmação de Halbwachs (1999) de que “as imagens espaciais

desempenham um papel na memória coletiva” (1999, p. 133). De acordo com ele:

[...] se as pedras se deixam transportar, não é tão fácil modificar as relações estabelecidas entre as pedras e os homens. Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus hábitos, não somente seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão de imagens que lhe representam os objetos exteriores (HALBWACHS, 1990, p. 136).

Para Halbwachs, a permanência e a estabilidade da paisagem oferecem equilíbrio

externo aos sujeitos sociais mesmo quando tudo dentro de si encontra-se internamente

desequilibrado. Nessa perspectiva, a inércia do mundo físico contribuiria para nos acalmar, já

que “põe-nos em equilíbrio, colocando-nos, por um instante, sob influência do mundo e das

forças física” (HALBWACHS, 1990, p. 135).

Mas as cidades não são apenas inércia e estabilidade. Ela se transforma ao longo do

tempo, pois se encontram também sujeitas às vicissitudes climáticas, geológicas, econômicas

e sociais. A transformação das cidades não deixa impune a seus habitantes e o

reconhecimento dessas perante a identidade constituída por seus moradores pode abalar-se.

Como descreve Halbwachs (1990):

Com efeito, as cidades se transformam no curso da história. Geralmente, em conseqüência de sua ocupação militar, da invasão dos bandos de saqueadores, quarteirões inteiros são destruídos e não mais existem, a não ser em estado de ruínas. O incêndio vem como um golpe decisivo. Velhas casas desabam lentamente. Ruas outrora habitadas por ricos são invadidas por uma população miserável e mudam de aspecto. As obras públicas, os traçados de novas ruas ocasionam muitas demolições e construções: planos se sobrepõem uns aos outros. Arrabaldes que se desenvolveram ao redor dos muros da cidade se unem a estes. O

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centro se desloca. Os antigos quarteirões, fechados por altas e novas construções, parecem perpetuar o espetáculo da vida de outrora. Mas esta é somente uma imagem da velhice, e não é certo que seus antigos habitantes, se reaparecessem, os reconhecessem (HALBWACHS, 1990, p. 136).

Assim, é interessante questionar sobre a influência que exercem os lugares da cidade

sobre os grupos que a ela se adaptaram lentamente, levando em consideração a transformação

progressiva da cidade tendo em vista seu envelhecimento, ressaltando, no caso específico, as

cidades que deram sede à arquitetura e engenharia ferroviária. Uma vez que a memória se

referencia fortemente pelo espaço, interessa questionar como permanecem as percepções dos

sujeitos sobre si próprios e sobre a memória coletiva quando postas em relação à paisagem

degradada, que rui a cada dia. Qual é a atuação da paisagem arruinada, que traz em si mesma

a imagem da decadência e do abandono sobre a memória coletiva? Qual a influência desse

cenário na vida das pessoas que tiveram suas vidas fortemente referenciadas pela ferrovia?

Símbolo do que foi elemento máximo de poder e status para as cidades, as arquiteturas

ferroviárias encontram-se hoje em estado de ruínas. O patrimônio, que no caso específico tem

funcionado apenas restritamente como categoria jurídica, mais do que por iniciativa concreta

de conservação e preservação, se apropria dos remanescentes ferroviários, mas, até o

momento, não tem sido capaz de barrar o processo de perecimento que a eles submete. No

caso específico da cidade de Além Paraíba esse é o quadro: o tombamento realizado em 1995,

através do decreto municipal 1648/95 não se tornou garantia de preservação, pois os

remanescentes da ferrovia local vêm passando por progressivo estado de arruinamento,

gerando, atualmente, questionamentos sobre possibilidades concretas de sua preservação

frente à ação destruidora do tempo.

Segundo George Simmel (1988), as ruínas arquitetônicas significam a sobreposição

das forças da natureza sobre as do espírito. De acordo com ele, diferentemente das outras artes

(literárias, musicais, pictóricas e mesmo esculturais) que são meios expressivos de intuição

criadora do espírito, a arquitetura é a única arte na qual se equilibram as forças da natureza,

cuja gravidade tende para baixo, e as do espírito, que tendem para cima. Para o autor, o estado

de ruína, quando o edifício se degrada e desmorona, significa que as forças naturais começam

a submeter a obra do ‘homem’, e o equilíbrio entre as forças antagônicas, que representa a

arquitetura, cede lugar em favor da natureza.

Ainda segundo o autor, as ruínas são fenômenos de maior relevância que os

fragmentos de outras obras de artes. Nestas, ainda que lhes faltem alguns elementos, a

composição restante ainda é capaz de encaminhar à obra originária, mas no caso das ruínas,

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todavia, não, pois os fragmentos do que ali permanece constituem uma outra e nova

totalidade, uma unidade característica (SIMMEL, 1988, p. 118).

Simmel (1988) evidencia a oposição entre as ruínas, surgidas por força preponderante

da natureza, e aquelas exercidas pela ação do ‘homem’, quando sua relativa passividade o leva

a atuar como mera natureza. É o que acontece com algumas ruínas urbanas que ainda são

habitadas. A imposição pelo consentimento e passividade humana retira dessas o encanto que

todavia recai sobre as ruínas da natureza, deixando naquelas, a contraposto, sensações de

desassossego. De acordo com o autor:

Lo característico de la impresión que esto suscita no es que sean los hombres quienes destruyan la obra del hombre, sino que más bien que aun haciéndolo la naturaleza los hombres permitan que sobrevenga la ruína. Este consentimiento, este dejar hacer es, empero, desde el punto de vista de la idea humana, uma pasividad positiva, por así decir, pues como él el hombre se hace cómplice de la naturaleza y asume uma manera de actuar que es diametralmente opuesta a su propia esencia. Esta contradición priva a la ruína habitada del equilibrio entre lo material y lo espiritual, del equilibrio que las tendencias contrapuestas del ser imprimen a la ruina abandonada. De aqui proviene lo problemático, el desasosiego a menudo insoportable que suscita em nosotros la visión de lugares de los que há desertado la vida y que, sin embargo, continúan sirviendo como escenarios de uma vida. (SIMMEL, 1988, p. 119)

Deste modo, penso ser esse o caso das ruínas urbanas em grande parte oriundas da

indústria ferroviária, cuja presença no espaço da cidade, em especial em Além Paraíba, traz

certo incômodo a seus habitantes, que tiveram suas vidas fortemente referenciadas pela

ferrovia e agora assistem, a um tempo continum, o desmoronamento desses remanescentes que

outrora funcionaram como importantes símbolos para a cidade.

Embora a lógica da preservação desses remanescentes pareça ser senso comum na

atualidade, há quem veja de forma crítica o empreendimento patrimonial dos remanescentes

do capitalismo industrial que tendem à pretrificação da memória, e reconheça, nesse cenário

de ruínas, contexto profícuo aos movimentos de memória.

Diferentemente da lógica preservacionista e dos empreendimentos de memória que

refazem todo o contexto passado como encenação teatral, Jeudy (1990) enxerga, nas “ruínas

da modernidade”, o locus preciso para os possíveis vôos da memória, perpassando diferentes

temporalidades. Como observa o autor, vastos são os lugares abandonados remanescentes do

capitalismo industrial, ruínas da modernidade que não esperam mais que o olho para poder

durar. Em suas palavras:

A beleza do acabado, da restituição exata de sua forma não é mais o sentido esperado: só a lentidão de sua composição consagra o mistério dos olhares que se

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voltam para eles. As chaminés de fábricas, as velhas forjas enferrujadas, rodas hidráulicas postas por terra, motores quebrados, carcaças de veículos.... Esses lugares sem fim são inumeráveis, esses objetos amontoados que não esperam mais que o olho para poder durar (JEUDY,1990, p. 126).

Figura 1: Imagem de material de trabalho abandonado no interior da antiga

oficina de manutenção e restauro da extinta E.F.L. em Além Paraíba (MG).

Foto da autora em julho de 2009.

Objetando alguns empreendimentos patrimoniais que expõem os remanescentes do

capitalismo industrial sem recomporem o elemento humano que nele depositou sua força de

trabalho, Jeudy (1990) critica a patrimonialização dos documentos da barbárie que, relidos

sob a ótica da encenação patrimonial, excluem a dimensão de conflito e da dominação como

se deu em seu contexto histórico original. Nas palavras do autor:

“São os nossos instrumentos de tortura que são expostos nas vitrines”. As máquinas são belas e sedutoras, elas evocam uma grande época da indústria, e a burguesia, orgulhosa de seu progresso técnico, se esforça então em glorificar seu passado, ocultando os sofrimentos que ela engendrou. [...] Tudo se torna tão belo nesse movimento de restituição das habilidades que o horror da exploração não se mantém nem mesmo como uma recordação ruim (JEUDY, 1990, p. 120).

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Da forma como acontece a patrimonialização, exclui-se do passado e da memória a

dimensão do conflito, da dominação, do poder e das lutas sociais. A memória não é

amenidade, ela, em si mesma, se dá também na ordem do conflito, do embate entre a

lembrança e o esquecimento, entre as amenidades e traumas silenciosamente manifestos.

Ao contrário da preservação patrimonial que acontece muitas vezes por meio de uma

abordagem espetacular e petrificante da memória, Jeudy (1990) considera os lugares

abandonados espaços para a livre interpretação, diferentemente dos objetos patrimoniais, que

demandam a abordagem historicizante como condição necessária para inteligibilidade do bem.

Nas palavras do autor:

Não é só o objeto preservado que apresenta a necessidade de uma explicação, seu aproveitamento por um relato didático. O objeto, destituído de suas funções, relegado ao amontoamento ou abandonado às urtigas, se dispensa de um olhar etnográfico ou “historicizante”. O abandono evita o obstáculo de uma lógica obsessional da reapropriação. Ele restitui ao objeto seu poder alucinógeno. A imaginação toma livre curso, as vozes, os gestos, os lugares, os corpos podem fazer seu retorno ao prazer para desaparecerem de novo do silêncio de um abandono jamais concluído (JEUDY, 1990, p. 127).

Diferentemente das práticas da preservação, que se legitimam “por uma negação ativa

das figuras do esquecimento, recusando os movimentos dos traços mnésicos, [...] o lugar

abandonado não é espetacular, mas sim um teatro múltiplo de memórias plurais” (JEUDY,

1990, p. 129). Normalmente considera-se, sob viés do senso comum, que os traços da

memória se perduram por meio da preservação e que o lugar abandonado se equivale ao

próprio esquecimento. Mas na interpretação apresentada pelo autor, o contrário se estabelece.

Ao sugerir uma abordagem espetacular do bem, a preservação traz, em seu bojo,

possibilidades limitadas de interpretação, e os lugares abandonados possibilitam, por sua vez,

jogos livres de interpretação e de memória, concebendo a dialética entre memória e

esquecimento neutralizada pela espetacularização patrimonial. Ademais, trazendo em si “uma

estética social do abandono [esses lugares se estabelecem] sobre a partilha de uma

interrogação filosófica da precariedade existencial, [onde acontece] a ligação surpreendente da

duração e do efêmero” (JEUDY, 1990, p. 129). Nas palavras do autor:

Ao contrário, a volta aos lugares abandonados sustenta-se desse renascimento alegre do olhar que se esquiva à petrificação da lembrança. O prazer não vem da restituição integral e verídica de uma coisa perdida, mas da irrupção de imagens sempre novas produzidas por reiteração. Uma estética do abandono se fundamenta numa aliança do imaginário e da repetição que desafia toda a lógica da restituição ao criar essa atmosfera de sonho e de interrogação. Ela “desrealiza” o passado, o presente e o futuro por efeitos de simultaneidade temporal das imagens e lembranças. Livre da má consciência e da nostalgia, uma estética do abandono poderia tornar-se a fonte dos

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novos mitos da modernidade. Mas ela é também ameaçada pela emergência, pela ampliação das memórias petrificantes, por modalidades da conservação que ultrapassam a finalidade da preservação para instaurar um universo do gozo espectral (JEUDY,1990, p. 130).

De acordo com Jeudy (1990), a monumentalidade do lugar abandonado deriva de seu

poder de evocação da vida social que ali se dera. Em sua perspectiva, o lugar abandonado traz

a “lembrança da vida coletiva de produção e partilha de sofrimentos e alegrias”, se opondo,

desta forma, à lógica da preservação que tende a neutralizar a dimensão do vivido que se dera

em tais lugares. A “questão inserida na apreensão social e afetiva por ele desencadeada, é a

de fazer aparecer uma “outra” memória geralmente mantida oculta” (JEUDY, 1990, p. 129).

Desta forma, consideramos o lugar abandonado e a paisagem degradada apresentada

pelos remanescentes da indústria ferroviária - cenário que se encontra na cidade de Além

Paraíba - aspectos propícios aos movimentos de memória e locus especial da dimensão

material na qual a memória se alicerça. Esses lugares e objetos atualmente abandonados

evocam memórias ainda presentes e partilhadas socialmente por parte da população da

cidade.

Assim, apesar de o patrimônio ser uma categoria jurídica, enfatiza-se na cidade de

Além Paraíba um outro recorte semântico para o termo, não necessariamente normativo, mas

que assim o designa simplesmente por ser representativo simbólico de uma coletividade. Esse

é o caso da ferrovia em Além Paraíba, quando se enxerga a interpolação dos significados

apresentados pela categoria, uma vez que lá se verifica a plena ressonância entre a população

e o bens remanescentes materiais das ferrovias locais.

4.3 Além Paraíba: história de uma cidade ferroviária

O município de Além Paraíba localiza-se na Zona da Mata e integra, com outros 13

municípios, a Micro-região 201 (Mata de Cataguases), da qual Cataguases é o principal.

Limita-se com os municípios de Mar de Espanha, Santo Antônio do Aventureiro,

Leopoldina, Volta Grande, Chiador e com o Estado do Rio de Janeiro.

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Figura 2: Mapa rodoviário de localização do município de Além Paraíba

Fonte: GOMES, 2006

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Banhada pelo Rio Paraíba do Sul, a cidade estende-se sobretudo na planície estreita

da sua margem esquerda. Daí a forma longitudinal do aglomerado urbano, apertado entre o

rio e os morros alongados que o margeiam. Instalada em fins do século XIX, a ferrovia teve,

por esse motivo, que cortar o centro da cidade, enquanto algumas ruas tomaram o mesmo

sentido dos seus trilhos (GOMES, 2006). Sua história econômica remonta a dois importantes

momentos, o café e a ferrovia, os quais, estritamente vinculados, trouxeram prosperidade e o

desenvolvimento sócio econômico local.

Figura 3: Além Paraíba entre montanhas, rio e trilhos. [s/d]. Acervo Museu de história e ciências naturais de Além Paraíba

A região onde se inscreve o atual município de Além Paraíba esteve localizada nos

antigos Sertões de Leste das Áreas Proibidas, áreas restringidas pela administração colonial,

a fim de evitar o contrabando de metais extraídos das minas. Com o declínio da mineração

nas Minas, houve incentivo, então, para ocupação das referidas áreas, expandindo-se, nas

primeiras décadas do século XIX, a da cafeicultura na região. A economia cafeeira foi

responsável pela ocupação regional, instalando, em suas adjacências, importantes e

suntuosas fazendas que, ainda hoje, figuram no espaço rural regional. O transporte do

produto, que até então era realizado no lombo de mulas, tornou-se precário devido ao

aumento da produção, partindo dos grandes fazendeiros de café o incentivo à construção das

primeiras ferrovias. Criadas a partir de meados do século XIX, as ferrovias brasileiras

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tiveram relação direta com a indústria cafeeira, pois serviram para o escoamento do produto

até os portos para sua exportação.

O café e a ferrovia foram responsáveis pela ocupação de várias regiões que não

haviam sido foco das estratégias territoriais da antiga colônia e do governo imperial. A Zona

da Mata Mineira, região na qual se localiza a cidade de Além Paraíba, e cujo topônimo

caracteriza metaforicamente a região anterior ao referido processo de ocupação, teve seu

desenvolvimento econômico e social provocado por esses dois movimentos estreitamente

vinculados, ou seja, os investimentos da produção cafeeira e a origem da ferrovia. Desta

forma, a ferrovia, além de seu papel estritamente econômico, deteve também uma profunda

dimensão política e social, que ao aproximar o interior ao centro do país, proporcionou uma

nova dinâmica nas áreas pela qual passou, sendo responsável pela modernização

conservadora da região mencionada, ao inaugurar um sistema de dominação oligárquica que

agora ligava o poder local ao centro político do país. Como argumenta Furtado (2009), essa

combinação deu origem na região à formação do “Brasil Arcaico”, ou seja, à simbiose entre

o tradicional e moderno, entre o rural e o urbano e entre o poder central e a dominação

oligárquica, modelo pelo qual se pautou o fenômeno industrial brasileiro em finais do século

do século XIX e primeiras décadas do século XX, e entre o qual se destaca a indústria

ferroviária brasileira.

Apesar de sua relevante dimensão econômica, não se deve depositar a tônica apenas

no aspecto utilitarista da construção da ferrovia – dada sua estreita ligação com a produção

cafeeira – pois ela obteve, no contexto de sua implantação, um significativo conteúdo

simbólico. Acompanhado do motivo econômico, estava associado o aspecto cultural que com

ela emergia, ao servir como representações da modernidade e do progresso. Neste processo,

estiveram vinculados os planos econômicos, políticos e sócio-cultural, inaugurando um

imaginário sobre as ferrovias que foi capaz de alterar significativamente a dinâmica da vida

social local, concebida na sua relação com o tempo, com o trabalho e com as visões sobre o

mundo que, naquele contexto, deixava escapar o olhar para a vida além da “aldeia”.

O desenvolvimento econômico que veio com a implantação das ferrovias no Brasil

transformou a cultura das populações das cidades que receberam os trilhos do progresso, pois

o desenvolvimento econômico atua, também, como desenvolvimento ou mudança cultural.

Além de seu papel na composição geográfica estratégica e no escoamento da

produção agrícola, é importante apreender também o significado sócio-cultural da chegada da

ferrovia no interior, pois, além de ser responsável pelo desenvolvimento urbano e econômico

de pequenas localidades, foi justamente a ferrovia que deu origem a muitas cidades. Se

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inicialmente a ferrovia guardou estreita ligação com a cafeicultura, há que levar em conta o

efeito decorrente de sua implantação, ao ter possibilitado, também, a criação e o

desenvolvimento de importantes indústrias às suas margens.

A plena compreensão do papel da ferrovia nas cidades demanda lançar luz sobre

aspectos da vida social e o ordenamento do cotidiano local na sua estreita relação com

ferrovia. A vida cotidiana e as relações sociais locais foram profundamente afetadas pelo

fluxo de passageiros, que chegavam e partiam pelas pequenas cidades do interior. Pode-se

afirmar que a ferrovia atuou como uma poderosa rede de comunicação, transportando

pessoas, mercadorias, cartas e telegramas, pois, como bem exemplifica Maia (2001), o

telégrafo correspondeu ao principal instrumento de comunicação nas estações das pequenas

localidades, que eram profundamente afetadas pela nova dinâmica trazida pela localização da

ferrovia. Sobre a relevância social do transporte de passageiros nas localidades e da rede de

comunicações por ele fomentada escreve Paula (2008):

A relação social que se estabeleceu nas construções e operações de linhas de passageiro é que foi capaz de deixar profundas marcas nas memórias, seja pela rejeição (a expropriação de terrenos para a construção do leito férreo, por exemplo), seja pela aceitação, pela novidade e possibilidade de transportar mercadorias e pessoas para vários locais. A operação de trens de passageiros envolvia contatos permanentes da empresa e de ferroviários com as populações locais ao seu redor, de forma que as alterações no cotidiano dos locais por onde passavam os trens eram visíveis: a construção e movimentação de estações e pontos de paradas, o tráfego constante de mercadorias avulsas, as ligações regionais e inter-regionais, os movimentos dos trabalhadores ferroviários que se deslocavam sempre, de município a município. Havia todo um movimento em torno da ferrovia que, via de regra, atravessava as cidades e impunha sua presença (PAULA, 2008, p. 47).

Assim, sendo Além Paraíba uma cidade desenvolvida em torno da ferrovia, a qual

obteve relevância não apenas por sua localização estratégica na cidade, mas também por ali

se encontrar instalada uma grande oficina de manutenção de locomotivas da Estrada de Ferro

Leopoldina, que empregou na cidade número significativo de funcionários, cabe, então,

deslindar sobre o papel econômico, político e sócio-cultural que a ferrovia obteve na cidade,

considerando, entre outras, o desenvolvimento urbano e uma especial cultura de oficio que,

extrapolando os muros do ambiente de trabalho, permeou demais relações sociais, sendo

responsável por criar na cidade uma peculiar cultura ferroviária (FURTADO, 2009).

Além Paraíba foi uma das primeiras cidades ferroviárias do Brasil, tendo sido foco de

um projeto de construção ferroviária situado ainda em meados do século XIX. Em 1855 foi

organizada a Companhia da Estrada de Ferro Dom Pedro II que, partindo do Rio de Janeiro,

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visava transpor a Serra do Mar, atingir o Vale do Rio Paraíba, e daí se dividir em duas linhas:

uma em direção à província de São Paulo e a outra em direção a Minas Gerais, atingido aí

Porto Novo do Cunha, atual município de Além Paraíba. O objetivo inicial da Estrada de

Ferro D. Pedro II seria a integração entre as províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas

Gerais. Assim, em 1871 os trilho da Pedro II atingiram Porto Novo do Cunha. No dia 06 de

agosto do mesmo ano foi inaugurada a Estação de Porto Novo, sendo esta o ponto final da

terceira estação da Estrada de Ferro D. Pedro II que viria posteriormente a se tornar a Central

do Brasil.

Figura 4: Detalhe da data de inauguração da Estação de Porto Novo da Estrada de Ferro Dom Pedro II. [s/d]. Acervo do Museu de História e Ciencias Naturais de Além Paraíba.

A outra companhia, a Estrada de Ferro Leopoldina, constituída para executar o trajeto

inicial entre Porto Novo e a cidade de Leopoldina, com 96km de extensão, foi autorizada pelo

governo em 1872, contando com o patrocínio de fazendeiros de café da região interessados

no transporte eficiente do produto. No ano de 1874 foram abertas ao tráfego as três primeiras

estações da estrada, tendo como ponto de partida a estação de São José, localizada na atual

cidade de Além Paraíba. Na década de 1890 foi inaugurada pela Estrada de Ferro Leopoldina

a oficina de manutenção e reparo de Além Paraíba, sendo uma das maiores para reparação de

material ferroviário do país.

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Figura 5: Além Paraíba em inserção regional de ferrovias

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A evolução urbana de Além Paraíba está diretamente ligada ao traçado deixado pelas

ferrovias entre as décadas de 1870 a 1890. Apesar de ter seu núcleo inicial remontado ao

início do século XIX, a ocupação urbana mais significativa, e que atualmente caracteriza a

sua composição, remete à chegada das referidas ferrovias, quando, ao longo do traçado de

ambas, efetivou-se uma ocupação orgânica conectada pela linha do trem. A implantação das

ferrovias em Além Paraíba, ligando o interior ao porto do Rio de Janeiro, contribuiu para a

expansão da economia cafeeira e no processo de consolidação urbana, impulsionado pelo

entroncamento ferroviário que fazia da atual cidade o ponto final da Estrada de Ferro Dom

Pedro II e o ponto inicial da Estrada de Ferro Leopoldina.

A estação de Porto Novo (da Pedro II) foi construída em uma área de várzea onde

atualmente se localiza o centro comercial da cidade. Seu conjunto arquitetônico é composto

por três blocos principais, alinhados ao leito da ferrovia. O bloco frontal que abrigava a

estação de Porto Novo e os antigos armazéns de café é delimitado por dois torreões para

atendimento de funcionários da Estrada de Ferro Pedro II. Na parte posterior da estação,

foram implantados outros dois blocos, que serviram como hotel de passageiros, hotel dos

funcionários, restaurante, administração e almoxarifado.

Figura 6: À direita, vista parcial da Estação de Porto Novo com destaque a um de seus torreões entre coqueiros. [s/d]. Acervo Museu de História e Ciências Naturais.

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Figura 7: Vista do complexo ferroviário da Estação de Porto Novo. Construída pela Pedro II. [s/d]. Acervo: Museu de Historia e Ciências Naturais de Além Paraíba.

Figura 8: Ao fundo, os dois blocos que serviram como hotel de passageiros, hotel dos funcionários, restaurante, administração e Almoxarifado e, à frente, pátio de pequenas manutenções de locomotivas. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

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O conjunto arquitetônico que, por sua vez, compõe a antiga Estrada de Ferro

Leopoldina é formado pela Estação São José, por uma ampla rotunda, escritórios, galpões,

casas de operários e serraria. A instalação no município de uma oficina central para

manutenção das locomotivas e estradas foi responsável por formar uma qualificada escola de

chefes e operários, empregando parte significativa da mão de obra local. Embora a estação de

São José apresente portes de menor expressão, o complexo ferroviário construído na cidade

em função da oficina impressiona por suas dimensões.

Figura 9: Ao fundo, vista parcial da Estação de São José, ponto inicial da Estrada de Ferro Leopoldina. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba

Figura 10: Vista do complexo ferroviário da Estrada de Ferro Leopoldina em Além Paraíba. Destaque para a rotunda de estacionamento de trens, e, ao fundo, galpão da oficina. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

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No início do século XX foi instalado em uma fazenda local uma usina geradora de

energia elétrica, dando início no município à implantação da luz elétrica. Isso permitiu que se

instalasse na cidade uma linha de bondes - inicialmente puxada a burro e posteriormente

substituído pelo bonde elétrico - ligando a estação de Porto Novo à Estação de São José.

Deste modo, Além Paraíba tornava-se umas das três primeiras cidades mineiras a possuir tal

tipo de transporte. O incremento da infra-estrutura urbana é um dos indícios da propulsão

econômica e social, influenciada pela localização estratégica do município como

entroncamento de duas importantes ferrovias.

Figura 11: Linha de bonde ligando a Estação São José, inicial da Estrada de Ferro Leopoldina à Estação de Porto Novo. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

Esses acontecimentos contribuíram para o desenvolvimento sócio econômico local,

que era ainda alimentado pelo surgimento das primeiras indústrias alemparaibanas. Assim, a

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implantação da ferrovia favoreceu o considerável desenvolvimento de um parque fabril na

localidade, originando várias construções de fins industriais nas proximidades da Estação de

Porto Novo. Nesse contexto, podemos citar, além da presença do complexo ferroviário

sediado na cidade, a instalação da fábrica de tecido e da fábrica papel, além da Companhia de

Luz e Força elétrica. No imaginário local sobre a prosperidade atingida por Além Paraíba no

período, as lembranças das fábricas mesclam-se com as da ferrovia.

O desenvolvimento industrial local retirou a preponderância da exportação do café

como principal atividade econômica do município. A economia do café, que com o passar

dos anos entrou em decadência, não comprometeu como um todo o desenvolvimento

econômico local, que continuava a contar com a dinâmica da ferrovia e com as fábricas ali

instaladas. Assim, a década de 1940 representou o apogeu da cidade, que figurava entre as

quatro cidades mais industrializadas do estado de Minas Gerias, sendo considerada uma

cidade pólo em relação aos municípios circunvizinhos.

4.4 Memória social em Além Paraíba

Os acontecimentos da história social são construídos e apropriados no vivido das

pessoas. Entende-se, por isso, a história não apenas como aquela que relata os

acontecimentos macro-sociais, mas também aquela que é abordada como processo construído

pelos pelas próprias pessoas de maneira compartilhada, complexa, ambígua e contraditória.

Nesta perspectiva, concebe-se os sujeitos históricos como pessoas vivas, que se fazem

histórica e culturalmente num processo em que a dimensão individual e social encontra-se

intrinsecamente imbricadas.

Desta forma, procuramos nos depoimentos dos ferroviários aposentados de Além

Paraíba compreender o cotidiano da ferrovia na cidade, entendendo por que ela foi capaz de

gerar na cidade uma cultura ferroviária específica, buscando identificar a relação dialética

entre os sujeitos e os espaços habitados na constituição da recordação memorialística.

Empreender a viagem da memória não significa reviver o passado tal como de fato

foi. Este, inexoravelmente esvaído, só pode ser alcançado pela viajem da lembrança, da

recordação, e esse caminho de volta, para traz, é construído não apenas pela objetividade do

acontecido, mas permeado pelo ingrediente da imaginação. Como observa Bolle (2000):

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Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como “de fato foi”. Significa apropriar-se de uma lembrança, tal como ela relampeia no momento de perigo. Trata-se, para o sujeito histórico, de flagrar uma imagem do passado, tal como ela se apresenta, de modo imprevisto, ao sujeito histórico no momento do perigo (BOLLE, 2000, p. 316).

A memória é um chamado do presente aos conteúdos do passado. É desta forma que

se estabelece uma “tensão construtiva entre eu que recorda e o eu recordado” (BOLLE,

2000). Assim, memória é o encontro, pois é por meio da distância, da travessia do presente ao

passado, viagem poética do meio do caminho, que se dá o encontro do “eu que recorda”, que

caminha para traz, com o “eu recordado”, que caminha para frente (BOLLE, 2000).

Embora a memória se dê a nível individual, ela é sempre permeada pelas experiências

coletivas e pelo universo social no qual os sujeitos se inserem. Como mostra o campo da

micro-história, os macro-acontecimentos encontram ressonâncias na vida cotidiana, surtindo

efeitos objetivos na vida dos sujeitos.

A presença da memória social e coletiva na memória individual acontece por meio da

evocação da cultura material, com objetos e lugares que circundam e envolvem a experiência

coletiva. Na memória individual, construída por referência ao universo material, a cidade

assume lugar preponderante, pois, como observou Freud, “há uma coexistência de diversos

estágios biográficos do eu, na memória, com as diversas feições históricas de uma cidade, das

mais arcaicas até as mais recentes” (Freud, apud BOLLE, 2000, p. 331). Assim, através do

exercício da memória, é possível se ter acesso à relação entre indivíduo e a sociedade, entre a

cidade e seus habitantes.

Desta forma, importa conhecer como os moradores de Além Paraíba, em especial os

antigos ferroviários, vivenciaram a história da ferrovia na cidade, já que suas memórias são

fortemente impregnadas pela presença da ferrovia no local. Percebe-se como cada um, em

suas próprias histórias de vida, vivenciou a trajetória da ferrovia na cidade, desde seu apogeu

à sua decadência e depredação, assistindo, na atualidade, à ruína da arquitetura ferroviária

como materialização de sua historicidade e de sua decadência.

Na memória dos moradores mais antigos, as referências sobre as fábricas locais

encontram-se emaranhadas ao contexto ferroviário, pois, assim como a ferrovia, elas foram

também responsáveis pela ocupação de grande parte de trabalhadores da cidade. Sempre que

questionados sobre o passado ferroviário e a dinâmica da vida local no período, os

entrevistados remetem aos três elementos que representaram o fenômeno industrial local:

fábrica de tecido; fábrica de papel e ferrovias. O trecho abaixo remonta à interpolação entre

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essas esferas produtivas. Quando questionado sobre a relação entre comunidade e ferrovia, o

Sr. Moacir Tamarino logo remete às fábricas locais.

Entrevistadora: Seu Moacir, em relação à comunidade, o senhor falou que respirava trem. A gente pode por assim que a comunidade toda ela era envolvida ... [fala interrompida pelo entrevistado] Moacir Tamarino : com as fábricas, de tecido. A fábrica de tecido aqui trabalhava três turnos, não parava não. Fabrica de papel trabalhava também três turnos [...] lá virava dia e noite. Pegava às seis da manhã, largava às duas, pegava às duas, largava às dez, e das dez às seis da manhã.13

As duas Estações de Porto Novo e São José, respectivamente referentes à Estrada de

Ferro Central do Brasil e Leopoldina, foram responsáveis por instaurar nas localidades

diferenciados sistemas de sociabilidades que não ousavam ultrapassar suas fronteiras. Isso

porque, entre os mais jovens, estabeleceram-se disputas simbólicas entre as regiões que,

muitas vezes, manifestavam-se também em embates físicos. Isso fazia os espaços das cidades

restritos aos grupos de ocupação, cada um querendo afirmar sua importância frente ao outro.

Se os de Porto Novo gozavam da importância por sua localização central na cidade, área de

maior dinâmica onde aconteciam os encontros sociais, os de São José não deixavam por

menos, glorificando a pequena estação, a primeira a ser construída pela Leopoldina, assim

como todos os demais equipamentos sociais ali instaurados. As disputas entre os bairros,

correspondentes às respectivas estações, é presente na memória juvenil do Sr. José Heitor

Silva:

[...] Na juventude, conhecer o bairro de Porto Novo era um problema naquela época. Rivalidade entre a rapaziada. Disputa pra provar quem era melhor, eram os times de futebol, as sociedades carnavalescas: Dragão de Ouro em São José e União das Flores de Porto Novo. Ou qual a praça mais bonita, a da União Preves, ou a da República, atual Presidente Vargas. Dificilmente a rapaziada de São José transitava até Porto Novo. Muitos até só aceitavam carregar a marmita até as oficinas da Leopoldina, pois temiam chegar até a fábrica de tecidos, e, até a fábrica de papel, o receio era ainda maior. Dificilmente os de cá passavam para lá e os de lá para cá. Os de lá diziam que em Porto Novo estava o hotel magnífico e a grande estação ferroviária que acolheu o imperador Dom Pedro II. O comércio desenvolvido, a bela ponte Armando Godói, a fábrica de tecidos Izabel, a fábrica de papel Santa Maria, e outros destaques naquele bairro. [...] Prosperidade, bairro famoso pelo progresso, a cidade passou mesmo a ser conhecida como Porto Novo do Cunha. Muitos problemas foram criados por esse motivo, que pessoas mal informadas ficavam confusas na compra de passagem. O bairro de Porto Novo estava sempre em evidência, e por esta razão, era o orgulho da rapaziada. [...] Os jovens de São José também se orgulhavam de seus destaques, como a Matriz de São José, a prefeitura, o fórum, o cemitério, a ponte preta, o colégio Além Paraíba, o mictório municipal e, porque não, a nossa pequenina e também importante a Estação, a primeira da Estrada de Ferro Leopoldina, tendo também como seu chefe

13 Entrevista realizada em 2006 pela equipe do Programa Trem de Minas em Além Paraíba. Acervo Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

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o Sr, Godinho que abarcou as traquinadas de alguns jovens naquela época 14 (JOSÉ HEITOR SILVA).

Com certeza, a região de Porto Novo era a que mais colocava a ferrovia em contato

com a cidade e esta, com o fluxo de passageiros, mercadorias e comércio ambulante que ali

se dava. Certamente, tratava-se da região mais dinâmica da cidade. Durante todo dia, assistia-

se à chegada e partida dos trens, às movimentações na plataforma, o hotel da estação com

seus hóspedes de terras distantes, caixeiros viajantes. Aliás, foi também por meio do hotel da

estação que muitos lá tiveram seu primeiro trabalho vinculado à ferrovia, seja trabalhando

formalmente no hotel e restaurante, seja como carregador de mala, trabalho ao qual muitas

crianças se dedicavam. As falas de Juarez Gonçalvez e de Ivanir Nerinho demonstram,

respectivamente, a intensa vida social na região, seja através da presença de profissões

tradicionais e ainda permanentes, muito embora pouco aceitas socialmente, seja através de

profissões hoje superadas, como o de caixeiro viajante, atualmente extinta em função de

outro modelo comercialização.

[...] se chamava hotel da estação, que era um bar, tinha o hotel com os pátios e o restaurante embaixo, naquela frente ali que você vê era um bar. Muito freqüentado, e as zonas de Além Paraíba movimentava os bares da cidade, a vida noturna da cidade era tão grande quanto de dia, porque as meretriz que sustentavam isso na época. E era muito bom cada atividade que tinha [...] (JUAREZ RIBEIRO GONÇALVEZ15).

[...] eu carreguei mala quando criança dali, da estação do trem até o hotel, eu vi aquele hotel ali cheio de gente almoçando, na hora do trem parava ali e já ia pro hotel almoçar. Hoje é vendedor de lavatório, de tecido, de mostruários, antigamente vinha caixeiro viajante, com aquela pasta de couro grande, aquele baú de madeira grande, com tecido ali dentro, com calçado ali dentro pra mostrar o comerciante. Entendeu? Ele pousava aqui no hotel, levava e vendia pro comerciante, tecidos, seda, um tanto de coisa que ele vendia, ficava uma semana aqui, ia lá no hotel pegava aquilo carregava ou chamava um moleque igual a eu ou outro pra levar aquela bolsa pra ele botava na cabeça, ia pra uma loja, botava na cabeça ia pra outra loja, enfim, ele era o caixeiro viajante daquela época. Agora os vendedores vem com aquela maquininha na mão compra isso, compra aquilo, antigamente não, antigamente o comerciante queria ver o que eles estavam comprando [...] (IVANOR DE SOUZA BASTOS16).

A presença do trem se fazia marcar durante todo o dia na cidade. Para quem viveu em

cidade ferroviária, sabe bem o que isso significa. As horas do dia podiam bem ser

demarcadas pelos horários do trem, cujo ruído não deixa impunes a nenhum dos habitantes

da cidade, sobretudo aqueles que vivem nas adjacências do leito ferroviário. O horário do 14 O trecho é parte referente ao livro de memórias “Jornada de um Homem Simples” de autoria de José Heitor ainda a ser publicado. 15 Entrevista realizada em Janeiro de 2010 16 Entrevista realizada em Janeiro de 2010

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trem se sobrepõe ao horário local. Mas a matéria viva transportada no trem não era só de

passageiros. Vagões carregados de bois, porcos, cavalos e aves faziam parte da rotina diária.

No caso do transporte da boiada do curral para os vagões, eram comuns os casos de um boi

desgarrado e desembestado afugentando a população rua afora. E, ao meio da manhã, já se

tinha por certo o horário do trem leiteiro. A dinâmica dos trens na cidade, e as “engenhocas”

para o transporte de bois e leite, podem ser verificadas nos depoimentos de José Heitor e

Ivanir Bastos:

Então eu via o trem passar, os meus 7, 8 anos, que eu já apontei a dificuldade de sair do bairro, e ficava vendo o trem passar, eram vários trens [...] Me lembro que a cidade não parava. Quando havia o trem noturno, a gente esperava o trem passar, aquela coisa toda, o apito do trem. Daí a pouco, cinco e quarenta e cinco saia o trenzinho pra Três Rios. Depois sai às seis horas pra Friburgo. Mais um pouquinho passava o leiteiro descendo para o interior, e depois, uma hora da tarde, vinha o expresso do Rio de Janeiro. Uma e meia, duas horas, vinha outro descendo para o interior. Três horas vinha o próprio leiteiro, depois do leiteiro, cinco horas mais ou menos, voltava o de Três Rios. Friburgo chegava umas nove, depois o trem noturno, quer dizer, a cidade, o que movimentava aqui era o trem. Mas o amor pelo trem não era só dos ferroviários não, todo mundo, a cidade toda tinha aquele carinho (JOSÉ HEITOR SILVA17).

Ivanir de Souza Bastos: Tinha o trem leiteiro, o trem leiteiro vinha lá de cima, recolhendo leite nas estações, aqui em Porto Novo. Sabe onde ele recolhia o leite? Maria Cecília Alvarenga: Onde? Na cooperativa? Ivanir de Souza Bastos:Não. Não tinha nem cooperativa...tinha a cooperativa do Banco do Brasil, não era cooperativa, era laticínio, onde botava o leite lá dentro pra gelar. Tinha um trole na linha, você já viu um trole? Tinha um trole daquele pequeno ali no Banco do Brasil onde tinha o laticínio, aquele trole tinha uma linha no meio da rua, de uma calçada na outra. Ali mais ou menos ao Banco do Brasil tinha uma loja, então tinha um beco no meio das duas lojas que ia até lá dentro na beirada da linha numa calçada que tinha grande, pra descarregar o leite. Enchia o trole de leite, atravessava a rua, parava todo mundo pra atravessar, aí atravessava entrava ali, o trânsito fluía normalmente, ele descarregava o leite e voltava com o trole. Era a manhã toda assim, aí o trem do laticínio passava, parava lá, o maquinista já sabia que tinha que parar lá pra apanhar, tanto parava lata vazia quando ia pra cá, tanto parava lata cheia pra levar pro Rio [...]. [...] Tinha o carro de ave, que carregava galinha, ave, peru, pato, entrava lá e carregava e aí ia pro comércio no Rio de Janeiro, tinha o carro de boi, que era o carro que a gente chamava de carro de gado, como tinha o leiteiro, o expresso, tinha o carro de carregar o boi, cavalo, então vinha carregado. Se tivesse, por exemplo, um boi, tinha ali onde passa o ônibus na rua Quinze ali, aquela rua sai o trem pra cá e entra pra grota, ali naquela curva tinha um curral de boi, de ferro, tudo de trilho e ferro, nada de madeira. Então tinha um curral ali, onde a boiada vinha toda pela rua, passava boi na rua toda aqui, uns cinqüenta, cem a duzentos bois, os boiadeiros todos a cavalo, tocando os bois, as vezes um boi estourava pela rua e pegava a gente, mas os bois eram pra levar pro curral lá. O trem vinha lá de fora e encostava perto da rua Quinze, tinha uma valeta, uma linha mais pra baixo, então o trem vinha de marcha ré e encostava ali, pegava aquele vagão e entre um vagão e outro tem um encaixe pra um puxar o outro. Aqui tinha um negócio de madeira que eles levantavam assim, e a própria porta de um vagão pro outro

17 Entrevista realizada em Agosto de 2009

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fechava o vagão todo e o boi entrava e eles iam tocando os bois, o boi ia enchendo e passando lá pra baixo. Entre um carro e outro tinha um tablado grande e grosso onde o boi ia passando por ali, e botava quinze redes naquele vagão e aí fechava a porta, e o boi ia passando do mesmo jeito até chegar no vagão, fazendo isso até chegar no último vagão e acabar a boiada que tava no curral. Eu embarquei muito boi quando era moleque, e moleque era um bicho danado e queria ferroar o pobre do bicho, os boiadeiros embarcavam o boi, aí a máquina ia lá pra baixo e voltava pra estação, ficava cheio de boi e até a hora de voltar o carro pro Rio (IVANIR DE SOUZA BASTOS18).

Apesar de a estação de Porto Novo ser, sem dúvida, mais imponente, e ser

responsável por ter instaurado na cidade intensas sociabilidades em suas áreas adjacentes, foi

a Estrada de Ferro Leopoldina que mais fortemente impregnou a memória coletiva local, isso

porque, devido à sua oficina de manutenção e restauro, empregou parte significativa de

trabalhadores da cidade ao longo de um século de existência, contribuindo para que se

desenvolvesse no lugar uma peculiar cultura de ofício, reapropriada no âmbito da cidade

como uma cultura ferroviária.

Como dito anteriormente, a estrada de ferro Leopoldina surgiu devido ao patrocínio

de cafeicultores da região com o intuito de facilitar o transporte do produto para os portos

para exportação. Todavia, compromissos firmados e o desfavorável valor do produto no

mercado internacional acarretaram dificuldades financeiras que, em pouco tempo, a levaram

à falência. Em 1897 foi organizada em Londres a The Leopoldina Railway Company, que

começou a funcionar no Brasil no ano seguinte, chamando para si os bens e

empreendimentos da antiga Estrada de Ferro Leopoldina. Obteve ajuda do governo brasileiro

para saldar os déficits existentes e iniciou um período de remodelação de linhas, bem como

reorganização de serviços e instalações.

A administração inglesa da Leopoldina firmou-se até meados do século XX, quando,

a partir de então, criou-se RFFSA, passando para a administração brasileira estatal. Como

observa Furtado (2009), foi o período de domínio inglês que mais marcou o imaginário

coletivo, não apenas dos trabalhadores, mas de toda a comunidade, ao ponto de se cunhar na

cidade a expressão “nos tempos dos ingleses”. A forte impregnação do “tempo dos ingleses”

no imaginário local deve-se a uma série de fatores, mas, entre outras, porque se trata de um

período de expansão e crescimento da ferrovia, fazendo com que a oficina local de

manutenção funcionasse “a todo vapor”. Ademais, após o período de estatização, deu-se

início à desativação de ramais, marcando, a partir de então, os sinais da decadência. Como

observa Furtado (2009):

18 Entrevista realizada em Janeiro de 2010

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[...] o momento áureo de expansão e crescimento, de intenso tráfego quando a Oficina funcionava a todo vapor, coincidia com a presença do elemento europeu na cidade, por isso tendem a ser valorizados. A memória dessas pessoas foi buscar no elemento exótico, estranho ao local, a identificação com todo aquele progresso que vivia. Por outro lado, foi com a estatização que se iniciou o processo de desativação de ramais, sintoma da decadência, não só da ferrovia como também das cidades do Brasil Arcaico (FURTADO, 2009, p. 54).

A incorporação desse imaginário se dá, todavia, marcado por contradições. Tratava-se

da disciplina a regra básica de comportamento. Uma série de normas, hierarquias e códigos

demandavam uma conduta exemplar do trabalhador. As condições de trabalho, não obstante,

mostravam-se difíceis, situação agravada pelo recebimento de baixos salários. O par de

ambivalências que retrata o período inglês serve, ainda, para a manutenção de seu locus

mitificado no imaginário local. De acordo com Furtado (2009) “paga pouco mas ajuda,

austero mas honesto, cordial mas distante, e é justamente esse jogo de contraste que [criava] a

onipotência do cargo” (FURTADO, 2009, p. 76).

Entre os ferroviários aposentados entrevistados, poucos foram os que trabalharam

para a administração inglesa, mas todos guardam memória desse tempo, pois trata-se de um

conteúdo mnésico adquirido por tabela, pois certamente houveram pais e familiares que se

dedicaram à ferrovia no período. Quando questionados sobre a época na qual reconhecem o

período mais forte da ferrovia na cidade, é quase unanimidade a resposta que remete ao

tempo dos ingleses. As difíceis condições de trabalho eram amenizadas pelos atributos de

correção e respeito atribuídos aos ingleses. É o que demonstra a fala de José Heitor Silva:

Na época dos ingleses não havia essa coisa de desrespeito. Eles eram muito pontuais, com relação ordenado, não era muito, mas não faltava. Tinha uma coisa assim de disciplina, primava muito pela disciplina. Eu acredito que antes da encampação, depois a coisa degringolou. Acredito que foi naquela época. Aquela época sinceramente ganhava menos, mas a organização era outra. (JOSÉ HEITOR SILVA 19).

Como mostra Furtado (2009), a administração inglesa se mostrava paternalista,

exigente e autoritária e desejava trabalhadores que aceitassem de forma passiva e obediente

as regras por ela impostas. Para isso, investia na qualificação dos trabalhadores que começava

muitas vezes na infância, através do estudo concedido aos filhos dos empregados da ferrovia

por meio do Liceu Operário, escola de ensino fundamental construída e mantida pela

administração inglesa. Ao final de cada ano, e tendo concluído o primário, os melhores

19 Entrevista realizada em Agosto de 2009.

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alunos eram então recrutados para trabalharem na oficina. Em seu livro de memórias,

Joaquim Moreira Junior relata essa momento da passagem de melhor aluno do Liceu para

funcionário aprendiz do escritório da oficina, onde lá aprendeu o ofício e os códigos de

postura de um trabalhador sob os moldes ingleses:

Como filho mais velho, fui o primeiro a ingressar na Leopoldina. Antes cursei o primário no Liceu mantido pela estrada. Exatamente no dia 30 de novembro de 1927, ano em que meu pai se aposentou, recebi das mãos do diretor regional, Sr Louis Bernard Clarkson, além do diploma de conclusão de curso, que guardo com muita honra, duas surpresas muitos especiais, por ter sido aluno que conquistou o primeiro lugar nos estudos. Lembro-me com nitidez desse dia marcante em minha vida, quando tinha apenas 13 anos de idade. Tão logo o Sr. Clarkson entrou pela porta principal do Liceu, Dona Augusta Gama, diretora da escola, acionou a convencional campainha e nos pusemos perfilados, até que o visitante fosse conduzido à sua mesa. Após a ligeira conversação com o Sr. Clarkson, Dona Augusta, dirigindo-se a nós, disse que o diretor da ferrovia desejava conhecer de perto o progresso do ensino ministrado pelo Liceu. E era bem justificado o interesse, pois a Companhia investia uma boa soma de dinheiro com a manutenção dos cursos e custeio dos vencimentos do corpo docente daquele estabelecimento de ensino, não só em Além Paraíba, mas em outros núcleos de grande atividade da ferrovia [...] Essas escolas funcionavam como um pesqueiro carinhosamente cultivado pela administração inglesa, através do qual os menores, entre 12 a 14 anos de idade, ao concluírem o curso primário, era admitidos na oficina para aprender um ofício, de acordo com o grau de especialidade conquistado no Liceu [...] (MOREIRA JUNIOR, 2002).

Tratava-se de um período no qual vigia difíceis condições de trabalho, ausentes de

regime trabalhista pautado pelos direitos sociais. As regras e direitos eram estabelecidos de

forma consuetudinária, neutralizando, dessa forma, as insatisfações catalisadoras dos levantes

coletivos. Assim, estabelecia relações de trabalho nas quais prevaleciam para o empregador

cobrança de disciplina, empenho, obediência e bom desempenho, enquanto, para o

trabalhador, representa melhores condições de vida a partir do salário, que embora pouco, era

certo. Essa ambivalência entre difíceis condições de trabalho e baixos salários, com

atribuições de dignidade e respeito permeiam os depoimentos sobre o período de

administração inglesa.

O inglês, na minha opinião, como patrão compreendeu? Quer dizer, o salário era como se diz, era pequeno, mas isso é da época, mas a pontualidade do inglês era impecável, compreendeu? Quer dizer, você tinha hora pra chegar no serviço, se você atrasasse um minuto você não entrava pra trabalhar, mas o seu direito era respeitado, o pagamento, sua promoção, quer dizer, não precisava de padrinho não, entendeu? Não tinha proteção não, o seu direito era respeitado, de forma que eu trabalhei com Mister Torton, depois Mister Stocks. Aliás, por sinal, sujeito muito elegante no trato, compreendeu? Agora, muita disciplina. Disciplina impecável (Ivanoê Vasconcelos Barbosa apud FURTADO, 2009, p. 76). Na Leopoldina a gente ganhava pouco né, a política ali é... Se bem que o operário da Leopoldina, mesmo ganhado pouco, ainda era o melhor salário de operário aqui.

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Da Leopoldina, era melhor, operário da Leopoldina oficial, artífice né, ferreiro e tal... Era cotado, mas vivia todo mundo na miséria. Mas era o melhor emprego, porque o outros, da fábrica de tecidos, era pior né. (Luiz Pinto Cunha apud FURTADO, 2009, p. 108).

O desenvolvimento gradual de melhores condições de trabalho é observado na fala de

Jóse Heitor Silva, que depõe sobre o período no qual o pai trabalhava nos finais de semana e

sem equipamentos de proteção, e o seu momento na ferrovia, quando reconhece as melhorias

e conquistas nas condições de trabalho. Tratava-se de um momento de constituição dos

direitos sociais, e da criação dos sindicatos, a partir do qual os trabalhadores adquiriram

instrumentos de reivindicação política e social.

Que eu me lembre foi na época dos meus pais, eu ainda não era ferroviário, mas eu sentia, meu pai reclamava da dificuldade toda “ - ah meu filho, você deve estudar, espero que você fique firme, um dia você vai conseguir suas coisas, eu continuo empregado da Leopoldina, dali que eu sustento minha família, mas um dia vai melhorar”. E eu me lembro do tamanco, eles saiam daqui de tamanco da rua Sete de Maio, e aquele ritmo de tamancos batendo pelas ruas quando eles saiam para almoçar na hora do almoço ou indo pra casa, era aquela barulhera toda. Depois então eu vi meu pai calçado de botina, depois eu me vi lá dentro com proteção na minha cabeça, e eu falei comigo: “-ter fé de que um dia as coisas iam melhorar”. Então na minha época do avanço da Leopoldina aí, quando as coisas começaram a melhorar, porque eles trabalhavam domingo também, meu pai trabalhava domingo. Eu trabalhava, eu trabalhei de sábado. Semana inglesa uma coisa assim, trabalhava sábado até meio dia. Depois passou a não trabalhar sábado, trabalhava até cinco horas. E depois então, aos domingos, reunido com a família. Houve um tempo de mudança ali dentro que eu vi que houve um progresso, uma mudança: eu vi muitas coisas na época dos meus pais, e depois eu vi eu mesmo não trabalhando mais sábado nem trabalhando domingo. Eu vi que houve mesmo um crescimento (JOSÉ HEITOR SILVA20).

Embora a encampação da ferrovia pela RFFSA tenha representado melhoria das

condições de trabalho, muitas vezes ela não foi percebida de forma positiva pelos

trabalhadores, isso porque, nesse processo, se viram infringidos os códigos e as noções de

ordem e de direito que eram compartilhadas pelos próprios trabalhadores em consonância

com os administradores ingleses. Essa quebra de posturas foi percebida, entre outras, no

sistema de ascensão profissional, uma vez que no período inglês se tinha, como critério

adicionado ao empenho, competência e dedicação, a antiguidade do trabalhador no cargo-

nível que se encontrava na empresa. Como se tratava de um emprego vitalício, a antiguidade

tinha grande peso no julgamento da coletividade, pois “a temporalidade como critério de

promoção ganha força em contexto de trabalho estável onde o trabalhador permanece por

longo tempo, senão por toda a vida” (FURTADO, 2009, p. 79). Com a administração

20 Entrevista realizada em Agosto de 2009.

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brasileira, esses códigos consuetudinários foram interrompidos, sendo substituídos, muitas

vezes, por critérios políticos e clientelistas. A insatisfação dos trabalhadores diante dessa

transição administrativa obteve ponto de saturação nas entrevistas realizadas, como pode ser

observado nos trechos citados abaixo:

Eu acho que baqueou, baqueou muito. Eu senti aquilo. Começou a atrasar pagamento, aquela coisa com a política, política muito forte acontecendo, antes tinha aquele respeito (JOSÉ HEITOR SILVA21).

A primeira coisa que mudou muito era a maneira de conduzir o trabalho dentro da Leopoldina, porque o inglês mandava de uma forma ordenada, ele sabia de dentro do escritório sentado, um pedaço de ferro que tinha dado sucata, ele sabia um torno que não estava trabalhando lá na tornearia, se faltasse tinta ele sabia sentado lá dentro do escritório, porque tinha tudo controlado. [...] Era organizado, muito mais organizado pra mandar do que a gente. Depois que veio só o brasileiro mandando começou as mordomias, o sujeito ficava a toa e não mandava embora porque não fazia nada, e no tempo do inglês mandava embora porque não tinha quem favorecia, depois começou a vir as leis, até surgir o sindicato ( IVANIR DE SOUZA BASTOS22). Ah, na mão do inglês ela foi extraordinária, sem querer desmerecer o brasileiro, mas aí começou a bagunçar tudo. Na mão do inglês ela foi formidável [...] depois que passou para a mão do brasileiro, ela foi alterando, porque começou uma politicagem tremenda, compreendeu? O que serve de proteção hoje aí, não tinha proteção pra ninguém, ele tinha respeito pelo indivíduo e depois acabou, na mão do brasileiro a coisa não funcionou mais (IVANOÊ VASCONCELOS BARBOSA23).

Entre as boas lembranças recordadas do tempo dos ingleses, ganham proeminência os

mantimentos adquiridos através do armazém de abastecimento criado durante essa

administração, através do qual os operários compravam os gêneros alimentícios a preço justo,

que era diretamente descontado na folha de pagamento. O tempo de dificuldades, dado o

parco soldo mensal, complicado pelas difíceis condições de trabalho, era amenizado pela

delícia dos pequenos prazeres, momentos através dos quais a felicidade e o gozo da vida

adquirem universalidade, a despeito de qualquer contradição de classe. É o que demonstra as

lembranças de Ivanir de Souza Bastos e José Heitor Silva, memória evocada pelos sabores:

A única coisa boa que o ferroviário tinha era um armazém de abastecimento, que quando a gente comprava descontava na folha de pagamento, já vinha descontado. Tinha carne seca da melhor, tinha bacalhau do melhor, tinha tudo do melhor. [...] O ferroviário naquela época comia bacalhau do bom, que hoje você encontra por oitenta conto o quilo por aí, carne seca chapeada do Rio Grande do Sul, da melhor qualidade, eu lembro do biscoito, manteiga borboleta de Carangola, enfim, o ferroviário comia muito bem, mas, geralmente ele não podia fazer muita coisa porque o salário era pequeno. Se ele comprasse muita coisa no armazém,

21 Entrevista realizada em Agosto de 2009. 22 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 23 Entrevista realizada em Agosto de 2009.

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descontava no pagamento e não recebia pra pagar aluguel, pra comprar remédio, pra pagar as coisas precisas (IVANIR DE SOUZA BASTOS24).

Mas uma coisa que eu vibrava, nós comprávamos através do armazém da Leopoldina, e o armazém descontava em folha. Eu peguei o armazém. O nome do carroceiro mais famoso tinha o nome de Cristo. Pai do Juju. Quando as compras chegava.... quando vinha as compras na carroça do seu Cristo, era uma alegria lá em casa. Uma alegria porque hoje em dia eu não vejo mais um bacalhau naquela grossura. Bacalhau, lata de leite moça, eu mesmo escondia debaixo da cama, eu lembro desse tempo, tempo gostoso, de ilusão, mas não era um tempo assim prejudicial como hoje que você vê acontecer cada coisa horrível. Naquele tempo não tinha dinheiro, mas tinha assim a fartura. Quando chegava as compras dos ferroviários, sacos de feijão, tinha doce quatro em um, uma lata de doce tinha quase 60 cm, cada quarto daquele era um doce, goiabada, pessegada, marmelada, e bananada. O bacalhau eu não esqueço até hoje. Então é coisa que eu não consigo esquecer daquele tempo (JOSÉ HEITOR SILVA25).

A memória tende a enaltecer o passado na medida em que, na própria existência

individual, o campo de experiências adquire maior força e extensão que as possibilidades da

vida presente e perspectivas de vida futura (Será isso envelhecer?). Mas embora apareça essa

ambivalência no enaltecimento do “tempo dos ingleses”, é correto afirmar que se tratou, na

história ferroviária brasileira, de um período forte de exploração do trabalho, com ausência de

garantias e direitos sociais. É por isso que, ao contrário do que goza uma historiografia

enaltecedora, nunca houve na história ferroviária o chamado período áureo, pois este também

coincide com o momento de grande exploração do trabalho e baixíssimas remunerações. A

melhoria das condições de vida e trabalho veio com a consolidação dos direitos trabalhistas, e

como dissemos, pela manifestação e reivindicação dos próprios trabalhadores provenientes

das lutas sindicais. O processo de conquista de direitos é descrito por Ivanir de Souza Bastos,

forte líder sindical no período.

A vida aqui, olha eu vou te falar uma coisa, o ferroviário aqui passou muito aperto, obrigado a trabalhar de tamanco, necessidade, porque o ferroviário recebendo o pagamento normal passava necessidade. [...] Na época do inglês, trabalhava muito e ganhava muito pouco. Depois que melhorou, depois que acabou o inglês aí veio o sindicato dos ferroviários da Leopoldina, aí nós começamos a lutar pra melhores dias de vida dentro da ferrovia. Aumento de salário, não trabalhar mais domingo, trabalhava sábado e domingo. Depois veio a semana inglesa, depois nós conseguimos não trabalhar no sábado mais, não ganhava, mas não trabalhava mais no sábado, depois remunerado, tivemos direito a atestado médico porque não tinha direito a atestado médico, mesmo se levasse atestado pagava metade do seu salário. E por aí afora, então o sindicato deu ao ferroviário melhores dias de vida, melhor salário, porque com melhor salário você tem melhores dias de vida, deu ao operário repouso remunerado, sábado integral pra ficar em casa sábado e domingo, fazer hora extra e receber porque se fazia e não recebia, quando precisava você fazia e não ganhava. Os direitos que o ferroviário tinha de licença prêmio, nós

24 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 25 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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demos isso aos ferroviários, modéstia a parte eu falo nós demos porque eu fiz parte do sindicato e eu lutei por isso. Tanto lutei que acabei preso, torturado, execrado de todo jeito, então foi na época do sindicato que o ferroviário melhorou a vida, porque antes a vida do ferroviário era ruim (IVANIR DE SOUZA BASTOS26).

No decorrer do processo de estatização da empresa, ao longo dos anos de 1950 até o

golpe militar de 1964, houve um significativo ganho salarial para os ferroviários, conquista

proveniente, dentre outros, da forte atuação do sindicato da Leopoldina em Além Paraíba, que

era bastante reconhecido por sua força e poder de atuação. Assim, como observa Furtado

(2009), não é coincidência que, desse período, advém o começo de uma quebra de tradição

familiar de trabalho, pois parte significativa dos filhos de ferroviários, ao invés de repetirem a

trajetória dos pais entrando para a ferrovia, fato que se reproduziu por gerações, alçaram

outras trajetórias profissionais através da inserção em cursos de nível superior.

O trabalho na oficina da cidade foi realizado por gerações que, a exemplo dos pais,

repetiam a mesma trajetória profissional. O horizonte de expectativa posto aos homens da

cidade era o de galgarem o mais tradicional e estável emprego da cidade, reproduzindo, desta

forma, o caminho trilhado pelos antepassados. Esse elemento de permanência deposita a

oficina de manutenção e restauro da Leopoldina como um forte lugar na memória social local

e elemento definidor na conformação identitária dos trabalhadores. Construída em finais do

século XIX, a oficina constitui-se por um conjunto de edificações logisticamente elaborado.

Figura 12: Vista aérea do complexo da oficina (aproximadamente 1995). Acervo: José Geraldo Esquerdo Furtado.

26 Entrevista realizada em Janeiro de 2009.

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A oficina da Leopoldina tem um significativo valor para a memória de Além Paraíba,

pois apresenta uma permeabilidade na relação com a cidade, uma vez que, por meio do

emprego de número significativo de trabalhadores, influenciou de forma indireta a muitas

famílias, trazendo, para o núcleo familiar, e por extensão para toda a cidade, costumes e

práticas que caracterizam uma específica cultura ferroviária local.

A iniciação no trabalho ferroviário se dava, muitas vezes, ainda na infância, quando as

crianças e filhos de ferroviários tinham, como primeira atribuição dentro do ofício, entregar

diariamente as marmitas para os ferroviários que trabalhavam na oficina. Foi através dessa

atividade rotineira que muitos foram percebendo e se estreitando com o universo ferroviário

da cidade, que, no ambiente circunscrito da oficina, se mostrava muito mais complexo e

fascinante do que a presença exterior da ferrovia compondo a paisagem urbana. Entregando

diariamente as marmitas, essas crianças iam se apropriando desse universo, incorporando

seus códigos e, com eles, projetando as próprias expectativas de vida. É o que evidencia o

texto memorialístico de Cleber Dias Dutra.

Tornei-me ferroviário na década de 1940, quando entrei pela primeira vez nas oficinas de Porto Novo. Sentei-me confortavelmente no interior de uma velha caldeira de locomotiva a vapor e devorei um delicioso almoço: quiabo com angu e feijão com arroz, dentro de uma latinha. Naquele enorme pátio e adjacências, centenas de empregados da The Leopoldina Railway Company também almoçavam. Ao meu lado, repousava pequena cesta, vazia, e uma rodilha, que a minha mãe fez para proteger minha cabeça. Daí a pouco, eu recolhia na cesta as marmitas de alguns daqueles homens, que confiavam no meu trabalho, e pegaria o caminho de volta. No dia seguinte, às 11 hs, eu estaria novamente naquele pátio com a cesta recheada de marmitas ainda quentes. [...] Aquele contato com os funcionários e as coisas de uma ferrovia, que eu começava a admirar com os olhos esbugalhados, acendeu em mim uma incontida paixão pela estrada de ferro. O fato de abrigar-me no interior da carcaça de uma locomotiva – o pequeno espaço parecia um cômodo para meditações – representou para mim, um garoto de 10 anos, uma verdadeira iniciação ferroviária. Até esse momento, eu só conhecia as máquinas, puxando vagões, apitando pela cidade e parando na movimentada estação de Porto Novo. Mas ao desfrutar o inexprimível prazer de entrar na casa do trem e de laborar com os que ali estavam, fez-me sentir um trabalhador também, investido na função de ferroviário (ferroviário marmiteiro, naquele momento)... para sempre!... (DUTRA, 2006).

No universo da cidade, entrar para a ferrovia como aprendiz significava, para os

jovens, uma melhoria em relação às condições de origem ou a manutenção da condição

herdada do pai. “A segurança e a estabilidade oferecidas pela empresa, somada à rede de

relações familiares, constituíam amarras seguras garantidas ao local de origem” (FURTADO,

2009, p. 84). Assim, os jovens investiam na formação da carreira, através do SENAI, e

aguardavam ansiosamente a chamada da empresa. A projeção da perspectiva profissional

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referenciada pelo ofício de antecessores, era, ainda, aumentado pela prioridade dada aos

filhos de operários para a entrada na empresa. A reprodução da força de trabalho justifica-se,

entre outros, pela formação de um habitus que era absorvido no âmbito familiar e social da

cidade. Através da incorporação subjetiva das condições objetivas de vida, – manifesta em

sonhos e perspectivas de vida – reproduzia-se a força de trabalho. Assim, os sonhos iam até

onde a vista alcançava, ou seja, permanecer na cidade e seguir a trajetória apreendida,

referenciada pelo exemplo dos antepassados. Desta forma, a inserção na categoria se dava

como herança, pois, além da incorporação do habitus, o parentesco era forte critério para a

entrada na oficina. O “horizonte de expectativas” tinha por referência a formação básica para

empreender-se como trabalhador ferroviário. A permanência e estabilidade da profissão no

âmbito da cidade e nas trajetórias familiares levavam a atribuir ao trabalho uma perspectiva

de eterna duração. É o que demonstra as palavras de José Geraldo Furtado:

Quando entrei na oficina não imaginava a possibilidade de um dia ela ser fechada ou sequer mudar de emprego. A mentalidade que o espaço social transmitia, não somente a mim, mas a todos que ali atuavam, era de eterna permanência, estabilidade e segurança. Afinal, quantos de gerações anteriores construíram suas vidas e famílias em torno da oficina? O exemplo estava ali, não era necessário olhar para o futuro porque ele já estava traçado, ou melhor, estava antecipado pela presença do passado (FURTADO, 2009, p. 18).

O desejo de torna-se ferroviário, além da influência familiar, era aumentado por ser

esse o trabalho de maior remuneração e status na cidade. Com a estatização da ferrovia, o

trabalhador adquiriu melhores condições de vida. Isso o transformava em foco de interesse

não apenas para as moças casadoiras da cidade, mas também para os comerciantes que os

enxergavam como crédito seguro. O crédito de que o ferroviário gozava na cidade pode ser

lido no depoimento abaixo:

A Leopoldina que injetava grana de respeito aqui. Fim de mês todos batiam palmas pra gente, as lojas, o comércio. Os comerciantes mandavam levar quando chegava televisão, geladeira assim, mandava levar, na confiança e tudo, depois a gente acerta... na confiança entendeu. Eu até escrevi um versinho sobre o aval que elas davam ao ferroviário quando precisavam fazer uma compra e tal. Eu me lembro que fim de ano a gente recebia aquela grana alta, pagamento de mês, décimo terceiro, férias, o pagamento normal, a cidade toda ficava em reboliço, todos batiam palma pra gente (JOSÉ HEITOR SILVA27).

A estabilidade da profissão e do local de trabalho contribuíam para a consolidação de

uma memória e identidade referenciada no ofício, levando à conformação do que representou

27 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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uma “cultura de ofício” local. De acordo com Furtado (2009), “a prática do oficio acaba por

gerar a cultura do ofício. É através dela que o operário busca sua representação social,

constrói seus símbolos e signos e se expressa culturalmente” (FURTADO, 2009, p. 90).

Referenciado desde a juventude pelo reflexo da trajetória familiar, e com a aquisição de

conhecimentos práticos para a atividade laboral, o ofício tornava-se elemento essencial na

identidade dos trabalhadores. Permeando a vida social da cidade, estes atores contribuíam

para que seu ethos conformasse na cidade uma cultura ferroviária específica. De acordo com

Furtado (2009), a longa duração do universo material, de práticas e valores que caracterizou

o ambiente da oficina, contribuiu para que se mantivesse na cidade essa cultura de ofício,

ainda constituinte da identidade dos ferroviários atualmente inativos.

Partindo do pressuposto de que o espaço e o grupo estudado são de longa duração e a permanência do espaço contribui para a persistência de determinadas práticas de oficio que mantiveram consigo valores de longa duração. Como não houve mudança substancial do aparato produtivo da oficina – máquinas, ferramentas e equipamentos – não houve também na forma de produção, o que implica na persistência de uma determinada cultura de oficio. Dito de outra forma, a oficina mudou sua gestão, de uma empresa de capital privado para uma estatal mudando, consequentemente, sua administração; a era do vapor deu lugar à eletricidade, substituiu-se a reforma de locomotivas a vapor e vagões de madeira por modernos vagões de aço, mas não houve mudança no maquinário nem na metodologia do trabalho, fazendo com que os mesmos valores fossem perpetuados, a herança cultural profissional ficou amarrada à herança material (FURTADO, 2009, p. 70).

Como foi dito anteriormente, não se concebia no imaginário local a perspectiva de

que a ferrovia, o ofício e a oficina um dia entrassem em declínio, pois estavam fortemente

consolidados na cidade e na memória e identidade de seus habitantes. A estatização da

Leopoldina, concluída em 1957 com a criação da Rede Ferroviária Federal, implicou em

algumas mudanças nas relações de trabalho, e também significou a desativação de alguns

ramais, devido, sobretudo, à reformulação imposta pela nova administração. Mas esses sinais

não foram absorvidos como indícios de transformações estruturais, pois, de certa forma, no

âmbito circunscrito do local de trabalho, não houve alterações significativas na rotina.

Quando questionados sobre quando e como sentiram os sinais de decadência da

ferrovia, todos os trabalhadores com os quais conversamos são crucias em sinalizarem o

começo imediato da decadência da ferrovia com a irrupção do golpe militar de 1964,

localmente designado como a “revolução”. Novamente, obteve-se ponto de saturação nessas

respostas, pois se pode considerar unanimidade de respostas “coincidentes” sobre esta parte

dos depoimentos. Além do fechamento imediato das linhas e ramais, a cassação ao sindicato

dos ferroviários, com a perseguição de seus principais representantes, evidenciou, de um

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instante para o outro, a crise que se instaurava no sistema de transporte ferroviário. O golpe

de 1964 é atribuído como o precursor da crise que, a partir de então, prosseguiria nas

próximas décadas, levando ao abandono total das ferrovias brasileiras. A interpretação do

golpe de 1964 como responsável imediato pela decadência da ferrovia é evidenciado nos

depoimentos abaixo:

A decadência da ferrovia foi depois de sessenta e quatro, depois desse crime todo na América Latina toda, Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, aquela desgraça toda que houve [...] Então a ferrovia começou a entrar em decadência, tanto é que com uma semana que tinha estourado a revolução, o ramal de Friburgo foi desativado, grosseiramente os trilhos foram arrancados e jogados de lado. Tem trilho até hoje que tá lá no meio do mato, cheio de mato por cima, ficou máquina com oito, dez vagões de ferro, desses que passam carregando minério, ficou máquina a diesel, nessa época já era máquina a diesel jogada na estrada ferroviária, no leito ferroviário jogada. Tinha madeira já grossa, tudo jogado, acabou tudo (IVANIR DE SOUZA BASTOS28). Foi a revolução, com a revolução de sessenta e quatro que começou a decadência da rede. Aí que foi a decadência, porque fazia muita guerra e a gente fazia muita força, e nós éramos mal quistos, nós éramos mal olhados. [...] Por causa do sindicato, porque o sindicato tinha muita força mesmo, fazia greve, parava mesmo, parava até fábrica (JUAREZ RIBEIRO GONÇALVEZ29).

Na interpretação dos depoentes, a perseguição ao sindicato e seus principais líderes

foi também um dos sinais que tornou inteligível e colaborou para a decadência da ferrovia,

pois, através dessa ação, os militares acabaram com o principal instrumento de luta e

reivindicação da categoria. Através do sindicato, os ferroviários conquistaram muitos

benefícios que amenizaram a rotina de trabalho e adquiriram maiores salários, permitindo

melhores condições de vida. O enfraquecimento do sindicato e de seu poder de luta é também

interpretado com fator influente para a decadência da ferrovia, pois, sem ele, os trabalhadores

não puderam fazer frente à desestruturação do trabalho e da categoria. A força do sindicato

dos ferroviários da Leopoldina de Além Paraíba, responsável por grandes mobilizações, foi

arruinada pela cassação sindical e perseguição de seus líderes. O poder do sindicato e sua

desmobilização a partir do golpe militar são expressos nos depoimentos abaixo:

O sindicato de Além Paraíba tinha força no Brasil inteiro, e foi um dos mais perseguidos. O símbolo do sindicalismo aqui na nossa oficina é o sino que tá lá no nosso museu. O sindicato era o sino. O apito era usado pra chamar o pessoal pra vir trabalhar de manhã cedo, pra almoçar, etc... Mas quando era greve era o sino. Batia o sino. Tinha um apito a vapor que apitava quando era quinze pra sete, sete horas, quinze pra meio dia, meio dia e quatro e meia. Mas quando o pessoal queria fazer greve e tinha qualquer distúrbio dentro da oficina, o pessoal batia o sino e a

28 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 29 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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oficina toda tava reunida lá na porta do escritório. Eu acho que o que acabou mais com a ferrovia foi justamente o sindicato, apesar de que era muito autoritarismo também.... (JOSÉ CARLOS FARIAS30).

Fui do conselho diretor do sindicato dos ferroviários, que era um sindicato que parava em Brasília. Por quê que nós parávamos em Brasília? Porque a gente fazia greve, a gente tinha um pacto de unidade e ação que se chamava PUA ( Pacto de Unidade e Ação), tanto os ferroviários, os marítimos e os portuários, todo mundo parava e os outros ficavam de sobreaviso, se precisasse parava os outros. Parava a ferrovia, o portuário e o marítimo parava o Brasil, você me entendeu, parava o Brasil. Então a raiva que eles tinham era disso, da organização sindical que o operário conseguiu, o sindicato de Leopoldina chegou a ser temido no Brasil, a raiva deles era essa. [...] então por aí você via que a ferrovia fazia isso aí, a ferrovia participou disso tudo, mais eles sabiam onde que tava o miolo do negócio, foram lá e prenderam, mataram o miolo, tiraram o miolo fora e os ferroviários não levantaram a cabeça mais, até acabar nessa depredação que tá aí. [...] Começou a vir a decadência foi de cara, estourou a revolução e começou a decadência ferroviária, porque eles começaram primeiro prendendo os líderes sindicais, prendendo quem era favorável ao sindicato, mesmo que não fosse líder sindical prendia o camarada que ajudava e que fazia tudo. Prendia, torturava, matava, então todo mundo ficou com medo de ser um líder sindical no futuro e não teve mais como apelar, mas a decadência começou, a ferrovia começou a mandar embora, mandar embora, mandar embora, até ficar esse mundo de ferro velho aí que não vale nada e atravancando a cidade (IVANIR DE SOUZA BASTOS31).

A decadência da ferrovia também se fazia sentir nas rotinas de trabalho. Conforme os

depoimentos dos trabalhadores da época, diminuiu-se significamente a produção da oficina, o

armazém de abastecimento foi fechado e não foi havendo substitutos para os trabalhadores

que foram se aposentando. A oficina, que no período de auge chegou a empregar cerca de mil

funcionários, segundo informações orais, teve, nas décadas posteriores ao golpe, sua mão de

obra reduzida para cerca de 100 funcionários. Assim, a decadência se fez sentir nas

atividades diárias, como retrata os depoimentos abaixo.

Diminuiu a produção da oficina. Do tempo que eu peguei, nós aprontávamos cerca de 50 vagões todo mês, entrava em circulação, grande parte eram novos, outros reformados, nós colocávamos oito locomotivas todo mês, pronta pra circular, chamada maria fumaça, e a partir de certo momento, 1970 por aí, no período da revolução, essa produção foi diminuindo. Depois foram introduzidos os carros metálicos, a oficina foi adaptada para carros metálicos, vagões, carros de passageiros, mas num foi uma produção assim intensiva. Como não havia aquela programação ferroviária, a impressão que dava que era pra privilegiar as fábricas de automóveis, caminhão. Essas tiveram um ritmo alucinante. O crescimento deles é em oposição ao decrescimento da ferrovia (CLEBER DIAS DUTRA32). No começo [armazém abastecimento] saia à vontade, e depois começaram racionar os alimentos, aí começou a decadência. Até que fecharam tudo. Foi diminuindo a quantidade de mercadoria que chegava pra abastecer o pessoal, entendeu? E terminou em 1970. Em 1970 terminou. Chegaram lá, fecharam armazém, primeiro juntaram toda a documentação que tinha, enfiaram num saco lá, (...) o encarregado

30 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 31 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 32 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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lá, o rapaz que era encarregado, ainda conseguiu tirar algum documento que vinha a facilitar a gente, por exemplo, o ponto de presença, o ponto de serviço[...] (ARMANDO TRANCOSO33). Uma coisa puxa a outra, tá entendendo? Acredito que foi prejudicando de todo modo, e os ferroviários iam também aposentando, e não vinham outros. Antigamente não, sai parente de um aposentado, daí a pouco vinha outro. Então foi saindo, não tinha mais interesse de produção, pra quê trazer a rapaziada do SENAI? Formava tudo e ficava ao léu, quase que eu fiquei ao léu, parece que a minha turma foi uma das ultimas a entrar na Leopoldina, nas oficinas (JOSÉ HEITOR SILVA34).

A indústria automobilística também é vista como responsável pela desarticulação do

transporte ferroviário, pois, à medida que cresciam os investimentos nesse setor de

transportes, mitigavam os investimentos nas ferrovias. As rodovias, construídas em paralelo

ao leito ferroviário, tiravam a preponderância desse meio de transporte no transporte inter-

regional de passageiros, os quais, após pouco tempo, foram erradicados. A perspectiva de

contraste entre os investimentos no transporte rodoviário e ferroviário encontra-se presente

na fala de José Carlos Farias:

O problema é que depois que começou carro a correr (indústria automobilística), o tráfego de trens diminuiu muito, e da década de 60 pra cá, da época da revolução pra cá, houve uma queda maior ainda porque os militares tavam afim mesmo de acabar com a ferrovia. Aí vieram fábricas de caminhões, etc, e a ferrovia acabou caindo mais ainda. Aí quando eu entrei tinha 200 funcionários, quando eu aposentei tinha 120. Então você vê como caiu. E foi dado incentivo à demissão, porque ia privatizar, aí acabou mesmo. Aí empresa tinha que manter esse percentual 10 anos depois da privatização, quando passou os 10 anos dela privatizada, aí mandou todo mundo embora. Hoje tem praticamente uma meia dúzia, o pessoal que trabalha na oficina tem uma meia dúzia só (JOSÉ CARLOS FARIAS35).

As viagens de ônibus eram realizadas em menor tempo do que pela ferrovia, sendo,

por esse motivo, mais confortáveis, não obstante mais caras. Apesar das facilidades postas

pelas viagens de ônibus, elas deixavam a dever os encantos proporcionados pelo transporte

ferroviário, inscritos numa temporalidade em que a paisagem em movimento podia ser

absorvida pela janela do trem. A comparação entre as duas viagens está presente na fala de

Ivanir de Souza Bastos:

Era praticamente o meio de transporte mais barato, custava um pouco pra chegar, mas era mais barato e seguro, porque o ônibus, além de ser caro, não era aquela viagem bonita. Uma viagem de trem a família ia com dois, três filhos, botava as crianças na janela pra ver os bois no pasto, ver cavalo, ver roça, era outro tipo de

33 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 34 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 35 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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viagem. O ônibus é correndo, melhor, mais rápido, mais limpo, mas os trens tinham lavatórios, tinham banheiro, inclusive o noturno tinha. Tinha os quartos dormitório, você comprava a passagem com quarto dormitório, você chegava lá colocava a passagem em uma porta pequenininha e aquela cabine ali era sua, abria deitava e aí dormir.

Hoje pra você ir ao Rio de Janeiro, sai daqui de Porto Novo e em uma hora e meia você tá no Rio de Janeiro. Com o trem você saía, por exemplo, do Rio de Janeiro às seis horas da manhã e chegava às duas horas da tarde. Era bastante tempo rodando, mas era linda a viagem, era bastante tempo, mas era uma viagem bonita. Era cansativa, mas podia andar de um vagão no outro, ir ao banheiro, no lavatório lavar o rosto, lavar as mãos, chegar e ficar na janela do trem, viajar na plataforma pra ver as belezas que estavam passando lá. Uma família comprava, por exemplo, duas poltronas, duas lá e duas aqui, as poltronas viravam uma de frente pra outra, era uma poltrona atrás da outra, mas quando você queria, virava e viajava de frente pra família. Você podia levar cobertor, colocava o pé pra lá, o pé pra cá, cansei de ver gente com colchonete ..., colchonete não tinha naquela época, gente com manta enrolada dormindo em cima de carga de passageiro. Então, era cansativa a viagem, mais demorada, mais que era mais gostoso era (IVANIR DE SOUZA BASTOS36).

Figura 13: O transporte inter-regional de passageiros sendo substituídos pelas viagens de ônibus. [s/d]. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

36 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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A partir do golpe militar de 1964, a trajetória da ferrovia foi vista como um processo

inexorável de abandono e destruição. Daí por diante, as notícias que se tinham era a do

encerramento do transporte de passageiros, ferroviários se aposentando e não havendo

entrada de novos funcionários, erradicação de linhas e ramais. A “revolução” de 1964 é

entendida pelos locais como o movimento precursor da decadência ferroviária, sendo

percebido, a partir de então, o continuo processo de decadência, até se chegar ao quadro que

se encontra na atualidade: um vastíssimo e riquíssimo patrimônio abandonado que vem

ruindo a cada dia, não apenas na cidade de Além Paraíba, mas também em todo o Brasil. É

importante reconhecer que não me debrucei sobre o processo continuo de decadência e

desinvestimento que levou à privatização e liquidação da Rede Ferroviária Federal no

contexto da micro-história local. Preocupada em apreender como os sujeitos locais

significaram a própria história social, acabei por focar os marcos que foram criados pelos

próprios trabalhadores para inteligibilidade da própria história, mas que, não obstante,

mostram-se também coincidentes com os marcos estabelecidos pela historiografia sobre o

tema. Como tivemos a possibilidade de mostrar, a história de Além Paraíba encontra-se

profundamente referenciada pela ferrovia, tanto no que concerne à composição da paisagem

urbana, com a presença marcante da arquitetura ferroviária, quanto no que se refere ao forte

conteúdo cultural e sociológico demarcado pela presença secular da ferrovia. Assim, importa

saber como, no presente, esses trabalhadores ressignificam sua história e a própria cidade, já

que os antigos símbolos de status e prosperidade se transmutaram, na atualidade, em sinais

materiais de sua decadência.

4.5 Atualidade e patrimônio ferroviário em Além Paraíba

Em Além Paraíba se localiza um muito significativo remanescente da indústria

ferroviária brasileira. Isso se justifica não apenas por sua relevância histórica, como uma das

primeiras cidades ferroviárias do Brasil, mas também pela arquitetura que ali se encontra

instalada, de grandes dimensões físicas e de beleza estética surpreendente.

Os bens materiais da Estrada de Ferro Central do Brasil e da Estrada de Ferro

Leopoldina compõem a paisagem urbana da cidade de Além Paraíba. Os trilhos cortam o

centro da cidade e são ainda acompanhados pela passagem e barulho dos trens que, em

menor escala, ainda trafegam transportando a bauxita. O status social e econômico

anteriormente aferido à cidade como importante pólo industrial e ferroviário, agora é

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materialmente substituído pelo signo de sua decadência, conferidos pela constante

degradação dos principais emblemas da ferrovia no local. Por esse motivo, consideramos que

a transfiguração dos aspectos materiais dos bens não ocorre sem que deles decorram

movimentos de memória que alterem os valores simbólicos entre as pessoas, o mundo físico

e as visões da história individual e coletiva.

Esta interpretação é corroborada pela análise de Halbwachs (1990), para quem as

imagens habituais do mundo exterior encontram-se no bojo da idéia que os indivíduos e

grupos sociais tecem sobre si mesmos. O espaço ocupado diz de aspectos variados da

estrutura da vida e da sociedade e transformações ocorridas neste quadro promoveriam

alterações de consciência dos grupos, uma vez que os vínculos que os ligariam ao lugar se

tornariam mais claros na iminência de romperem-se (HALBWACHS, 1990, p. 133).

Os bens ferroviários de Além Paraíba encontram-se em contínuo processo de

arruinamento. Estações, rotundas e torreões estão sendo progressivamente degradados,

afetados por ação do tempo e pela falta de atribuições funcionais. Essa evidente degeneração

natural, que confere ao corpo do edifício uma mutabilidade e transformação constante, é vista

como fomento às reelaborações da memória, pois apresentaria em sua própria matéria sua

trajetória histórica temporal. Considera-se, pois, a paisagem degradada como local propício à

rememoração e tessitura de sentidos coletivos, que, por estarem inseridos num processo de

transformação, possibilita jogos dinâmicos de leituras e significações por aqueles que vivem

e compartilham o lugar em sua historicidade.

Figura 14: Imagem do complexo arquitetônico da Estrada de Ferro Central do Brasil em Além Paraíba em arruinamento, 2006. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

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Figura 15: Vista do antigo hotel e restaurante da estação de Porto Novo em arruinamento, 2006. Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba

Figura 16: Imagem do interior da rotunda do complexo da Estrada de Ferro Leopoldina em Além Paraíba.. Foto da autora em agosto de 2009

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Figura 17: Imagem do desabamento do teto da rotunda do complexo da Estrada de Ferro Leopoldina em Além Paraíba.. Foto da autora em agosto de 2009

Em Além Paraíba, o grupo de ferroviários entrevistados vê com descrença o futuro da

cidade. Para muitos deles, a cidade acabou quando acabou a ferrovia. É certo que eles

experimentaram relações sociais e sociabilidades que hoje não mais acontecem e que se trata

de um grupo de meia idade a idosos. Não houve, por parte dessa pesquisa, uma exploração

dos mais jovens com as relações estabelecidas por eles com o patrimônio e com a cidade, o

que poderia nos trazer diferenciadas representações sobre a cidade e o patrimônio local. Não

obstante, para os mais velhos, Além Paraíba se distancia atualmente de uma cidade próspera

e dinâmica, pois, para eles, essas categorias se ligariam, sobretudo, às indústrias e ferrovias

locais atualmente extintas. Quando questionados como é a vida na cidade nos dias de hoje,

são categóricos em afirmar a decadência atual da cidade. É o que demonstra os depoimentos

abaixo:

Para quem conhecia Além Paraíba desde 1940, hoje a cidade acabou [...] quando a estrada de ferro acabou, a cidade acabou (MOACIR TAMARINO37). Hoje aqui tá péssimo, emprego muito difícil, emprego que encontra aqui é loja, sapataria, você deve ter visto lá no Porto, lá em cima, a maioria é loja, não tem indústria, indústria nós temos essa aí que fabrica saquinho de empacotar leite, mas eu não conheço, [...] tem alguma serralheria tem, entendeu, mas é produção pequena. Mas o fato é que a oficina acabou, a cidade acabou também. A vida da

37 Entrevista realizada em 2006 por equipe técnica do Programa Trem de Minas

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cidade era a oficina, nós tínhamos aqui 1500 a 1600 funcionários na oficina aqui. E trabalhava mesmo, entendeu? Produzia, fazíamos tudo, tudo, tudo. A vida da cidade é a ferrovia. Inclusive alguns inda dizem que os aposentados aos poucos tão se acabando, e quando acabar os aposentados da Rede vai piorar mais ainda (ARMANDO TRANCOSO38).

A perda de importância da cidade é refletida na falta de investimento no local e na

fuga de indústrias e empresas para outras localidades. Nesse aspecto, a comparação com

outras cidades aparece de modo recorrente, pois, no passado, Além Paraíba se caracterizava

como uma das mais importantes da região, dado o importante entroncamento ferroviário que

lá se estabelecera e que fizera do local importante pólo industrial regional. Os depoimentos

abaixo enfatizam a perda de importância da cidade em comparação às cidades vizinhas,

assim como a perda de características singulares que identifiquem a cultura local:

Nota que as outras cidades cresceram tirando coisas daqui. O 21º. Batalhão de policia militar era pra ser nosso, e foi pra Ubá. Uma fábrica de máquina de calcular era pra ser instalada em Além Paraíba, e foi para Juiz de Fora, tempos atrás. Íamos conseguir para aqui uma fábrica da Coca-Cola, foi pra outro lugar... (CLEBER DUTRA39). Eu não vejo assim um fator predominante que identifica a cultura de Além Paraíba, porque com a extinção da ferrovia, não houve outra. Igual te falei, as indústrias entraram em decadência também, o comércio aqui não chega a formar uma cultura. Não tem identidade não. O comércio revende produtos de fora... Eu particularmente não vejo nada que identifica nossa cidade (CLEBER DUTRA40).

Os depoimentos ainda identificam a dependência da cidade em relação aos

ferroviários aposentados, pois, através de seus ordenados, eles ainda sustentariam a economia

e o comércio local. Nessa perspectiva, a cidade ainda permaneceria economicamente atrelada

à ferrovia, mesmo que pela presença daqueles trabalhadores atualmente inativos que, outrora,

colaboraram para o crescimento da cidade através de seu trabalho.

Até hoje aqui ainda é chamada a cidade dos ferroviários, né? Porque todo o tempo da ferrovia acabando, mas os ferroviários que sustentam a cidade praticamente. Os aposentados, com o salário, o comércio, impostos da prefeitura etc... Ferroviário aposentado sustenta a economia da cidade principalmente (LESSA JOSÉ DE SOUZA41). Hoje nossa cidade vive ainda em torno de alguns ferroviários, de viúva de ferroviário, de pensionista de ferroviário [...] Então, a cidade vive em cima disso, daqui a uns vinte anos essa faixa de ferroviário e pensionista de ferroviário vai morrer [...]quando morrer acaba esse casamento dos ferroviários com o INPS. E o

38 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 39 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 40 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 41 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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quê que acontece, é o salário melhor que tem na cidade, apesar que tem ferroviário aposentado que ganha pouco, tem pensionista que ganha pouco, mas tem uns que ganham melhor um pouco, e o dinheiro gira na cidade, é o capital de giro da cidade. Então a gente felizmente não vai estar vivo pra ver, por isso que eu tô te falando, mais quem é mais novo vai ver (IVANIR DE SOUZA BASTOS42).

A presença atual da ferrovia na cidade se contrapõe ao formato por ela assumido

antigamente, quando a população enxergava com apreço a dinâmica local por ela instalada.

Através do transporte de passageiros e do funcionamento da oficina de manutenção, a

ferrovia estabelecia vínculos sociais com a cidade, prática atualmente extinta na relação do

trem para transporte de bauxita que trafega no município através da Ferrovia Centro

Atlântica (FCA). Sem guardar nenhuma relação social com a cidade a e população local, o

tráfego do trem atualmente é rejeitado pelos moradores, devido aos problemas que acarreta

no trânsito, além de impactarem os torreões da estação, aumentado e colaborando com o

risco de desabamento. Assim, atualmente o tráfego de trens é visto apenas numa perspectiva

de prejuízo de usurpação do território local. É o que evidencia os depoimentos abaixo:

É um trem pra nós que não tem validade nenhuma. De onde ela vem, ela saí de lá passa direto, sai pra lá e passa direto (ARMANDO TRANCOSO43).

Olha, a FCA ela só explora a cidade, eu não tenho conhecimento se ela dá algum retorno pra cidade, nem geração de emprego. Então ela só usa a cidade, se tem algum retorno eu não tenho conhecimento, posso até estar errado nisso aí (LESSA JOSÉ SOUZA44). A FCA não tá nem aí. Passa na cidade pra lá e pra cá, não deixa ajuda nem nada, não coopera, não paga nada, não tem um tipo assim de um patrocínio, alguma coisa. [...] A cidade cresceu com a ferrovia, mas, meu Deus, vai ficar isso aí eternamente? Porque tá usando nosso solo, a casa é nossa...Tem um prefeito aqui que falou que iria arrancar os trilhos aqui da cidade, mas não aconteceu nada... Tem que arrumar uma saída pra isso, porque saída pra isso tem... (JOSÉ HEITOR SILVA 45).

42 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 43 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 44 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 45 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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Figura 18: O tráfego do trem é visto pela população como trazendo prejuízo para a cidade e atrapalhando o trânsito local. Agosto de 2009. Foto da autora.

Figura 19: Trem transportando bauxita aumenta o risco de desabamento dos torreões que compõem o conjunto arquitetônico da Estação de Porto Novo. [s/d] .Acervo: Museu de História e Ciências Naturais de Além Paraíba.

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A situação de abandono é vista com pesar pelos moradores locais. O quadro de

deterioração se agrava a cada dia, devido à deterioração pela ação do tempo e das

depredações de que o patrimônio local é vitima. Desde 1989, quando foi firmado convênio

entre a Prefeitura Municipal, a Fundação Cultural de Além Paraíba e o IEPHA-MG com a

finalidade de restauração dos torreões que compõe o complexo ferroviário da estação de

Porto Novo, se arrasta as iniciativas de proteção e preservação que não foram capazes de

garantir a integridade do bem.

O tombamento municipal, realizado em 1995 por meio do decreto 1648/95, não foi

capaz de promover a preservação dos remanescentes, que esbarra, entre outros fatores, na

posse legal dos bens, atualmente pertencentes ao patrimônio da União. A partir do Programa

de Destinação do Patrimônio Ferroviário, a população espera que a prefeitura tome posse dos

imóveis e possa, a partir de então, empreender os projetos de restauração para os edifícios,

sobretudo para os torreões, que passam por um processo iminente de desabamento.

Em setembro de 2009 foi realizado na Câmara Municipal de Além Paraíba uma

audiência pública com a iniciativa de se discutir sobre propostas de destinação e recuperação

do patrimônio histórico cultural ferroviário da cidade. Contando com a presença de

lideranças políticas locais, membros da sociedade civil, além de representante do Ministério

Público de Minas Gerais e do Superintendente de Patrimônio da Secretaria de Patrimônio da

União, o debate girou em torno da aquisição legal dos remanescentes pela prefeitura local,

medidas emergenciais para evitar o iminente desabamento dos torreões centrais pertencentes

ao complexo ferroviário da estação de Porto Novo e alternativas para a destinação do

patrimônio local, que se centraram em seu aproveitamento para fins culturais e para a

atividade turística.

De acordo com a promotora Patrícia Abicuco Ferreira, representante do Ministério

Público de Minas Gerais, em 2006 foi instaurada na promotoria de defesa do patrimônio

histórico um inquérito civil no qual foram apuradas várias medidas urgentes que deveriam

ser adotadas para a preservação do patrimônio ferroviário. O impedimento mencionado sobre

a compra dos remanescentes pela cidade se deu em decorrência de uma medida provisória do

presidente Lula, convertida na Lei 11.483. Baseada nessa lei, em janeiro de 2008, ela

encaminhou para o Ministério Publico de Juiz de Fora um inquérito civil para compelir a

União a adotar medidas urgentes para que o prédio não desmoronasse. Não obstante, de lá

pra cá, nenhuma das iniciativas têm de fato correspondido a medidas que concretizem a

conservação imediata dos bens.

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Enquanto isso, a população lamenta o quadro de abandono e depredação que recai

sobre os remanescentes ferroviários locais. É presente na fala dos entrevistados o pesar e a

tristeza com que vêem o arruinamento progressivo dos bens. Muitos dos ferroviários

entrevistados sentem de modo bastante pessoal o abandono dos remanescentes, pois suas

histórias de vida estiveram bastante referenciadas pela ferrovia, em cujos espaços se

habituaram por esses serem elementos constituintes de suas próprias identidades, sendo

relativos ao local de trabalho onde conviveram durante décadas. É o que demonstra a fala dos

depoentes:

Eu fico triste de ver a morte. Porque a rotunda tá caindo. Você vai ter a oportunidade de ver uma parte dela que desmoronou. A estação tá caindo mesmo, literalmente caindo. Tem lugares que tá ficando muito perigoso passar ali perto, desmoronando mesmo. Parte dela já ruiu, você vai verificar depois, já ruiu. A gente vê com tristeza que a morte da ferrovia está agora simbolizada também no desaparecimento dos imóveis ferroviários (CLEBER DIAS DUTRA46).

Ah, eu sinto uma amargura, uma coisa horrível, fico triste, porque eu era menino quando entrei pra Leopoldina, eu entrei com 14 anos, você fica habituado com aquilo ali, aquele ambiente, hoje então quando o presidente da republica começou a acabar com a Leopoldina tinha 1200 operários, acabou tudo. Teve que aposentar, outros foram mandados embora, e você não tem pra quem apelar, acabou tudo. Então eu apelei pro vereador, mas ele até hoje não falou nada, depois vou voltar o assunto com ele (IVANOÊ BARBOSA47). A tenho, a ferrovia dá, não é que é saudosista ferroviário não, a gente sente saudade por duas razões, a primeira razão é que a gente começa a ver a ferrovia acabando, igual no dia que eu fui passear, eu saí de lá chorando, chorei mesmo, porque ali você consegue um emprego pra sustentar sua família, quantos ferroviários como eu, e outros mais, até mais velhos do que eu sustentaram a família com o dinheiro ganho ali dentro? Todo mundo queria ser ferroviário, teve uma época que todo mundo queria ser ferroviário, teve uma época não, porque ser bancário, ser médico, era melhor porque ganhava mais, mas com o tempo que a ferrovia passou pro governo brasileiro, o sindicato tomou pulso na coisa pra arrumar melhores dias de vida, inclusive toda moça queria casar com um ferroviário. Os rapazes que trabalhavam na Leopoldina eram um bom partido pra arrumar, outras não, casavam com quem mexia com papel, tecido, isso acontecia. Mais oitenta porcento queria namorar ferroviário, então essa é a razão da saudade da ferrovia (IVANIR DE SOUZA BASTOS48). A gente sente saudade, vontade de ver aquilo ali recuperado, nem pra voltar a funcionar, mas pra ser útil aquela área ali. É triste, cada pedaço que cai ali é um pedaço da gente que vai embora. Até um certo tempo essa oficina recuperava essas locomotivas que funciona em Ouro Preto, nessa áreas de turismo, muitas delas passaram por aqui pra reforma. Nestes testes que eles faziam aqui, você via ferroviário chorando na beira da linha vendo a malha locomotiva passar. Isso aí é triste, triste mesmo (LESSA JOSÉ SOUZA49).

Essas falas evidenciam uma perspectiva de patrimônio que é concebido não apenas

por seu aspecto formal, jurídico, mas também aquele que é entendido em seu sentido

46 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 47 Entrevista realizada em Agosto de 2009. 48 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 49 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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antropológico, como formador das subjetividades dos indivíduos e grupos sociais, que atuam

e são atuados através da formação da própria autoconsciência. Neste sentido, o patrimônio é

entendido como fundamental à formação de qualquer processo de subjetivação, como

demonstra Gonçalves (2007): “quero dizer que entre o Patrimônio e essas formas de

autoconsciência existe uma relação orgânica e interna e não apenas uma relação externa e

emblemática. Em outras palavras, não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio”

(GONÇALVES, 2007, p. 224).

Assim, muitos dos ferroviários locais empreendem através do esforço e dedicação

pessoal o trabalho de tentativa de preservação do patrimônio ferroviário, que, para eles,

guarda relação com a própria história de vida. Não é à toa que o trabalho de preservação

tenha se iniciado com esses sujeitos, buscando nos destroços da catástrofe ferroviária a

salvaguarda dos objetos materiais com os quais guardam referenciais afetivos e identitários.

Muito antes de a ferrovia vir sendo reconhecida como patrimônio histórico e cultural pelas

agencias de preservação, esses militantes trabalham para a preservação desses remanescentes,

sem esperar que partissem dos órgãos de preservação e do Estado as ações de preservação e

salvaguarda do patrimônio ferroviário do Brasil. É certo que as medidas de reconhecimento e

valorização do passado ferroviário brasileiro contaram com a iniciativa de pessoas da

sociedade civil, que só mais tarde viriam a ser também reconhecidas pelo Estado. É o que

demonstra o trabalho feito pelos membros da ABPF – Associação Brasileira de Preservação

Ferroviária de Porto Novo que, há anos, se engajam de forma pessoal na atividade

salvaguarda dos destroços da ferrovia brasileira:

Sou apaixonado por isso aqui. Eu juntei durante 18, 19 anos, o vagão de sucata parava lá em baixo, que a gente chama pé de abacate, porque nossa sucata é um pé de abacate, ai quando você queria falar assim, - “ah, joga esse gravador seu” ... –“Joga no pé de abacate”, já sabe que é na sucata. Todo vagão que chegava ali fora, igual esse aqui, quando ia abrir a porta, eu que inaugurava, eu que abria a porta, ia ver o que que tinha lá, eu catava tudo, e sai separando.... na época o engenheiro auxiliar aqui ficava de olho ni mim, porque ele achava que eu tava roubando, e na verdade eu tava moitando pra montar o nosso museu. [...] Nós temos uma paixão por isso aqui. Pra você ter uma idéia, minha irmã ganhou, meu cunhado levou daqui a casinha de São José, o protetor, ela chegou com isso lá em casa eu tomei dela, ela ficou P da vida comigo, eu falei: “-não, isso é proteção da oficina, isso vai ficar lá no nosso museu”, depois ela entregou a casinha. Tá lá no museu. [...] Sabe o que eu costumo falar: cara, deixa eu falar uma coisa procê: tudo o que você levar pra sua casa, o dia que você morrer, se seu filho não gostar ele vai jogar fora, se tiver no museu, eu vou passar ali, você vai passar, todo mundo vai passar e vai ficar no museu (JOSÉ CARLOS FARIAS50). Essa locomotiva tava na linha lateral ali. Digamos que a linha tronco passa aqui, a locomotiva tava jogada ali, ficou ali parada uns 10 anos. Um dia o chefe da

50 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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oficina, passou lá, olhou , falou: “A gente podia reformar essa locomotiva hein”,... levou umas cinco horas pra tirar ela dali. Aí começamos a reformar, com muito sacrifício. Aí um dia o presidente da rede veio aqui, e a locomotiva tava lá no galpão, lá dentro. Quando ele chega lá no fundo, que ele viu a locomotiva ele falou: “vocês tão reformando essa locomotiva, porque você não me falou rapaz, que que vocês tão precisando pra ela?”. A locomotiva tava mais de 2 anos reformando e não levou mais 6 meses depois disso. Ele deu todos os recursos pra reformar ela. Ele ficou tão entusiasmado com aquilo, que ele fez o trem turístico de Mariana e de Miguel Pereira. Aí reformamos depois disso uma 424 e a 1170, que tava num pedestal em Barra do Piraí, trouxemos ela pra cá e colocamos ela pra funcionar também (JOSÉ CARLOS FARIAS51).

Foi garimpando nos destroços ferroviários que membros da ABPF de Porto Novo

encontraram a Locomotiva 51 que estava desaparecida há quinze anos, abandonada em um

galpão em Engenho de Dentro tomado pelo matagal. A locomotiva, fabricada em1880 nos

Estados Unidos, está sendo restaurada na antiga oficina de manutenção e restauro de Além

Paraíba, com previsão de que puxe um trem turístico na região, projeto tão sonhado por

aqueles que desejam ver restaurados os remanescentes ferroviários da cidade. O empenho

pessoal dos antigos ferroviários para a recuperação do patrimônio local é evidenciado na fala

de José Heitor, que acredita na força de trabalho dos próprios ferroviários a tarefa de

recuperação dos bens culturais referentes às ferrovias locais.

Eu cheguei a pensar que se fosse liberado essa edificação, se nós tivéssemos a oportunidade de colocar ali tudo o que nós sabemos, sinceramente até eu, com esse lado artístico, se sobrasse pra mim eu estaria lá. Tem vários ferroviários aposentados que estão dispostos a fazer isso, mas diz que não pode mexer, que a justiça está ainda essa coisa toda, mas sinceramente se pudesse, os ferroviários dariam conta da restauração daquilo ali, eu tenho certeza. Nós mesmos, os ferroviários daqui, daria jeito naquilo. Tem ainda ferroviários capacitados que podem mexer naquilo. Alguns já se foram, mas tem outros mais aí (JOSE HEITOS SILVA 52).

Pode-se afirmar que há em Além Paraíba a plena ressonância entre os bens culturais,

classificado como patrimônio municipal pela agência de preservação do poder público local,

e a população, sobretudo os antigos ferroviários, público no qual essa pesquisa se centrou.

Isso significa dizer que o patrimônio, ali, detém o poder se suscitar e evocar nesse

seguimento da população “as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu”,

como demonstra a citação de Gonçalves (2007) sobre o significado de ressonância:

Por ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das

51 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 52 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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quais ele é, para o expectador, o representante (Greemblatt, apud GONÇALVES, 2OO7, p. 215).

Esse sentido de ressonância é evidenciado nas fala de José Heitor, que sente a

ferrovia local como parte constituinte de sua vida, e cujo universo material ferroviário são os

emblemas referenciais de sua história:

A ferrovia, eu ficava pouco tempo sem tirar a ferrovia na minha mente, porque seis horas da manhã eu levantava pra ir pra lá, saia quatro e meia e, por onde eu ia, eu encontrava com quem? Com ferroviário. Além Paraíba era uma cidade que cheirava ferrovia. Onde você fosse tinha ferrovia, o assopro lá de dentro, causos que acontecia lá dentro, brincadeiras, tudo isso tem gravado em mim, isso não acabou, não esvai não, não desapareceu. [...] Eu tenho tudo aqui dentro, eu inda tenho essa facilidade né, fazer uma escultura, falei aqui, quando eu parar de fazer escultura, quando a força física se esvair, eu vou pegar a caneta, do meu “forrão” vou fazer a caneta, já estou fazendo isso, porque estou com 72 anos... já estou fazendo isso, estou escrevendo, escrevi esse livro aí, tem as poesias, e escrevendo sobre a ferrovia.... (JOSÉ HEITOR SILVA53) Com esse amor que eu falei para você que tem pela ferrovia, a maioria das pessoas, aqui em Além Paraíba todo mundo tem o cheiro da maria fumaça. Forma médico, engenheiro tudo, mas o amor é o amor pela ferrovia. Então existe esse amor pela ferrovia que com certeza tá em todas as famílias (JOSÉ HEITOR SILVA54).

A saudade que os entrevistados sentem da ferrovia local se confronta também com

uma percepção da história como processo inexorável, compreendendo, muitas vezes, o

próprio discurso hegemônico que se pauta por uma percepção do progresso de forma

teleológica, como se não houvesse múltiplas possibilidade de ser construída a realidade

social e, por conseqüência, a própria história. Essa afirmação pode ser identificada na fala de

Ivanir Bastos, que diz que a ferrovia “faz uma falta na saudade, não no progresso, o

progresso hoje é muito melhor”.

Essa fala induz também a um entendimento de patrimônio que surge da consciência

de ruptura com o passado, da percepção sensível e objetiva da transitoriedade do tempo, “do

fim de alguma coisa desde sempre começada” (NORA, 1995, p. 7). No caso das ferrovias

brasileiras, como não há mais meios de memória, ou seja, de se praticá-la e reproduzi-la

como vivência cotidiana, a memória ferroviária se “deposita” hoje em locais. São lugares de

memória.

53 Entrevista realizada em Janeiro de 2010. 54 Entrevista realizada em Janeiro de 2010.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A forma como as sociedades contemporâneas vêm patrimonializando os aspectos do

universo material e da vida social é potencializada pela agregação de valor econômico aos

bens culturais, possibilitados por sua crescente apropriação pela indústria turística e cultural.

A fim de se inserirem nesta vasta rede de atração turística, as cidades são chamadas a

delinearem sua marca patrimonial e a expô-las como símbolo da identidade preservada,

produzindo uma imagem de matrizes culturais aparentemente preservadas.

Os efeitos perversos desta corrente de valorização do patrimônio cultural estão

delineados por vários estudos, que apontam para inúmeras contradições que repercutem das

ações desse processo. As chamadas revitalizações urbanas, em voga na maioria das capitais

brasileiras, e que têm as zonas centrais e antigas áreas portuárias, ferroviárias e industriais

como alvo acontecem por meio de intervenções arbitrárias, que se realizam no meio físico e

no quadro social local. As áreas anteriormente deixadas de lado pelo poder público e

iniciativas privadas tornam-se alvo de investimentos culturais, cujas revitalizações

transformam-nas também em espaços de distinção e segregação.

As arbitrariedades inscritas neste quadro podem ser lidas nas inúmeras implicações

negativas decorrentes, esquematicamente resumidas como: espetacularização de áreas e

monumentos; processos de gentrificação, com a expulsão da população local de baixa renda;

homogeneização de público e espaços; restaurações inqualificáveis, pastiches, reconstituições

fantasiosas de edificações etc.

As áreas privilegiadas neste processo de renovação urbana passam por verdadeiras

cirurgias estéticas. Esta maquiagem nas cidades é comparada por Jeudy e Jacques (2006) à

busca da eterna juventude, verificada numa relação análoga entre a negação do

envelhecimento do corpo humano e urbano. Segundo eles,

Nossa sociedade tem dificuldade de aceitar o envelhecimento de nosso corpo físico, cada dia surge uma nova técnica anti-envelhecimento, creme, liftng ou cirurgia plástica... Também a restauração patrimonial das cidades se parece com um lifting. Esse envelhecimento, tanto para os corpos humanos quanto para o corpo urbano, é uma transformação que acompanha a gênese dos movimentos corporais e da cidade como metáfora da vida urbana. Os cenários reconstituídos que formam o enquadramento do espaço urbano terminam abolindo essa dinâmica do tempo, fixando a memória e a percepção dos cidadãos, e dando aos turistas a impressão de que se encontram na eternidade de um cartão postal (JACQUES, 2006, p.8).

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A escolha dos remanescentes ferroviários de Além Paraíba - em processo de

arruinamento - como objeto de estudo para esta pesquisa justifica-se pelos mesmos

inserirem-se em um campo de definições e encaminhamentos que estão ainda em aberto, num

momento em que os principais dilemas que envolvem a preservação do patrimônio na

atualidade estão ainda sendo delineados. Acredita-se que esse momento de transição, no qual

se define a continuidade ou supressão do bem cultural, traga à tona e possibilite a construção

de novos referenciais simbólicos pelos sujeitos sociais, sugeridos a partir das relações

dinâmicas entre o tempo, a história e a memória.

Em face das contradições e ambigüidades que envolvem a questão do patrimônio

cultural na contemporaneidade, esta pesquisa se propôs a conhecer as razões da

patrimonialização das ferrovias, pensadas a partir da relação entre tempo histórico e

patrimônio (HARTOG, 2006). Propôs-se, também, conhecer as relações estabelecidas entre a

comunidade de trabalhadores ferroviários de Além Paraíba com os remanescentes

ferroviários localizados na cidade, por acreditarmos em uma relação entre corpos físicos e

urbanos geradora de qualidades de vida, e de uma possível vivência sensível e orgânica entre

sujeitos e patrimônio, para além do mero fetiche e entretenimento conferidos pela indústria

cultural.

Diante da abundante estetização e espetacularização do patrimônio na atualidade, é

significativo pensar os bens ferroviários de Além Paraíba, em arruinamento, como locais

propícios à vivencia de uma memória orgânica. O caso de Além Paraíba é significativo para

refletir a possível negociação entre preservação e transformações no espaço urbano, e a

capacidade de se atuar no presente com consciência história, preservando os referenciais do

passado que se deseja manter, e subvertendo outros por uma ação criativa no tempo presente.

Nas palavras de Choay, a questão crucial na atualidade não é a simples conservação do

patrimônio, mas “a conservação de nossa capacidade de lhe dar continuidade e de substituí-

lo” (2001, 257).

É sob o ponto de vista do direito e da responsabilidade social diante as escolhas que

envolvem patrimônio, assim como a possibilidade de sua vivência e usufruto no espaço

construído, que se percebe este como campo que se inscreve no amplo conceito de Cidadania

Cultural (CHAUÍ, 2006), em que se faz presente o direito à memória e à participação nas

decisões nos destinos da cidade, assim como o direito à criação, ao usufruto, à apropriação e

à invenção de livres significados que envolvem os meios culturais existentes.

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QUADRO ENTREVISTAS: NOME IDADE CARGO NA

FERROVIA DATA DA ENTREVISTA

Cleber Dias Dutra

71 Pintor/ Auxiliar de Escritório

Jan. 2010

José Heitor Silva

72 Ajustador Mecâncio

Ago. 2009 e Jan. 2010

Ivanir de Souza Bastos

73 Caldereiro de ferro/ Pintor/ Sindicalista

Jan. 2010

Armando Trancoso

75 Agente de administração

Jan. 2010

Lessa José de Souza

66 Supervisor de Administração

Jan. 2010

Valério José Otero

Não especificado

Técnico Mecânico

Jan. 2010

José Carlos Farias

55 Não especificado Jan. 2010

Juarez Ribeiro Gonçalves

79 Carpinteiro/ Auxiliar

administrativo

Jan. 2010

Ivanoê Vasconcelos

Barbosa

88 Ajustador Ago. 2009

Moacyr Tamarino

80

Serralheiro/ supervisor

2006 (Entrevista realizada por

equipe técnica do Programa Trem de

Minas)