memorial juan
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FACULDADE DE AMERICANA
CURSO DE PSICOLOGIA
JUAN PAULO DE SOUZA MORENO
MEMORIAL DE FORMAÇÃO
AMERICANA
2012
FACULDADE DE AMERICANA
CURSO DE PSICOLOGIA
JUAN PAULO DE SOUZA MORENO
MEMORIAL DE FORMAÇÃO
Memorial apresentado como exigência parcial para obtenção do Título de Psicólogo na Faculdade de Americana (FAM), sob orientação do: Prof. Ms. Marcelo Passini Moreno, e com coorientação textual da: Profª Ms. Marly Caroline Moreira Ferreira.
AMERICANA
2012
À Milene, por me amar e suportar
minha necessária ausência e ao
Caio e à Alice, pela paciente
espera, que mesmo sem entender
muito, só sabiam que o “papai ia
demorar pra chegar...”
AGRADECIMENTOS
Agradeço a quem primeiro no Brasil teve a ideia de permitir que o memorial
de formação pudesse ser inserido como Trabalho de Conclusão de Curso,
transformando assim, a tarefa de agradecer muito menos hercúlea, no sentido de
esquecer-se de alguém ou se limitar a 12 pessoas... Em tempo, não sei quem é
essa pessoa.
Com esse memorial consigo trazer à memória, e também registrar, meus
agradecimentos a todos aqueles que fizeram parte dessa trajetória, dessa história e
(me) construíram um profissional e uma pessoa melhor.
Estes parágrafos acima eram meus primeiros agradecimentos, feitos logo no
início do ano, mas ao chegar ao final dessa jornada, tanto de escrever o memorial,
quanto de repensar minha formação, achei digno mencionar as pessoas que me
ajudaram, me suportaram e me afetaram na escrita e no material subjetivo desse
memorial.
Agradeço aos meus pais, Paulo e Catarina, que nunca desistiram de mim,
mesmo quando o futuro parecia tão nebuloso;
Agradeço aos meus irmãos, Ewerton e Karla, simplesmente pela existência
que colore meus dias sombrios;
Agradeço ao meu núcleo familiar mais íntimo, Milene, Caio e Alice, porque
chegar em casa e ser recebido por eles, ou por quem estivesse acordado, ou
mesmo que todos estivessem dormindo, os beijos e abraços me animavam para o
dia seguinte;
Agradeço aos funcionários da Foros Assessoria Contábil, por esperar para
tirar uma dúvida técnica, ou retornar as ligações de clientes, ora porque estava
estudando, ora porque precisava sair para o estágio. Obrigado por segurarem as
pontas, sempre – Suellen, Allan, Karla, Fernanda e Paulo (sócio, pai e amigo);
Agradeço à Luciene Blumer, pelo “atendimento” quando tudo parecia perdido,
lá no final de 2011 – quando eu estava indignado com as demissões de professores,
direcionando meu afeto para a criatividade, para a produção escrita, ao invés de
discussões com a direção. Obrigado pelo texto da Magda Soares, que me fez
entender o que eu precisava fazer;
Agradeço à Carolina Freire, pela contribuição, não somente como supervisora
do estágio de ênfase, mas como professora de Desenvolvimento Psicológico e
Psicologia Social, fazendo-me compreender o compromisso social que preciso ter
em minha formação, mais ainda, uma formadora de psicólogos, uma orientadora,
que mesmo em um ano tão complicado, soube trazer a leveza da vida e transformar
diversas situações angustiantes em algo menor, mais fácil e até agradável;
Agradeço à Vívian Bearzotti Pires, por me tirar do analfabetismo funcional,
(brincadeira), pois “muitos de nós você ajudou a escrever melhor, pois viemos de
escolas públicas, outros, encontraram motivação para ler clássicos, entender
literatura ou escrever cientificamente.” Você sabe que esse trecho faz parte de um
agradecimento muito maior, né? Vide nossa foto com você no facebook;
Agradeço ao Marcelo, meu orientador nesse trabalho, pela paciência na
espera dos momentos de “inspiração” e pela orientação sempre precisa. Nossa
história se mistura, pois além da dificuldade deste momento de fechamento para
mim, que estou saindo do curso, há um desmonte, e acho que nossas ideias
institucionais são parecidas e o tema trazido sempre foi ligado a você, que, como
coordenador do curso, viveu na pele um outro tanto de situações institucionais, que
faziam com que este memorial PRECISASSE ser escrito. Não haveria outro
orientador que conhecesse o caminho que eu precisava seguir. Obrigado.
Agradeço às minhas amigas, sempre pernósticas, Paula Lima, Caroline
Marola, Carolina Munhoz, Érika Genebra e Liciene Barbosa. À Paula pela coragem
de me chamar de idiota, quando necessário, à Caroline pela compreensão
psicológica da minha “estrutura-psi” e um abraço apertado, sempre que ocorria um
problema, à Carolina pelas altas conversas sobre os assuntos aleatórios que a
Psicologia nos suscitava, à Érika, que compartilhava minhas “Crises de Juan”, pelo
susto de cada dia com a entrega de um relatório, um e-mail mal interpretado,
diversos livros trocados. À Liciene pela companhia, pelas palavras de apoio, pois
mesmo náufragos de supervisão, em teoria, estávamos no mesmo bote. Adoro
vocês!
Aos demais amigos, colegas de sala e professores, agradeço pela
convivência, pelas perguntas que me fizeram pensar, pelas dinâmicas de grupo que
fizeram com que nos conhecêssemos mais, pela experiência em seminários e pelas
conversas de corredor. Com vocês aprendi o que devo e o que não devo fazer na
práxis psicológica.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................... p. 1
FRAGMENTOS DE UMA VIDA ................................ p. 4
IDENTIDADE ............................................................ p. 8
DE VOLTA PARA O FUTURO .................................. p. 15
QUANDO HÁ PEDRAS NO CAMINHO .................... p. 18
ESTÁGIOS p. 24
OPÇÃO PELO ENFOQUE TEÓRICO E
SIGNIFICADOS NA MINHA FORMAÇÃO ................ p. 28
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... p. 32
REFERÊNCIAS ........................................................ p. 35
Gostaria desde já de manifestar minha
recusa a certo tipo de crítica científica que
insinua faltar rigor no modo como discuto
os problemas e na linguagem demasiado
afetiva que uso. A paixão com que
conheço, falo ou escrevo não diminuem o
compromisso com que denuncio e
anuncio. Sou uma inteireza e não uma
dicotomia. Não tenho parte esquemática,
meticulosa, racionalista e outra
desarticulada, imprecisa, querendo
simplesmente bem ao mundo. Conheço
com meu corpo todo, sentimentos, paixão.
Razão também. (FREIRE, 2001, p. 18)
RESUMO
Esse trabalho teve por objetivo contar minha história no curso de Psicologia, ou seja, escrever meu memorial de formação. Para isso, fez-se necessário construir uma narrativa que buscou as raízes da infância e adolescência até a fase adulta, levando a entender os traços do que me constituem como psicólogo. Contextualizo minha identidade nessa história e conto em que ponto me imbriquei com a Psicologia, e até o quanto estou mergulhado nessa formação, que segue por toda a vida. Falo sobre as dificuldades na formação em ensino superior, em uma faculdade privada, numa ideologia mercantilista, discorro acerca da demissão dos professores do meu curso e como essa realidade, apesar de sistêmica, iniciou-se como uma promessa diferente. O presente trabalho serve de alerta e deixa registrada na faculdade a história de um curso que tinha tudo para ser o melhor da Região Metropolitana de Campinas e adjacências, mas, por motivos mercadológicos, foi desmontado, descontruído e quebrado. Relato ainda sobre os estágios, como parte constituinte da minha formação, bem como a importância dos supervisores, disserto ainda sobre minhas escolhas e afinidades teóricas.
Palavras-chave: Formação acadêmica, memorial, narrativa autobiográfica, graduação em Psicologia, ensino superior.
1
INTRODUÇÃO
Sobre escrever um texto a respeito da minha própria experiência, compartilho
da opinião de Prado e Soligo (2002, p. 49) de que “basta apenas acreditar que o que
se tem a dizer vale a pena e enfrentar o desafio de fazê-lo por escrito”, dessa forma
se inicia um memorial.
Eu preciso contar uma história, mas minha história é melodia. Sabe-se que,
para uma grande peça, um grande concerto, não basta apenas a melodia... A
história que preciso contar é a história que atravessa a minha, mas também são as
histórias de outras linhas melódicas, de outros instrumentos, de harmonia, de ritmo,
de maestros, de arranjos, de improvisos, que ao final – e porque não, durante
também – compõe, sim, uma linda peça musical chamada Psicologia Turma de 2008
(Sexta Turma), encenada e tocada na Faculdade de Americana – FAM entre os
anos de 2008 e 2012.
Demorei para começar a escrever porque demorei para me dar conta de que
não consigo contar essa história sozinho, porque ela não é só minha. Desde o início
somos impelidos a olhar para o outro e descobrir nesse outro, não somente nosso
campo de atuação e sustento, mas também amparo e proteção.
Apoiado em Zimerman (1999, p.451), as condições necessárias para um bom
analista, em sua formação, são sustentadas no tripé da psicoterapia pessoal,
supervisão e estudo, por isso pretendo falar um pouco de cada um desses pilares na
minha trajetória, que é o que nos torna psicólogos e me torna psicólogo.
Falar de mim na formação é complicado porque fui representante de classe
em boa parte do período escolar e nesse momento, nesse gênero chamado
memorial, preciso falar do EU. É estranho para mim, que sempre falei no coletivo ter
que colocar as impressões do Juan.
Escolher o memorial como gênero e como Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC) é importante porque preciso organizar meu baú psicológico (e físico) de
memórias, textos, lembranças e denúncias da minha formação na FAM. O percurso
que me trouxe até aqui e para onde vou a partir daqui. Entendo esse memorial como
um marco, especialmente porque posso escrever em primeira pessoa – enfim – e
isso me alivia, pois sempre achei demasiado esquisito narrar o Juan fazendo as
coisas cientificamente. O estagiário Juan sente... não... Eu sinto! É um gênero
libertador esse memorial! Narrativa, paixão e verdade, no meu caso.
2
Tecnicamente “um memorial de formação é um gênero textual
predominantemente narrativo, circunstanciado e analítico” (PRADO; SOLIGO, 2003,
p. 58). A narração, enquanto discurso, não me é estranha por totalidade, pois
sempre fui adepto de escrever em agendas e elaborar textos avulsos durante minha
adolescência.
Acredito que isso foi até terapêutico diante de alguns sofrimentos e angústias,
mas o memorial vai além, pois também “combina elementos de textos narrativos
com elementos de textos expositivos (os que apresentam conceitos e ideias, aos
quais geralmente chamamos 'textos teóricos')”, segundo Prado e Soligo (op. cit.).
Dessa forma, alia aquilo que sentimos com aquilo que estudamos, no meu caso é
“de formação” porque é de Psicologia.
Esse memorial é preenchido por memórias e subsidiado por textos,
basicamente, mas isso é teoria, afinal, na prática, a evocação dessas memórias
ativa sentimentos profundos e a busca pelos textos é bem trabalhosa. O memorial
se insere como gênero autobiográfico, diferente porque não se tem a pretensão de
contar a vida inteira, mas por aí tem-se uma ideia da exposição e da profundidade
com que se trabalha. Prado e Soligo escrevem que “o memorial é um texto em que o
autor faz um relato de sua própria vida, procurando apresentar acontecimentos a
que confere o status de mais importantes, ou interessantes, no âmbito de sua
existência” (2003, p. 56).
Algo que devo deixar claro é que um memorial reflete a memória do autor, e
portanto, sua visão de mundo. Os autores, sobre isso escrevem que o autor
“possivelmente levantará o véu apenas da parte que, de si próprio, pretende que se
saiba, e que venha a ser lembrada” (idem).
O que “cabe” nesse memorial, na verdade, como dizem os autores é um texto
também argumentativo que conversa com a teoria e a prática, que analisa a
realidade, minucioso para aquilo que se propõe a ser, podendo descrever o
ambiente, ora sendo mais literário, ora mais reflexivo, enfim, um lugar de infinitas
possibilidades, para infinitos autores e profissionais.
Não sei se denomino esta empreitada de travessia ou de elipse (sei lá!),
espiral. Tese, antítese, síntese. Tudo nos constrói. A travessia não é do ponto A
para o ponto B. Há pausas dramáticas, assim como eu o sou. Devo retornar a
pensar em minhas referências. Onde fiz essa conversão que me levou da Economia
e Contabilidade para Psicologia?
3
Identifico-me com o memorial de Magda Soares no capítulo o Risco em
Espiral (2001, p. 31-35) quando aborda as rupturas e descontinuidades em seu
curso, quando se vê preparada para o curso científico e escolhe o curso de Letras
enfrentando novos desafios e se deparando com novas referências, como eu, que
me formei em Ciências Contábeis e optei pela segunda formação em Psicologia.
Novos paradigmas, novos conceitos, novas referências.
Contudo, devo me precaver para que esse memorial não seja, como na
“Introdução” da mesma obra citada, escrita por sua colega, Eliane Marta Teixeira
Lopes, uma obra com o teor de “autobiografia falsamente literária, nem confissões
inutilmente íntimas, nem profissão de fé abstrata, nem tentativa de psicanálise
selvagem” (SOARES, 2001, p. 12).
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Pai e mãe, ouro de mina
Coração, desejo e sina
Tudo mais, pura rotina, jazz
Tocarei seu nome pra poder falar de amor
Minha princesa, art-nouveau
Da natureza, tudo o mais
Pura beleza, jazz
A luz de um grande prazer é irremediável neon
Quando o grito do prazer açoitar o ar, reveillon
O luar, estrela do mar
O sol e o dom, quiçá, um dia a fúria
Desse front virá lapidar
O sonho até gerar o som
Como querer caetanear o que há de bom
(Sina – Djavan)
FRAGMENTOS DE UMA VIDA
A tentativa de contar quem eu sou passa pela tentativa em me definir. Se
bem que algumas coisas nos definem por si só. Sou filho, sou pai, sou marido, sou
irmão, sou neto, sou genro. Parece óbvio, mas há significados nessas relações que
relatarei a seguir, que fazem parte dessa formação, que construíram essa estrada.
Nasci e cresci em Santa Bárbara d’Oeste, interior de São Paulo, filho de Paulo e de
Catarina, irmão de Ewerton, Kelly (in memoriam) e Karla. Marido de Milene, pai de
Caio e Alice.
Meu pai, técnico em contabilidade, foi uma pessoa que lutou muito para
garantir que seus filhos tivessem uma “boa educação”, o que significou trabalhar
muito e ver os filhos pouco. Levava trabalho pra casa e aprendi com isso o
significado de “trabalhar duro” para construir um futuro. Aos finais de semana
ficávamos juntos, brincávamos e brigávamos. Não teve, quando criança e
adolescente, o apoio e a cobrança que me deu para estudar e poder escolher aquilo
que quisesse para minha carreira.
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Meu pai também é pastor da Igreja Batista, na verdade tornou-se pastor na
minha adolescência, o que pode-se dizer que foi uma forte influência na minha
criação. Sempre senti a pressão de ser filho de pastor, mesmo que isso não fosse
explícito. E até pensei em ser missionário e fazer teologia, como relato adiante.
Digo isso ao passant para explicar minha tendência em ajudar as pessoas,
pois sempre me envolvi em trabalhos sociais e assistenciais. Até certo ponto
também, por outro lado, sempre fui “neurótico” quanto às coisas relativas à igreja,
pecado, Deus, santidade, inferno e tudo o mais. Perfeição era o mínimo a se
alcançar.
Minha mãe também trabalhava até minha irmã mais nova nascer. Portanto,
posso dizer que sou filho de operários. Criados, eu e meus irmãos, com o intuito de
nos fazer melhores em tudo, influenciados pela ideologia cristã – a família toda é da
religião batista, de que “devemos sempre brilhar, onde estivermos”, como ela dizia.
Sempre dei o meu melhor em tudo, menos nos esportes, pois não tinha as
habilidades necessárias e não conseguia desenvolvê-las, e eu sofria por isso. Houve
sempre muito orgulho e muita cobrança para com seus filhos. Muito amor, risos e
broncas também.
Houve tempos de dificuldades também. Quando morávamos no bairro
chamado Cidade Nova, em Santa Bárbara d’oeste (SBO), nossa casa não tinha
vidros e dormíamos na sala somente com o contra-piso. Havia formigas “lava-pé”
que nos mordiam durante a noite. Meu irmão, Ewerton, acordava chorando e eu
acordava irritado. Demorou um tempo para as coisas se estabilizarem, mas nunca
nos faltou apoio. Eles sabiam que, pela educação, as coisas poderiam mudar, a
saber, minha mãe completou até a antiga 4ª série do Ensino de Primeiro Grau.
Em março de 1988, perdemos nossa irmã Kelly – natimorta – e foi um
momento muito complicado para todos. Eu tinha apenas oito anos e me senti
sozinho, mesmo estando junto de meus pais. Eles não estavam disponíveis pra mim
nesse momento de luto, e compreendo hoje, que também não era culpa deles.
Nesse período meus pais se afastaram da igreja, mas eu e o Ewerton íamos
de bicicleta para uma igreja próxima, no bairro ao lado, afinal, precisava de apoio,
penso eu hoje. Lá havia amigos que conhecia da rua de trás da minha avó Santina,
minha segunda mãe, com quem eu ficava enquanto minha mãe trabalhava.
Enfim, depois minha mãe engravidou novamente e nasceu a Karla, em 1990.
Foi uma alegria extrema e me lembro até hoje ao chegar em casa, ver minha mãe a
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amamentando contra a luz da janela da nossa nova casa – mudamos em 1989,
parecia que tudo era novo. Ela não trabalharia mais. Éramos uma família feliz
novamente?
Quando eu era menor, adorava ir à casa da minha tia passar as férias. Era
um lugar belíssimo onde havia um grande lago, árvores e amigos. Lá não chegava
carro, porque tinha que atravessar uma pinguela. Eu tinha medo de cair no riachinho
que se formava abaixo, mas valia a pena atravessar, porque do outro lado eu sabia
que teria uma grande recompensa.
É assim que me sentia quanto à Psicologia. Remotamente, na adolescência,
cogitei a possibilidade de fazer essa faculdade; lembro inclusive de comentar isso
com meu pai, mas ele me aconselhou a não fazer, pois era um curso “mais pra
mulheres” (sic).
Dessa forma, decidi seguir na carreira de informática, fazendo técnico em
processamento de dados, e no estágio, tive contato com a contabilidade, área pela
qual me interessei e me formei, posteriormente, em Ciências Contábeis. Entretanto,
em certa altura da vida profissional, algo não encaixava, e o desejo de visitar
novamente aquele lugar das férias, voltou.
Contudo, precisava atravessar a pinguelinha. E ela veio. Foi difícil pagar, foi
difícil cursar com filhos pequenos, sustentar um casamento em meio a essa loucura,
mas consegui! E me lembrei que, na pinguela, existem apoios para que você possa
atravessar, e mesmo que ela balance, família e amigos sempre estarão ao seu lado.
Pelo menos estavam ao meu lado. Balançarão junto, mas não cairão. Engraçado
mencionar que minha tia mora na periferia. O grande lago e as árvores estavam
cercados, pois eram propriedade privada. Os amigos ficaram. E era isso que
importava.
Devo contar que minha educação foi voltada para o saber técnico. Explico,
técnico em processamento de dados no colegial, hoje ensino médio, e Ciências
Contábeis como profissão, seguindo a carreira do pai, por motivos que até hoje levo
para a psicoterapia, pois sempre fui livre para escolher o quisesse.
Meu percurso escolar foi basicamente no SESI em SBO, depois Dom Bosco,
que meu pai se esforçava para pagar, e depois eu tive que mudar no último ano para
o Colégio Bandeirantes, pois precisava trabalhar para ajudar a pagar o curso. Entrei
para a Unimep em Ciências Contábeis, na época em que vestibular era concorrido e
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não havia tantas faculdades na região, e cursei até o terceiro ano, quando consegui
uma vaga de trainee da PwC1.
Mudei meu curso para a PUC-Campinas, pago pela empresa, e não tinha
mais que escolher entre tomar banho e jantar para ir à faculdade, nem comer pão
com ovo, ou misto quente, preparado carinhosamente pela “mamãe” no trajeto
Americana (nova casa) – Piracicaba.
Como experiência profissional, havia trabalhado na Anacirema, que é uma
empresa de transportes na função de auxiliar contábil, e na Folhamatic empresa de
software, como suporte técnico.
Estava bem inserido no mercado até começar a perceber que não estava
contente com o que estava fazendo. Meu desejo, não somente influenciado pelos
preceitos cristãos, mas enquanto ser-no-mundo, apontava para o lado humano,
social, não da ajuda assistencialista, mas de levar autonomia ao outro.
Durante esse período eu me casei com a Milene – no ano de 2003, quando
todos diziam sermos muito jovens, tínhamos 23 anos, porém eu já sabia o que
queria da vida, pois penso que, quando a gente encontra o amor, para quê buscar
outra coisa? Para quê esperar? Desse amor, nasceu o Caio, em 2005 e depois a
Alice em 2011! Mas antes...
Tudo estava indo bem, porém a inércia começou a me prejudicar
psicologicamente. Precisava mudar de ambiente profissional, mas o dinheiro falava
mais alto e me violentava a cada dia contra os meus princípios a trabalhar para as
grandes corporações. Era minha ideologia.
Adoeci. Muito. O estopim foi em 2007 quando a Milene precisou se submeter
a uma cirurgia. Comecei com crises de pânico, depois tive depressão, depois fui
diagnosticado com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), depois passou
para Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) leve – de acordo com o psiquiatra – e
tudo isso enquanto eu estava estudando! Em tempo, a cirurgia da minha esposa foi
um sucesso.
A escolha da Psicologia não era um sonho antigo, mas era um sonho que
surgiu a partir da minha experiência pessoal com a psicoterapia cognitivo-
comportamental para o tratamento destas crises de pânico. Percebi que poderia
conciliar minha vida com essa nova oportunidade que estava se abrindo, fazendo
1 PricewaterhouseCoopers, empresa de auditoria global, considerada uma das “big four”, ou seja, está entre as
quatro maiores do mundo.
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aquilo que mais gostava: conversar olho no olho, ter empatia pelo outro, se
preocupar, pelo menos era isso que pensava no início. “Porque você está aqui,
Juan?” – “Para ajudar o outro!” eu dizia.
Hoje percebo que eu também precisava de ajuda e, assim como corri para a
igreja quando pequeno, encontrei nas asas da ciência, da Psicologia e da Filosofia,
a minha consolação.
Identidade
Quando penso em quem sou eu – e essa pergunta me atormenta
frequentemente, diante de todas as possibilidades, não sei o que me faz ser eu
mesmo, só sei que estou em constante movimento. Ah! E que, como Renato Russo
já cantava, “acho que não sei quem sou, só sei do que não gosto”2 – isso já é
alguma coisa, não?
Ciampa (1994), no livro-texto de Psicologia Social, no capítulo 3, sobre
“Identidade”, abre sua discussão com essa mesma pergunta “Quem é você?” (p. 58),
solicitando que continuemos a prosseguir o texto somente depois de respondê-la.
Nunca consegui passar desse ponto, dessa primeira página, até então. Nunca
consegui ler esse texto. Essa resposta, desde as aulas da profª. Carolina Freire,
ainda ecoam em mim.
Talvez o segredo de “ser” ou “saber ser” esteja pautado naquilo que não-
sou. Quando me identifico, seja por afinidade ou por rejeição, um pouco do que sou
acaba aparecendo. O engraçado (e é?) é que às vezes (sempre?) pedimos para que
familiares e/ou amigos nos definam. Não acham isso estranho?
Ciampa explica que nossa identidade reflete no outro, e a nossa, nele (1994,
p.59). Deve ser por isso que perguntando ao outro, ele conheça melhor nosso
personagem, nosso discurso... “não só a identidade de uma personagem constitui a
de outra e vice-versa, como também a identidade das personagens constitui a do
autor.” (CIAMPA, 1994, p.60)
Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray através de seu personagem, Lord
Henry diz que “quem se define se limita”. Então realmente eu preciso me limitar em
2 Teatro dos Vampiros, Legião Urbana.
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quem eu sou? Acho que a pergunta certa é: quem estou eu? ou ainda, o que estou
eu? De acordo com Ciampa (1994), a identidade não é algo cristalizado, muito pelo
contrário, está em movimento. A identidade é uma representação apenas que se faz
a cada momento, sendo ou não reposta como ser social que sou, pelas relações que
estabeleço, pois “... é pelo agir, pelo fazer, que alguém se torna algo...” (p. 64).
“... só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como representante do meu ser real quando ocorrer a negação da negação, entendida como deixar de presentificar uma apresentação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores – deixar de repor uma identidade pressuposta – ser movimento, ser processo, ou para utilizar uma palavra mais sugestiva se bem que polêmica, ser metamorfose.” (CIAMPA, 1994, p.70).
Pensar assim me libera de muita angústia (não me livra dela), deixa minha
mente livre e meus dias mais leves para poder experienciar a vida, e não me
enquadrar nela. E falando em quadro, não é muito mais satisfatório pensar, sentir e
agir como se nossa vida fosse uma obra de arte autêntica ao invés de um “desenho
para colorir” ou aqueles exercícios para ligar os pontos?
Jorge Macchi, artista plástico argentino, tem uma metodologia que utiliza
fragmentos que me explicam. Em sua exposição Buenos Aires Tour, colocou um
vidro quebrado sobre um mapa traçando um caminho “não convencional” como
sugestão de rota turística. Sobre diversos pontos (re)descobertos, para as esquinas,
fez parcerias com um músico e uma poetisa a fim de produzirem um livro.
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“Imperfect, improbable, and imprecise, Macchi’s maps do not provide us with the illusion that the world can be perfectly reduced to or mastered by an all encompassing visual representation, whether flat or perfectly round. They tell us that reality is too complex and fugitive to be fully translated onto any scale, and one can only understand it in an incomplete and fragmented fashion. This is the lesson of the master the Argentine School of Cartography.” 3 (PEDROSA, 2011, s/p)
O que esse trabalho diz sobre mim? Várias coisas. Primeiro que existe uma
outra rota, menos convencional, mas minha – como mudar de profissão, por
exemplo. Não preciso seguir a trilha dos outros, posso criar a minha. Ainda existe a
quebra, o fragmento, que apesar de ser considerado algo ruim, pode ser
transformado em algo belo, produtivo. Mostra que mesmo a fissura, a ruptura, leva
para o movimento.
É o que tento fazer diante das intempéries que me assolaram. Outra
informação que me explica, refere-se ao acaso e à maneira como não há como se
3 "Imperfeito, improvável, e impreciso, os mapas de Macchi não nos fornece a ilusão de que o
mundo pode ser perfeitamente reduzido ou dominado por uma representação visual abrangente, plana ou
perfeitamente redonda. Eles nos dizem que a realidade é muito complexa e fugidia para ser totalmente
traduzida em qualquer escala, e só se pode entendê-la de forma incompleta e fragmentada. Esta é a lição do
mestre da Escola Argentina de Cartografia".
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encaixar em teorias explicativas, ou seja, depende apenas da minha escolha. Posso
seguir o mapa ou não, posso ir para a direita ou para a esquerda.
A resposta a essa pergunta, mesmo sendo cristalizada, não está pronta. Li
esse texto somente esse ano, depois de dois anos encostado na estante. Toda a
problemática da identidade, para mim se dá pela máxima “Sou uma unidade de
contrários” (CIAMPA, 1994, p.61). A dificuldade nem está nos contrários, está na
unidade. Não me vejo assim, unitário. Vejo-me fragmentado e quando não sou
inteiro, “não sou”, então, enlouqueço, me desagrego, sinto-me ameaçado,
paralisado.
Muitas coisas aconteceram durante esses cinco anos. Ocorreram perdas
significativas, frustrações imensas, situações de doenças, amadurecimento
emocional, nascimento da minha filha. Acho que fiquei mais crente e mais
descrente, mais amargo e mais doce, mais consciente, mais consistente. Essas
dificuldades e alegrias me tornaram ser quem hoje eu sou.
A pergunta que Ciampa (1994, p.61) faz é se “nós nos tornamos algo que
não éramos ou nos tornamos algo que já éramos, mas que estava “embutido” dentro
de nós”? (ponto de interrogação meu). Quando mudamos para algo julgado como
bom, isso era uma vocação, quando não, está nos outros (embutido) e não em nós
(CIAMPA, 1994).
A verdade – e quem a detém? – é que hoje eu estou tentando me encontrar.
Sinto-me fragmentado, mas dependendo menos do que os outros “acham” de mim e
busco mais autenticidade nas minhas relações: “(...) um erro, qual seja o de pensar
que os substantivos com os quais nos descrevemos expressam ou indicam uma
substância que nos tornaria um sujeito imutável, idêntico a si mesmo, manifestação
daquela substância.” (CIAMPA, 1994, p.64).
Definir-me seria um erro, hoje.
Sobre este erro, que também sou, desde que me lembro das primeiras
impressões escolares que minha mãe me contou, eu era líder das brincadeiras.
Perguntei isso a ela. Não é de se estranhar que, na faculdade, eu viesse a ser o
representante de sala e é esse lugar que marca minha passagem pela FAM, pois o
acesso que tive aos professores, mas principalmente coordenação e direção, é
marcada por esse lugar.
Além disso, creio que a formação cristã na igreja batista e ter pai-pastor tenha
influenciado a tomar o lugar de representante, mesmo que não diretamente. Dessa
12
forma, não consigo dissociar muito, talvez esse seja meu maior problema, em falar
da MINHA formação, pois acredito, e sempre falei no plural. A minha voz, sempre foi
uma voz em conjunto e até minhas dores muitas vezes nem foram dores minhas,
mas dores do grupo.
Nesse momento, porém, vou me desfazendo dessa persona para falar mais
de mim mesmo e como cheguei na Psicologia. Magalhães et. al (2001) em seu
artigo Eu quero ajudar as pessoas: a escolha vocacional da psicologia, aponta que o
desejo de ajudar abrange 75% daqueles que ingressam em uma faculdade de
Psicologia (32 alunos primeiro anistas pesquisados), seguidos pelo fascínio pelo
conhecimento psicológico (62,5%), a busca de competência interpessoal (22,5%) e a
busca de crescimento pessoal (20%).
Entretanto, na terceira parte da pesquisa com protocolo de frases
incompletas, na universidade pública, a procura pelo curso de Psicologia, de acordo
com 54 estudantes se dá pela distribuição de 47,4% por Auto-Ajuda, 15,8% pela
Mídia, 11,8% por Entender o outro/ajudar, 10,5% por Questões Existenciais, 7,9%
por Crise Social/Estresse. Alunos de uma universidade privada também entendem
que 28,3% dos estudantes buscam a Psicologia como Auto-Ajuda, seguidos de
26,7% por Entender o outro/ajudar, outros 13,3% por Curiosidade/Conhecimento da
Psicologia, 8,3% por Amplo Campo de Atuação e também outros 8,3% por Crise
Social/Estresse. Interessante observar que:
“a grande procura pelos cursos de psicologia é percebida como a busca de auto-ajuda pelos indivíduos. Salienta-se que esta necessidade não foi assumida pelos sujeitos da pesquisa, mas endereçada às pessoas de modo geral, em declarações como “as pessoas acham que fazendo psicologia vão se encontrar”, “um grande número de pessoas vê no curso uma maneira de resolver seus próprios problemas”.” (MAGALHÃES et. al, 2001. p.12)
Mesmo assim, “os projetos profissionais dos dois grupos concordaram em
salientar predominantemente a “ajuda ao próximo”, enquanto motivação
ocupacional." (MAGALHÃES et. al, 2001. p.12). Em outro artigo, Carvalho et. al
(1988) 40,5% dos psicólogos entrevistados, num total de 2.417 já atuantes, disseram
que o que os motivou a escolher a profissão de psicólogos foram os voltados para o
outro, enquanto 31,4% disseram que os motivos foram os ligados à profissão e
21,9% que os motivos tinham ligação voltados para si.
Particularmente, para mim, a princípio, achei que da mesma forma com que
fui ajudado pela psicoterapia, poderia retribuir. Acabei por descobrir uma profissão
13
fascinante, um meio de obter sustento financeiro e ao mesmo tempo suprir minha
necessidade de conhecimento.
Uma formação em Psicologia não se dá pura e simplesmente pela leitura de
textos, pois daí teríamos cursos de Psicologia à distância, mas provém de vínculos,
compromissos e ética de mestres e alunos dedicados. Creio que encontrei isso na
FAM, pelo menos nesses 5 anos de formação, mesmo havendo uma nítida quebra e
esfacelamento do quadro funcional de professores, a coordenação soube manejar e
contratar pessoal adequado para equilibrar, mas não compensar a falta que
sentíamos de cada um que nos deixava.
A tensão que vivíamos a cada final de semestre era inexplicável, pois nunca
sabíamos quem seria mandado embora dessa vez, e um pesado clima abatia a
todos, chegando até a deixar alguns doentes. Olhando para trás, percebo o quanto
estávamos frágeis diante de um rolo compressor esmagando-nos como pequenas
formigas, e o mais triste é reconhecer que esse modelo empresarial na educação
não é uma exclusividade da FAM, mas em todo o ensino superior brasileiro.
Não sei até que ponto essas adaptações favorecem ou prejudicam o
currículo, porque o trabalho do psicólogo não é um “mar de rosas” e a adaptação é
frequente, como diz Piaget4, há angústia e acomodação. Dessa forma, o que a gente
tem que fazer é continuar lutando.
Descobri ao longo do curso que posso ter entrado por motivos pessoais,
nem tanto para ajudar o outro. Quando acabamos por dizer que queremos ajudar
“tanto” esse outro, podemos estar espelhando nós mesmos. O jovem perfil
“encontrado” na pesquisa de Magalhães et. al (2001, s/p), se encaixa muito comigo,
porém com algumas diferenças que relatarei a seguir:
“Um(a) jovem com idade entre 17 e 22 anos, com ambições econômicas modestas ou moderadas, que percebe-se com o desejo de compreender profundamente o ser humano a fim de poder ajudá-lo, enquanto psicólogo clínico, a vencer problemas sentimentais e existenciais através de habilidades de escuta, paciência, calma, observação, compreensão e interesse pelo outro. Ele(a) julga possuir estas habilidades, almeja aperfeiçoa-las na universidade, e espera constatar seu “poder de cura” através da observação clínica, da gratidão e do reconhecimento de seus pacientes. Este(a) jovem não percebe-se como influenciado pelo contexto familiar e julga ter feito uma opção autônoma. E por fim, não possui planos concretos para seu futuro profissional embora pense o mercado de trabalho como “esgotado”.
4 Jean Piaget (1896-1980), epistemólogo e psicólogo suíço. Explica o desenvolvimento criando a Teoria
Psicogenética, conhecida pelo construtivismo, tendo por base os processos de assimilação, adaptação,
equilibração e acomodação.
14
Bom, para começar, não sou mais tão jovenzinho, tenho 32 anos e minhas
ambições, como marido e pai, não são tão modestas, pois pretendo obter retorno
financeiro compatível com o esforço empreendido, na Psicologia.
A parte do desejo e as habilidades se encaixam bastante, mas sei que há
uma influência grande dos meus pais na opção por essa área de humanas pela
minha criação, como disse, porém a escolha de mudar de profissão é de certa
forma, um tiro no escuro, um ato de coragem – eu classifico – mas tenho um plano
de viagem para o futuro profissional.
Quem tem medo do conhecimento sistematizado?
Eu, psicólogo, um cisne negro.
O que cabe dentro de nós?
Parte perfeita, parte certinha;
Parte neurótica, mas também lado escuro da alma...
Sombra – diz Jung – mas também Ego.
Aquilo que não quero olhar, digo eu.
Será que o psicólogo se torna, por tanto contato, exatamente aquilo que tanto olha?
Ou aquilo que procura evitar olhar?
Eu, psicólogo, um dementador, só que ao contrário.
A sombra o acompanha, mas, estranhamente,
Aonde vai leva um pouco de luz... para aqueles que desejam sair da caverna,
... Mas a luz também dói aos olhos, traz a angústia da cegueira,
Pelo menos até se acostumar com a claridade,
Com a escuridão,
Com os novos óculos,
Ou com o novo ambiente,
Ou com o novo Eu.
Eu, psicólogo, um todo.
15
DE VOLTA PARA O FUTURO
Faço uma breve introdução para chegar à Psicologia. Em 2007 eu entrei
para a Faculdade Teológica Batista de Campinas no intuito de ser missionário, como
dito anteriormente, mas algo ocorreu no primeiro mês que me deixou decepcionado.
Talvez seja o “desfile de saberes”, pois para se conhecer Deus, na época, era
preciso dominar a bíblia como se fosse um cavalo de guerra, uma ferramenta mais
importante que o próprio homem, mediadora da experiência com Deus, medida pelo
número de vezes em que você a leria. Fora isso, lembro-me dos primeiros dias em
um ambiente gelado, afetivamente. Bem diferente do que esperava para uma
faculdade cujo mote seria o “amor cristão”. Faltava sentido. Fico feliz em lembrar que
percebi isso logo no começo, que havia pego um caminho errado.
Isso me faz lembrar Sartre, quando diz que “o homem, tal como o concebe o
existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e
será tal como a si próprio se fizer.” (SARTRE, 1987, p.6). O caminho que decidi
percorrer não tinha sentido no místico, no religioso, no espiritual, era preciso
considerar o homem, enquanto ser humano, então, como estava em psicoterapia,
nessa época, considerei a possibilidade de realização através da Psicologia.
Amadureci essa ideia durante esse ano de 2007 e quando me decidi, prestei
vestibular no final do ano, já que não havia mais vestibulares para a Unisal -
Americana, que era minha primeira opção, por ser mais perto de casa. Não me
informei sobre a qualidade do curso do FAM, bem como não fui indicado a ela.
Surpreendi-me.
Encontro-me, então, novamente nos bancos de uma faculdade, a Faculdade
de Americana (FAM) para iniciar o curso de Psicologia. Logo no começo eu tive
medo, mas ao mesmo tempo uma certeza de que eu estava no lugar certo, como se
eu sempre pertencera àquele lugar.
Tudo era novo, mas a minha teoria para isso, baseado em um diálogo de
CSI5 (desconheço se provém de outro lugar), é que sou uma esponja. Eu não sei
tudo, mas absorvo tudo. Eu fico embevecido com o conhecimento. E tive ótimos
professores que me ajudaram nessa caminhada.
5 CSI – Crime Scene Investigation (Vegas). Seriado norte-americano de investigação criminal. Este diálogo se dá
entre Greg e Grissom.
16
Lembro-me de cada professor e como suas aulas fizeram diferença na
minha forma de olhar o mundo. Ezequiel em Filosofia, Heloisa em Sociedade e
Cultura, Marie em Psiconeurologia, Vivian nas Práticas Textuais para ficar só no
primeiro ano. Vieram Marise, Glória, Márcio, Carolina, Lucila, Luciene, Marcelo,
Valéria... Patrícia, Samanta, Paulo, Abelardo, Márcia, Bruno, Giovana... Parecem
apenas nomes de uma lista, mas para cada um houve uma relação, um contato,
uma história, uma breve vida. Destes, hoje, estão conosco: Carolina, Marcelo,
Glória, Paulo, Bruno, Luciene, Valéria e Giovana, sendo estes quatro últimos, novos
professores na instituição.
O título “De volta para o futuro” remete a uma volta para um lugar conhecido,
como se voltasse ao “prumo”, a um rumo que havia perdido em algum lugar lá trás,
na infância ou na adolescência, quando o dinheiro falou mais alto, ou quando o
caminho falou mais alto do que os passos, ao invés de ser o contrário, como na
poesia do Quintana:
Era um caminho que de tão velho, minha filha, já nem mais sabia aonde ia...
Era um caminho velhinho, perdido...
Não havia traços de passos no dia
em que por acaso o descobri: pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria sozinho...
Eu vi... Porque são os passos que fazem os caminhos!
O último viandante – Mario Quintana (1989)
Agora eu via esse caminho e ele me levava ao futuro! Profissional, pessoal.
Por isso, olhando para trás nesse caminho, nessa trilha, percebo que plantei flores,
aproveitei ao máximo, consciente, muito consciente das escolhas que estava
fazendo. Já me peguei pensando que se escolhesse fazer essa faculdade logo que
saí do colegial, não teria aproveitado tanto, não teria significado tanto.
Minha intenção com esse TCC em forma de memorial é falar também sobre
o meu contato com a direção da faculdade como representante de sala, fazer minha
17
denúncia sobre a demissão dos professores, deixar isso registrado de alguma forma
na história da faculdade.
De qualquer forma, chegar até aqui é uma vitória e continuar, mesmo com
uma dependência (DP) que peguei por vontade própria para ficar com a Alice,
Milene e Caio, para cuidar da minha família, é para mim um orgulho, porque foi
minha única DP, e ficou um pouco corrido esse semestre, e um pouco puxado para
pagar, mas o gostinho disso tudo na formatura será demais, tenho certeza!
Sinto a necessidade de escrever sobre as coisas que tenho ouvido e visto
até aqui... Fiz as escolhas, mas elas não passam de ideias... As coisas começam a
se encaixar lentamente, mas, nesse momento, vejo-as como em suspenso...
Sabe aquele momento em que chacoalhamos a toalha no quintal? Pois é! É
assim que me sinto. Havia sementes na mesa e agora elas estão espalhadas pelo
ar... cada uma delas já tem um destino certo na terra do quintal, mas ainda são
partículas em suspenso, como em stop motion, mas naquela técnica de filme, frame,
posso alterar o curso ainda, mas elas estão lançadas... e gosto do que vejo, o dia
está claro e a terra está propícia.
O filme “De volta para o futuro” leva-nos a pensar em escolhas que
impactam o futuro. No meu caso, em minha formação, pensar sobre o passado
remete a um tempo anterior que precisou ser ressignificado, levando-me agora a
uma posição mais autêntica enquanto escolha e foram essas escolhas que me
trouxeram até aqui.
18
Poder? Pode! Podre... Pobre bode...
Expiatório, purgatório, falatório.
Será que a ovelha negra sou eu?
Sou eu o porta voz das más notícias?
Verbalizo eu as denúncias contra aquilo que me cerca?
Família, igreja, faculdade.
Porque mobilizo?
Porque faço isso?
Porque tão cretino?
Não serei eu a causa do meu sofrimento?
Não! Apenas canal, veículo do social.
Então, exorcizo a culpa! Transparente torno-me.
Que os problemas ecoem por mim,
Mas peço que me atravessem por inteiro,
Deixando em mim somente o que é meu!
QUANDO HÁ PEDRAS NO CAMINHO
E agora paira o silêncio porque o que deveria ser dito sobre mim, quando
minha formação não é só minha? Li um e-mail-texto do Gonzalez-Rey6 em que ele
fala sobre esses vínculos criados entre professor-aluno, e acredito que nosso
trabalho de autoria e co-autoria de formação foi, de certa forma, interrompido muito
bruscamente.
Se levarão o crédito? Com certeza, sim! Mas é uma falta de postura ética a
forma como essas demissões ocorrem e os vínculos se rompem. No final, nosso
projeto de formação, como um sonho de estágio, por exemplo, ou a simples
companhia, ou certeza de que aquele professor “X” estará lá, acaba indo por terra
abaixo.
Em algum lugar do texto eu já escrevi que as coisas que vivemos na
faculdade em relação às demissões são parte de algo muito maior, mas nem por
isso devo aceitar. Essas ideias liberais, especialmente no Brasil, surgem e se
fortalecem, de acordo com Soares (2001) no período desenvolvimentista em que o
Brasil precisava crescer “50 anos em 5” 7, afinal esse era o lema, e para isso,
6 Fernando Luis González Rey, psicólogo-pesquisador que trabalhou na Puc-Campinas até 2007, quando foi
demitido em meio às pesquisas, levando à publicidade do e-mail ora mencionado em forma de Carta Aberta à
comunidade de psicólogos, professores e pesquisadores em psicologia do Brasil. 7 Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek ente 1956-1961.
19
necessitava de profissionais, de técnicos, não de visão crítica. Essa ótica também é
corroborada pela:
“concepção de universidade do mercado versus concepção crítica vem sendo discutida largamente por historiadores como Noan Chomsky e teve nos anos 1960 e 1970, análises culturais, históricas e sociológicas produzidas pela nova esquerda britânica representada entre outros por Stuart Hall, Raymond Willians e Perry Anderson, e ainda discutida nas obras neomarxistas de economistas como Giovanni Arrighi ou de geógrafos como David Harvey.” (RIMBERT, 2011 apud BOLLMANN; 2011, p.4).
Bollmann e Ellterman (2011) ao discutirem esse contexto educacional
brasileiro traz o olhar necessário do quão alienante pode ser tornar – e se tornou –
uma educação que se preocupa somente com o imediato, uma educação
pragmática. A educação deixa de ser um processo libertário e passa a ser
aprisionador, dominador e sem significado:
“Identifica-se que essas reformas estariam, então, muito mais “orientadas para o mercado do que para a propriedade pública ou para a planificação e regulação estatais”, o que se deve, segundo o Banco, à “crescente importância que em quase todo o mundo têm adquirido o capitalismo de mercado e os princípios da economia neoliberal” (World Bank, 1998, p. 4; grifos nossos)”. (SGUISSARDI, 2006, p.1037)
Sendo assim, universidades voltadas para o mercado e a economia
neoliberal se preocupariam, em tese, apenas com sujeito operacional, preparado
para o trabalho e técnico, então, um curso como o de Psicologia não teria muita
expressão, além do mais, porque seria tratado diferentemente? Marilena Chauí
(2003, s/p) discorre sobre esse assunto:
“A visão organizacional da universidade produziu aquilo que, segundo
Freitag (Le naufrage de l'université), podemos denominar
como universidade operacional. Regida por contratos de gestão, avaliada
por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade
operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia
organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e
dos objetivos.”
O curso de Psicologia requer uma estrutura física e de professores cujo
custo é alto para o padrão atual de “venha estudar conosco urgente, aqui é muito
barato!”. Isso é mostrado por Sguissardi (2006) pela quantidade de faculdade
públicas e privadas em relação à ofertas de vagas por curso. Os cursos de saúde
20
são geralmente deixados paras as públicas por serem mais dispendiosos. Isso
significa algo, não? Os cursos voltados para negócios possui muito mais
concentração nas faculdades privadas:
“essa concentração verifica-se em especial no setor privado, em razão, por hipótese, dos baixos investimentos exigidos e dos altos retornos financeiros. As áreas que requerem maiores investimentos, como as de engenharia, saúde, entre outras, tendem a ser majoritariamente atendidas pelo setor público.” (SGUISSARDI, 2006, p.1029)
Além disso, outro preceito da economia neoliberal é o livre comércio, a
concorrência, e isso aconteceu com a FAM. Várias faculdades foram abertas na
macrorregião de Campinas em um período de sete anos8, corroborando a política de
falta de investimento em faculdades públicas e falta de controle e competitividade
voraz entre as privadas:
“Pelo artigo 6º, as entidades mantenedoras com finalidade lucrativa deverão apenas elaborar, a cada exercício fiscal, demonstrações financeiras atestadas por profissionais competentes (contadores). Não têm mais obrigação, como previsto no Decreto n. 2.306/97, de publicar demonstrações financeiras “certificadas por auditores independentes, com o parecer do conselho fiscal ou órgão equivalente”, nem de se submeterem, “a qualquer tempo, a auditoria pelo Poder Público” (idem, ibid., p. 47; grifo do autor). Seja pela drástica redução do financiamento às IFES, seja pelas facilidades de criação de IES privadas, especialmente com finalidade de lucro, explica-se, em grande medida, a pequena expansão do setor público e a grande expansão do setor privado no período.” (SGUISSARDI, 2006, p.1033)
Tudo bem, sou contador, entendo todas as informações acima, mas tinha
que ser feita da forma como foi feita? Não houve espaço para o afeto ou para o
subjetivo. Nunca há no mundo dos negócios. Ah, e esse ano tem ENADE9. Em uma
reunião com a coordenação pedagógica fui informado que precisamos pensar nisso
juntos e que precisamos pensar na FAM. Agora minha classe precisa pensar na
FAM, no curso, na nota – sempre na nota, no que aparece para o público. Ainda
nem falamos sobre a questão das provas, ainda.
Sabe, eu tenho muito orgulho de tudo que construí até agora, do meu curso
e de tudo que lutei. E lutei mesmo. Como representante, lutei em reuniões de
colegiado, em discussões com professores, sempre buscando uma melhor
formação, e é por isso que preciso contar minha história. Penso que dessa maneira
8 Informação verbal da direção acadêmica, em uma das reuniões de colegiado.
9 ENADE – Exame Nacional de Desempenho do Estudante
21
posso deixar minha marca em forma de texto para servir de experiência para outros.
Sobretudo e acima de tudo, registrar historicamente minha passagem por esta
instituição – totalizante – muitas vezes, como todas; mas foi isso que recebi.
Escrever sobre o processo de desligamento dos professores não é uma
tarefa fácil. Na verdade torna-se ardilosa, pois mexe naquilo que, para mim, faz o
diferencial na minha formação: meus mestres.
Entendo que, após o reconhecimento do curso da FAM em 2008, algo
diferente “passou pela cabeça” dos diretores da FAM, e nós sabemos o que foi. A
consultoria Hoper10, passou por lá e começou a “cortar as cabeças”. Trocando
professores que possuíam uma hora-aula alta por professores “mais baratos”. A
hora-aula de um Doutor valeria menos que a hora-aula de um Mestre, anteriormente.
Esse corte, logo após o reconhecimento, dá uma clara ideia de que o sentido
principal em se ter ótimos professores no curso possuía intuitos mercadológicos, no
caso, o MEC, pois após o reconhecimento e devidos avisos sobre as possíveis
demissões, os professores que não quiseram "pagar pra ver", começaram a sair,
como Maria Helena e Fernando Cordovio. Infelizmente não tive o prazer de ter aula
com eles. Não deu tempo.
Compreendo que esse movimento não ocorreu somente na FAM, mas é o
sintoma de algo muito maior, estrutural, que vem ocorrendo com o ensino superior
brasileiro.
Ao ler o memorial de Magda Soares (2001), ela narra toda uma história do
ensino superior (no caso dela, o público), que constrói a história que vivemos hoje.
Há uma teorização sobre a educação em que a necessidade da educação deve ser
voltada para questões práticas do mercado. O lema “educação para todos” é válido
até o ensino fundamental e médio. O ensino superior fica à cargo das entidades
privadas.
Sguissardi (2006), faz a crítica do financiamento das instituições através do
ProUni11 e FIES12 que através de mensalidades cada vez mais baixas, atrai os
alunos para essa “educação para todos, mas de qualidade duvidosa”.
10
Hoper Educação – consultoria de gestão universitária, estudos e pesquisas de mercado. Como consultoria,
possui objetivos de: auxiliar a instituição a profissionalizar sua gestão, atuar fortemente na redução de custos
acadêmicos e administrativos e assegurar um controle de qualidade sobre o serviço educacional fornecido.
(informações do site da empresa) 11
ProUni – Programa Universidade para Todos, cujo mote é dar bolsas de estudos, financiadas pelo governo,
em instituições privadas. 12
FIES – Financiamento Estudantil em universidades privadas.
22
Além disso, a proliferação de “instituições financeiras de educação” – termo
cunhado por mim – mais preocupadas com o lucro, do que com educação, baseadas
nos princípios básicos de economia de oferta e demanda, fazem o preço das
mensalidades despencarem. Sendo assim, o curte de custos é eminente e
necessário.
Dessa forma, começou, então, em dezembro de 2009, a demissão de
professores que, além de serem importantes para o curso, representavam muito
para a Psicologia na FAM. Não se pensa o porquê é importante ter professores
reconhecidos, com artigos publicados, dando aulas nos cursos de Psicologia. Não
apenas para uma possível iniciação científica. Que no caso nossa faculdade não
possui, somente uma universidade possuiria, mas e a questão do afeto? Fiquei
pensando se em um curso de Psicologia essa questão do vínculo não seria diferente
de outros cursos pela proximidade das supervisões, dos acolhimentos, mesmo em
sala de aula e se não deveríamos lutar mais por isso.
Há uma explicação histórica para isso. Sendo o ensino superior confundido
com o ensino técnico, ou seja, perdendo sua característica de disseminar a
consciência crítica, o papel dos professores também passa a não ser mais tão
importantes assim. Anísio Teixeira (1988 apud BOLLMANN, 2011, p.7) analisa que a
universidade é muito mais que passar conhecimento e conservar experiência
humana. Os livros fazem isso.
A universidade não é uma mera reprodutora de mão-de-obra, pois escolas
“mais singelas” podem fazê-lo com maestria. O que seria então, esse mundo
acadêmico? É o lugar onde o empirismo acontece. O conhecimento “vivo” sendo o
maior bem; depositante, depositário e depositado de conteúdos em movimento;
resultados de experiências e vivências.
Foi isso que se perdeu: a importância do professor. Qualquer um pode dar
qualquer aula, pois o conteúdo é que é importante, afinal, ele já vem pronto, não é?
O professor não. A vivência não é importante. A empatia não é importante. A
continuidade não é importante. O afeto não é importante.
Esse assunto é deveras cansativo para mim, pois existe aí uma
manifestação no curso de Psicologia, que foi tentado levar para a faculdade como
um todo, porém sem adesão total. Somente alguns alunos, que me recordo agora,
de Engenharia Elétrica, aderiram à nossa "revolta". Os demais não acreditaram ou
não quiseram mesmo.
23
E encontrei durante a graduação pessoas assim, na faculdade e na minha
classe, pessoa que, acredito eu, se dobraram ao discurso ideológico liberal e
neoliberal do individualismo, interessados em buscar apenas um diploma,
acreditando no título de psicólogo, no “canudo” que por si só garante. Não porque o
curso de Psicologia não ofereceu o subsídio para que pudessem sair da posição de
homo faber para homo sapiens – formação destacada por Gramsci (1957 apud
BOOLMAN; 2001, p.7), mas porque assim escolheram a educação que consiste em
uma espécie de “porta de entrada” para o mercado de trabalho, formando “(...) o
cidadão do século XXI: produtivo, útil, só e mudo (...)”. (SILVA JUNIOR, 2008 apud
BOLLMAN, ELLTERMANN; 2011, p.13).
Seguem fotos do "evento" do qual não me arrependo e, ao contrário, me
orgulho de ter participado, pois apesar de não conseguir segurar todos os meus
professores, acredito que poder expressar aquilo que sinto e aquilo que quero são
formas genuínas de ser congruente e não entrar em sofrimento, como dizia Pearls13.
13
Friederich Pearls (1893-1970), psicoterapeuta e psiquiatra, desenvolveu a Gestalt-Terapia.
24
Estágios
Neste tópico, gostaria de discutir a importância dos estágios obrigatórios na
formação do psicólogo. Entendo que a faculdade deu-me uma boa experiência no
contato com nosso objeto de pesquisa, a mente humana, pois desde o terceiro ano
já tivemos uma disciplina de Projeto de Pesquisa, na qual pude experienciar com a
professora Lucila, as etapas de uma pesquisa científica.
25
Meu tema foi “Motivação que levam Adolescentes a frequentar grupos em
Equipamentos Públicos” e fiz um contato com dois Centros de Referência em
Assistência Social (CRAS) em Americana, que me deram a chance de conhecer
algumas realidades e desmistificar alguns conceitos.
Ao final, a hipótese inicial de que os adolescentes do CRAS poderiam, por
ser demanda obrigatória, possuir menos motivação que os adolescentes da Unidade
Básica de Saúde (UBS) não se confirmou, afinal de contas, independente dos
grupos, estavam sendo adolescentes. O aspecto relevante da pesquisa se deu por
conta dos amigos, por conta dos vínculos, esses sim, motivadores à adesão de um
indivíduo ao grupo.
Nesse projeto, que durou todo o terceiro ano, pude perceber a importância
da pesquisa dentro da academia, pois num curso como o nosso, em uma faculdade
privada, essa oportunidade é escassa e não incentivada, e de acordo com Bianchi e
Braga (2009, p.53):
“A diferença entre instituições públicas e privadas é nítida: enquanto nas primeiras ainda é possível encontrar a pesquisa e a extensão ao lado do ensino, as universidades privadas funcionam como colégios de terceiro grau, contribuindo de modo insignificante para a produção de novos conhecimentos.” (BIANCHI; BRAGA, 2009, p. 53)
Dessa forma, acredito que tivemos uma boa formação, enquanto psicólogos-
pesquisadores, pois as trocas que fizemos durante esse período – as aulas eram
aos sábados – com o grupo foi muito rica, intensa e aprendemos que o objetivo do
ensino superior também é pesquisa, e não somente a busca de uma colocação no
mercado.
Aliás, pensamento recorrente entre as universidades-pop atualmente. Ao
analisarmos o discurso por trás das propagandas de grandes universidades, vê-se
claramente o objetivo final de melhorar a condição laboral atual, se é que existe.
Para Bianchi e Braga (2009) essa promessa acaba por não se realizar,
sendo assim, instala-se o fracasso socialmente construído. Funciona assim, se você
não tem um curso superior – seja ele de qual qualidade for – você já foi
“ultrapassado” pelos concorrentes nessa louca busca por emprego. As
universidades são regidas por lógicas mercantilistas, então:
“encontraremos a mesma lógica produtivista que controla as corporações privadas regulando o trabalho científico e acadêmico por meio da aceleração de ciclos, do estabelecimento de metas, da organização por “unidades de negócio”, da formação de equipes e da flexibilidade do trabalho intelectual.” (BIANCHI; BRAGA, 2009, p. 55)
26
Enfim, quero dizer é que mesmo com as adversidades estruturais do ensino
superior, ainda conseguimos fazer pesquisa – na universidade privada – quando há
pessoas dispostas a um currículo inclusivo. Inclusive uma das pesquisas do grupo
foi publicada. “Formação de conceitos em sexualidade na adolescência e suas
influências.” (MAROLA; MUNHOZ, 2011).
No quarto ano participei de um estágio semestral na delegacia, em que pude
observar o funcionamento dos funcionários em seus ambientes de trabalho. Como
objetivo do estágio, tivemos que fazer a descrição de cargos e funções nos moldes
de um psicólogo-institucional, conforme Bleger, em que:
“(...) nossa definição de psicólogo institucional, compreende-se a Instituição no segundo dos sentidos, dados por Fairchild e, dentro deste, inclui-se o estudo dos fatores caracterizados na primeira das acepções. Psicologia institucional abarca, então, o conjunto de organismos da existência física e concreta, que tem um certo grau de permanência em algum campo ou setor especifico da atividade ou vida humana, para estudar neles todos os fenômenos humanos que se dão em relação com a estrutura, a dinâmica, funções e objetivos da Instituição.” (1984, p.37)
Agora, no quinto ano, posso falar do estágio no CRAS, que foi uma
experiência muito intensa, de seis meses, com tempo de 2h00 semanais, em média,
em Nova Odessa. Nesse estágio pude vivenciar situações de grupo, como ser um
facilitador em dinâmicas, sem ser invasivo, administrando as funções de orientador
social, pois em vários momentos eram necessários ministrar conhecimentos, de
acordo com o Manual proposto pelo Ministério do Desenvolvimento Social.
Posso destacar nesse estágio, as dificuldades em estar sozinho em campo,
o quanto é requerido do estagiário, como se psicólogo fosse, nos locais onde atua,
pois há que se ter uma postura. Aprendi com meu supervisor, o quanto há que se
buscar a autenticidade do grupo, o fenômeno psicológico, equalizando as funções
ora de professor (necessária neste estágio), como a de psicólogo propriamente dita.
Não digo que foi fácil, mas passou. Cheguei chorando várias sextas-feiras na
faculdade por não conseguir fazê-los falar. No final, descobri que o silêncio também
diz alguma coisa:
“O ser humano fala. Falamos acordados e nos sonhos. Falamos continuamente; falamos inclusive quando não pronunciamos palavra alguma e quando escutamos ou lemos, falamos também quando nem escutamos nem lemos senão que efetuamos um trabalho ou nos entregamos ao ócio.” (HEIDEGGER, 1990 apud Feijoo, 2002, p. 152)
Além disso, existe algo no silêncio:
27
“O som do silêncio é algo bastante difícil de ser suportado, principalmente para quem já possui o coração dilacerado pelo sofrimento; o silêncio faz com que nos escutemos de maneira única sem qualquer ruído a desviar nossos sentimentos.” (ANGRAMI-CAMON, 2005, p.19)
Não sei muito bem quem estava com o coração dilacerado, se era eu ou
eles, mas realmente era difícil suportar o silêncio, pois eu sabia que havia muita vida
ali, mas não via movimento. Por outro lado, muitas angústias eram geradas na
supervisão, pois:
“(...) quando ouvimos questionamentos sobre a estrutura dos modelos vigentes de supervisão clínica, não há como rebater tais críticas, pois minimamente a supervisão é feita sobre o depoimento do terapeuta, e, o que é ainda mais contundente, apenas sobre aquilo que ele apreendeu do processo de psicoterapia e o que ele julgou ser mais importante. Se determinados fatores não são por ele considerados importantes, certamente ficarão fora do contexto da supervisão, ainda que possam ser, sob outra ótica, os aspectos mais importantes de uma determinada sessão.” (ANGERAMI-CAMON, 2005, p.33)
Dessa forma, enquanto ocorria esse estágio, o gosto pela clínica se acirrava
nos estágios individuais, pois apesar de cair em um grupo supostamente
psicanalítico, semestral com a Profa. Giovana – que apelidei de estágio da DP
(dependência), tive liberdade na atuação. Nesse estágio atendia o J. no sábado pela
manhã e foi uma experiência fantástica.
O paciente era muito difícil a princípio, com bastante resistência, fugindo de
assuntos concernentes à sua família, mas pude trabalhar em vários aspectos de sua
vida e observar mudanças, inclusive planos para o futuro, mesmo com uma
deficiência, que, a princípio, o impossibilitava de ir para a vida.
No estágio chamado de ênfase, com a Profa. Carolina, pudemos exercitar
em grupo, para começar, o sentimento de pertença. Foi um grupo que surgiu de
“sobras” de outros grupos que não se adaptaram aos demais estágios propostos e
aguardavam estágios mais específicos, a saber, por orientação teórica, portanto
havia pessoas que almejavam a comportamental, outros a fenomenológica e outros
só conheciam a professora mesmo.
A supervisora acolheu a todos e ressignificou aquele lugar de uma forma
muito especial, que jamais esquecerei, pois estávamos em conflito, frustrados e
cansados. Posso dizer que minha formação como psicólogo deu um salto qualitativo,
parafraseando Piaget, depois que começamos a atender e ser supervisionados.
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“A função de supervisão de um jovem terapeuta ou analista, salvo situações catastróficas, deve ser autorizar o terapeuta, inspirar-lhe confiança em seus próprios atos, sem a qual nenhuma cura vai ser possível. Aliás, falando em confiança, eu queria que você deduzisse desta pequena série de notas práticas só uma regra: confiou a ponto de autorizar-se, continue.” (CALLIGARIS, 2008, p.124)
Sinto que fui muito bem assessorado nessa área. Sempre havia, para mim,
um medo, uma angústia em atender as pessoas. O quinto ano havia chegado e era
o momento de “ajudar esse outro”. Fui autorizado e meu primeiro caso foi de um
luto. Depois, eu atendi M. e JV. individualmente. Uma criança e uma mulher.
Experiências diferentes e fazeres diferentes enquanto psicólogo. Para JV. utilizava
as brincadeiras nas horas lúdicas. Para M., girava mais em torno da escuta,
acolhimento e planos para o futuro.
Sobre o momento da psicoterapia, o aqui-agora, e principalmente, sobre a
pessoa que está ali, à nossa frente, acho muito significativo o que Sapienza (2004)
diz:
“... ela o faz não para que alguém a veja dentro de uma teoria ou para que elabore uma a partir do que fala. Sua existência se abre para ser compreendida. Esse é o fenômeno ali. Ele é absolutamente singular: porque aquela vida de que se trata é única, aquela sessão é única, a relação entre aquele terapeuta e aquele paciente é única. Não há duas terapias iguais.” (SAPIENZA, 2004, p.18)
OPÇÃO PELO ENFÓQUE TEÓRICO E SIGNIFICADOS NA MINHA FORMAÇÃO
Algum professor me disse que a teoria nos escolhe. Como a varinha do
Harry Potter14, sinto que sempre tendi por enxergar o mundo através da
fenomenologia. Só não sabia desse nome, ainda.
De acordo com Angerami-Camon (2005, p.33) “Não há como escolher uma
determinada teoria que não seja afinada com nossos valores pessoais.” Ele continua
dizendo que ao nos identificarmos com uma teoria e a escolhermos como
embasamento para nossa atuação, essa escolha precisa ser motivada por
identificação com nossos valores pessoais, de outra forma, seria sem sentido.
14
No livro Harry Potter e a Pedra Filosofal, o Sr. Olivaras explica que não somente o bruxo escolhe a varinha,
como ela também o escolhe: “Estranho como estas coisas acontecem. A varinha escolhe o feiticeiro, lembre-
se... acho que podemos esperar de si grandes coisas, senhor Potter.”
29
A psicanálise sempre me atraiu, confesso, acho uma teoria linda, com
explicações elegantes para o homem e suas vicissitudes, mas essa visão de homem
não condiz com meus valores pessoais de liberdade, portanto, jamais poderia
escolhê-la, mesmo que a quisesse por um bom período do curso.
Concordo com o autor em relação às teorias, numa comparação rápida entre
a psicoterapia de base fenomenológico-existencial e principalmente a psicanálise e a
cognitivo-comportamental, que:
“Enquanto a primeira trabalha de modo artesanal, aceitando cada paciente como único, alguém singular cuja peculiaridade apenas e tão somente é inerente a si próprio, as demais apresentam, além de teorizações estanques que englobam a totalidade das pessoas, um conjunto de técnicas que é acoplado a qualquer paciente que esteja sendo submetido aos seus métodos.” (ANGERAMI-CAMON, 2005, p.16)
Sendo a fenomenologia baseada na descrição, pois as coisas são, e tendo
um conceito de liberdade vindo de motivos pessoas, a fenomenologia foi uma
escolha até natural.
“Fenomenologia é uma tentativa de descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer. É dizer que a fenomenologia é voltar às coisas antes do surgimento da consciência.” (MERLEAU-PONTY, 1999 apud ANGERAMI-CAMON, 2005, p.1)
Nunca fui uma pessoa que se conformava, que se adaptava, seja em
caixinhas prontas, em treinamentos, em palestras ou em cubículos.
Lembro de um trabalho sobre ética que a professora Samanta nos deu no 2º
ano em que me baseei em alguns pensamentos do Sartre (1987), pois faziam mais
sentido pra mim, e assim, fui me aproximando desses filósofos, dessas teorias e
posteriormente, passando a enxergar o homem por essa ótica.
O trabalho era sobre o livro 1984, de George Orwell, e utilizei as ideias de
que o homem existe, está no mundo e se relaciona com ele. Esse conceito de NÓS,
que forma o mundo. Esse homem que busca sempre um sentido para a sua
existência. “Que significa então que a existência precede a essência? Significa que o
homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se
define.” (SARTRE, 1987. p.6)
Junto a esse turbilhão de novos pensamentos, vieram as bases
epistemológicas com o Prof. Marcelo em que vimos a possibilidade de uma
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abordagem fenomenológica e o quanto havia de existencialismo entranhado nisso.
Fui sendo pego por ela.
Digo “pego” porque quando fui apresentado ao Dasein, o ser-no-mundo,
sobre aquilo que é “do mundo”, mas cujo sentido está em quem o experiencia,
percebi como Sá (2008) postula:
“(...) quando o instrumento falha, anuncia-se o “mundo”. É a partir do imprevistos que o Dasein é lançado numa perspectiva em que aquilo cujo sentido era simplesmente dado revela-se como dependente de uma tessitura mais ampla e complexa de sentido, o mundo.” (SÁ, 2008, p.326-327)
Lembro-me de um exemplo do professor em que, no filme “A Fraternidade é
Vermelha”, é um carro quebrado no meio do “nada” que inicia a trama. Nossa vida é
feita e determinada por “acidentes”.
Com o Prof. Márcio, único professor existencialista de fato que pude ter
contato, mesmo na matéria de metodologia, seus pressupostos e sua visão de
homem me fizeram acreditar que estava no caminho certo. Lembro-me de um filme
que assistimos em aula, chamado “Ponto de Mutação” em que pudéssemos discutir
ciência e homem num nível que, pra mim, foi estonteante.
De acordo com Angerami-Camon (2005), muitas vezes essa abordagem
nem sequer é mencionada aos graduandos como uma proposta de psicoterapia,
sendo necessário aos acadêmicos se livrar de uma certa camisa-de-força imposta
pela instituição, que oferece como arcabouço teórico as já conhecidas teorias.
Dessa forma, o prof. Márcio, bem como a Profa. Glória, que como
coordenadora do curso sempre se preocupou com a formação integral dos alunos,
tenham bastante mérito nessa escolha.
Seguindo o semestre, agora com a Profa. Samanta tivemos a matéria de
Teorias Humanistas e Fenomenológicas em que verificamos as bases mais
aprofundadas para uma psicoterapia, não a prática, mas os principais conceitos
presentes na Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), Gestalt e Psicodrama. Nessas
aulas o método fenomenológico, a redução fenomenológica foi ficando cada vez
mais forte, fazendo mais sentido pra mim.
Acredito que tenho aprendido, principalmente no estágio de ênfase, que
todas as teorias são válidas, que posso usar as técnicas umas das outras,
elaborando uma psicoterapia para cada paciente, desde que minha visão de
31
homem, minha base epistemológica esteja firme, pois as técnicas podem ser
intercambiáveis, menos a visão de homem.
“Um processo psicoterápico baseado nesse modelo, ao considerar cada pessoa como única, com peculiaridades próprias e que não se repetem, certamente exigirá do terapeuta uma performance que irá muito além de um conjunto de técnicas estanques que se prestam a atender a qualquer paciente.” (MERLEAU-PONTY, 1999 apud ANGERAMI-CAMON, 2005, p.02)
No final das contas, acredito que as adversidades nos constroem, por mais
clichê que pareça, as pedras no caminho eu recolho para construir meu consultório!
Tenho aprendido que:
“uma sessão não termina necessariamente em seus limites horários, pois, muitas vezes, o psicoterapeuta continua a trabalhar com esse atendimento, seja discutindo o caso em uma possível supervisão clínica, seja ainda buscando subsídios teórico-filosóficos para embasar sua atuação.” (ANGERAMI-CAMON, 2005, p.28)
A formação de um psicólogo nunca termina. Cada paciente é único, cada
psicoterapia também. Construí-me psicólogo pelas adversidades, rodeado de
amigos, livros e apostilas, através de uma faculdade mercantilista, numa
“universidade operacional” como diz Marilena Chauí (2003, s/p), cuja pergunta do
artigo também me afeta, a saber, “como foi possível passar da ideia da universidade
como instituição social à sua definição como organização prestadora de serviços?”
(CHAUI, 2003, s/p)
Levo comigo experiências marcantes, amigos pra toda vida, uma vasta
biblioteca, um novo caminho, possibilidades... Digo que já não é meu primeiro
passo, mas o começo da caminhada.
Sinto-me como a borboleta do casulo, que tanto a Profa. Carol falou, da
metamorfose, do vir-a-ser. A gente não se torna psicólogo do dia pra noite, não vai
ser no dia da formatura, nem quando receber o tão sonhado registro no Conselho
Regional de Psicologia (CRP). A gente vem se construindo. Acho que já somos.
Acho que já sou. Não adianta abrir o casulo antes da hora, mas a hora de “ir pra
vida”, a hora de voar chegou. Vamos?
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fazer um TCC não é tarefa fácil, como um relato, mesmo que seja relatório
final! Escrever um TCC requer tempo, disposição, e porque não, inspiração. Não
adianta sentar na frente do computador. Às vezes não sai uma linha boa.
Fazer do meu TCC um memorial foi das tarefas mais árduas que tive. Em
primeiro lugar pela minha condição “psicológica” – porque não –, neste inesquecível
ano de 2012. Meu primeiro semestre foi recheado de atividades que me sugaram,
entendi como se tudo o que tivesse aprendido em quatro anos eu precisasse
“devolver à sociedade”, seja em que estágio for e até mesmo aqui neste memorial.
Meu segundo semestre foi menos intenso em atividades curriculares, mas
problemas pessoais me afetaram profundamente, fazendo com que me
arrependesse de haver escolhido um gênero literário que dependesse tanto do meu
“humor” para poder “ser memorial”.
Enfim, acho que as barreiras foram transpostas e entrego o trabalho ora aqui
idealizado. Ele não contém todas as características que gostaria de abordar, mas de
tão fragmentado sua construção, acabou por ser a “minha cara”. Os textos que
escrevo são fragmentos de uma existência, e por vezes, por serem como fotos,
retratam apenas aquela situação, naquele contexto. Fazer a história toda conversar,
costurar tudo isso é que foi meu maior problema. Lembro-me de uma citação do
Ciampa, porque nem tudo está completo, nem tudo está fechado, e principalmente,
não se pode dar a conhecer uma pessoa por um complexo calhamaço de papel.
“... é sabido que muitas vezes nos escondemos naquilo que falamos; o
autor se oculta por trás do personagem. Mas, da mesma forma como um
autor acaba se revelando através de seus personagens, é muito frequente
nos revelarmos através daquilo que ocultamos. Somos ocultação e
revelação.” (CIAMPA, 1994. p.60)
Nessa ocultação e revelação, não me coloco na posição do famoso “Decifra-
me ou te devoro”, pois todo esse memorial sempre teve como objetivo principal
contar uma história de uma turma de alunos que amava seus professores e foram os
perdendo um a um. Às vezes em grupos cuidadosamente dispensados em nosso
período de férias, para que não houvesse tempo de uma despedida, ou uma
manifestação. É uma forma racional de colocar no papel a indignação perante uma
instituição que nos enxergou apenas como uma matrícula, apenas como um
Registro Acadêmico (RA). Tudo o que aqui foi escrito deve-se à memória e ao
33
esforço dos professores, mesmo em períodos de incerteza, não tendo abandonado o
barco. Gente que acreditou em nosso potencial, enquanto projetos de vir-a-ser.
Muitos de nós e professores ficaram doentes pelo caminho quando se aproximava
um final de semestre. Não brigávamos pelas faltas, mas lamentávamos a covardia
de uma instituição que poderia ser diferente das demais. No começo era e tinha tudo
para continuar sendo.
Acredito que fazemos escolhas em nossas vidas e a escolha da FAM foi
essa: desmontar um dos melhores, senão o melhor curso de Psicologia que a região
metropolitana de Campinas possuía. Digo desmontar, não porque os novos
professores sejam ruins, não são, mas o vínculo que tínhamos com os professores
já mencionados era muito forte e estreito. Já estudei na Unimep e depois na PUC-
Campinas e pude vivenciar diferentes movimentos da vida universitária. Participei de
atos contra a demissão dos professores e aumento das mensalidades na Unimep.
Já na PUC-Campinas não criei vínculos suficientes a fim de querer brigar por alguma
coisa.
Na FAM, participei de reuniões com a diretoria acadêmica e financeira,
briguei por professores, por melhores condições de espaço físico, especialmente por
um “multimídia”, acabei com promessas quebradas e outras vazias. Tudo isso dói
porque a relação entre professores e alunos não é objetiva no sentido da
aprendizagem, mas são relações subjetivas, cheias de significados, como por
exemplo, ter um professor “X” naquele matéria, na supervisão do estágio, ou
corrigindo seu TCC.
Neste último semestre, para mim, o golpe maior – se é que isso seja
possível – foi perder o Serviço de Atenção Psicológica (SAPsi) em circunstâncias tão
sinistras. Por uma negociação de aluguel, disseram. Engraçado que, na semana
anterior, antes das férias – e de saber de mais essa perda – em uma das minhas
“crises de Juan”, voltando do CRAS, disse a uma professora como era gostosa
aquela salinha dos estagiários, já que não tínhamos diretório acadêmico, como na
PUC. Que muitas vezes eu ia até ali somente para conversar, encontrar meus
amigos. Isto também faz/fez parte de uma/minha formação.
Hoje na entrada do SAPsi resta uma parede branca que foi colocada para
impedir a entrada no antigo prédio. Sinto que querem nos encaixotar, nos enquadrar,
nos moldar, mas fomos feitos de carne e osso, não somos máquinas que apenas
sustentam uma ideologia de ensino superior. Por isso criticamos. Nossos corpos que
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não são dóceis, parafraseando Foucault. A experiência que levo, é que tudo isso
também nos constrói enquanto psicólogos. Coloca-nos frente à uma questão ética
que diz respeito ao ensino superior, mas também diz respeito a nós. Minha arma é
minha caneta nessa denúncia.
Amo esse trecho do “Existencialismo é um Humanismo” de Sartre,
entendendo hoje que, como psicólogo, fiz uma boa escolha, pois consigo me realizar
enquanto ser humano, não somente aquele que gostaria de ajudar “o outro”, mas
intervém, está junto com esse “o outro” no aqui-agora buscando um sentido pra tudo
isso, no social. E minha busca chega ao fim. Por enquanto.
"Não existe outro universo além do universo humano, o universo da
subjetividade humana. É a esse vínculo entre a transcendência, como
elemento constitutivo do homem (não no sentido em que Deus é
transcendente, mas no sentido de superação), e a subjetividade (na medida
em que o homem não está fechado em si mesmo, mas sempre presente
num universo humano) que chamamos humanismo existencialista.
Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador
a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si
mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo mas
procurando sempre uma meta fora de si – determinada libertação,
determinada realização particular – que o homem se realizará precisamente
como ser humano." (SARTRE, 1987, p.21-22)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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