memÓrias e vivÊncias cotidianas: o bairro mocambinho na ... · na segunda metade do século xx,...

20
1 MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA CIDADE DE TERESINA–PI EM SEUS PRIMEIROS MOMENTOS, ATRAVÉS DE SEUS ATORES SOCIAIS *Djalma Alves de Lima Filho *Licenciado em História pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI Pós graduando em História cultura e sociedade – UESPI Email- [email protected] INTRODUÇÃO O conjunto habitacional José Francisco de Almeida Neto, fundado no início da década de 1980, hoje aparece no cenário de Teresina como um dos maiores e mais desenvolvido bairros da cidade representa o papel de subcentro,oferecendo produtos e serviços que anteriormente eram disponibilizados apenas pelo centro da cidade, tornando-se um bairro bastante conhecido entre os populares de Teresina. Nesse conhecimento popular o conjunto não recebe seu nome original (José Francisco de Almeida Neto), uma pequena parte da população, inclusive do próprio bairro esse nome. O bairro de fato se popularizou com o nome de “Mocambinho”, devido o local de sua construção, que se deu em uma área de uma antiga fazenda, chamada Mocambinho, que na etimologia da palavra significa “cabaninha”. Dessa forma, esse estudo pretende a imagem dos primeiros anos do bairro através das vivências e memórias dos primeiros moradores, detectando aspectos relevantes que ficam à margem da história oficial ou das evidências objetivas dos historiadores, ou seja, fatos não registrados por outros tipos de documentos. Para a melhor compreensão do nosso objeto de estudo, foi necessário nos apropriarmos de alguns instrumentos conceituais tais como cidade, bairro, cotidiano, identidades e memória, os quais forneceram subsídios para a montagem deste trabalho. Objetiva-se nessa pesquisa, passarmos a compreender a memória do bairro Mocambinho, sobretudo, através da memória individual dos mais antigos moradores, em suas relações de vivências ou experiências passadas com o bairro. Para o trabalho de construção da memória, em nosso estudo, recorremos à História Oral, como método/técnica de pesquisa, já que permite capturar vestígios da “[...] vida cotidiana, tendo em vista que esta se mantém

Upload: dotram

Post on 17-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

1

MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA CIDADE DE TERESINA–PI EM SEUS PRIMEIROS MOMENTOS, ATRAVÉS DE SEUS ATORES SOCIAIS

*Djalma Alves de Lima Filho

*Licenciado em História pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI Pós graduando em História cultura e sociedade – UESPI

Email- [email protected]

INTRODUÇÃO

O conjunto habitacional José Francisco de Almeida Neto, fundado no início da

década de 1980, hoje aparece no cenário de Teresina como um dos maiores e mais

desenvolvido bairros da cidade representa o papel de subcentro,oferecendo produtos e

serviços que anteriormente eram disponibilizados apenas pelo centro da cidade, tornando-se

um bairro bastante conhecido entre os populares de Teresina. Nesse conhecimento popular o

conjunto não recebe seu nome original (José Francisco de Almeida Neto), uma pequena parte

da população, inclusive do próprio bairro esse nome. O bairro de fato se popularizou com o

nome de “Mocambinho”, devido o local de sua construção, que se deu em uma área de uma

antiga fazenda, chamada Mocambinho, que na etimologia da palavra significa “cabaninha”.

Dessa forma, esse estudo pretende a imagem dos primeiros anos do bairro através

das vivências e memórias dos primeiros moradores, detectando aspectos relevantes que ficam

à margem da história oficial ou das evidências objetivas dos historiadores, ou seja, fatos não

registrados por outros tipos de documentos.

Para a melhor compreensão do nosso objeto de estudo, foi necessário nos

apropriarmos de alguns instrumentos conceituais tais como cidade, bairro, cotidiano,

identidades e memória, os quais forneceram subsídios para a montagem deste trabalho.

Objetiva-se nessa pesquisa, passarmos a compreender a memória do bairro

Mocambinho, sobretudo, através da memória individual dos mais antigos moradores, em suas

relações de vivências ou experiências passadas com o bairro. Para o trabalho de construção da

memória, em nosso estudo, recorremos à História Oral, como método/técnica de pesquisa, já

que permite capturar vestígios da “[...] vida cotidiana, tendo em vista que esta se mantém

Page 2: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

2

firmemente na memória, apesar de poder sofrer alterações como resultado de experiências

posteriores ou mudanças de atitude” 1.

Sabendo da existência de poucos estudos específicos sobre os bairros da cidade de

Teresina, principalmente sobre o bairro Mocambinho, passamos a nos envolver com esta

temática, na tentativa de construir a história de um bairro com tanto a dizer como o

Mocambinho. Em suma, o referido trabalho revela toda uma memória do bairro,

especificamente de seus primeiros momentos, rico em histórias e vivências.

1 – CONHECENDO A CIDADE: PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO E

EXPANSÃO URBANA DE TERESINA NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980

Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970,

Teresina foi marcada por diversas mudanças. O geógrafo Antônio Cardoso Façanha, em

estudo sobre a cidade, considera esse período como aquele que ocorreram as maiores

transformações urbanas que, durante essa época, colocaram Teresina em face de uma nova

forma estrutural, contribuindo para alterar significativamente o próprio modo de viver do

citadino teresinense.

A década de 1970, também foi marcada pelo processo de verticalização da cidade

de Teresina, onde já se observava a presença esporádica de edifícios na área central da cidade,

o que não promovia, naquele momento, uma concentração vertical de edifícios, ou melhor,

uma verticalização na forma concebida atualmente. Este fato decorria devido à ausência de

uma estratégia de mercado por parte dos agentes imobiliários. O que vigorava naquele

contexto, era a produção de edifícios públicos e comerciais, objetivando centralizar a oferta de

serviços com salas para escritórios, porém desprovido, ainda, da lógica de construir para

lucrar.

Na década de 1980 o processo de verticalização acelerou-se fortemente, com o

“aparecimento de edifícios de apartamentos residenciais de luxo (...)” 2. Assim, “Teresina vai

1 MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória: uma cultura popular revisitada. São Paulo: Ed. Contexto. 2002. p.17. 2FAÇANHA, A. C. A evolução urbana de Teresina: agentes, processos e formas espaciais na cidade. 1998. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 1998. p. 210.

Page 3: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

3

se verticalizando e crescendo, as modificações demonstram que o progresso já está se

instalando entre nós, alterando o perfil da cidade e até os costumes de seu povo” 3.

Com o crescimento da cidade,A população excluída desse processo é jogada para

fora da área que se valoriza. “O resultado será, necessariamente, a segregação social gerada

pela disputa pelo acesso aos espaços da cidade [...]” 4. Dessa forma, os espaços das zonas

Centro e Leste passaram a possuir características de segregação de “alto status”. Por outro

lado, a classe pobre também promoveu a expansão da cidade devido à ocupação progressiva e

indiscriminada das áreas periféricas gerando crescimento desordenado.

E o governo Federal, para minimizar os problemas urbanos e suas contradições,

criou o Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo.

Estas instituições iriam gerar, nos anos seguintes, a construção de vários conjuntos

habitacionais, possibilitando a expansão horizontal da cidade.

Até o final dos anos 1980 foram construídas aproximadamente 23.179 unidades

habitacionais, triplicando a quantidade existente até então. Tal produção expressiva de

habitações, nas décadas de 70 e 80, demonstrou o grau de importância e de complexidade que

adquiriram os conjuntos habitacionais na produção do espaço urbano de Teresina, provocando

a expansão da cidade em todas as direções5.

Esta implantação de tantos conjuntos habitacionais em várias áreas da cidade

acelerou o processo de urbanização de Teresina, embora os contingentes de nível de renda

mais baixos continuassem excluídos do sistema e localizados cada vez em áreas mais

afastadas e menos valorizada.

É nesse contexto histórico da cidade de Teresina que surge o Conjunto

Habitacional José Francisco de Almeida Neto, o Mocambinho, que a imprensa local noticiou

na véspera da inauguração da seguinte forma:

[...] Um dos maiores e mais modernos conjuntos de habitação popular do Nordeste,

o Mocambinho que tem o nome oficial do engenheiro José Francisco de Almeida

Neto, ex presidente da Companhia de Habitação do Piauí (COHAB-PI), terá sua

primeira etapa inaugurada amanhã pelo governador Lucídio Portella. A primeira

etapa do conjunto, que após concluído terá mais de seis mil unidades habitacionais,

3 SAMPAIO, F. R. R. Informativo Mensal. [da] Associação Industrial do Piauí, Teresina, ano 2, n. 5, set. 1997. p. 3. 4 RIBEIRO, L.C. e AZEVEDO, S. A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. p. 116. 5 FAÇANHA, A. C. A evolução urbana de Teresina: agentes, processos e formas espaciais na cidade. 1998. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 1998.

Page 4: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

4

conta com 3031 casas. O Mocambinho fica situado na zona Norte de Teresina e é

uma obra da COHAB do Piauí financiada pelo Banco Nacional de Habitação

(BNH). Conta o complexo habitacional José Francisco de Almeida Neto com 70

unidades destinadas a ponto comercial, um grupo escolar com vinte salas de aula,

duas quadras de esporte, uma unidade de saúde, e um posto policial, além de

serviços de drenagem, pavimentação de ruas e avenidas, energia elétrica e

abastecimento d’água. A primeira área do Mocambinho a ser inaugurada será o

sexto lote, com 780 unidades, aproximadamente. Ontem já era grande o número de

pessoas que visitavam o conjunto, procurando sentir o ambiente.6

3 - MOCAMBINHO: SEUS ANOS INICIAIS, LEMBRANÇAS E VIVÊNCIAS

COTIDIANAS DE SEUS PRIMEIROS MORADORES.

O conjunto habitacional José Francisco de Almeida Neto, o “Mocambinho”, um

bairro construído em uma política já vivenciada anteriormente, o Estado com pretensões totais

interferindo na dinâmica dos espaços, indicando a função social deles, ou seja, delimitando

que tipo de serviço serve para aquela região, ou então que camada social deve habitar

determinado canto da cidade, violentando a dinâmica natural aglutinadora do diferente,

repartindo a cidade em áreas comerciais, industriais, e bairros residenciais, estes por sua vez,

subdivididos em “rica, média e baixa renda”.

O bairro Mocambinho foi construído em uma área que pertencia a uma antiga

fazenda, de mesmo nome, que na etimologia da palavra significa “cabaninha”7. Sua

construção se deu em três etapas, a primeira no ano de 1982, com a oferta de 3031

residências, a segunda no ano de 1984, com 976 casas, e a última etapa no ano de 1986, com

1132 residências.8 De fato, os novos bairros foram construídos distante do centro da cidade de

forma que não impedissem a expansão das áreas empobrecidas, um movimento de separação

das classes sociais e funções no espaço urbano que os estudiosos da cidade chamam de

segregação espacial. E o bairroMocambinho (Figura 1) não foge a regra, foi construído em

6Mocambinho terá 1ª etapa inaugurada. O DIA. Teresina 19/20 de dezembro de 1982. 7 Caderno Teresina em Bairros. 2002. Teresina em Bairros foi publicado em 1994, pela SEMPLAN, órgão público da Prefeitura Municipal de Teresina, com a função de contribuir para a história da cidade de Teresina, oferecendo informações relativas a cada um dos bairros de nossa capital, apresentando os dados históricos, populacionais, habitacionais dos bairros, agrupado segundo as Administrações Regionais. 8Cohab-PI. 2012.

Page 5: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

5

um espaço que era considerado o extremo Norte da capital piauiense, inserido no processo de

segregação espacial da cidade de Teresina:

FIGURA 1 – Localização e mapa do bairro Mocambinho

Fonte: SEMPLAN-PMT

Para a melhor compreensão dos primeiros momentos do bairro Mocambinho, foi

necessário lançar mão da metodologia da História Oral, pois, segundo Thompson9, está em

consolidar a ideia de quem dela se utiliza para registrar as evidências também se conscientiza

de que qualquer atividade está, irremediavelmente, inserida num contexto social.

Sobre a memória, mesmo sabendo que essa “[...] sofre flutuações que são função

do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa [...]” 10, para a realização

do nosso estudo, esta passou a ser uma ferramenta essencial no sentido de capturar os

fragmentos das vivências ou experiências passadas dos vários atores, que viveram os anos

iniciais do bairro.

Como as expressas nas palavras da funcionária publica MariaDalcimar Maciel

Santana:

Eu vim pra cá, primeiro porque era um sonho meu ter uma casa própria, e foi muito

bom pra mim, até porque a prestação da casa era tão pequena, e eu morava de

aluguel, e o salário que eu ganhava, eu gastava boa parte com ele, e pra mim, vim

9 THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 10 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, v. 5, n. 10, 1992. p. 203.

Page 6: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

6

pra cá foi uma mudança total, meu orçamento ficou bem mais aliviado, e essa casa

que eu ganhei pra mim foi um presente de Deus, pra eu poder criar meus filhos.11

Ou nas do policial civil Raimundo Nonato de Sousa,“eu estava casado e morando

de aluguel, aí eu fui recebendo a casa e vindo logo pra cá, tive bastante pressa, tinha também a

facilidade de pagamento, e o fato de eu ta vindo para uma casa própria, minha mesmo, me

livrando do aluguel, isso foi muito melhor pra mim” 12.

Além disso, os entrevistados ao descreverem a paisagem inicial do bairro,

chamam a atenção para o aglomerado desértico de casinhas brancas (Foto1), relatando que

muitas vezes chegavam a se perder. Como conta a dona de casa Joana Ribeiro da Silva

Ferreira,“as casas eram todas branquinhas, a gente nem conhecia a casa da gente direito, eu só

conhecia a minha casa porque meu vizinho tinha um jipe velho, e eu identificava porque a

minha casa era em frente a casa dele, aí tinha vez que eu errava, meu marido que sabia qual

era a casa certa, a gente se confundia com as casas”13.

Foto 1: Bairro Mocambinho em seus primeiros anos.

Fonte: O DIA. Teresina, 19/20 dez. 1982, p. 8.

O bairro em seus primeiros momentos mostrou-se bastante isolado do restante da

cidade, tendo seu principal trecho de acesso, a Avenida Duque de Caxias, como um grande

problema que atormentava os moradores, devido às péssimas condições de trafegabilidade e a 11SANTANA, Maria Dalcimar Maciel. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 12 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 13 FERREIRA, Joana Ribeiro da Silva. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013.

Page 7: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

7

falta de uma pavimentação adequada, “as vias eram tudo piçarra, bastante poeira, pra gente

sair de um local pra ir pra outro demorava muito”.14

Sobre os problemas enfrentados pela população do bairro, começaremos com a

questão da água encanada, que já nos primeiros dias de ocupação do bairro, os moradores já

enfrentavam problemas, como foi noticiado no Jornal O Dia na época,

[...] Os mutuários do conjunto habitacional Mocambinho, recentemente inaugurado

na zona Norte da capital, estão tendo problemas com o abastecimento d’água [...] o

que na opinião de um residente “é um fato revoltante, porque já deveríamos receber

a casa com pelo menos água encanada”. Raul da Silva, morando agora em sua nova

casa, na quadra 22, casa 33, disse que na noite de sua mudança foi dormir com sede

juntamente com sua família. Segundo ele, “quando nos mudamos tivemos muitos

problemas, porque não tinha água, falamos com os vigilantes da construtora e ele

nos concedeu dois baldes d’água que não era boa pra beber e fomos dormir

morrendo de sede”. Uma nova mutuaria que instalou-se no bairro [...] afirma que

está conseguindo água nos tanques que são usados pelas construtoras para o

abastecimento dos canteiros de obra, “e definitivamente não é uma água boa para

beber”. Um dos motivos da falta de água nas instalações domiciliares é o estouro

freqüente das tubulações de distribuição geral. “toda vez que ligam e a água corre

pelos canos”, afirma, “eles terminam rebentando, agora mesmo acabaram de ligar a

água e um cano geral estourou atrás da minha casa”. Acrescenta ainda que “desta

vez a água ainda não chegou até as minhas torneiras”. O morador José Palaciano

Sampaio, da quadra 10, casa 17, diz que o conjunto foi inaugurado e deveria estar

com tudo funcionando15.

Com o abastecimento de energia elétrica, não foi diferente, o serviço mostrou-se

também deficiente, como afirma o morador José Palaciano Sampaio em entrevista ao jornal O

Dia,[...] “Tem muita gente aqui morando sem luz”, diz ele, “e estou usando velas para a

iluminação, apesar de já terem colocado na minha casa o contador de energia”. Segundo os

moradores, a falta de energia elétrica nas residências recém-habitadas é devido a não

instalação dos medidores [...]16.

As ruas (Foto 2) também ocasionaram diversos impasses para a população do

Mocambinho, primeiramente pelo fato do bairro ser entregue de forma prematura e inacabado

para a comunidade, pois o conjunto foi inaugurado sem a construção e pavimentação

14 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 15 Mutuário dorme com sede no Mocambinho. O DIA. Teresina 29 de dezembro de 1982. p. 8. 16 Ibid.

Page 8: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

8

adequadas das ruas, ou seja, as ruas nem sequer existiam, como relata o jornal na época,[...] O

mutuário Gilvan Dias que mora na quadra 21, casa 18 do setor “C” do Mocambinho, disse

[...] que as ruas ainda não foram construídas, fazendo com que os veículos trafeguem bem

diante de suas portas, trazendo muita poeira e perigo para as crianças [...]17.

E após serem construídas causou certo estranhamento por parte dos moradores,

devido o formato em “ziguezague”, “que segundo a intenção da COHAB na época, era para

evitar acidentes” 18. Além do estranho formato em ziguezague, as ruas eram bastante estreitas,

atrapalhando assim a entrada de veículos no interior do bairro, ocasionando alguns problemas,

entre eles, o serviço de coleta do lixo doméstico, que ficava na responsabilidade dos

moradores, que acumulavam o lixo nas ruas, enterrando nos quintais, ou, ainda transportando

nos ombros até os matagais que circundavam o núcleo residencial. Em consequência, alguns

moradores tinham problemas com os vizinhos.

[...] Uma moradora da quadra 45, casa 09 do setor “A” Francisca Eliane, disse que

está atirando o lixo no amontoado cada vez maior que há entre sua casa e a de sua

vizinha, que também está fazendo o mesmo. Mas, isso é problema para uma dona de

casa do setor “C”. Ela afirma que sua vizinha, que mora a uma quadra adiante, atira

lixo diariamente em frente a sua casa. Apontando para o amontoado de detritos,

lamenta que isso esteja acontecendo, porque ela mesma não faz isso. “já reclamei a

ela, mas de nada adiantou”, diz a mulher inconformada [...]19.

Foto 2: Ruas do Mocambinho nos primeiros anos.

Fonte: O DIA. Teresina, 08/09 maio. 1983, p. 8. 17Mocambinho não tem água e sofre exploração. O DIA. Teresina (PI), 15 de janeiro de 1983. p. 8. 18 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 19 Lixo do Mocambinho toma ruas estreitas. O DIA. Teresina 01 de fevereiro de 1983. p. 5.

Page 9: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

9

Dessa forma, se livrar do lixo domestico era uma tarefa constante no dia a dia dos

moradores, como nas palavras de seu Raimundo Nonato,

No período que não tinha ainda a coleta de lixo, a solução que os moradores

tomavam era recolher o lixo para jogar nos lugares mais distantes do bairro, cada um

era responsável para dá um fim no seu lixo, inclusive ali naquela mata onde hoje é o

parque ambiental foi acumulado muito lixo, era o lugar mais próximo que a gente

jogava o lixo, e isso continuou até quando chegou o carro da coleta de lixo, depois

que ajeitaram as ruas20

O que também se confirma através de relatos de moradores, em entrevista a um jornal na

época,

[...] Domingos Pereira dos Santos [...], afirma que todos os dias, às 17 horas, coloca

o lixo de sua casa nas costas e vai despejá-lo a muitos quilômetros a diante. Um

morador do setor “A” disse que apenas os mutuários que moram nos limites

externos do conjunto estão se livrando bem do lixo, “porque estão atirando ele no

mato” [...]21.

Uma das grandes preocupações de uma cidade que se expande de forma muito

drástica em curto espaço de tempo é o alargamento da área de cobertura dos serviços

ofertados pelo Estado, como saúde, transporte, segurança. Já na década de setenta, período de

maior desenvolvimento de Teresina, o transporte público era uma das questões levantadas

pela cidade.

[...] Em Teresina, o povo reclama de um velho problema: o sistema de transporte de

massa. Para todos os bairros, a situação é a mesma com raríssimas exceções, como a

do bairro Piçarra, considerado o mais bem servido, devido aos veículos de outros

bairros. Espera de até uma hora e meia. Chuvas no período do inverno. Poeira na

época do verão. Irritação. Ônibus superlotados são os problemas comuns que

enfrentam todos os dias, em Teresina, a comunidade pobre. Como resolver o

problema do transporte coletivo numa cidade onde o número de ônibus não

acompanha o crescimento populacional [...] 22

20 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 21 Lixo do Mocambinho toma ruas estreitas. O DIA. Teresina 01 de fevereiro de 1983. p. 5. 22 População reclama de coletivos. “O DIA”. ANO XXVII. n° 5054. 5 de abril de 1978.

Page 10: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

10

Em um bairro, majoritariamente de pessoas com baixo poder aquisitivo, essa

problemática se torna questão de primeira necessidade.

O transporte público era precário aqui pra gente, ônibus era muito difícil, as vias

eram tudo piçarra, bastante poeira, pra gente sair de um local para outro custava

muito, era muito difícil o transporte coletivo, as paradas de ônibus eram distantes

uma das outras, não tinha local certo para os ônibus estacionarem, nos primeiros

anos a quantidade dos ônibus, era muito pouca, eram ônibus velhos23.

O conjunto Mocambinho é citado em inúmeras reportagens da época, mostrando a

dificuldade de transporte de seus moradores, tanto pela escassez de ônibus como pela

precariedade destes, fato que incomodava os moradores, que se reuniam para reivindicar

melhorias neste serviço, como nesta iniciativa de estudantes universitários e moradores do

bairro, que elaboraram um abaixo assinado relacionando todas as dificuldades do conjunto

para ser entregue aos diversos órgãos a que os problemas se referiam, incluindo o setor de

transporte.

[...] Na área de transportes, os universitários relacionaram as seguintes

reivindicações: aumento da frota, parte dos ônibus fazendo linha entre o centro da

cidade e o conjunto, linha que passa pela Avenida Centenário (beneficiará mil

estudantes), e que também incluem o centro administrativo, postos de taxi no

conjunto, funcionamento do “corujão” (ônibus noturno) [...]24.

O problema do transporte coletivo ainda se agravava com o inicio do período

letivo, pois a quantidade de passageiros crescia bastante, em razão do número de estudantes

que se deslocava para o centro da cidade. A estrutura das ruas – muito estreitas e em

ziguezague – dificultava ainda mais a situação dos moradores, em razão da circulação dos

ônibus por dentro do conjunto.[...] Maria José Costa Leodigo, residente na quadra 19, casa 30,

setor B, chama a atenção para o problema, dizendo que quem mora em áreas mais distantes,

como o setor C, enfrenta muita dificuldade, pois tem que fazer um bom percurso para tomar o

ônibus [...] 25.

23 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 24 Mutuários do Mocambinho unem-se para reivindicar. O DIA. Teresina 12 de fevereiro de 1983. p. 4. 25Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983. p. 8.

Page 11: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

11

A buraqueira e as poças d’água que se formavam na via de acesso e na principal

avenida do Mocambinho era outro problema que prejudicava seriamente o desempenho dos

transportes coletivos no conjunto, uma vez que muitos ônibus da empresa Primavera,

concessionária da linha na época, se quebravam no percurso. Essa era a justificativa do dono

da empresa.

[...] O empresário Almir Feijó declarou que enquanto existirem os buracos na via de

acesso ao Mocambinho o transporte coletivo estará seriamente prejudicado, “pois

sempre que quebra um ônibus, temos que levá-lo para a oficina, diminuindo assim o

número”. [...] Com as chuvas que caem diariamente em Teresina, a buraqueira na

via de acesso ao Mocambinho aumentou muito. “Quando os ônibus passam a

trepidação é intensa e há inclusive, perigo de um pneu sacar, provocando um grave

acidente, uma vez que os ônibus só andam lotados”, frisou. [...]26.

Aliado ao problema do setor de transportes estava também o impasse da saúde,

preocupação constante por parte dos moradores, pelo falo de não existir um posto médico no

conjunto, dificultando mais ainda a vida da população, que tinha que se deslocar para os

hospitais dos bairros vizinhos em busca de um atendimento médico, como conta seu

Raimundo Nonato, “quando alguém adoecia, eu ia direto pro Hospital SEPAM, na Avenida

Centenário, no bairro Aeroporto”. Este problema agravava-se ainda mais devido o isolamento

do bairro, que não possuía nem mesmo um telefone público, que segundo os moradores, a

instalação dos mesmos possibilitaria a [...] resolução de problemas nesse sentido, sobretudo,

para a marcação de consulta na pediatria do INAMPS [...] 27.

Em referência ao isolamento do conjunto, isso contribuiu para gerar mais

transtornos. Surgiram diversas dificuldades relacionadas com a segurança, principalmente

pelo fato de não existir um policiamento adequado. Era muito comum notícia sobre

violência.[...] As casas que ainda não foram ocupadas pelos mutuários, no conjunto

26Mocambinho vai ter mais 5 ônibus novos até o dia 15. O DIA. Teresina 30 de Março de 1983. p. 8. 27

Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983. p. 8.

Page 12: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

12

Mocambinho, estão sendo saqueadas por vândalos e ladrões. Há casos de unidades que não

contam mais com fechaduras, outras que já tiveram portas e janelas depredadas [...] 28.

A população enfrentava aborrecimentos com roubos noturnos:

[...] Segundo o comerciante João Gomes, proprietário do Bar Mocambinho Drinks,

situado na quadra 19, casa 17, do setor B [...] na parte da noite, quando todos

começam a se recolher para dormir, elementos desocupados procuram arrombar as

portas das residências com a intenção de roubar, não conseguindo porque muitas

vezes são surpreendidos pelo dono da casa. E assim eles não desistem e partem para

arrombarem outras casas [...]29,

E durante o dia, chegando ao ponto das mulheres lavarem as roupas e ficarem vigiando o

varal onde estavam estendidas, “aqui era muito perigoso, a gente não podia colocar uma roupa

no varal e vim pra dentro de casa, quando você chegava já não tava mais, os ladrões passavam

e pegavam as roupas, a gente acabava de estender as roupas e ligeirinho eles levavam”30,e a

população atribuía essa falta de segurança à ausência de um posto policial no bairro, e o

descaso dos policiais do 7° distrito policial, que [...] não atendem os moradores do conjunto,

pois falam que o distrito não faz parte da jurisdição daquele bairro. [...] Muitas pessoas que

tiveram suas casas roubadas no conjunto nem se importam mais de pedir providências à

polícia, pois eles se negam a registrar a queixa [...]31.

Os moradores enfrentavam a exploração por parte dos comerciantes do bairro, que

vendiam os produtos a preços elevados, [...] em todo o conjunto as donas de casa se ressentem

dos elevados preços dos gêneros de primeira necessidade, comprados a preços superiores aos

do centro da cidade [...]32, além da precariedade dos gêneros de primeira necessidade, como

[...] a carência de produtos hortigranjeiros. A dona de casa Joaquina, residente na quadra 40,

casa 04, no setor A, diz que verduras, legumes e frutas têm que comprar no centro da cidade

[...]33.

Outro produto necessário aos moradores e que causava transtornos era o gás de

cozinha, por não existir um posto de venda no conjunto, e também pela impossibilidade de

28Casas do Mocambinho. O DIA. Teresina 08 de janeiro de 1983. p. 3. 29Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983. p. 8. 30SANTANA, Maria Dalcimar Maciel. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 31Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983. p. 8. 32Mocambinho não tem água e sofre exploração. O DIA. Teresina (PI), 15 de janeiro de 1983, p. 8. 33 Ibid.

Page 13: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

13

acesso do caminhão que comercializava o produto ao interior do bairro devido as ruas

estreitas e em ziguezague. A solução para os moradores era se dirigir para outros bairros para

a compra do utensílio, “quando acabava o gás, você tinha que pegar a bicicleta, como eu

cansei de fazer várias vezes, e ir comprar lá no Memorare, ali onde hoje é a Indaiá, nessa

época só tinha lá, isso durou bastante tempo”34, ou buscar o produto na casa de algum parente,

ou apelar para outra alternativa improvisada.

A falta de escolas nos primeiros anos do conjunto foi mais uma das dificuldades

que também assolou a população do bairro. Eram comuns as reclamações referentes a esta

adversidade.

[...] Reclama Maria do Amparo quanto a falta de escolas públicas. Segundo ela, há

apenas uma escola para crianças, assim mesmo particular. “Quem tem um ou dois

filhos pode pagar, mas quem tem muitos meninos não há condições”. A construção

de jardins de infância deve ser prioridade por parte da Secretaria de Educação e

Prefeitura de Teresina, segundo a opinião de Maria do Amparo e de outros

moradores que tem crianças de três a cinco anos [...] 35.

De fato fica bem claro que os anos iniciais do Bairro Mocambinho foram

marcados por problemas de toda ordem enfrentados pelos moradores. Contudo, merece

atenção especial a questão das enchentes (Foto4), que marca a história do bairro como a maior

dificuldade já enfrentada pelos moradores. Nas palavras de dona Joana, “os alagamentos

foram o maior problema que nós tivemos aqui, foi o único problema que me tirou da minha

casa” 36.

As enchentes ocorridas no bairro afetaram profundamente a vida dos moradores,

pois uma [...] enorme quantidade de água se acumulou na área livre entre os três setores do

conjunto e os pisos de muitas residências cederam, destruindo móveis e fazendo com que

centenas de moradores abandonassem suas casas [...].37 Alguns mutuários procurando fugir do

problema,

34 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 35Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983. p. 8. 36 FERREIRA, Joana Ribeiro da Silva. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 37Mocambinho inundado com a água da chuva. O DIA. Teresina (PI), 08 de fevereiro de 1983, p. 5.

Page 14: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

14

[...] se abrigaram em casas até então desocupadas, levando consigo seus pertences, e

trazendo a indignação dos proprietários. No entanto, a COHAB – PI permitiu a

ocupação até que os mutuários prejudicados tivessem suas casas reparadas. [...] Há

casos de estarem convivendo até duas famílias na mesma casa depois das invasões,

que foram freqüentes durante os dias de inundação [...] Os moradores em

dificuldades ocuparam as casas, cujos donos se encontram ausentes, mas

prometendo abandonarem tão logo suas moradias estejam restauradas [...]38

Mesmo não sendo algo positivo para o dia a dia dos moradores, as enchentes

contribuíram para uma interação maior entre os moradores, pois nesse momento de

dificuldade, aqueles que não tiveram suas casas invadidas se mostraram prestativos ao

problema, “tinha solidariedade de todo mundo, todo mundo era amigo, não faltou nada pra

ninguém não”.39 “Nesse período a solidariedade dos vizinhos era grande, cada vizinho fazia o

que podia para ajudar os outros, eu mesmo aqui cansei da ajudar, botando coisas em cima de

caminhão pra tirar de dentro de casa”.40

Além de todos os prejuízos e transtornos ocorridos devido às enchentes, houve

ainda casos de morte em conseqüência do problema.

[...] Quando tentava retira a tampa da galeria de escoamento d’água, juntamente com

quatro colegas, o operário Luiz Rodrigues da Silva, de 39 anos, casado, foi levado

pela forte correnteza da água que subitamente passou a entrar no buraco de mais de

dois metros [...] Luiz Rodrigues foi pego de surpresa, sendo levado para dentro da

galeria, onde morreu minutos depois [...] A tragédia abalou a população do

Mocambinho [...]41.

38Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina (PI), 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983, p. 8. 39 FERREIRA, Joana Ribeiro da Silva. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 40 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 41 Homem morre trabalhando numa galeria do Mocambinho. O DIA. Teresina 10 de fevereiro de 1983. p. 12.

Page 15: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

15

Foto: Enchente no bairro Mocambinho.

Fonte: Fonte: O DIA. Teresina, 10 fev. 1983, p. 8.

Assim, pode-se constatar que apesar de considerarem uma grande conquista a

possibilidade de morar em um novo bairro, e passarem na maioria dos casos, de inquilinos

para proprietários de casas pagando apenas uma prestação simbólica, os habitantes do referido

bairro não aceitavam o descaso do governo reivindicando melhorias com as autoridades

competentes e acima de tudo, unidos para a busca de soluções e acolhimento dos mais

prejudicados.

Enfim, O conjunto habitacional José Francisco de Almeida Neto, fundado no

início da década de 1980, e que hoje aparece no cenário de Teresina como um dos maiores e

mais desenvolvido bairros da cidade, oferecendo produtos e serviços que anteriormente eram

ofertados apenas pelo centro da cidade, passou por grandes dificuldades, contudo, mesmo com

grandes problemas o bairro Mocambinho se desenvolveu e tornou-se um dos maiores bairros

da capital piauiense, talvez porque “sempre teve uma troca de favores entre os vizinhos, que

eram solidários uns com os outros”42, o que contribuiu para o seu crescimento. Ou podemos

encontrar explicação nas simples palavras de seu Raimundo Nonato, “o bairro é grande

porque é formado por pessoas boas”43.

42SANTANA, Maria Dalcimar Maciel. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. 43 SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013.

Page 16: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

16

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tomar como objeto de estudo o conjunto habitacional José Francisco de

Almeida Neto, o “Mocambinho” que, na década de 1980, se revelou como um novo espaço

dentro da cidade de Teresinaobjetivou-se analisar seus anos iniciais, a partir da sua

criação,historicizando os fatos relevantes através das memórias e vivências cotidianas dos

primeiros moradores, detectando aspectos que ficam à margem da história oficial ou das

evidências objetivas dos historiadores.

Ao lançar um novo olhar sobre obairro, nota-se que mesmo com todas as

dificuldadesem decorrência da incipiente bibliografia sobre essa temática, foi necessário

trabalhar com a memória, dos mais antigos moradores do bairro, que a partir das suas

experiências passadas, demonstraram um espaço cheio de riquezas e múltiplas vivências,

construídas a partir de um simples cotidiano, desvendando relatos que merecem vir à tona,

contribuindo, assim, para enriquecer esta produção historiográfica.

Esperamos que este trabalho seja relevante, no sentido de que, se torne mais uma

referência para aqueles que desejam conhecer a história do bairro, contribuindo, assim, para

enriquecer a história de uma Teresina repleta ainda de vários espaços a serem explorados e

conhecidos pelos seus habitantes.

Page 17: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

17

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, A. de. Embriões de cidades brasileiras. Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: AGB/São Paulo, n. 25, 1957. BARROS, José D'Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Vozes, 2007, p.108. Este conjunto de aspectos, e mais alguns outros, é que autorizariam a classificar uma formação como "cidade", conforme discussão proposta por Barros na obra citada. BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto. Lisboa: Edições 70, 2006 BOSI, Ecléia. Memória da cidade: Lembranças paulistanas. In: BOSI, Ecléia. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velho. 5. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Caderno Teresina em Bairros. 2002. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: contexto, 204. CERTEAU, Michel de, GIARD, Luce e MAYOL, Piene. O Bairro. In: _. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Tradução de Ephaim F. Alves e Lúcia E. Orth. Petrópolis, RJ: vozes, 1996. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. 13. Ed. Petrópolis, RJ: vozes, 2007. Cohab-PI. 2012. CORRÊA, R. L. Agentes modeladores e uso do solo urbano na cidade capitalista. Rio de Janeiro: [S. n.] 1979. CUCHE, D. Cultura e identidade. In: _ (org). A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2002. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo e identidades. Belo Horizonte: autêntica, 2006. DERRUAUX, M. Tratado de geografia humana. Barcelona: Editorial Vicens-Vives, Barcelona, 1964. FAÇANHA, Antonio Cardoso. A evolução urbana de Teresina: agentes, processos e formas espaciais na cidade. 1998. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 1998. FREITAS, Sônia Maria de. História Oral: possibilidades e procedimentos. São Paulo. Humanistas/ FFLCH/USP: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

Page 18: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

18

HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva, 2001. CD-ROM. IBGE – Estimativas / Contagem da População 2007 14 de novembro de 2007 LE GOFF, Jacques. Memória. In: _. História e Memória. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994. LENCIONI, Sandra. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008. p. 117. LIMA, Antônia Jesuíta de. Favela COHEBE: uma história de luta por habitação popular. Teresina: EDUFPI, 1996. LIMA, Iracilde Maria de Moura Fé; NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida; ABREU, Irlane Gonçalves de; NUNES, Maria Célis Portela. Teresina tempo e espaço. Teresina: EDUFPI, 1997. MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cidade. In: _. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, SP: EDUSC, 2002. MENESES, Ulpiano T. Bezerra. O museu na cidade x a cidade no museu: para uma abordagem histórica dos museus de cidade. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 5, n. 8/9, set. 1984/abr. 1985.

PEREIRA, P. C. X. P. Cidade: sobre a importância de novos modos de falar e pensar as cidades. In: Bresciani, Maria Stella. Palavras da Cidade. Porto Alegre; UFRGS, 2001. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. Estudos históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, v. 8, n. 16, 1995. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Prefácio. In: NASCIMENTO, Dorval do; BITENCOURT, João Batista (Orgs.). Dimensões do urbano: múltiplas facetas da cidade. Chapecó, SC: ARGOS. 2008. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, v. 5, n. 10, 1992. RAMINELLI, Ronald. História Urbana. In: VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro F. S. (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. RIBEIRO, L.C. e AZEVEDO, S. A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. RIBEIRO, Niovania Mourão. Itararé: uma luta pela sobrevivência (1977 à 1981) Teresina: Universidade Estadual do Piauí – Campus Clóvis Moura, 2006, [monografia de conclusão de curso]. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 3. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

Page 19: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

19

SAMPAIO, F. R. R. Informativo Mensal. [da] Associação Industrial do Piauí, Teresina, ano 2, n. 5, set. 1997. SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO.Teresina em Bairros. Teresina: SEMPLAN, 1994. THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ZAMBONI, Ernesta. Tradição e Cultura Escolar. In: História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral, v.8, n.1, jan-jun. São Paulo: Associação Brasileira de História Oral, 2005.

FONTES ORAIS

FERREIRA, Joana Ribeiro da Silva. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013.

SANTANA, Maria Dalcimar Maciel. Entrevista concedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013. SOUSA, Raimundo Nonato de. Entrevistaconcedida a Djalma Alves de Lima Filho. Teresina, 2013.

FONTES HEMEROGRÁFICAS

Abastecimento de energia foi ampliado em todo o Piauí. O DIA. Teresina (PI), 26 fev., 1978, p. 02. Agespisa e a obra do século. JORNAL DO PIAUÍ.Teresina (PI), 21 jun. 1977, p. 01. Alagados do Mocambinho. O DIA. Teresina 10 de fevereiro de 1983. p. 10. Casas do Mocambinho. O DIA. Teresina 08 de janeiro de 1983. p. 3. ESTADO do Piauí. Teresina, 15 maio 1971. P. 04. Governador inaugura o Promorar e Mocambinho. O DIA. Teresina (PI), 21 de dezembro de 1982. p. 1. Homem morre trabalhando numa galeria do Mocambinho. O DIA. Teresina 10 de fevereiro de 1983. p. 12. Lixo do Mocambinho toma ruas estreitas. O DIA. Teresina 01 de fevereiro de 1983. p. 5. Mocambinho inundado com a água da chuva. O DIA. Teresina (PI), 08 de fevereiro de 1983, p. 5.

Page 20: MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS COTIDIANAS: O BAIRRO MOCAMBINHO NA ... · Na segunda metade do século XX, mais precisamente, na década de 1970, Teresina foi marcada por diversas mudanças

20

Mocambinho não tem água e sofre exploração. O DIA. Teresina (PI), 15 de janeiro de 1983. p. 8. Mocambinho terá 1ª etapa inaugurada. O DIA. Teresina 19/20 de dezembro de 1982. Mocambinho vai ter mais 5 ônibus novos até o dia 15. O DIA. Teresina 30 de Março de 1983. p. 8. Mocambinho, problemas de toda ordem são enfrentados pelos moradores. O DIA. Teresina 13, 14, 15, 16 de fevereiro de 1983. p. 8. Mutuário dorme com sede no Mocambinho. O DIA. Teresina 29 de dezembro de 1982. p. 8. Mutuários do Mocambinho unem-se para reivindicar. O DIA. Teresina 12 de fevereiro de 1983. p. 4. População reclama de coletivos. “O DIA”. ANO XXVII. n° 5054. 5 de abril de 1978.