memória e ficção na correspondência do escritor joão antônio
TRANSCRIPT
Memória e ficção na correspondência do escritor João Antônio
Resumo O escritor João Antônio sempre fez questão de, em
entrevistas ou textos autobiográficos, aliar sua produção lite
rária à sua história de vida. Este é também um aspecto encon
trado em sua correspondência trocada com o amigo de longa
data Jácomo Mandatto. São mais de três décadas de troca de
cartas, cujo montante acaba por configurar-se quase como
um livro de memórias. Palavras-chave João Antônio; cartas,
literatura brasileira.
Abstract Either in interviews or biographical texts, the writer
João Antônio always wanted to associate his literary produc
tion with his life history. This is also an aspect found in the
correspondence exchanged between João Antonio and his old
friend Jácomo Mandatto. It lasted more than three decades
and its amount represents almost a memoir book. Keywords
João Antonio; letters; Brazilian literature.
Quando eu morrer; meus amigos de fé herdarão minhas cartas. Tomara fiquem ricos.
[João Antônio]
Vida e Obra Durante mais de trinta anos de profissão, o escritor João Antônio fez
da palavra a sua arma de combate. Refratário às divisões de gênero comumente
feitas pelos estudiosos da literatura, produziu textos que chamam a atenção por
seu caráter de hibridismo e inovação estética. Deu voz à “ralé”, à “arraia miúda”,
enfim, segundo ele próprio diria, àquela faixa que, a despeito de ser a maioria da
população brasileira, só era lembrada quando surrada pela polícia em manifesta
ções reivindicatórias ou estádios de futebol.
Polígrafo, como o definem muitos estudiosos de sua obra, João Antônio construiu
uma carreira sólida na imprensa brasileira. Atuou no Jornal do Brasil, O Pasquim ,
Última Hora, O Estado de S. Paulo , na revista Realidade, assim como na imprensa
“nanica”, termo cunhado por ele para definir os pequenos órgãos de comunicação
que se espalharam pelo país a partir dos anos de 1960.
Desde seu livro de estreia, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), o autor já dava a
tônica do que seria a sua produção literária. Ambientes e pessoas de sua infância,
adolescência e vida adulta, misturados a personagens de ficção, eis aí um dos
principais traços da obra de João Antônio. Em um polêmico manifesto, “Corpo-
a-corpo com a vida”, inserido em Malhação do Judas carioca (1975), ele desafia os
escritores brasileiros a falar da realidade do país, ou seja, do futebol, de umbanda,
das favelas, dos bordéis, dos meninos de rua etc. Entretanto, defende-se daqueles
que o viessem a acusar de panfletário: para ele, o escritor deveria ser um “ban
dido falando de bandidos” e, assim, eliminado o espaço que separa um do outro,
não teríamos um panfleto, ou um retrato, mas a voz do próprio “bandido” sendo
a mola propulsora do texto.
Para que esse “corpo-a-corpo” pudesse ser travado com a vida, o contista defen
dia que os escritores saíssem de suas poltronas e de seus escritórios confortáveis e
fossem para a “cena do crime”, ou seja, para as ruas, botequins etc. O escritor, con
tudo, não deveria ser um mero observador dessa realidade nova para ele. Foi, en
tão, marcada com o grifo da realidade que se fez a produção literária e jornalística
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. »357
de João Antônio. Em entrevistas, sempre fez questão de associar a sua experiência
pessoal com a de muitas de suas personagens, deixando também sempre claro
que a matéria observada e vivida precisava ser transfigurada pelo trabalho estéti
co, para se tranformar em literatura.
Essa aderência do autor ao universo narrado determinou a construção de um
imaginário que funcionou como uma espécie de faca de dois gumes para a sua
produção: ao mesmo tempo em que provocava certa curiosidade no público e na
crítica, o que tornava badalados seus livros, também ocasionou análises rasteiras,
que levavam em conta apenas os aspectos mais triviais de sua obra, não dando
conta de suas inovações formais.
Fizemos essa introdução sobre as concepções literárias de João Antônio porque
são fundamentais para o entendimento do objeto de estudo que será apresentado
aqui, ou seja, parte de sua correspondência - aliás um dos gêneros textuais mais
praticados pelo autor.
Correspondências O que a leitura da obra de João Antônio permite entrever é
que ficção e realidade não são os lados opostos da mesma moeda; ao contrário,
em alguns momentos, uma pode servir de reflexo para a outra. Se na produção
literária temos a presença marcante de elementos factuais, na escrita de cartas
encontramos momentos em que o trabalho linguístico empregado permite que
aproximemos tais textos daqueles de natureza ficcional.
Antes de entrarmos propriamente na análise de suas cartas, vamos a uma breve
apresentação desses documentos. Trata-se de uma coleção de mensagens episto
lares trocadas entre João Antônio e o amigo jornalista Jácomo Mandatto, m ora
dor de Itapira, no interior do Estado de São Paulo.
Em 1962, João Antônio era um autor que se preparava para deixar o ineditis-
mo. Seu prim eiro livro, depois de ter os originais destruídos por um incêndio1
que atingiu a casa de seus pais, teve partes re-escritas e já havia sido aprovado
1 Alguns textos foram destruídos com pletam ente , enquanto outros, por já terem sido publicados em suple
mentos literários, puderam ser recuperados mais facilmente pelo escritor. Para re-escrever os demais, João
Antônio afirma ter recorrido tam bém a amigos, a quem, eventualmente, havia enviado partes do livro.
358 • OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA,Telma Maciel da. Memória e ficção..
para publicação por um a das principais editoras daquele mom ento, a C iv ili
zação Brasileira. Nessa época, o escritor enviou “M eninão do caixote” para o
concurso de contos organizado pelo Centro Itapirense de Cultura e A rte , presi
dido por Mandatto.
Premiado com a segunda colocação no certame, João Antônio foi convidado para
uma cerimônia que reuniria os vencedores. De início, aceitou o convite, mas de
pois, por conta de outros compromissos, desculpa-se e acaba por não comparecer
à solenidade. É dessa forma que nasce a longa correspondência trocada entre ele
e Mandatto, diálogo que, com certos hiatos e também períodos de intensa troca
postal, duraria até meados da década de 1990, pouco tempo antes da morte do
contista de Leão-de-chácara.
É interessante salientar que a amizade nasce por conta da troca de cartas e não
o contrário. João Antônio e Jácomo Mandatto, antes de se encontrarem pessoal
mente, correspondem-se por alguns anos. Ao longo da vida, tais encontros foram,
certamente, muito menores em quantidade do que o envio de cartas, que somam
cerca de trezentas, a maior parte remetida por João Antônio.
Às cartas, juntam-se também centenas de artigos de jornal de e sobre João Antô
nio acumulados por Mandatto ao longo dos anos em que se correspondeu com
o escritor. Vale observar que todo este manancial de documentos foi sendo com
posto também por conta da correspondência, uma vez que grande parte dele foi
enviado pelo próprio hedonista, a fim de munir o amigo não só de material ne
cessário para que ele divulgasse prontamente a publicação de seus livros, como
também para que se tornasse uma espécie de arquivo biográfico.
Em carta de i° de outubro de 1980, João Antônio faz algumas reflexões a respei
to dos documentos que enviava a Mandatto e o “nomeia” seu biógrafo oficial:
“Como v. vem sendo de uma fidelidade draculesca nestes últimos vinte anos, fica
eleito meu biógrafo-ensaísta, etc. precocemente”. Não só a correspondência tro
cada com Mandatto deveria servir de base para essa biografia; cartas a outros de
seus destinatários também deveriam ser recolhidas e publicadas.
Vê -se, assim, que João Antônio se relacionava com a sua correspondência de
m odo muito particular. De um lado, ela é espaço de experim entação linguís
tica, que culm ina em um trabalho estético; sob essa perspectiva, algumas das
cartas (ou trechos delas) irm anam -se a textos literários de sua lavra. Por outro
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. »359
lado, há também a assum ida estratégia de preservação da m em ória e constru
ção de um im aginário, o que acaba por perm itir a leitura do conjunto como
uma espécie de autobiografia fragmentária, associada às estratégias discursivas
do diário íntimo.
Neste ponto, chegamos ao cerne deste trabalho, uma vez que memória e cons
trução literária em João Antônio são questões bastante imbricadas. Como vimos
anteriormente, a sua prosa de ficção acolhe fatos e, principalmente, pessoas reais,
ganhando um matiz literário não exatamente pela inventividade ficcional, mas
sobretudo pelo engenhoso trabalho com as palavras e, ainda, pelo tratamento
dado às personagens, que assumem as rédeas da história, como se o escritor por
trás delas nem sequer existisse.
A memória construída como literatura O escritor português Virgílio Ferreira,
no livro de memórias Conta-Corrente i, afirma: “O meu diário está nas centenas
de cartas aos amigos” 2 Esta frase, a nosso ver, pode também ser aplicada a João
Antônio. Suas inúmeras cartas acabam constituindo um diário, cujos textos me-
morialísticos encontram-se espalhados entre diversos interlocutores e que, agora,
começam a ser sistematizados.3 Sabemos que o diário, a autobiografia, o romance
autobiográfico, o autorretrato e a epistolografia são gêneros de natureza diferen
ciada no conjunto das “escritas de si” Entretanto, na coleção de cartas trocadas
entre João Antônio e Jácomo Mandatto, estes gêneros em dados momentos se en-
trecruzam, uma vez que o discurso vai se moldando de acordo com as estratégias
textuais dos interlocutores.
Maria Luiza Ritzel Remédios, ao tratar da dificuldade de diferenciação entre al
guns gêneros da “escrita de si”, assevera:
2 Apud SOUZA, Luana Soares de. "O eu desconstruído em Conta-corrente, de Virgílio Ferreira". In: REMÉDIOS,
Maria Luiza Ritzel (Org.). Literatura confessional: autobiografia e ficcionalidade. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1997, p. 133-
3 Duas coletâneas de cartas do autor foram organizadas em 2005. São elas: ANTÔNIO, João. Cartas aos amigos
Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. GIORDANO, Cláudio (Org.). Cotia: Ateliê Editorial, 2005; SEVERIANO, Mylton.
Paixão de João Antônio. São Paulo: Casa Amarela, 2005.
360 • OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. Memória e ficção..
Considerando a frágil delimitação entre romance autobiográfico e autobiografia e
observando que essa última pode ser considerada como ato literário e, daí, ficcional,
observa-se quão difícil se torna também delimitar, na literatura confessional, as fron
teiras entre autobiografia e diário íntimo, ou entre autobiografia e autorretrato, ou
ainda entre autobiografia e memórias.4
O que nos leva a pensar a correspondência entre João Antônio e Jácomo Mandatto
como algo situado entre o diário íntimo e a autobiografia é que ela apresenta
características tanto de uma quanto de outra expressão memorialística, dando
significado, na prática, à própria dificuldade de delimitação dos gêneros testemu
nhais acima verificada pela ensaísta.
Aqui, a escrita introspectiva do diário e aquela que busca um interlocutor para
a narrativa de suas memórias aproximam-se - isso se pensarmos o conjunto da
correspondência - da produção da carta, a qual descarta a possibilidade de outros
leitores, além do interlocutor imediato.
Um exemplo paradigm ático de como se dá o processo de aproxim ação de gê
neros discursivos pode ser observado na carta de João Antônio enviada em
1963 a mais de um de seus correspondentes, e que mais de duas décadas depois
foi publicada, no livro Abraçado ao m eu rancor, como um conto. Trata-se de
“Uma força”, o qual tendo sofrido pequenas alterações em sua form a original
(mensagem epistolar) para ganhar o estatuto de ficção, não perdeu a essência
daquilo que “ inform ava” na carta. Esta, pela form a, em nada difere de uma
carta comum; contudo, tanto o conteúdo quanto o trabalho empregado na lin
guagem causam certa estranheza numa prim eira leitura, pois apresentam um
trabalho linguístico bastante apurado. A todo momento a linguagem chama
mais atenção para si própria do que para o enredo, o que nos remete àquele
efeito de estranhamento que, segundo Jakobson, diferencia a linguagem literá
ria das outras.
Assim João Antônio inicia a carta:
4 REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. Literatura confessional: espaço autobiográfico. In: REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel
(Org.) Literatura Confessional: autobiografia e ficcionalidade. Ed. cit., p. 13.
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. *361
São Paulo, 25 de março de 1963
Jácomo Mandatto, meu faixa:
Deu-se ontem e de repente e se eu quisesse imitar Clarice Lispector, diria: era um
cágado de domingo.
Aconteceu-me um cágado.
Eu andava nas minhas marchas por aí e como me houvessem esquentado a cabeça
com aporrinhações domésticas e rusgas profissionais, dinheiro que deveria haver mais,
apresentações e cuidados de que não cuido, eu andava por aí.
Acabei, como sempre, pelos subúrbios mais distantes. Lá, Jácomo, longe-longe das
minhas chateações.
Uma carta semelhante a essa foi enviada à poetisa Ilka Brunhilde Laurito. Nela
observa-se apenas a mudança de interlocutor e de outros dados pontuais. Esse
fato suscita a reflexão sobre a natureza da correspondência de João Antônio. Ao
enviar exatamente a mesma missiva para amigos diferentes, o escritor acaba por
anular o princípio de que a correspondência é o diálogo entre duas pessoas, ou
seja, de que uma carta é escrita para um interlocutor particular, sendo os demais
leitores descartados desse processo.
Aqui, tal qual num texto autobiográfico, João Antônio quer narrar a sua história
para mais de um interlocutor. Envia, então, o texto como se fosse uma carta co
mum em que conta uma história também comum. Dessa forma, o interlocutor é
importante apenas no ambiente da correspondência, uma vez que na forma conto
este acabou sendo suprimido: já não se fazia necessário, afinal todos eram interlo
cutores em potencial. Assim, é possível observar que, se retirarmos aquele a quem
o discurso se destina, teremos um texto que se aproxima bastante de uma prosa
introspectiva, como aquela que se observa no diário íntimo.
Nesse ponto, mais uma vez, chegamos à questão da carta enquanto suporte lite
rário. Além dessas características mais formais com relação ao cruzamento de gê
neros da escrita de si, há ainda o aspecto estético que se coloca bastante premente
nessa carta. Já no trecho citado, podemos observar um diálogo com o conto “Uma
galinha” (Laços de fam ília), de Clarice Lispector, por meio do uso da expressão
362 • OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. Memória e ficção...
“cágado de domingo”, que no texto da autora aparece como “galinha de domingo”
logo na frase que abre a narrativa.5
Sobre a possibilidade de uma carta apresentar traços de literariedade, Sophia An-
gelides sinaliza:
Embora numa carta a descrição de uma paisagem, o relato de um acontecimento, de uma
vivência, a expressão de um sentimento tenham o cunho de veracidade, da não-ficção, por
que seu sujeito-de-enunciação é histórico, o material linguístico é submetido ao crivo alta
mente seletivo do escritor, que recria a sua experiência pessoal. A este propósito, Jakobson
lembra, oportunamente, que o ator, ao retirar a máscara, mostra sua maquilagem.6
Na carta em questão, nem sequer sabemos se a história do cágado realmente
aconteceu. A este respeito, Jácomo e João Antônio falam ainda outras duas vezes
em cartas futuras: como o amigo pergunta sobre o réptil, João Antônio responde
que ele havia fugido. O assunto só volta à tona mais de vinte anos depois, quando
o texto é publicado no jornal O Estado de S. Paulo e, em seguida, na coletânea do
escritor. Portanto, nos estudos de epistolografia sobrepõe-se à “verdade do fatos”
o interesse pelo “registro” em si, como ensina Ângela de Castro Gomes:
está descartada a priori qualquer possibilidade de saber “o que realmente aconteceu”
(a verdade dos fatos), pois não é essa a perspectiva do registro feito. O que passa a impor
tar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo registro e como seu autor diz
que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação ao acontecimento.7
Uma das leituras possíveis para a carta-conto de João Antônio é, segundo pensa
mos, a de que se trata de um texto metalinguístico. Sob essa perspectiva, o escritor
5 Na carta dirigida a llka Brunhilde Laurito, em 25 de março de 1963, Jo ã o Antônio escreve: "Deu-se ontem
e de repente e se eu quisesse imitar Clarice Lispector, diria: era um cá g a d o de domingo". In: LAURITO, llka
Brunhilde. Jo ã o Antônio, o inédito. Remate de Males (Campinas), 19. Universidade Estadual de Campinas -
Instituto de Estudos da Linguagem. Revista do D epartam ento de Teoria Literária, 1999.
6 ANGELIDES. Sophia. Carta e literatura:correspondência entreTchékhov e Górki. São Paulo: Edusp, 2002. p. 23.
7 GOMES, Ângela de Castro. "Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo". In: GOMES, A.C. (org.). Escrita
de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 15-
Teresa revista de Literatura Brasileira [8 19]; São Paulo, p. 356-371, 2008. .363
estaria discutindo no texto o próprio fazer literário, tal qual o faz em “Afinação
da arte de chutar tampinhas” (Malagueta, Perus e Bacanaço), cujo narrador, em
meio à inadequação de sua vida, dedica-se a criar uma arte de chutar tampinhas
que encontra pela rua. Assim como as “tampinhas” podem ser vistas como metá
foras para “palavras” e, portanto, os “chutes”, para a arte narrativa, cremos que o
cágado e a ternura que provoca no narrador também podem simbolizar o apego
do escritor pela literatura.
Assim, na solidão de homem desenhada na carta-conto, o narrador encontra na
palavra a sua companhia perfeita, porque “transcendental” :
havia e há entre nós um liame que se prende a coisas tremendamente transcendentais:
o calor que sofríamos na subida longa de Vila Ipojuca, aqueles nossos ares de solidão,
a chateação comum: a minha de homem, a dele de réptil semiterrestre. Sós e andari
lhos, cágado e eu.
Nesse caso, a exemplo do conto “Afinação da arte de chutar tampinhas”, a palavra
e, por conseguinte, quem dela se enamora são também marginalizados, uma vez
que não se enquadram entre os valores dominantes em nossa sociedade. Naquele
conto, vemos o protagonista se esmerando em seus chutes, enquanto seu irmão
desfecha: “Você é um largado. Onde se viu essa agora!”8
Na carta, a família também aparece como elemento de incompreensão, afinal “ti
veram medo do cágado. Ou quase” ; os familiares ainda se lembram de sugerir
um nome de imperador para batizar o humilde animal. A í surge mais uma vez
a afirmação da escolha do escritor (que nesse caso coincide com a do narrador)
pelas “criaturas e viventes que se mexam com humildade, que tenham tolerância,
humanas e boas como o cágado”. Ou seja, é possível pensar que, com isso, o autor
esteja negando a grandiloqüência de certo ramo literário, enquanto reafirma a
linguagem recriada a partir de suas vivências da rua.
No trecho a seguir - “Sei que ele próprio carrega a sua casa nele mesmo. Tolice pre
tender a construção de uma casa aquática ou terrestre. Mas sou um egoísta, gostei
dele, quero que fique comigo. Que faça aquele silêncio seu de persistência e sabe-
8 ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 42.
364« OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA,Telma Maciel da. Memória e ficção..
doria”, talvez pudéssemos pensar que há uma certa resignação do escritor frente à
impossibilidade de traçar um caminho para suas criaturas, já que estas, alheias aos
desejos de seu criador, acabam por seguir o destino dado a elas pelos leitores.
Há, ainda, nesse excerto, algumas construções linguísticas dignas de nota. Quando
diz “quero que fique comigo”, notamos que o modo como utiliza os fonemas im
prime certa dureza à frase. Ouvimos quase um bater de pés, algo entre uma birra
e uma imposição. Entretanto, tal dureza é amenizada pela frase seguinte - “Que
faça aquele silêncio seu de persistência e sabedoria” em que a repetição de
fricativas provoca uma alteração cujo efeito é de leveza, algo como um deslizar, o
que está em total consonância com o silêncio invocado pelo narrador.
Vejamos, a seguir, o trecho em que explica o porquê de contar ou não os episó
dios narrados:
Eu lhe conto essas coisas, Jácomo, da condição de um cágado e da minha condição,
porque você é Jácomo Mandatto, um sujeito bom e munido de antenas. Só a sujeitos
assim eu conto. Porque há coisas a dizer que estão muito além do arroz com feijão de
cada dia, da alta ou queda do dólar.
Nota-se que, para se estabelecer o diálogo, esse alguém colocado do outro lado
deve ser “munido de antenas” Isso equivale a dizer que o leitor precisa “entender”
ou estar disposto a entender as coisas “que estão muito além do arroz com feijão
de cada dia”. O narrador parece dizer-se consciente de que seu texto, provavel
mente, será incompreendido, afinal poucos o lerão em profundidade.
Adiante, a relação estabelecida entre os cuidados que toma com o réptil e o traba
lho de criação artística aparece ainda mais explícita:
Telefonei ao Butantã, tomei conselhos com amigos, indaguei, agora sei que meu cága
do é um cágado e não é jabuti. Um cágado-de-pescoço-de-cobra.
E é, Jácomo, como se fosse um filho. Tem dado cada susto, Jácomo, é como se fosse
um amor.
Um sentimento indefinido me une ao réptil cágado, um querer bem, um querer
tomar conta, fazer bem, não deixar faltar nada. Que é que sei...
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. «365
É possível notar logo no início o trabalho que o narrador despende em busca
do termo correto para designar o animal. Depois de toda a pesquisa, afirma, por
meio da junção de cinco palavras, que este é “um cágado-de-pescoço-de-cobra”,
criando um efeito visual bastante curioso, fazendo do vocábulo construído a ima
gem do próprio pescoço do animal.
Em “E é, Jácomo, como se fosse um filho. Tem dado cada susto” há algo da afir
mação constante de que suas personagens seriam seus filhos. E adiante, “Jácomo,
é como se fosse um amor” cria um efeito análogo a este expresso anteriormente,
já que a literatura é sua grande paixão, tal qual diria metaforicamente em seu
único poema, “Choros - para Pintagol e Cuíca” : “a [mulher] que eu não tenho / é
quem requebra só pra mim / e quando acorda me entreolha e diz / se ainda dur
mo, vida, ficaste mais linda”.9
Ao final da carta temos uma espécie de prece: “Peço ao Senhor das esferas, não ao
Deus fantasiado, esculpido ou rezado das igrejas, mas a um Deus de consciência
cósmica, eu peço, Jácomo. Só faz um dia... Mas que o cágado não morra antes de
mim”. Aqui talvez pudéssemos interpretar como um desejo de perenidade, de que
seus textos conseguissem sobreviver até muito depois de sua morte.
Outro elemento que merece ser citado - agora mais com relação à versão pu
blicada em livro de contos - é que, em “Uma força”, João Antônio inseriu a per
sonagem Aldônia, que figura como uma espécie de amor juvenil do narrador.
O interessante disso é que no conto “Afinação da arte de chutar tampinhas” temos
também uma Aldônia. Esta, entretanto, surge na cabeça do narrador, que aparenta
não ser mais tão jovem como o da outra narrativa, como uma lembrança ruim:
“Engraçado - Aldônia até hoje não presta”.10
Com relação ao imbricamento entre construção memorialística e literária, há
outros trechos da correspondência que são emblemáticos. Seja em seus textos
de caráter mais pessoal, como por exemplo em seu autorretrato, “De Malagueta,
Perus e Bacanaço”11 seja em sua literatura propriamente dita, vê-se certo esforço
9 ANTÔNIO, Jo ã o apudSEVERIANO, Mylton. Paixão de João Antônio. São Paulo: Casa Amarela, 2005, p. 89.
10 ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. Ed. cit., p. 40.
11 Texto publicado em vários órgãos de imprensa à época da edição de Malagueta, Perus e Bacanaço; na edição
da obra feita pela editora Círculo do Livro, na década de oitenta, e, finalmente, na edição preparada pela
editora Cosac Naify, referenciada acima.
366 • OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. Memória e ficção..,
por parte de João Antônio em ratificar o imaginário de escritor boêmio, com total
aderência às suas personagens. Este empenho foi quase totalmente recom pen
sado, uma vez que poucos foram os analistas de sua obra que conseguiram falar
dela sem remeter, ainda que por derivação, à sua experiência de vida.
Se esse entrecruzamento entre vida e obra se dá tão fortemente na literatura joão-
antoniana a ponto de parte da crítica ter sido levada pelo canto da sereia, na cor
respondência esse canto fica ainda mais forte. Nela, tudo é potencialmente verda
deiro, uma vez que aquele é o espaço da confissão e dos desvelamentos do eu.
É aí, nesse espaço confessional, que João Antônio mais uma vez se recria, torna-se
persona e ficcionaliza a sua memória, com a diferença de que isso não se dá de
maneira retrospectiva, como quando um autor escreve a sua autobiografia e faz a
seleção ora consciente ora inconsciente daquilo que deseja que conste de seu me
morial. Aqui, temos um autor que escreve suas memórias no calor da hora, pois
a consciência da posteridade o faz tornar-se persona, algo entre a pessoa real e as
suas diversas personagens literárias.
Em estudo anteriormente citado, Sophia Angelides trata dessa fusão “entre a per
sonalidade literária e a humana” no escritor russo Máximo Górki. A autora anali
sa uma carta e afirma que esta
é, sem dúvida, um documento, um depoimento, mas é sobretudo um trecho muito
gorkiano. Ao expor os sentimentos que Tio Vânia suscitou, volta-se para si mesmo,
exprimindo-se de maneira exuberante e emotiva, numa linguagem adornada de com
parações, digressões e imagens, o que é característico de grande parte de sua obra
literária. Convém ainda lembrar que os escritos de Górki são marcados pelo elemento
autobiográfico. Daí decorre que parece haver, frequentemente, uma fusão muito dire
ta entre a personalidade literária e a humana.12
Vejam os, pois, exem plos dessa fusão nas cartas de João Antônio a Mandatto.
Em carta de 24 de maio de 1963, ele fala sobre sua solidão e sobre como a lite
ratura o afeta:
12 ANGELIDES. Sophia. Op. cit., p. 25.
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. »367
Eu deveria estar arrasado por dentro e não estou. A literatura, Jácomo, tem todas as
funções que você deseje determinar. Sobre mim, solitário e dracular Jácomo, este
fato extraordinário funciona inteiramente. Terapêutica, forma estranha de vingança
e reconstrução, cópula mental, namoro comigo mesmo, luz, fonte, martírio e insatis
fação também. Seriam necessários muitos adjetivos, advérbios, substantivos e verbos
para esclarecer o que se passa comigo diante da literatura. Jácomo, ela me arranca
do caos. Puxa-me pelos cabelos, pelas pernas, pelas ventas. Como naquele diálogo
imenso (e de tão poucas palavras) que Emanuelle Riva repete: “Tu me matas. Tu me
consolas”. Assim. Como em “Hiroshima, mon amour” 13
Neste excerto, o tom inicial é de diálogo, mas já apresenta algo de ensaístico, pois
propõe uma reflexão sobre as funções da literatura. A seguir, um certo lirismo vai
contaminando o texto, até que, ao final, não conseguimos escapar à sensação de
ter lido um poema.
O uso de paradoxos, aliado a uma pontuação que se faz expressiva por meio do
recurso da gradação, permite ao leitor experimentar a sensação de integralidade
proposta pelo autor. Vamos, num crescendo, sendo inundados por aquele sentir
que, longe da linearidade, apresenta-se por meio de termos usualmente antitéti-
cos, mas que aqui são primordiais na construção do todo: “ Terapêutica, forma
estranha de vingança e reconstrução, cópula mental, namoro comigo mesmo, luz,
fonte, martírio e insatisfação também”. Nota-se ainda que o escritor não usou um
único verbo na construção desse período, o que faz com que este esteja totalmen
te subordinado, tanto ao que o antecede quanto àquele que o sucede.
A seguir, ele desfecha: “Seriam necessários muitos adjetivos, advérbios, substan
tivos e verbos para esclarecer o que se passa comigo diante da literatura”. Vemos
aí que o escritor emprega o verbo “ser” no futuro do pretérito, o que indica, em
certa medida, uma necessidade cuja perspectiva de resolução é pequena, já que
esta se encontra num tempo intermediário entre futuro e passado.
Por fim, João Antônio tenta novamente definir a sua relação com a literatura. Outra
vez, temos o jogo de paradoxos, pois ao mesmo tempo em que diz “ela me arranca
do caos”, o que remete a uma situação de calmaria, também afirma que a literatura
13 Carta de 24 maio 1963.
368 • OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. Memória e ficção..,
o puxa “pelos cabelos, pelas pernas, pelas ventas” imagem que alude mais a uma
luta do que à tranquilidade expressa anteriormente. Ao final do excerto, notamos
que esses paradoxos são ainda mais reafirmados por meio de construções como
“diálogo imenso e (de tão poucas palavras)” e “Tu me matas. Tu me consolas”
Podemos ver nesse trecho um exemplo do tom ensaístico cultivado por João
Antônio em sua correspondência com Mandatto, uma vez que temos um texto
buscando teorizar sobre a função e os efeitos da literatura na vida do autor, sendo
que, em certa medida, este parece figurar ali também como símbolo dos aficiona
dos por aquela arte e não simplesmente representando a si próprio.
Há ainda outro trecho dessa mesma missiva14 que vale ser citado. Trata-se de um
longo parágrafo em que o escritor descreve o processo de produção de um ro
mance que vinha escrevendo sobre o universo da propaganda15:
Ah, Jácomo, mas há a imensa arraia miúda da propaganda se misturando aos ricos
da propaganda! Gloriosos e vitoriosos, canalhas e sorridentes, desfilarão os donos de
agências com suas residências na Avenida Nove de Julho, no Brooklin, suas ostenta
ções. A miséria humana, a incomunicação, a solidão de um artista, as banhas dos di
retores, a verminose eloquente que anda na cara dos meninos entregadores de coisas,
as briguinhas por causa de cinquenta mil réis. A exdruxularia passeando. Os melhores
cobradores são sempre péssimos pagadores. O sentimento de menos valia que envolve
o artista, sua errada verificação de uma falência que nada tem a ver com ele mesmo.
O homem torcido, os canalhas sempre marchando para uma vitória. A modelo prosti
tuída, os homens, as máquinas de escrever, o telefone. A menina do telefone. O pintor
de painéis lá está no ar, pendurado a uma corda, dando a vida a troco de... De pão. São
homens sem direito, sem eira nem beira. Um malandro diria:
- Esses caras aí estão numa merda que faz gosto.
Em princípio, tal qual no excerto anterior, temos um diálogo que passa a um m a
tiz ensaístico, para, em seguida, adquirir um tom bastante poético. Nota-se que o
14 Carta de 24 maio 1963.
15 Trata-se de "Irmãos Raccatti Ltda." texto no qual o autor passou parte do ano de 1963 trabalhando, mas que
nunca ch eg o u a publicar.
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. «369
parágrafo é construído basicamente pelo processo de enumeração, cuja pontua
ção obedece a uma sequência bastante curiosa, já que não há quase a recorrência
de conjunções subordinativas ou coordenativas. Assim, têm-se basicamente pe
ríodos assindéticos; construção que, segundo Jane Christina Pereira, por aproxi-
mar-se da linguagem oral, “possui um tom mais espontâneo, menos rigor lógico;
é mais ágil, sugere a simultaneidade ou a rápida sequência dos fatos”.16
É interessante observar aí também a caracterização dos personagens. Os chefes e
donos das agências, “canalhas e sorridentes”, são apresentados com grande des
prezo, enquanto a “arraia miúda”, representada pelos “artistas” “modelo prosti
tuída”, “pintor de painéis”, “menina do telefone”, “meninos entregadores de coisas”
etc., surge de forma a provocar forte sentimento de ternura no leitor. Temos, pois,
a mesma defesa que seria expressa posteriormente no ensaio “Corpo-a-corpo
com a vida” : a de que o escritor deve olhar à própria volta e colocar-se a serviço
dos sem eira nem beira.
Com relação ao aspecto geral do parágrafo, João Antônio conseguiu construir um
quadro em que o leitor é apresentado àquele universo narrado. É como se vísse
mos uma cena, algo como uma peça de propaganda, cuja agilidade dramática nos
conquista. Isto se dá por conta daquele aspecto da união entre linguagem oral
e construção assindética das frases, discutido anteriormente, mas também por
meio do uso constante de verbos no presente do indicativo e no gerúndio.
O trecho final, “O pintor de painéis lá está no ar, pendurado a uma corda, dando
a vida a troco de... De pão”, é um exemplo cabal dessa construção. Nessa frase, o
contista parece erguer o braço e apontar para o pintor de painéis, pois a cena é
construída com vigor cinematográfico, impondo-nos a visão do trabalhador balan
çando na corda que o sustenta. A propósito, o excerto apresenta os fonemas “d” e “p”
repetidos ostensivamente, o que produz um efeito de pêndulo proposto pela frase.
Nesses, como em outros trechos da correspondência joão-antoniana, o contista
fala de si por meio do outro. Aqui, temos uma categoria diferente de memória,
uma vez que o autor quase se esconde atrás de suas personagens. Entretanto, po
de-se pensar que esta é uma forma de cortejar a eternidade, já que ele sabe que
16 PEREIRA, Jane Christina. A poesia de Malagueta, Perus e Bacanaço. Assis, 2006. Tese (Doutorado em Letras) -
Universidade Estadual Paulista, p. 105.
370 • OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA,Telma Maciel da. Memória e ficção..
deixar-se escrito é a única maneira de escapar à morte. Assim, João Antônio fala
de sua experiência no mundo da publicidade, mas faz dela uma história maior do
que suas vivências, faz dela uma experiência literária. Também a relação do es
critor com a literatura é igualmente fonte para a construção estética, uma vez que
suas reflexões acerca do ofício literário são mediadas pelo trabalho linguístico
apurado, que nasce de sua profunda consciência da palavra.
Ana Maria Domingues de Oliveira é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Docente
na UNESP, cam pus de Assis, desde 1991, ali coordena o Acervo João Antônio. Autora do livro
Estudo crítico da bibliografia sobre Cecília Meireles.
Telma Maciel da Silva é doutoranda do programa de pós-graduação em Letras da UNESP de Assis,
bolsista da FAPESP. Participa da equipe de pesquisadores do Acervo João Antônio.
Teresa revista de Literatura Brasileira [819]; São Paulo, p. 356-371, 2008. «371