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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO
Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A
Cidade de Deus” de Santo Agostinho
MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO
Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A
Cidade de Deus” de Santo Agostinho
MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Direito do
Núcleo de Pesquisa em Filosofia do Direito
da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Filosofia do Direito sob a
orientação do Professor Livre-Docente
Cláudio de Cicco.
SÃO PAULO
2012
PIRES DE CAMPOS FILHO, José Carlos. Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A Cidade de Deus” de Santo Agostinho. 2012. 160 páginas. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
ERRATA
Folha (página) 1 (Folha de Aprovação da banca examinadora)
Linha 11
Onde se lê Doutor em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Leia-se Professor Titular Aposentado de Direito Constitucional na Universidade Mackenzie
Folha (página) 10
Linhas 31, 32 e 33
Onde se lê Após a morte de Teodósio, em 395 d.C, seus filhos (Honório, no Ocidente e Arcádio, no Oriente) não foram capazes de deixar unido o Império.
Leia-se Após a divisão feita por Teodósio, em 395 d.C, seus filhos (Honório, no Ocidente e Arcádio, no Oriente) não foram capazes de manter a unidade entre os dois impérios, do Ocidente e do Oriente.
JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO
Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A
Cidade de Deus” de Santo Agostinho
Aprovada em ________
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Professor Livre-Docente Cláudio de Cicco
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
__________________________________________________________________
Professor Ives Gandra da Silva Martins
Doutor em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
__________________________________________________________________
Professor Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga
Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo
Agradeço ao meu orientador, homem digno e
educador brilhante, que tanto me apoiou e me
ensinou nas aulas e nos encontros em sua
residência durante este período de
aprendizado no caminho do conhecimento da
minha formação acadêmica.
Agradeço a minha competente e eficiente
colega, Marília Chiaradia, na formatação
desta dissertação.
Ao Fernando Franco pelo apoio e
compreensão.
Aos meus primos e tios por todo apoio.
À minha amada mãe, constante incentivadora
de meus passos na vida, aos meus irmãos,
Eduardo e Fernanda, e à minha querida avó.
Ao Mário e a Cidinha por me quererem bem.
Ao meu pai, pessoa amada e sempre presente
em minha caminhada.
À minha mulher, Carla, amor de minha vida,
pessoa sem a qual esta dissertação não seria
possível. Amor presente que torna presente a
paixão do amor a todo instante por toda a
vida.
Ao meu filho amado, Bernardo, amor
apaixonado, coração de minha família.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é expor os pressupostos filosóficos centrais da teoria do filósofo
Santo Agostinho sobre a natureza do Estado ético-jurídico. O pensamento é aqui
compreendido como uma defesa do Estado justo e da concepção de lei natural contra as
acusações de que o Cristianismo causa prejuízo à comunidade política. A concepção
agostiniana de sociedade justa e feliz permite, ao contrário, aprimorar as virtudes cívicas
como meio para alcançar o bem ‘comum e a paz. A ontologia agostiniana permite que a
verdade seja a referência das virtudes e dos vícios, como preceitos do agir capazes de formar a
unidade de uma civilização. A “Cidade de Deus” é a alegoria de sociedade justa presente no
mundo através dos tempos em convivência com o Estado terreno.
Palavras-chave: lei, natural, pressupostos, filosóficos, justo, sociedade, comunidade, política,
bem-comum, feliz, virtudes, ontologia, civilização, Estado, Cidade de Deus.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to expose the philosophical assumptions of the theory of
the philosopher St. Augustine on the nature of the ethical and legal State The thought here is
understood as a defense of the just State and of the conception of natural law against
accusations that Christianity causes injury to the political community. The Augustinian
conception of a just and happy society allows, instead, enhancing the civic virtues as a means
to achieve the common good and peace. The Augustinian ontology allows the truth to be the
reference of virtues and vices, as precepts of action capable of forming the unity of a
civilization. The "City of God" is the allegory of a just society that is present in this world
through the ages in coexistence with the earthly state.
Keywords: law, natural, assumptions, philosophical assumptions, just, society, community,
politics, common good, happy, virtues, ontology, civilization, State, City of God.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 9
Delimitação do tema .................................................................................................................... 9
Método ....................................................................................................................................... 13
Objetivo ..................................................................................................................................... 14
1. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA “CIDADE DE DEUS” ................................ 15
1.1 Criação: natureza e conhecimento ....................................................................................... 15
1.1.1 Ontologia agostiniana .................................................................................................... 17
1.1.2 A ontologia agostiniana e a integralidade do homem ................................................... 24
1.1.2.1 O conhecimento: verdade e falsidade ..................................................................... 26
1.1.2.2 O homem e a lei natural racional ............................................................................ 30
1.1.3 A filosofia agostiniana e o platonismo .......................................................................... 32
1.1.4 A influência da ontologia agostiniana na ideia de Estado ............................................ 35
1.2 Ordem como vontade ........................................................................................................... 36
1.2.1 A ordem e a causa ......................................................................................................... 37
1.2.1.1 A lei natural como vontade de conservar a ordem ................................................. 40
1.2.2 A ordem: razão e sentido ............................................................................................... 41
1.2.2.1 A justiça como ordem das virtudes ........................................................................ 46
1.2.3 Aspecto prático da ordem: contemplação e conduta ..................................................... 50
1.2.3.1 A conduta e o Estado .............................................................................................. 51
1.2.3.1.1 A Carta 134 de Agostinho a Apringius ............................................................ 54
1.2.3.1.2 Carta 153 de Agostinho a Macedonius ............................................................ 55
1.2.3.1.3 A conduta ordenada é razoável ........................................................................ 56
1.2.4 A ordem como elemento constitutivo da unidade no Estado ........................................ 57
1.2.4.1 A lei eterna e a justiça............................................................................................. 58
1.3 Livre-arbítrio ........................................................................................................................ 59
1.3.1 A lei divina e a lei civil autônomas por natureza e dirigidas para o bem comum na
esfera estatal ........................................................................................................................... 62
1.3.1.1 A lei civil (temporal) e a justiça (atemporal) .......................................................... 63
1.3.2 O arbítrio só é livre na verdadeira justiça ..................................................................... 65
1.3.2.1 A liberdade e as virtudes ........................................................................................ 67
1.3.3 A justiça objetiva (divina) não prejudica o Estado e leva o homem a uma vida feliz .. 69
1.3.4 O livre-arbítrio é um bem .............................................................................................. 72
1.3.4.1 A liberdade e a verdade: princípio da subordinação............................................... 73
1.3.4.1.1 A verdade e as formas: os números e a linguagem desvelam a força
ontológica agostiniana .................................................................................................... 76
1.3.4.1.2 A verdade e a felicidade ................................................................................... 80
1.3.4.2 A liberdade e a verdade: princípio da participação ................................................ 82
1.3.5 A liberdade e a ordem dos bens .................................................................................... 83
1.3.5.1 A ordem dos bens e os sistemas políticos .............................................................. 85
1.4 Graça .................................................................................................................................... 92
1.4.1 A justiça......................................................................................................................... 94
1.4.2 Os fins do Estado e da Sociedade: a paz e a felicidade ................................................. 95
1.4.3 A lei civil: o bem e o bom ............................................................................................. 97
1.4.4 A lei natural como fruto da graça ................................................................................ 100
1.4.5 A Carta 155 de Agostinho a Macedonius.................................................................... 101
1.4.6 As Cartas 91 e 104 a Nectarius e a Carta 138 a Marcellinus ...................................... 103
2. DELINEAMENTOS JURÍDICO-POLÍTICOS DE ESTADO NA OBRA “CIDADE
DE DEUS” .................................................................................................. 108
2.1 Origem das Cidades celeste e terrena ................................................................................ 108
2.2 As qualidades das duas Cidades indicam o Estado ético-político agostiniano .................. 118
2.3 Os Estados terrenos e a Cidade de Deus: genealogia histórico-alegórica do poder .......... 128
2.4 O paralelismo histórico-temporal das duas Cidades .......................................................... 134
2.5 Os objetivos das cidades terrena e celeste: paz e felicidade .............................................. 139
CONCLUSÃO .............................................................................................. 152
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................................155
9
INTRODUÇÃO
Delimitação do tema
O objetivo do presente trabalho será mostrar as bases filosóficas sobre as quais se
fundamenta a ideia de Estado na doutrina de Santo Agostinho sob a perspectiva da “Cidade de
Deus” (“De Civitate Dei”). O Estado existe autônoma e institucionalmente como realidade
político-jurídico-histórica (cidade política) baseado no vínculo da concórdia que procura
atingir a paz terrestre (bem comum) por meio das leis humanas em busca da felicidade (usar
bem as coisas) dos homens. A Justiça é a virtude que distribui a cada pessoa o que é seu. Não
pode existir Estado (República) sem Justiça.
O Estado civil poderá se aproximar da chamada Cidade de Deus (“Civitas Dei”) ou
se afastar dela. A Cidade Celeste, enquanto peregrina no mundo através dos tempos, está
baseada na concórdia ordenada, mútua estima e amizade verdadeira dos cidadãos, para
alcançar a paz celestial por meio da lei do amor (amor ordenado) e das virtudes (retidão da
vontade para a vida beata) em busca da felicidade eterna (sumo bem = fruir de Deus) dos
homens pelo conhecimento da Verdade (idêntica a si mesma).
A lei inscrita naturalmente no coração (=razão) dos homens de que não façamos ao
outro o que não queremos que nos seja feito só se cumpre pela graça. É essa graça que torna
livre nosso arbítrio de modo a evitar o mal e a fazer o bem. O mal não se encontrará na
natureza (“physis”), mas sim na vontade (“voluntas”= vontade livre da alma racional). O fruto
da graça é a caridade (“ordenata caritas”), ponto de referência das virtudes e dos vícios,
traduzida no amor de Deus e por este ao próximo (perfeição da ética natural). O amor guarda
a ordem do ser (“Justus ordo naturae”). Nisso consiste a verdadeira justiça (“vera justitia”) da
Cidade Celeste, e o direito reduz-se a ela. As leis positivas devem se fundamentar nas
exigências da lei moral natural. A justiça a Deus pertence. O homem torna-se digno ao
participar da bondade de Deus. Essa é, pois, a figura alegórica da Cidade Celeste e o ideal de
sociedade justa. A Cidade de Deus será uma sociedade de homens em busca de uma paz
eterna para além da paz terrestre.
De modo diferente, o Estado se afastará da Cidade Celeste e se aproximará da Cidade
Terrena (“Civitas diaboli”) ao substituir a fé pela razão como único critério de verdade, ao
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antepor os bens terrenos aos celestes, ao construir a felicidade por si mesmo, ao pretender
alcançar a sabedoria pela própria inteligência e fora da verdade, ao se conformar com a paz
terrestre e a justiça distributiva, ao desprezo pelas coisas divinas, ao preferir os vícios às
virtudes, ao se disfarçar de valor absolutamente supremo e ceder às ideias dominantes no
tempo e no espaço e ao ficar fechado em seu destino meramente terrestre.
Por honestidade intelectual, não omitiremos que os conceitos mais jurídicos desta
dissertação, como lei natural e justiça, originam-se e abrigam elementos de fé que
desqualificariam o discurso agostiniano em uma sociedade pluralista, mas, interessantemente,
trarão à tona manifestações importantes para o diálogo entre a cultura cristã e o Estado de
modo a encontrar o ponto de intersecção em leis que permitam a segurança e a paz, sem
desprezar a ética metafísica agostiniana que em nada prejudicará as bases seculares de um
Estado justo. Sem nos aprofundarmos nas circunstâncias históricas em que vivia Agostinho,
perceberemos que escrever a obra “Cidade de Deus” terá mais um aspecto pragmático,
inclusive nas relações entre o Estado e o Cristianismo, do que ideal na medida em que o
objetivo será defender os cristãos contra as falsas acusações pela ruína do império Romano.
De fato, em 313 d.C., os governantes romanos do Ocidente e Oriente, Constantino e
Licínio, puseram fim à perseguição aos cristãos pelo Édito de Milão com o objetivo de não
menosprezar religião alguma .Isso aconteceu após a vitória de Constantino, que mantinha o
controle sobre a Gália e Espanha, sobre o rival Maxêncio, que controlava a Itália e a África,
na luta pelo controle do poder no Império Romano na batalha da Ponte Mílvia, a oeste de
Roma, após ter visto uma cruz ereta sob o sol com a inscrição “sob este signo, vencerás”, em
312 d.C. Em 324 d.C., Licínio ordenou a prisão e execução de alguns bispos orientais. Essa
medida levou Constantino a se pôr como o defensor dos cristãos no Império e a derrubar o
rival. Constantino fundou Constantinopla como a nova Roma, capital do império, em 330 d.C.
Em 378 d.C, os godos derrotaram o imperador romano Valêncio em Adrianópolis. Em 391
d.C, houve a destruição do prédio Serapeum que abrigava parte da biblioteca de Alexandria
em razão de lutas entre os cristãos e aqueles que seguiam as tradições pagãs com ataques
sistemáticos destes àqueles após o imperador Teodósio I emitir um decreto que ordenava a
destruição dos templos pagãos. Os cristãos prisioneiros dos pagãos no Serapeum eram mortos
e torturados, o que levou a destruição do prédio por determinação de Teodósio I por causa das
imagens pagãs apesar de ter poupado os pagãos. Após a morte de Teodósio, em 395 d.C, seus
filhos (Honório, no Ocidente e Arcádio, no Oriente) não foram capazes de deixar unido o
Império. Em 410 d.C, sob a liderança de Alarico, os visigodos saquearam Roma, muito
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embora tenham preservados os templos cristãos, onde cristãos e não cristãos se refugiavam,
na medida em que parte dos bárbaros era da religião cristã ariana.
Não por outro motivo, Agostinho dispõe em ordem os mais variados temas do
Cristianismo e do paganismo, do império e da igreja, da justiça divina e humana, da
providência e do poder temporal, em que as questões da igreja e do Estado nunca estão
separadas inteiramente.
É nessa atmosfera que o filósofo tentará demonstrar que o Cristianismo em nada
prejudicará o Estado justo, pelo contrário, poderá fundá-lo em bases éticas sólidas com base
na prática das virtudes. A Cristandade exigirá uma transformação no entendimento clássico
romano das virtudes cívicas. Para tanto, buscará já em Cícero a manifestação de valores
indispensáveis para a República com o intuito de desmistificar os supostos malefícios do
Cristianismo para o Estado de modo a coincidir em vários pontos o próprio pensamento
romano nas épocas consideradas de decência política com os valores cristãos. De igual modo,
Agostinho se apossará da filosofia grega com ressalvas e da tradição judaica para demonstrar
como a Cidade Celeste se manifesta na história de modo a conservar a sociedade, assim como
o direito conserva a ordem social.
Assim, a relevância dessa dissertação será, justamente, descobrir as relações entre fé e
razão, Estado e Cristianismo, lei natural e lei civil a partir do esquema filosófico mental em
que Agostinho está implicado, a imiscuir elementos teológicos, filosóficos, políticos e
jurídicos. Consideramos que o raciocínio do filósofo será precioso por enfrentar, na prática,
situações teológico-político-jurídico-religiosas inseparáveis que, por assim dizer, formarão o
substrato de um pensamento que atravessará o tempo. Por esses motivos, voltamos nossa
atenção ao filósofo cristão da antiguidade que, a nosso ver, teve um papel decisivo para a
formação desse pensamento.
Tentaremos descrever o pensamento agostiniano livre das amarras modernas do
positivismo jurídico, bem como de concepções de direito natural que surgiram
posteriormente. Neste trabalho não teremos a pretensão de comparar ou de tecer críticas
sobre o pensador ou suas concepções de mundo. Esta dissertação não pretende, de igual
forma, tecer detalhes históricos. Para essa difícil tarefa, descreveremos os pressupostos
teóricos e filosóficos agostinianos e deles extrairemos naturalmente os conceitos político-
jurídicos da dissertação como as noções de Estado, povo, lei e justiça, pois não há maneira
mais transparente de aprendermos do que voltarmos ao esquema mental do autor estudado.
As bases teóricas da Cidade de Deus, tratado político por excelência escrito de 413 a
426 d.C., estão ligadas às seguintes categorias do pensamento de Agostinho: a Criação, a
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Ordem, o Livre arbítrio e a Graça. Esses quatro elementos constituirão o esquema filosófico
no pensamento político do pensador cristão. Não poderemos falar em lei natural ou lei como
ordem sem sabermos o que se entende pelos respectivos qualificativos. Do mesmo modo, não
poderemos falar em justiça punitiva e os respectivos limites sem discorrermos sobre o papel
do livre-arbítrio para o homem e para a sociedade, bem como conciliar este bem com a
natureza e a ordem. Veremos, de igual modo, que a função da graça – embora mais teológica
do que filosófica – permitirá compreendermos que a lei não será suficiente para sustentar uma
ética no Estado, diferentemente, sua existência poderá estimular a própria violação. Com
maior abrangência, a graça permitirá que Agostinho fundamente filosoficamente não retribuir
o mal com o mal em questões dentro do Estado de modo a afastar a vingança da pena em
termos jurídicos, a imputar a pena ao crime praticado, e, não, à pessoa.
A ideia da criação será o ponto central do pensamento de Santo Agostinho. O “logos”
(Deus) é a razão criadora de todas as coisas, causa eficiente e segura do raciocínio. A criação
nos fala que Deus é Deus por natureza (metafísica) e a natureza, tal como é, não é Deus
(física). Esse raciocínio ontológico permitirá separar o Estado da Cidade de Deus, sem, no
entanto, ficarem indenes entre si, bem como entendermos o que carrega o qualificativo
“natural” na expressão “lei natural”. Na primeira parte deste trabalho cuidaremos dos
delineamentos deste ponto central que sustenta a doutrina do bispo de Hipona.
Por essa Razão criadora, a criação tem sua ordem (sentido), titulada de ordem natural
ou ordem justa da natureza. O conceito de Natureza (“physis”) indica os seres inanimados e
animados, inclusive o homem. A ordem da natureza que está nas leis naturais e no gênero
humano traduz, notadamente, a moralidade do próprio ser que apela à consciência. O respeito
pela criação indica o respeito pela Razão (fonte de conhecimento). Poderemos dizer que a
criação sustenta o racionalismo filosófico de Santo Agostinho enquanto conhecimento.
O Estado será autônomo, mas tanto mais perfeito quanto mais se aproximar da ordem
da criação, traduzida na Cidade Celeste. Assim como o ser humano será tanto mais perfeito
quanto se aproximar da ordem moral do próprio ser (amor ordenado). Essa ordem do ser será
o fundamento do dever (virtudes morais). A ideia de ordem permitirá legitimarmos a justiça
punitiva, bem como encontrarmos nas virtudes a concretização da ordem no Estado. É nesse
sentido que Agostinho define lei natural como ordem. Na segunda parte desta dissertação,
trataremos dos delineamentos doutrinários da ideia de ordem na filosofia agostiniana.
Só poderemos considerar essa ordem se partirmos da integralidade do ser humano
como ser livre participante da Verdade, medida última de toda criação. A liberdade poderá
levar o ser humano para os vícios ou para as virtudes. As virtudes orientam o reto agir, o que,
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por sua vez, pressupõe o reto crer. O Estado valerá o que valem os seus cidadãos e, então,
passa a ser possível ter as boas e as más formas de governo. Assim, o problema do livre-
arbítrio consistirá nosso terceiro ponto a ser investigado.
Na terceira parte desta exposição discorreremos sobre a graça como dom que torna
livre nosso arbítrio, e que tem como fruto a caridade. A graça será peça chave para a Justiça
na medida em que as leis humanas devem atender à lei natural inscrita no coração do homem
até à perfeição de amar a Deus e ao próximo. A lei civil, por si só, não será capaz de fazer
com que os homens se tornem éticos (a lei natural é, em certo sentido, ética), ao contrário,
poderá ser capaz de atiçá-los a descumpri-la pelo prazer da maldade, muito embora seja
considerada um bem em si mesma como a existência do Estado o é. Sem a graça, o homem
não alcançará a verdadeira Justiça consistente em fruir de Deus. A verdadeira justiça
conduzirá a Cidade Celeste através dos tempos.
Por fim, trataremos da origem e atributos da Cidade de Deus e da Cidade terrena, bem
como dos respectivos aspectos dos dois tipos de sociedade do ponto de vista histórico-
alegórico e histórico-temporal, a demonstrar que a Cidade de Deus não terá a pretensão de ser
um Estado em termos humanos, mas, sim, conduzir os homens de modo justo no Estado, na
medida em que o objetivo da Cidade de Deus é escatológico, isto é, direcionar os homens para
Deus. Por isso, a razão e o amor constituirão as bases da Cidade Celeste. A concórdia, vínculo
jurídico entre os cidadãos, deverá ser autêntica enquanto amizade verdadeira ordenada para o
bem comum em busca da paz. As virtudes serão o caminho enquanto estiverem centradas nas
noções de ordem e amor, as quais todos os bens, inclusive o homem, são ordenados em Deus.
A felicidade será a finalidade do Estado enquanto sumo bem que consistirá no fruir de Deus,
início e fim de todas as coisas.
Método
A metodologia seguida terá como base o livro “A Cidade de Deus” entendida como a
obra de maior interesse na busca das lições de Estado e lei no pensamento de Santo
Agostinho.
Não descreveremos por completo todos os âmbitos – o histórico, por exemplo - que
permeiam o pensamento do bispo de Hipona ao escrever esta obra de relevância singular para
o pensamento humanista. Procuraremos cuidar dos aspectos filosóficos que constituem a base
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do Estado Justo, sem ignorarmos que razão e fé andam juntas no pensamento agostiniano,
sem se excluírem mutuamente.
Na perspectiva doutrinária, não teremos a ambição de expor pormenorizadamente
todas as posições delimitadas pelos autores que escreveram sobre o tema. O que se pretende é
descrever as ideias centrais e principais entendidas pela doutrina que, de uma maneira ou de
outra, repousam no pensamento do filósofo Agostinho originariamente. Os livros VIII e XI
contêm a síntese da filosofia agostiniana e os livros XVIII, XIX, XXI e XXII a alegoria da
“Cidade de Deus”,
Por este motivo, outros livros nos ajudarão traçar a base de sustentação da “Cidade
Celeste”, como “O livre-arbítrio”, “A Trindade”, “A graça”, “Confissões”, “Contra os
acadêmicos”, “A ordem”, “A grandeza da alma”, “O mestre”, “Sobre a vida feliz” e alguns
escritos políticos do pensador cristão.
A pesquisa se desenvolverá no âmbito das obras de Santo Agostinho, as quais
propiciarão aclarar o entendimento de como alcançar o Estado de Direito “ideal” e na
existência de uma lei natural como fundamento do Direito, na qual as leis positivas devem
atender às exigências daquela.
Assim, trataremos de desvendar os pressupostos filosóficos da Cidade de Deus pela
leitura conjunta dessa obra com as demais citadas. Falaremos, pois, da Criação, da Ordem, do
Livre-arbítrio e da Graça de forma a torná-los visíveis no tratado político por excelência de
Santo Agostinho.
Objetivo
O objetivo do trabalho será descrever os pressupostos filosóficos do Estado ético-
jurídico como alegoria da cidade celeste contida na obra “A Cidade de Deus” que traduz o
pensamento de Agostinho de sociedade justa e feliz.
15
1. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA “CIDADE DE DEUS”
1.1 Criação: natureza e conhecimento
O objetivo subjacente a esse subtítulo é descrever o conceito de Criação como ponto
central da base filosófica do pensamento de Santo Agostinho. Por meio do conceito de
Criação, é possível reconhecer o Estado como fato político-jurídico autônomo em relação a
Deus, bem como entender a razão pela qual aquele não deve ser indiferente a Este. A ideia de
Criação permite ligar dois pontos centrais: a Cidade terrena – parte do mundo - e a Cidade
Celeste – peregrina no mundo -, as virtudes e os vícios com a ideia de Verdade. A Verdade,
por sua vez, é alcançada pelo conhecimento racional e moral entendido em termos
agostinianos. A construção do Estado justo depende do conhecimento verdadeiro.
Conhecimento e natureza constituem o cerne da ontologia1 agostiniana da criação.
O conhecimento humano se tornará mais verdadeiro quanto mais se aproximar de
Deus. Cristo é a manifestação de Deus na história humana segundo o filósofo cristão.
Teologicamente, é o Verbo de Deus não criado e consubstancial ao Pai criador de todas as
coisas. O Cristianismo, para ele, está baseado na razão, porquanto fonte de saber como
plenitude da Verdade. Os cristãos são os seguidores de Cristo, mediador dos homens que
conduz os homens à “imortalidade feliz”2, a tê-Lo por fundamento de vida. O ato da criação
está intimamente relacionado com a felicidade na medida em que o conhecimento da Verdade
ensina, na visão agostiniana, que tudo foi criado e disposto segundo a vontade do Sumo Bem
em perfeita harmonia.
Para o filósofo antigo, Deus é o criador do universo e essa verdade reverbera no
homem e na natureza criados. No Livro X, item 5, da obra “Confissões”, indaga ao lembrar
dos filósofos gregos: “Quem é Deus”3? Interroga o ar, o céu, as estrelas, o sol, lua, os animais
e tudo o que é corpóreo exclama que não é Deus. Continua a interrogar e pede para o
Universo dizer, e obtém a resposta: “Não sou eu, mas foi Ele que me criou”4. Os homens
podem interrogar sobre as belezas do mundo “para verem as perfeições de Deus,
1 Estudo do ser. 2 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 356. 3 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 144. 4 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 144.
16
considerando-as nas obras criadas”5. Não por outro motivo, refuta os filósofos gregos que
pensavam serem corporais6 os princípios da natureza no Livro VIII, Capítulo V, da “Cidade
de Deus”:
Assim, Tales os recolocou na água; Anaxímenes, no ar; os estóicos, no fogo; os
epicuristas, nos átomos, isto é, em certos corpúsculos infinitamente pequenos que
não podem dividir-se nem sentir-se, e outros inúmeros filósofos cuja numeração
seria inútil e longa. Uns e outros disseram que a causa e o princípio dos seres são os
corpos, querem simples, quer compostos, quer careçam de vida, quer a tenham, mas
sempre corpos. Alguns deles, por exemplo, os epicuristas, acreditam poderem as
coisas vivas originar-se das não vivas. Outros atribuem exclusivamente a seres
vivos, mas corpóreos, corpos geradores de corpos, o poder de produzir coisas vivas e
sem vida. Os estóicos pensaram que o fogo, ou seja, um corpo dos quatro elementos
de que se compõe o mundo visível, tem vida, é sábio, criador do próprio mundo e de
tudo quanto nele existe e, ademais, que o fogo é deus. Esses e os demais filósofos
que se parecem com ele puderam pensar apenas o que seus corações, sujeitos aos
sentidos da carne, lhes pintaram. 7
A partir desse fato, a Verdade pode ser encontrada no homem que a tem dentro de si.
O pensamento agostiniano nos mostra que Deus é um Deus que fala ao homem interiormente
que
tudo quanto começa a existir ou deixa de existir só principia ou acaba quando se
conhece, na Vossa Razão eterna, que tudo isso deve ter começado ou terminado,
ainda que nela nada comece e nada desapareça.
O Vosso Verbo é esta mesma Razão e Princípio de todas as coisas, o qual também
nos fala interiormente. Assim falou-nos no evangelho por meio do seu c orpo.
Ressoou essa voz exteriormente aos ouvidos dos homens para que acreditassem.
Nele, o buscassem dentro de si mesmos e o encontrassem na eterna Verdade, onde
o bom e único Mestre ensina a todos os discípulos.8
A Criação expressa que “Deus é Deus por natureza (metafísica), mas a natureza como
tal não é Deus”9. Deus é a causa eficiente do mundo
10. Deus é o princípio vivo, a significar a
existência autônoma em relação ao mundo criado. Na obra “A Trindade”, Agostinho afirma
5 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 144. 6 Anaximandro, da mesma forma, coloca em um princípio corporal o início das coisas. Henri Bergson afirma que
“Segundo Anaximandro, o princípio das coisas não é mais a água, como sustentava Tales, é o infinito [...] uma
certa matéria que tem por característica própria não ser limitada [...] muito provavelmente uma mistura
indeterminada mas homogênea, que não é tal ou qual elemento em particular, mas que possui vagamente, na
condição de tendência, as características da maior parte deles [...] Consequentemente, procura uma matéria que
não tenha nada de determinado para que seja possível representar-se mais facilmente a transformação universal”.
BERGSON, Henri. Curso sobre a Filosofia Grega. Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 192-195. 7 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 307. 8 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 175. 9 RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe?. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1. ed.
São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, p. 15. 10 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 404-405.
17
que “o cosmo está grávido de causas germinais (...) Tais causas são criadas pela essência
divina na qual nada nasce, nada morre, nada começa, nada deixa de existir”11
.
Todas as coisas animadas ou inanimadas, racionais ou irracionais, foram criadas pelo
Criador que, por sua vez, não tem causa criadora. Nesse sentido, Agostinho compara o
pensamento de Plotino12
à filosofia cristã ao partir da beleza da criação presente nos objetos
mais ínfimos e nas mais frágeis das criaturas, que, por sua vez, tendem para Deus13
.
Essa harmonia da criação mostra que as coisas existem de modo a se adaptarem
perfeitamente no tempo e no espaço14
. Deus é o Criador do tempo e tem a história em suas
mãos. O tempo como elemento criado e pertencente ao mundo e o conhecimento de todos os
tempos passados, presentes e futuros como presciência estabelecem a separação entre Deus e
o mundo sem desprezar a liberdade dos homens.
O problema do tempo leva Agostinho a responder à objeção “Que fazia Deus antes de
criar o céu e a terra?”15
. Em um primeiro momento não responde em razão da dificuldade do
problema para, em seguida, colocar o tempo como categoria do mundo criado e, assim, afastar
o questionamento impróprio na medida em que Deus não está submetido ao tempo16
. O tempo
é elemento do mundo medido pelo homem, apesar de não medirmos tempo algum17
. Por
conseguinte, Deus e a natureza (coisas criadas) são categorias distintas. A primeira precede a
segunda e esta só tem razão de existir na primeira.
A Criação é, pois, a ligação necessária para uma ontologia agostiniana de certeza e
verdade acima das opiniões do mundo.
1.1.1 Ontologia agostiniana
11
AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4 ed. Livro II. Capítulo 9. São Paulo: Paulus, 2008, p. 128. 12 Neoplatônico. 13 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 387. 14 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 103. 15 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 176. 16 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 176-177 e 187. 17 “Com efeito, medimos os tempos mas não os que ainda não existem ou já passaram, nem os que não têm
relação alguma, nem os que não têm limites. Não medimos, por conseguinte, os tempos futuros nem passados,
nem os presentes, nem os que estão passando. Contudo, medimos os tempos!”. AGOSTINHO, Santo.
Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010, p.
185.
18
No Livro VI, capítulo VIII, da obra “Cidade de Deus”, Santo Agostinho afirma a
separação entre Deus e a natureza para refutar a chamada teologia mítica e civil18
e, por
conseguinte, a ideia que os pagãos tinham de venerar vários deuses para alcançarem a vida
eterna. Diz que Deus é Deus por natureza, mas nem toda natureza é Deus. Assim expõe:
Embora aquele que é verdadeiro Deus seja Deus, não por opinião, mas por natureza,
nem toda natureza é Deus, porque indubitável que a natureza do homem, a do
animal, a da árvore ou a da pedra é natureza, mas nenhuma delas é Deus.19
A expressão “não por opinião” tirada do texto acima indica a existência autônoma de
Deus. Deus independe do homem20
e do mundo para existir. Deus não necessita do homem21
.
Por outro lado o homem depende de Deus para alcançar a Verdade. Deus é identificado como
Verdade22
. A Verdade nesses termos é independente do pensamento humano na concepção
filosófica agostiniana.
A genialidade do bispo de Hipona está em afirmar a existência autônoma de um Deus
Uno como razão criadora fonte de conhecimento humano, que, por sua vez, é dependente
d’Aquele para chegar à Verdade (identidade), o que nos leva à conclusão de que o
conhecimento é verdadeiro em Deus. O conhecimento é, pois, logocêntrico, isto é, centrado
no “logos”. Nisso reside a ontologia de Agostinho.
Aqui pensamos ser necessário tecermos algumas considerações sobre a filosofia de
Descartes, Kant e Hume para nos ajudar a raciocinar com a lógica agostiniana de maneira que
possamos nos despir de nossas noções de conhecimento e natureza influenciados por estes e,
assim, deixar-nos levar pela filosofia do Estado que nos propusemos no começo do trabalho.
A distinção é, pois, indispensável para identificarmos o que se entende por realidade e a
repercussão nas esferas científica, ética e jurídica.
18 Marco Varrão é mencionado na obra “Cidade de Deus” como o sintetizador do pensamento pagão acerca dos
deuses. Para ele, existem três tipos de teologia: a mítica, a natural e a civil. A primeira, própria do teatro, usada
para descrever as fábulas – mythos em grego – usadas por poetas e filósofos para expressar os deuses; a segunda,
própria do mundo, se fala sobre a essência, lugar, espécie e qualidades dos deuses e o terceiro gênero, próprio
das cidades, diz que as pessoas e os sacerdotes devem pôr em prática na urbes o culto, o rito e os sacrifícios aos
deuses. Posteriormente, reconhece se deva tributar culto ao único Deus, alma do mundo como razão e
movimento, apesar de não o defender publicamente e ainda longe do Deus cristão. AGOSTINHO, Santo. Cidade
de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2007, p. 241-243 e 181. 19
AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 247-248. 20 Santo Agostinho observa que Deus é o criador da própria alma, e não a alma que governa o mundo. Faz isso
para elogiar Varrão, pensador dos gentios, ao concluir pela existência de um único Deus, mas corrigi-lo para
afirmar que Deus é o criador da alma. Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme.
v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 182 e 267. 21 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 374 e 388. 22 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão
e notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 263.
19
O raciocínio ontológico parece antever uma crítica posterior no tempo, mas atual no
âmbito do entendimento humano, da filosofia iluminada a partir do pensamento de Descartes,
Kant e Hume sobre os limites do conhecimento humano, na qual Agostinho, à época, viveu
intensamente ao discutir com os céticos acadêmicos23
e filósofos24
sobre a existência da
Verdade e o limite da razão humana em conhecer o que é verossímil e sensível. O problema
do conhecimento repercute diretamente sobre o modo como pensamos e vivemos, inclusive,
na esfera ética, em uma tensão contínua entre o existir e o pensar.
Descartes afirma a existência de Deus como princípio para garantir a harmonia25
entre
o objeto cognoscível e o sujeito cognoscente apenas. Em seu entendimento, Deus é o
princípio hipotético que garante a verdade do método cartesiano em busca do conhecimento
exato das coisas. Descartes, na quarta parte na obra “Discurso do Método e Princípios da
Filosofia”, elege o “penso, logo existo” como sendo o primeiro princípio da filosofia. O
filósofo francês constrói o seu raciocínio da seguinte forma:
Percebi então, que a verdade “penso logo existo” era tão sólida e tão exata (...)
concluí que não deveria ter escrúpulo em aceitá-la como sendo o primeiro princípio
da filosofia (...) de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é totalmente
diversa do corpo e mesmo mais fácil de ser reconhecida do que este e, ainda que o
corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo que é.
Depois, considerei, em geral, sobre o que é necessário a uma proposição para ser
verdadeira e exata (...) Após isso, meditando sobre o fato de que eu estava
duvidando e, por conseqüência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois era
para mim claro que perfeição maior do que duvidar era conhecer, veio-me à mente a
ideia de descobrir de onde aprendera a pensar em alguma coisa mais perfeita do que
eu, e encontrei a evidência de que devia existir algo de natureza mais perfeita (...)
Desse modo, chegava à conclusão que em mim fora inculcada por uma natureza
realmente mais perfeita do que eu e enfeixando em si todas as perfeições das quais
eu pudesse fazer uma ideia, isto é, para que eu me explique em uma só palavra:
Deus.26
23 Cf. AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Cartas (1ª).Tradução de Lope Cilleruelo. v. VIII. 3.
ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1986, p. 31. 24 Cf. AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Escritos varios (2º). v. XL. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1995, p. 618-619. 25 Cf. FOULCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes...et al. J. Rio de Janeiro: NAU
Editora, 2003, p. 19. 26 No original: “Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je suis était si ferme et si assurée, que (...) je jugeai
que je puvais la recevoir, sans scrupule, pur le premier principe de la philosophie (...) En sorte que ce moi, c’est-
à-dire l’âme par laquelle je suis ce que je suis, est entièrement distincte du corps, et même qu’elle est plus aisée à
connaître que lui, et qu’encore qu’il ne fût point, elle ne laisserait pás d’être tout ce qu’elle est.
Après cela, je considerai em general ce qui est requis à une proposition pour être vraie et certaine (...) En suíte de
quoi, faisant réflexion sur ce que je doutais, et que, par conséquent, mon être n’était pás tout parfait, car je
voyaus clairement que c’était une plus grande perfection de connaître que de douter, je m’avisai de chercher
d’où j’avais appris à penser à quelque chose de plus parfait que je n’étais; et je connus évidemment que ce devait
être de quelque nature qui fût em effet plus parfait (...) De façon qu’il restait qu’elle eût été mise em moi par une
nature qui fût véritablement plus parfaite que je n’étais, et même qui êut en soi toutes les perfections dont je
puvais avoir quelque idée, c’est-à-dire, pour m’expliquer em um mot, qui fût Dieu”. DESCARTES, René.
Discours de la méthode. 1. ed. Paris: Editora Garnier Flammarion, 2003, p. 60-61.
20
Se dissermos que a nossa existência depende do nosso pensar, Deus é reduzido a uma
categoria do pensamento humano27
. O homem ganha autonomia intelectual e,
consequentemente, o conhecimento passa a ser antropocêntrico. O antropocentrismo será o
primeiro passo para a indiferença de Deus na construção do mundo pelos homens. Isso indica
que Deus perde o patamar de Ser autônomo, divino, para ser colocado como categoria do
pensamento humano, pressuposto do conhecimento exato. Deus se torna o fundamento de
certeza da ciência simplesmente.
Deus de princípio vivo no pensamento agostiniano passa a ser princípio teórico no
cartesiano para garantir a firmeza dos fundamentos do conhecimento humano. O
conhecimento fundado em uma verdade objetiva no pensamento agostiniano (metafísico28
)
está no limiar para se tornar subjetivo a partir do pensamento de Descartes (imanentismo29
)
com sua prova ontológica. O conhecimento da realidade, outrora também de viés metafísico
(Deus), passa a tender ao subjetivismo e encontrar seus fundamentos na ciência como
entendemos hoje (física)30
simplesmente. Em outras palavras, põe em evidência a teoria do
conhecimento em detrimento da filosofia da existência31
.
Kant será o maior expoente do subjetivismo: a) primeiro ao afirmar que a intuição se
refere ao conhecimento a priori de toda experiência possível, ou seja, de todo conhecimento
científico do mundo na obra “Crítica da Razão Pura”32
e b) segundo ao afirmar que a
27 Na meditação Sexta da obra “Meditações”, Descartes reduz a essência ao pensamento da seguinte forma: “[...]
E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, noto que não pertence
necessariamente, nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a não ser uma coisa que pensa,
concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substância
da qual toda essência ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou, antes, certamente, como direi
logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho
uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que,
de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é
certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e
que ela pode ser ou existir sem ele.”. GUINSBURG, J., ROMANO, Roberto, CUNHA, Newton. Descartes:
obras escolhidas. Tradução: J. Guinsburg, Bento Prado Jr., Newton Cunha e Gita K. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2010, p. 193. 28 A palavra metafísico indica aqui o conhecimento ontológico, ou seja, da existência do ser em sua integralidade
no sentido de descobrir a essência das coisas com o pensamento voltado para o Ser supremo. 29 A palavra imanentismo indica aqui o conhecimento adquirido pelo sujeito cognoscente a partir das coisas em
si mesmas a partir do puro conhecimento ou de experiências sensíveis. 30 O termo física aqui significa matéria, visível ou invisível, e não o significado mais abrangente de ordem
natural, física e moral, do mundo. 31 Santo Agostinho, teologicamente, afirma o perigo da ciência se unir à caridade ao refutar a ideia de que
existem demônios bons da seguinte forma: “Se consultarmos os Livros Sagrados, a própria origem do nome de
demônio apresenta particularidade digna de ser conhecida. Chamam-se daimones (demônios), por causa da
ciência, pois a palavra é grega. Mas o Apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo, disse: A ciência infla e a caridade
edifica. Quer dizer que a ciência não é útil senão quando acompanhada pela caridade e, sem a caridade, a ciência
infla o coração e o enche de vento da vanglória”. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar
Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 362. 32 Duas condições unicamente sob as quais o conhecimento de um objeto é possível: primeiro intuição, pela qual
é dado o objeto, mas só como fenômeno; segundo conceito, pelo qual é pensado um objeto correspondente com
21
existência de Deus é um postulado33
da razão prática, ou, mais claramente, Deus é uma
hipótese não verificável. Essa passagem está na obra “A crítica da razão prática”, primeira
parte, Livro II, Capítulo II:
Não se quer dizer que é necessário admitir a existência de Deus como fundamento de
toda obrigação geral, pois tal fundamento repousa unicamente sobre a autonomia da
própria razão. O que interessa aqui à ideia de dever é trabalhar para produzir e para
promover o soberano Bem no mundo, Soberano Bem cuja possibilidade pode ser
postulada, mas que nossa razão não considera pensável a não ser supondo uma
inteligência suprema; admitir a existência desta está, pois, ligado a consciência do
nosso dever, se bem que este fato mesmo de admiti-lo seja assunto da razão teórica,
conforme a qual somente ele pode, considerado como fundamento da explicação, ser
chamado de uma hipótese, enquanto que relativamente à inteligibilidade de um
objeto que nos é seguramente imposto como função da lei moral (o Soberano Bem),
portanto de uma necessidade na intenção prática que pode ser chamado uma crença
e, mais precisamente, uma pura crença racional, porque a razão pura unicamente é a
fonte donde ele brota.34
essa intuição. Do que se disse acima, no entanto, resulta claro que a primeira condição, unicamente sob a qual
podem ser intuídos objetos, de fato subjaz aos objetos, segundo a forma, a priori na mente. Todos os fenômenos
concordam, portanto, necessariamente com esta condição formal da sensibilidade, pois somente mediante esta
aparecem, isto é, podem ser intuídos e dados empiricamente. Ora pergunta-se se conceitos a priori não são
também antecedentes como condições unicamente sob as quais algo, embora não intuído, é todavia pensado
como objeto geral; com efeito, então todo conhecimento empírico dos objetos é necessariamente conforme tais
conceitos porque, sem a sua pressuposição, nada é possível como objeto da experiência. Ora, além da intuição
dos sentidos pela qual algo é dado toda a experiência ainda contém um conceito de um objeto que é dado na
intuição ou aparece; logo, conceitos de objetos em geral subjazem a todo conhecimento de experiência como
condições a priori. Por isso, a validade objetiva das categorias enquanto conceitos a priori repousa sobre o fato
de que a experiência (segundo a forma do pensamento) é possível unicamente por seu intermédio. Com efeito,
então as categorias se referem necessariamente e a priori a objetos da experiência, porque só mediante elas
podem chegar a ser pensado um objeto qualquer da experiência.
A dedução transcendental de todos os conceitos a priori possui, portanto, um princípio ao qual tem que se dirigir
toda investigação, a saber, que eles precisam ser conhecidos como condições a priori da possibilidade da
experiência (seja da intuição, que é encontrada nela, seja do pensamento). Conceitos que fornecem o fundamento
objetivo da possibilidade da experiência na qual são encontrados não é a sua dedução (mas sim ilustração)
porque nela os conceitos seriam apenas casuais. Sem esta referência originária da experiência possível, na qual
ocorrem todos os objetos do conhecimento, absolutamente não poderia ser concebida a referência de tais
conceitos a um objeto qualquer. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo
Baldur Moosburger. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 118-119. 33 Miguel Reale define postulado: “(...) uma verdade se põe como um postulado quando ela se impõe pela força
imperiosa de suas consequências e, notadamente ante o absurdo a que levaria a tese oposta”. REALE, Miguel.
Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, p. 196. 34 No original: “On ne veut pas dire non plus par là qu’il est nécessaire d’admettre l’exitence de Dieu comme um
fondement de toute obligation em général (car ce fondement, comme cela a été suffisamment prouve, repose
uniquement sur [V, 126] l’autonomie de La raison elle-même). Ce qui seul releve ici du devoir, c’est de travailler
à produire et à promouvoir le souverain Bien dans Le monde, souverain Bien dont la possibilite peut done être
postulée, mais que notre raison ne trouve pas pensable autrement qu’en supposant une intelligence suprême:
admettre l’existence de celle-ci est donc lié à la conscience de notre devoir, bien que ce fait même de l’admettre
soit du ressort de la raison théorique, au regard de laquelle seule Il peut, considere comme fondement de
l’explication, être appelé une hypothèse, alors que relativement à l’intelligibilité d’um objet qui nous est
assurément imposé comme tache par la loi morale (le souverain Bien), partant, d’um besoin dans une intention
pratique, il peut être appelé une croyance et, plus précisément, une purê croyance rationnelle,parce que la raison
purê seule (aussi bien suivant son usage théorique que suivant son usage partique) est la source d’où il jailit”.
KANT, Immanuel. Critique de la raison pratique. Tradução de Jean-Pierre Fussler. 1. ed. Paris: Editora
Garnier Flammarion, 2003, p. 251.
22
Mas é, a nosso ver, na obra “Metafísica35
dos Costumes” que Kant afasta Deus da vida
pública, da ética e do direito, definitivamente. As leis éticas e as leis jurídicas são espécies das
leis morais, ambas procedentes da razão humana. As primeiras são “dirigidas meramente a
ações externas e à sua conformidade à lei” e as segundas “requerem que elas próprias (as leis)
sejam os fundamentos determinantes das ações (...) tanto no uso externo como interno de
escolha”36
. A visão kantiana não se contenta apenas em suportar um Deus fora do mundo;
com mais força pretende afastá-la da esfera pública – o que para Agostinho é inadmissível na
medida em que a Cidade de Deus é peregrina neste mundo através dos tempos e da
impiedade37
. Para o bispo de Hipona tirar Deus do debate significaria tirar o amor (perfeição
da lei identificada na lei natural), presente na História, deste mundo.
Kant tira a religião do espaço público ao restringi-la à experiência individual do
sujeito e ao situá-la fora “de uma moral puramente filosófica”38
caracterizada por relações
entre as pessoas (dever objetivo e racional) “compreensíveis por nós”39
, muito embora a
considere como “uma parte integral da doutrina geral dos deveres”40
. Diz Kant que do ponto
de vista formal a religião opera um conjunto de deveres somente para o sujeito (obrigação
subjetiva e transcendente), pois a relação com a vontade de Deus é “um dever para consigo
mesmo (...) a favor do fortalecimento do incentivo moral na nossa própria razão
legisladora”41
; enquanto do aspecto material, os deveres seriam conhecidos empiricamente
por meio da religião revelada na História (aplicada), “a qual não é derivada exclusivamente da
razão”42
.
35 Kant utiliza a expressão metafísica para se referir ao sistema de princípios da ciência natural, seja adquiridos
a priori ou a partir experiências particulares, seja juízos morais a priori.Em resumo, todo conhecimento a priori.
Cf. KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 37-45. 36 Cf. KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São
Paulo, 2010, p. 45. 37 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 27. 38 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 222. 39 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 223. 40 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 221. 41 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 221. 42 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 222.
23
Se para Kant podemos falar de uma “religião nos limites da simples razão”43
por ter
seus ensinamentos na História; no pensamento agostiniano poderíamos arriscar e dizer a razão
para além do mundo, por ter seus conhecimentos na Razão e não somente no espaço-tempo.
Sem embargo, podemos considerar duas observações em relação ao pensamento de
Kant: a) ter o mérito de considerar o homem como um ser ético capaz de agir de acordo com
princípios (imperativos categóricos)44
, e não somente em critérios utilitaristas (de
necessidade) como Hume45
e b) a capacidade do homem de entrar em contato com a religião e
um Ser Supremo pela experiência individual.
O subjetivismo do pensamento kantiano repercute não só na esfera da ciência, mas
também nas esferas pessoal e estatal. Deus é uma hipótese não verificável - pois Deus não é
um objeto empírico -, o qual o pensamento humano pode dispensar para a construção da
ciência, da ética e do direito apesar do homem ser capaz de conhecer a realidade invisível pela
experiência.
Todo esse subjetivismo-imanentista inverte a lógica da criação de que só pensamos
porque existimos e só existimos porque Deus é existência autônoma criador de todas as
coisas. Sem o existir não podemos viver nem pensar. A Criação é, pois, elementar no
pensamento agostiniano ao permitir o encontro do Ser (Deus) com o ser (homem) e abrir as
categorias humanas, quaisquer que sejam – ética, política ou jurídica –, à Verdade e ao Amor.
A filosofia de Agostinho é ontológica na medida em que o conhecimento (visão) de Deus “é
43 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,
2010, p. 222. 44 “Nesse conceito de liberdade, que é positivo (de um ponto de vista prático), estão baseadas leis práticas
incondicionais, denominadas morais (...) as leis morais são imperativos (comandos ou proibições) e realmente
imperativos (incondicionais) categóricos (...) Obrigação é a necessidade de uma ação livre sob um imperativo
categórico da razão. Um imperativo é uma regra prática pela qual uma ação em si mesma contingente é tornada
necessária (...) Um imperativo categórico (incondicional) é aquele que representa uma ação como objetivamente
necessária e a torna necessária não indiretamente através da representação de algum fim que pode ser atingido
pela ação, mas através da mera representação dessa própria ação (sua forma) e, por conseguinte, diretamente (...)
O imperativo categórico, que como tal se limita a afirmar o que é a obrigação, pode ser assim formulado: age
com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal. Tens, portanto, que
primeiramente considerar tuas ações em termos dos princípios subjetivos delas; porém, só podes saber se esses
princípios têm também validade objetiva da seguinte maneira: quando tua razão os submete à prova, que consiste
em conceber a ti mesmo como também produtor de lei universal através deles, e ela qualifica esta produção
como lei universal”. KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 45-48. 45 Para Hume a moral é um conjunto de condutas aprovadas pelas pessoas em geral e se conformam à ao prazer
que proporcionam, a encontrar sua origem nos sentimentos. É, pois, um sentimento de aprovação ou reprovação.
Parece-nos que Hume incide no mesmo erro que quer combater, ou seja, tira do ser o dever-ser.
Cf. HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 1. ed. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1996, p. 88-10.
24
um ato intelectual que se verifica na alma como resultado da união do entendimento e do
objeto conhecido” 46
.
Parece-nos, então, ser de meridiana clareza que a filosofia metafísica implica uma
concepção de realidade mais abrangente, mas não excludente, do que a filosofia imanentista.
De igual modo, Agostinho reconhece a importância do conhecimento humano (gnosiologia)
na filosofia. Podemos identificar a realidade como a soma da natureza criadora e criada para
Agostinho, enquanto para a vertente imanentista a realidade se resume à natureza criada,
logicamente, não nesses termos linguísticos.
1.1.2 A ontologia agostiniana e a integralidade do homem
Agostinho pretende elevar o mundo, o homem e o Estado, ao conhecimento de todas
as realidades, inclusive metafísicas, a partir de fundamentos racionais filosóficos que
garantem a existência de uma natureza diversa do mundo e, por isso, o conhecimento humano
se torna um processo de harmonia entre o sujeito e o objeto. Não sem razão, na obra “O livre-
arbítrio” conclui-se haver três realidades presentes no mundo a partir do diálogo com o amigo
Evódio47
: o existir, o viver e o entender. Somente o homem possui as três como elementos da
sua natureza, sendo que a inteligência supõe o existir e o viver48
.
Nesse sentido, o pensador cristão consegue manter a metafísica ao raciocinar o homem
e Deus sempre juntos de modo que o conhecimento humano não fique reduzido às coisas do
mundo e à lógica subjetiva do pensamento humano. João Paulo II49
, por ocasião do
aniversário do XVI centenário da conversão de Santo Agostinho, aponta o binômio 46 No original: “es um acto intelectual que se verifica en el alma como resultado de la unión del entendimento y
del objeto conocido”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1994, p. 451-452. 47 Evódio foi amigo e discípulo de Agostinho. Ajudou a fundar o monastério de Uzalis (Tunísia) e se tornou
bispo de 395/397. Esforçou-se para combater o donatismo. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine:
political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 235. 48 AGOSTINHO, Santo. O livre-arítrio.Tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira;
revisão Honório Dalbosco. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 81. 49
“El otro gran binomio que Agustín estudió sin descanso es el de Dios y el hombre. Liberado, como dije arriba,
de materialismo que le impedia tener uma noción justa de Dios – y por lo tanto también uma veradera noción del
hombre – fijó este binômio los grandes temas de su invertigación y los estúdio siempre conjuntamente: el
hombre pensando em Dios y Dios pensando em el hombre, cuya imagen es”.
Tradução nossa: “O outro grande binomio que Agostinho estudou sem descanso é o de Deus e o homem.
Libertado, como disse acima, do materialismo que o impedia de ter um conceito adequado de Deus – e, portanto,
também um verdadeiro conceito do homem –, fixou neste binomio os grandes temas da sua pesquisa e os
estudou sempre em conjunto: o homem a pensar em Deus e Deus ao pensar no homem, que é a sua imagem”. BRASIL. PAULO II, João. Augustinum Hipponensem. In: Carta Apostólica En el centenário de La conversión
de San Augustín, agosto de 1986, p. 7-8. Disponível em
http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_26081986_augustinum-
hipponensem_sp.html. Acesso em 05 de out. 2011.
25
Deus/homem como uma resposta ao materialismo que lhe impedia de ter a verdadeira noção
de si e do próprio Deus, isto é, não encerra o conhecimento para a metafísica, ao esclarecer a
noção tríplice de Deus:
É o Ser de quem procede, pela criação do nada, todo o ser; a Verdade que ilumina a
mente humana para que esta possa conhecer com certeza a verdade; o Amor do qual
procede e para o qual se dirige todo o verdadeiro amor. Com efeito, Deus, como ele
repete tantas vezes, é “a causa do ser, a razão do pensar e a norma do viver”; ou,
para citar outra fórmula sua, “a causa do universo criado, a luz da verdade que
percebemos e a fonte da felicidade que saboreamos. 50
O homem tem algo de grande e excelente em sua natureza: a razão. Acima da razão
somente Deus como Ser superior a qualquer outro ser51
. A vida e a razão humana estão
sujeitas a mutações enquanto Deus é uma realidade eterna e imutável. O existir, o viver e o
pensar humano estão intimamente ligados com Deus, a causa da existência, a norma do viver
e a razão do pensar. Em outras palavras, Agostinho consegue, filosoficamente, atribuir
unidade ao conhecimento ao direcionar todas as formas – existir, pensar e viver – para Deus.
Isso significa que o conhecimento humano – racional, experimental ou moral – implica o
conhecimento de Deus para ser verdadeiro.
Apesar da separação entre Deus e o universo, o homem é capaz de entender ao ouvir
“a voz vinda de fora com a verdade interior”52
, a qual se inclui a lei natural. Aqui
constatamos dois aspectos importantes do pensamento: a capacidade do homem em conhecer
o mundo por meio da verdade na medida em que é parte da criação e é capaz de ter
conhecimento de si mesmo.
O filósofo cristão afirma o “penso, logo existo”, contudo, sem restringir a existência
da realidade ao puro conhecimento do homem de modo que só existe e só é verdadeiro o que
a inteligência é capaz de compreender. Na extraordinária obra Solilóquios, Livro II, Capítulo
1, item 1, em que a razão dialoga com o próprio Agostinho em busca da Verdade, coloca-se o
problema do entendimento da seguinte forma:
Pois como penso que ninguém é desprezado por sua sabedoria, provavelmente se
conclui que no entendimento é que se manifesta a bem-aventurança. Mas somente é
50 No original: “Ser de quien procede, por creación de la nada, todo ser; Verdad que ilumina la mente humana
para que pueda conocer la verdad com certidumbre; Amor del cual procede y hacia em cual se dirige todo
veradero amor. Dios, em efecto, como el repite tantas veces, es ‘la causa del subsistir, la razón del pensar y la
norma del vivir’, o, por citar outra célebre fórmula suya, ‘la causa del universo creado, La luz de La verad que
percibimos, y la fuente de la felicidad que gustamos”. BRASIL. PAULO II, João. Augustinum Hipponensem.
In: Carta Apostólica En el centenário de La conversión de San Augustín, agosto de 1986, p. 7-8. Disponível
emhttp://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_26081986_augustinum-
hipponensem_sp.html. Acesso em 05 de out. 2011. 51 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio.Tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira;
revisão Honório Dalbosco. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 92-93. 52 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 144.
26
bem-aventurado aquele que vive, e ninguém vive se não existe; tu queres ser, viver,
entender, e existir para viver, e viver para entender. Depois, sabes que existes, sabes
que vives, sabes que entendes. E ainda queres dilatar o teu saber e averiguar se estas
coisas hão de sobreviver sempre, ou se hão de fenecer, ou se alguma delas ficará
para sempre e alguma outra não, ou se admitem aumento e diminuição, supondo que
sejam eternas.53
A obra “Solilóquios” desenvolve-se em ritmo de diálogo do começo ao fim em torno
do problema do entendimento humano em conhecer a Verdade54
. Um dos últimos diálogos do
Livro I de Solilóquios discute se os termos “verdadeiro” e “verdade” são uma coisa só ou
significam duas55
diferentes. Chegam à conclusão que são coisas diferentes a partir de um
exemplo prático: a castidade é uma coisa e o casto é outra. O verdadeiro existe pela verdade,
como no exemplo retro em que o casto pode deixar de sê-lo, mas a castidade permanece. O
verdadeiro pode deixar de existir, a verdade não. Porém, onde se encontra a verdade, uma vez
que o que existe, existe em algum lugar?
A razão de Agostinho percebe que a verdade, por subsistir ao verdadeiro, não pode
estar nas coisas mortais, pois, do contrário, desapareceria; assim como, não pode ser corpórea
e estar em algum lugar pelo mesmo motivo. A verdade existe e não está em nenhum lugar56
.
O que nos leva à conclusão da ontologia, no Livro II, Capítulo II, item 2, da obra
“Solilóquios”, de que existem coisas imortais e o verdadeiro não pode existir sem a verdade57
.
A verdade parece assim ser uma necessidade da ontologia cristã.
1.1.2.1 O conhecimento: verdade e falsidade
53 No original: “Pues como pienso que nadie es desdichado por la sabiduría, probablemente se concluye que em
el entendimiento se constituye la bienaventuranza. Pero solo es bienaventurado el que vive, y nadie vive si no
existe; tú quieres ser, vivir, entender, y existe para vivir, y vivir para entender. Luego sabes que existes, sabes
que vives, sabes que entiendes. Y aún quieres ensanchar tu saber y averiguar si estas cosas han de sobrevivir
siempre, o si han de fenecer, o si quedará alguna de ellas para siempre y alguna outra no, o si aditen aumento y
disminución, suponiendo que sean eternas”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 475. 54 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 490. 55 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 469. 56 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 471. 57 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 476.
27
Agostinho define o verdadeiro como “aquilo que é em si tal como parece ao sujeito
cognoscente, se quer e pode conhecê-lo”58
e verdade como “é o que é”59
. A razão o alerta que,
se assim for, nada é falso, pois tudo o que é, verdadeiro é. Para dissolver este problema
indagam sobre a natureza do falso e do verdadeiro e, a princípio, afirmam estar na semelhança
ou verossimilhança que as coisas falsas têm com as verdadeiras a partir do reflexo da face no
espelho, nas quais se enganam os sentidos60
; mas logo abandonam esta ideia ao tomarem
como exemplo a imagem de um homem no sonho que tanto mais é verdadeiro quanto mais for
semelhante ao homem real. Assim, semelhança não serve como critério. Posteriormente,
negam que o falso esteja na semelhança ou dessemelhança a partir do exemplo prático de uma
cesta de ovos em que todos são verdadeiros (semelhança), mas não exatamente iguais
(dessemelhantes)61
.
Isso leva, temporariamente, Agostinho a reconhecer que a verdade é o que parece e o
falso não está em nenhuma parte. O falso, pois, finge o que não é (falaz, aquele que tem a
vontade de enganar) ou tende a ser o que não é (reflexo). Em ambos os casos, há uma certa
imitação do verdadeiro no plano do objeto, e não, no da linguagem, que, por sua vez, se
tornou mais importante do que as coisas reguladas pelas leis até a identificação completa
daquela com o direito a partir da filosofia analítica a partir do século XX. Existe, pois, uma
diferença entre o que dizemos e das coisas que dizemos, a significar que o falso e o
verdadeiro ocorrem no plano ontológico. Agostinho se expressa com um exemplo:
sem embargo, se alguém assegura que a pedra é prata, respondemos que profere uma
falsa proposição. No mercado, com alguma razão, segundo opino, chamamos prata
falsa o estanho e o chumbo, porque de algum modo imitam, e então não é falsa
nossa proposição, senão o objeto mesmo.62
Agostinho tenta, então, encontrar a verdade na própria disciplina na medida em que
“vem de discere, aprender, e nada pode dizer que ignora o que aprendeu e conserva na
58 No original: “aquello que es en si tal como parece al sujeto conocedor, si quiere y puede conocerlo”
AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1994, p. 484. 59 Tradução nossa: “es lo que es”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 484. 60 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 489. 61 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 492. 62 No original: “sin embargo, si alguien asegura que la piedra es plata, le respondemos que profiere uma falsa
proposición. En cambio, com alguna razón, según opino, llamamos plata falsa al estaño y al plomo, porque de
algún modo la imitan, y entonces no es falsa nuestra proposición, sino el objeto mismo”. Cf. AGUSTIN, San.
Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 510.
28
memória, nem que sabe coisas falsas. Toda disciplina é, pois, verdadeira” 63
. Os exemplos de
disciplinas são a dialética e a geometria. As figuras geométricas ora estariam na verdade, ora a
verdade estaria nelas, sem duvidar que elas se encontram na nossa alma ou inteligência sem
imitar nenhuma coisa estranha para ser verdadeira, como, por exemplo, a verdade de que um
círculo tem pontos equidistantes do centro64
. É, pois, na razão (percepção inteligível) que o
homem encontra a verdade.
Na obra “A Trindade” refuta-se a ideia do saber (scientia) restrita exclusivamente à
realidade dos objetos que chegam à nossa razão pelos sentidos de maneira que “sabemos que
estamos vivos por um conhecimento íntimo”65
, a ampliar o campo da ciência humana para o
conhecimento metafísico.
A participação nesse conhecimento torna-se a medida de nossa inteligência e nos
assegura a “retidão de nossos juízos”6667
, o que leva o cristão a afirmar que o espírito e a razão
têm conhecimento certo das coisas que conhece, embora limitado68
.
No Livro XV, Capítulo 12, da obra “A Trindade”, ao narrar sobre o conhecimento da
alma, divide-o em dois: “um, das coisas que a alma capta pelos sentidos corporais; outro, das
coisas que percebe por si mesma69
. A dupla finalidade da ciência – espiritual e corporal – é
descrita no Livro IX, Capítulo 3, da mesma obra, com a conclusão de que a “mente adquire
noções sobre coisas corpóreas servindo-se dos sentidos corporais, do mesmo modo, em
relação às realidades incorpóreas, ela as adquire por si mesma”70
. Em “Cidade de Deus”,
Livro XI, Capítulo XXVI, Santo Agostinho afirma que “estamos certíssimos de sermos, de
63 No original: “viene de discere, aprender, y nadie puede decirse que ignora lo que prendió y conserva em la
memória, ni que sabe cosas falsas. Toda disciplina es, pues, verdadera”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos
(1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 498. 64 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1994, p. 516. 65 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 510. 66
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 46. 67 A virtude é a reta e perfeita razão. Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 451. 68 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 403. 69 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 512. 70 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 290.
29
conhecermos e de amarmos nosso ser”71
e “como conheço que existo, assim conheço que
conheço”72
.
É interessante o reconhecimento do pensador cristão do conhecimento partir do
próprio homem, limitado em inteligência, mas com possibilidade de alcançar a Verdade pela
graça de Deus (veremos este ponto em capítulo próprio) sem duvidar das verdades que nos
vêm pelos sentidos corporais”73
, embora reconheça a limitação e a mutação da razão
humana74
; diferentemente de Kant que limita o conhecimento humano ao próprio homem sem
possibilidade do conhecimento racional metafísico, seja no plano científico, seja na esfera
ética, a admiti-lo no campo individual da experiência tão somente. Enquanto Agostinho
considera o conhecimento intuitivo por autorreflexão voltado para os aspectos material e
espiritual, Kant o centra no homem enquanto sujeito cognoscente. O bispo de Hipona refere-
se ao termo arte “não ao que se obtém pela experiência, mas ao que se descobre pela
intelecção (raciocinando)”75
com o intuito de dizer que a Verdade é superior à razão
puramente humana, seja intelectiva ou sensitiva.
Por esse motivo Kant interpretou o amor76
simplesmente como a afirmação da pessoa
em si mesma e não de acordo com a filosofia cristã no sentido do amor como doação ao
próximo. A lei do amor é a perfeição da justiça para Santo Agostinho na medida em que se
ama a Deus e por este ao próximo. No Livro I, Capítulo XXVI, da obra “A doutrina cristã”, o
pensador cristão trabalha com o amor a Deus e ao próximo. Por amar a Deus ama-se ao
próximo, sem se omitir o amor de si próprio77
.
O significado desse raciocínio, para a teoria dos valores, está em aceitar a ideia de que
os valores são construção simplesmente humana através da história, a torná-los relativos,
71
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 45. 72 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 45. 73 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 512. 74 “(...) E até a própria razão, por seu lado, que por vezes se esforça por chegar à verdade, por vês, não – mostra-
se seguramente estar sujeita a mutações”. AGOSTINHO, Santo. O livre-arítrio.Tradução, organização,
introdução e notas Nair de Assis Oliveira; revisão Honório Dalbosco. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 93. 75 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião.O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 79. 76 Para Kant “as relações morais de seres racionais que envolvem um princípio da harmonia da vontade de um
com a de outro são reduzíveis a amor e respeito; e, na medida em que este princípio seja prático, no caso do
amor, a base para determinar a vontade de um é reduzível ao fim do outro, e no caso do respeito, ao direito do
outro”. O amor é reduzido como a afirmação da pessoa em si mesma capaz de determinar os valores a partir e
conforme sua percepção de mundo, bem como o respeito é visualizado como a obrigação jurídica de não violar o
direito do outro entendido nos mesmos termos de sujeito legislador de si mesmo. KANT, Immanuel. A
Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010, p. 222. 77 Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 64-65.
30
embora possam se tornar máximas universais em determinados tempos e lugares. Se a
verdade do conhecimento humano depende exclusivamente do raciocínio humano, o homem
centrará sua vida e seus valores de acordo com a própria percepção. A relatividade dos
valores indica que um determinado valor pode ser considerado bom ou útil para determinados
povos ou pessoas em determinadas épocas e outras vezes não.
De outro modo, se o pensamento humano se baliza por uma verdade fora do homem
(Deus, existência autônoma), mas presente em seu íntimo ao mesmo tempo, o conhecimento
deixa de ser subjetivo exclusivamente para se tornar objetivo. Em outras palavras, os valores,
como parte do conhecimento humano, deixam de ser subjetivos e se tornam objetivos. As
diferentes culturas mostram a diversidade da criação, as quais devem estar em unidade com a
ordem desta. Por esse motivo, nem todo o comportamento humano se legitima, pois
determinados povos localizados no tempo-espaço podem ir de encontro com as verdades
racionais.
1.1.2.2 O homem e a lei natural racional
Existe um motivo maior para que o bispo de Hipona não limite o conhecimento
humano em si mesmo: o amor imutável. Somente em Deus é possível amar e pela ordem da
criação – boa e bela78
- é possível ver o amor de Deus pelos homens. Nas palavras dele “o
céu, a terra e tudo o que neles existe, dizem por toda a parte que Vos ame”79
. Esse ponto é de
extrema importância na medida em que afirmará a justiça como a lei do amor80
, o primado
máximo para a sociedade justa (Cidade de Deus) que alcança a paz por meio da concórdia
bem ordenada81
(elemento do conceito de Estado). A lei eterna (lei do amor) é estendida como
lei natural presente na consciência de cada homem de que não façamos ao outro o que não
queremos que nos seja feito82
e de retribuirmos o mal com o bem (Cartas 136 e 10483
). Esses
primados éticos estão na natureza humana como parte da Criação. A natureza guarda, então,
78 Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião.O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 58-59. 79 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 144. 80 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 398-399. 81 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 399. 82 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002,
p. 171. 83 ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 28-30 e 16.
31
uma lei que está na natureza humana, notadamente, inscrita na consciência e alcançada pela
razão. A lei natural é, pois, um reflexo da Criação na medida em que – como esta – tem a
natureza e o entendimento como fundamentos. A lei está na natureza e pode ser conhecida.
A reflexão agostiniana da realidade é forte o bastante para desmistificar a ideia de que
o homem basta a si próprio para compreender tudo o que existe pela razão ou experiência
sensível. Para demonstrar esse aspecto, traz a ideia da defectibilidade. A defectibilidade do
homem, da cultura e do Estado está na ausência de integridade, pois, apesar de serem bons,
não são plenamente bons e, por isso, não são Deus e “podem se deteriorar por si mesmos,
porque por sua própria procedência nada são”84
e conclui de forma genial que “pelo mesmo
Deus, que alguns bens, em parte, não se deterioram e que outros, deteriorados, podem
recobrar sua integridade”85
.
Assim como o homem, o Estado é um bem em si mesmo (autônomo), pois melhor do
que a ausência dele (nada), embora a integridade, oposto da deterioração, seja possível em
Deus.
A própria religião, parte do Estado e reconhecida ao menos como experiência
histórica, é um conhecimento com fundamento na razão (“logos”) de acordo com o
cristianismo. Daí dizermos que a religião cristã é uma “teologia física do racionalismo
filosófico”86
. A religião está fundada no conhecimento. “A fé busca, o entendimento
encontra”87
. Chega a afirmar que a verdadeira religião é aquela que funda a Cidade Celeste88
.
Conhecer o mundo significa conhecer a ordem natural da criação e, consequentemente, a
inteligência de Deus refletida no mundo. A lei natural é o reflexo da inteligência de Deus na
história (natureza). Nesse sentido, o conhecimento não está limitado ao plano do sujeito
(subjetivo), mas centralizado na existência com base na ciência das realidades corpóreas e
incorpóreas. Isso afirma o pensador cristão ao dizer que “mais facilmente duvidaria da minha
vida do que da existência da Verdade, cujo conhecimento se apreende por meio das coisas
criadas”89
.
84 Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 58-59. 85 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 60. 86 RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe?. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1. ed.
São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, p. 12. 87 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 481. 88 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 239. 89 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha
de São Paulo, 2010, p. 101.
32
1.1.3 A filosofia agostiniana e o platonismo
Pelos motivos antecedentes, o filósofo Agostinho afirma que a filosofia (ciência)
platônica90
é a que mais se aproxima da verdade da fé cristã. Platão, discípulo de Sócrates,
divide a filosofia em três partes: a natural, a racional e a moral. Com a filosofia natural ou
física os platônicos compreendem que Deus é o princípio de todos os seres e que nenhum
corpo é Deus. Em busca de Deus levam o conhecimento acima dos corpos e concluem pela
imutabilidade de Deus de onde provém todo ser mutável. “O que para Ele é viver, entender e
ser feliz é para Ele ser”91
.
A semelhança entre a filosofia cristã e a filosofia de Platão é visível na medida em
que o existir, o pensar e o entender estão unidos em direção à Verdade. Para os platônicos
tudo o que existe é corpo ou é vida, o primeiro sensível pelos sentidos e a segunda inteligível
pela inteligência. Como o corpo e a inteligência são mutáveis, continuaram a buscar algo que
pudesse ser incomparável e concluíram ser Deus a causa eficiente (imutável e incomparável).
Desde a criação do mundo, os homens podem sentir e ver com a inteligência as realidades
visíveis a perfeição invisível de Deus. Por isso, diz-se natural, pois é o que se pode conceber
naturalmente de Deus92
.
A segunda parte da filosofia, chamada racional ou lógica, distingue entre o que o
“espírito descobre e o que o sentido aprende, sem que aos sentidos nada tirassem do que
podem, nem lhes atribuíssem poder que não têm”93
, e não coloca o conhecimento somente no
que pode ser apreendido pelos sentidos como regra única e exclusiva da percepção da
verdade. O sentido da palavra “descobrir” (inventio) significa “chegar até onde se deseja” (in-
venire) para afirmar que a alma procura as realidades que conhece antes dos sentidos as
encontrar94
.
90 Interessante é a investigação de Agostinho a respeito de que meios se serviu Platão para adquirir uma visão
próxima à cristã. Chega à conclusão de que Platão – aprendiz da língua egípcia por meio de intérprete - pode ter
adquirido esses conhecimento da tradução das Escrituras proféticas quando esteve no Egito em razão do rei
egípcio Ptolomeu ter as pedido à Judéia, as quais foram traduzidas por setenta hebreus à custa de pagamento. Cf.
AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 313-314. 91 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 308. 92 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 308-309. 93 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 310. 94 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 323-324.
33
Agostinho remonta a Platão para refutar as ideias epicuristas de que a inteligência
(espírito) concebe noções (ennóias) das coisas que explicam por definições, a unir por
conexão o aprender e o ensinar. Essa filosofia platônica assevera que existe certa inteligência
capaz de nos ensinar todas as coisas, sendo o próprio Deus, criador de todas as coisas. Ou
seja, a filosofia lógica ou racional reconhece a importância do conhecimento que nos vem
pelos sentidos e aquela que nos chega pela inteligência na descoberta de todas as coisas em
Deus, afirmado como medida de todas as coisas, na obra “As Leis”: “Aos nossos olhos a
divindade será ‘a medida de todas as coisas’ no mais alto grau – um grau muito mais alto do
que aquele em que está qualquer ‘ser humano’ do qual eles falam”95
.
É interessante observar que Hume no século XVIII – compartilhando do pensamento
epicurista – afirme que
os únicos objetos da ciência abstrata ou da demonstração, são a quantidade e o
número, e que todo esforço para estender este gênero mais perfeito do
conhecimento além daquelas fronteiras é mero sofisma ou ilusão.
(...) Todas as outras investigações humanas dizem respeito unicamente às questões
de fato e de existência; e estas não são, evidentemente, suscetíveis de
demonstração. Tudo o que é pode não ser.
(...) Portanto, a existência de qualquer ser somente pode ser provada mediante
argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos se fundam
inteiramente na experiência.
(...) As ciências religiosas (...) fundam-se sobre a razão, na medida em que se
apóiam na experiência. Mas seu melhor e mais sólido fundamento é a fé e a
revelação divina.96
O que Hume proporciona é a divisão da filosofia e da ciência, pois não têm base
comum, ou, ao menos, tenta reduzir o significado do termo “filosofia” para o que chamou de
“filosofia moral ou da natureza humana” e ter como ponto central a experiência, a excluir
qualquer entendimento abstrato não verificável na prática. Não há, assim, possibilidade de um
juízo moral97
(dever-ser) advir dos fatos (ser); assim como só entendemos o mundo por uma
associação de ideias vindas da experiência sensível.
Não obstante, os argumentos das filosofias platônica e cristã continuam a repousar em
bases racionais para além do conhecimento intuitivo kantiano ou o experimental de Hume, a
aceitar um fundamento racional para o juízo moral. Tanto Kant quanto Hume não retiram a
religiosidade da experiência humana e isso, a nosso ver, pode reforçar a ideia de que o existir,
o pensar e o viver são categorias presentes no universo criado (natureza), notadamente, no
homem capaz de transcender todos os corpos (realidade sensível) para chegar a algo
95 PLATÃO. As Leis. Tradução Edson Bini. 2. ed. Livro IV. 716 c. São Paulo: Edipro, 2010, p. 189. 96 HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 1. ed. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1996, p. 153-154. 97 Apesar disso, o juízo moral adviria de um sentimento de aprovação ou reprovação social.
34
incomparável (Deus, transcendente) na medida em que sua inteligência pode ser guiada ao Ser
Supremo por Este como experiência humana.
A separação entre as naturezas divina e humana não põe obstáculo ao homem em
conhecer uma realidade, por assim dizer, transempírica, pois nem mesmo Kant e Hume ousam
afirmar que a religião não tenha um aspecto racional de acordo com a experiência. Em termos
cristãos, ao abordarmos uma experiência humana racional, queremos nos reportar ao
pensamento segundo o qual a própria religião se funda sob bases racionais e, se se estabelece
nisso, é apta, pois, a se fazer ouvir no mundo, particularmente, no Estado. Essa mesma
experiência é reconhecida como resgate divino da humanidade realizado na história; por isso,
o pensador cristão afirma que “o fundamento para seguir esta religião é a história e a
profecia”98
. Nesse sentido, a busca pelo conhecimento verdadeiro é mais do que o puramente
subjetivo ou empírico, embora se reconheça o seu devido valor. O modelo de Estado pode ser
fabricado com base em elementos exclusivamente humanos em razão de ser autônomo, mas,
para ser justo verdadeiramente, deve buscar o conhecimento verdadeiro.
A prosseguir, a terceira parte da filosofia, denominada moral, é chamada pelos gregos
de ethiké e trata do bem supremo99
para alcançarmos a felicidade e só a alcança quem vive de
acordo com a virtude por meio do conhecimento e imitação de Deus, fonte única da
felicidade100
. A felicidade vai para além do mundo e do ser (corpo e alma) para se situar no
fruir de Deus. Veremos que Santo Agostinho embasa a justiça justamente na ideia do fruir de
Deus.
Apesar dessas considerações a respeito da filosofia platônica, Agostinho aponta que os
platônicos não foram capazes de reconhecer Cristo como o Verbo encarnado por não
acreditarem que o homem pudesse alcançar a perfeição da sabedoria enquanto não evitasse e
se liberasse do corpo para ser feliz101
. Isso porque o corpo é um bem na visão cristã e a
encarnação de Cristo não lhe afetou a divindade.
Outro ponto que o pensador cristão refuta é a reminiscência de Platão segundo a qual o
homem não adquire novos conhecimentos na medida em que as almas que viviam neste
mundo antes dos corpos apenas se lembram do que já conhecem. Na verdade, Agostinho
refuta essa idéia ao aceitar que a intelecção humana é capaz de conhecer as realidades eternas 98 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 39. 99 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 310. 100 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 311. 101 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 405-406.
35
enquanto a razão humana é capaz de conhecer e aprender as coisas temporais de forma
originária. Por isso, divide o conhecimento em intelectivo (sabedoria) e racional (ciência). “A
sabedoria é o conhecimento intelectivo das realidades eternas e a ciência o conhecimento
racional das coisas temporais”102
.
1.1.4 A influência da ontologia agostiniana na ideia de Estado
Existe a separação entre as naturezas divina e humana e autonomia de ambas, mas a
segunda é dependente da primeira para alcançar a Verdade. Veremos em capítulo próprio que
a verdadeira justiça é aquela participante da Verdade, a consistir no fruir103
de Deus, presente
no mundo por meio da lei natural. Podemos afirmar que a independência do Estado está na
ideia de criação e, consequentemente, na separação entre Deus e o mundo. O Estado é
autônomo em relação a Deus, mas necessita Deste para encontrar a verdadeira justiça. A
Verdade é o ponto de referência da conduta dos cidadãos na condução do Estado, nos vícios e
nas virtudes; assim como a lei natural o é para a lei civil. Onde não há Verdade, não há
felicidade em âmbito pessoal ou coletivo. Onde não há conformidade à lei natural, não há
verdadeira lei civil.
Por isso, a filosofia verdadeira é aquela que se aproxima do conhecimento de Deus.
Assim, afirma-se que a filosofia é “o amor da sabedoria”104
. As categorias metafísicas se
fazem presente já neste mundo (natureza). Deus e a natureza são autônomos e, ao mesmo
tempo, estão imbricados um no outro, não por natureza, mas por amor. Amor como lei natural
estendida aos homens pela lei divina. Por isso, Agostinho afirma que a Cidade de Deus é uma
realidade presente no mundo misturada com a Cidade terrena enquanto peregrina neste mundo
e feliz ao encontrar a verdadeira filosofia. Esse raciocínio leva à conclusão de que “o
cristianismo convenceu pela união da fé com a razão e pela orientação da atuação para a
caritas (...) acima de todo limite de condição”105
.
102 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 390-392. 103 Santo Agostinho faz uma diferença entre fruir e usar: o primeiro é “aderir a alguma coisa por amor a ela
própria” e usar “é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça
ser amado”. Essa diferença tem importância também em relação às virtudes. O homem usa das virtudes para fruir
de Deus. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo:
Paulus, 2002, p. 44. 104 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 75. 105 RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe?. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1. ed.
São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, p. 16.
36
1.2 Ordem como vontade
Vimos no subtítulo antecedente que a criação é a categoria agostiniana que permite
ligar a Cidade Celeste e a Cidade terrena pelo conhecimento. O conhecimento é o encontro da
verdade por meio da sabedoria e da ciência. O homem conhece as realidades imanentes e
metafísicas pelos sentidos e pela razão. O conhecimento permite a aproximação entre Deus e
a natureza, realidades autônomas. A construção do Estado depende desse conhecimento
verdadeiro para ser justo. A Justiça é uma virtude sintetizada no amor a Deus e ao próximo,
lei natural como projeção da lei divina comum a todos os homens, os quais já têm presentes
na razão a centelha106
da inteligência divina para encontrar a verdade.
A Criação implica a observância de certa ordem. Todas as coisas obedecem à ordem
natural da criação. Por isso, dizemos que conhecer o mundo significa conhecer a ordem
natural da Criação. A ordem é física e moral. Isso significa que o próprio homem deve
procurar a ordem dentro de si.
A ordem é uma categoria importante para a harmonia da Criação, pois a existência de
ordem traz em si a ideia da existência de uma inteligência que permite orientar todas as coisas
para si. Essa inteligência é Deus para Santo Agostinho. Deus “é a própria verdade
(veritas)”107
. Por meio da ordem das coisas, a divina Providência governa e rege todas as
coisas.
A ordem é a harmonia da diversidade das coisas criadas que, por sua vez, devem se
orientar em direção ao Criador na medida em que “o espírito, a partir de sua interioridade,
entende o que seja a beleza do universo, que certamente assim se denomina a partir do termo
uno.”108
O homem, como parte da Criação, está sujeito a essa ordem também, particularmente,
à ordem moral. Vive justamente quem ama ordenadamente: a Deus e ao próximo109
.A ordem
moral permite trazer à discussão as virtudes e os vícios humanos e, pois, como o Estado deve
tomar a lei para atender às exigências da moral.
106 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 568. 107 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 108 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 162. 109 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002, p. 65-
66.
37
Caso não aceitemos a ideia de criação e da ordem criada, o mundo se torna obra do
acaso. O conhecimento se tornaria uma luta constante com a natureza na medida em que esta
não deseja ser conhecida. A natureza só se deseja conhecer caso a inteligência encontre a
beleza e a bondade, ou seja, uma harmonia presente desde a criação do cosmos. Do contrário,
se a natureza for obra do acaso que não guarda em si uma ordem e, consequentemente, a
beleza e a bondade, o conhecimento não buscará a Verdade, mas, sim, modos de viver
conforme a necessidade e utilidade em um mundo sem início nem fim. Os homens estão,
desse modo, abandonados no universo e, com isso, não estão sujeitos à lei natural como
decorrência da lei eterna. Não haveria uma lei natural universal comum a todos os homens,
mas somente leis fabricadas pelo homem em busca de regular o Estado em determinadas
épocas e lugares.
1.2.1 A ordem e a causa
Agostinho procura essa idéia de ordem a partir do método dialético entre ele e seus
amigos Licêncio e Trigécio em resposta às dúvidas do amigo Zenóbio. Nesse diálogo da obra
denominada “A ordem”, Agostinho e os amigos procuram responder como justificar a
evidência do mal nas ações humanas se todas as coisas sucedem de Deus pela ordem da
criação.
A resposta a que se dê ao problema permite refutar as afirmações ímpias de que ou
Deus negligenciou a ordem nessa parte ou todas as coisas más acontecem por causa da
vontade de Deus. Ao dar prosseguimento ao diálogo, Agostinho incita seus amigos a
responder a razão pela qual a água da chuva que cai no canal durante a noite provoca um
ruído irregular.
Isso leva Licêncio e Trigécio a dialogarem a respeito das causas110
das coisas. Se todas
as coisas têm uma causa e o efeito de uma causa é a subsequente de outra coisa, então, a
ordem se estabelece de maneira linear. Esse raciocínio leva à conclusão de que o próprio erro
tem uma causa e, em última análise, o erro seria atribuído a Deus: causa eficiente de todas as
coisas.
110 David Hume procurou refutar a teoria das causas (princípio da causalidade) no sentido metafísico
(transcendental) com a teoria da associação de idéias em que habituamos relacionar necessariamente o anterior e
o posterior. Ou seja, o raciocínio se baseia no hábito que causa na imaginação uma certa regularidade das ideias
fundadas em fatos sensíveis (princípio da conexão). Cf. HUME, David. Investigação acerca do entendimento
humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996, p. 39-59.
38
Para tanto iniciam com a pergunta: “É possível que alguma coisa aconteça sem uma
causa?”111
. Interrogam-se a respeito das folhas que caem nos aquedutos de madeira e
provocam o som irregular da água se ocorrem pelo acaso (casualidade) ou por alguma razão
subjacente (ordem das coisas). A razão pela qual as folhas caem das árvores foge ao
entendimento de Licêncio ao afirmar que “estas coisas escapam aos nossos sentidos”112
. Santo
Agostinho, sabedor de que as árvores são a causa antecedente das folhas, questiona se as
árvores nasceram ali por acaso. Como em um ato de fé, Licêncio crê que nada se faz sem uma
“ordem de certas causas”113
. Sem se conformar com a resposta, Agostinho questiona Licêncio
ao indagá-lo da seguinte forma: “Esta natureza, que você acha tão ordenada, para que
utilidade (...) ela gerou estas árvores que não produzem frutos?”114
. Trigécio rompe o silêncio
e responde que a utilidade das árvores não está em somente dar frutos. Agostinho não
responde à questão a respeito da ordem, mas oferece uma luz à inteligência de Licêncio e
Trigécio ao indagar se as folhas que são levadas pelo vento e boiam na corrente ao resistirem
um pouco ao curso das águas que se precipitam necessariamente, não faz lembrar exatamente
certa ordem das coisas. Licêncio maravilhado exclama que nada se faz sem uma causa. Em
outras palavras, a questão sobre a causa (princípio da causalidade) não é respondida.
O pensador cristão complica o problema e coloca a questão sobre se a ordem das
coisas é boa ou ruim para tentar refletir sobre se existe alguma coisa no universo que contraria
essa mesma ordem. De fato, Agostinho se preocupa aqui com o problema do livre-arbítrio do
homem e com a desordem que pode advir da conduta humana, a abalar a existência de Deus e
tudo o que isso implica, como, por exemplo, a criação, a perfeição, a verdade, a beleza e a
bondade. Como pode existir a desordem se Deus estabeleceu a ordem? Como pode existir o
mal se tudo foi criado por Deus que é bom?
Licêncio sem titubear diz que nada pode ser contrário “àquilo que ocupa o todo e se
mantém no todo”115
. O raciocínio é simples e, por isso, incita Trigécio a questionar Licêncio
sobre o erro: “Logo, o erro não é contrário à ordem?”116
.
111 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 112 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 113 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 114 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 115 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 174. 116 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 175.
39
Sem perdermos a linha da discussão, o erro é a base da preocupação dos filósofos na
época moderna. Descartes elabora o método de descobrir a verdade, a duvidar a princípio de
tudo, a pretender transformar a verdade em certeza científica. O erro é uma preocupação de
Santo Agostinho também, muito embora faça uma análise a respeito do erro em âmbito mais
em relação ao mal presente no mundo – o que seria uma contradição com o Deus Uno - do
que sob a perspectiva científica de conhecer as realidades a partir do pensamento humano.
Podemos dizer que a visão agostiniana é logocêntrica enquanto a cartesiana em diante é mais
antropocêntrica.
De qualquer forma, a questão do erro é uma preocupação do pensador cristão tendo
em vista a existência do mal presente no mundo, o que o leva junto aos demais colegas a
discutir a questão a partir da justiça.
Licêncio, por sua vez, diz que até mesmo o erro provém de uma causa do qual é efeito
e conclui que os “bens e os males estão no âmbito da ordem”117
. Santo Agostinho permanece
calado e deixa Trigécio se indignar e a dizer que o amigo Licêncio afirmou algo ímpio na
medida em que a ordem procede de Deus e, por isso, os males não poderiam provir d’Ele. Isso
permitiu Licêncio a afirmar que “Por esta ordem e disposição ele conserva a coerência da
universalidade das coisas pela própria distinção, resultando que seja necessário que também
os males existam”.118
Disso resulta que a beleza da ordem de Deus está nos contrários. Nessa espécie de
antítese se encontraria a ordem de Deus. Desta vez é Licêncio que coloca uma questão de
grande importância e que serve perfeitamente para o nosso estudo: “Deus é justo?”119
. Na
verdade, Licêncio coloca a questão para reforçar o argumento de que na ordem de Deus se
encontram as distinções de modo a permitir a aplicação da justiça. A justiça é entendida em
termos platônicos, no sentido de se dar a cada um o que lhe compete120
. Se não houvesse
distinção, não haveria distribuição em razão de todos serem bons e, então, a justiça seria
desnecessária. E como todos afirmam que Deus é justo, então a oposição dos contrários seria
aceitável na ideia de ordem.
117 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 175. 118 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 177. 119 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 177. 120 Na República de Platão e na discussão sobre o conceito de Justiça, Polemarco ao lembrar do poeta grego
Simônides afirma que “justo é dar a cada um aquilo que lhe é devido”. (PLATÃO. República, 331 e.).
40
1.2.1.1 A lei natural como vontade de conservar a ordem
A ordem, uma das bases filosóficas de Agostinho, remete-nos à justiça. Isso significa
que a ordem não ocorre somente nos aspectos físicos da natureza, como a água caindo do
aqueduto de madeira, mas, principalmente, interfere na ordem moral do homem. A justiça é
vista como uma virtude. Agostinho define o direito natural como a “la ley eterna es lá razón o
voluntad divina que manda conservar el orden natural y prohibe alterarlo”121
.
São Tomás de Aquino afirmará no século XIII que a justiça é “dar a cada um o que lhe
pertence”122
na questão 58, alínea 11 da parte IIa-IIæ. O “o que” é o justo concreto que
permite conservar a ordem na sociedade.
O bispo de Hipona não responde imediatamente à questão sobre o erro, mas somente
menciona que a conversão a Deus nos tira do erro presente no corpo123
. Esse caminho –
afastamento do erro - é alcançado com a prática das virtudes que une o homem ao
“Intelecto”124
para gozar de uma “vida felicíssima”125
. Nesse ponto, a questão da existência da
ordem é deslocada para a utilidade da ordem. Passa-se de uma investigação ontológica (o que
é) para uma teleológica (qual a finalidade). A definição de ordem se centra, assim, neste plano
com a afirmação de que
a ordem é aquilo que, se a conservarmos em nossa vida, nos leva a Deus e, se não a
conservamos em nossa vida, não chegaremos a Deus (...) Esta questão deve,
portanto, ser discutida com toda a diligência (...). 126
Aqui é ligada a ideia de ordem e a de conservação. Para conservar a ordem precisamos
nos conduzir pelas virtudes, sendo a justiça uma delas. O Estado justo é aquele que se funda
sobre as virtudes de modo a conservar a concórdia entre as pessoas. Um dos elementos do
Estado é a concórdia bem ordenada127
. A expressão “bem ordenada” indica a fundação do
121 Tradução nossa: “lei eterna que, enquanto razão ou vontade divina, prescreve a conservação da ordem natural
e proíbe a sua perturbação”. AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Escritos antimaniqueos (2º).
Contra Fausto. Tradução de Pio de Luis. v. XXXI. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, p. 540. 122 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica: do direito, da justiça e das suas partes integrantes. Tradução de
Alexandre Correia. v. XIV. 1. ed. São Paulo: Editora Odeon, 1937, p. 43. 123 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 181. 124 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 182. 125 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 182. 126 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 185. 127 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 399.
41
Estado sobre as virtudes. O que nos leva à conclusão de que o Estado para Santo Agostinho é
um Estado ético. A função da lei é ordenar os apetites desordenados dos homens128
.
A ideia de ordem é tão importante para o pensamento ocidental que levou até mesmo
Dante Alighieri, citado por Miguel Reale, a afirmar que o direito é “uma proporção real e
pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida,
corrompe-a”129
. Para o que nos interessa, Miguel Reale explica que a definição de Dante foi
tomada dos ensinamentos aristotélico-tomistas e das lições de Cícero – diga-se de passagem,
que Santo Agostinho o apreciava130
– em que devemos conhecer a natureza humana para
conhecer o Direito na medida em que este é “uma expressão ou dimensão da vida humana,
como intersubjetividade e convivência ordenada”131
.
1.2.2 A ordem: razão e sentido
Santo Agostinho diz que toda a Verdade, a Suma Harmonia, habita no coração do
homem apesar de ser mutável. A Verdade é a referência das virtudes e dos vícios. O homem
encontra esta ordem dentro si, voltando-se para si e deixando a multiplicidade de coisas que o
poderia desviar das virtudes. Diz o mestre cristão:
Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do
homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti
mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que
raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão.132
A ordem é alcançada com a harmonia entre a razão humana e a Verdade. Reforçamos
aqui o binômio Deus e o homem que Santo Agostinho trabalha em toda sua obra. O homem
para além de si mesmo em busca de Deus. Se considerarmos exclusivamente a pura razão
humana, o homem não é capaz de ultrapassar os próprios limites. Na obra “A ordem”, o
pensador cristão menciona que o homem (a alma) só vê a beleza da harmonia (unidade) pelo
“desapego da multiplicidade”133
.
128 AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Escritos antimaniqueos (2º). Contra Fausto. v. XXXI.
Tradução de Pio de Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, p. 611. 129 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 60. 130 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 47. 131 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 61. 132 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 98. 133 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 162.
42
Isso fica claro na sequência do diálogo. Santo Agostinho provoca Licêncio a definir o
que sabe sobre a ordem. Este, então, define a ordem como “aquilo pelo qual são feitas todas
as coisas que Deus estabeleceu”134
. Para Licêncio, a noção de ordem abrange os bens e os
males, os quais são governados por ela. Antevendo o erro para o qual Licêncio se dirige, o
mestre Agostinho o indaga, anteriormente, se até mesmo Deus se rege pela ordem ou está fora
dela. Pois, se em Deus tudo é bom não haveria ordem a administrar e, portanto, estaria fora
dela135
(essa questão de Deus estar ou não fora da ordem repercutirá no conceito de justiça
que veremos mais abaixo).
Dessa maneira, Agostinho insere a variável do movimento no debate, o que obriga o
condiscípulo a admitir que as coisas governadas pela ordem neste mundo são mutáveis e as
em Deus são imutáveis. Logo, se as coisas mutáveis não estão em Deus; elas existiriam sem
Deus?136
Esta provocação de Agostinho leva-os a determinar o sentido exato da expressão
“estar-com-Deus” como “tudo o que entende a Deus”137
. Se o sábio entende a Deus e se
move, estaria ele com Deus? Essa pergunta de Agostinho faz Licêncio responder que nem
tudo o que o sábio conhece está com Deus, mas aquela parte que está com Deus o sábio a
conhece. Fala desse jeito para negar que o conhecimento adquirido pelos sentidos está com
Deus e afirmar que a percepção pela mente está com Deus. Vai mais longe e afirma que o
homem que só conhece as realidades pelos sentidos não conhece a si mesmo. Trigécio se
manifesta para dizer que a compreensão se adquire pelo conhecimento intelectual apenas na
medida em que sentir não é conhecer138
.
Santo Agostinho retifica e diz que o homem é feito de alma e corpo. A alma também
conhece por meio dos sentidos. O que o mestre faz é unir alma e corpo da maneira que a
criação de Deus – o homem – não esteja só neste mundo. A divisão entre alma e corpo
permite o raciocínio de que o corpo, por pertencer a uma parte inferior do homem (mutável),
deve buscar algo melhor (imutável) do que ele para que possa alcançar a verdade. O corpo
deve se submeter à inteligência que, por sua vez, possui a centelha da inteligência divina.
Submeter o corpo à inteligência significa atribuir a esta uma parte melhor e superior que o
134 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 186. 135 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 196. 136 Ao inserirmos a discussão sob a perspectiva do modelo de Estado, poderíamos dizer que este se faz sem
Deus? 137 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 199. 138 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 199-200.
43
corpo, o qual pertence a uma parte inferior do homem. Pelo diálogo acima, a alma que já
entende a Deus e está com Ele se torna imutável neste ponto e já experimenta da realidade
invisível. Aqui não queremos afirmar que o corpo seja algo mau em si mesmo – ao contrário,
é bom – mas apenas reconhecer a limitação do corpo para “entender a Deus” (conceito de
ordem).
Agostinho acredita que devemos olhar a harmonia da criação em seu todo139
. Não
devemos tomar cada parte separadamente, pois isso prejudica ver a beleza da ordem da
criação. Se tomarmos todas as coisas em seu conjunto, veremos que tudo tem uma causa e
está em certa ordem140
(ordem física). Todas as coisas têm sentido e tendem para Deus.
Essa passagem do diálogo é importante pelo fato de atribuir ao homem a possibilidade
de encontrar a Verdade imutável. O homem é parte do mundo e este foi criado por Deus com
natureza distinta de si. Voltando-se para si mesmo é possível encontrar a beleza da ordem. O
homem não está abandonado; ao contrário, a existência da Verdade se faz presente neste
mundo, particularmente, na inteligência humana capaz de conhecer a si mesma.
No Livro X da obra “Confissões”, Agostinho nos apresenta o ser diante Deus. O
homem se desnuda frente ao Criador onisciente e se reconhece em sua integralidade humana
com todas as fraquezas e, ao mesmo tempo, consola-se no Senhor. A consciência humana não
resiste quando comete erros e se confessa a partir do eu para o Tu para, sendo perdoado na
misericórdia divina e na doçura da graça, tornar o homem feliz e afastá-lo do desespero do
“não posso”141
.
Os erros (males) fazem o homem atrasar o cumprimento da virtude e, assim, a
confissão do eu serve para Deus mostrar quem é o homem, e não, o que ele foi. Agostinho diz
que as ações boas são obras e dons de Deus; as más são delitos do homem e juízo de Deus142
.
A ordem divina é servir o outro como concidadãos e peregrinos neste mundo143
de modo que
os erros criam uma desordem no próprio homem. Por isso, Agostinho afirma que “enquanto
peregrino longe de Vós, estou mais presente a mim do que a Vós”144
, a significar o ser no
139 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 102. 140 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 208-210. 141 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 142. 142 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 142. 143 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 143. 144 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 143.
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mundo longe da Verdade e sujeito às tentações. Na visão agostiniana, o homem está no
mundo com todas as circunstâncias respectivas, mas não abandonado.
A ontologia (estudo do ser) é significante no pensamento agostiniano quando discorre
sobre memória, onde se guardam “as percepções de toda espécie”145
e se “conservam
distintas e classificadas todas as sensações”146
. As imagens ficam armazenadas na memória,
não os objetos segundo Agostinho. E acrescenta que a memória retém as noções – no sentido
de realidades – do conhecimento intelectual (arte, dialética, etc.) de modo a reter na memória
os próprios objetos. Agostinho se expressa do seguinte modo:
Quando ouço dizer que há três espécies de questões, a saber: “se uma coisa existe
(na sif)? qual a sua natureza (quid sit)? e qual a sua qualidade (quale sit)!”, retenho
as imagens dos sons de que se formaram essas palavras, e vejo que eles passaram
com ruído através do ar e já não existem. Não foi por nenhum dos sentidos do corpo
que atingi essas coisas significadas nestes sons, nem as vi em parte nenhuma a não
ser no meu espírito. Escondi na memória não as suas imagens mas os próprios
objetos.147
Em outras palavras, a memória retém as imagens de objetos sensíveis, mas, também,
objetos de maneira que “sem imagens vemos no nosso interior tais como são em si
mesmas”148
. A memória seria responsável por fazer emergir na inteligência humana
conhecimentos que lá estão (reminiscência) como ideias inatas, que, se não recordados, ficam
dispersos novamente
E assim como se fossem novos, é necessário pensar segunda vez nesses
conhecimentos existentes na memória – pois não têm outra habitação – e juntá-los
(cogenda) novamente, para que se possam saber. Quer dizer, precisamos de os
coligir (colligenda), subtraindo-os a uma espécie de dispersão. E daqui (cogenda,
cogo) é que vem cogitare; pois cogo e cogito são como ago e agito, facio e facitio.
Porém a inteligência reivindicou como próprio este verbo (cogito), de tal maneira
que só ao ato de coligir (colligere), isto é, ao ato de juntar (cogere) no espírito e não
em qualquer parte, é que propriamente se chama “pensar” (cogitare).149
No homem se desenvolve o conhecimento. O homem é capaz de aqui tornar presente
o objeto que antes estava disperso, como, por exemplo, as regras matemáticas dos números, a
tal ponto que “a memória lembra-se de se lembrar”150
, inclusive do conhecimento que
discerne as verdades das falsidades, o qual conservo (a noção de ordem traz consigo a ideia de
145 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 145. 146 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 145. 147 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 147. 148 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 147. 149
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 148. 150 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 148.
45
conservação) “na memória para depois me lembrar que agora entendi”151
. Isso quer dizer que
é na memória que o homem encontra-se a si mesmo e se recorda de todas as ações, bem como
é a memória a responsável por conservar objetos ‘inatos’ e as imagens dos objetos sensíveis.
Toda essa teoria da reminiscência de Agostinho é para que o homem se lembre de
encontrar a felicidade e, mais, de como procurar a vida feliz. A felicidade é uma noção que
habita a memória, a significar que já fomos felizes na medida em que esta se recorda da noção
– realidade – de modo que essa verdade seja auto-evidente para a nossa conduta de vida, sem
a contestarmos, pois, de outro modo, não a perceberíamos. Ninguém diria que não quer ser ou
estar feliz, pois todos a desejam.
Agostinho parece querer unir intelecto e conduta como elementos para entendermos o
homem globalmente. A força dos objetos é tão forte que são auto-evidentes na nossa conduta
de vida (felicidade por exemplo) e, ao mesmo tempo, nossa memória os fazem emergir.
Agostinho verifica que todos querem a felicidade no mundo e, por esse motivo, tentar
encontrar a razão de tudo isso. No Livro X, Capítulo XXI, das Confissões expõe que “Todos,
absolutamente todos, querem ser felizes. Se não conhecêssemos a vida feliz por uma noção
certa, não a desejaríamos com tão firme vontade”152
. O filósofo cristão parece querer
encontrar um fundamento racional para certos tipos de juízos tirados da memória com a teoria
da reminiscência e, ao mesmo tempo, explicar os motivos que fazem os homens terem
vontade de tê-los.
Para Agostinho a realidade desses bens é conhecida pelo intelecto, mas, também,
sentida na prática de modo que devemos buscar a felicidade na verdade153
. Por outro lado, não
é possível a felicidade na falsidade, como, por exemplo, ninguém quer ser enganado apesar de
ter o desejo de fazê-lo. Por isso Agostinho questiona “qual será o termo médio onde a vida
humana não seja tentação?”154
. Chega à conclusão de que deve se afastar da concupiscência
da carne, da concupiscência dos olhos e da ambição do mundo. A concupiscência da carne
está em se deleitar nos prazeres de modo a não usá-los bem. A maior tentação dos olhos é a
curiosidade ou o desejo de conhecer tudo por meio da carne e que se disfarça sobre o nome de
“ciência”. A ambição do mundo contempla ainda o orgulho, a tentação do louvor humano, a
vanglória, o amor-próprio que faz que os bens de Deus parecerem pertencer aos homens
151 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 148. 152 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 154. 153 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 154. 154 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 156.
46
exclusivamente ou invejam o outro para não tê-los. Por outro lado, a maior felicidade é o
encontro com Deus.
Por essa razão se diz que o intelecto é apto a “estar-com-Deus”, a memória, por sua
vez, é útil para a lembrança das coisas mutáveis em razão de serem passageiras (sensíveis) e
para o conhecimento racional de ideias inatas ao torná-las presentes, como, por exemplo, as
virtudes, o conhecimento e a verdade. A utilidade da memória está em fazer com que nosso
corpo (sensível) obedeça à lei155
, ou seja, lembra-nos da Verdade e torna nossas ações
condizentes com as virtudes (bens superiores) com o auxílio da graça divina segundo a ordem.
1.2.2.1 A justiça como ordem das virtudes
A ordem traz a ideia de lei que deve ser observada. Essa lei deve submeter todas as
coisas para si, a qual é alcançada com o homem voltando para si por meio da razão, centelha
da inteligência divina, para estabelecer a ordem em todas as coisas. A síntese do pensamento
pode ser descrita na seguinte passagem do Livro “Confissões”: “Dai-me o que me ordenais e
ordenai-me o que quiserdes”156
. Dita de forma expressa na obra Cidade de Deus com o intuito
de afastar da república os vícios do povo que idolatravam os deuses: “a lei é a vontade de
Deus”157
.
Para os platônicos, a virtude é a prática habitual da justiça e a arte (tradução dos
latinos para a palavra grega arete) de bem viver para os estóicos. Ambos estão de acordo de
em que a razão deve resistir às partes inferiores do corpo para que, dominando-as, possa
governar a virtude158
. A virtude conserva a ordem das coisas e põe em prática a vontade de
Deus (lei).
Deus é bom e imutável e em tem natureza diversa da do universo. A natureza é
mutável e boa em si mesma, muito embora tenda a se deteriorar. O homem por estar no
mundo é mutável e bom em si mesmo, mas pela sua conduta tende aos vícios. Também o
Estado é mutável e bom em si mesmo, pois melhor existir do que não existir nada. A natureza,
o homem e o Estado são realidades autônomas em razão de terem natureza distinta da de
155 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 199-204. 156 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 157. 157
AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 88. 158 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 169 e 344-346.
47
Deus. Por esse motivo e para que não se deteriore (natureza), não se paute pelos vícios ou
erros (homem) e não haja dominação (Estado) devem estar com a Verdade imutável. Essa
Verdade é chamada de “Ordenador”159
por Santo Agostinho. A corrupção do homem e a
dominação do Estado estão em desordem por não procurarem bens superiores e melhores. No
Livro “Confissões”, Santo Agostinho reconhece a beleza das coisas e afirma que
quando se indaga a razão por que se praticou um crime, esta ordinariamente não é
digna de crédito, se não se descobre que a sua causa pode ter sido ou o desejo de
alcançar alguns dos bens a que chamamos ínfimos, ou o medo de os perder. Esses
bens são, sem dúvida, belos e atraentes, ainda que, comparados com os superiores e
celestes, não passem de desprezíveis e abjetos.160
O homem tem dentro de si essa lei eterna para proferir um juízo sobre quais bens deve
almejar em detrimento de quais deve rejeitar. A verdadeira justiça é aquela que se pauta pela
“lei retíssima de Deus Onipotente”161
. Essa lei é igual em todos os tempos e lugares para
todos os homens. Agostinho faz uma crítica veemente aos que julgam conforme a sabedoria
humana e, portanto, a relatividade dos tempos passados e futuros.
O que queremos dizer é que o direito conserva (ordem) em si uma parte que está fora
da cultura (costumes) ou, ao menos não é redutível à ciência como nós a conhecemos hoje,
muito embora seja alcançado pela experiência. Nem todo o direito é cultural e, assim,
mutável. Existe uma parte que se conserva imutável, a qual Santo Agostinho chama de amor,
a elevar o próprio conceito de justiça. A implicação dessa lei é lançar a justiça para além da
justiça humana e as leis para além das leis humanas. As leis e a justiça humana devem se
conformar às exigências desta lei que podemos chamar de natural na medida em que a ordem
se encontra na natureza que, por sua vez, foi criada por Deus, o Ordenador.
Se isso é certo, os cidadãos deverão se conformar a essa “lei retíssima” pelo caminho
das virtudes, as quais conduzem o homem aos bens superiores. O exemplo histórico a que
Agostinho faz menção é o crescimento de Roma na época em que as pessoas se conduziam
pelas virtudes por meio da lei inscrita na consciência humana tiradas das palavras de Salústio
segundo o qual “o honesto e o justo reinavam tanto na consciência como na lei”162
.
Assim também o Estado terreno deve procurar os bens superiores para se tornar a
Cidade Celeste desde já. Em outros termos, o Estado deve ser ético e a ética não deve ser
159 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 85. 160 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 40. 161 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 50. 162 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 84.
48
construída em bases exclusivamente humanas. Fabricá-la sobre fundamentos puramente
humanos significa fundar o Estado sobre “uma falsa liberdade”163
que nos faz amar mais a nós
do que a Deus. Significa antepormos164
as coisas terrestres às coisas divinas, a inverter a
ordem natural das coisas.
Santo Agostinho critica os filósofos que pretendem colocar os prazeres como medida
das virtudes. A Volúpia seria uma rainha sentada no trono em que a Prudência lhe asseguraria
a tranquilidade e a paz; a Justiça distribuísse todas as graças para conciliar a todos para a
manutenção do bem-estar corporal e afastar as leis que atrapalhassem a segurança dos
prazeres; a Fortaleza serviria para aliviar a dor ao lembrar os prazeres passados e a
Temperança deveria controlar a quantidade de alimentos para que não houvesse excesso que
perturbasse os prazeres alterando a saúde do homem165
; “como se o supremo bem do homem
fosse ter boas todas as suas coisas, menos a si mesmo”166
. Novamente, o bispo de Hipona
trabalha com o binômio Deus e o homem ao afirmar a integralidade do ser humano
globalmente. A unidade do ser humano é alcançada ao deixarmos a concupiscência seguindo
a Deus único167
.
Da mesma forma, o Estado que regula os cidadãos para garantir paz e segurança em
nome dos prazeres humanos não está com Deus em razão de não procurar bens superiores aos
que o Estado pode oferecer. A autossuficiência torna o homem e o Estado soberbos para
menosprezar as virtudes e enaltecerem a si mesmos. Essa liberdade implica nos vícios
humanos e na corrupção do Estado, pois não se pauta pela verdade, e sim pela vaidade.
Agostinho denuncia essa falsa liberdade que não permite dizer a verdade:
Porque, se não existe, em absoluto, a liberdade de dizer a verdade, mas a licença de
maldizer o que eles esperam, o céu os preserve da prosperidade daquele homem
que a liberdade de prejudicar faria passar por feliz: Infeliz, exclama Cícero, quem é
livre para pecar!168
Para o pensamento agostiniano, Deus é o autor de todas as coisas, as quais obedecem à
ordem natural. Deus é bom. Logo, o mal é definido como “a privação do bem, privação cujo
163 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 52. 164
Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 359. 165 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 221. 166 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 107. 167
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 187. 168 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 230.
49
último termo é o nada”169
na medida em que tudo é bom ao provir de Deus. O homem e o
Estado são bons, mas devem se submeter à vontade de Deus, lei, para não serem privados dos
bens superiores. Aproximar-se e estar com Deus não priva o homem de nada do que é bom. A
ordem submete o mal a si para que também se curve à vontade de Deus.
Existe menção ao poder como categoria construtiva (positiva) na obra “Cidade de
Deus”, Livro V, Capítulo XIX, em que Santo Agostinho faz apologia aos homens unidos à
vida moral para que governem os povos170
. A filosofia agostiniana não é apenas um conjunto
de idéias sem aplicação prática. Ao contrário, a doutrina agostiniana é uma experiência da
razão que se faz perceber desde já. Podemos dizer que existe uma razão prática na ação do
homem e do Estado ao lado de um conhecimento especulativo. No prólogo da obra “Cidade
de Deus”, Agostinho diz que “A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu peregrinar através
da impiedade e dos tempos (...)”171
.
O bispo de Hipona tem uma posição definida em relação ao pensamento cristão no
governo do Estado. As causas são o encadeamento lógico da ordem natural. Todos os Estados
têm uma formação a partir de uma causa. Logo, a constituição do Estado se faz perante a
ordem das coisas. O Estado não é originado de um fortuito ou de uma necessidade inevitável
(fatalidade)172
, mas sim da vontade de Deus e dos homens. Deus permite e o homem constrói
o Estado.
A presença do cristianismo durante império romano serviu para afastar a adoração a
vários deuses e centralizar a fé em um só Deus. A filosofia racional de Agostinho permite que
a religião cristã se torne portadora da Verdade dentro do Estado (verdadeira religião). A noção
de ordem ligada à de Verdade autoriza o Estado a tomar os valores cristãos como parâmetro
para a moralidade pública. Não se trata de uma visão única de mundo, mas sim o
reconhecimento da Cidade terrestre em aceitar a liberdade na verdade para alcançar bens
superiores pelo caminho da virtude. A Verdade não se impõe na medida em que a ninguém se
obriga a tomar para si uma verdade na qual não se acredita, muito embora esteja disponível
para bons e maus. A ordem criada por Deus está aberta para conhecimento a todos os homens
e a todos os Estados em todas as épocas e lugares.
169 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 50. 170 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 221. 171 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 27. 172 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 183 e 190.
50
Sabemos que, para Santo Agostinho, a razão se encontra com a fé. Ambas levam o
homem e o Estado para Deus. Se unirmos as ideias de criação e ordem, a justiça deve
encontrar ali seu refúgio. Esse lugar é a fé. Nesse sentido, Santo Agostinho diz que “a fé
participa da justiça e ocupa entre nós o lugar mais destacado, porque sabemos o que é, pois o
justo vive da fé”173
. As virtudes são dons de Deus. A prudência, a temperança e a fortaleza
constituem a base das virtudes para Santo Agostinho ao lado da justiça.
Santo Agostinho e os condiscípulos na obra “A ordem” questionam se o bem e o mal
existiram sempre em razão de a justiça ser a expressão de dar a cada um o que é seu, já que só
há justiça se há uma distinção entre bem e mal. Logo, Deus é justo onde existe o mal que
permite diferenciá-lo do bem. Mas atribuir o mal na ordem da criação serviria para justificar
as virtudes e os vícios em uma mesma ordem, a atribuir a Deus os males. Por isso, santa
Mônica, mãe de Santo Agostinho, não afirma que o mal sempre existiu. Ocorre que o mal é
submetido à ideia de ordem também. A justiça não permite que algo fique desordenado174
.
A ideia de criação está vinculada inteiramente à idéia de ordem de maneira que a
constatação desta assente com o bom e o belo que provêm de Deus. Se não constatamos a
ordem, a ideia de criação e do Deus único se desfaz, o que repercute na ideia de justiça como
o estabelecimento da ordem. Não teria sentido restaurarmos uma ordem anterior ao mal para
que todas as coisas se façam belas e boas de acordo com a justiça se Deus não fosse o
Supremo Bem e todo bem procedesse dele. Não haveria justiça como conceito divino se não
tivesse havido a criação de onde procedera a ordem de todo bem. A justiça seria um conceito
puramente humano sujeita à mudança dos tempos e dos lugares se não tivesse havido a
criação e a ordem de onde todo bem provém. Assim, a justiça depende da fé para ser
conceituada como virtude para o estabelecimento da ordem criada por Deus.
1.2.3 Aspecto prático da ordem: contemplação e conduta
Santo Agostinho explica o aspecto prático da doutrina da ordem. A ordem é a própria
lei de Deus. O conhecimento dela implica duas ordens: a contemplativa (erudição) e a conduta
(vida)175
. A contemplativa ocorre pela autoridade e pela razão. A alma deseja conhecer
173 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 168. 174 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 218-221. 175 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 222-224.
51
(cognição) e apreende primeiro pela autoridade (admoestação) e depois pela inteligência
(intelecto), a compreender o princípio de todas as coisas, inclusive a própria razão176
. A
autoridade (fé) que nos leva ao entendimento é a divina, e não a humana, de modo a orientar o
homem para além das coisas sensíveis. O intelecto (razão) tem a potencialidade de entender as
virtudes. Seja pela autoridade, seja pelo entendimento, o homem deve se conduzir pelas
virtudes.
Dessa forma, o outro aspecto da ordem é a conduta. Santo Agostinho diz que o modo
de vida das pessoas deve se dar conforme as virtudes. Sem raciocínios abstratos, discorre
sobre as condutas concretamente
de tal modo que se abstenham de assuntos eróticos; dos prazeres da glutonaria; do
desregrado cuidado e adorno do corpo; das fúteis ocupações com os espetáculos; da
indolência de tanto dormir e da preguiça; da rivalidade; da difamação e da inveja;
das ambições de honras e poderes (...) o apego ao dinheiro é um veneno certíssimo
para toda a sua esperança (...) Não façam a ninguém o que não queiram que lhes
façam. Não aspirem a administrar a coisa pública se não forem perfeitos (...).177
O aspecto prático da ordem, notadamente no que se refere à conduta, orienta não só a
vida privada das pessoas, mas, inclusive, a conduta dos homens públicos. Parece que a
sabedoria tem um viés de razão prática direcionada para as ações a partir dos bens, sem
desprezar a força da razão para ‘sintetizar’ os juízos. No trecho acima, observamos com toda
eloquência a censura às ambições de poder e honras na administração da coisa pública (res-
publica). As virtudes entram como elementos constitutivos do Estado na percepção
agostiniana. Mais que isso: os homens virtuosos devem guiar o Estado.
1.2.3.1 A conduta e o Estado
Um Estado que não aceite essas virtudes se deteriora por meio da corrupção, causa de
cobiça dos bens terrestres em detrimento dos bens superiores. Santo Agostinho descreve que a
segurança e a prosperidade da república romana foram as causas da corrupção dos costumes
entre a segunda e a terceira guerras púnicas, período em que se promulgou a Lei Vocônia, que
proibia as mulheres a se tornarem herdeiras, embora filhas únicas. Santo Agostinho cita essa
176 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 224-225. 177
AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 222-223.
52
lei como exemplo de lei injusta178
. Na obra “Cidade de Deus”, Livro II, Capítulo XVIII, é
descrita a corrupção da república romana da seguinte forma:
Eis que a república romana (...) mudando pouco a pouco, de ótima e formosíssima se
transformou em dissolutíssima e péssima. Eis que, ante do advento de Cristo e após
o desaparecimento de Cartago, os costumes dos antepassados não iam
desempenhando-se lentamente, mas de modo torrentoso, ao extremo de o luxo e a
cobiça corromperem a mocidade.179
A lição é de que nem toda lei humana é justa (boa ou má) mesmo que promulgada em
épocas de segurança e paz. Mesmo Norberto Bobbio, defensor do positivismo jurídico, é
contrário à versão forte do positivismo jurídico e favorável à versão fraca como ideologia180
em tempos normais. O positivismo ético extremista é a obediência à lei sem limites, enquanto
o moderado não outorga poder sem limites em épocas de normalidade e, por isso, não leva ao
abuso da lei. O que leva à conclusão de que a lei é a forma mais perfeita de direito para
estabelecer a ordem181
.
A justiça é uma virtude, dom de Deus, de modo a poder o homem praticá-la ou não,
caso se aceite a verdade ou não. A justiça está ligada à verdade em última análise, sendo
necessária para o Estado. O Estado que alijar a fé de seu povo é um Estado dominador por não
permitir o encontro com a verdade. A verdade liberta o homem do mal, pois não o priva de
nada do que é bom na medida em que a verdade é Deus e Ele é bom.
As leis do Estado terrestre, que não conservam as virtudes, são injustas porque não
alicerçadas na verdade. Da mesma forma que a verdade não se impõe no sentido de obrigar
alguém a alguma conduta sem sua vontade, o Estado não pode se impor por meio das leis para
silenciar quem denuncia os vícios, sob pena de privar os cidadãos do bem. E privar do bem
significa fazer o mal. Caso o Estado acolha esse caminho, estará ele a impor uma visão única
de mundo em detrimento da própria ideia de liberdade que defende182
. Quem acusa os cristãos
de terem uma visão única de mundo tenta, na verdade, impor sua própria visão única de
mundo por meio das leis ao acusar os cristãos dos males presentes ou mesmo o enfraquecendo
ao induzir os que creem a um juízo equivocado.
178 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 135-136. 179 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 87. 180
A ideologia procura interferir na realidade, e não descrevê-la (teoria). Assim, crítica de funda num juízo de
valor de boa ou má, e não de verdade ou falsidade. 181 Cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio
Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo, Ícone, 1995, p. 235-238. 182 A ideia de verdade afasta a incerteza da doutrina do provável ou do verossímil. Em uma democracia, a
pluralidade é elemento constitutivo, mas a fé não pode ser posta à margem das questões do Estado, sob pena de a
própria pluralidade e liberdade se esvaírem.
53
Mais uma vez, a lei que distribuía o nome de cidadão na república romana após a
segunda guerra púnica é usada como exemplo da decadência dos costumes romanos. Era
considerado bom cidadão pelos senadores aquele que defendia o presente segundo seu
poderio econômico e a capacidade de prejudicar183
. Agostinho indaga diante desse quadro:
“Por conseguinte, se esses historiadores opinavam que era dever da liberdade justa
não silenciar os males da própria cidade (...) que obrigação pesa sobre nós, que,
quanto melhor e mais certa nossa esperança em Deus, tanto maior deve ser nossa
liberdade, ao vermos imputarem ao Cristo os males presentes, com o propósito de
desviarem da única cidade em que se serve alegre e felizmente as inteligências mais
fracas e crédulas?184
A inversão dos valores é um perigo do juízo sobre as imagens. Santo Agostinho prega
que concedamos aos valores inferiores “o quanto a sua forma de ser o merece – o da última
ordem”185
. Significa que não devemos antepor os bens terrestres aos bens celestes. Lembra-
nos que a ordem da criação é para todos e mesmo “a sorte do injusto está ordenada com
justiça”186
. É importante observar que colocar na frente dos bens superiores os bens inferiores
significa priorizar o presente e menosprezar a o tempo futuro que leva, segundo a ordem,
todas as coisas para Deus, uma vez que é o princípio e o fim de todas as coisas. A inversão
dos valores significa a inversão da ordem estabelecida na criação, a qual sujeita à sorte dos
justos e injustos à ordem da justiça.
Apesar disso, o Estado pode ser constituído e formado em bases jurídicas sólidas e não
acolher as virtudes ao mesmo tempo na medida em que é de natureza diversa da divina. Se o
Estado não se pauta pelas virtudes, os bens inferiores serão postos à frente dos bens
superiores, de modo a ocasionar a deterioração do Estado. Os exemplos mencionados acima,
ocorridos durante a república romana, isentam os cristãos da responsabilidade da queda do
poderia de Roma. Roma caiu ao se degradar moralmente, ao preferir os vícios às virtudes.
A virtude é a prática da justiça. Um Estado sem as virtudes é um Estado sem justiça.
Logo, um Estado sem justiça, é um Estado desordenado. Se o Estado é desordenado, os bens
inferiores são antepostos aos bens superiores. Um Estado assim está sujeito à deterioração até
o nada. O nada é a privação total do bem. Deus é o Sumo Bem, criador de todos os bens
(criação) e do qual a ordem é um bem ou procede do bem. Portanto, um Estado que se priva
183 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 126-127. 184 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 127. 185 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 88. 186 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 88.
54
do bem, é um Estado sem Deus. Como Deus é a subsistência de todas as coisas (criação)187
, o
Estado tende a desaparecer sem Ele. Um Estado sem virtudes é um Estado sem bens e,
consequentemente, um Estado corrupto, muito embora possa obedecer às leis humanas.
Uma das críticas mais contundentes ao Estado corrupto é aquela feita pelo filósofo
cristão na obra “Cidade de Deus”, Livro IV, Capítulo IV, para comparar o Estado legalmente
constituído a um conjunto de salteadores. Eis as palavras do pensador cristão:
Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é,
senão pequeno reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poderio do
príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a presa de acordo com
certas convenções. Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam homens perdidos,
que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos, ocupam cidades,
subjugam povos, toma o nome mais autêntico de reino. Esse nome dá-lhe
abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada. Em tom de
brincadeira, porém a sério, certo pirata respondeu a Alexandre Magno, que lhe
perguntou o que lhe parecia o sobressalto em que mantinha o mar. Com arrogante
liberdade, respondeu-lhe: “O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra
toda, com a diferença apenas de que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte,
me chamam ladrão e a ti, que o fazes com enorme esquadra, imperador”.188
De fato, a justiça é necessária para estabelecer a ordem quando a desordem é
verificada. Se as pessoas se portam pelos vícios, a justiça é útil para colocá-las no caminho
das virtudes. As virtudes estão ligadas à ideia de ordem que, por sua vez, remete à criação e,
consequentemente, à verdade. A força exercida pelo Estado não é um problema para
Agostinho, desde que utilizada para assegurar a retidão de conduta dos cidadãos.
1.2.3.1.1 A Carta 134 de Agostinho a Apringius189
Nesta carta, Agostinho busca a responsabilidade de quem exerce o poder ao aplicar a
força como punição para manter a segurança somente quando necessária190
. A violência é
uma questão política com a qual o pensador se preocupou na prática como capaz de abalar a
paz da comunidade, ao recomendar moderação da pena a alguns donatistas acusados de matar
um clérigo.
187 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 207. 188 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 153. 189 Apingius foi procônsul da África em 411 d.C e um cristão. Ele governou a província da África Proconsular
com a capital em Cartago, mais tarde se tornou vigário da África e prefieto pretoriano. Agostinho escreveu a ele
pedindo moderação na punição dos donatistas condenados por matar um clérigo. Ele era irmão de Marcelino.
Ambos foram executados em 413 d. C acusados de conspiração contra o imperador Honório. Cf. ATKINS, E.M.,
DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 228. 190 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 65.
55
Para que a moral católica que usa da mansidão para não retribuir o mal com o mal,
Agostinho busca a legitimidade da força em época de guerra para se defender e na justiça
punitiva institucional. Isso porque, costumes e regras locais das províncias eram feitos e
aplicados para punir desmedidamente por meio de um julgamento presidido pelo governador
pretoriano. Assim, governadores, juízes, bispos e soldados estão legitimados a se valer da
força no exercício das funções públicas para assegurar a paz e conter a violência de modo que
respondam a Deus pela usurpação do poder. Deus dá esse poder de julgamento aos homens,
os quais devem responder por seus próprios julgamentos perante Deus (primeiro parágrafo da
Carta 134).
Agostinho considera o lado humano da punição que serve para corrigir, e, não, como
instrumento de vingança. Desse modo, aconselha Apringius a não infligir com igual
tratamento aqueles que mataram o clérigo católico em sinal de retribuição ao mal cometido,
como, por exemplo, impondo males físicos de cortar os dedos ou arrancar os olhos. Agostinho
apela à razão de que os sofrimentos cristãos não sejam manchados com o sangue dos seus
inimigos191
.
Por fim, pede e aconselha Apringius a proferir uma sentença moderada de acordo
com a bondade cristã de não retribuir o mal com o mal192
.
1.2.3.1.2 Carta 153 de Agostinho a Macedonius193
Na Carta 153 Agostinho responde a Macedônio a seguinte dúvida: é dever de um
padre interceder por uma pena menor ou mais benevolente em favor de um criminoso que
pratica e poderá continuar a praticar crimes de forma persistente? Esse dever deriva da
religião?
O filósofo cristão começa a responder que se deve ter compaixão da pessoa do
criminoso e odiar o crime praticado (“nós devemos ter compaixão da pessoa, mas odiar as
ofensas ou transgressões”194
) de maneira que possa ser considerado um ser humano ligado aos
191 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 64. 192 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 66. 193 Macedônio vigário da África (413-14), encarregado da administração da diocese civil da África. Como
católico cristão, era um devoto de Agostinho como um filho espiritual. Agostinho o enviou o primeiro dos três
livros da Cidade de Deus. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:
Cambridge University Press, 2011, p. 240. 194 No original: “we pity the person, but hate the offence or transgression”. ATKINS, E.M., DODARO, R.J.
Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 72.
56
outros pela natureza da raça humana. Por esse motivo, é dever de um religioso interceder em
favor de um criminoso, uma vez que Deus fez nascer o sol sobre bons e maus igualmente. A
impiedade (maldade) é o verdadeiro inimigo a ser combatido, assim como atos desumanos de
força estatal.
A solução proposta é intervir por um julgamento mais brando195
, isto é, a força deve
ser controlada. Agostinho diz que não vai começar um estudo a respeito dos deveres legais
dos acusadores, defensores, intercessores e julgadores, os quais são diferentes, muito embora
considere que não devam ser inspirados pela raiva pessoal, antes devem considerar que são
executores da lei, nomeados para investigar e punir as injustiças cometidas contra os outros196
.
Em outras palavras, a lei e a impessoalidade devem ser a marca de um julgamento justo. Com
efeito, a punição é reconhecida com propósitos legítimos para deter futuros transgressores e
mover a pessoa do condenado para o arrependimento.
De igual modo, a moral religiosa impõe o dever de fazer com que o criminoso
devolva o bem subtraído caso tenha condições de fazê-lo, sob pena de ser acusado,
repreendido e amaldiçoado. O objetivo de Agostinho é que a propriedade subtraída
injustamente retorne ao proprietário ou seja devolvida outra propriedade se não mais tiver a
subtraída, a fim de que a injustiça seja perdoada. Esse é um dever religioso, mesmo que
“existe tolerância para a injustiça daqueles em iníquas posses, e certas leis estabelecidas entre
eles, conhecidas como leis civis”197
.
Por isso, a intervenção para o uso moderado da força institucional em favor do
criminoso é uma obrigação advinda da razão que exige o reconhecimento de que todos são de
igual modo seres humanos e, consequentemente, nenhuma pena deve ser desumana.
1.2.3.1.3 A conduta ordenada é razoável
Já explicamos acima as vias de acesso para a verdade: contemplação e conduta,
necessárias para buscarmos a ordem. Agora Santo Agostinho nos apresenta a diferença entre o
195 ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 74. 196 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 75. 197 No original: “there is toleration for the injustice of those in wrongful possession, and certain laws have been
established among them, known as ‘civil laws’”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political
writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 87.
57
que é racional e o que é razoável198
para nos dizer que este está ligado àquele, ou seja, a nossa
vida prática deve refletir nossa racionalidade para afastar a ideia de verossímil da vida prática
das pessoas. A verossimilhança ou o provável é o que pode mover o homem sem a verdade199
.
O problema para o bispo de Hipona não está, por assim dizer, no verossímil ou provável em
si, mas na conduta humana de ignorar ou obstaculizar a verdade. Assim como homem não
pode obstaculizar a busca da verdade, o Estado não o pode também.
Isso significa que as pessoas devem praticar a verdade, uma vez que em nossa razão
existe a centelha da inteligência divina. O racional está ligado à noção de razão. O homem
usa da razão e, assim, é racional. Razoável é “aquilo que se faz ou se diz conforme à
razão”200
. Significa também que o homem pela razão e pela conduta de vida pode procurar a
verdade (“deificar-se”) já neste mundo presente. O bispo de Hipona reconhece a realidade
presente com todas as vicissitudes (visão realista do mundo) e, ao mesmo tempo, expõe uma
perspectiva divina da via humana (visão divina).
1.2.4 A ordem como elemento constitutivo da unidade no Estado
No plano estatal, razoável (racional) é a concórdia que não pode subsistir sem a
justiça. A virtude é a prática da justiça, dom de Deus para estabelecer a concórdia (o estreito
vínculo entre os cidadãos e oferecer consistência para a República201
). A concórdia verdadeira
é aquela que reflete a ordem natural; daí a expressão “bem ordenada”. A ordem natural é
vontade de Deus e esta é a lei. A lei está inscrita na consciência do homem, por isso se diz
natural ao homem. A consciência do homem é a razão. Assim, o homem usa da razão para
descobrir e compreender esta lei inscrita. Aquilo que se faz ou se diz conforme a lei é dito
razoável. Razoável é a concórdia e a ordem é a lei. O Estado é a concórdia bem ordenada.
Esses dois elementos constitutivos do Estado – concórdia e ordem – caracterizam a
unidade do pensamento agostiniano no plano público, na medida em que dá consistência
(integridade) àquele. A unidade é o princípio de todas as coisas (números, pessoas, animais,
198 Curioso observar que este diálogo acontece entre Agostinho e Alípio na obra “A ordem”. Alípio que estudou
direito em Roma que se tornaria bispo de Tagaste mais tarde (ano 394-395). Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra
os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre.Tradução de Agustinho Belmonte. São Paulo:
Paulus, 2008, p. 34. 199 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 94-95. 200 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 230. 201 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 90.
58
amizade) e reflete a beleza da criação. O bispo de Hipona identifica a razão com a força de
separar as coisas que devem ser apreendidas e estabelecer conexão entre elas. Só se pode
separar o que se pensa ser uno, assim como se une para se estabelecer uma unidade. Seja ao
separar, seja ao unir, busca-se a unidade perfeita202
. Por isso, a razão é apta a buscar a
unidade. Santo Agostinho questiona: “Um conjunto de habitantes constitui uma unidade para
a qual a dissensão é perigosa: pois o que significa dissentir senão não sentir em unidade?”203
O Estado é belo se reflete a unidade e enquanto se mantém a ordem natural das coisas de
modo a “passar do inferior ao superior”204
. Devemos usar da razão para alcançarmos os bens
superiores.
Poderíamos imaginar que a disciplina do conhecimento em busca da unidade, da
ordem e da lei é exclusivamente teológica ao depender da fé. Agostinho, ao contrário, não
considera a fé como inimiga da razão, a torná-las uma só unidade para o afastamento dos
vícios e o encontro da Verdade. Diz que “a alma se eleva gradativamente à perfeição de
costumes e de vida não apenas só pela fé, mas também com certa razão”205
. A unidade do ser
– alma e corpo – se condensa na unidade da fé e da razão.
1.2.4.1 A lei eterna e a justiça
Dessa forma a prática dos bons costumes no Estado é necessária para a unidade
perfeita. Isso nos torna bons e felizes. Então, poderíamos perguntar: qual é esta lei inscrita no
coração do homem que precisa ser conhecida, compreendida, guardada, praticada; que guarda
a ordem perfeita; que nos afasta dos vícios e nos faz praticas as virtudes; une razão e fé, a
Cidade Celeste e a Cidade terrena; que une Deus e o homem; que une as naturezas divina e
humana; que curva às exigências dela as leis humanas; que é justa em qualquer tempo e lugar;
que deve ser obedecida para conservar a unidade do Estado, bem como conserva a unidade
(integridade) do ser humano e de todas as coisas?
Santo Agostinho responde na obra “Confissões”:
Em que tempo ou lugar será injusto que “amemos a Deus com todo o nosso coração,
com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e que amemos o próximo como a
202 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 246. 203 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 247. 204 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 249. 205
AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 249.
59
nós mesmos? Por isso as devassidões contrárias à natureza, sempre e em toda parte
se devem detestar e punir (...) Ainda que todos os povos os cometessem, cairiam na
mesma culpabilidade de pecado, segundo a lei de Deus que não fez os homens para
assim usarem dele.
Efetivamente, viola-se a própria união que deve existir entre Deus e nós, quando a
natureza, de quem Ele é autor, se mancha pelas paixões depravadas. Porém as
torpezas luxuriosas, contrárias aos costumes humanos, devem-se repelir, em razão
da diversidade de costumes, a fim de que, por nenhuma desvergonha de cidadão ou
de estrangeiro, se quebre o pacto estabelecido pelo costume ou lei de uma cidade ou
nação.
É, pois, indecorosa qualquer parte que não condiz com o seu todo. Contudo, quando
Deus ordena alguma coisa contra os costumes ou contra quaisquer convenções,
ainda mesmo que esse preceito jamais aí seja observado, deve restaurar-se. Se é
lícito ao rei da cidade a que preside dar uma ordem que antes dele jamais alguém,
nem sequer ele mesmo, prescreveu, e se obedecer-lhe não vai contra os princípios
sociais da cidade, ante é contrário a eles o desobedecer-lhe – pois a obediência aos
reis é um pacto geral da sociedade humana – com quanto maior razão se deve
obedecer, sem hesitações, às ordens de Deus, Rei efetivo de toda a criação?206
A lei suprema para Agostinho é a lei do amor, a Deus e ao próximo. Lei universal
inscrita no ser humano e, assim natural. Esta lei é válida para todos em qualquer época ou
lugar ao ser natural ao homem. Ela existe para que o homem se uma a Deus, a Cidade terrena
se torne a Cidade Celeste, os vícios sejam punidos e a ordem restaurada, a vontade de Deus
seja superior à vontade humana e esta corresponda àquela. A lei é a vontade de Deus. A
vontade de Deus é o amor. Por amor fomos criados; por amor se mantém a ordem; por amor
devemos obediência a Deus; por amor se conservam todas as coisas, inclusive, o direito.
Santo Agostinho não separa o amor da justiça. Pode haver justiça e pode haver amor.
O amor não exclui a justiça e a justiça não exclui o amor. No Estado, sem justiça não se
punem os vícios para estabelecer a ordem perdida; sem o amor não existe lei universal para
obedecermos nem bens superiores a procurar. Sem justiça a impunidade prolifera e sem o
amor (verdade) os interesses (verossímil) prevalecem. A ordem não necessita do mal para
existir em razão de tudo o que procede de Deus é bom, mas sendo praticado desordena o
homem e a sociedade e, por isso, deve ser punido pela via da justiça. O amor e a justiça dão
unidade ao Estado.
1.3 Livre-arbítrio207
206 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 51. 207 O Papa Leão XIII discorrendo sobre a liberdade e o liberalismo afirma que a liberdade, própria e exclusiva
dos seres rcionais, confere dignidade ao ser humano, podendo, daí, surgir boas ou más ações, mas, certamente,
citando Santo Agostinho, tudo o que há de justo e legítimo na lei temporal foi tirado pelos homens da lei eterna.
BRASIL. Leão XIII. In: Carta Encíclica: Libertas Praestantissimum, 20 de junho de 1888. Disponível em
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_20061888_libertas_sp.html
Acesso em 23 de mai.. 2012.
60
Vimos no subtítulo anterior que a ordem foi criada por Deus para que todos amem a
Deus e em Deus ao próximo. Deus é o fundamento da Verdade que garante a ordem. A ordem
é a vontade de Deus. A vontade é a lei e esta o amor. Os vícios e a injustiça estão submetidos
a essa mesma ordem. As condutas corruptas devem ser punidas pela justiça. A unidade entre o
amor e a justiça oferece consistência para o Estado.
O Estado que se conduz pelas impunidades e pelos vícios é corrupto. As vaidades
(vains) da conduta humana corrompem o homem de modo a lançá-lo no vazio (in vain) em
razão de antepor os bens mutáveis aos imutáveis, preferir as coisas passageiras às eternas, os
vícios às virtudes, os interesses à verdade; por fim, o homem a Deus. Faz do Estado um
conjunto de salteadores aptos a se assenhorearem dos bens do povo (res publica) de maneira a
distribuir bens pela conveniência, manter a paz e a segurança para assegurar os prazeres e
ceder diante dos interesses dos poderosos e influentes.
Desse modo, a ordem que procede do Sumo Bem e é um bem também faz com que o
mal seja submetido a si para que todas os bens sejam resgatados ao amor por justiça. A
prática das virtudes é a constância da ordem e a consistência do Estado. O Estado deve ser
ético e ser conduzido por homens justos e honestos. Podemos dizer que o mal não é
necessário para a ordem, pois não é necessário o mal para haver a ordem. A ordem antecede
ao mal. Mas, uma vez constatado o mal, este se submete à ordem por meio da justiça. No
Estado, a escolha errada de bens por dirigentes imbuídos de vaidades e vícios inverte a ordem
de valores ao antepor os interesses próprios ao bem comum. O mau uso do Estado - um bem
em si mesmo – deve ter a devida correção pela via da verdadeira justiça.
A questão do mal, um problema que angustiou Santo Agostinho, está intimamente
ligado com a ideia de livre-arbítrio do homem. Esta terceira categoria da filosofia agostiniana
repercutirá na problemática do mal ontológico-metafísico e também nos males moral e físico
que assolam a humanidade e, por via de consequência, o Estado. O homem é livre. O arbítrio
se torna livre se encontra a Verdade, referência dos vícios e das virtudes. Veremos no
subtítulo posterior a função da graça para libertar o homem. Por ora, centraremos nossa
análise neste terceiro fundamento da filosofia agostiniana.
Para o doutor de Hipona, o mal é resultado da má conduta humana. O homem pratica
de modo voluntário determinada ação. Se esta for má, será punida pela justiça. Deus não
pratica o mal porque a ninguém se pune injustamente. A inteligência humana é um bem em si
mesmo e capaz (idoneus) de aprender o que é bom. Podemos procurar o autor de nossas boas
61
ações de modo a usarmos nossa inteligência – boa – para aprender e, assim, procedermos
bem208
. Nosso juízo é livre na medida em que pode escolher determinado bem.
Deus é o criador de todas as coisas e tirou tudo do nada. Do nada criou todos os bens.
Se os pecados são atribuídos aos seres criados por Deus, como não atribuir a Deus os
pecados?209
Agostinho diz que a ordem atuou de tal maneira que o libertou dessa questão ao
procurar a verdade210
. A verdade liberta o homem por meio da ordem criada. Só podemos crer
se entendermos e entender se crermos211
. Aqui está o axioma da doutrina agostiniana: crer
para entender e entender para crer.
O ser humano deve entender as razões de sua fé, isto é, dar razões suficientes para que
se conduza de determinada forma exigida pela fé. Se a boa conduta tem sua razão de ser – não
somente lastreada na fé -, torna-se um bem passível de ser entendido e praticado no Estado,
pois racional (fundado na razão). Essa aptidão moral de praticar as virtudes é verificável em
todo ser humano. A prática da virtude pela fé não é sem razão. O fundamentalismo religioso
no Estado é afastado de modo que a fé não é empecilho para refletirmos sobre as razões da
mesma fé. A fé e a razão devem refletir a unidade da criação no homem.
O mal não é a violação da lei, já que acreditar na lei é um ato de fé também.
Precisamos perquirir as razões pelas quais a lei posta está ou não conforme a razão. Assim
como a fé precisa de suas razões, a lei precisa de suas razões para ser justificada. As paixões,
atos de amor desordenados, são a razão para o mal. As más condutas vêm das paixões
humanas.
A maldade é uma “perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó
Deus – e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se levanta
com intumescência”212
. O pensador cristão vê a maldade na vontade humana. Para ele a lei do
pecado “é a violência do hábito”213
que se transforma em necessidade se o homem não resiste.
A lei é útil para garantir as virtudes e extirpar os vícios.
208 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 25-28. 209 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 28. 210 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 28. 211 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 30. 212 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 104. 213 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 114.
62
1.3.1 A lei divina e a lei civil autônomas por natureza e dirigidas para o bem
comum na esfera estatal
Agostinho separa entre as leis humanas e as divinas. As leis civis são temporais e
relativas ao se referirem a bens mutáveis. A lei divina é atemporal e absoluta ao se referir à
verdade e ao amor. As leis humanas podem deixar impunes – e o faz frequentemente –
determinadas más ações que só “serão punidas pela Providência divina, com razão”214
. Essas
más ações são as paixões que devem ceder diante a prática da moralidade. A lei civil pune os
crimes, por exemplo, homicídio, para manter a paz e segurança, mas deixa impune quem age
em legítima defesa. Mesmo que a lei civil não puna determinada conduta considerada imoral,
ela estará sujeita de qualquer forma à lei divina.
De qualquer sorte, a lei civil é considerada de modo salutar por Agostinho ao punir
más condutas. Isso significa que a força e o poder são atributos positivos caso reprimam más
condutas. As leis civis são necessárias ao terem em vista a virtude da comunidade, seja
punindo ou premiando as condutas, seja complementando a lei natural ou criando obrigações
e direitos que venham em auxílio do cumprimento do fundamento ético. Se a lei civil não
pune todas as paixões, nem por isso será motivo de reprovação215
. De outro modo, não
considera lei aquelas leis civis injustas (“Porque a mim me parece que uma lei que não seja
justa não é lei”216
).
O raciocínio do doutor da Igreja pode ser disposto da seguinte forma: a) a lei civil e a
lei divina são distintas, b) a lei civil pune más condutas, c) se a lei civil não pune
determinadas paixões, nem por isso deve ser motivo de reprovação, d) a lei divina se
encarregará de punir as más paixões não punidas pela lei civil, com razão e e) a lei civil que
não for justa, não é considerada lei e, assim não é obrigatória.
Em outras palavras, a justiça é a base da lei civil. Essa é verdadeira se estiver
conforme a justiça. A lei civil não pode afrontar a lei divina. A lei civil não será legítima, só
por só, por ser editada em um sistema de governo específico, por exemplo, o democrático.
Parece-nos que a visão agostiniana é ditar um padrão para as leis serem consideradas boas: a)
214 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed.. São Paulo: Paulus,
2008, p. 39. 215 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 39. 216 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 36.
63
serem constituídas válida e juridicamente pelo Estado, vez que este é um bem (a ausência é
considerado um mal) e b) serem materialmente justas. Para o doutor hiponense, a lei civil
está sujeita à mutabilidade e sujeita ao tempo em razão de ser editada por homens
pertencentes à determinada cidade. A lei civil é útil na medida em que proteja o bem comum.
O bem comum, por sua vez, é decorrência das virtudes que perfazem os “costumes moderados
e dignos”217
dos cidadãos de modo as leis civis permitam os governantes a administrar a coisa
pública218
.
O bem comum ocorre quando cada cidadão o preferir ao seu próprio interesse. Essa
noção de consenso é chamada de concórdia na visão agostiniana. Veremos em outro capítulo
que não se trata de qualquer concórdia, mas lastreada na verdadeira amizade entre os
cidadãos, e não em disputas sujeitas ao primado dos próprios interesses.
Isso quer dizer que o bem comum não é um jogo entre maioria e minoria, de seguir
determinado procedimento, bem como em aprovar no parlamento ou no judiciário
determinada medida. A questão não é de legitimidade a partir das instituições humanas, mas
de legitimidade conforme a justiça. A legitimidade de um governo humano está intimamente
ligada à noção de verdade. A verdade implica a ordem, a lei e a virtude.
1.3.1.1 A lei civil (temporal) e a justiça (atemporal)
Não existe justiça em qualquer governo se o próprio povo, corrompido pelos
costumes, nomeia para a administração dos negócios públicos homens criminosos. O
pensamento de Santo Agostinho procura cortar os vícios que originam a corrupção no Estado
onde quer que esteja a ponto de cogitar em tirar o poder do povo para colocá-lo na atribuição
de um ou poucos homens honestos. Poderíamos, por exemplo, migrar de uma democracia na
sua forma deformada pela corrupção para uma monarquia pautada nas virtudes de modo a
preservar a justiça. Nos dizeres do doutor cristão:
Contudo, no caso de esse mesmo povo ir caindo aos poucos, depravando-se, e caso
ponha o seu interesse particular acima do interesse público, e vier a vender o seu
sufrágio livre, por dinheiro? Além do mais, corrompido por aqueles que ambicionam
as honras, confiar o governo a homens malvados e criminosos, não seria justo – caso
ainda se encontrasse um só homem de bem, revestido de influência excepcional –
que esse homem tirasse do povo a faculdade de poder distribuir as honras, para
217 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 40. 218 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 40.
64
depositar a decisão nas mãos de alguns poucos cidadãos honestos ou mesmo de um
só que fosse?219
O exemplo acima em forma de questionamento é útil não pelo caso cogitado da
compra de votos e de antepor os bens inferiores (interesses particulares) aos bens superiores
(bem comum), mas sim para afirmar que a lei civil está sujeita ao tempo, a poder variar sem
perder como base de sustentação a justiça.
A lei civil é justa se for editada por cidadãos de costumes moderados e dignos capazes
de nomear administradores públicos que visem ao bem comum, assim como se for editada
para tirar o poder do povo corrompido pelas ambições desmedidas de modo a atribuí-lo a
poucos ou até mesmo a um só homem honesto. Em um ou outro caso a lei civil está conforme
a justiça e pode ter a alcunha de lei, pois conserva (ordem) o bem supremo do Estado (bem
comum). Do contrário, não poderá ser chamada de lei. A lei civil deve manter a unidade entre
os homens de uma cidade.
A mutabilidade da lei civil é considerada um bem conforme o tempo e as
circunstâncias caso seja necessária sua modificação para que as virtudes possam imperar na
sociedade. Agostinho diz que devemos ser submissos à vontade de Deus. Vemos, assim, que a
lei civil se dirige a determinadas situações temporais e aos homens de modo a ser modificada
não conforme as conveniências ou interesses puramente pessoais, mas em razão da justiça. O
parâmetro é a justiça.
A lei civil deve atender as exigências da lei eterna - chamada “Razão suprema de
tudo”220
– passando pela lei natural, fundamento das virtudes e da qual procede a vida beata
(feliz) para os bons. Essa lei eterna é inscrita na razão humana e “da qual é justo que todas as
coisas estejam perfeitamente ordenadas”221
. É interessante observar que a lei eterna é ligada
ao conceito de ordem. A ordem perfeita confere validade universal e imutável à lei eterna. A
justiça está, pois, na ordem da criação. Por isso, a lei eterna é superior à lei civil que, por sua
vez, é mutável e sujeita a conveniências.
A lei eterna está presente na razão humana, assim como as paixões se servem do
corpo. As paixões dominam a vontade humana pela força do hábito e, se não sofrem
resistência, tornam-se uma necessidade. A pura necessidade retira a razão humana, atributo
que diferencia o homem dos animais. O ser humano perde sua integralidade.
219 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 40. 220 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 41. 221 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 41.
65
A alma humana conhece justiça mesmo sem exercê-la ou aprender. O homem ao se
voltar para si é capaz de aprender o que é justo. A justiça na visão agostiniana é uma noção
(modelo) transcendente e, por isso, é relacionada não só com a ideia de distribuir o que
compete a cada um, mas também com a de inserir o elemento de amor mútuo (amor doação:
em relação ao outro). Assim se diz que a alma justa é
aquela que, segundo os ditames da ciência e da razão, dá a cada um o que a cada um
pertence, na vida e nos costumes, mas também esforça-se por viver eles mesmos
conforme a justiça, distribuindo a cada um o seu, não devendo nada a ninguém, a
não ser o amor mútuo.222
Uma justiça que não se fundamenta em distribuir a cada um o que é seu e na doação
por meio do amor não pode ser considerada justa. O homem é tanto mais livre quanto mais se
aproxima dessa forma (modelo) de justiça. O arbítrio (decisão) da pessoa humana é injusto em
escolher determinados bens em detrimento de outros para alimentar o prazer pessoal (amor
egoístico) de maneira a originar um mau hábito (vício) até a degradação da necessidade
(paixão desordenada) não necessária à ordem.
É necessário ascendermos à lei imutável que está acima de nossa razão. O ser humano
não é capaz de, per si, conquistar a verdade. Essa é alcançada com a ascendência da alma. Do
mundo sensível vamos ao mundo inteligível e deste a uma Verdade imutável. Para Santo
Agostinho, o espírito (intelecção) está sujeito ao erro e para fundamentar uma justiça
transcendente diz que “existe acima de nossa mente uma lei imutável chamada Verdade”223
. O
homem pode conhecê-la, mas não julgá-la, pois o ato de julgar a modificaria, o que
significaria dizer que poderia ser de outro modo224
.
Acontece que, a lei eterna é e nada pode lhe ser acrescentado na medida em que
imutável e perfeita. Questionar a existência ou o conteúdo da lei eterna seria questionar a
verdade, a criação e a ordem estabelecida por Deus. A liberdade é um bem como diz o
pensador cristão ao ter origem em Deus, o Sumo Bem. Caso essa liberdade questione sua
origem de bem ao dizer que pode tudo, inclusive, ignorar a verdade que a alicerça, está a se
privar de um bem considerado superior e se tornar escrava do pensamento humano
exclusivamente, a significar que o homem se torna senhor de si próprio (soberba).
1.3.2 O arbítrio só é livre na verdadeira justiça
222 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 276. 223 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 82. 224 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 84.
66
O desvirtuamento da noção de liberdade pode ocasionar a privação de bem, ou seja o
mal. Esse mal deve ser evitado pelos homens e pelo Estado. Pelos homens para que não haja a
limitação do homem ao próprio homem, a excluir a ascendência dos sentidos à inteligência e
desta à lei imutável. Pelo Estado para que a justiça não só distribua a cada um o que é seu
(justo concreto), mas também legitime as leis civis conforme o amor mútuo. Categoricamente
Agostinho resume esse mal da liberdade sem verdade que origina a soberba no homem e a
falta de justiça verdadeira ao Estado nos seguintes termos: “(...) o mal reduz-se na
emancipação em relação à justiça, e na servidão em relação ao pecado”225
.
O homem será livre quando estiver liberto do erro e isso só é possível se nos
socorrermos de uma realidade objetiva transcendente ao homem. Não é possível professarmos
uma liberdade (falsa) que se baseie nas circunstâncias, interesses, conveniências,
verossimilhanças e probabilidades. Não deveríamos utilizar o termo justiça para expressar
uma situação que não se paute pela verdade. A liberdade não sobrevive sem a verdade na
medida em que a verdade nos garante o bem supremo – no Estado, o bem comum por meio da
vida beata (feliz) – enquanto a concupiscência do corpo nos priva dos bens superiores até o
nada.
O doutor de Hipona diz claramente que a perfeita justiça é aquela que “nos leva a amar
mais o que mais vale e amar menos o que vale menos”226
. A liberdade humana implica, então,
no autodomínio. O autodomínio significa a capacidade de resistir às paixões para buscarmos a
totalidade do bem, isto é, a Verdade. Se não somos aptos a resistir às paixões – causa da
deformidade da ordem -, não somos livres. A vontade desordenada (paixão) causa a
deformidade da beleza da criação e, no homem, molestação227
do próprio corpo.
As paixões nos privam do amor. As paixões são vontades egoísticas (de si para si)
enquanto o amor é doação (de si para outro). Assim se confirma que “não há nenhuma outra
realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre-
arbítrio”228
.O domínio das paixões é necessário para que o homem saiba amar ao outro de
modo a consubstanciar a concórdia no Estado, amizade perfeita, entre os homens, a qual tem
por resultado a paz. A justiça nos moldes agostinianos só é justiça se se cumpre o elemento do
225 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 103. 226 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 119. 227 Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 112. 228 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 52.
67
amor mútuo. Dar a cada um o que é seu não é suficiente. Só há justiça no Estado se há
liberdade na Verdade que, por sua vez, é a lei imutável consistente no amor (justiça perfeita).
Com esses atributos da justiça teremos a ordem justa. O homem é apto a buscar e conseguir
essa justa ordem pessoal e socialmente ao ter o autodomínio sobre as paixões com a força do
espírito (mente)229
.
O filósofo afirma que existe uma ordem dos seres e o faz para distinguir as plantas, os
animais e o homem e, com isso, dizer que o mal procede da má escolha da liberdade humana.
As plantas, os animais e os homens têm vida. Os animais e os homens têm em comum a
capacidade de ver e sentir os objetos corporais. O que diferencia os homens dos animais é a
razão, bem como algumas tendências de vontade, como, por exemplo, o riso, o amor aos
elogios e à glória. O homem é livre se a razão submete as paixões.
Dessa forma expressa Agostinho:
Então, quando a razão, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais da
alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve
dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna.230
A liberdade humana deve escolher entre os vícios ou as virtudes. Se por um lado o mal
surge da má vontade que ocasiona as paixões desordenadas até o nada pela via do hábito e da
necessidade, por outro temos a opção de “viver com retidão e honestidade, para atingirmos o
cume da sabedoria”231
. Podemos dizer que aquele que se deixa governar pelas virtudes é um
homem de boa vontade.
A boa vontade é uma característica da ordem no próprio homem. O homem foi criado
para ser livre de modo a buscar o encontro com Deus. A alma deseja buscar seu repouso na
sabedoria. A razão humana deseja assim conhecer a lei eterna. A vontade humana reconhece
que precisa de um bem que não pode alcançar em si e por si mesma. Ela é necessária para
mover o homem para o bem na medida em que o homem tem o livre-arbítrio, mas é limitada
para encontrar o bem supremo. A ideia de que o homem pode alcançar o bem por si e em si
próprio é considerada uma falsa liberdade e, pois, uma má vontade.
1.3.2.1 A liberdade e as virtudes
229 A alma é a parte do homem que pensa (razão). A parte superior da alma é o espírito ou a mente, sede de
sabedoria. A inteligência (intelecto) é a razão superior do homem capaz de intuir e compreender as razões
eternas. 230 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 47. 231 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 56.
68
Dessa maneira, o homem é livre para usar das virtudes para fruir de Deus. Se as
pratica, verifica-se a boa vontade e o bem viver. A doutrina cristã ensina os homens a
seguirem as virtudes a serem seguidas pelos homens de boa vontade e as divide em teologais
e cardeais. As primeiras são a fé, a esperança e a caridade232
. Com a fé se crê no que não se vê
(Deus), com a esperança se tem certeza dos bens superiores (eternos) e com a caridade se ama
a Deus e em Deus ao próximo. A fé serve para crermos em Deus criador, ordenador e sumo
bem, a esperança para confiarmos nos bens superiores e a caridade para amar a Deus e ao
próximo. Nas palavras de Santo Agostinho:
A honestidade e os costumes têm por fim o amor de Deus próximo; a verdade da fé
visa ao conhecimento de Deus e do próximo. Quanto à esperança, cada um a tem
diversamente, em sua própria consciência, conforme sente que avança em direção ao
amor e ao conhecimento de Deus e do próximo.233
A par dessas virtudes, existem as chamadas cardeais: prudência, fortaleza, temperança
e justiça. A prudência é “o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das
que devem ser evitadas”234
. A fortaleza é “a disposição da alma pela qual nós desprezamos
todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder”235
. A temperança é “a
disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma
vergonha o ser desejadas”236
. A justiça é “a virtude pela qual damos a cada um o que é
seu”237
.
Essas virtudes cardeais constituem a síntese das virtudes morais na visão agostiniana.
A importância delas está em afetar diretamente os costumes das diferentes culturas. A própria
religião cristã constitui uma cultura viva. As virtudes são uma escolha dos homens por
estarem ligadas à Verdade. Assim como a verdade, as virtudes não se impõem. Isso não quer
dizer que o Estado não possa punir condutas criminosas para estabelecer a ordem novamente.
Como já visto e da mesma forma, nem toda conduta baseada em atos imorais (vícios) é
punida, mas nem por isso a lei civil perde sua força e importância ao punir outros atos
igualmente delituosos. O Estado não pode obrigar as pessoas a aceitarem as virtudes, mas
232
Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 80. 233
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002,
p. 165. 234 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 57. 235 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58. 236 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58. 237 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58.
69
pode punir os atos delituosos para manter a paz. No mesmo sentido, o Estado não pode
obstaculizar a prática das virtudes nem obstaculizar a busca da verdade.
1.3.3 A justiça objetiva (divina) não prejudica o Estado e leva o homem a
uma vida feliz
Poder-se-ia pensar que o Estado seria teocrático ao se pautar na forma acima na
medida em que não pode privilegiar uma visão única de mundo a partir da fé cristã. Acontece
que, aceitar a verdade e as virtudes baseadas nesta não significa impor posições cristãs aos
cidadãos não crentes, agnósticos ou de outra profissão religiosa pelo braço secular do Estado.
Significa apenas reconhecer os valores cristãos como parte da cultura, os quais estão
lastreados na razão. Igualmente se poderia se pensar que o Estado, ao tomar outra visão de
mundo, estaria igualmente impondo aos cristãos uma visão única de mundo, a qual poderia
ser até mesmo ateia.
Agostinho combate essa visão ao afirmar ser um erro pensar que não exista uma
justiça subsistente. Para ele, retirar a justiça (objetiva) da base das leis civis, a qual transcende
aos povos e às culturas - seria tirar a verdade e o amor do Estado. Para conseguir que a justiça
seja objetiva e as virtudes sejam válidas para todos e em todos os tempos, o doutor da Igreja
busca apoio na lei do amor e afirma ser essa a força da religião (religio vera) que em nada
prejudica o Estado em diferentes lugares e tempo. Ao contrário, chega a fazer apologia para
que o convício dos homens neste mundo “seja regrado por homens de alta virtude em vista da
utilidade e do proveito do povo”238
.
Diz que essa visão da validade dos atos das diferentes culturas conforme os costumes
advém da relatividade do julgamento humano, o qual “o espírito já possui preconceitos e
opiniões errôneas”239
de modo que “qualquer outra opinião afirmada pela Escritura é
considerada pelos homens como expressão figurada”240
. Afirma que o ensino das categorias
cristãs só pretende “fortalecer a caridade e extinguir a cupidez”241
.
238 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 170. 239 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 165. 240 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 165. 241 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 165.
70
O critério de julgamento das coisas pela caridade é universal242
. Para o pensador
cristão, a única forma de combater os males que afligem o homem e o Estado é a lei eterna
(do amor). A concupiscência gera a ignomínia e o delito e a caridade gera a utilidade e a
benevolência. A ignomínia causa dano à pessoa e o delito ao próximo. A utilidade causa
benefício próprio e a benevolência benefício de outrem. Assim define os conceitos:
Chamo caridade ao movimento da alma cujo fim é a fruição de Deus por ele próprio,
e a fruição de si próprio e do próximo por amor de Deus. Chamo, ao contrário,
concupiscência ao movimento da alma cujo fim é fruir de si próprio, do próximo e
de qualquer objeto sensível, sem referência a Deus. O que a concupiscência
desordenada executa para corromper a alma e o corpo chama-se ignomínia. E o que
executa para causar dano ao próximo chama-se delito. E aí estão as duas fontes de
todos os pecados. Mas a ignomínia é anterior aos delitos, na ordem do tempo. É
quando a ignomínia ou vícios debilitam a alma e a reduzem a certo grau de
indigência que a alma comete delitos. E comete-os para eliminar os impedimentos
que se opõem aos próprios vícios ou para conseguir comparsas em suas satisfações.
De modo semelhante, o que a caridade executa em benefício próprio chama-se
utilidade. O que se faz pelo bem do próximo chama-se benevolência. Aqui precede a
utilidade, porque ninguém pode beneficiar outrem se não possuir algum bem.
Quanto mais for destruído o reino da concupiscência, tanto mais aumentará o da
caridade.243
Santo Agostinho cita ainda uma máxima para reforçar o argumento da verdade da
doutrina cristã da invariabilidade da justiça diante da variedade dos costumes das diferentes
nações conforme as Escrituras: “Não faças a outro o que não queres que te façam (Tb 4, 16;
Mt 6, 12)”244
. Assim todos os males – ignomínias e delitos – desaparecem diante da lei do
amor. Essa máxima se torna a lei natural evidente para todos os povos em todos os tempos e
lugares.
Isso significa que a relatividade não está nos princípios, mas nos juízos humanos
diante da variedade das situações. O princípio se mantém o mesmo ontem, hoje e sempre. O
que muda são as situações e os juízos humanos, os quais devem se submeter à lei eterna em
todos os tempos e lugares. Dizer que em determinada cultura é permitido roubar e se louvado
por essa mesma cultura, não exclui os homens de responderem diante a justiça divina. Esses
atos são dignos de punição também. A justiça de dar a cada um o que é seu existe para
ordenar os bens. O complemento dessa justiça é o amor (doação) para ser perfeita.
A boa vontade consiste na posse de todas as virtudes de modo que o homem possa
viver justa e honestamente. Agostinho chama isso de vida feliz (vida beata). Assim como a lei
242 Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 68-70. 243 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 166. 244 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 171.
71
do amor, o desejo de ser feliz é universal e abrange todos os homens. Alguns homens não
conseguem ser felizes apesar de quererem, pois não querem ter uma vida reta (vida beata).
A vontade humana faz surgir dois tipos de homens: o da boa vontade e o da má
vontade. O primeiro busca os bens eternos e imutáveis, o segundo procura os bens passageiros
como as honras, as riquezas, os prazeres e a beleza do corpo. O primeiro se torna feliz, o
segundo infeliz embora deseje a felicidade. O primeiro está sujeito à lei eterna, sendo que não
têm necessidade da lei temporal (civil); enquanto o segundo está sujeito à lei civil (temporal),
mas não está isento da lei eterna245
. Tudo isso conforme a justa razão e em virtude de o mal
não estar em amar ordenadamente os bens passageiros, mas sim em amá-los
demasiadamente246
. As leis civis (temporais) podem se modificar por ter como destino os
bens terrestres. A variabilidade das leis civis não algo ruim em si mesmo, mas elas devem
variar para manter a justiça como fundamento de validade. Mantida essa, a lei temporal pode
variar.
O mal está justamente em se apegar aos bens inferiores de modo a tornar submisso a
eles. Esse apego advém da vontade humana. Logo, “o mal moral tem sua origem no livre
arbítrio de nossa vontade”247
. A visão agostiniana procura refutar a alegação de que o mal
estaria na matéria ou na alma. Todos os bens criados procedem do Sumo Bem e, por isso,
atribuir à matéria ou à alma o mal seria se referir a Deus como autor do mal em última
instância.
O filósofo cristão mantém a separação entre a lei eterna e a lei temporal, assim como a
separação entre a Cidade Celeste e a Cidade terrena. A separação é quanto à natureza, muito
embora uma esteja imiscuída na outra. Em outras palavras, a separação é de natureza, e a
unidade é questão da ordem criada, que, por sua vez, é um bem também. Apesar da separação,
as realidades de uma e de outra se comunicam. Não por outra razão a lei civil deve ter por
fundamento a justiça, as virtudes ligadas à correta escolha dos bens superiores e inferiores e o
livre-arbítrio ligado à Verdade.
Isso não significa que se estabelece uma cruzada de força para impor a doutrina cristã
na Cidade terrena. Pelo contrário, a Verdade não se impõe, embora o mal (ignomínias e
delitos) esteja submetido à mesma ordem criada. Significa, sim, que a ordem não precisa do
mal e o livre-arbítrio é um bem em si mesmo ao proceder da mesma ordem também. Como
245 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 63-64. 246 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 66-67. 247 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 69.
72
diz Santo Agostinho: “fortalecer a caridade”248
é o que pretende a doutrina cristã. O
reconhecimento do cristianismo pelas instituições humanas é um fator importante para o
crescimento do Estado no caminho do amor por meio das virtudes, inclusive, da justiça.
O pensamento cristão tem duas máximas que estão em consonância com o arbítrio
livre do homem: a sabedoria e o amor. A sabedoria indica o encontro com Deus de forma que
não existe inteligência (conhecimento perfeito) fora da daquela. Isso implica dizer que o
pensamento humano não pode ficar em si mesmo nem se louvar por conseguir fazer o bem
por si mesmo. Afirmar a autossuficiência humana em desprezo a Deus indica a vaidade por
meio da soberba da qual todo o mal se origina. Por sua vez, o amor ultrapassa o amor de si
próprio em direção a Deus e ao outro. Isso não quer dizer que a lei temporal (civil) pode
obrigar alguém a amar ou deixar de amar, buscar a sabedoria ou não, mas pode regular as
condutas para punir as más (vícios) e recompensar as boas (virtudes).
Ignorar ou obstaculizar esses elementos é inverter a ordem da criação de modo a
procurar os bens passageiros somente de maneira que a lei civil encontra a validade nos
interesses e conveniência sem uma base objetiva fundada na justiça, transcendente e adquirida
pela experiência249
ao mesmo tempo. Desse modo, a construção de um Estado a partir de
categorias exclusivamente humanas – força e inteligência - pode privar os cidadãos daqueles
bens capitais para a formação do bem comum (sumo bem do Estado), a saber: sabedoria e
amor. Sem a sabedoria e sem o amor o livre-arbítrio fica prejudicado e deficiente pelo fato de
não encontrar um fundamento de validade transcendente (Verdade), assim como o Estado não
encontra seu fundamento na justiça e na lei eterna. Devemos dizer que a verdade é uma
categoria comum (base comum) a todos os homens, a qual se pode conhecer por meio da
certeza da razão. Em outras palavras, a verdade é uma garantia da comunidade pensante para
uma ação comum no Estado.
1.3.4 O livre-arbítrio é um bem
Concomitantemente com o problema da origem do mal – vontade - surge o problema
filosófico da razão pela qual Deus nos concedeu a liberdade para pecar (mal). Seria o livre-
248 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 165. 249 Voltar-se a si mesmo para descobrir a verdade. É a chamada teoria da iluminação, na qual o homem pela
graça divina é capaz de alcançar a verdade ao utilizar a inteligência (interior da mente). Fé e Razão são os elementos necessários para o encontro com a sabedoria (verdade). Crer para entender, entender para crer. A fé
precede o entendimento
73
arbítrio um bem? A conclusão é a necessidade da liberdade como um bem para se agir
retamente ou não, pois, do contrário, não haveria pecado nem boa ação caso o homem não
agisse voluntariamente250
. Logo, se não existisse liberdade não haveria justiça para punir os
males e recompensar as boas condutas. A justiça, que é um bem, não existiria. A isenção da
responsabilidade do mal sobre Deus está no fato de que não concedeu esse dom para o
homem com a intenção de vê-lo pecar, mas sim para vê-lo praticar de boa vontade a retidão
de vida.
Agostinho, então, procura mostrar pela argumentação racional a prova da existência de
Deus para afirmar a liberdade como um bem que provém de Deus. A verdadeira religião se
funde com a filosofia e pretende ser a voz da verdade no mundo. Provar a existência de Deus
equivale a provar a verdade. A liberdade do homem é posta como um bem em si mesmo que
tem sua expressão mais profunda na união com a verdade. A argumentação inédita está nesta
prova racional da verdade. O resultado é a justiça com que Deus nos concedeu a liberdade.
Como, então, Agostinho demonstra a ligação da liberdade com a verdade e a objetividade
desta?
1.3.4.1 A liberdade e a verdade: princípio da subordinação
O doutor cristão diz que o espírito humano é constituído de três intuições: o existir, o
viver e o entender. O mundo é constituído delas. A pedra existe, o animal existe e vive e o
homem existe, vive e entende. Dessas três a melhor é o entendimento na medida em que
supõe o viver e o existir251
. O entendimento é visto como o modo racional pelo qual o homem
tem certeza das realidades visíveis e invisíveis por meio da razão. Não é apenas uma
convicção que se sustenta pelo pensamento humano, mas, sim, a razão em moldes de verdade.
O pensador cristão procede à verificação dos sentidos externos, sentidos internos e da
razão. Os sentidos externos se referem aos cinco sentidos: visão, audição, olfato, tato e
paladar; cada um com sua função própria e alguns com percepção semelhante em relação ao
objeto, por exemplo, a visão e o tato percebem que a determinado objeto é liso. O sentido
interno é a faculdade de perceber e governar os sentidos externos como, por exemplo, a visão
250 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 73.75. 251 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 80-81.
74
informa que há uma ameaça e, consequentemente, essa faculdade faz o corpo se mover. Todos
os animais possuem sentidos externos e internos252
.
A razão (ciência) é a aptidão de conhecer e distinguir os sentidos e os objetos, bem
como a capacidade de compreender a si mesma253
. Ou seja, o ser humano possui a capacidade
julgar (decidir). A razão afirma sua preeminência sobre os sentidos em razão de ser a única
faculdade capaz de conhecer a si mesma. Estabelece-se, assim, o princípio da subordinação
(ordem) em hierarquia de governança, respectivamente: a razão governa os sentidos; o sentido
interior governa o sentido exterior e este aceita ou rejeita o contato com os objetos.
A faculdade da razão de compreender a si mesma informa que tudo o que conhece -
inclusive ela - é passível de mutação (corpo e razão) na medida em que a vida é sujeita a esse
estado. A par disso, pensa e compreende que pode existir uma realidade imutável de forma a
ser superior a essa realidade mutável, notadamente, à razão. A própria razão a identifica como
superior a si mesma. O que seria essa realidade? Para Santo Agostinho Deus. Para ele, a prova
da existência de Deus está em a razão perceber que existe algo superior a si mesma de modo
que esse algo pode ter outro superior a si, mas tendo ou não, essa figura é Deus. A passagem
do raciocínio agostiniano – preâmbulo da prova - é importante para expressar a força da razão
(entendimento) de perceber a verdade (binômio Deus e o homem) autônoma (outra realidade),
ou seja, prova a existência de Deus (verdade e sabedoria) por argumentos racionais:
Está entendido. Pois bastar-me-á, então, mostrar a existência de tal realidade que, ou
bem aceitarás como Deus; ou bem, caso haja outro ser acima dela, concordarás que
esse mesmo ser é verdadeiramente Deus. Assim, haja ou não algum ser superior a
essa realidade, será evidente que Deus existe, desde que, com a ajuda desse mesmo
Deus, eu tiver conseguido demonstrar, como o prometi, a existência de uma
realidade superior à razão.254
Em outras palavras, não podemos ignorar a Deus, assim como o Estado255
não o pode
na medida em que é ínsito à natureza humana reconhecer algo como superior a si mesma. Isso
é um ponto comum que pode oferecer uma base para uma ação comum entre os homens,
notadamente, na ação comunal (comunidade política). Apesar da liberdade de cada qual para
conhecer e compreender o que quiser, a verdade é racional de maneira que pode ser conhecida
por cada um. Se Deus é superior à razão humana, mutável e relativa (cada um tem a sua), a
verdade é transcendente ao homem e, pois, objetiva (realidade objetiva).
252 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 82-83. 253 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 86. 254 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995, p. 93. 255 O Estado “não passa de sociedade de homens que vivem unidos”. AGOSTINHO, Santo. Cidade de
Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007,
p. 45.
75
De fato, a prova da existência de Deus está intimamente ligada à da existência da
verdade. O realismo objetivo agostiniano significa a existência autônoma de Deus, a
existência autônoma dos homens (de cada um) e a existência autônoma dos objetos. Vimos no
subtítulo em que discorremos sobre a criação a autonomia de Deus em relação à criação.
Agora, o filósofo cristão prova a autonomia dos homens entre si e a independência dos
objetos a serem conhecidos.
A autonomia de cada pessoa está no fato de que cada um dos sentidos externo e
interno, pertence unicamente a esta na medida em que os sentidos interiores de cada um
percebem as próprias sensações por meio dos sentidos exteriores. Ninguém percebe a
sensação do outro. Da mesma forma acontece com a razão que compreende as realidades,
inclusive a sensorial, de forma própria e pode compreender algo que outro não tenha
compreendido (“cada um de nós também possui a sua própria”256
). A razão é capaz de
conhecer diversos objetos – distintos entre si – por si e pelos sentidos.
Acontece que, duas pessoas podem perceber um objeto único ao mesmo tempo e
constatar que seja o mesmo, apesar de cada qual sentir e conhecê-lo com seus sentidos e sua
razão. Assim, um único objeto pode ser percebido igualmente por duas pessoas com sentidos
próprios e razão distinta257
. Como os sentidos pertencem a cada pessoa (individual) e o objeto
é distinto deles e comum a ambos, os objetos conhecidos têm realidade própria distinta da
razão humana. O diálogo entre Santo Agostinho e seu amigo e condiscípulo Evódio é
marcante quanto à realidade das coisas:
Ag. Está, pois, claro que os objetos percebidos por nossos sentidos corporais, sem
entretanto os transformamos, ficam, entretanto, estranhos à natureza de nossos
sentidos. E assim são eles um bem comum, porque não são convertidos nem
transformados em algo próprio nosso, e por assim dizer, naquilo que é de nosso uso
privativo.
Ev. Concordo perfeitamente.
Ag. Portanto, é preciso entender como sendo coisa própria e de ordem privada o que
pertence a cada um de nós em particular, e assim somente cada um percebe em si
mesmo, como pertencente propriamente à sua natureza. E, por sua vez, é preciso
entender como coisa comum e de ordem pública o que, sem nenhuma alteração nem
mudança, é percebido por todos.
Ev. Assim acontece.258
O pensador cristão atribui a devida importância à razão no sentido de entender o
mundo e conhecer a si mesma sem descartar seus limites diante da objetividade das coisas. A
256 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 94-95. 257 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 95. 258 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 99.
76
razão nos limites da realidade significa reconhecer o objeto como independente daquela de
maneira a poder ser conhecido como comum a qualquer pessoa.
1.3.4.1.1 A verdade e as formas: os números e a linguagem desvelam a força
ontológica agostiniana
O caso dos números e suas leis que informam a verdade inalterável, por exemplo, 3 +
7 = 10. A soma de 3 + 7 é sempre igual a 10. Essa universalidade é entendida por todo homem
dotado de razão. É uma verdade comum a todos os homens e, por isso, objeto de consenso.
Poderíamos dizer que são verdades que se tornam compreensíveis pela razão e passam a ser
autoevidentes no agir. O doutor da Igreja para provar a verdade dos números ainda questiona
se esses números estariam em nossa razão como imagens dos objetos sensíveis ou antes como
uma propriedade particular do espírito. Evódio conclui que não, pois se percebemos os
números pela realidade sensível, o mesmo não ocorre com as leis da adição e divisão, nas
quais percebo o erro pela razão259
.
De fato, Agostinho procura nos números uma forma de provar a verdade imutável. Faz
isso para afirmar a verdade acima da razão humana. É a razão humana nos limites da verdade.
O raciocínio é tão minucioso e detalhista que o filósofo afirma a realidade dos números como
independentes em relação à realidade sensível de modo que são percebidos exclusivamente
pela razão.
Chega a afirmar que na realidade sensível um corpo pode ser dividido em duas partes
sempre, isto é, sabemos que procuramos uma unidade num corpo material mas nunca a
encontraremos na medida em que sempre é possível dividir uma das duas partes em duas
novamente. Assim, a unidade pura e verdadeira está ausente na realidade sensível (material).
A unidade pura só a percebemos pelos números de maneira que o número um é a unidade
procurada, a qual é encontrada pela razão260
. Podemos entender que 1 é igual a 1 no plano
metafísico, mas não no plano imanente da realidade. A unidade é o reflexo da simplicidade
para Agostinho, a significar que o número 1 simplesmente é (equação 1=1). A razão, por sua
vez, percebe uma ordem imutável nos números, como, por exemplo, um mais um é igual a
259 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 101. 260 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 103.
77
dois, dois mais dois é igual a quatro e três mais três é igual a seis, ou seja, “acrescentando a
um número qualquer a série de unidades que ele conta, a totalidade obtida é o seu dobro”261
.
Assim como Agostinho encontra pela razão uma verdade transcendente nos números,
a inteligência é capaz de aprender a falar (linguagem falada) ao reter pouco a pouco as
palavras na memória como sinais de objetos, ao qual é designado por um nome, a partir dos
“movimentos do corpo que são como que a linguagem natural a todos os povos e consiste na
expressão da fisionomia, no movimento dos olhos, nos gestos, no tom de voz que indica a
afeição da alma quando pede ou possui e quando rejeita ou evita”262
, de modo que a
linguagem é a expressão de sinais de objetos – não os próprios – que exteriorizam a vontade
humana.
O que Agostinho quer mostrar é a transcendência da aprendizagem da linguagem na
natureza e, ao mesmo tempo, a linguagem como instrumento do conhecimento, e não como o
próprio conhecimento, como, por exemplo, a palavra ‘liberdade’ é o sinal que designa o bem
liberdade (objeto). Não há no pensamento agostiniano uma linguagem imanente a si mesma
com poder de estabelecer o próprio significado do objeto, pois só sinal. Se o homem
considerar a linguagem imanente, a ela é oferecida mais atenção do que ao objeto que designa
de maneira a excluir a metafísica do conhecimento. A linguagem como instrumento e sinal de
objetos não permite que o homem exclua a lei natural do mundo. Em vez disso, a conduta de
vida (existência) do homem se modifica ao tomar a linguagem como um fim em si mesma.
Agostinho percebe isso e revela seu pensamento da seguinte forma:
Se alguém, ao aprender ou ensinar as regras tradicionais dos sons, pronunciar sem
aspiração da primeira sílaba a palavra “homo” (homem), desagrada mais aos
homens do que se odiar, contra os Vossos mandamentos, outro homem, apesar de
este ser o “homem”. Como se na realidade se persuadisse haver um inimigo mais
molesto que o próprio ódio com que se irrita contra si mesmo; ou como se alguém
prejudicasse mais gravemente, com perseguições, a outrem do que ao próprio
coração, com essa inimizade! Com certeza a ciência gramatical não é mais interior
do que a lei da consciência – de não fazer a outrem o que não queremos que nos
façam a nós mesmos.263
A questão sobre a linguagem é tratada com acuidade e detalhamento por Agostinho no
diálogo com Adeodato na obra “O Mestre”, em que abordam o ato de falar com o objetivo de
ensinar e recordar – e, não aprender264
, o qual está ligado a quem ouve265
-, pois perguntamos
261 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 104. 262 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 28. 263 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2010, p. 34. 264 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 359.
78
para ensinar o que desejamos de modo que aprendemos as palavras com as coisas, não as
coisas com as palavras266
. Vê-se, assim, a linguagem como instrumento para o ensinamento,
e, não, para a redução dos objetos a ela. Para Agostinho as palavras são signos (sinais) que
significam alguma coisa, mesmo quando explicamos os sinais com outros sinais (explicar a
preposição ex com a partícula de). Podemos mostrar também sem sinais as coisas significadas
(coisas que podem ser significáveis) por eles (o comer e o beber mostrados com o próprio ato,
salvo o falar que se demonstra por si mesmo)267
.
Quando dizemos um nome, estamos querendo significar alguma coisa, como, por
exemplo, Roma (coisa visível) e virtude (coisa inteligível), sem que confundamos a coisa com
o próprio sinal. O nome significa algo que, quando dito, é um sinal audível de outro sinal
audível e, portanto, é palavra (algo com algum significado que se profere pela articulação da
voz); assim como a palavra pode ser sinal de um nome. O nome é um sinal de um sinal falado,
que, por sua vez, é um sinal de uma coisa. O sinal falado é um sinal não de outro sinal, mas de
uma coisa. O próprio termo “nome” é palavra ao ser pronunciado pela articulação da voz;
assim como a palavra de duas sílabas “verbum” (palavra) é sinal de um nome. Toda palavra é
nome e todo nome é palavra, muito embora não sejam idênticos como veremos abaixo. Do
mesmo modo, nem todo sinal é palavra, como, por exemplo, o ato de gesticular.
Além do nome e da palavra, existem os signos (sinais) que significam a si mesmos
(por exemplo, o termo “nome” que significa nome de todos os gêneros – masculino, feminino
e neutro – e ele mesmo é do gênero neutro), bem como signos (sinais) que são nomes, muito
embora signifiquem outras coisas que não são nomes (por exemplo, o termo conjunção, que é
nome, se refere a se, ou, pois, senão, portanto, etc.)268
e os quais não podem ser incluídos
entre as coisas que significam (isto é, entre as conjunções)269
. Há ainda palavras como “se” e
265 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 385. 266 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 402. 267 “Portanto, quando se pergunta a respeito de alguns sinais, os sinais podem ser mostrados por meio de outros
sinais. Mas quando se trata de coisas que são sinais, podem ser demonstradas ou representando-as após a
pergunta, se for possível representá-las, ou dando alguns sinais pelos quais se possam ser compreendidas”.
AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 362-368. 268 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 368-374. 269 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 383.
79
“porque” que são nomes e palavras reciprocamente270
, pois o nome “é aquilo com que se
denomina uma coisa”271
(por exemplo, “o se agrada e o porque desagrada”).
A importância prática da distinção entre palavra e nome é sintetizada da seguinte
forma por Agostinho:
Acredito que notas tudo o que com algum significado provém da voz articulada
repercute no ouvido para que seja sentido, e é transmitido à memória para que possa
ser conhecido.
[...]
Dessas duas coisas, por um lado uma se denomina palavra (verbum) e, por outro
lado, outra se denomina nome (nomen). Não é, realmente, por que verbum (palavra)
vem de verbeare (ferir, repercutir) e nomen (nome) vem de noscere (conhecer), visto
que a primeira (palavra) repercute nos ouvidos e o segundo (nome) é percebido pelo
espírito?272
Agostinho coloca os nomes como sinais (signos) de alguma coisa que pode ter
significado (significáveis) e, então, atribui à linguagem um ato de intermediário para o
conhecimento, apesar de não excluir dela um sentido e um valor intrínseco, como, por
exemplo, se perguntamos o que é homem, a resposta pode ser animal, mas se perguntamos
que parte da oração é homem, dizemos que é o nome273
. Aqui se coloca claramente a
diferença entre o signo e a coisa significada de maneira que se atribui à lei da razão o ato do
homem dar mais atenção à coisa significa que ao próprio signo na medida em que o sinal
existe em função da coisa e a ele se dá menor valor de conhecimento (a ideia de ordem força
esta conclusão), ou seja, “o conhecimento das coisas significadas é melhor que os próprios
sinais, embora não seja superior ao conhecimento dos sinais”274
. Em outras palavras, a
linguagem significa outras coisas e se significa a si mesma.
Toda essa concepção da linguagem resulta em uma abordagem ontológica da ciência,
tendo em vista que se refere a objetos tais como são. A linguagem é um meio universal para o
conhecimento, ou seja, tem um valor de nos indicar os objetos. Nas palavras de Agostinho
“até aqui as palavras contribuíram com sua força, as quais, apesar de lhes atribuirmos muito
valor, apenas nos incitam a procurar os objetos, porém não os mostram para que os
270 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 374-382. 271 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 379. 272 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 376. 273 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 392-393. 274 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 398.
80
conheçamos”275
. É o conhecimento das coisas mesmas que faz a linguagem ser completa, e,
não, a palavra que completa o objeto. Por isso, o pensador afirma que os sensíveis se
aprendem com a sensação direta e os inteligíveis se completam interiormente.
Em outras palavras, a razão intui uma verdade ordenada (pode ser conhecida por
todos) acima das realidades sensíveis e de si mesma (sujeita à mutabilidade e percepção
própria). Essas realidades percebidas pelos números e pela linguagem por meio da razão
refletem um bem comum, pois podem ser conhecidas por todos. Esse conhecimento constitui
uma verdade para todos como um bem comum da humanidade.
1.3.4.1.2 A verdade e a felicidade
Agostinho diz que a verdade está acima da razão humana (a razão nos limites da
verdade) e a define como a sabedoria em desejar o bem e se afastar do mal276
, de maneira a
consistir nesta expressão mesmo se a tomamos nas mais diferentes acepções que refletem as
diversas opiniões que se têm do bem. A sabedoria é a verdade, “na qual se contempla e se
possui o sumo Bem”277
. Assim, o conhecimento dessas realidades imutáveis está em estrita
conexão com a verdade. A posse da sabedoria, a qual todos desejam, é o sumo Bem que torna
o homem feliz.
Certas verdades estão impressas, como os números, em nossa razão de maneira que as
desejamos mesmo sem possuí-las ou senti-las. É o caso da noção da felicidade em que todos
afirmam o desejo de serem felizes antes de sê-lo na medida em que por ela sabemos o que
queremos278
, muito embora a variedade de desejos acerca da mesma felicidade é múltipla em
razão de o homem ainda não conhecê-la279
de modo que uns a depositam nos prazeres
corporais, outros na força da alma e ainda alguns em ambos. A felicidade não consiste em
viver segundo as vontades próprias (prazeres), ou seja, ao bel-prazer. Agostinho, em
conformidade Cícero, combate esse erro ao afirmar que feliz é aquele que “possui tudo o que
275 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 405. 276 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 107. 277 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 106. 278 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 107. 279 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão
e notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 402-404.
81
quer e nada quer que seja mal”280
. Em outras palavras, a felicidade consiste em desejar tudo o
que é justo. Viver segundo a natureza decaída em razão da corrupção é um mal (privação do
bem). A vontade viciada torna o homem infeliz. As virtudes dão a certeza da felicidade
mesmo em meio aos males transitórios281
. Nesse sentido, a felicidade completa só em Deus se
realiza. Na obra “Cidade de Deus”, o pensador afirma que a “verdadeira justiça existe apenas
na república cujo fundador e governo é Cristo, se nos agrada chamá-la república, porque não
podemos negar que seja também coisa do povo”282
.
Esse raciocínio é de grande relevância para a filosofia agostiniana, na medida em que
o Estado poderá punir más condutas – ignomínias e delitos – de particulares mesmo que estes
as considerem como um caminho para a felicidade pessoal. É necessário observar que a
relação entre as noções de liberdade e verdade (aqui a felicidade) começa a se aproximar em
razão de aquela alcançar esta desde que se paute pelo caminho correto (virtudes). Só assim o
Estado será justo ao propiciar aos cidadãos a satisfação das vontades desde que justas. O
exercício das virtudes é o caminho para o Estado justo. Essas noções são imutáveis no homem
que se lembra delas mesmo sem conhecê-las ou possuí-las, pois “a alma certamente não põe
em dúvida (...) o fato de desejar ser feliz”283
. Assim como o homem não põe em dúvida o
pensamento unânime da felicidade, o Estado também não o põe em questionamento.
O doutor cristão deposita a felicidade nos bens superiores de modo que Deus é o único
a poder ofertá-los. Na obra “Cidade de Deus” existem várias passagens a respeito da
felicidade que revelam o pensamento de que a felicidade está em Deus único, a afastar
quaisquer interferências dos deuses pagãos nesta questão dentro do império romano284
.
Critica, até mesmo, os filósofos platônicos que, apesar de reconhecer que somente Deus dá a
felicidade, “cederam à vaidade dos erros populares (...) da necessidade de altares para a
pluralidade de deuses”285
. Diz, assim, que a felicidade vem de Deus, na qual superabundam os
bons286
na república. Aliás, a felicidade é dada somente aos bons, muito embora distribua “a
280 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 405. 281 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão
e notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 408-409. 282 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 92. 283 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 468. 284 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 173 e 189. 285 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 369. 286 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 95.
82
bons e maus os reinos terrestres”287
. Entre Estados a felicidade maior está em “viver em paz
com o bom vizinho que subjugar pelas armas o mau”288
. Apesar da separação entre a Cidade
celeste e a terrena, esta já pode alcançar a felicidade – não a completa – e se dirigir para o
encontro da sabedoria289
.
As verdades não estão sujeitas, pois, a determinada cultura ou tempo, antes são
realidades objetivas que constituem um patrimônio universal, mesmo que a razão humana,
mutável, possa não percebê-las. Sendo percebidas ou não pelos homens elas existem. A razão
humana é capaz de conhecê-las pela mens, de forma a constituir em um patrimônio comum do
pensamento humano. A verdade é superior à razão humana, pois se fosse igual, seria mutável
como ela. Sendo imutável, a verdade apenas é (essência). Essa é a realidade que Agostinho
procura demonstrar.
1.3.4.2 A liberdade e a verdade: princípio da participação
O cume da união entre liberdade e verdade é dito pelo doutor cristão expressamente:
“Eis no que consiste nossa liberdade: estarmos submetidos a esta Verdade”290
. Só temos
liberdade quando fruímos dos bens com segurança. Se corrermos o risco de perdê-los contra a
nossa vontade, não temos liberdade. Não perdemos a verdade contra a nossa vontade, ao
contrário, perdemos a verdade se amamos mais aos bens inferiores do que aos superiores –
inclusive, o sumo Bem – por vontade291
. Já os bens inferiores, como o louvor, a honra, a
riqueza e a luxúria, podemos perdê-los contra nossa vontade. Essa é a verdadeira liberdade, a
qual é uma noção transcendente como a felicidade o é.
O pensamento cristão da liberdade avança para asseverar que os bens mutáveis são
aqueles sujeitos à mudança e à perfeição. Nenhum bem pode se dar a perfeição, na medida em
que não a possui292
. A noção de perfeição é uma técnica de que Santo Agostinho se utiliza
para demonstrar que o ser humano (corpo e alma) não pode por si mesmo se aperfeiçoar em
287 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p.183. 288 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 164. 289 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 355. 290 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 121. 291 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 122. 292 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 132.
83
direção aos bens superiores. É necessário que haja algo transcendente ao ser humano capaz de
oferecer a perfeição. Sendo assim, o ser humano não pode construir um Estado perfeito e justo
totalmente sem um ponto comum transcendente a eles próprios. Mesmo porque, todas as
coisas provêm de Deus e obedecem à ordem estabelecida. Por outro ângulo de análise, todos
os bens mutáveis podem mudar e se aperfeiçoarem. Isso indica que o Estado, como o ser
humano, pode se aperfeiçoar em direção à justiça verdadeira.
A participação em Deus é a aderência à sabedoria imutável, a tornar as coisas
perfeitas, as quais, por sua vez, estão subordinadas à ordem e ao próprio Deus. Participação e
subordinação são os princípios que regem a argumentação agostiniana na prova da existência
de Deus. Os dois princípios estão intimamente conexos, os quais permitem que o homem não
obedeça por obedecer, mas participe, por sua livre escolha, da Verdade. O princípio da
subordinação sem o princípio da participação se tornaria um meio de dominação, pois imporia
uma atitude ao ser humano sem que este adira por seu livre-arbítrio ao Bem. Por sua vez, o
princípio da participação só tem sentido em uma Verdade imutável e independente e superior
à razão humana. No âmbito estatal, os dois princípios têm a função das leis temporais se
conformarem às exigências da lei natural pelo consentimento. De fato, trata-se de um
reconhecimento primeiramente das verdades e a consequente aderência a essas verdades.
1.3.5 A liberdade e a ordem dos bens
Como vimos Santo Agostinho considera as categorias existir, viver e pensar a partir
da ordem (grau e hierarquia) dos seres e suas funções (sentidos exteriores, sentido interior e
razão) para, então, afirmar a sujeição da razão à Sabedoria. O ser mais perfeito é o espírito
(mens) que participa da inteligência divina, que lhe é superior, assim como a Cidade Celeste é
superior à Cidade terrena.
As bases em que o filósofo cristão se sustenta são, pois, a existência de Deus e a
procedência de todos os bens d’Ele. Para refutar a última objeção posta por Evódio de que “o
livre-arbítrio da vontade não devia nos ter sido dado, visto que as pessoas servem-se dele para
pecar”293
. Agostinho prova que mesmo o livre-arbítrio é um bem em si mesmo.
Com efeito, Agostinho procede a uma comparação entre o corpo e a alma. Um rosto
precisa dos olhos para ser íntegro e ver para distinguir as coisas corpóreas. É um bem por isso
e constitui beleza para o corpo. Apesar disso, o homem pode usar dos olhos para satisfazer
293 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 135.
84
suas paixões e praticar ações reprováveis. Assim é com a alma, o livre-arbítrio é um bem em
si mesmo, “sem a qual ninguém pode viver com retidão”294
. Se há o abuso da liberdade, isso
não significa que o livre-arbítrio não nos deveria ter sido dado como dom. Por isso, é preciso
condenar quem deles abusa. Agostinho faz uma pergunta decisiva para Evódio que o coloca
sem saída argumentativa ao pensar que o livre-arbítrio não nos deveria ter sido dado: “o que
te parece melhor em nós: aquilo sem o que se pode viver com retidão ou alguma coisa sem a
qual não se pode viver retamente”295
.
Da mesma forma, a justiça é um dos maiores bens que existe no homem. Ao lado
dessa a fortaleza, a temperança e prudência subsistem na reta razão de modo que nenhuma
virtude existiria sem esta. Da reta razão ninguém pode abusar. Assim, as virtudes são
consideradas grandes bens. O homem, ao fazer bom uso das coisas, pratica precisamente a
virtude. Isso é um bem e, por isso, não pode ser considerado abuso296
. Pelos grandes bens, o
homem vive honestamente. A divisão entre os bens grandes, médios e mínimos é referida da
seguinte forma:
Portanto, as virtudes pelas quais as pessoas vivem honestamente pertencem à
categoria de grandes bens. As diversas espécies de corpos sem os quais pode-se
viver com honestidade, contam-se entre os bens mínimos. E por sua vez, as forças
do espírito, sem as quais não se pode viver de modo honesto, são bens médios.297
O livre-arbítrio é considerado um bem médio298
em razão de podermos utilizá-lo mal
ou bem. Se o usa bem, a vontade do ser humano “adere ao Sumo Bem”299
e, então possui a
vida feliz. Cada pessoa adquire a felicidade, que, por sua vez, pode ser encontrada por cada
um bem em razão de ser comum a todos. As pessoas a adquirem se se conformam às regras
das virtudes aceitas de própria vontade em adquirir a verdade imutável.
Ao contrário, o homem que pretende por si mesmo conquistar os bens, volta-se só para
os bens inferiores – bons em si – por vontade própria de modo a originar uma deficiência no
livre-arbítrio ao não procurar a verdade imutável. O mal não existiria se o homem não o
quisesse.
294 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 136. 295 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 137. 296 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 138-139. 297 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 138. 298 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 140. 299 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 140.
85
1.3.5.1 A ordem dos bens e os sistemas políticos
O Estado que se dirige pelos bens inferiores e ignora ou cria obstáculos para o
conhecimento da verdade imutável é um Estado infeliz. O excesso dos bens inferiores
(luxúria, ambição, avareza, louvor, honras) no Estado é uma privação de bem (mal) porque
desconsidera os bens superiores estampados, principalmente, nas virtudes. Em relação a estas,
não a perdemos contra a nossa vontade e, por isso, são bens superiores. As virtudes são o
caminho para a Sabedoria que, por sua vez, é a única que pode oferecer a felicidade. As
virtudes, a felicidade e a Sabedoria são realidades objetivas que independem da opinião
humana para existirem.
O que o doutor da Igreja propõe não é uma redução das coisas do mundo, inclusive do
Estado, à Igreja, mas, sim, uma aderência aos bens que podem ser conhecidos pela razão a
partir da ordem dos bens. Nessa medida, Agostinho abre a acepção de Estado para as
dimensões da escatologia, muito embora não tire nada do conteúdo temporal. Ao contrário, os
elementos presentes na humanidade como o livre-arbítrio e o mal são levados em conta a todo
o momento.
A escatologia afirma que a vida humana tem um sentido. O homem tem um destino
certo de comparecer ao juízo de Deus (Verdade). Como na visão agostiniana o Estado é um
conjunto de homens que vivem unidos por um vínculo comum por meio das leis temporais, a
escatologia reflete na história dos Estados, embora tenham um significado exclusivamente
histórico por ser realidade separada e autônoma em relação à natureza de Deus. Logo, o
Estado também tem um sentido.
Com efeito, tanto o homem quanto o Estado devem se orientar pela Verdade. Os
homens que conhecem a Verdade e deixam se guiar por ela devem modelar o mundo visível
segundo essa mesma Verdade, particularmente, o Estado. A formação de um Estado com base
nos bens superiores tem a capacidade de induzir uma cultura do bem, isto é, cultivar laços
humanos segundo valores lastreados na Verdade aptos a fomentar e educar a sociedade em
bases comuns. O filósofo da antiguidade defende uma ontologia das coisas que serve de base
comum para a sociedade. Sem uma base comum, não há uma unidade no Estado e,
consequentemente, a finalidade – o bem comum – fica prejudicada.
Assim, podemos dizer que os sistemas políticos quaisquer que sejam – embora a
democracia pareça atender mais os objetos da justiça social na medida em que cada homem é
86
um ser social detentor de uma parcela do poder (princípio da participação) de acordo com as
leis civis (princípio da subordinação) – é uma atitude de conduta humana. E se é uma atitude
de conduta, os bens devem se pautar pela busca dos bens superiores e pelo encontro com a
Verdade, assim como as leis civis não devem entrar em contradição com a lei natural.
Qualquer sistema político deve atender as exigências da Verdade. Isso significa que a
moral agostiniana sobrepaira quaisquer sistemas políticos de poder. Isso quer dizer que a
conduta das pessoas não será moralmente legítima somente por ser produto de um sistema
político, mesmo considerando as nuances de tomada de decisões dentro do Estado, como, por
exemplo, aquelas tomadas institucionalmente pelo parlamento ou pelo judiciário. Acima das
políticas seculares – muitas vezes sórdidas – está a Verdade. Vimos que as leis civis quando
não visam o bem-comum tendem a servir como instrumento de dominação em contraposição
à liberdade, que, por sua vez, é um bem.
Essa Verdade traz consigo uma nova ética de um pensamento cujo conteúdo está no
transcendente. O Estado agostiniano é marcadamente ético, na medida em que as leis
temporais não podem estar em contradição com a lei natural comum a todos os homens, antes
deve atender às exigências desta. Isso também não quer dizer que se está a querer influir na
realidade por meio de imposição de ideias (ideologia). A ideologia carrega consigo um certo
ar de dominação. Como dissemos, a ética agostiniana é transcendente e fundada num
princípio vivo (Deus) como realidade autônoma e distinta da natureza humana, a não
depender da vontade humana para conformação. O homem, por vontade própria, pode se
conduzir para esta ética de acordo com os princípios da subordinação (submissão à ordem) e
da participação (o homem participa da inteligência divina – Verdade – pelo entendimento).
Não se trata de ideias no sentido de “verdades” sujeitas à mutabilidade conforme as
circunstâncias, pois não atendem a nenhum interesse de momento. A ética agostiniana é uma
realidade objetiva, não própria e exclusiva da inteligência humana, que, por sua vez, está
sujeita ao erro. Nem é uma ideologia como protótipo de conduta300
que não deixa margem de
300 Pensamos aqui em Estados totalitários como o nazismo ou o comunismo. O primeiro desprezou a verdade
transcendente e procurou fundar um Estado como base em conceitos puramente humanos, como, por exemplo, a
eugenia. O segundo procurou obstaculizar a verdade transcendente ao não permitir o culto da religião verdadeira.
Pensamos também na democracia que em nome de uma ética da tolerância acaba impondo a ditadura do
relativismo, pois toma os bens inferiores, por exemplo, o prazer e a utilidade, como critérios últimos da decisão
humana, a estabelecer uma falsa ideia de liberdade sem lastro na verdade. Enquanto o nazismo e o comunismo
tolheram a liberdade humana, a democracia pode falseá-la. Talvez o maior erro da democracia seja expressar a
liberdade como bem unicamente fabricado pelo consenso comunal ou concordância institucional em bases
unicamente humanas de modo que seria um instituto criado a partir do direito posto pelo legislador ou construído
pelo judiciário com influência do meio social (consenso), a definir o que é a liberdade. Portanto, exclui-se a base
natural da criação e da ordem em que a liberdade está inserida e sujeita. É um bem definido e delimitado pelo
homem, sem base natural ou pré-jurídica, ou seja, sem estar subordinada à ordem da criação.
87
escolha (dominação), de uma forma ou de outra, para a decisão segundo a liberdade, antes é
uma verdade que liberta o arbítrio do homem em direção aos bens superiores.
Na visão agostiniana, a liberdade é um dom de Deus, ou seja, um bem que procede de
Deus. Como Deus é a Verdade, a liberdade procede desta e, por isso, está ligada àquela.
Agostinho sabe que as leis temporais são relativas na medida em que são dirigidas para os
bens temporais, os quais são mutáveis, assim como a razão. Por isso, não existe definição
definitiva a priori do conteúdo da liberdade com base exclusivamente na força da razão
humana, muito embora sua essência (conteúdo) seja imutável (eterna). A definição conclusiva
da liberdade ocorre somente pela participação na Verdade e subordinação dela aos bens
superiores (prudência, fortaleza, justiça e prudência). Não se nega a possibilidade do ser
humano entender a liberdade conforme sua razão (mutável) – e, assim, sujeita ao erro -, assim
como não se nega a possibilidade da liberdade ser entendida de acordo com a Verdade. A
própria liberdade é um bem inserido na criação e que obedece à ordem natural (é um bem
médio), a qual pode ou não utilizar desse bem para alcançar outros bens superiores (virtudes),
ou, simplesmente, se voltar aos bens inferiores (por exemplo, o prazer). Para ele, a liberdade
como um bem que procede de Deus é condição para a existência do homem livre, inclusive a
capacidade do homem em pensar a liberdade só é possível graças a essa mesma liberdade. A
integridade do homem comporta a liberdade como um bem que procede de Deus. Se se faz
mau uso desse bem, a responsabilidade é do próprio homem (vontade), inclusive ao
conceituá-lo unicamente da sua maneira para atender a vontade corrompida e justificar a
busca exclusiva dos bens inferiores. Seria ficção, por não haver lastro na realidade, imaginar
que a liberdade não seria um bem natural por ter sua fonte na construção na e a partir da razão
humana (produto da razão) na medida em que não seria menos verdadeiro partir do
pressuposto de que o homem é um ser natural e, por via de conseqüência, sujeito igualmente à
ordem natural do mundo. Se o homem está sujeito à natureza, a liberdade como criação sua
está também. Cairíamos no mesmo erro se afirmássemos que a vida não é anterior ao direito,
mas, simplesmente, definida originariamente por este. Também não seria menos correto
afirmar a verdade da natureza do próprio homem de que sempre foi homem. Da mesma
forma, não se nega que a liberdade é um bem apto a ir ao encontro de realidades invisíveis
(metafísicas), isto é, em busca de bens superiores por meio da razão e pela graça de Deus. Se
por um lado, reconhecemos as limitações para encontrar a liberdade verdadeira em virtude da
mutabilidade da razão; por outro reconhecemos que a liberdade é um meio apto a alcançar
bens superiores imutáveis com o respaldo da Verdade. Enfim, podemos dizer que a liberdade
só é completa (una) na busca dos bens superiores.
88
Por isso, essas verdades, constitutivas da ética, são aceitas (princípio da participação),
e não simplesmente impostas aos homens (princípio da subordinação). Não se modificam
segundo a realidade mutável, antes são as realidades que se submetem às verdades da criação
pela justa ordem natural. Consequentemente, não se trata de impor uma visão única de
mundo, antes é a aceitação dos homens das verdades imutáveis pela força da razão
(entendimento). Essas verdades implicam os bens superiores, as quais os homens não podem
ignorar, pois a razão indaga o próprio homem das razões de seu entendimento.
O fato de o Estado ético agostiniano estar fundado sob a liberdade humana e a verdade
inabalável coloca perguntas cruciais na história da humanidade: se Deus sabia dos horrores
que um Estado pode causar, como deixou que milhões de pessoas morressem injustamente?
Deus compactua com os horrores da guerra? Como conciliar a presciência de Deus com a
liberdade do homem durante a história? Se Deus sabe de antemão dos nossos pecados, este
ocorre necessariamente, e, não, por vontade própria? Ou não existe a presciência em Deus e,
assim, existe um limite para Deus? Enfim, Deus não interfere na história para evitar os males?
É desnecessário? Agostinho questiona o co-discípulo Evódio da seguinte maneira: “Então,
tudo o que Deus prevê acontece, ao teu parecer, necessariamente, e não de modo voluntário
ao homem?”301
.
A resposta de Agostinho para o problema entre presciência e liberdade será a
conciliação de ambos302
, e não a exclusão de um deles. Apesar de Deus saber o que vai
acontecer, é necessário que o homem queira (vontade) que aconteça, pois ninguém deseja algo
sem o querer. Em outras palavras, a situação objetiva verificada posteriormente não
desqualifica a vontade determinante do sujeito anteriormente. A situação futura acontece não
por necessidade (causa), mas por vontade livre.
O diálogo entre Agostinho e Evódio gira em torno da questão da felicidade
Pois se Deus prevê tua felicidade futura, e nada pode te acontecer senão o que ele
previu, visto que, caso contrário, não haveria presciência. Todavia, não estamos
obrigados a admitir a opinião, totalmente absurda e muito afastada da verdade, que
tu poderás ser feliz sem o querer.
Ora, a vontade de ser feliz que terás, quando começares a sê-lo, certamente, não te é
tirada pela presciência de Deus, que já desde hoje volta-se com certeza sobre tua
felicidade futura. Assim também, a vontade culpável se acaso estiver em ti, não
deixará de ser vontade livre, pelo fato de ter Deus previsto a existência futura
dela.303
301 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 155. 302 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 200-205. 303 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p.
157.
89
Além disso, a presciência supõe a vontade livre do homem, pois o objeto daquela é
esta304
, que, por sua vez, está em nosso poder. Deus sabe os fatos futuros e os prevê
necessariamente. Deus prevê os bens e os males sem forçar ninguém a cometê-los e, por isso,
a justiça é devida ao autor do mal305
. Deus não é causa do mal.
Não haveria mal se não tivéssemos a vontade livre, assim como não haveria retidão de
vida se não procedêssemos a nosso juízo (decisão). Sem escolha entre bens, não haveria
justiça como medida da ordem criada. Sem livre-arbítrio não haveria a possibilidade de amar
a Deus livremente, por vontade. Haveria apenas dominação, pois a vontade não existiria.
Onde existe dominação a verdade não prevalece, uma vez que esta se aceita (adere) por
vontade própria. Se liberdade não houvesse, Deus nos teria privado de um bem e,
consequentemente, isso seria um mal. Como Deus é bom, o livre-arbítrio é necessário, assim
como a justiça o é. Se os males existem pela vontade humana, não pensemos que “seria
melhor que essas coisas não existissem”, mas, sim, que “elas poderiam ter sido constituídas de
outro modo”306
.
O filósofo traz um dado importante com a ideia de livre-arbítrio e o problema do mal.
Diz que todas as coisas são boas ao procederem de Deus, o Sumo Bem. Não podemos negar
que a liberdade seja um bem em si mesmo e o mal fruto de nossa má vontade. O mal é a
privação do bem até o nada, ou seja, o “não-ser”. O bem é a posse dos bens até os superiores
até a fruição do Sumo Bem, isto é, o “querer-ser”307
. Essa norma do “querer-ser” significa
amor pela vida, mesmo a infeliz (melhor do que o nada), e aspiração pelos bens superiores
(eternos).
Podemos traduzir a vontade humana pelo “querer-ser” e, mutatis mutandis, a estatal
pelo binômio “dever-ser”. Assim como o “querer-ser” é a boa vontade do ser humano em
encontrar a Deus, o “dever-ser” é a boa vontade da Cidade terrena encontrar a Cidade Celeste.
Por isso, o “dever-ser” deve refletir o mesmo encontro com o bem (Verdade) tal como o
“querer-ser”.
Logo, todos os seres lhe devem primeiramente tudo o que são, enquanto natureza
existente. Em seguida, aqueles seres que receberam a capacidade de querer, devem-
lhe tudo o que lhes é possível para progredir, se o quiserem. Devem assim tudo o
que têm a obrigação de ser.
304 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 159. 305 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 160-161. 306 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 163. 307 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,
2008, p. 172.
90
(...)
Contudo, é culpado, com justiça, se não fizer o que devia. Ora, é dever fazê-lo quem
recebeu uma vontade livre e uma capacidade suficientemente grande para isso.308
A passagem acima liga o “querer” com o “dever” de forma que o homem por sua
vontade deve proceder de maneira a progredir como forma de retribuir (dever) a Deus a
beleza da criação. O vínculo da concórdia (querer) entre os cidadãos faz com que o Estado
edite leis (dever) para a existência deste. Assim, o Estado deve tudo o que tem à capacidade e
à obrigação de ser. O Estado deve a felicidade e a paz aos cidadãos. Ao editar leis que
guardem as virtudes, está agindo com a devida justiça para a felicidade. As virtudes são os
princípios comuns para uma ação comum, independentemente de opiniões pessoais focadas
nos bens inferiores (por exemplo, a cobiça como vontade desregrada pelo dinheiro). A
liberdade de um se torna a liberdade de todos no Estado, na medida em que centrada na
Verdade.
Um Estado tem a capacidade e a obrigação de cuidar dos cidadãos de modo a fomentar
as virtudes. Assim como o homem pode evitar o mal com o bem, o Estado pode vencer o mal
pelo bem. A pergunta não é se Deus pode evitar os males humanos, mas se o ser humano é
capaz de evitar os males de sua vontade praticando o bem. Na obra “Cidade de Deus” (Livro
II, Capítulo XXI), Santo Agostinho menciona a opinião de Cícero sobre a república romana
na iminência da decadência dos costumes em que existia o aforismo de que seria impossível
governar sem injustiça para dizer, ao contrário, que é impossível governar sem muitíssima
justiça309
segundo as palavras tomadas de Cipião.
O livre-arbítrio é um bem que procede de Deus para que os homens tenham uma vida
reta. O ser humano pode decidir entre permanecer na imanência dos bens inferiores – bens em
si mesmos - ou seguir em direção aos bens superiores. As virtudes são o caminho necessário
para o entendimento e o encontro com a Verdade, que, por sua vez, é o fundamento daquelas.
A liberdade só tem sentido na Verdade na medida em que o homem só se torna livre se não
fica preso aos bens inferiores a partir de maus hábitos que geram uma necessidade
(desregramento da vontade = paixão). Esses bens inferiores são mutáveis e passageiros
(temporais), os quais o homem pode perder contra a vontade própria. Quanto aos bens
superiores, diferentemente, os homens não os perdem contra a vontade própria, mas, somente,
se não os quiserem. O livre-arbítrio é um dom de Deus para que o homem ascenda em direção
aos bens superiores até o Sumo Bem (Verdade). O homem tem a capacidade de progredir em
308 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 202. 309 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 90.
91
razão da vontade. Por querer progredir, o homem deve tudo o que tem a obrigação de ser
(integridade). A felicidade consiste, justamente, em levar uma vida reta de acordo com os
bens superiores (virtudes).
Assim acontece com o Estado também. Aquele Estado que se orienta pelas virtudes é
um Estado melhor do que aquele que foca a esperança nos bens inferiores. O Estado ético é
aquele que conforma as leis temporais – relativas por serem dirigidas aos bens mutáveis – à
lei eterna ou, ao menos, não entra em contradição com esta. A lei eterna consiste no amor a
Deus e ao próximo. A lei natural de evitar o mal, não retribuir o mal com o mal e não fazer ao
outro o que não queremos que nos seja feito. Por isso, a ética agostiniana sobrepaira quaisquer
sistemas políticos ao se fundar em bens imutáveis, os quais são válidos para todos em todos os
tempos. Essa ética é obtida pelas leis civis se tiverem as bases na justiça. A justiça imutável é
uma virtude cardeal que retribui a cada um o que é seu como afirmação da ordem natural, a
qual os bons e os maus estão sujeitos. Para bons e maus Deus distribui os bens terrestres, mas
a felicidade dispensa somente aos bons por justiça. Como a lei eterna traduzida pelo amor só
se completa plenamente no fruir de Deus (justiça perfeita), as leis civis devem buscar o
caminho das virtudes e se afastar dos vícios que são o desregramento da vontade (paixão) e do
apego demasiado dos bens inferiores, o que gera a soberba no homem de pensar que pode
construir um mundo fora da ordem da criação a fim de justificar suas más condutas. O Estado
não pode obrigar ninguém a amar ou aceitar a verdade, mas pode retribuir as condutas
humana com justiça, premiando as boas condutas e punindo as más. O livre-arbítrio é um bem
em si, mas como todos os bens da criação, está sujeito à ordem natural e, portanto, à justiça.
Os homens podem construir um Estado nos bens inferiores ou se voltar demasiadamente aos
bens inferiores e, conseqüentemente, desprezar os bens superiores. Um Estado que se pauta
pelos bens superiores é ético porque usa da liberdade para a retidão dos costumes consoante
as virtudes, por isso, chamada de virtuoso. Já um Estado que despreza os bens superiores ama
desregradamente os bens inferiores de modo a se deixar levar por eles de maneira a corromper
a forma ética de Estado, por isso, chamado de corrupto.
O livre-arbítrio do homem pode constituir as formas boas ou más de governo. Na obra
“Cidade de Deus” (Livro II, Capítulo XXI), Agostinho narra a questão dos costumes da
república romana que estavam decaídos para lembrar a repercussão das más condutas nas
formas de governo segundo as definições de Cipião nos seguintes termos:
Como lhes parecesse estar a questão suficientemente discutida, Cipião retorna ao
interrompido discurso, recorda e encarece uma vez mais a breve definição que der a
de república, que se reduzia a dizer que é coisa do povo. E determina o que é o povo,
dizendo não ser toda concorrência multitudinária, mas associação baseada no
consenso do direito e na comunidade de interesses. Fincou-se, depois, na utilidade
92
da definição para os debates. Além disso, infere, das definições que dá, existir
república, quer dizer, coisa do povo, quando bem e justamente administrada, por um
rei, alguns magnatas ou pela totalidade do povo. Por conseguinte, quando injusto o
rei, a quem, à moda dos gregos, chamou tirano, ou injustos os magnatas, cuja
conjura disse ser facção, ou injusto o povo, para o qual não encontrou nome
apropriado, salvo também se chamá-lo de tirano, a república não era viciosa, como
se elucidara no dia anterior. Segundo os ensinamentos que lhe decorriam das
definições, era em absoluto nula ou inexistente a república. Isso pelo simples motivo
de já não tratar-se de coisa do povo, pois dela o tirano ou a facção se apoderara.
Mesmo o povo, se injusto, já não seria povo, porque não seria multidão associada
pelo consenso do direito e pela comunidade do bem comum, segundo a definição
que se dera de povo.310
A ética agostiniana é transcendente ao homem e está à disposição deste, o qual pode se
voltar para ela segundo sua vontade. Em outras palavras, a ética é ao mesmo tempo
transcendente e natural ao homem, a indicar que a sabedoria é racional e prática
concomitantemente, ou seja, conhecida pela razão e pela experiência percebida. Os juízos
morais são passíveis de serem aderidos pela razão humana como bens, mas, também,
verificados historicamente como essenciais para a continuidade da civilização (veremos em
outro capítulo a genealogia da Cidade de Deus e a dos homens narrada por Agostinho através
dos tempos). A felicidade para o Estado está no fato de encontrar o sumo bem: a paz. Essa paz
é obtida com a unidade (síntese) dos elementos do amor, da justiça, da liberdade e da verdade,
seja qual for o sistema político vigente.
1.4 Graça
Vimos no subtítulo anterior que o livre-arbítrio o ser humano é apto a praticar boas ou
más condutas a partir da utilização dos bens, as quais originaram as respectivas formas de
governo. Vimos que a origem do mal está na vontade livre do homem em amar
desregradamente os bens inferiores em detrimento dos bens superiores. O homem faz parte da
ordem da criação (subordinação) e, por isso, está submetido a esta. Nessa medida, a justiça
consiste em dar a cada um o que é seu de modo a recompensar as boas condutas e punir as
más. A justiça deve ser o fundamento das leis civis. Essas não podem ser contrárias à lei
natural. A lei natural é o amor entre os homens, o qual propicia a consciência de que não
façamos ao outro o que não queremos que nos façam, e por meio do qual todas as coisas se
orientam em direção ao transcendente. O cumprimento da lei natural é a justiça perfeita
alcançada pela prática das virtudes (bens superiores). A felicidade é uma verdade imutável, a
310 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 91.
93
qual só é dispensada aos bons, isto é, àqueles que se orientam pelas virtudes (boas condutas).
Como as virtudes são bens imutáveis, o Estado agostiniano é eticamente dirigido para e
orientado pelo transcendente. O pensamento agostiniano é uma filosofia racional do
cristianismo, o qual comporta a razão e a fé. É preciso crer para compreender, e compreender
para crer. Assim, é preciso dar as razões da fé, como é necessário abrir a razão humana para a
fé. O arbítrio humano só é livre na verdade. Verdade alcançada pela fé e pela razão.
Veremos neste subtítulo que não basta a vontade para o homem viver sem o pecado
(mal moral). Santo Agostinho pretende refutar os argumentos pelagianos311
de que a justiça
perfeita é alcançada só com as forças humanas. As ideias pelagianas parecem fundir a graça
divina na existência da lei (aqui identificada com os mandamentos), ou seja, a vontade de
Deus foi revelada e cabe ao homem – moralmente neutro ao nascer - simplesmente cumpri-la
ou não segundo a vontade própria. Para os pelagianos, o auxílio divino é preciso somente para
afastar a ignorância pelo ensinamento (mandamentos) “a fim de o ser humano saber o que
deve evitar em suas ações e o que deve desejar”312
. Para Agostinho, diferentemente, a prática
da justiça e das virtudes para o devido cumprimento da lei depende da vontade humana e da
graça divina313
. Viver na justiça é um dom divino. Um Estado justo não é fruto exclusivo dos
esforços humanos, muito embora dependa da vontade humana (livre-arbítrio).
A graça divina é, assim, a quarta categoria filosófica agostiniana que sustenta toda sua
ideia de sociedade justa. Não basta a lei, por isso, é necessária a graça para a salvação do
homem teologicamente. Já filosoficamente, a função da graça parece ser um questionamento
do cumprimento da lei pela lei na medida em que a existência desta mais instiga a
infringência do que o cumprimento. Uma lei não deve ser somente obedecida, deve ser
compreendida, ou seja, dar as razões de sua existência. Vale dizer, a lei civil deve ser justa
(boa), isto é, ética. Caso contrário, impõe o medo e impede a aderência racional. A ética
agostiniana é, pois, transcendente. O pensamento agostiniano parece não suportar uma ética
fundada exclusivamente em construções humanas (autossuficiência) na medida em que estaria
sujeita ao erro de excluir Deus do debate. Deus é a Verdade, a qual é a referências das
virtudes e dos vícios. Outro aspecto filosófico da graça divina é incutir no homem a lei natural
em razão da debilidade da natureza após o primeiro erro.
311 As ideias pelagianas consistem basicamente em afirmar que as forças humanas são capazes, só por só, de
alcançar a justiça perfeita, cuja salvação não depende da graça de Deus. O pecado original atingiu somente a
Adão de modo a não ser herdado por toda a humanidade. O ser humano nasce neutro e, por isso, pode por sua
vontade própria se salvar. 312 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 20. 313
Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 512.
94
1.4.1 A justiça
A graça divina é um elemento teológico enquanto se refere à escatologia, mas, é,
também, um argumento filosófico que permite introduzir a ideia de perfeição à justiça
humana – por isso, chamada de justiça divina – para elevá-la a um nível ontológico de
existência autônoma em relação ao mero poder ou influências político-sociais (circunstâncias
de momento). O que se pretende é afirmar que a verdadeira justiça é a justiça perfeita (divina)
sob o manto filosófico da graça. Veremos, assim, que a graça, mais que um elemento etéreo,
repercute na concretização da justiça punitiva ao não permitir que se use da pena como mera
vingança ao infrator, mas, tão-somente, para punir o crime na justa medida.
O caminho para a verdade passa, obrigatoriamente, pela graça divina, na qual
A vontade humana é de tal modo ajudada por Deus para praticar a justiça, que, além
de o homem ser criado com o dom da liberdade e apesar da doutrina que o orienta
sobre o modo de viver, receba o Espírito Santo, que infunde em sua alma a
complacência e o amor do Bem incomunicável, que é Deus, mesmo agora quando
ainda caminha pela fé, e não pela visão.314
A graça divina é o auxílio de Deus para que o homem possa realizar a justiça humana
de acordo com a justiça divina. A vontade humana mais a graça podem levar o homem a
realizar neste mundo a justiça conforme os ditames da lei natural que, em última análise, é a
lei eterna que consiste em amar a Deus e ao próximo. A justiça não é algo etéreo, sobre a qual
o homem elucubra, a respeito, antes é uma virtude que deve ser realizada já neste mundo315
.
A liberdade humana em cumprir a lei não autoriza o homem a estabelecer a sua
própria justiça, segundo os moldes agostinianos de justiça perfeita. A justiça perfeita não é
alcançada pelo uso da liberdade humana, mas é manifestada por Deus. A lei leva ao temor,
enquanto o amor à justiça perfeita. A fé leva ao aperfeiçoamento do amor e, por isso, a graça é
necessária para a prática da justiça perfeita. Em outras palavras, a justiça divina só é possível
com a graça divina. O homem que pensa ser a justiça obra exclusivamente sua comete o erro
da soberba ao se vangloriar das obras humanas como se fossem definitivas316
.
A visão agostiniana da justiça é escatalógica ao atribuir a ela um sentido de
aperfeiçoamento do amor segundo a graça. A graça serve para libertar o homem da opressão
314 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 20. 315 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
24. 316 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
36.
95
da lei a fim de viver a justiça perfeita. Por isso, quem vive a própria justiça não vive segundo
a justiça divina. Não basta agir conforme a lei por temor, na medida em que significaria
opressão de um lado e despertaria a intenção de transgredi-la de outro. Os seres humanos
devem viver os preceitos com o auxílio de Deus. O espírito da soberba faz com que o gênero
humano estabeleça a própria justiça para ameaçar, enquanto o Espírito divino faz com que os
homens vivam a constância da justiça com a consciência de que precisam da graça.
A justiça perfeita é a lei eterna, ou seja, a lei do amor presente na consciência do
homem e, por isso, natural a todos os homens na medida em que o homem é homem por
natureza. Por um lado, a justiça divina é o amor à justiça e, por isso, o homem a cumpre com
liberdade. De outro modo, a justiça humana causa o temor da punição e, por isso, o homem
não a cumpre com liberdade. Enquanto a justiça humana se cumpre contra a vontade própria
(dominação), a justiça divina se cumpre com vontade própria (obediência). A justiça divina
liberta porque nos permite participar dos bens superiores até o Sumo Bem, e a justiça humana
oprime porque nos mantém nos bens inferiores até o apego desmedido destas, a se tornar um
mau hábito (vício) apto a gerar uma necessidade fora da ordem da criação.
Assim, a justiça divina é considerada superior, imutável, à humana. O amor é a lei
eterna fundada na verdade (sabedoria), enquanto a sanção é preceito da lei civil fundada na
verossimilhança ou no provável (inteligência exclusivamente humana). Em síntese,
poderíamos afirmar que a justiça divina é o amor e a justiça humana a dominação no sentido
de que a primeira nos abre para um novo conhecimento enquanto a segunda nos prende ao
conhecimento humano. A lei civil, enquanto abrigo da lei natural, imprime o poder da força
somente em razão de obrigar a pessoa a agir de acordo com o bem comum. A força é, então,
elemento que oprime quando visa à mera dominação ou elemento que liberta quando visa ao
alcance do bem comum.
1.4.2 Os fins do Estado e da Sociedade: a paz e a felicidade
O que Agostinho pretende é conformar as leis temporais (civis) às exigências da lei
eterna pela graça de Deus, a qual é dispensada a todos os homens gratuitamente. A justiça
humana não pode prescindir da justiça divina em razão da possibilidade de cair em erro,
sendo o primeiro o do orgulho do homem em pensar que pode por si mesmo construir um
mundo justo. A lei civil, autônoma, deve servir de complemento para o cumprimento da lei
natural. E isso por um motivo simples: o amor é a lei eterna, o qual procede de Deus. Como a
96
justiça perfeita é a prática do amor que só pode ser alcançada pela graça de Deus, o mundo
construído em bases unicamente humanas é um mundo sem amor e, portanto, sem justiça.
Esse mundo sem amor é um mundo opressor; ao contrário, o mundo construído na caridade é
um mundo livre. Essa é a verdade da liberdade: a excelência da liberdade é a prática da
caridade, sendo a justiça divina o fundamento comum das leis civis para a prática de uma ação
comum dentro do Estado. A liberdade equivale ao livre-arbítrio de modo a existir onde houver
a graça divina. Onde existir o pecado (mal moral) não existe a liberdade e, portanto, não se
ama livremente a justiça317
.
Os bens inferiores, passageiros, como o dinheiro, o prazer e as honras devem se
orientar em direção à caridade de modo que sejam meios para alcançá-la. O apego desmedido
aos bens inferiores pode afastar o ser humano da caridade. Se os homens unidos por um
vínculo comum editarem leis civis que coloquem no devido lugar (ordem) os bens inferiores e
busquem os bens superiores (virtudes) por meio do bom uso da liberdade (bem médio), o
Estado é justo. O bom uso da liberdade faz com que a liberdade de um seja a liberdade de
todos em razão da busca dos bens superiores (imutáveis) serem aptos para constituir uma ação
unitária em vista do bem comum. O bem comum do Estado é a paz. Não se tem paz se o
homem se inclinar demasiadamente para os bens inferiores, os quais ocasionam uma
necessidade pessoal em detrimento da coletividade. A paz é o sumo bem a se buscar no
Estado.
E por qual razão os homens buscariam uma justiça divina traduzida pela lei do amor se
podem construir uma sociedade tranquila e segura com base na inteligência humana
exclusivamente? O filósofo Agostinho apresenta uma resposta simples: a vida eterna que
consiste no conhecimento do Deus único e verdadeiro318
. Isso porque, a felicidade só se
aperfeiçoa em Deus. A felicidade, pessoal ou de um povo, nunca é completa sem conhecer o
Sumo Bem. Os bens excelentes só são alcançados com a graça de Deus. O mais excelente é a
caridade. Se esse raciocínio de Santo Agostinho for verdadeiro, o homem só é capaz de
praticar a caridade com a graça de Deus. Onde está a caridade está Deus. O Estado só é justo
onde está a caridade, a qual só se perfaz com a cooperação da graça. Um Estado que rejeita a
Deus prescinde do amor e, por isso, é menos justo. Isso significa a privação do bem mais
excelente para a felicidade do homem, muito embora possamos constatar certa tranquilidade e
317 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
79. 318
Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
58.
97
segurança oferecida pelo Estado. Em outras palavras, um Estado tranqüilo e seguro não é um
Estado feliz necessariamente.
O cumprimento da lei retém as paixões humanas que podem ser incitadas pela própria
lei por provocar a má cobiça de transgredi-la319320
, a ocasionar uma estabilidade momentânea
(paz humana) de acordo com ajustes feitos pela inteligência humana (inteligência mais força).
Despertadas as paixões rompe-se o vínculo da concórdia e se perpetua a força como meio apto
a satisfazer a necessidade gerada por maus hábitos (vícios). Por outro lado, a aderência à lei
por amor conquistado pela vontade com a graça de Deus gera a paz definitiva (paz divina). A
paz definitiva é o conhecimento de Deus.
No pensamento do filósofo, a felicidade é o amor em termos cristãos no sentido de
doação ao outro pelo conhecimento de Deus (sabedoria mais caridade). Diferentemente, a
felicidade exclusivamente terrena parece consistir no amor de si próprio com um viés
egoístico. A felicidade é a conquista dos bens superiores até o Sumo Bem com a graça de
Deus, ou seja, ao Tudo. A falta da caridade (bem mais excelente) com o afastamento dos bens
superiores e o apego desmedido dos bens inferiores leva o ser humano ao nada (privação
absoluta de Deus).
Uma sociedade boa e justa não deve prescindir de uma verdade racional comum entre
os homens. Assim, o sistema político que afasta Deus está fadado a desaparecer; já aquele que
não O exclui tende a propiciar a felicidade aos cidadãos. Parece, assim, que quaisquer
sistemas políticos que visem ao bem comum (felicidade e paz) não podem prescindir da lei
natural. Como a prática dessa é a lei eterna comum a todos os homens que só é entendida pelo
conhecimento de Deus. Nesse sentido, Deus não pode ser esquecido ou rejeitado quaisquer
que forem os sistemas políticos por que significaria impor leis civis injustas capazes de
dominar os cidadãos na medida em que dirigidas unicamente aos bens inferiores sob a ótica
do interesse do mais forte, e, não, em razão um fundamento natural capaz de libertar o
homem. Um Estado fundado sob os bens inferiores – mesmo que haja tranquilidade e
segurança – não é livre em razão de o homem poder perdê-los contra a sua vontade. Caso as
leis civis tenham a justiça objetiva (divina) como lastro, o Estado é livre na medida em que
fundado em bens superiores, os quais os cidadãos não podem perdê-los contra sua vontade.
1.4.3 A lei civil: o bem e o bom
319 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
24. 320 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 502.
98
O filósofo faz uma crítica até mesmo à obediência aos preceitos (mandamentos) de
Deus como medida de justiça. A vontade humana em obedecer aos mandamentos divinos não
é suficiente para tornar o homem justo (justificado). O verdadeiro cumprimento da lei ocorre
pela fé, a qual inscreve na consciência humana a lei do amor. Só assim o homem pratica a
justiça. Agostinho cita o apóstolo São Paulo ao dizer que “A letra mata, mas o Espírito
comunica a vida”321
.
Agostinho assevera que o homem cumpre naturalmente o que é prescrito pela Lei
(mandamentos) por força da graça que restaurou a natureza de forma a inscrevê-la no coração
humano novamente322
.
Assim, a abundância de sua doçura, ou seja, a lei da fé, a caridade gravada e
infundida nos corações se aperfeiçoem nos que nele esperam e, desse modo, a alma
pratique o bem uma vez curada não pelo temor do castigo, mas pelo amor da
justiça.323
Sendo assim, a liberdade é um bem e o bom uso dela é um bem também. O bem em si
e a boa prática que se faz da liberdade procedem de Deus: o bem por existir a partir de Deus e
o bom uso por refletir a graça divina no homem. O bom uso dos bens faz o aperfeiçoamento
da justiça humana em direção à justiça divina. Se, por um lado, a perfeição humana é inviável
por causa do corpo corruptível, por outro lado, a pratica do ilícito pode ser evitada com um
mínimo de justiça.
A noção de pecado original permite a Agostinho a ter uma visão mais realista do
homem de que é capaz de evitar o mal, mesmo que não consiga praticar o bem totalmente.
Aqui o pensador procura se afastar do código binário de bem e mal (maniqueísmo), a inventar
um terceiro tipo: o médio. Essa noção permite uma visão otimista do mundo na medida em
que suprime a divisão entre justiça divina e humana como algo estanque. A Cidade terrena
(Estado) pode ser boa, e, não, necessariamente má, de tal modo que afirma ser a lei boa por
proibir o pecado, muito embora os maus façam mau uso da lei324
. O raciocínio agostiniano é
aguçado, pois outorga à lei civil a qualidade de moralmente boa ao evitar e punir o mal,
apesar de reconhecer a insuficiência legal para evitar o mau uso da própria lei civil
considerada um bem necessário para o Estado (elemento de união).
321 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 13. 322 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
70. 323 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 78. 324 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 97.
99
Podemos não concordar com a visão de justiça agostiniana que busca suas bases em
Deus, mas também não podemos prescindir do realismo com que monta sua teoria. Essa nada
mais é do que fazer com que a justiça seja o fundamento das leis civis. Nada mais intuitivo e
visível do que o homem se indignar com leis consideradas más. Devemos ressaltar, uma vez
mais, que o mal está na vontade humana, e não na natureza humana, embora esta tenha sido
atingida com o primeiro pecado e se encontra debilitada. Com isso, chega-se à conclusão de
que o mundo e o homem não estão condenados ao mal, pois este não é proveniente da
natureza. É possível reagirmos às injustiças em busca de um mundo mais justo com o auxílio
da graça divina. E nada há de condenável em partir de uma categoria como o pecado original
para tecer considerações sobre o Estado. Rousseau partiu da categoria do bem selvagem para
fundar sua teoria de Estado.
O problema da justiça agostiniana parece estar, essencialmente, na disposição dos bens
(inferiores, médios e superiores) e no bom uso que deles se faz para disciplinar o Estado em
bases éticas em direção ao bem mais excelente chamado de caridade. Isso não impede, antes
auxilia, na tese de que é possível a justiça perfeita neste mundo. A prática das virtudes – boas
condutas – é o modo pelo qual Agostinho encontra uma forma da justiça divina aperfeiçoar a
justiça terrestre. Por isso, a noção de graça divina é tão importante no pensamento cristão na
medida em que se reconhece a necessidade da lei como bem, mas, ao mesmo tempo, conclui
pela sua insuficiência para conformar uma sociedade, que, por sua vez, pode manipular uma
lei moralmente boa.
Em palavras claras, o Estado agostiniano não pode prescindir de Deus. Em termos
práticos, a graça divina não deixa espaço para que o Estado seja construído pelo homem
exclusivamente, bem como não identifica contraposição desta com a natureza. A par desse
argumento mais teórico, existe um argumento prático de respeitar e considerar as razões ético-
religiosas dentro do Estado.
À época, Agostinho procurava combater a tese pelagiana de que “está em poder do
homem a eficácia da virtude”325
. Isso porque, a graça divina é identificada com a natureza
pelos pelagianos de modo que a liberdade do homem não foi afetada pelo pecado original e,
assim, o homem já tem tudo o que é preciso para a prática da justiça. Não podemos responder
questões atuais com base em conclusões passadas que abarcavam questões históricas de
momento, mas, também, não podemos deixar de indagar: se os direitos fundamentais são
considerados algo de virtuoso para a sociedade contemporânea, seria possível construí-los em
325 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
106.
100
bases exclusivamente humanas? Ou os direitos fundamentais como vida e liberdade
guardariam algo de simbólico em seus significados que não poderia ser descartado?
Essas perguntas não fazem parte do objeto desta tese – o Estado ético-político em
Agostinho – e, por isso, não vamos aprofundar nesta dissertação a essência dos direitos
fundamentais e suas aplicações, no entanto, não podemos deixar de mencionar o fato de que a
tese cristã de Estado necessita da categoria “graça” para se pautar pelas virtudes na medida
em que a natureza encontra-se debilitada.
1.4.4 A lei natural como fruto da graça
A ideia da graça é dirigida não só para a prática da Lei (Escrituras), mas, notadamente,
para a lei natural que também só se cumpria pela graça326
. A liberdade e a graça é o ponto do
debate que refletem duas visões de ver o homem. Pela primeira com a exclusão da segunda,
um homem íntegro capaz de caminhar sozinho na construção do mundo e, consequentemente,
do Estado; pela segunda com a inclusão da primeira, um homem que reconhece sua fraqueza
para, então, construir com o auxílio de Deus.
Agostinho preferiu optar pela segunda categoria (graça divina mis liberdade) como
elemento para fugir da insensatez humana. Na visão dele, não aceitar a graça divina seria um
modo de tentar justificar os erros humanos. A insensatez estaria em admitir que o homem
tentou construir um Estado justo apesar de fracassar. O fracasso estaria justificado desse
modo. Por fracasso se quer dizer pecado, vício ou injustiça. Assim, é inadmissível tentar
justificar o mal se podemos ter gratuitamente o auxílio de Deus para não errar.
É interessante observar que ambas as formas de ver o homem não exclui Deus, embora
exista uma diferença crucial: Pelágio defendia a capacidade humana, por si só, de pôr em
prática as virtudes após o advento da Lei e de Cristo, exemplo a ser seguido; Agostinho refuta
essa tese para afirmar a necessidade da graça para o homem agir justamente. Se para o
primeiro a intervenção de Deus não era mais precisa, para o segundo era indispensável. Por
isso, o Estado ético-político de Agostinho não pode prescindir de Deus mesmo depois da Lei
(Escrituras).
Da mesma forma a categoria de “lei natural” é indispensável no pensamento
agostiniano por trazer à tese de que esta foi inscrita na natureza humana pelo Espírito
gratuitamente (graça), a qual serve para o homem ter uma vida reta por meio da graça. A lei
326
Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
113.
101
natural é um modo de o pensador dispensar a todos os homens a presença inevitável de Deus.
A frase “A volta para a justiça exige um médico”327
indica, claramente, a presença de Deus
para a justiça. Podemos dizer o seguinte: a justiça divina é tão necessária para a lei civil
quanto Deus para a justiça perfeita.
A justiça de Deus é a lei da liberdade e do amor. A prática da caridade é a grandeza da
justiça divina. O progresso na justiça só é possível mediante a graça. Esta resgata o homem da
natureza decaída e o faz viver retamente.
1.4.5 A Carta 155 de Agostinho a Macedonius328
O tema central na carta 155 de Agostinho a Macedônio é o contraste entre o
ensinamento cristão da graça e a autossuficiência do homem prudente (virtuoso) defendida
pelos filósofos pagãos. A questão que se coloca é a necessidade ou não de transformar as
virtudes cívicas a partir da lei eterna, incutida no homem como lei natural, de amor a Deus e
ao próximo.
Para Agostinho as obrigações de uma vida reta devem ser derivadas e ter como fonte o
verdadeiro Deus. Os que vivem segundo a corrupção da carne pretendem ser os fundadores e
autores das próprias virtudes. A vida bem-aventurada (vida beata) deve ser, assim, evitada
segundo os filósofos pagãos que não consideram a graça divina.
Mas se isso é certo, os males do corpo (sofrimentos físicos, surdez, cegueira) tornam
a vida infeliz e fazem o homem pensar a autossuficiência como atributo incerto. O filósofo
cristão afirma que somente Deus pode nos livrar ou fazer suportar a miséria da vida mortal e
passageira. As virtudes cristãs têm a mesma fonte das virtudes cívicas, as quais constituem
parte da natureza humana. Para Agostinho é um erro, tolice, loucura e decepção pensar que o
homem pode obter a virtude por si mesmo. O homem que tende por este caminho sobrevive
horrivelmente nesta vida, está sujeito a variadas tentações e as mais variadas formas de
corrupção, bem como destinado para a mais justa punição. Assim diz:
Que tolice, que loucura, que decepção, para o homem mortal confiar em si mesmo
para obter a bem-aventurança! Depois de tudo, ele está sobrevivendo uma vida
horrível aqui, sua carne e seu espírito sujeitos a mudança, sobrecarregado por
muitos pecados, sujeito a muitas tentações, exposto a tamanha variedade de
327 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.
135. 328 Macedônio vigário da África (413-14), encarregado da administração da diocese civil da África. Como
católico cristão, era um devoto de Agostinho como um filho espiritual. Agostinho o enviou o primeiro dos três
livros da Cidade de Deus. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:
Cambridge University Press, 2011, p. 240.
102
corrupção, e destinado for a mais justa punição [...] Agora, eu sei que você está
voltado para os assuntos públicos, veja então como as sagradas escrituras declaram
claramente que a fonte da bem-aventurança humana é a mesma das civis 329
A vida bem-aventurada não pode ser confundida com o bem-estar terreno330
como
defendem os pensadores pagãos que confiam na própria virtude e na abundância das riquezas.
A verdadeira virtude deve ser buscada em Deus, fonte de todo bem. Politicamente, Agostinho
afirma que a mesma sorte atinge o cidadão e a cidade, vez que esta é uma associação de
homens. Com isso, as virtudes cívicas devem ser as verdadeiras virtudes. Agostinho se dirige
a Macedônio da seguinte forma:
Aquilo é o que nós queremos para nós mesmos e para a cidade da qual somos
cidadãos. A fonte da bem-aventurança não é uma coisa para o ser humano e outra
para a cidade: uma cidade é de fato não outra coisa do que uma associação
consensual de seres humanos.331
A prudência, a temperança, a fortaleza e a justiça são virtudes entendidas como úteis
para a vida reta neste mundo. A prudência consiste em saber escolher, a fortaleza em suportar
o sofrimento, a temperança em resistir à tentação e a justiça em não ser soberba.
No mesmo sentido, o filósofo cristão afirma uma regra ética de considerar o outro não
como um estranho, mas como parte da mesma natureza humana e participante da mesma
razão332
. Esse argumento é de capital importância para o pensamento da civilização ocidental
na medida em que os homens devem se comportar não como indiferentes ou inimigos uns dos
outros, antes devem de unir para o bem-comum. Segundo Agostinho, essa lei natural é
proveniente da lei divina de amor a Deus e ao próximo, a se tornar uma exigência moral para
a convivência humana, notadamente, no Estado.
O amor a si em desprezo a Deus e ao próximo torna o homem injusto em suas ações.
Ao contrário, as virtudes nos permitem cumprir a lei natural e tornar a vida humana boa,
mesmo que o sofrimento e a tortura aflijam o homem virtuoso de modo a torná-los mais
suaves com a esperança da recompensa futura.
329 No original: “What folly, what madness, what self-deception, for a mortal man to trust himself to win
blessedness! After all, he is living out a grim life here, his flesh and spirit subject to change, burdened by so
many sins, subject to so many temptations, exposed to such a variety of corruption, and destined for the justest
punishement.[...] Now I know that you are devoted to public affairs; see then how clearly the sacred writings
declare that the source of human blessedness is the same as that of civic blessedness”. Cf. ATKINS, E.M.,
DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 93. 330
Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 94. 331 No original: “That is what we want for ourselves and for the city of wich we are citzens. The source of
blessedness is not one thing for a human being and another for a city: a city is indeed nothing other than a like-
minded mass of human beings”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:
Cambridge University Press, 2011, p. 94. 332 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 98.
103
1.4.6 As Cartas 91 e 104 a Nectarius333
e a Carta 138 a Marcellinus334
Agostinho não despreza as virtudes cívicas, as quais são consideradas boas para as
questões temporais. Cristãos e pagãos são beneficiados pela justiça, paz e ordem da
sociedade. O Cristianismo é a religião que, de fato, está ligada e protege as virtudes cívicas,
segundo Agostinho. O paganismo, ao contrário, causa muitos prejuízos, inclusive, com
comportamentos depravados a partir da adoração de falsos ídolos, como ao deus Júpiter ou a
deusa Flora335
. Com base em Cícero, Agostinho aposta nas virtudes como elementos
necessários para o bem-estar. O Cristianismo é, assim, fonte de defesa das virtudes, as quais
são pronunciadas e escutadas nos templos católicos.
As virtudes são bens que educam o espírito humano e tornam o homem bom no
serviço da cidade, sem limite ou término. Quando a cidade está cheia de virtudes há o
florescimento dela. Isso é dito de forma clara na Carta 91 a Nectário:
Realmente, tais virtudes estão sendo ensinadas e aprendidas nas igrejas que estão se
espalhando por todo o globo, como galerias das leituras sagradas para os povos do
mundo [...] e o povo deve ser convertido para uma adoração do verdadeiro Deus e
para a castidade e hábitos piedosos. 336
Assim, Agostinho pretende evitar os exemplos destrutivos da cidade capazes de serem
imitados. A graça de Deus permite que a bondade seja preservada e a correção (justiça
punitiva) seja aplicada com moderação (“the correction that we struggle to aplly with
moderation”337
).
A misericórdia de Deus, na visão agostiniana, impede que alguém seja punido com
severidade pelos cristãos ou por outros, impede também que a paz (ordem) seja conseguida
333 Necatário foi um pagão que nasceu em Calama, que cresceu em direção a uma alta posição a serviço do
império romano. Ele suplicou a Agostinho por suavidade aos não-cristãos, cidadãos de Calam, que eram
acusados de cometer atos de violência contra a igreja por oito dias em razão da ilicitude de uma cerimônia pagã
em frente a esta. 334 Flavius Marcellinus foi um tribuno (comandante militar) e notário (mantenedor da ordem). Ele foi um
católico e amigo de Agostinho. Foi indicado pelo imperador Honório a presidir a conferência de Cartago.
Suspeito de conluio com Heráclito contra Honório, foi preso e executado em 13 de setembro de 413 d.C. Cf.
ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011,
p. 240. 335 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 4. 336 No original: “In fact, though, such behavior is being taught and learnt in the churches thar are springing up all
over the globe, like sacred lecture halls for the peoples of the world.[...] and people must be converted to a true
worship of God and to chaste and pious habits”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political
writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 3. 337 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 5.
104
corretamente (legalmente) de modo a punir os culpados a distingui-los dos inocentes338
.
Agostinho afirma não só a moderação da pena, mas também a imputação da pena ao crime
após identificar os infratores legalmente. Em outras palavras, a moderação da pena, a
imputação da pena ao crime (fala-se que nem todos os pecados são iguais339
) e a identificação
do criminoso constituem a justiça punitiva de acordo com um julgamento verdadeiro e
prudente340
.
No caso específico, alguns pagãos se comportaram de forma ilegal em frente a uma
igreja, onde o clérigo tentou evitar que a situação ocorresse de forma inútil. Ao contrário, a
igreja foi apedrejada; o que reflete a intolerância dos pagãos frente aos cristãos, que
aprisionaram, torturaram e mataram alguns cristãos. É o famoso episódio em que parte da
biblioteca de Alexandria foi destruída.
A graça de Deus infunde a lei natural no homem de não retribuir o mal com o mal,
antes retribui o mal com o bem. O final da Carta 91 de Agostinho a Nectário dispõe que
nós devemos (enquanto preservando a mansidão e a moderação cristã) fazer um
esforço neste acontecimento para impedir que outros imitem os culpados, as
maldades, ou mesmo rezar para impedir que outros os copiem uma vez eles sejam
corrigidos [...] nós estamos tão ansiosos para protegê-los que estamos prontos para
nos expor derramando do nosso próprio sangue.341
Já na Carta 104 a Nectário, Agostinho o chama a atenção de que a pena de morte não
é melhor do que despojar os criminosos dos bens materiais. A morte, na visão dos epicuristas,
põe fim ao mal na medida em que a alma é mortal, ao contrário de Cícero que diz que a alma
não é destruída mas parte ao deixar o corpo342
. Agostinho completa e diz que a morte é o fim
dos males
somente para aqueles que eram castos, devotos, fiel e inocente; não para aqueles que
estavam inflamados por desejos de mesquinharias e vaidades nesta vida passageira,
que apesar de pensarem que são felizes aqui dão a prova de serem infelizes pelo fato
de que suas vontades são corruptos.343
338 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 5. 339 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 19. 340 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 5-6. 341 No original: “we must (while preserving gentleness and Cristhian moderation) make na effort in this affair to
deter others form imitating the culprits, wickedness, or even to pray that others will imitate them once they are
reformed [...] we are so eager to secure them that we are ready to risk shedding our own blood [...]”.. Cf.
ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011,
p. 8. 342 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 12. 343 No original: “but for those only whose lives were chaste, devout, faithful and innocent; not for those who are
inflamed by desire for the trifles and vanieties of this temporary life, who although they think they are happy
here are proved to be miserable by the fact that their wills are corrupt”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J.
Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 12.
105
E acrescenta que nenhum cidadão que agride os cristãos deve ter uma pena que lhe
retire bens de forma a suprimir as necessidades naturais344
ou que lhe inflija males
corporais345
ou que lhe impute a pena de morte ou que sirva como sede de vingança346
. A lei
natural de não retribuir o mal com o mal, antes o mal com o bem, é capaz de evitar que a pena
seja dirigida como vingança à pessoa do condenado mesmo se isso for um dever legal. Ao
contrário
agora você poderia alcançar isso por meio da verdade e amor devoto [...]mostrando
verdadeira preocupação por seus cidadãos, trazendo a eles não vazias e temporárias
alegrias, nem imunizar da punição pelos crimes [...] mas para a graça da felicidade
eterna.347
Na Carta 138 a Marcelino, Agostinho tenta refutar a educação liberal348
,
notadamente, do círculo do senador Volusiano e, posteriormente, prefeito de Roma em 421
d.C, de que os ensinamentos cristãos são incompatíveis com a ética da cidade de forma a
conciliar o perdão e a mansidão (por obra da graça) com a punição para o bem-estar da
comunidade. O preceito (comando divino) de não retribuir o mal com o mal, antes com o
bem, é benéfico e proclamado nas igrejas de forma que não procedem as acusações dos
pagãos de que o Cristianismo é hostil ao Estado. De fato, esse preceito proporciona a
estabilidade, força e crescimento da comunidade, ou seja, a paz.. Uma comunidade
(estado/cidade) nada mais é do que “um grupo de homens unidos pelo vínculo específico da
paz”349
. A paz é o fim do Estado que se torna frágil com a guerra civil, precisamente, quando
a moral do povo está depravada e corrupta, especificamente, quando se rende culto a falsos
deuses350
.
Prefere-se criticar o comando de não retribuir o mal com o mal do que aprender com
ele de que o inimigo maior do homem é interior, mais do qualquer outro inimigo externo. Por
isso, vencer o mal a partir da bondade é obra da fé e da justiça, a qual é mais eficaz do que
344 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 13. 345 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 13. 346 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 16. 347 No original: “now you could reach it through a true and devote love [...] by shouwing true concern for your
citizens, bringing them not to empty and temporary enjoyment, nor to immunity from punishment for the outrage
[...] but to the grace of everlasting happiness” . Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political
writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 17. 348 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 34. 349 No original: “a group of men united by a specif bond of peace”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J.
Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 35. 350 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 35.
106
garantir a segurança pela força e violência. Assim, o homem deve ser paciente e estar
preparado para suportar a hostilidade de outros cidadãos. Acrescenta Agostinho que
Se a comunidade terrena observasse os preceitos cristãos, então até mesmo as
guerras seriam empreendidas em espírito de benevolência, de modo que se proveria
mais failmente aos vencidos em vista de uma sociedade pacificada na piedade e na
justiça351
Agostinho critica os que atacam o Cristianismo para lhe imputar um malefício que
não possui, antes é responsável por elevar as virtudes cívicas em detrimento da corrupção
política e dos vícios pessoais. O filósofo cristão chega a intimar os que assim acusam os
cristãos para mostrar a insensatez do que se afirma a respeito da cristandade. As falsas
acusações são consideradas um escândalo e uma perseguição sem motivo na medida em que
ter governantes, juízes, esposos, esposas, filhos patrões e servos cristãos são um benefício ao
Estado. Como um hino em defesa do Cristianismo, Agostinho proclama:
Então aqueles que dizem que o ensinamento de Cristo é inimigo do Estado
(comunidade), nos dêem um exército de soldados tais quais o ensinamento de Cristo
exigiria. Dêem-nos províncias, maridos e esposas, pais e filhos, patrões e
empregados, reis, juízes, e finalmente contribuintes e fiscais que a doutrina cristã
exige. Então ousem chamá-la de inimiga da comunidade política! De fato, deixem
que eles hesitem em admitir que, se a doutrina cristã fosse observada, contribuiria
para a ordem do Estado.352
Na perspectiva agostiniana, a depravação dos costumes sociais aumentou com a
imitação gradual da licenciosidade dos cultos pagãos em todos os setores, como, por exemplo,
arte, esculturas, teatro e festas. A decadência de Roma é consequência direta da riqueza que
gerou a depravação que não veio de fora, mas invadiu as mentes dos cidadãos em direção à
corrupção. A afirmação que melhor resume os acontecimentos está, justamente, na Carta 138
a Marcelino: “Quando eles eram pobres, os romanos preservaram seus costumes incorruptos,
mas uma vez que ficaram ricos, permitiram uma terrível depravação, alguma coisa pior do
que qualquer inimigo, que não rompeu os muros da cidade, mas sim os pensamentos e
vontades dos cidadãos”353
. No Livro I, Capítulo XXI, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho já
351 No original: “If the earthly commonwealth observes Cristian precepts in this way, then even wars will be
waged in a spirit of benevolence; their aim will be to serve the defeated more easily by securing a peaceful
society that is pious and just”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:
Cambridge University Press, 2011, p. 38. 352 No original: “So let those who say that the teaching of Christ is opposed to the commonwealth give us an
army composed of the sort of soldiers that the teaching of Christ would require. Let them give us provincials,
husbands and wives, parents and children, masters and servants, kings, judges, and finally even tax-payers and
tax-collectors, of the sort that this teaching of Christ demands. Then let them dare to say that this teaching is
opposed to the commonwealth! Indeed let them even hesitate to admit that, if it were observed, it would
contribute greatly to the security of the commonewealth”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine:
political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 39. 353 No original: “[...] For when they were poor, the Romans preserved their characters uncorrupted; but once they
were wealthy, they allowed a terribe depravity, something worse than any enemy, to breach not the city walls,
107
aponta a gradação dos vícios com que foi crescendo nos romanos a paixão de reinar de modo
que o Senado voltou a atenção para a avareza e libertinagem para frear os vícios em direção às
virtudes e liberdade necessárias para o crescimento do Império354
.
Para Agostinho, somente Deus nos concede o auxílio (Grace) para evitar o mal355
. Às
antigas virtudes cívicas romanas como a frugalidade, a continência, a fidelidade conjugal, a
pobreza, a mansidão, a clemência e a concórdia são acrescentadas a verdadeira piedade para
Deus, pela qual a graça divina faz florescer uma sociedade justa, partícipe da Cidade de Deus
e mantenedora da perfeita concórdia entre os cidadãos (Carta 138, parágrafos 10, 11 14 e
17356
). Essa piedade cristã faz com que os cristãos possam suportar os males que não são
punidos com mansidão357
. O Cristianismo não é uma religião de violência, mas, sim, capaz de
resistir ao mal com mansidão pela graça de Deus.
but the very minds of the citizens”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New
York: Cambridge University Press, 2011, p. 40. 354 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 61. 355 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 40. 356 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 35-41. 357 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,
2011, p. 40.
108
2. DELINEAMENTOS JURÍDICO-POLÍTICOS DE ESTADO
NA OBRA “CIDADE DE DEUS”
2.1 Origem das Cidades celeste e terrena
A montagem da teoria agostiniana de Estado remonta a duas Cidades, as quais “andam
ambas misturadas e confundidas uma com a outra”358
. A intersecção entre o divino e o
terrestre e os respectivos bens ocorre neste mundo desde já como condição necessária para a
formação do Estado com base em uma justiça subsistente à origem do mundo.
A Criação é elemento primordial na origem da Cidade Santa que Deus fundou para
que todos tivessem uma vida feliz e sábia. Percebe-se que a felicidade e a sapiência estão na
origem do mundo como bens provenientes da criação. São esses bens que o Estado terreno
precisa buscar e, que, não raras vezes, entra em confronto.
Agostinho define a Cidade celeste como aquela que “rendeu à sua obediência (...) por
disposição da soberana Providência, todos os engenhos humanos”. A existência de uma
sociedade justa é admitida a partir das Escrituras, que atestam sua veracidade como realidade
presente. Por certo, cuida-se de uma alegoria admitida para fins de construção de uma
doutrina de Estado, na qual o homem com a razão e a inteligência pode unir-se a ela neste
mundo.
Agostinho tem a ambição de construir o Estado utópico cristão em direção à
felicidade, assim como o homem contemporâneo o pretende. A diferença está no caminho a
ser percorrido. O Estado agostiniano é eminentemente caracterizado por uma ética
transcendente enquanto o Estado moderno plural se forma por uma ética imanente ao homem.
A Criação é a categoria de que se serve para fundamentar esta ética transcendente. Desde já,
fazemos a ressalva de que Agostinho não pretende construir um Estado teocrático, antes pensa
a sociedade de acordo com o momento em que vivia no governo romano, onde o poder
temporal e o eclesiástico se entrelaçavam a todo o momento. O filósofo cristão não pretende
usurpar o poder temporal, antes direcioná-lo ao caminho das verdadeiras virtudes, bem como
afastar a idéia de que os cristãos seriam os responsáveis pela ruína do Estado. É nesse
ambiente que Agostinho encontra respostas a favor de um Estado ético e de afastar a ideia de
que o Cristianismo é prejudicial ao Estado.
358 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 17.
109
Por óbvio o caminho pressupõe um destino. O objetivo é Deus, origem da felicidade.
Filosoficamente, isso traz uma razão exterior à totalidade dos objetos capaz de fundamentá-
los. O Estado só é justo se pratica a justiça, que, por sua vez, tem uma razão em si. Tanto
Deus como a Justiça (divina) são controversos ou insuficientes para fundamentar um Estado
democrático contemporâneo pluralista em que nem todas as pessoas aceitam a tese da criação,
quiçá de Deus.
Isso não desmerece a tese de Agostinho da forma pela qual o Estado pode alcançar a
felicidade, na medida em que o percurso propicia ao homem viver retamente, ponto comum
entre crentes e não crentes.
A Criação permite o raciocínio de que ambas as cidades tiverem origem a partir de
Deus de modo perfeito, sendo que a terrena deve à celeste obediência após a natureza ficar
debilitada pelo pecado original. Agostinho encontra uma maneira inteligente de construir um
modelo de sociedade perfeita a partir da Criação que exige um ato de fé, sem descartar uma
experiência da teologia neste mundo como forma de fundamentar racionalmente sua doutrina
de que a felicidade e a sabedoria podem ser o fim do Estado desde que se unam a uma
realidade superior àquela experimentada neste mundo ainda debilitado.
Por obra da criação, o “logos” dispôs todas as coisas em certa ordem, as quais as
inferiores estão submetidas às superiores de modo que a conformação de toda construção
humana, particularmente, do Estado, está ligada à Cidade Celeste inevitavelmente. A
aspiração humana de felicidade reflete, de igual modo, no desejo de chegarmos a um Estado
justo em que todos possam ser felizes. A razão pela qual se admite obediência ao Estado não
pode ser outra que não a mesma pela qual o Estado se submete à Cidade Celeste, ou seja, o
encontro com a Sabedoria e a felicidade.
Para o pensador, as Cidades remontam a distinção entre os anjos. Por qual razão é
necessária essa distinção, que, a princípio, parece etérea? Na realidade, os anjos são elementos
alegóricos para pensar a origem do mal, especialmente, as formas corruptas de Estado. O mal
não tem natureza (substância), pois é a ausência de ser. Os anjos não são luzes em si mesmos,
mas em Deus somente. Essa ideia de iluminação infere que o mundo - como os anjos - só a
adquire em Deus. Em termos mais claros, o mundo não é autossuficiente. A Cidade terrena
perde substância tanto mais quanto se afasta da Cidade celeste na medida em que ela é a
forma perfeita. A Cidade Celeste, assim como os anjos, foi criada não para viverem
simplesmente, mas para participarem da felicidade e da sabedoria.
Agostinho, último filósofo do mundo antigo, e o homem do mundo atual estampam
um objetivo comum: a felicidade. Parece que o primado da razão impõe ao homem, de ontem
110
e de hoje, esta verdade comum ao intelecto humano. A Cidade Celeste é o reflexo deste
desejo humano desde épocas antigas. É bom dizermos que o modelo não é vazio em
significado para o homem de hoje, uma vez que o filósofo cristão procura explicar a
decadência de Roma por meio dos vícios que atingiam os governantes e o povo. A corrupção
das pessoas precedia a destruição do Estado romano. Agostinho propõe a volta dos homens a
um estado perdido em resposta àqueles que acusavam os cristãos pela desconfiguração do que
havia sido um dia um grande Estado. Esse estado perdido, após o pecado original, é a Cidade
celeste. Assim, o retorno a um Estado virtuoso é possível.
A felicidade é definida “pelos dois elementos seguintes: gozar sem dor do bem
imutável, Deus, e permanecer eternamente nesse gozo, sem temor à dúvida e sem engano
algum”359
. A Criação fez com que os seres fossem criados de modo que a natureza inferisse
não somente uma ordem física, mas, também moral. A ordem física pode ser percebida
Entre os seres que têm algo de ser e não são o que é Deus, seu autor, os viventes são
superiores aos não viventes, como os que têm força generativa ou apetitiva aos que
carecem de tal faculdade. E, entre os viventes, os sencientes são superiores aos não
sacientes, como às árvores aos animais. Entre os sacientes, os inteligentes são
superiores aos que não têm, como aos animais os homens. E, ainda, entre os que têm
inteligência, os imortais são superiores aos mortais, como aos homens os anjos.360
Mas, o mais definidor para a doutrina de Estado se encontra na ordem moral da
Criação, a qual propõe uma gradação entre a razão, a necessidade e o prazer de maneira que
A razão atém-se ao que o ser vale por si mesmo na gradação cósmica; a necessidade,
ao que vale para o fim pretendido. A razão busca o que parece verdadeiro à luz da
mente; o prazer, o que é agradável e deleitoso para os sentidos do corpo. Mas o peso
da vontade e do amor é de tal maneira poderoso nas naturezas racionais, que,
embora, de acordo com a ordem natural, os anjos sejam preferidos aos homens, os
homens bons são preferidos, segundo a lei da justiça, aos anjos maus.361
Fica claro, pois, que existe uma ordem moral natural aos homens. Essa ordem é
considerada boa ao ser proveniente de Deus. Toda a natureza é boa, assim como a República é
boa, que, por sua vez, nos traz utilidade se a usamos com moderação. A Cidade Celeste é
superior à Cidade terrena pelo fato de pertencer àquela bens celestiais invisíveis dignos de
serem conhecidos pela razão humana. Se o Estado conserva a ordem de sua própria natureza,
equipara-se ao Estado perfeito. Deve assim usar do que deve ser usado e desfrutar do que
deve ser desfrutado. O homem não pode usar de Deus e gozar do dinheiro, antes deve usar do
dinheiro e gozar de Deus. Se houver desordem, a justiça se encarregará de ordená-la.
359 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 31. 360 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 34. 361 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 34.
111
O homem, pela razão, é o único ser capaz de conhecer a lei natural que nos assegura a
retidão dos juízos. Da mesma forma, o homem tem um sentido interior capaz de identificar o
justo e repelir o injusto. Por isso, diz-se que “de um modo se conhece a justiça na verdade
imutável e, doutro, na alma do justo”362
.
Para Agostinho a Cidade celeste é boa por natureza e reta por vontade, enquanto a
terrena é boa por natureza e má por vontade. A primeira se rege pela justiça. A segunda pela
paixão de dominar e prejudicar. A primeira iluminada, a segunda envolta em trevas. Cada
qual com sua sociedade de anjos, bons e maus. Essa é a origem das duas cidades compostas
de homens e anjos bons e homens e anjos maus. Ambas surgem com a criação do homem
segundo Agostinho363
, a indicar que o homem aspira uma sociedade melhor desde o princípio.
A tese de que os anjos bons são aqueles felizes por não se afastarem de Deus e os
maus são os que se afastaram de Deus por soberba reflete na formação da Cidade celeste e na
Cidade terrena. É aqui que o filósofo cristão insere Deus na República. Deus é necessário para
a felicidade.
Diz que os anjos maus – leia-se Cidade terrena –
“embriagados por seu próprio poder, como se fossem seu próprio bem, declinaram
do bem beatífico, superior e comum a todos, aos seus particulares e, tendo por muito
sublime eternidade o fausto de sua altivez, por verdade certíssima os artifícios da
vaidade e por caridade mútua suas rivalidades repletas de ódio, tornaram-se
soberbos, enganadores e invejosos”364
.
Se pudermos considerar fictícia a origem das duas cidades, não podemos afirmar o
mesmo do diagnóstico preciso que Agostinho faz do Estado, especificamente, da República
romana. Sabemos que o Estado fruindo de seu poder, ao invés de usá-lo, experimentou o
provável para refutar a verdade com o intuito de justificar seus erros e legitimar as más
condutas.
A tentativa de construir um modelo de Estado perfeito fez com que o pensador cristão
se voltasse para Deus, pois o homem, só por só, não seria capaz de atingir a felicidade. A
felicidade, como vimos, está em gozar e permanecer em Deus. O que se quer asseverar com
essas palavras são os fundamentos necessários para a formação do Estado. A pensar nos
anjos, o filósofo afirma que os bons permanecem na verdade e na caridade. Essa é a razão
pela qual são felizes. É oportuno anotar a ligação que se traça entre a razão, a verdade e a
362 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 49. 363 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 57. 364 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 57.
112
caridade. Pela razão se conhece a verdade, pela verdade se ama e pelo amor se vive. Pensar,
viver e amar parecem constituir o cume da filosofia agostiniana da felicidade.
O ser humano é livre para alcançar a felicidade. Em Deus, Agostinho encontra a
felicidade em termos racionais na medida em que é o Sumo Ser (essência). O mal consiste na
ausência do ser (esse). Quanto mais nos afastamos do ser nos aproximamos do não ser. Em
termos práticos, a ordem moral natural está repleta de disposições ontológicas (seres)
provenientes do Ser Absoluto, como, por exemplo, as virtudes. O afastamento dessas
substâncias (mau uso da liberdade) faz com que o homem se prive do que é bom. O mau uso
da vontade (liberdade) se volta para o próprio homem na medida em que nada pode fazer de
mal à realidade imutável. Por isso, o ódio, a soberba e a inveja são predicados que afastam o
homem dessas realidades invisíveis imutáveis de modo que se goza do poder para prejudicar
em contraposição ao desejo de felicidade comum aos homens.
Os vícios supramencionados são os inimigos verdadeiros do Estado. Agostinho tem
uma expressão única para definir as pessoas que se afastam da realidade eterna como aquelas
que “por sua vontade de resistência (...) corromper-lhes o bem de sua natureza”365
. Os vícios
são a corrupção do Estado e a causa da distância entre a Cidade de Deus e a terrestre. A
felicidade depende da união com Deus e, assim, da vontade humana. Se o homem se antepõe
a Deus e a tudo o que representa, então, prefere ao bem menor ao maior. A ausência de bens
(valores) na constituição do Estado ou o mau uso deles podem levar às más condutas e formas
de governo corrompidas. Toda a natureza é um bem em si mesmo, assim como a existência do
Estado é melhor do que sua ausência. O mal está na vontade desordenada do homem que
prejudica a ordem natural.
Em termos práticos, qualquer sistema político deve se orientar por valores (bens) e
fazer bom uso deles. O mal não está em determinado sistema político – se bem que a
democracia parece atender mais ao princípio da participação ao bem chamado Estado -, mas
na vontade do homem em subverter os bens ou deles fazer mau uso. A vontade do homem se
concretiza na edição das leis. Se as leis não guardam a justiça subsistente à ordem natural
moral, consequentemente, prejudicam os cidadãos ao privá-los de algo positivo. A ordem
moral natural exige a consideração da disposição de todos os bens (superiores, médios e
inferiores) e o bom uso deles.
Em outras palavras, o poder do Estado se constitui por meio das leis civis, que, por sua
vez, são o meio mais concreto da vontade. Se o poder for bem utilizado, teremos o bem
365 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 59.
113
comum no Estado. Caso contrário, servirá como forma de dominação. O elemento poder na
visão agostiniana não é, necessariamente, mau. O poder deve ser usado para alcançar bens
superiores, como, por exemplo, a paz. Assim,
a soberba não é vício de quem dá o poder ou do poder mesmo, mas da alma que ama
desordenadamente seu próprio poder, desprezando o poder mais justo e poderoso.
Por isso, quem ama desordenadamente o bem, seja de que natureza for, mesmo
conseguindo-o, se torna miserável e mau no bem, ao privar-se do melhor.366
Isso significa que qualquer sistema político – inclusive, o democrático – pode abrigar
formas de dominação que afastem os cidadãos dos bens superiores ou fazem mau uso dos
bens, quaisquer que sejam e de que natureza forem (físico ou moral). As formas de dominação
privam o homem de bens melhores ao antepor os inferiores aos superiores até criarem a
necessidade de más condutas pelo hábito justificadas, ao fim e ao cabo, pela força da lei civil.
Agostinho chama de “defecção” o abandono de Deus367
. O Estado perfeito precede o
terreno na sociedade dos anjos formada antes da dos homens368
. Nessa Cidade o bem consiste
em permanecer unido a Deus. Inteligentemente, remonta-se à criação para defender realidades
invisíveis (metafísicas) acima das visíveis (materiais) de maneira a legitimar, por meio da
doutrina, ideias que seriam inatas e, por assim dizer, puras na forma e na substância. A ideia
dos anjos é a metáfora mais presente à realidade humana para reforçar a doutrina dos bens
eternos e imutáveis desde a origem do mundo.
Agostinho insiste na teoria sobre a criação (capítulos X e XI, Livro XII, Cidade de
Deus) para refutar as idéias de que o homem sempre existiu369
e o mundo seria eterno ou se
gerasse de sua própria matéria para reforçar o que está escrito nas sagradas escrituras dos
hebreus de que se passaram cerca de seis mil anos desde a criação do homem ao trazer o dado
histórico da carta de Alexandre, o Grande, a sua mãe Olímpia:
Nela dá a relação de certo sacerdote egípcio, que foi por ele extraída de seus escritos
sagrados, e fala também das monarquias mencionadas também pela história grega. O
reinado dos assírios, segundo a carta de Alexandre, durou mais de cinco mil anos e,
segundo a história grega, dura pouco mais ou menos mil e trezentos desde o reinado
de Belo, rei também nomeado pelo egípcio no princípio dessa monarquia. Fixa mais
de oito mil anos ao império dos persas e dos macedônios até Alexandre, a quem se
dirigia, enquanto que os gregos calculam em quatrocentos e oitenta e cinco anos a
duração do império dos macedônios até a morte de Alexandre e em duzentos e trinta
e três a do império dos persas até a vitória de Alexandre.
366 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 65-66. 367 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 66. 368 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 67. 369 Alguns platônicos, como Apuleio, tinham essa idéia sobre o mundo. O próprio Platão professava essa idéia.
Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 70.
114
Tais números são, como se vê, muito inferiores aos egípcios e não os igualaria,
embora se multiplicassem por três, pois os egípcios contam que houve tempo em
que seus anos eram tão curtos, que duravam apenas quatro meses. Portanto, o ano
verdadeiro e pleno, agora comum a nós e a eles, consta de três dos antigos anos
egípcios. Nem mesmo assim, porém, como já dissemos, a cronologia egípcia
concorda com a história grega, Deve-se, por conseguinte, acreditar nesta última, por
não exceder o número de anos anotados por nossas Letras, verdadeiramente,
sagradas. Em conseqüência, se na celebrada carta de Alexandre se vê frustrada nossa
esperança sobre os tempos, quão menos crédito se deve dar àqueles escritos que,
saturados de antigalhas e fábulas, pretendem opor-se à autoridade dos livros, mais
celebrados e divinos, que predisseram que todo mundo haveria de crê-los, predição
que na realidade se realizou!370
De fato, o que se pretende é demonstrar que a história da criação do homem tem bases
históricas que indicam a correção dos escritos hebraicos. Aqui a fé e a razão vão ao encontro
da criação para afirmá-la como um fato que deu origem ao mundo que, por sua vez, remete à
origem do homem. A todo o momento, procura-se rebater na obra “Cidade de Deus” as teorias
correntes à época que contrariavam a história da criação para, assim, pôr em prática uma
doutrina da Verdade no lugar de filosofias, sistemas políticos e religiosos que não tinham
bases racionais ou que eram consideradas não verdadeiras (por exemplo, epicuristas) segundo
a visão agostiniana.
De igual sorte, Agostinho combate a ideia de alguns platônicos - considerados os
melhores pelo pensador – de que os homens e os animais são obras dos deuses inferiores, ou
seja, dos anjos371
. Platão tem a opinião de que os deuses receberam o poder de criar os corpos
dos animais372
. Os corpos seriam uma forma de punir os homens que viveram sem controle
moral. Assim as almas retornariam a corpos mortais de seres irracionais para Platão ou de
homem segundo Porfírio. Isso é falso para Agostinho na medida em que “nem as almas
expiam suas penas, retornando a esta vida, nem é outro o Criador dos viventes do céu e da
terra senão o Autor do céu e da terra”373
. O corpo é um bem e, por isso, não pode ser castigo.
O raciocínio acima prepara a tese agostiniana de que o mal não pertence à natureza,
mas à vontade humana. Esse é o mote para justificar o Estado ético-político baseado nas
virtudes humanas. Estas são indispensáveis para a formação do Estado justo.
A criação do modelo agostiniano de Estado justo ou Estado perfeito ou Estado
“utópico” tem a intenção concreta e histórica de defender os cristãos que eram acusados de
370 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 68-69. 371 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 86. 372 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 88. 373 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 88.
115
terem contribuído para a queda de Roma, mas, também, estender para o mundo futuro uma
mensagem racional (entender) e teológica (crer) de que seria possível construir uma sociedade
justa à semelhança da “Cidade de Deus” com base na Verdade válida para todos os homens
em todos as épocas à margem de tendências humanas de destruição, corrupção e vícios (mal).
Essa Verdade é possuidora dos atributos da justiça e da caridade. Agostinho funde
esses dois elementos para afirmar que a justiça perfeita consiste na prática da caridade e no
fruir de Deus em última instância. É essa a lei inscrita na razão comum a todas as pessoas de
acordo com a ordem natural do mundo (física e moral), a qual o Estado deve conservar para o
bem comum. A essa lei se dá o nome de lei natural. Justificado está, pois, a titulação de “lei
natural” como um bem moral que remete a uma verdade presente em cada ser humano.
Na visão agostiniana, não há um rol exaustivo de direitos ditos naturais. O objetivo da
lei natural parece não ter esta pretensão. O que existe é uma razão na natureza nomeada de lei
porque identificada em cada ser humano da mesma forma. Por ser comum é universal.
Agostinho a define com o amor essencialmente constitutivo em si mesmo e como objetivo das
leis civis. Isso não quer dizer disciplinar o amor, mas, sim, o amor servir de substrato para a
justiça divina, desta para lei natural e esta para as leis civis.
Em outras palavras, a razão explicita uma verdade consistente em demonstrar que há
certa ordem entre bens inferiores e superiores, o homem e Deus e o Estado e a “Cidade de
Deus”. Como os bens superiores, Deus e a “Cidade de Deus” são categorias transcendentes,
Agostinho só teve uma maneira para inseri-las no mundo como algo aceitável do ponto de
vista racional: defender a Criação como um fato histórico, e, não, simplesmente, como
hipótese não demonstrável. Para tanto, justifica a fé como elemento que contribui para o
entendimento, assim como a razão contribui para a fé. A verdadeira religião não é inimiga do
Estado e este não é inimigo daquela.
Não por outro motivo, a obra “Cidade de Deus” tem a explicação insistente da criação
do mundo e da origem das duas cidades - a de Deus e a dos homens - a partir de noções
teológicas, filosóficas e históricas que caso não coincidam com o pensamento cristão são
rebatidas por Agostinho veementemente, como se demonstrou acima no caso do exemplo da
carta de Alexandre a sua mãe.
Admite-se, até mesmo, a narrativa do paraíso – estado perfeito da criação – como algo
figurado para a correta interpretação espiritualista, sem, no entanto, deixar de crer que existiu
historicamente para, assim,
entender-se por paraíso a vida dos bem-aventurados; por seus quatro rios, as quatro
virtudes cardeais, prudência, fortaleza, temperança e justiça; por suas árvores, todas
as ciências úteis; pelos frutos de tais árvores, os costumes dos piedosos; pela árvore
116
da vida, a sabedoria, mãe de todos os bens, e pela árvore da ciência do bem e do
mal, a experiência do mandamento transgredido.374
O filósofo interpreta a passagem do paraíso em termos proféticos ao continuar o
raciocínio para afirmar que “o paraíso seria a própria Igreja (...) a árvore da ciência e do mal,
o livre-arbítrio da vontade humana”375
.
Da mesma forma, Agostinho rebate a crítica filosófica de alguns que se perguntavam o
que Deus fazia antes da criação ou por qual razão tardou criar o homem ao dizer que o tempo
e o espaço são elementos do mundo e, por isso, não podem servir de critério para medir a
Deus. Assevera que o “espaço de tempo, que parte do começo e tem termo, seja qual for a
extensão do seu curso, não sei se, comparado com o que carece de princípio, é infinitamente
pequeno ou antes nada”376
e acrescenta que gerações passadas e futuras terão a mesma
“idêntica curiosidade”377
sobre as questões mencionadas.
Com isso, o pensador do mundo antigo mostra que Deus é uma realidade com
existência autônoma que criou o mundo e o gênero humano no tempo por vontade única e
imutável de acordo com uma ordem física e moral (natural). Essa existência autônoma
significa que Deus não precisa das criaturas para a felicidade, tendo-as criado por puro ato de
bondade de modo que “em virtude de uma só e mesma vontade, eterna e imutável, fez com
que as coisas criadas primeiro, enquanto não eram, não fossem e depois, quando começaram a
ser fossem”378
.
Outro questionamento filosófico para destruir o que se pretende construir é a
provocação de que Deus não é capaz de compreender a infinidade dos números na medida em
que não é possível número possível para números infinitos. Novamente, Agostinho identifica
a questão do ponto de vista divino para afirmar que a “infinidade é de maneira inefável finita
em Deus, pois, não há, em absoluto, infinidade incompreensível à sua sabedoria”379
.
Em outras palavras, todas essas questões são colocadas do ponto de vista humano, o
qual é limitado no tempo e em inteligência. Por outro lado, Agostinho tenta as compreender
do ponto de vista de Deus. Esse deslocamento de eixo faz com que o que seja mutável se
374 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 115. 375 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 115. 376 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 70. 377 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 71. 378 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 78-79. 379 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p 79.
117
submeta ao que é imutável de modo que o modelo filosófico agostiniano se torne referência
racional de um pensamento que sirva de base comum para o modo de agir. Isso porque, a
existência autônoma de um Ser imutável e eterno significa o mesmo que a existência de uma
Verdade capaz de estabelecer uma ordem física e moral do universo.
Essa ordem moral é identificada com o homem e o Estado. Os vícios dos seres
humanos ocasionam formas corruptas de Estado. O Estado vale o que vale seus cidadãos.
Agostinho logo percebe pela razão e pela fé que a verdade não pode ser outra senão aquela
superior e imutável em desprezo às filosofias que dizem o que pensam, não o que sabem, a
respeito do mundo, especialmente, dos que acreditam que há o eterno retorno do mundo em
alternância entre a felicidade e a miséria. A ilusão dessa filosofia resulta em estabelecer a
infelicidade como conhecimento de vida, pois o homem da infelicidade, passado o tempo, se
tornaria feliz para, logo após, retornar à miséria. Essa maneira de ver o mundo é errada
segundo o pensador cristão. Segundo ele, o homem teve princípio de tempo e espaço e se
encaminha para uma felicidade que liberta o homem e que nunca se repete.
E por qual razão Deus fez um só homem do gênero humano posto entre os anjos e os
seres irracionais? Qual a utilidade da criação do homem para a construção de um modelo de
Estado?
Diz que se o homem se sujeitasse a Deus e fosse obediente aos preceitos seria imortal
como os anjos com felicidade eterna; do contrário, se o homem “usando soberba e
desobedientemente do livre-arbítrio”380
seria infeliz e escravizado pela libido. Continua o
raciocínio para dizer que a origem do gênero humano a partir de um só homem teria o sentido
de
encarecer-lhe sempre mais a unidade social e o vínculo da concórdia, que
aumentaria, se os homens não se unissem apenas pela semelhança de natureza, mas
também pelos laços de parentesco. Tanto é verdade, não quis, como fez com o
homem, criar a mulher que lhe serviria de companheira, mas formou-a dele, para
todo o gênero humano propagar-se a partir de um homem apenas.381
O filósofo cristão vislumbra na origem do gênero humano a partir de um só homem
um elemento constitutivo do Estado: o vínculo da concórdia. No pensamento agostiniano, a
concórdia aparece como bem dado por Deus ao homem e a partir deste como elemento da
ordem natural, ou seja, o vínculo da concórdia pertence à ordem definida desde a criação.
380 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p 84. 381 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 84.
118
Logo, se a concórdia é um bem procedente de Deus e sendo esta parte da definição de Estado,
a existência do Estado é, pois, um bem em si mesmo.
O motivo da existência da concórdia tem a utilidade de unir os homens em sociedade.
Os homens enquanto em sociedade refletem a união capaz de tirá-los da ignorância e da
bestialidade382
de modo a tornar agradável a vida em sociedade. A recordação da criação do
primeiro homem é professada pela verdadeira religião para que se conserve a unidade. É
necessário observar que, na verdadeira religião, o fundamento esta posto na razão.
A origem das duas cidades é, portanto, explicada em termos racionais desde a criação
do mundo e do homem. No primeiro homem “tiveram origem duas sociedades de homens ou
duas espécies de cidades”383
, do qual procederiam os demais homens que seriam
“companheiros de suplícios de anjos maus; outros companheiros dos bons na glória”384
.
2.2 As qualidades das duas Cidades indicam o Estado ético-político
agostiniano
No subtítulo anterior vimos que Deus criou o gênero humano de um só homem para
que pudesse ligar os homens em unidade com o vínculo da paz em unidade concorde. O
primeiro pecado (mal) foi consequência da desobediência, a qual ocasionou a necessidade da
morte. Todos os povos da terra com os mais variados costumes, ritos e línguas formam dois
gêneros de sociedades humanas, que podem ser chamadas de cidades385
.
Nas palavras de Agostinho
Uma delas é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que
querem viver segundo o espírito, cada qual em sua própria paz. E a paz de cada uma
delas consiste em ver realizados todos os seus desejos.386
Essas duas cidades são constituídas por homens. Esse dado é importante para
entendermos que ambas as cidades estão presentes no mundo desde já, por vezes de modo
382 Bestialidade significa falta de entendimento. Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os
pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 95. 383 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 89. 384 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 89-90. 385 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 127. 386 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 127.
119
contrário387
. Com isso, há a humanização das sociedades dos anjos no momento em que se
referem aos homens. Assim como a origem das duas cidades está descrita entre a formação
das sociedades de anjos bons e maus, a humanização delas ocorre entre aqueles que vivem
segundo o espírito e carne. Outro dado importante é imputar à palavra “paz” qualidade
pertencente às duas cidades de modo diferente, isto é, cada qual com a sua. Do mesmo modo
usa a palavra “desejo” como qualidade pertencente às duas cidades. Em outras palavras, a paz
e o desejo têm significados distintos em cada cidade apesar de serem utilizadas
indistintamente para caracterizar cada qual. Esses são os elementos com que Agostinho
qualifica os dois tipos de sociedades humanas.
As qualidades principais das duas cidades se centram nas expressões “viver segundo a
carne” e “viver segundo o espírito”. Viver segundo a carne não significa centrar o bem
supremo do homem no prazer corporal e sensível como fizeram os epicuristas, bem como
viver segundo o espírito não significa centrar o bem supremo no ânimo (espírito) como
opinaram os estóicos. Agostino, partindo das escrituras, assevera que ambos os modos de
pensar constituem viver segundo a carne388
.
Isso porque, viver segundo a carne significa viver segundo os vícios da carne e do
espírito, “pois tudo o que é mau o é por vício”389
. As fornicações, desonestidades, luxúrias,
embriaguezes e glutonarias são exemplos de prazeres carnais, como idolatria, emulações,
dissensões, heresias e invejas são vícios do ânimo390391
. O importante é definir a qualidade das
duas cidades a partir das virtudes e dos vícios, de modo a deixar à vontade humana a opção
por escolher viver segundo a carne ou o espírito. Agostinho menciona que viver segundo a
carne é viver segundo o homem e viver segundo o espírito é viver segundo Deus.
As virtudes e os vícios são opções de escolha do livre-arbítrio da vontade humana.
Para Agostinho, o mal não está na natureza humana e, consequentemente, não está no corpo a
causa da corrupção, mas, sim, na má vontade originada pelo primeiro pecado, sendo a
corrupção conseqüência deste. A carne é considerada boa, pois criada por Deus.
387 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 131. 388 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 127-128. 389 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 134. 390 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 128-129. 391 No Livro XXII da obra Cidade de Deus, Agostinho enumera vários vícios derivados do primeiro erro. Cf.
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 563.
120
A pretensão agostiniana é isentar a natureza do mal de modo a permitir ao homem
aperfeiçoar-se enquanto tal, bem como as instituições por ele constituídas, desde que viva
segundo as virtudes. As virtudes são qualidades que lembram o homem de que não pode viver
por si só, ou seja, autossuficiente. O vínculo da concórdia que une os homens foi incutido por
Deus na criação do gênero humano, o qual só se mantém se os homens vivem segundo as
virtudes. O caminho para a felicidade é a virtude.
Se falarmos em virtudes e em vícios como qualidades das cidades, queremos dizer que
o vínculo da concórdia que une os homens é um elemento ético. O Estado agostiniano é, pois,
eminentemente ético. A ética das virtudes e dos vícios está posta no querer do homem. Se o
querer é ordenador é virtuoso; se desordenado, é vicioso. Por isso, Agostinho explica que “o
arbítrio da vontade é verdadeiramente livre, quando não é escravo de vícios”392
. A vontade do
homem em querer, acolhendo ou recusando, determinado bem chama-se afeição.
O objetivo de amar a Deus e ao próximo, essência da ética agostiniana, inclina a
vontade humana para o afeto denominado caridade. A caridade é identificada com o amor por
Agostinho de modo que o importante é usá-las na mesma acepção (significado) quando
dirigidas para o mesmo objeto, que, por sua vez, deve ser bom. A palavra “amor” pode ser
usada em mau sentido quando dirigida a um objeto perverso. Por isso, Agostinho diz
Em conclusão, o reto querer é o amor bom e o perverso querer, o amor mau. E
assim, o amor ávido de possuir o objeto amado é o desejo; a posse e o desfrute de tal
objeto é a alegria; a fuga ao que é adverso é o temor e sentir o adverso, se acontecer,
é a tristeza. Semelhantes paixões, por conseguinte, são más, se mau o amor, e boas,
se é bom.393
O uso da linguagem é observado atentamente pelo filósofo cristão para estabelecer
bases seguras de discussão com os filósofos da época antiga de modo a refutar as alegações
desses de acordo com o significado que se dê a determinado objeto a partir da vontade
humana em bem ou mal querer.
Está, claro, então, que o filósofo cria a ciência da significação para definir o
significado por signos de acordo com os objetos referidos. A semiótica na obra “Cidade de
Deus” (livro XIV) está presente como meio para defender o cristianismo e refutar os
pensamentos contrários a este na antiguidade. As palavras são símbolos que representam
determinados bens para adquirirem exata significação. Assim, por exemplo, Agostinho aponta
a significado de viver segundo a carne como o vício surgido do mal querer da vontade em
392 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 145. 393 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 135.
121
usar de determinado bem. A luxúria é o vício do mau uso da sexualidade. O mau uso da
linguagem faz com que a questão seja mais de palavras do que de realidades. Ao proceder de
acordo com a semiótica, Agostinho tem a pretensão de buscar a verdade, a afastar as
contendas desnecessárias. O que se pretende afirmar é a existência embrionária da semiótica
nos escritos agostinianos.
Agostinho diz que o desenvolvimento da linguagem estabeleceu para o termo “apetite”
ou “concupiscência” um mau sentido, para o termo “alegria” um bom significado assim como
para a palavra “temor”. Já a palavra “tristeza” existe a dúvida se se pode usá-la para significar
algo bom394
.
A importância da semiótica agostiniana surge a partir da definição das qualidades dos
dois tipos de sociedades personificadas em duas sociedades de homens que se aproximam das
virtudes ou se afastam delas de acordo com a vontade humana em bem ou mal querer
determinado bem. As palavras são símbolos que servem de meio para que o filósofo cristão
afirme a força das verdades cristãs sem ambiguidades. Mesmo quando uma mesma palavra,
como, por exemplo, “amor”, é utilizada em uma mesma sentença, entendemos o significado
de cada qual com a definição do objeto a que se refere. O esforço de Agostinho em defender a
doutrina cristã surpreende o leitor no campo da linguagem também.
Agostinho exemplifica com a afirmação dos estóicos de que
somente o sábio é susceptível de vontade, de gozo e de precaução e somente o
néscio é capaz de desejo e de alegria, de temor e de tristeza. As três primeiras são as
constâncias, as outras quatro, segundo Cícero, as perturbações, as paixões, segundo
outros muitos. Em grego, como fica dito, as três chamam-se eupatheiai e as quatro,
páthe.395
Ao investigar esses termos utilizados nas sagradas escrituras, chega à conclusão de
que “desejam, temem e alegram-se os bons e os maus (...) segundo sua vontade seja reta ou
não”396
. Menciona, ainda, que nas sagradas escrituras o termo tristeza é usado em bom sentido
ao indicar arrependimento dos pecados. A retidão da vontade dirigida aos bens (afeto) faz
com que os justos, homens pertencentes à Cidade de Deus, temam e desejem, sofram e
gozem, enquanto peregrinos neste mundo. Temem e desejam a vida eterna, bem como sofrem
394 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 136. 395 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 136. 396
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 138.
122
porque limitados em si mesmos e gozam em esperança a redenção futura do corpo. O amor
reto faz as afeições serem retas397
.
Em síntese, a vida reta faz as afeições serem retas e nos leva à felicidade por estar
segundo a vontade de Deus, enquanto se desordenada, torna as afeições desordenadas. A vida
reta pertence à Cidade de Deus e a vida desordenada se refere à Cidade dos ensinamentos do
diabo398
. A primeira vive segundo o espírito, a segunda de acordo com a carne. A primeira
cultua o verdadeiro Deus, a segunda cultiva falsas divindades em desprezo à verdade.
A visão das duas cidades traz à tona dois aspectos da doutrina agostiniana: a) um
pessimista, do pecado original que corrompeu o homem e tornou a natureza debilitada e b)
outro otimista, a natureza é boa em si mesma e o homem pode fazer o bem. Por essa razão,
Agostinho afirma que “Deus em sua presencialidade previu (...) o mau que havia de ser o
homem, por Ele criado bom, e o bem que Ele havia de operar com o homem”399
.
A visão pessimista faz com que os males possam ser explicados no sentido de
ausência de ser que necessita do bem para existirem “porque as naturezas em que subsistem,
como naturezas, são boas”400
. O mal não existe como realidade autônoma. O primeiro pecado,
segundo Agostinho, procedeu da má vontade humana, cujo princípio é a soberba. A soberba
“consiste em abandonar o princípio a que o ânimo deve estar unido e fazer-se de certa
maneira princípio para si e sê-lo”401
. Agostino é incisivo ao afirmar que o primeiro pecado
não reduziu o homem ao nada absoluto, mas voltou o homem a si mesmo como princípio a se
afastar de Deus e, com isso, aproximando-se do nada402
.
A corrupção do homem tornou o vício uma necessidade após o hábito da vontade
desordenado de maneira que o mau uso dos bens opera a carência do que é superior e melhor.
Em última análise, essa visão impede que os homens conheçam a Deus, o Ser Absoluto. Isso
significa dizer que, a caridade, o bem mais excelente, não embasará as condutas humanas.
Como a caridade é a justiça perfeita, esta não se torna subsistente às leis civis. Logo, sua
ausência opera a carência de bens considerados superiores e imutáveis como conteúdo das leis
397 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 139. 398 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 42. 399 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 44. 400
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 45. 401 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 47. 402 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 47.
123
temporais. Esses bens podem ser identificados com as virtudes de modo que a falta delas
equivale à falta de ser, ou seja, aos vícios. Um Estado que se paute pelos vícios é, pois,
injusto. Sendo assim, o Estado injusto pode ser explicado em termos de ausência de Deus e,
ao mesmo tempo, fabricado em termos humanos exclusivamente.
Por outro lado, a visão otimista da Cidade é explicada em termos de plenitude dos
bens, os quais não necessitam da ausência de bens na medida em que o ser significa a
realidade ontológica do bem, o qual é criado com liberdade para amar. Por isso, todos os bens
criados, inclusive o homem, têm a natureza boa em si mesma. Como o homem foi criado com
liberdade, tem a capacidade de amar. Chega a dizer que “os males são superados pelos bens, a
ponto de os bens poderem existir sem os males, embora se lhes permita a existência, para
ressaltar o bom uso que deles pode fazer (...) a justiça do Criador”403
.
Isso significa dizer que, o homem pode construir um Estado justo a partir da liberdade
que tem de viver a caridade. Como a caridade é a justiça perfeita, o Estado que a tem como
substrato das leis civis é justo. Assim, se a razão do ser pressupõe um ato de vontade de amor
do Ordenador, a chamada lei natural só pode ser o amor na medida em que o sentido da
natureza é este. A lei natural chega a ser uma proposição autoevidente na medida em que
ninguém contestaria a asserção de não fazermos ao outro o que não queremos que nos façam.
Por isso, as leis civis que se orientam pela lei natural tendem a ver a justiça como parte da
ordem natural da criação e, então, como realidade dada por Deus, e, não, fabricada pelo
homem. O Estado agostiniano não despreza a Deus antes o acolhe.
De qualquer sorte, podemos afirmar que a visão agostiniana do mundo, notadamente,
do Estado e do poder não é somente pessimista, mas, também, otimista. Agostinho tem
certeza de que o Estado pode operar em bases éticas cristãs (objetivas). E, se pela vontade
desordenada do homem o mal se dissemina nas sociedades, é pelo homem que o bem ocorre
também. É bem verdade que pelo homem segundo a graça divina.
A ética de Agostinho é centrada em Deus que, segundo ele, é Verdade e Caridade. O
filósofo, então, assevera que o homem “enquanto apetece, menos é e, enquanto ama ser
autossuficiente, perde Aquele que na verdade lhe basta”404
. Em termos práticos, o arbítrio da
vontade humana é livre quando não se submete aos vícios. A liberdade deve, pois, ser
destinada para o bem, notadamente, para a prática das virtudes. A vontade do arbítrio não será
livre caso acolha os vícios.
403 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 44. 404 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 48.
124
A liberdade, um bem tão caro ao mundo contemporâneo, pode, em termos práticos, vir
entendida como um direito qualificado na lei civil em termos não absolutos e irrestritos no
sentido de evitar o mal que pode advir da conduta humana que prejudique o Estado, embora
seja um bem dado, desde que seja para otimizar as virtudes e minimizar os vícios. Caso seja
definida pela lei civil para excluir as virtudes e potencializar os vícios deve ser entendida em
termos de justificativa dos males do homem (vícios) e do Estado (corrupção). A lei civil pode
positivar o significado que tem de liberdade desde que seja entendida como um bem voltado
para a virtude, e, não, para o vício. A responsabilidade em termos de assegurar (garantir) as
virtudes como qualificativos da liberdade é possível.
Nesse sentido, a significação como explicitação do significado do bem “liberdade” é
de suma importância no Estado para o contrastarmos com a utilidade subjacente a este mesmo
bem de se dirigir às virtudes ou aos vícios segundo uma razão prática dos juízos morais.
Essa cautela é necessária porque vimos que a razão está sujeita ao erro por ser
mutável. Nem sempre ela corresponde à verdade que o bem abriga. E a verdade da liberdade é
que foi criada para amar. As virtudes são o caminho para o amor em termos cristãos de
doação.
Agostinho vai mais longe para resgatar a soberba como pecado maior que a
transgressão em si dos homens de quererem ser deuses em si mesmos já que poderiam ser
deuses por participação à Verdade (Deus) de maneira a torná-los infelizes. Em termos
práticos, isso significa que esse mal chamado soberba “busca o recurso da escusa para os
pecados mais evidentes”405
de modo a atribuir a outro “a responsabilidade de suas más
obras”406
.
O filósofo nos conta que a justiça em resposta ao primeiro erro foi entregar o homem
a si mesmo de maneira que ficou sob a servidão do poder a que consentiu. A partir desse
momento, o homem ficou vulnerável à libido da ira, avareza, glória e à voluptuosidade a
ponto de nem a lei civil que autorize essas condutas ter a capacidade de atentar contra a
consciência dos homens. O caso da prostituição é o exemplo mencionado de vergonha em
mostrar a intenção luxuriosa, apesar de permitida pela lei civil407
.
Outro exemplo histórico lembrado por Agostinho é o caso dos filósofos cínicos que
não imitaram a conduta de Diógenes que uma vez teve união carnal em público para tentar
405 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 49. 406 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 49. 407 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 153-154.
125
provar que isso não deveria ser causa de vergonha entre as pessoas. O que moveu Diógenes
foi a vontade de tornar mais célebre sua escola, muito embora o resultado tenha sido a vitória
do pudor natural sobre o erro408
.
É, por isso, que a lei natural ou lei da sabedoria entra no contexto para permitir ao
homem que se afaste dessas intenções com o apoio da razão. Como a libido é parte viciosa da
alma que conduz a vontade do homem para as paixões, a razão passa a ser o freio da vontade.
O controle das paixões pela razão é necessário para que a pessoa chegue a um estado
que a deixe feliz vivendo como quer. Esse é o primeiro passo para o homem buscar a
felicidade de vida. Assim, o homem vive segundo o espírito e integra a Cidade eterna onde a
graça do Ordenador o eleva a patamares vistos antes do primeiro erro. A presunção humana
cede à graça de Deus para voltar ao estado perdido de modo que nenhuma criatura racional,
angélica ou humana, é capaz de interferir na vontade de Deus. Isso quer dizer que, o retorno
do homem ao estado original, em que a libido não dominava os homens, é possível graças à
vontade de provar de quanto bem é capaz independentemente do que faz a má conduta das
criaturas racionais. Filosoficamente, a não interferência do mal na divina Providência equivale
a apresentar uma verdade imutável com existência autônoma apta a resgatar os homens a
viverem segundo o espírito.
As qualidades das duas Cidades, a terrena e a celeste, podem ser expressas nos
seguintes termos: a) a primeira vive da glória humana, a segunda procura a divina como
testemunha de sua consciência (morada da lei natural), b) a terrena vive sob o domínio das
paixões e dos governantes, na celeste se vive a mútua caridade entre os governantes que
servem os súditos obedientes à lei, c) a do diabo se serve da força, enquanto a de Deus do
amor, d) a primeira busca os prazeres do corpo ou da alma e desprezam a Deus ofuscando o
entendimento (razão) de modo a viver segundo na inteligência pensamento humano
exclusivamente de acordo com a soberba capaz de inventar escusas para o mal praticado com
a criação de ídolos; a segunda vive pela piedade que funda o culto legítimo ao verdadeiro
Deus, fonte de felicidade.
Em outras palavras, o Estado ético-político agostiniano parece, por uma via
interpretativa, ser tendente à verdadeira religião de modo a ter a pretensão de estabelecer uma
ética vinculada a verdades cristãs em que a fé exige o entendimento e a crença da razão na
existência de bens ontologicamente existentes independentemente da vontade humana, vale
dizer, sejam percebidos e aceitos a partir da experiência dos bens criados, sejam alcançados
408 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 155.
126
pela pura razão. O Estado justo agostiniano é, pois, essencialmente, cristão no sentido de
apostar na caridade e na sabedoria divinas como capazes de transformar os homens e as
nações. Poderíamos, até mesmo, chegar à conclusão de que esse Estado não é passível de ser
admitido no atual Estado Democrático de Direito cuja qualidade é a neutralidade da atuação
estatal como promotora de uma cultura fundada na ética da tolerância para abrigar a
pluralidade de pensamentos individuais e respectivos direitos individuais que permeiam a
sociedade contemporânea sem estabelecer uma visão de mundo apenas.
Ainda que o pensamento do Estado justo de Agostinho não se amolde à atual evolução
da sociedade, que é plural, devemos observar a sofisticação dos argumentos do pensador na
medida em que: a) respeita a separação entre o Estado e a religião, pois a caricatura das duas
cidades, a de Deus e a dos homens, tem naturezas diversas com autonomias próprias, bem
como o Estado utópico não equivale à Igreja católica enquanto instituição presente no mundo,
antes significa todas aquelas pessoas que vivem segundo o espírito, ou seja, sem nenhuma
agressão aos outros cidadãos, vez que primam pela caridade, b) a alegoria da Cidade de Deus
(protótipo de sociedade justa) não tem a pretensão de se servir do Estado para impor uma
verdade unilateral de mundo pela força, antes apenas defende uma justiça subsistente às leis
civis de acordo com a ordem moral natural de maneira a pôr em prática a caridade cristã neste
mundo, c) as verdades cristãs não são impostas, antes são aceitas ou não pelas pessoas e
podem ou não ser explicitadas pelas leis civis que são relativas por se dirigem a bens
mutáveis, bem como não há contraposição entre a lei natural e as leis civis visto que essas
complementam a primeira e a ela se conformam, d) a ética cristã significa a retidão de vida
baseada nas virtudes, inclusive dos governantes, para que não haja vícios e corrupções, isto é,
não prejudiquem o bem comum, de modo a se sirvam do poder para se assenhorearem do bem
público como se fossem próprios e, nisto, crentes e não-crentes estão de acordo de maneira
que não agride nenhum cidadão de boa vontade, e) as verdades cristãs não devem ser
comparadas ao fundamentalismo religioso que despreza a razão como meio para a construção
da sociedade, antes exigem a presença do entendimento para a compreensão da fé, muito
embora alerte que a razão precise da fé também, f) as verdades cristãs – ética – estão abertas
para pessoas que não professam a mesma fé ou não comungam da existência de Deus, assim
como outros valores sociais, g) a lei natural não apresenta um rol exaustivo e acabado de
direitos fundamentais nem toma para si a autoridade de todos estes, interessantemente,
proclama uma verdade traduzida pela caridade cristã consistente em uma razão natural à
ordem moral da criação comum aos homens e independente da vontade humana que nos
orienta em direção aos chamados bens imutáveis e superiores – dente eles, as virtudes -, aos
127
quais o homem não pode dispor pelo arbítrio da vontade livre com o mal praticado por não ter
poder sobre eles, muito embora seja livre para deles se afastar, h) o denominado direito
natural, assim, deve ser entendido nos exatos termos do pensador (item retro), e não, como
justificativa para defender certos direitos como se fossem naturais, i) a lei natural não é
passível de ser apreendida pela lei civil, visto que é um bem eterno disponível para o homem
mediante o uso da razão (consciência) do qual há a participação segundo a ordem estabelecida
de acordo com a livre adesão; ao contrário, a lei civil tem como característica se impor,
inclusive pela força, para fazer valer o direito vigente, ou seja, a lei civil não tem o poder de
obrigar ninguém a amar, muito embora deva ser moralmente válida, j) a justiça humana
equivale a dar a cada um o que é seu, a divina é um bem superior na medida em que consiste
na prática da caridade, l) por tudo isso, a Cidade terrena oferece o que pode segundo as
limitações próprias e a de Deus o que a primeira não é capaz, sendo o principal bem oferecido
o amor.
É bem verdade que, Agostinho encontra na Verdade os fundamentos da ética, pois a
falta dela pode levar o homem a ter o entendimento obscurecido – consequência do primeiro
erro – e, assim, justificar condutas que seriam más por utilizarem o livre-arbítrio apenas para
os bens mutáveis em desprezo aos bens considerados melhores aptos a oferecem uma vida
feliz.
De qualquer maneira, Agostinho apresenta um caminho para estabelecer um vínculo
da concórdia ordenada no Estado. Não vislumbramos nas obras de Agostinho a pretensão de
estabelecer institucionalmente um Estado cristão, somente tem como doutrina o entendimento
que o Cristianismo não é a causa de ruína do Estado – no caso, o romano -; ao contrário, a
doutrina cristã apresenta elementos para que os homens sejam virtuosos de forma a contribuir
para a construção do Estado. As chamadas verdades cristãs não privam o Estado de nada do
que é bom segundo a visão de Agostinho, bem como considera o Estado um bem antevisto na
criação do segundo homem pelo primeiro representativo do vínculo da união entre os homens.
Eva surge da costela de Adão e, por isso, estão unidos.
Terminamos este subtítulo com a transcrição da passagem escrita por Santo Agostinho
no final do Livro XIV da obra “Cidade de Deus” que traduz de forma mais categórica a
representação das duas cidades com lapidar argúcia nos seguintes termos: “Dois amores
fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o
amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.”409
409 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 165.
128
2.3 Os Estados terrenos e a Cidade de Deus: genealogia histórico-alegórica
do poder
As duas cidades agostinianas sinalizam sociedades de homens que vivem segundo o
homem ou de acordo com Deus. A sociedade de homens na cidade terrena que vive segundo
Deus é a imagem da Cidade Santa, sendo esta uma realidade autônoma. A sociedade de
homens na cidade terrena que vive para si é a expressão da dominação. Ambas as sociedades
de homens são parte da cidade terrena, com a observação de que aqueles que vivem em Deus
são a imagem da Cidade de Deus. Assim, diz-se que a Cidade celeste se faz peregrina já neste
mundo como presença da sociedade ética agostiniana é parte desta realidade.
O que pretende o filósofo cristão é demonstrar o elo escatológico entre os primeiros
homens e as gerações futuras até a manifestação da Cidade celeste. As Escrituras revelam,
então, quais foram os homens importantes para a formação dos dois tipos de sociedades para a
montagem do poder, sucessão de pai para filho nos reinados, a partir da narração da
genealogia dos hebreus.
Historicamente, Agostinho descreve o desenvolvimento das duas Cidades com os
descendentes dos dois primeiros homens. Caim e Abel representam o início das cidades
terrena e celeste, assim como Isaac e Ismael filhos de Abraão (o nome significa pai de muitas
nações410
). Caim construiu uma cidade; Abel nenhuma por ter ciência de ser peregrino e a
verdadeira Cidade se encontrar no céu411
. Essa passagem é decisiva para demonstrar que não
se pretende construir um Estado teocrático segundo a filosofia agostiniana. Isaac (o nome
quer dizer sorriso412
) nasceu de Sarra (o nome significa virtude413
), a livre, e Ismael de Agar, a
escrava. Abel e Isaac simbolizam a liberdade, a paz e a caridade capazes de constituírem a
perfeita concórdia.
Caim e Ismael são expressões da escravidão, da guerra e da dominação que podem
levar os homens a amar mais os bens terrenos do que os superiores. A palavra Caim significa
410 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 248. 411 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 170. 412 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 250. 413 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 248.
129
posse e o nome Enoc, filho de Caim, significa dedicação414
. A posse remete à dominação e a
dedicação à predileção aos bens e fins próprios do mundo – paz e felicidade temporais - em
contraposição à caridade da Cidade de Deus. Com a morte de Abel, as gerações pertencentes à
Cidade Celeste vieram de Set, cujo nome significa ressurreição, bem como Enós, filho de Set,
significa homem415
. Mais tarde, haveria um outro Enoc da sétima geração, contando-se de
Adão, que representa o arquétipo da dedicação a Deus.
O filósofo Agostinho vê na linhagem hereditária um significado importante para
distinguir as duas cidades, a ponto de entender que de Adão, por meio de Set, até Noé
passaram-se dez gerações que indicam a obediência ao Decálogo em contraposição ao número
onze que significa infringência da lei advinda da sétima geração da descendência de Caim até
Lamec, que, por sua vez, teve três filhos e uma filha chamada Noema que significa
voluptuosidade416
.
Ambas as linhagens se misturaram pela relação dos filhos da sociedade de homens
pertencentes à cidade celeste que se deixaram seduzir pelas belas mulheres da linhagem de
Caim e, assim, o dilúvio, atingiu a terra inteira. A figura de Nóe representa a imagem futura
da Igreja, cujo mediador é Jesus Cristo. A arca tem as medidas do corpo humano, o que indica
o corpo de Cristo417
. Dos filhos de Noé, Sem e Jafé significam respectivamente nomeado e
multidão. Cristo, o nomeado, nasceu da estirpe de Sem e tem uma multidão de fiéis a partir de
Jafé. Sem e Jafé representam os judeus e os gregos justificados, apesar da morte de Cristo vir
pelo povo israelita418
. A partir das Escrituras que narram a descendência dos filhos de Sem até
Abraão e deste até Jesus Cristo, Agostinho quer demonstrar pelo argumento de autoridade
religiosa a existência histórica das cidades celeste e terrestre. Do mesmo modo, as promessas
feitas por Deus a Abraão de que sua descendência possuiria a terra de Canaã e Deus
abençoaria todos os povos que nele cressem419
denotam a eternidade da Cidade de Deus sobre
a cidade terrestre e, ao mesmo tempo, a bondade de Deus em acolher todos que Nele vivem na
Cidade Santa.
414 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 194. 415 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 194. 416 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 200. 417 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 208. 418 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 2 17. 419 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 236.
130
O filho do meio chamado Cam significa astuto que se tornam escravos da própria
inteligência, como os hereges ou os que vivem uma vida licenciosa. Por isso, Canaã , filho de
Cam, representa os movimentos de Cam no mundo. Dos filhos de Noé serão geradas setenta e
duas nações que povoaram a terra420
. Babilônia (confusão das línguas) fundada pelo gigante
Nemrod, descendente de Cam, contra o Senhor é o sinal da cidade terrena que vive segundo a
soberba em contraposição à humildade para se chegar a Deus, que, por sua vez, faz os anjos e
os homens partícipes da Verdade. Além do império dos assírios (Babilônia), os impérios
egípcios e siciônios (origem dos romanos) são considerados expressões da sociedade de
homens que vivem segundo a carne421
, os quais são da estirpe de Caim.
O que é interessante observar é a interpretação das Escrituras para situá-las
historicamente na sociedade de homens reais. Toda a genealogia significa a humanidade com
todas as características das duas sociedades de homens através da história. Parece-nos que o
filósofo defende o Cristianismo como continuidade dos valores essenciais para a construção
da Cidade de Deus, e não, como o responsável pela degradação dos povos. No caso, o bispo
de Hipona defendia os cristãos contra as acusações de que seriam responsáveis pela ruína de
Roma.
A continuidade dos povos de Adão até Jesus Cristo confirma os arquétipos de
sociedades que existem no mundo, bem como as qualidades do amor e da dominação que as
caracterizam. Agostinho quer nos mostrar não só a existência desses dois tipos de sociedades,
mas, também, justificar a razão pela qual o Cristianismo, ápice da plenitude de Deus no
mundo por meio de Jesus Cristo, não é um mal a ser combatido pelo Estado, antes deve ser
aceito e reconhecido como motivador de virtudes para a convivência entre os homens.
O elemento definidor da verdadeira concórdia que une os homens sob a égide do
mesmo vínculo deve buscar nas virtudes sua legitimidade. A prova disso é a genealogia dos
povos durante a história capaz de formar civilizações que não desapareceram. Aliás, a religião
parece ser a força capaz de constituir essas civilizações. Não por outro motivo, a religião
cristã foi capaz de formar e conformar nações, povos e países segundo a lei do amor, geradora
das virtudes. Agostinho chega a concluir que os gêmeos que lutavam entre si no ventre de
Rebeca, mulher de Isaac (representa a lei e os profetas), e a profecia de que os dois (Esaú e
420 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 220. 421 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 237.
131
Jacó) gerariam dois povos distintos, em que “o maior servirá ao menor”422
significa a
continuidade das promessas de Deus feitas aos judeus e passadas aos cristãos como forma de
perpetuar a Cidade de Deus através dos tempos. Ou ainda, Esaú representa os israelitas (um
povo) e Jacó (muitos povos)423
. Jacó teve doze filhos, sendo José vendido pelos irmãos por
inveja e tornado poderoso no Egito mais tarde. Jacó também era chamado de Israel (visão de
Deus) em virtude da luta que travou e ganhou com o anjo na volta da Mesopotâmia que o
abençoou ao impor o nome de Israel424
.
Com a morte de Jacó e José, a nação judaica se multiplicou em enorme escala, a ponto
de o faraó egípcio mandar matar as crianças tão logo nascidas. Uma dessas crianças, Moisés,
foi adotado pela filha do faraó e foi o homem que libertou os hebreus da escravidão no Egito
após as pragas e o sepultamento dos soldados egípcios no mar Vermelho. Moisés recebeu o
Decálogo cinquenta dias após a Páscoa (passagem) no deserto, assim como o Espírito Santo
veio aos discípulos cinquenta dias após a paixão de Cristo. O Espírito é denominado dedo de
Deus como prefiguração do dedo de Deus que escreveu as leis divinas ao povo hebreu nas
tábuas425
. Moisés morrera antes de chegar à terra prometida (Canaã) e, então a missão de levar
os hebreus para a terra prometida coube a Jesus Nave que a repartiu entre as pessoas. Daí
advieram os reis Saul e, posteriormente, Davi e o filho Salomão. Davi foi ungido por Samuel,
sacerdote e juiz, cuja mãe era Ana que significa graça. Os Salmos escritos por Davi
prefiguram Cristo no mundo segundo Agostinho. O Salmo 44 representa Cristo e a Igreja, o
Salmo 109 o sacerdócio de Cristo, o Salmo 21 a paixão, os Salmos 3, 40, 15 e 67 a morte e
ressurreição de Cristo, o Salmo 68 a infidelidade dos judeus426
.
O nascimento de Jesus Cristo é a benção definitiva de Deus aos homens que nele
creem. Jesus nasceu de Judá, tribo da descendência de Israel, e, por isso, os cristãos são a
imagem da Cidade de Deus, passando de Abraaão, Isaac, Jacó427
, Davi e Salomão. Com o
desprezo de Salomão – após o período inicial de culto ao verdadeiro Deus com a construção
do templo - a Deus, foi imputada ao povo israelita a dispersão sobre a terra a começar pelo
422 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 256. 423 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 264. 424 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 260. 425 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 264-267. 426 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 296-302. 427 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 262.
132
cativeiro pela conquista dos caldeus sobre a região e a queda de Israel de modo que assim
permanecerão até o fim do mundo, sendo que alguns se converterão para Cristo428
.
Assim, “dividido o reino, em Jerusalém reinou Roboão, primeiro rei de Judá, filho de
Salomão; em Samaria, Jeroboão, rei de Israel, escravo de Salomão”429
, embora a divisão fosse
de reino, não de religião. Para não perder o poder, Jeroboão não permitiu que o povo fosse
prestar culto a Deus em Jerusalém (sede do reino de Judá), pois isso significaria a voltar à
estirpe de Davi, e, então, estabeleceu o culto a vários deuses em seu território, dentre eles,
Baal430
. Isso sem perder de vista que os homens se alternavam entre boas e más condutas no
reino de Judá. O que levou os caldeus a dominarem o povo de Deus e a levá-lo para o
cativeiro na Assíria, primeiro Israel e depois Judá com a queda do templo construído por
Salomão. Após a libertação, restauraram o templo e foi estabelecido um só reino até a
conquista dos romanos e o nascimento de Cristo.
Agostinho diz que a Cidade de Deus peregrina neste mundo é a Igreja431
. Na verdade,
o que Santo Agostinho quer dizer por Igreja é o povo que tem como mediador Jesus Cristo.
Esta é a promessa feita ao rei Davi de que o templo de Deus seriam os homens432
. Não se
cuida, pois, da instituição Igreja embora esta deva coincidir com aquele. De igual modo,
Agostinho propaga a menção de profecias nas Escrituras relativas à Jerusalém celeste, à
Jerusalém terrestre e a ambas433
. De fato, as sociedades de homens que vivem em Deus ou
segundo a carne andam misturadas neste mundo. Tanto que ao lado dos inimigos de Deus
pertencentes à Babilônia, “cidade do diabo”434
, juntam-se os
os israelitas carnais, cidadãos terrígenas da Jerusalém terrestre, que, como diz o
apóstolo, não conhecendo a justiça de Deus, quer dizer, que Deus, único justo e
justificador, dá ao homem, e afanados em estabelecera sua própria, isto é, aquela
que julgam alcançada para si e por si mesmos, não dada por Deus, não se sujeitaram
à justiça de Deus.435
428 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 286. 429
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 306. 430 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 306. 431 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 208. 432 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 288. 433 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 272. 434 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 298. 435 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 275.
133
A Cidade de Deus tem como elemento primordial o amor. No Livro XV, capítulo
XXII, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho identifica o Estado cristão (Cidade Santa) com o
amor ao afirmar que
O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado
também com ordem; assim, existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem.
Por isso, parece-me ser a seguinte a definição mais acertada e curta de virtude: A
virtude é a ordem do amor.436
A definição da virtude como a ordem do amor tem um sentido de buscar a virtude em
Deus, mas, também, ter uma função útil de aperfeiçoar o bem viver. As virtudes são parte da
ordem da natureza moral do mundo que procede do amor criador de Deus. Por isso, diz que o
vínculo da concórdia é o mais suave e estreito que ordena e dá harmonia por meio da
justiça437
, sendo o povo uma “associação baseada no consenso do direito e na comunidade de
interesses”438
(Livro II, Capítulo XXI, “Cidade de Deus”). O Estado deve ser governado, pois,
com virtudes para que haja uma “sociedade de homens que vivem unidos”439
. Segundo
Agostinho, “pratica o direito e a justiça quem vive retamente”440
, a começar pela prática dos
mandamentos segundo o amor durante o tempo em que nosso espírito está ligado ao nosso
corpo.
A cidade terrena, que vive por e para si, tem como característica a ambição por
domínio para o estabelecimento da paz terrestre441
. A origem é o primeiro pecado em que toda
a natureza humana “caiu da verdade na vaidade”442
. Parece-nos que o pensamento de
Agostinho neste ponto é certamente voltado para a república romana que dominava os povos
por meio de regras e, inteligentemente, absorvia as diversas culturas no que fosse possível
para a estabilização das regiões conquistadas e, ao mesmo tempo, apoderava-se dos bens
materiais, inclusive, com a constituição de vínculos jurídicos.
O raciocínio agostiniano é linear ao antever na cidade terrena fundada por Caim a
definição de “uma multidão de homens unidos entre si por algum laço social” no Livro XV da
436 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 202. 437 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 90. 438 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 91. 439 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007, p. 45. 440 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 277. 441 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 176. 442 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 291.
134
obra Cidade de Deus. Os laços sociais entre Roma e as regiões conquistadas eram constituídos
pelas autoridades da república por meio jurídico. A dominação pela norma era fundamental
para Roma. Agostinho diz que
Roma foi fundada como outra Babilônia, como filha da primeira, e que aprouve a
Deus servir-se dela para humilhar o universo todo e pacificá-lo, reduzindo-o à
unidade da mesma república com as mesmas leis.443
Por isso, o mesmo – genealogia hebraica das duas cidades - não aconteceu entre
Rômulo e Remo em Roma. Os fundadores de Roma visavam à glória e ao poder integral da
Cidade e, então, Rômulo matou Remo para a conquista única do poder. A luta entre Rômulo e
Remo é o arquétipo entre as lutas que pode haver na cidade terrena e, com a depravação moral
de Roma, veio a enfraquecer os fundamentos do Estado.
Apesar disso, Agostinho lembra a história do comandante do exército do povo
romano, Marco Atílio Régulo, que ficou cativo voluntariamente em Cartago por causa de
religião como exemplo de homem com certa virtude que renunciara os bens corporais para
cumprir o juramento feito aos cartagineses de que voltaria de Roma caso não conseguisse
fazer a troca de soldados romanos e cartagineses444
.
De qualquer maneira, a genealogia traçada com elementos históricos e alegóricos
serve para mostrar o desenvolvimento das cidades terrena e celeste e o que cada uma delas
tem de peculiaridade: a celeste o amor a Deus e a terrena o desprezo d’Ele, desde a origem do
homem. A terrena usa o livre-arbítrio para praticar o mal enquanto a celeste o utiliza para o
bem, sendo a liberdade mesma um bem.
2.4 O paralelismo histórico-temporal das duas Cidades
No subtítulo anterior vimos a genealogia da Cidade de Deus confundida com o povo
hebreu e a continuidade dela nos cristãos, tendo por característica o amor. Por sua vez, a
cidade terrena caracteriza-se pela dominação, o que gera divisão na própria cidade e
dominação de alguns sobre outros de modo que “cada qual busca a própria utilidade e a
443 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 331. 444 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 44-45.
135
própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos,
por não ser o bem autêntico.”445
Agostinho considera que dois grandes impérios são a expressão máxima da cidade
terrena: os assírios no oriente e os romanos no ocidente, sendo que este surgiu depois do fim
do primeiro temporalmente. Ao analisar os acontecimentos, o pensador conta que os povos
dominados por esses impérios preferiam ter certa segurança e paz à própria liberdade446
. A
liberdade é sacrificada pela segurança legal e social.
Visivelmente, o filósofo cristão quer provar a realidade neste mundo das cidades
terrena e celeste. Para ele, a formação e ação dos Estados, a favor ou contra Deus,
desenvolvem-se ao longo da história da humanidade em maior ou menor grau. Tanto que para
descrever a Cidade de Deus utiliza a genealogia dos homens que viveram sem desprezar a
Deus e, ao final, foram representantes da liberdade e do amor de forma continuada na história.
Já para descrever a cidade terrena, Agostinho cita os impérios como sinais da
constituição dos Estados com o objetivo de subjugar os outros povos como política de ação
externa e, internamente, preferirem os bens inferiores aos superiores e usá-los
desordenadamente a tal ponto de transformar o hábito em vício de maneira a criarem uma
necessidade que afasta o homem dos bens superiores (virtudes) em prejuízo do bem comum
até a queda e ruína de si.
Por essa razão, a passagem mencionada acima fala em “própria utilidade”, “própria
cupidez” e “o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos” para, na
prática, dominar no âmbito externo desmedidamente e para serem dominados pela escravidão
dos vícios no interno. Dominação e licenciosidade (desordem da liberdade) são a marca do
Estado terreno.
Agostinho cita447
a História do povo romano escrita por Marco Varrão para traçar a
linhagem dos romanos do reino dos siciônios, passando aos atenienses e destes aos latinos,
bem como o historiador romano Salústio que reconhece a contribuição da produção cultural
ateniense para o mundo que se desenvolvia política e filosoficamente, inclusive com a
fundação de Atenas. Este nome vem da deusa Minerva, que, em grego, se diz Athéna,
vencedora da eleição (as mulheres votavam à época) contra Netuno (água) por um voto (de
uma mulher). Não se conformando, Atenas foi castigada pelas águas (dilúvio de Deucalião) e
445 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 311. 446 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 312. 447 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 312.
136
impôs às mulheres a pena de nenhum filho ter o nome da mãe, aboliu o voto feminino e lhes
retiraram o nome de atenéias448
.
Já Roma é considerada a segunda Babilônia no ocidente. A primeira Babilônia foi a
capital dos Assírios, o maior império já visto. Ambos dominaram os povos pela força com a
sucessão de vários governantes. A par disso, a Cidade de Deus caminhava com o nascimento
de Abraaão, sucedido pelo filho Isaac e este por Jacó que teve um filho chamado José. Tempo
depois, nasceu Moisés no Egito que libertara o povo da escravidão, sucedido por Jesus Nave.
Deste até a monarquia de Israel governada por Saul, o povo hebreu foi governado por juízes.
Na fase monárquica, Davi sucedeu a Saul, que fora sucedido por Salomão até a divisão do
reino no governo de Roboão.
Na época em que o povo hebreu foi governado por juízes, a Grécia instituiu
solenidades a vários deuses, como, por exemplo, festas (orgias e bacanais) em homenagem à
morte de Líber e das mulheres que o acompanhavam chamadas de bacantes ou mesmo da
fábula de Liceu que transformava homens (os árcades) em lobos (lykos)449
. Já à época do
reinado de Davi em Israel, a Grécia passou da monarquia ao governo dos magistrados para
governar a república.
Em relação ao povo latino, formou-se a dominação dos denominados silvanos. Esse
nome tem origem no nome Sílvio, primogênito de Enéias, no período em que Saul governava
em Israel . A eles são atribuídos a criação de acrescentarem ao próprio nome a alcunha de
“César” e “César Augusto”450
. No tempo de Salomão em Israel, os latinos fundaram Alba.
Posteriormente, na região do Lácio foi fundada Roma pelo avô de Rômulo (Numitor) que
governaram juntos a região451
impondo aos povos conquistados a mesma lei. A lei civil passa
a ser instrumento de dominação para que as regiões conquistadas sejam pacificadas. Nesse
sentido, a lei é o meio necessário para que a paz nos territórios seja equivalente à segurança.
No mesmo período da fundação de Roma, o rei de Judá era Ezequias e o de Israel Oseias. Este
prediz que Israel (gentios) e Judá se unirão sob o mesmo chefe como promessa da vinda de
448 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 318. 449 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 323 e 326. 450 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 329. 451 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 330.
137
Cristo, bem como profetiza a ressurreição de Cristo no terceiro dia da mesma forma que o
profeta Amós452
.
Agostinho, para demonstrar a manifestação de Deus na história, narra o contato que
teve com o Procônsul Flaciano que lhe mostrara escritos da profetisa grega Eritréia, no tempo
de Rômulo em Roma, os quais “as letras iniciais dos versos compunham, por ordem, as
seguintes palavras: Iesoús Kreistós Theóu Hyiós Sotér, quer dizer, Jesus Cristo, Filho de
Deus, Salvador”453
, a indicar que a Cidade de Deus estava presente mesmo entre os gregos.
Durante o reinado de Rômulo em Roma e dos sete sábios (filósofos) gregos como
Tales de Mileto e Pítaco de Mitilene na Grécia (deram resumidos alguns preceitos morais para
o povo), as dez tribos de Israel foram dominadas pelos caldeus e as duas tribos de Judá
ficaram na Judéia, até serem dominadas no reinado de Sedecias entre os judeus e de Tarquínio
Prisco entre os romanos. Naquela época, surgiram físicos como Anaximandro, Anaxímenes,
Xenófanes e Pitágoras454
.
O paralelo histórico entre a Cidade de Deus e a dos homens, a primeira representada
pelos hebreus e a segunda pelos impérios romano e assírio, é tão evidente, que Agostinho
anota com vigor o mesmo marco temporal da libertação dos judeus do cativeiro na época de
Ciro e Dario, governantes dos persas, assírios e caldeus, e da queda do domínio dos reis em
Roma com o desterro de Tarquínio. O Estado romano floresce e o império assírio tem seu fim.
Roma, a segunda Babilônia, é o centro do mundo de onde Cristo nascerá na Judéia sob o julgo
da dominação do povo hebreu pelos romanos.
Podemos notar que Agostinho descreve o nascimento e morte de pessoas e Estados
como sinal da presença da Cidade de Deus e da terrena nos acontecimentos históricos. Não
por outro motivo, o legado que Agostinho deixa para a cultura do mundo é a junção entre a
filosofia grega, o direito romano e tradição cristã.
A narração histórica e teológica do povo hebreu e o desenvolvimento dos impérios
humanos (egípcio, assírio e romano) repercutem no conhecimento sobre o que é verdade
sobre Deus. Manifestar-se (apparuit) significa tornar presente entre os homens a luz da
Verdade. Aqui também aparece o filósofo cristão, a misturar filosofia e teologia novamente,
para dizer que Cristo mostrou que é pura bondade. Essa visão repercute na filosofia sobre os
bens criados, os quais são bons por natureza, na doutrina sobre o livre-arbítrio, na verdade
452 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 337. 453 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 332. 454 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 335.
138
sobre o conhecimento intelectivo e de conduta, na teoria da iluminação, na graça como auxílio
para a prática da lei, a lei natural como caridade e restauração da ordem e no Estado ético-
político.
A manifestação de Deus na história, segundo Agostinho, acontece com o nascimento,
morte e ressurreição de Cristo e salvação das pessoas. Os profetas Oseias, Amós, Isaias,
Miquéias, Jonas, Joel, Abdias, Naum, Habacuc, Jeremias, Sofonias, Daniel, Ezequiel, Ageu,
Zacarias e Malaquias455
já assim profetizavam entre o povo hebreu. Após a vida desses
profetas surgiram na Grécia os grandes filósofos (este nome teve origem em Pitágoras de
Samos segundo Agostinho) como Pitágoras, Sócrates e Platão. Agostinho coloca esse fato
pela localização temporal para dizer que a filosofia pagã surgiu após as profecias mais antigas
do povo hebreu456
. Da mesma forma critica o conhecimento egípcio de modo a enaltecer o do
povo hebreu ao asseverar que tinham conhecimento de astrologia após Ísis ter introduzido o
ensinamento das letras por volta de dois mil anos, e, não, há cem mil anos como diziam na
época457
.
O pensador cristão chega a mencionar que as filosofias existentes à época (se o mundo
teve princípio ou seria eterno ou se há vários mundos, se a alma era mortal ou imortal, se a
alma voltaria para corpos terrestres ou não, se o supremo bem estava no corpo ou na alma ou
em ambos) formam a confusão da cidade terrena (diabólica) de modo a perturbar os
governantes nas escolhas de tão variáveis correntes que professam o meio para encontrar a
vida feliz, a ponto de levar os homens a combate458
. Já entre o povo israelita os profetas não
divergem. A mensagem é a mesma. Para confirmar esse fato, Agostinho lembra o caso em
que as Escrituras foram traduzidas do hebraico para o grego por setenta e dois tradutores (seis
de cada tribo) hebreus, a pedido do rei egípcio Ptolomeu Filadelfo que queria dar destaque
para os textos na sua biblioteca, a provar a fidelidade dos textos pela coincidência entre as
palavras e os sentidos que os tradutores a atribuíram mesmo ao fazerem a tradução de modo
separado um do outro459
. Essa versão das Escrituras é conhecida como a versão dos Setenta.
Mais tarde Jerônimo traduziria as Escrituras do hebraico para o latim. Isso indica como a
455 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 335-348. 456 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 349-350. 457 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 352. 458 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 353-354. 459 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 355-356.
139
cidade terrestre se dividia em meio à confusão e como a de Deus era concorde com base no
valor da fé.
Quando reinava o primeiro rei estrangeiro na Judéia, Herodes, o Imperador César
Augusto decretou um período de paz no mundo após a mudança do regime constitucional
romano na mesma época em que nascera Cristo460
. Para Agostinho os cidadãos da Cidade de
Deus são aqueles que aceitam Cristo, desde nações estrangeiras até os israelitas. A Cidade
celeste e a terrena estão misturadas, afligidas pelos mesmos males e usando por igual os bens
temporais, até o fim dos tempos461
e isso a história demonstra.
2.5 Os objetivos das cidades terrena e celeste: paz e felicidade
Nos subtítulos 3.3 e 3.4 mostramos que a intenção de Agostinho era demonstrar a
existência e o desenvolvimento das duas cidades do ponto de vista alegórico e temporal
através da narração do povo hebreu e dos impérios surgidos no mundo, que se pautaram pela
prática do bem ou do mal, em busca de determinados bens (objetos) na história da
humanidade segundo a tensão dialética entre dominação e liberdade. A prática do bem nos
leva à perfeição e a do mal à nocividade e destruição nas esferas pessoal e estatal.
Já o Livro XIX da obra “Cidade de Deus” é o ponto filosófico central da teoria
agostiniana do Estado ético-político. Esse livro é o mais significativo em termos de doutrina
sobre um Estado justo (paz e felicidade). A Cidade de Deus enquanto peregrina neste mundo
deve refletir a imagem de um Estado fundado na ética. Para argumentar em favor da doutrina
cristã de paz e felicidade, o pensador refuta as filosofias consideradas errôneas ou incompletas
por ele. A busca pela felicidade está em alcançar o bem e se afastar do mal. De uma forma ou
de outra, as filosofias buscam o bem e evitam o mal para chegarem à felicidade, a depositá-la
no corpo, na alma ou em ambos, muito embora estejam incompletas e, frequentemente,
incorram em erros.
Agostinho classifica os fins de bem e mal em: o soberano bem e o soberano mal.
Assim conceitua os fins:
O fim de nosso bem é aquele objeto pelo qual se devem apetecer os demais e
apetecê-lo por si mesmo. E o fim do mal, aquele pelo qual se devem evitar os
demais e evitá-lo por si mesmo. Desse modo, por fim do bem não entendemos fim
460 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 360. 461 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 372.
140
consuntível até o não ser, mas perfectível até a plenitude, e por fim do mal, não o
que o destrua, mas o que o leve ao mais alto grau de nocividade.462
Agostinho pretende provar o erro de certas filosofias no âmbito da autoridade divina e
da razão. A razão serve para convencer os não-crentes. O pensador cristão tem a certeza de
que o entendimento de felicidade das falsas filosofias se funda na infelicidade desta vida, cujo
número chegava em mais de duzentos e oitenta e oito entendimentos segundo Marco Varrão.
Todas essas correntes partem da combinação de quatro coisas que o homem busca
naturalmente: o prazer (movimento agradável do corpo), o descanso (exclusão do sofrimento),
ambos juntos (denominado simplesmente prazer por Epicuro) e os princípios da natureza
identificados no corpo (integridade, sanidade e incolumidade) e na alma (sentido e
intelecto)463
.
As filosofias buscam alcançar a felicidade a partir desses quatro elementos. Esses não
são ensinados, não precisam de conhecimento e não precisam sofrer qualquer juízo ético, a
indicar que são bens que antecedem qualquer conhecimento ou ensinamento, pois naturais ao
homem. Esses elementos seriam propriedades humanas. O prazer pode estar sujeito, anteposto
ou unido à virtude; assim como também o descanso, o prazer e o descanso e os princípios
naturais. Cada uma dessas possibilidades representa as opiniões existentes. A partir de quatro
elementos associados à virtude, surgem doze combinações ou doze filosofias diferentes. O
número doze duplica se inserirmos a variável social, segundo a qual cada corrente deve
filosofar por si mesma ou também pelas outras, a somar vinte e quatro. Ao inserirmos a
variável verdade (estóicos) ou verossimilhança (neoacadêmicos) do que afirma cada uma das
correntes, chegaremos ao número quarenta e oito. Novamente, ao adicionarmos a variável
segundo o modo de aderir a essas correntes, ao modo de outros filósofos ou dos cínicos, o
número de correntes filosóficas chega a noventa e seis. Os homens podem pertencer a
quaisquer destas correntes levando vida ociosa (estudo), de negócios (estudo mais governo da
república) ou de forma mista (ora estudando, ora governando). Com essa tríade, o número de
correntes filosóficas chega a duzentos e oitenta e oito464
.
Agostinho descreve que Marco Varrão reduziu essas correntes nas doze primeiras,
pois nestas se procura o soberano bem. Posteriormente, considerou apenas o elemento inicial
princípios da natureza, visto que implicam prazer e descanso. Isso contabiliza três
462 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375. 463 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375. 464 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 376-377.
141
possibilidades: “apetecer os princípios da natureza pela virtude, a virtude pelos princípios da
natureza ou ambos, a virtude e os princípios da natureza por si mesmos”465
. Marco Varrão,
cujo mestre foi Antíoco, opta pela última alternativa e afirma que a felicidade está no homem,
nem em Deus nem nos seres irracionais. Como o homem é corpo e alma, deve buscar os bens
da alma e do corpo. O ponto central desta filosofia é a virtude surgir dos princípios da
natureza – os quais incluem o prazer e o descanso – de modo que o homem a constitui como
“fruto de aprendizagem”466
a partir de si. A virtude subsiste no homem e se encontra nesta
vida.
O bispo de Hipona é categórico em afirmar que as filosofias se referem à opinião dos
homens. Segundo ele, as metas (fins) dos bens e dos males do pensamento cristão são
respectivamente a vida e a morte eternas. Para conseguirmos o soberano bem, devemos bem
viver. Vemos, então, que a vida eterna está ligada com o bem viver. O bem viver não deve ser
a virtude entendida pelos homens por estar sujeita à mutabilidade do tempo e a uma felicidade
apenas terrena. O corpo pode sofrer deformidade, enfermidade, o peso e outros males. Já a
alma possui como bens primários o sentido e o intelecto capazes de perceberem e
compreenderem a verdade, mas sujeitos igualmente à defectibilidade, por exemplo, na surdez
e na loucura467
.
A virtude é o “bem mais útil”468
para o homem viver retamente (bem viver) e, assim,
“reclama para si o primeiro posto entre os bens humanos”469
, muito embora chega a
reconhecer que se trata de “fruto tardio da ciência”470
ao não entrar no rol dos princípios da
natureza.
Parece haver uma contradição lógica de entendimento de Agostinho em relação à
virtude, a qual estaria entre os bens superiores conforme certa ordem da criação a princípio,
mas, ao mesmo tempo, seria fabricada a partir da ciência humana. Em capítulo anterior
mencionamos as autênticas virtudes para Agostinho como a prudência, a fortaleza, a
temperança e a justiça. A prudência é “o conhecimento daquelas coisas que precisam ser
465 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 379. 466 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 380-381. 467 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 382. 468 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 385, 469 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 383. 470 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 383.
142
desejadas e das que devem ser evitadas”471
. A fortaleza é “a disposição da alma pela qual nós
desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder”472
. A
temperança é “a disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que
constituem uma vergonha o ser desejadas”473
. A justiça é “a virtude pela qual damos a cada
um o que é seu”474
.
No Livro XIX, Capítulo IV, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho diz que as virtudes
servem para dar testemunho da infelicidade humana de maneira que a temperança põe limite à
libido para que a razão não consinta na prática de crimes; a prudência é útil para discernir o
bem do mal e, então, indica o próprio mal no mundo; a justiça para dar a cada um o que é seu,
a indicar a desordem estabelecida e a fortaleza é útil para dar paciência ao homem diante dos
males.
Na verdade, o pensamento agostiniano considera a virtude como a ciência de viver
retamente, pois é capaz de encontrar a ordem justa e procedente da natureza a partir do
próprio homem que tem na razão475
a possibilidade de conhecer a Verdade. Enquanto essa
ciência estiver presa no homem – como o fez Varrão e Epicuro –, as virtudes são enganosas e
soberbas ao terem por fim a felicidade terrena. As virtudes – a arte de viver retamente – são
autênticas quando tiverem por fundamento racional a Verdade, isto é, quando estiverem além
do corpo e da alma do homem. Para tanto, as virtudes são bens dispostos com certa ordem
para serem utilizados para o homem viver retamente de modo a constituírem em meios aptos
para a verdadeira felicidade. Com efeito, o soberano bem é aquele “perfectível até a
plenitude”476
. As palavras tiradas do Livro XIX, Capítulo X, da obra “Cidade de Deus” são:
Quando nós, mortais, entre a enfermidade das coisas, possuímos a paz que pode
existir no mundo, se vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus bens;
mas, quando não a possuímos, a virtude faz bom uso até mesmo dos males de nossa
condição humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em fazer bom uso dos
bens e dos males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de perfeita e
incomparável paz.477
471 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 57. 472 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58. 473 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58. 474 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58. 475 Já vimos o papel que a graça exerce no homem. O auxílio divino é essencial para o homem. Vimos também
como Agostinho trabalha com o binômio Deus/homem. 476 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375. 477 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 392.
143
É significativo o pensamento agostiniano a respeito da virtude como bem útil no
mundo para que possamos atingir a paz. A Cidade de Deus, peregrina neste mundo,
experimenta dessa paz por meio das virtudes que são o caminho para a perfeição até a
plenitude da Cidade de Deus, felicidade completa.
O que o filósofo pretende é elevar a felicidade a patamares em que nenhum mal é
capaz de desviar esse objetivo. O bem viver é o meio para se chegar a essa felicidade. Por
isso, as virtudes consideradas como bens, que advêm dos princípios naturais, são capazes de
alcançar a felicidade terrena; tão passageira como eles. Na cidade terrena, somos chamados
felizes quando gozamos de paz tal qual podemos gozar nesta vida478
.
Da mesma maneira em que observa a incompletude das virtudes meramente humanas
(dos princípios naturais) para a conquista da felicidade verdadeira, reconhece a dificuldade
existente na vida social para alcançá-la. Como vimos, Agostinho considera o Estado uma
associação de homens unidos por um vínculo comum. Essa união é antevista simbolicamente
com a criação do segundo homem (Eva) a partir do primeiro (Adão). Esse elemento da união
entre os homens é considerado um bem de modo que todos os homens devem viver de acordo
com o vínculo da concórdia ordenada. Mesmo assim, Agostinho, sabendo que “a vida do
sábio é vida de sociedade”479
, sabe que os laços sociais são permeados de injúrias, suspeitas,
inimizades, guerras, de modo que a paz é transitória e, consequentemente, a felicidade terrena
é passageira. Isso se passa no âmbito dos três graus de sociedade humana: casa, cidade e o
mundo480
. Vimos como houve guerras externas e civis dominaram o mundo e as cidades a
partir da diversidade de línguas. A infelicidade é verificada neste mundo de forma inconteste
mesmo nas guerras declaradas justas em que uma sociedade se protege contra a injustiça de
outro. Igualmente, a amizade em casa, na cidade ou entre os Estados é insegura a ponto de
confundir o amigo com o inimigo481
.
A infelicidade é tal que pessoas inocentes são vítimas de erros dos juízos humanos que
se fazem frequentemente na cidade terrena na medida em que a sociedade humana força e
obriga o juiz a julgar, mesmo que em ignorância. Nesse caso, não há maldade do juiz que
pratica a justiça com ignorância invencível. De qualquer modo, a justiça humana é falha ao
permitir que pessoas inocentes, que não provam suas declarações, sejam condenadas por
478 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 392. 479 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 385. 480
Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 389. 481 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 390.
144
juízos alheios que testemunham a mentira para o crime não ficar impune. Nesse aspecto, a
justiça humana é miserável ao não conseguir saber a verdade482
.
Já a felicidade verdadeira é a eterna que independe das vicissitudes dos males, mas,
dependem das virtudes autênticas fazer bom uso dos males do mundo em direção a ela. A
plenitude da felicidade só é alcançada na Cidade de Deus na vida eterna. Agostinho rechaça,
então, as filosofias sobre o entendimento da virtude que não sejam compatíveis com esse
objetivo de perfeição e plenitude na medida em que a felicidade terrena se funda na
infelicidade desta vida (terrena). Neste mundo as virtudes dão testemunho dos vícios e dos
males; na Cidade de Deus as virtudes terão a eterna paz. A ética agostiniana é, nesse sentido,
dirigida para os fins últimos do homem (salvação) e do Estado (Cidade de Deus) e, por isso,
se diz escatológica.
Agostinho diz que a Cidade de Deus encontrará o soberano bem (paz) na vida eterna.
Neste mundo, todos os seres aspiram à paz. Mesmo os que guerreiam querem vencer para
estabelecer a paz. Podemos dizer que a paz é o fim da guerra. O pensador constata o erro em
constituir a paz segundo sua vontade humana, o que equivale a dizer a imposição de
condições dos vencedores aos vencidos conforme o entendimento próprio. Os vencidos, por
sua vez, submetem-se ao vencedor por medo ou por amor para estar em paz com ele de modo
que “todos desejam, pois, ter paz com aqueles a que desejam governar com seu arbítrio”483
A paz humana não é considera paz para o filósofo cristão, pois perverte a ordem das
coisas arbitrariamente. Do conceito de paz, como fim do Estado, constitui-se o elemento
primordial de formação do Estado: a concórdia ordenada, que é o vínculo de união que une os
homens no Estado de maneira a permitir a paz. Essa concórdia é ordenada por seguir a lei da
ordem que é “a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes
corresponde”484
. A paz é a consequência da ordem. Assim,
a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a
ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia
entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a
saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela
fé sob a lei eterna.485
482 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 387-388. 483 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 394. 484 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 396. 485 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 396.
145
No trecho acima se observa que a sabedoria consiste na harmonia entre o
conhecimento e a ação para o correto agir. Parece haver uma estreita relação entre essa ética e
a lei eterna na medida em que aquela tem seu ponto de referência na verdade. A Verdade
ordenou os bens para que sempre exista algum bem na natureza. De fato, a ordem espelha a
bondade no ato da criação, isto é, a lei natural. Se há a desordem criada pela vontade – no
estabelecimento da paz ao talante humano -, o poder da justiça não lhe é subtraído. Os bens
dispostos devem ser bem utilizados pelos homens (a paz temporal, a paz na conservação e
união das espécies, os sentidos, etc.) para serem dignos de receberem bens melhores. O
conhecimento é parte essencial para a vida e os costumes. Sem ele, a ação torna-se
desordenada.
Nessa medida, o bispo de Hipona esclarece que “o uso das coisas temporais relaciona-
se, na terra, com a obtenção da paz terrena e, na Cidade de Deus, com a obtenção da paz
celeste”486
para exprimir a diferença de natureza entre as duas cidades – dois tipos de
sociedades de homem – refletidas nos fins últimos do Estado: a paz terrena e a paz celestial.
A paz terrena o homem é capaz de alcançar por si próprio; a paz eterna necessita da
autoridade e do auxílio divino para agir com liberdade sem errar. Neste ponto, a teologia
física de Agostinho relaciona fé e razão. A fé implica obediência a Deus como forma de obter
o auxílio divino para que o entendimento não se desfaleça em erros que torne o arbítrio
submisso aos males, e, não, obediente à ordem. A obediência do homem a Deus, ou seja, do
ser à Verdade, ensina a lei eterna ao homem: o amor a Deus, ao próximo e a si mesmo de
modo que a ordem a ser seguida é não fazer mal a ninguém em primeiro lugar e fazer o bem
quem se possa. A paz, a ordenada concórdia, é obtida dessa forma de modo que não se deve
ordenar com desejo de dominação, mas por dever de caridade487
. A lei terrena é aquela que
domina; e a celeste, aquela que ama.
A liberdade segundo a ordem natural serve para que o homem domine os seres
irracionais. A dominação do homem pelo homem não faz parte da ordem natural. Deus não
criou o homem escravo de outro homem nem de si mesmo pela força do pecado. Nenhum tipo
de domínio, seja dos servos em relação aos seus senhores, seja do homem em relação às
paixões, vêm da ordem natural. Contra a lei da dominação, Agostinho apresenta a caridade
como instrumento para aniquilar o poder humano e conceder a liberdade. Algumas críticas
referentes a uma passagem bíblica do apóstolo São Paulo que aconselha os escravos a
486 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 398. 487 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 399.
146
servirem os senhores de coração e de bom grado tem tido uma interpretação em direção à
aceitação da escravidão pelo Cristianismo. Agostinho, à época, rebatia essas acusações contra
os cristãos e explicava que o sentido preciso era o de libertar o homem enquanto homem até
que a injustiça se desfizesse. O pensador resume o raciocínio nos seguintes termos:
Quer dizer, se os donos não lhe dão liberdade, tornem eles, de certa maneira, livre
sua servidão, não servindo com temor falso, mas com amor fiel, até que passe a
iniqüidade e se aniquilem o principado e o poder humano e Deus seja todo em todas
as coisas.488
A igualdade de tratamento em questões temporais existia, mas em relação às
espirituais não havia distinção entre os escravos e os filhos de maneira a repreender quem
desobedecesse e quebrasse a ordem estabelecida. A concórdia ordenada na casa deveria
implicar na paz cívica entre os governantes e cidadãos489
segundo a visão antiga. O que se
quer demonstrar é a justiça espiritual que havia no domínio humano.
Da constituição do Estado, composto dos dois tipos de sociedade de homens, emanam
leis civis que regulam a vida em sociedade para que haja um mínimo de “concerto das
vontades humanas”490
de acordo com os interesses dos bens necessários de tal modo que se
forme a concórdia entre os cidadãos e, assim, advenha a paz terrena. É muito salutar que
Agostinho reconheça a obediência dos cidadãos às leis civis, pois o Estado é apto a satisfazer
a paz terrestre. A Cidade de Deus, enquanto peregrina, “protege e deseja o acordo de vontades
entre os homens (...) deixando a salvo a piedade e a religião, e ministra a paz terrena à paz
celeste, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional”491
. Esse é um ponto comum
em que os cidadãos que professam a fé e os que não a aceitam estão de acordo. Não há na
percepção agostiniana de Estado um fundamentalismo religioso centrado numa teocracia; o
que há é uma tentativa de se chegar a uma ética apoiada em um fundamento racional que
embase as leis civis. Para o pensador, a lei natural como predicado da lei eterna é o
fundamento verificado na ordem da natureza.
A discordância entre os dois tipos de sociedades reside na acepção que carregam
quanto ao papel da religião no Estado. Agostinho percebe que a cidade terrena tende a eleger
certos bens como fins últimos do Estado, como, por exemplo, o dinheiro, a ciência, o vinho,
488 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 400. 489 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 401. 490 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 402. 491 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 402.
147
entre outros, como verdadeiras leis religiosas Por sua vez, a cidade celeste parece não se
importar com a diversidade de leis, costumes e instituições para o estabelecimento da paz
terrena, desde que o Estado não proíba o culto da verdadeira religião. Aqui existe uma
dialética de implicação necessária entre o Estado e os dois tipos de sociedades de homens que
perfazem os cidadãos. Essa dialética de implicação consiste nos dois tipos de sociedades
respeitarem as leis que regulamentam a concórdia entre os cidadãos, a sociedade que vive
segundo a fé suportar as violências e perseguições dos que têm opinião contrária e o Estado
não impedir o culto da religião cristã.
Observa-se que, o elemento fé na doutrina de Agostinho antes de prejudicar o homem
contribui para sua formação na medida em que: (i) reconhece a possibilidade da razão e do
espírito terem um conhecimento certo, embora limitado pela corrupção do primeiro pecado,
(ii) não afasta a importância dos sentidos que manifestam as realidades evidentes para o
conhecimento do espírito e (iii) coloca em dúvida certas afirmações que não decorrem nem
dos sentidos nem da razão nem das Escrituras492
. Assim, a fé cristã é racional ao trabalhar
com elementos que possam ser aptos ao conhecimento da verdade que nos trazem a certeza.
Segundo o filósofo, os elementos retro mencionados afastam-nos das falsas doutrinas que nos
trazem incertezas.
A fé cristã significa o amor à verdade e o dever de caridade ao próximo493
. Por isso,
não é um elemento prejudicial para a sociedade. A verdade e o amor são a tônica da Cidade de
Deus. Agostinho nos ensina a aplicá-la aos gêneros de vida que o homem pode seguir
segundo os costumes. No ócio se deve buscar o conhecimento da verdade, não a inação; na
ação a honra e o poder são instrumentos úteis para o trabalho que propõe a justiça e
incolumidade dos subordinados, não a vaidade do poder e da honra.
Com todo esse entendimento de Estado justo cristão baseado na paz eterna e na prática
das virtudes autênticas, Agostinho transportará seu raciocínio filosófico para o Estado a partir
da definição de república romana extraída do livro “Sobre a República” de Cícero em que se
discute sobre governar com ou sem justiça com o intuito de dizer que nunca houve república
em Roma.
O que Agostinho pretende é desqualificar de justo o Estado que não se funda sobre
bases da verdadeira justiça de modo que a fé e a virtude cristã sirvam de parâmetro para julgar
492 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 403. 493 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 404.
148
as instituições humanas e afirmar se estão ou não conforme a lei natural, consequência da lei
eterna.
A definição de Cícero é a de que a república “é coisa do povo”494
, considerado a
“sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e sobre a comunidade de interesses”495
governada com justiça. Agostinho observa que a república romana nunca foi do povo, pelo
fato de que o direito se fazia sem justiça e a concepção de direito como o que é útil ao mais
forte tornava as instituições iníquas. Para ele, o direito emana da justiça e onde não há
verdadeira justiça não há direito reconhecido e, assim, não existe sociedade de homens com
direitos reconhecidos, sendo as pessoas apensas “um conjunto de seres”496
. Nas palavras do
pensador: “Se, por conseguinte, a república é a coisa do povo e não existe povo que não esteja
fundado sobre direitos reconhecidos e não há direito onde não há justiça, segue-se que onde
não há justiça não há república”497
.
O raciocínio acima de Estado a partir da verdadeira justiça permite termos um juízo de
justo e injusto aplicado a qualquer Estado na história, uma vez que se funda racionalmente em
um conceito objetivo de justiça. A fórmula da justiça que dá a cada um o que é seu tem a
violação máxima quando o homem se afasta de Deus e, assim, não lhe rende obediência, de
modo a ocasionar a desordem da relação em que “quando a alma está submetida a Deus,
impera com justiça sobre o corpo e, na alma, a razão submetida a Deus, manda com justiça a
libido e as demais paixões”498
. A ocorrer a desordem no homem, a justiça desaparece nele e
na sociedade que é uma associação de homens semelhantes.
Para Agostinho a desordem no Estado é refletida diretamente na desordem do Estado.
Não há ordem no homem se não está submetido a Deus e, por isso, o Estado não deve impedir
o verdadeiro culto a Deus, sob pena de causar uma desordem na própria sociedade.
O pensamento agostiniano é centrado em Deus ao modo cristão como a forma mais
eloqüente de entendimento capaz de ser verdadeiro do ponto de vista da razão e da fé. Tenta
comprovar esse fato por meio de personagens que refletem correntes diversas e, ao mesmo
tempo, chegam em um ponto comum, a começar por Abraão que recebeu a promessa de
494 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 405. 495 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 405. 496 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 406. 497 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 406. 498 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 406.
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serem abençoadas as suas descendências; seguido por Varrão, sábio romano, que via em
Júpiter o deus dos deuses e, ainda, o filósofo Porfírio que mencionava o Grande Deus a partir
do oráculo dos deuses, inclusive Apolo, que afirmava499
a grandeza do Deus dos judeus. O
argumento de Agostinho é histórico e de autoridade ao mesmo tempo, a pensar que a
concretização de todos as expressões das correntes retro mencionadas realizou-se com a
pessoa de Cristo no mundo. O que antes era percebido pela fé e pela razão se unirão em uma
só pessoa, condenada injustamente embora fosse o próprio Deus.
Diante disso, o contorno que Agostinho imprime à fé cristã é o de contribuir para a
justiça no Estado por meio do homem que é obediente a Deus de modo que “a alma imperará
fielmente e com ordem legítima sobre o corpo e a razão sobre as paixões”500
e,
consequentemente, espalhará a lei divina, de amor a Deus e ao próximo, e da lei natural, de
não fazer ao outro o que não queremos que nos seja feito, na sociedade de homens para que
esteja fundada sobre direitos reconhecidos e comunidade de interesses com o desiderato de
formar uma república em que haja um povo realmente que a constitua e, que, por fim, possa
denominar a república de coisa do povo.
Da mesma forma, Agostinho analisa o conceito de povo como sendo “‘o conjunto de
seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados’”501
para afirmar que
quando se amam os vícios, como a guerra, a concórdia tende a romper e a se corromper na
sociedade de modo a sobrepô-los à razão, morada da lei natural, como aconteceu em Roma,
Atenas, Babilônia e Egito. Em outras palavras, a prática dos vícios despreza a lei natural e
ocasiona o rompimento do elemento que dá unidade social, a concórdia.
Não obstante, Agostinho aconselha a Cidade de Deus, peregrina neste mundo, a querer
e a desfrutar da paz terrestre. A paz terrestre é comum a todos os homens. Ao lado desta,
existe a paz privativa do povo da Cidade de Deus que é a eterna. Mesmo essa paz é
conseguida com muitas lutas por haver uma constante tensão entre a razão e as paixões de
maneira que não a torna perfeita neste mundo. O soberano bem da felicidade na paz só será
atingido na plenitude da Cidade de Deus na vida eterna, onde as paixões não existirão. A paz,
por fim, atingida é ordenada e “traz a estabilidade e a submissão do inferior ao superior”502
.
O final da cidade terrena será a dor e o tormento da guerra entre a paixão e a vontade. Esses
499 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 404. 500 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 412. 501 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 413. 502 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 501.
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dois fins diferentes para cada uma das cidades com descrições do juízo final são expressos por
Agostinho de forma teológica exclusivamente nos Livros XX, XXI e XXII da obra “Cidade
de Deus”, o que escapa à abordagem que pretendemos neste trabalho de delinear o formato do
Estado ético e, por isso, não teceremos maiores considerações a respeito.
Reservamo-nos a dizer que Agostinho submete as duas cidades – terrena e celeste – ao
mesmo julgamento final. Os homens dos dois tipos de sociedades serão julgados pela mesma
Verdade. Isso indica que não seremos julgados por aquilo que fomos capazes de conhecer por
nossa razão, limitada e finita, mas se fomos partícipes da lei eterna por meio da lei natural,
comum a todos os homens, capaz de trazer a felicidade como a paz ordenada entre o inferior e
o superior, seja pela contemplação, pela autoridade, pelo intelecto ou pela conduta.
A sociedade de homens que viveu segundo a carne terá a condenação eterna503
, não
terá oportunidade de buscar o que não procurou nesta vida504
, não encontrará a unidade com
Deus se não a encontrou neste mundo505
, não importará se se disseram cristãos católicos506
nesta vida, e não lhe servirá o oferecimento de esmolas se andava em erro507
. Esse é o
resultado por ter o homem utilizado o livre-arbítrio, atributo natural do intelecto, para violar a
lei divina e abandonar a Deus e incidir em erro de modo a trazer a infelicidade. Essa
sociedade de homens reconhece o Estado bem organizado como um fim em si mesmo capaz
de conservar e garantir a subsistência de modo que tenha duração eterna neste mundo508
,
mesmo que tenha que se utilizar da guerra para preservar a fidelidade ou a incolumidade.
A Cidade de Deus, de outro modo, reconhece que foi criada para possuir e contemplar
a Deus, fonte de felicidade de modo a viver em meio aos males como testemunha de que a
natureza foi criada boa e poderia desses advir algum bem pelo bom uso do livre-arbítrio com
o a graça divina enquanto peregrina nesta terra, não lutando pela “subsistência temporal, mas,
ao contrário (...) para lograr a vida eterna”509
com a esperança no amor, a instrução e a lei510
,
503
Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 509. 504 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 513, 505 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 514. 506 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 516. 507 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 520. 508 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 535. 509 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos: .Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 534. 510 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 563.
151
sendo esta conhecida pela razão e inteligência “para a percepção da verdade e amor ao
bem”511
e, então, capaz de adquirir as virtudes para combater os erros, para, por fim, ter a paz
eterna pela visão de Deus (Verdade e Amor) após a ressurreição.
511 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 569.
152
CONCLUSÃO
Não elaboraremos uma lista de conclusões tiradas de cada um dos capítulos em que os
argumentos foram expostos, mas, sim, apresentar a obra “A Cidade de Deus” como fonte de
pressupostos filosóficos da noção de Estado inserida em uma realidade, mas, ao mesmo
tempo, transcendente a ela. Percebemos o esquema mental da obra “A Cidade de Deus” a
partir de categorias teóricas e fáticas. Assim, pretendemos apresentar o Estado ético-jurídico
agostiniano como a construção de um pensamento para entendermos a importância de um
sistema filosófico a partir de uma ontologia posta, de um lado, como argumento de defesa
para os que acusavam os cristãos de prejudicarem a comunidade política e de lhes atribuírem
a responsabilidade pela ruína de Roma (Império romano do Ocidente) e, de outro, como ideia
de uma sociedade justa através dos tempos.
Esse trabalho, como se expôs no início, se fundamenta nos pressupostos filosóficos do
Estado ético-jurídico agostiniano: (1) criação, (2) ordem, (3) livre-arbítrio e (4) graça. Foi a
partir desses pressupostos que Agostinho defendeu o cristianismo contra a acusação de ser o
responsável de prejudicar a comunidade política.
A partir desses quatro fundamentos filosóficos, operou-se uma síntese do pensamento
de uma sociedade justa que em nada prejudica o Estado, antes é apta a tornar as virtudes
cívicas em instrumentos úteis para a concretização do bem comum. As circunstâncias
históricas e pessoais que envolveram Agostinho permitiram-lhe refletir a partir do estudo do
ser com reflexos, notadamente, nos campos do Estado e das leis considerados bens (em
contraposição à noção de mal agostiniano) que proporcionam a união dos cidadãos, de forma
a entender o poder como meio positivo para o bem comum.
A segurança (paz), que o Estado proporciona, é algo desejado pelos cidadãos,
inclusive pelos cristãos que devem cumprir as leis civis. A lei civil, mutável e temporal, é um
bem para organizar a sociedade, muito embora não seja capaz de per si garantir uma
sociedade justa na medida em que pode ser editada pelas influências de poderosos influentes
que objetivam justificar os próprios males (sentido amplo) ou, apesar de moralmente boa,
servir como estímulo à própria violação ou ser mal usada. Tanto que as leis civis não foram
capazes de manter o Império romano do Ocidente. Roma vivia uma decadência dos costumes
e, por isso, se dizia que isso era um inimigo muito maior por estar dentro do cidadão do que
qualquer outro externo que pudesse romper os muros da cidade romana. A visão realista de
153
Agostinho permitiu verificarmos o Estado e as leis civis como projetos humanos marcados
pelo transitório e pelo mutável.
A par do Estado ético-jurídico e das leis civis, existem a “Cidade de Deus” e a lei
natural que atravessa os tempos em um convívio contínuo com aqueles na visão agostiniana.
O filósofo demonstrou que certas verdades, constitutivas de sua ontologia, permanecem de
forma contínua e imutável. A cidade celeste é uma alegoria de sociedade justa e feliz
misturada com a sociedade terrestre – por isso, real - que se dirige linearmente para um fim de
plena justiça e felicidade (escatologia). Da mesma forma, existe uma lei natural racional na
consciência de cada cidadão através dos tempos e em diversos lugares que está acima do
poder humano em alterá-la apesar de poder ser rejeitada por vontade de cada qual de maneira
a ocasionar um agir contrário à natureza em diversos tempos e lugares. Não há, também, nas
obras agostinianas um rol exaustivo de direitos fundamentais aos moldes modernos e nem
pareceu ser essa a intenção de Agostinho.
Agostinho enxergou a lei natural racional como expressão da lei divina (lei do amor a
Deus e ao próximo), um verdadeiro postulado ético de que não façamos ao outro o que nós
não queremos que nos seja feito, de não retribuirmos o mal com o mal e como elemento para
conservação da ordem. Antes de serem apenas categorias teóricas, o filósofo cristão as põe
como primados da conduta dos cidadãos, a partir de problemas reais, especialmente, da justiça
punitiva e das relações externas de guerra e paz, capazes de fortalecer a concórdia bem
ordenada - elemento constitutivo de Estado – e a paz – objetivo do Estado -, como exigências
de uma transformação cristã das virtudes cívicas a patamares de decência política maiores das
que havia na época de Cícero, as quais são elogiadas por Agostinho.
É por esse percurso que o pensador defendeu os cristãos acusados de prejudicarem o
Estado na medida em que em nenhum templo sagrado cristão havia a incitação à violência
para romper o vínculo de união dos cidadãos, antes existiam palavras que trouxeram
dignidade ao homem de considerar o outro como igual por natureza e, assim, não permitir que
a maldade humana (vícios) – por vezes, permitida pela lei civil – se estendesse ao Estado
(corrupção), o qual deveria ser o fator de união entre os cidadãos, e, não, de vingança ou
punição desnecessária, nem mesmo para provocar ou justificar guerras injustas.
Roma, como alegoria da cidade terrestre, caiu pelos seus próprios erros ao antepor os
bens inferiores aos superiores e de usar mal o livre-arbítrio para tentar justificar os vícios
humanos, por vezes, com o respaldo da lei civil, que, por sua vez, é imposta pela vontade do
governante com o intuito de dominar e de utilizar o poder pelo poder. A sociedade justa e
feliz, alegoria da “Cidade de Deus”, caminha através dos tempos, mas já neste mundo, em
154
direção aos bens superiores, a aderir por vontade própria à lei natural, presente na consciência
humana entendida como elemento de união subsistente às leis civis, apta, pois, a trazer
liberdade às pessoas e a formar civilizações perenes através da história, sem ter a pretensão de
construir um Estado teocrático.
O pensamento agostiniano pareceu ter a pretensão de ver na cristandade a força
necessária para afastar tudo o que escravizava o homem e corrompia o Estado, de tal modo
que a tradição judaica, a filosofia grega e o sistema jurídico romano fossem absorvidos e
fundidos em torno de uma verdade para além de si mesmos para a concretização de um
projeto de sociedade justa e feliz, assim como a fé e a razão uniram-se para convencer, pela
prática do amor, um mundo que se encontrava em confusões filosóficas, turbulências
religiosas, decadências políticas, desordens morais e mudanças históricas.
155
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