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Diaspore. Quaderni di ricerca 7 Mobilidade humana e circularidade de ideia Diálogos entre a América Latina e a Europa editado por Luis Fernando Beneduzi Maria Cristina Dadalto Edizioni Ca’Foscari

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    Diaspore. Quaderni di ricerca 7

    Mobilidade humana e circularidade de ideiaDilogos entre a Amrica Latina e a Europa editado por Luis Fernando Beneduzi Maria Cristina Dadalto

    EdizioniCaFoscari

  • DiasporeQuaderni di ricerca

    Collana diretta da | A series edited bySusanna RegazzoniRicciarda Ricorda

    7

    Mobilidade humana e circularidade de ideia

  • DiasporeQuaderni di ricercaDirettori | General editorsSusanna Regazzoni (Universit Ca Foscari Venezia, Italia)Ricciarda Ricorda (Universit Ca Foscari Venezia, Italia)

    Comitato scientifico | Advisory boardShaul Bassi (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Enric Bou (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Luisa Campuzano (Universidad de La Habana, Cuba) Ilaria Crotti (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Antonio Fernndez Ferrer (Universidad de Alcal, Espaa) Rosella Mamoli Zorzi (Universit Ca Foscari Venezia, Ita-lia) Emilia Perassi (Universit degli Studi di Milano, Italia) Eduardo Ramos Izquierdo (Universit de Paris IV Sorbonne, France) Melita Richter (Universit degli Studi di Trieste, Italia) Daniela Rizzi (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Silvana Serafin (Universit di Udine, Italia)

    Comitato di redazione | Editorial staffMargherita Cannavacciuolo (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Ludovica Paladini (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Alberto Zava (Universit Ca Foscari Venezia, Italia)

    Lettori | ReadersRosanna Benacchio (Universit degli Studi di Padova, Italia) Luis Fernando Beneduzi (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Anna Boschetti (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Silvia Camilotti (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Alessandro Cinquegrani (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Adriana Crolla (Universidad Nacional del Litoral, Argentina) Biagio DAngelo (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil) Monica Giachino (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Marie Christine Jamet (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Adriana de los Angeles Mancini (Universidad de Buenos Aires, Argentina) Pia Masiero (Uni-versit Ca Foscari Venezia, Italia) Maria del Valle Ojeda Calvo (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Patrizio Rigobon (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Michela Rusi (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Alessandro Scarsella (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Mara Carmen Simn Palmer (CSICConsejo Superior de In-vestigaciones Cientficas, Madrid, Espaa) Alessandra Trevisan (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Michela Vanon Alliata (Universit Ca Foscari Venezia, Italia) Elisa Carolina Vian (Universit Ca Foscari Venezia, Italia)

    Direzione e redazione | Editorial officeUniversit Ca Foscari VeneziaDipartimento di Studi Linguistici e Culturali Comparati Ca BernardoDorsoduro, Calle Bernardo, 319930123 Venezia

    http://edizionicafoscari.unive.it/it/edizioni/collane/diaspore

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  • VeneziaEdizioni Ca Foscari Digital Publishing2017

    Mobilidade humana e circularidade de ideiaDilogos entre a Amrica Latina e a Europa

    editado por Luis Fernando Beneduzi Maria Cristina Dadalto

  • Mobilidade humana e circularidade de ideia: Dilogos entre a Amrica Latina e a EuropaLuis Fernando Beneduzi, Maria Cristina Dadalto (editado por)

    2017 Luis Fernando Beneduzi, Maria Cristina Dadalto (texto) 2017 Edizioni Ca FoscariDigital Publishing (edio)

    Qualunque parte di questa pubblicazione pu essere riprodotta, memorizzata in un sistema di recupero dati o trasmessa in qualsiasi forma o con qualsiasi mezzo, elettronico o meccanico, senza autorizzazione, a condizione che se ne citi la fonte.Any part of this publication may be reproduced, stored in a retrieval system, or transmitted in any form or by any means without permission provided that the source is fully credited.

    Edizioni Ca FoscariDigital PublishingUniversit Ca Foscari VeneziaDorsoduro 324630123 Veneziahttp://edizionicafoscari.unive.it/[email protected]

    1a edizione maggio 2017

    ISBN 978-88-6969-122-5 [ebook]ISBN 978-88-6969-123-2 [print]

    Agradecimentos: - as instituies que financiaram o evento que deu origem presente obra: Comisso de Aperfeio-amento do Pessoal de Nvel Superior (CAPES), Fundao de Amparo Pesquisa do Esprito Santo (FAPES), Secretaria de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), Programas de Ps-Graduao em Cincias Sociais e em Histria da UFES, Centro de Cincias Hu-manas e Naturais da UFES,

    - ao Dipartimento di Studi Linguistici e Culturali Comparati, da Universit Ca Foscari Venezia, pelo financiamento da presente publicao,

    - aos professores e alunos dos Programas de Ps-Graduao em Histria e Cincias Sociais (UFES), em especial Bruno Csar Nascimento, Madson Gonalves Silva, Raul Flix Barbosa e Akilla Lonar-delli, que colaboraram na organizao do evento que originou esta publicao.

    Reviso dos captulos em lngua portuguesa realizada por Edenize Ponzo Peres.

    http://edizionicafoscari.unive.it/it/edizioni/libri/978-88-6969-123-2/DOI 10.14277/978-88-6969-122-5

    http://DOI 10.14277/978-88-6969-122-5

  • Mobilidade humana e circularidade de ideiaDilogos entre a Amrica Latina e a Europaeditado por Luis Fernando Beneduzi e Maria Cristina Dadalto

    Sommario

    Apresentao Luis Fernando Beneduzi, Maria Cristina Dadalto 7

    Os contatos entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito Santo Edenize Ponzo Peres 17

    Imigrao e lngua em uma perspectiva de gnero Len Medeiros de Menezes 29

    As mulheres imigrantes portuguesas sob o vu da invisibilidade Um balano historiogrficoRoseli Boschilia 41

    Memoria y relato La migracin Italia ArgentinaSusanna Regazzoni 55

    Com tinta do meu sangue Redes e mobilidades atravs das cartas de um imigrante italiano Mara Ines Vendrame 67

    O branqueamento da raa A poltica imigratria imperial brasileira e a qualidade dos imigrantesLuiza Horn Iotti 79

    Brasileiros em Portugal e nos Estados Unidos Semelhanas e diferenas nos dois destinosSueli Siqueira, Maria Lucinda Fonseca, Mauro Augusto Santos, Patrcia Falco Genovez 87

    Intelectuais no exlio: algumas notas sensveis Adelia Miglievich 99

    Santos:mltiplas experincias, aes e olhares Cidade-porto, febril, saneada e imaginadaMaria Izilda Santos de Matos 109

  • Cidades brancas? Fronteras urbanas en clave transatlnticaEnric Bou 123

    Livros, leituras e circulao de saberes nas teses mdicas sobre a epidemia de clera da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (C.1855): notas preliminares de pesquisa Sebastio Pimentel Franco, Andr Nogueira 137

    As guas da capitania de Minas Gerais no relato dos estrangeiros: sculo XVIII e XIX Rita de Cssia Marques 149

    A arte da sangria Circularidade de ideias e prticas (Rio de Janeiro, I metade do sculo XIX)Tnia Salgado Pimenta 161

  • Diaspore 7DOI 10.14277/6969-122-5/DSP-7-0 ISBN [ebook] 978-88-6969-122-5 | ISBN [print] 978-88-6969-123-2 | 2017 7

    Mobilidade humana e circularidade de ideiaDilogos entre a Amrica Latina e a Europaeditado por Luis Fernando Beneduzi e Maria Cristina Dadalto

    ApresentaoLuis Fernando Beneduzi(Universit Ca Foscari di Venezia, Italia)

    Maria Cristina Dadalto(Universidade Federal do Esprito Santo, Brasil)

    Este livro uma Co-Produo da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES) com a Universidade Ca Foscari Veneza. Resultado de um projeto de cooperao realizado entre o Departamento de Estudos Lingusticos e Culturais Comparados e do Centro Interdepartamental de Escrituras e Escritoras Migrantes da Universidade Ca Foscari Venezia e os Programas de Ps-Graduao em Histria e em Cincias Sociais da Universidade Fe-deral do Esprito Santo, contou com os apoios da Secretaria de Relaes Internacionais da UFES, da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) e da Fundao de Amparo a Pesquisa do Es-prito Santo (FAPES).

    O desafio colocado para o grupo de pesquisadores envolvidos, e articu-lados numa perspectiva de pesquisa em rede, se cristalizou no Primeiro Colquio Internacional Mobilidade Humana e Circularidade de Ideias, rea-lizado na UFES, em Julho de 2015. O objetivo foi a discusso dos processos de deslocamento de pessoas e movimento de ideias em pases da Amrica Latina especialmente Brasil e Europa. A proposta amadurecida durante os dois anos de realizao do projeto se configura neste livro com o estrei-tamento de laos entre os pesquisadores da rede, com a ampliao das inter-relaes acadmicas, especialmente entre Itlia e Brasil.

    Entendemos assim que este livro se apresenta como produto do per-curso que vimos construindo desde 2011, quando realizamos um primeiro seminrio sobre Estudos Migratrios na UFES. O convvio, a discusso e a produo desde ento trouxeram desafios coletivamente enfrentados, cujo aprendizado uniu ainda mais os integrantes do projeto, mesmo diante de toda dificuldade imposta pela distncia entre os pases. Desse percurso, chegamos a 2015 com novas problemticas de pesquisa, velhos e novos parceiros e o propsito de manter nossa integrao no desenvolvimento de pesquisas que somem esforos para dar maior amplitude e profundidade ao estudo da mobilidade humana e da circularidade de ideias na Amrica Latina e na Europa.

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 7-16

    Nesta perspectiva, delineamos como eixos articuladores para discusso e que se consolida na produo dos artigos aqui organizados, as seguintes questes:

    a. como os processos de mobilidade humana e movimentos de ideias na Amrica Latina e na Europa foram e so influenciados recipro-camente?

    b. como esses processos de mobilidade se diferenciam segundo as ideias em circulao?

    c. que variveis estruturais, histrico-sociais e culturais condicionam o modo de organizao do movimento de pessoas e pensamentos nos pases estudados?

    A questo central que fundamenta a discusso do grupo relaciona-se diretamente dinmica fortemente dialtica que envolve a mobilidade humana e a circulao de ideias. Se por um lado o deslocamento de pes-soas constri imagens sobre os lugares de onde se chega e daqueles de onde se sai, por outro, as ideias-imagens so produtoras de mobilidade, na medida em que alimentam imaginrios e representaes que funcionam como propulsores do agir humano.

    Desse modo, os contatos entre a Europa e a Amrica Latina nos remetem aos ltimos anos do sculo XV, quando os navios de Castela e Arago che-garam regio central do continente, na ilha batizada como Hispaniola. Dava-se, ento, incio a um processo inexorvel de iberizao do subcon-tinente americano, como afirma Carmagnani (2003),1 o qual foi seguido, a partir do sculo XIX, por uma dinmica de europeizao. As relaes entre os dois lados do Atlntico principiaram um duplo movimento entre os dois continentes, tanto de deslocamento de pessoas (da colonizao-ocupao imigrao) quanto de circulao de projetos polticos, sociais, culturais, de percepes de mundo, de representaes.

    Se por um lado a Amrica Latina transformou-se em um outro ociden-te, conceito utilizado por Marcello Carmagnani, ou num extremo oci-dente, como assevera Alain Rouqui,2 por outro, a Europa viveu forte mudana material e imaterial desde os primeiros contatos com as terras de alm-mar. Poder-se-ia dizer que, desde os primeiros passos desse re-lacionamento, ambos os continentes viveram o fenmeno da circulao e da interpenetrao na construo de suas realidades contemporneas. Na discusso desta obra busca-se, entender partes destes processos de interao que deram vida sociedade latino-americana hodierna, assim como europeia e, tambm, como estes contatos produziram conceitos

    1 Carmagnani, Marcello (2003). Laltro Occidente. LAmerica Latina dallinvasione europea al nuovo millennio. Torino: Einaudi.

    2 Rouqui, A. (2000). LAmerica Latina. Introduzione allEstremo Occidente. Milano: Bruno Mondadori.

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    Beneduzi, Dadalto. Apresentao 9

    polticos, sociais, econmicos e culturais caros aos dois continentes, que, mesmo em estruturas hbridas, os colocam em dilogo ainda hoje.

    A discusso de trs dos fenmenos que atravessam os ltimos 130 anos de deslocamentos entre Europa e Amrica Latina do a dimenso da im-portncia do objeto de investigao deste projeto. Primeiro, a grande imi-grao europeia de massa de finais do sculo XIX. Em segundo, o cresci-mento da emigrao latino-americana nos ltimos vinte anos e o aumento da emigrao europeia (tambm em direo Amrica Latina, em particu-lar, aquela dos pases do mediterrneo) na primeira dcada do sculo XXI. Por fim, a conjuntura migratria internacional, que envolve processos de integrao e reelaborao identitria, tanto pensando nas comunidades de latino-americanos no exterior as quais repensam as suas identidades nacionais e continentais quanto nos processos de interao com as co-munidades locais, que forjam processos mltiplos de identificao.

    relevante destacar, ainda, que, os deslocamentos humanos promovem movimentos de ideias e construes de imaginrio que muitas vezes ultrapassam o crculo dos continentes aqui em destaque. Os processos imigratrios trouxeram consigo um fluxo de viajantes, polticos, intelec-tuais que produziram narrativas no somente em relao aos espaos de imigrao, mas, tambm, forneceram olhares diferenciados sobre os Estados nos quais os imigrantes se instalaram. Produziram-se literaturas sobre as experincias de ambos os lados do Atlntico, colaborando, neste sentido, na produo de quadros imagticos que passaram, pouco a pouco, a ser socialmente compartilhados e a constituir emblemticas represen-taes do outro.

    No que concerne imigrao histrica, ou seja, quela de finais do sculo XIX, muito j se produziu tanto no que se refere realidade brasi-leira, s transformaes aportadas pelos imigrantes ao cenrio poltico-e-conmico nacional, e tambm sociocultural, quanto quela considerada na individualidade de cada Estado hispano-americano receptor de imigrantes (maiormente Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Mxico). A relevncia da presente discusso pensar essas dinmicas em uma perspectiva con-tinental e percorrer os processos de mudana que foram atravessando contemporaneamente os dois continentes e como uma relao dialtica de interinfluncia se construiu.

    Com relao ao incremento no processo emigratrio latino-americano, deve-se ressaltar que o fenmeno adquiriu tamanha relevncia em mbito continental que, inclusive, estimula novas relaes internacionais entre esses pases. No Brasil, criou-se a Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior (SGEB), em 2007, vinculada ao Ministrio das Re-laes Exteriores, com a funo de colaborar na construo de polticas pblicas que venham ao encontro das necessidades dos imigrantes brasi-leiros presentes nos diferentes pases. Alm disso, mais recentemente, no dia 15 de Junho de 2010, o presidente Luiz Incio Lula da Silva assinou o

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 7-16

    Decreto nr. 7.214 que, entre outras medidas, estabelece os princpios e as diretrizes da poltica governamental para as comunidades brasileiras no exterior. Em uma demonstrao da importncia que a populao brasileira no residente no pas tem assumido em mbito governativo, o Decreto ins-tituiu as Conferncias dos Brasileiros no Mundo (CBM) e criou o Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE).

    No mbito da Europa, o caso italiano pode ser visto como exemplar. Entre a ltima dcada do sculo XX e a primeira do sculo XXI se observa o contnuo crescimento do debate sobre a imigrao extra e intracomu-nitria, ganhando ares muito preocupantes. A problemtica migratria tem adquirido sempre mais espao nos meios de comunicao italianos e o preconceito com relao ao outro, sobretudo, o chamado extraco-munitrio, encontra-se em franco crescimento. O aumento do fluxo de sujeitos provenientes do norte da frica e do Oriente Mdio, a causa de conflitos armados e/ou de problemas socioeconmicos, no faz outra coisa que aumentar esta desconfiana do outro (especialmente por causa do medo crescente do terrorismo) e este medo da perda de controle sobre o territrio nacional.

    Em contraste com o crescimento de uma espcie de xenofobia no contex-to europeu, a Amrica Latina e, em modo especial o Brasil, tem assumido (faz-se referncia primeira dcada do sculo XXI) um papel relevante na economia e na poltica internacional, o que colabora para a positivizao da figura do imigrante brasileiro, atravs de um encantamento com as polticas levadas adiante nas antigas colnias; ainda mais considerando este momento histrico de crise nos Estados centrais do sistema (Co-re Countries) e a situao relativamente controlada da periferia. Cabe ressaltar todavia que nos ltimos anos diferentes situaes nacionais latino-americanas, como consequncia da prpria crise internacional, mas tambm de crises polticas internas, tem alterado esta imagem de terra da promisso e produzido novas leituras sobre a regio no mundo Ocidental.

    Como terceiro fenmeno, observa-se o aumento das partidas de conci-dados em busca de melhores condies na sociedade europeia contem-pornea, e especialmente por aquela do sul do continente: fenmeno mais relevante a partir dos anos 1980-90, e com certo declnio na primeira d-cada do sculo XXI. Em direo Amrica Latina, mesmo que no se note a mesma intensidade de fluxo, como os milhes de imigrantes do final do sculo XIX, verificou-se um deslocamento consistente de milhares de euro-peus (mo de obra qualificada e brain drain) em direo ao subcontinente, na primeira dcada deste sculo. Mais uma vez se refora no imaginrio da velha Europa a figura do subcontinente como a terra da cuccagna: es-pao de grandes oportunidades e uma sociedade aberta para a acolhida.

    So estes fenmenos e ideias que circularam e permanecem circulando entre Amrica Latina e Europa, que no esto restritas a latinos-america-nos e europeus, mas envolvem todos os sujeitos e grupos que transitam

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    nestes espaos-tempos e lugares, que apresentamos nos artigos coligidos nesta coletnea, produzidos por pesquisadores de universidades brasilei-ras e da Universidade de Veneza.

    Assim, em Os contatos entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito Santo, Edenize Ponzo Peres apresenta parte da histria dos con-tatos entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito Santo estado da regio sudeste do Brasil que recebeu milhares de imigrantes do norte da Itlia em fins do sculo XIX. Pelo fato de os imigrantes terem se fixado em reas isoladas, em meio floresta, os dialetos italianos puderam ser mantidos por muitas dcadas. Atualmente, esses dialetos esto deixando de ser falados, mas o contato lingustico deixou marcas no portugus dos descendentes, principalmente no nvel fontico-fonolgico. Com respeito histria social desses contatos, as pesquisas levadas a cabo no estado registram as causas para o fim da transmisso dos dialetos s geraes seguintes: as lembranas tristes que a terra e tambm a lngua ancestral evocavam; o uso do dialeto apenas para a conversa de adultos, mantendo as crianas afastadas dos assuntos dos mais velhos; a proibio de se fala-rem lnguas estrangeiras no pas, no perodo do Estado Novo, com Getlio Vargas, de 1937 a 1945; e o preconceito e a discriminao, que geravam vergonha nos imigrantes e seus descendentes. Assim, depreende-se a im-portncia dos fatores sociais para a preservao ou o desaparecimento das lnguas minoritrias nas comunidades de imigrao, partindo do caso dos italianos no Esprito Santo.

    Discutindo a questo imigratria, em consonncia com o papel e os conceitos de lngua materna e estrangeira, Len Medeiros de Menezes, em Imigrao e lngua em uma perspectiva de gnero, aborda o papel do idioma nos processos imigratrios, privilegiando a categoria gnero. Para isso, retrata o drama vivido por trs mulheres imigrantes ao chegar a um pas desconhecido e encontrar-se na difcil situao de integrar-se nova sociedade. Por meio de entrevistas de dois jovens e de trs mulhe-res duas falantes nativas de espanhol e uma de italiano a autora retrata o desafio, envolto em medo e sofrimento, relacionado necessidade de es-tabelecer-se em um pas estrangeiro e aprendizagem de uma nova lngua, ao mesmo tempo em que ocorre o abandono de sua lngua materna e de sua identidade cultural. Comparando-se os papis femininos e masculinos tanto na sociedade de origem quanto na de chegada, a autora conclui que resta s imigrantes o aconchego mas tambm o isolamento do lar, ca-bendo aos filhos o papel de elo entre elas e a lngua e a sociedade estranha.

    Seguindo a senda dos estudos de gnero, em seu artigo intitulado As mulheres imigrantes portuguesas sob o vu da invisibilidade: um balan-o historiogrfico, Roseli Boschilia traa o percurso historiogrfico de pesquisas a respeito da mulher e/imigrante, especialmente a portuguesa. Assim, a autora relaciona importantes trabalhos acadmicos em que a personagem feminina sua vida pessoal, familiar e laboral, na terra de

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 7-16

    origem e/ou na de destino ganha foco. Com esse objetivo em mente, na primeira parte do artigo, Boschilia expe um resumo de obras que tratam de questes pertinentes ao gnero feminino, famlia, trabalho e produo, entre outros, no Brasil e no exterior; na segunda parte, a autora rene e apresenta pesquisas relacionadas s anteriores, mas voltadas especifica-mente para a imigrante portuguesa; e, na terceira e ltima parte, temos a apresentao de congressos internacionais e de criao de grupos de pesquisa que fomentaram as investigaes tambm a respeito de mulheres e/imigrantes portuguesas, mas realizadas recentemente, no sculo XXI. Por fim, a autora conclui que, no obstante as dificuldades em se retra-tar a mulher e/imigrante portuguesa, quer pela superioridade numrica masculina, quer pela ausncia de dados documentais, nas duas ltimas dcadas houve um notvel esforo para evidenciar o seu lugar de sujeitos realmente atuantes no processo e/imigratrio.

    Passando da narrativa historiogrfica sobre o outro imigrante para quela literria, Susanna Regazzoni analisa em Memoria y relato. La migracin Italia Argentina os textos de escritores do incio do sculo XX sobre o processo migratrio da Itlia para a Argentina e como esta narrativa marcada por uma construo identitria. Deste modo, em seu estudo prope entender como a experincia migratria um fenmeno que se testemunha por meio da memria coletiva e que se relaciona com a narrao da histria e da memria individual expressas em relatos de recordao. Neste particular, se apropria da produo de uma nova ge-rao de escritores e escritoras que se ocupam do papel que a imigrao europeia tem na imaginao Argentina contempornea, numa reflexo que busca interpretar o passado para compreender o presente. E deste modo, compreender a prpria identidade e aquela do outro.

    Mara Ines Vendrame, no artigo Com tinta do meu sangue: redes e mobilidades atravs das cartas de um imigrante italiano, seguindo a perspectiva das narrativas sobre o imigrante, colocando o olhar sobre as escritas de si, procura refletir sobre as estratgias de deslocamento e reunificao familiar atravs das cartas do imigrante italiano Paulo Ros-sato. Mara busca deste modo destacar a importncia destas fontes para apreender a complexidade da experincia migratria para o Brasil, bem como compreender como elas permitem acompanhar as expectativas e escolhas dos atores antes e depois das experincias migratrias. Seu ar-gumento que do alm-mar, os imigrantes, por meio da constituio de pontes de tinta, ligaram o local de destino com o de origem, possibili-tando, nas ltimas dcadas do sculo XIX, a circulao de informaes, objetos e pessoas.

    Um outro tipo de narrativa est relacionada quela do poder pblico, sobre as posies assumidas e as polticas adotadas pelo Estado brasilei-ro em relao ao tipo e qualidade dos imigrantes que seriam aceitos para ingressar no pas, bem como as provveis alteraes que as mesmas

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    Beneduzi, Dadalto. Apresentao 13

    sofreram no decorrer do tempo. Estes so os objetivos de discusso de Luiza Horn Iotti no texto O branqueamento da raa: a poltica imigratria imperial brasileira e a qualidade dos imigrantes. Para tal, utiliza como fonte a legislao brasileira sobre imigrao e colonizao, promulgada entre 1822 e 1889, partindo do pressuposto que a anlise da legislao permite, entre outras coisas, identificar os diversos interesses dos grupos sociais, nas diferentes fases pelas quais passou o processo migratrio e de colonizao no Brasil.

    Voltando discusso sobre escritas si, porm no contemporneo e com o uso das narrativas orais, Sueli Siqueira, Maria Lucinda Fonseca, Mauro Augusto Santos e Patrcia Falco Genovs trazem a cena no artigo Brasileiros em Portugal e nos Estados Unidos: semelhanas e diferenas nos dois destinos a experincia migratria de brasileiros nestes dois pases, colocando em relevo narrativas de brasileiros no perodo ps--crise 2008. Perodo que juntamente ao aumento da ao de fiscalizao dos agentes imigratrios nos Estados Unidos provocou uma ampliao no sentimento de medo e insegurana dos indocumentados. Tal situao, argumentam os autores, teve como ingrediente nos dois destinos a crise econmica e com ela a perda de postos de trabalho e, para muitos, o retorno para o Brasil.

    Partindo da situao especfica de um intelectual no exlio e seguindo a senda da autobiografia, em Intelectuais no exlio: algumas notas sens-veis Adlia Miglievich-Ribeiro se compromete em produzir um exerccio de inveno sobre a experincia de 12 anos de exlio de Darcy Ribeiro aps o Golpe Militar de 1964 no Brasil. A partir de fragmentos de relatos esparsos sobre suas viagens e confisses sobre o exlio propriamente, prope a inveno de um texto capaz de ligar os depoimentos de Darcy, como se ele o tivesse escrito de uma s vez. Retoma assim o tema do in-telectual exilado sob a inspirao de Theodor Adorno e de Edward Said a fim de concluir sobre o significado dos deslocamentos na experincia prejudicada do exlio. Desse modo, descobre em Darcy Ribeiro e na sua abertura alteridade, que foi capaz de perceber como semelhana, a conquista de sua qualidade humana que minimizou para ele o afastamento eu-outro bem como o distanciamento histrico entre Brasil e pases vizi-nhos na Ibero-Amrica.

    No mbito do discurso sobre o espao urbano e as questes imigratrias, Maria Izilda Santos de Matos no artigo Santos: mltiplas experincias, aes e olhares: Cidade-porto, febril, saneada e imaginada questionar as transformaes e tenses na cidade-porto de Santos em parte do sculo XIX e dcadas iniciais do XX, analisando, entre outros documentos, os relatos de viagem. Sua anlise encontra-se organizada em trs tpicos intitulados: o porto febril: epidemias; o porto: saneamento e controle e a cidade-porto: conexes, viagens e olhares; por fim, algumas consideraes finais, denominadas olhares, relatos e representaes.

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    Na mesma linha, Enric Bou Maqueda em Cidades brancas? Fronteras urbanas en clave transatlntica parte das reflexes propostas por Joseph Roth, Walter Benjamin, Sigfried Kracauer e Claudio Guilln, nos quais se apresenta o conceito de cidade branca, ligado a ideia de fronteira e a centralidade, para concluir que a cidade branca desfocalizada e peri-frica, invadida e rebelde, modelo (seno o projeto) e inferno (pesadelo ou o caos). O conceito se aplica ao exame de quatro cidades brancas a propsito de sequncias significativas de quatro filmes: Los olvidados (1950) de Luis Buuel, Pizza, birra, faso (1998) de Bruno Stagnaro e Israel Adrin Caetano, Dans la ville blanche (1983) de Alain Tanner e Biutiful (2010) de Alejandro Gonzlez Irritu.

    No que concerne a perspectiva dos olhares estrangeiros, em Livros, leituras e circulao de saberes nas teses mdicas sobre a epidemia de clera da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (ca. 1855): notas pre-liminares de pesquisa, Sebastio Pimentel Franco e Andr Luis Lima Nogueira propem uma discusso sobre a produo das teses mdicas apresentadas Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ) que dis-sertaram acerca do clera-morbus poca em que a epidemia chegou ao Brasil (ca. 1855). O objetivo perceber a influncia de determinados autores estrangeiros, lentes da Faculdade, paradigmas mdicos, alm dos cnones impostos para a confeco do trabalho de final de curso dos doutorandos. Esses olhares os aproximam de algumas questes como histria da leitura e do livro que, apenas mais recentemente, tm sido pensadas pelos historiadores que se debruam sobre o livro mdico. Isto sobretudo para as formas de circulao de saberes mdicos para a produo dos trabalhos de final de curso dos doutorandos da FMRJ no contexto da chegada da epidemia de clera ao Imprio.

    Na mesma trilha, Rita de Cssia Marques em As guas da capitania de Minas Gerais no relato dos estrangeiros: sculo XVIII e XIX discute como os primeiros relatos de estrangeiros no Brasil, especificamente na regio de minerao de Minas Gerais, exploram as riquezas minerais sempre as relacionando com a gua, com a sade e com a doena. Em Minas Gerais, estado com muitas nascentes de gua mineral, desde o sculo XVIII h registros de curas milagrosas como resultado do consumo e banho. Os rela-trios destas pesquisas foram escritos por europeus no Brasil, nos sculos XVIII e XIX, dentre eles o mdico dinamarqus Theodore Langgaard, que preocupado com o uso indiscriminado, descreve as propriedades e prescre-ve as guas minerais para diferentes situaes e doenas. No sculo XIX, havia cidades que se desenvolveram como centros teraputicos baseados na explorao de guas minerais despertando o interesse econmico do governo e de um qumico alemo.

    Em A arte da sangria: circularidade de ideias e prticas (Rio de Janei-ro, primeira metade do sculo XIX) Tnia Salgado Pimenta descreve como a sangria era bastante usada e entendida como fundamental por parte dos

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    mdicos acadmicos e da populao da Europa ocidental para se atingir o equilbrio em casos de doena. Analisa como em Portugal e seus domnios, desde o sculo XIII, tentou-se regulamentar e fiscalizar as prticas m-dicas, a princpio voltada para o exrcito. Desde modo, a partir de 1808, com a transferncia da Corte e as instituies da burocracia para o Brasil, essa fiscalizao passou a ser mais efetiva nas cidades maiores do terri-trio brasileiro. E como, nesse mesmo ano, a Fisicatura-mor foi recriada com sede no Rio de Janeiro e todas as questes sobre regulamentao e fiscalizao relacionadas s artes de curar seriam decididas ali.

    A todos desejamos uma boa reflexo sobre essas dinmicas de desloca-mentos e circulaes, de pessoas e de ideias que atravessaram geraes de homens e mulheres em todos os cantos do mundo, em diferentes zonas geogrficas, mas que aqui so pensadas com o olhar direcionado Amrica Latina e Europa, em suas mltiplas leituras entrecruzadas. Boa leitura!

  • Diaspore 7DOI 10.14277/6969-122-5/DSP-7-1 ISBN [ebook] 978-88-6969-122-5 | ISBN [print] 978-88-6969-123-2 | 2017 17

    Mobilidade humana e circularidade de ideiaDilogos entre a Amrica Latina e a Europaeditado por Luis Fernando Beneduzi e Maria Cristina Dadalto

    Os contatos entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito SantoEdenize Ponzo Peres(Universidade Federal do Esprito Santo, Brasil)

    Abstract This paper presents part of the history of the contacts between the Italian dialects and Portuguese in Espirito Santo - State of southeastern Brazil which has received thousands of immi-grants from the North of Italy in the late nineteenth century. As immigrants set up in isolated areas, in the woods, the Italian dialects were preserved for many decades. Currently, these dialects are no longer being spoken, but the language contact that remained left a mark on the Portuguese's descendants, especially on the phonetic-phonological level. With respect to the social history of these contacts, the research caused in the state register the end of transmission of the dialects to the following generations: the sad reminders that the land and also the ancestral language evoked; the use of dialect for adult conversation only, keeping children away from older issues; the prohibition to speak foreign languages in the country, the New State period, Getlio Vargas, 1937-1945; and prejudice and discrimination, which generated shame immigrants and their descendants. Therefore, it appears the importance of social factors for the preservation or the disappearance of minority languages in immigrant communities, from the case of the Italians in the State of Esprito Santo.

    Sumrio 1 Apresentao. 2 Breve histrico dos contatos lingusticos no Esprito Santo. 3 Os imigrantes no Esprito Santo. 4 O contato entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito Santo. 5 As consequncias lingusticas e sociais do contato entre os dialetos italianos e o portugus. 6 Consideraes finais.

    Keywords Language contact. Italian dialects in Esprito Santo. Language maintenance. Language shift.

    1 Apresentao

    O estado do Esprito Santo, localizado na regio Sudeste do Brasil, rece-beu, a partir do sculo XIX, milhares de imigrantes italianos, que vieram colonizar as suas desabitadas serras. Aqui enfrentaram as florestas vir-gens, os animais selvagens, a escassez de instrumentos de trabalho e de comida, as diferenas geogrficas e culturais e a saudade dos que fica-ram na Itlia. Mas, vencidos os grandes desafios que se impuseram aos primeiros imigrantes, atualmente seus descendentes desempenham um importante papel dentro da sociedade esprito-santense.

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    As marcas da Itlia se fazem presentes em diversas localidades do es-tado, quer nas feies da populao, quer na cultura na comida, nas cantigas, nas danas, nas festas para homenagear os pioneiros imigrantes. Com relao aos dialetos falados pelos italianos, eles sobrevivem entre os idosos, principalmente no campo. Por sua vez, os traos dialetais ainda se fazem presentes na linguagem dos descendentes mais jovens, a depender da intensidade do contato com o portugus.

    Dessa forma, o presente trabalho tem por objetivo apresentar a histria dos contatos entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito Santo, tanto no nvel lingustico os traos dialetais presentes na lngua portu-guesa falada por descendentes de imigrantes quanto no nvel social as causas do fim da transmisso da lngua ancestral s geraes seguintes. Para isso, so apresentados os resultados de pesquisas recentes realizadas no estado, de cunho Variacionista (Labov 1972) e do Contato Lingustico (Weinreich [1953] 1970; Appel, Muysken 1996; Baker, Jones 1998; Coul-mas 2005; etc.). Entretanto, para melhor compreendermos a situao so-ciolingustica do estado, preciso remontar aos primrdios da colonizao da ento capitania do Esprito Santo, para compreendermos a sua situao, quando da chegada dos primeiros imigrantes, e tambm como se deram os contatos lingusticos desde o seu incio. Esse o nosso primeiro tpico. Em seguida, apresentaremos o contexto histrico da imigrao italiana, para ento abordarmos as consequncias lingusticas e sociais do contato entre os dialetos italianos e o portugus.

    2 Breve histrico dos contatos lingusticos no Esprito Santo

    A colonizao do Esprito Santo foi marcada pelo encontro de indgenas, portugueses, negros escravos, brasileiros de outras localidades e imigran-tes estrangeiros. A seguir, ento, exporemos resumidamente esse processo.

    A colonizao do estado teve incio no dia 23 de maio de 1535, quando os portugueses, sob o comando de Vasco Fernandes Coutinho, aportaram no que hoje o municpio de Vila Velha; entretanto, somente em 1558 eles realmente ocuparam o territrio (Daemon 2010). Sobre os povos indgenas que habitavam a capitania sobretudo o litoral certo que aqui viviam tupiniquins, goitacazes, tupinambs e temimins, que falavam o tupi, sen-do esta a lngua de comunicao entre eles e os jesutas, na catequese. Por outro lado, Moreira e Perrone (2007) incluem ainda nessa listagem os aimors, localizados sobretudo na regio norte do estado, e afirmam que aqui se falavam lnguas de dois principais troncos: tupi e macro j.

    Tambm certo que havia indgenas no interior da capitania, dados os registros histricos que comprovam as frequentes incurses de jesutas ao interior, em busca de nativos para serem trazidos para o litoral e ca-tequizados (Saletto 2011). Contudo, a dizimao da populao indgena

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    e sua aculturao, a partir do sculo XVI, ocasionaram que, hoje em dia, alm dos emprstimos lexicais ao portugus, praticamente nada de suas lnguas restou. A exceo fica para o guarani, ainda falado por esse povo, o qual chegou ao Esprito Santo na dcada de 1970, depois de uma ca-minhada de dcadas por Paraguai, Argentina e estados do Sul do Brasil (Calazans 2014).

    Os negros escravos, por sua vez, chegaram a partir de 1621, no governo de Francisco Aguiar Coutinho (Medeiros 1997). Eles eram encaminhados s grandes fazendas, muitas de propriedade de jesutas ou de pessoas ligadas a religiosos, que se localizavam no litoral ou pouco adentradas no interior, prximas a rios navegveis, para facilitar a escoao da produo (Conde 2009). Fato importante para a anlise dos contatos lingusticos no Esprito Santo que, de acordo com Conde (2009) e Moreira e Perrone (2007), a capitania no estava ligada ao trfico negreiro internacional, isto , os escravos que habitavam as fazendas, na segunda metade do sculo XIX, poca da chegada dos imigrantes, estavam l h vrias geraes. Tra-tava-se de casais com muitos filhos e estes tambm tinham prole extensa, todos convivendo juntos, sendo que praticamente todos tinham parentesco com algum indivduo da fazenda.

    As caractersticas da escravido, destacadas no pargrafo anterior, le-va-nos a pensar que o contato entre o portugus e as lnguas africanas, no Esprito Santo, se deu no sculo XVII e no foi mantido, com a vinda de novos escravos. Assim, vemos que as lnguas africanas no entraram em contato direto com os dialetos falados pelos imigrantes italianos.

    Outro fator importante para a nossa anlise foi a condio imposta ao estado de servir como defesa natural contra invasores estrangeiros e la-dres do ouro da regio de Ouro Preto, em Minas Gerais. Por isso, durante mais de um sculo, proibiu-se a construo de estradas para oeste (Oliveira 2008). Igualmente, a descoberta dessas jazidas, no incio do sculo XVIII, provocou uma corrida do ouro entre os que aqui viviam. Assim, o Esprito Santo, que j era pouco povoado, viu seu contingente populacional ainda mais reduzido. Como consequncia desses fatos, temos que, no incio do sculo XIX, 90% das terras capixabas eram cobertas pela Mata Atlntica (Moreira, Perrone 2007).

    Segundo Moreira e Perrone (2007), o Esprito Santo permaneceu nes-sa situao at o ano de 1813, quando o ento presidente da capitania, Francisco Rubim, com o intuito de estimular a ocupao da terra, trouxe dois grupos de aorianos para abrir uma estrada que ligaria Vitria a Ouro Preto. Nesse mesmo ano, chegaram 34 espanhis, que se estabeleceram no litoral norte do Esprito Santo. Entretanto, a imigrao estrangeira realmente se iniciou em 1847, com a vinda de 163 prussianos para a Co-lnia de Santa Isabel. Na dcada de 1850, foi estabelecida a Colnia de Santa Leopoldina, sendo-lhe destinados primeiramente 140 suos, mas, em 1865, a Colnia j contava com imigrantes de diversas etnias. E, em

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    1856, foi fundada a Colnia de Rio Novo, para onde se dirigiu uma grande parte dos imigrantes italianos que chegaram provncia1 do Esprito Santo (Oliveira 2008).

    No quadro a seguir, adaptado de Franceschetto (2014), observamos os cinco maiores contingentes de imigrantes chegados ao estado.

    Quadro 1. Imigrantes chegados ao Esprito Santo e as respectivas entradas nos sculos XIX e XX

    Pases sc. XIX sc. XX TotalItlia 35.033 1.633 36.666Alemanha 4.013 853 4.866Espanha 2.942 527 3.469Portugal 2.080 1.347 3.427Polnia 699 898 1.597Fonte: Franceschetto 2014 (adaptado)

    Dentre os italianos, segundo dados do Arquivo Pblico do Estado do Es-prito Santo (2007),2 40% dos imigrantes eram oriundos do Vneto, 20% da Lombardia, 14% do Trentino Alto Adige, 10% da Emilia Romagna, 5% do Piemonte, 4% de Friuli-Venezia Giulia e 7% de outras regies. Dos imi-grantes vnetos, 31% eram de Treviso, 28% de Verona, 13% de Vicenza, 10% de Padova, 8% de Venezia, 7% de Belluno e 3% de Rovigo. E, dentre os imigrantes lombardos, 24% eram oriundos de Mantova, 20% de Cre-mona, 20% de Bergamo, 12% de Brescia, 12% de Pavia, 5% de Milano e 7% de outras localidades.

    Antes, porm, de prosseguirmos, importante esclarecer que ainda no se sabe para quais localidades do Esprito Santo esses imigrantes fo-ram levados, o que implica dizer que ainda se desconhece, em boa parte, como se travaram os contatos entre os dialetos italianos no Esprito San-to. Nos vrios livros de memrias dos imigrantes de que dispomos, alm das entrevistas realizadas em diversas comunidades, no se encontram informaes e depoimentos acerca de barreiras lingusticas entre os imi-grantes, de modo que os impedissem de se comunicar uns com os outros. Portanto, podemos pensar que os grupos de imigrantes que chegavam das diferentes regies da Itlia mantinham-se unidos, em lotes de terra prximos uns dos outros.

    1 No Brasil, as capitanias foram transformadas em provncias no ano de 1821, e estas foram transformadas em estados com a Proclamao da Repblica, em 1889.

    2 O Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo constantemente atualiza seus dados re-ferentes imigrao no estado. As ltimas informaes referentes s localidades de origem dos imigrantes italianos datam de 2007.

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    3 Os imigrantes no Esprito Santo

    Conforme o quadro 1, acima, os milhares de imigrantes que chegaram ao Esprito Santo vinham sobretudo da Europa. Essa situao foi comum aos imigrantes destinados s demais localidades brasileiras, mas o Esprito Santo reunia caracterstica que o diferenciavam de outras provncias: sua populao era extremamente escassa e se concentrava em poucos pontos do litoral, sendo que o interior era totalmente coberto por florestas. Por isso, os imigrantes, para chegar a seus lotes, tiveram que vencer muitas dificuldades.

    As vias de acesso ao interior eram as fluviais, distribudas de forma mais ou menos regular ao longo da costa. Elas permitiam a navegao em canoas por um percurso que variava de acordo com o rio, geralmente em torno de 40 km. Da por diante, os imigrantes caminhavam por alagadios e picadas nas densas matas virgens, subindo e descendo serras, guiados por tropeiros. Muitos dormiam em troncos de rvores, forrados com algumas folhas, e passaram fome e frio, no apenas homens, mas tambm mulhe-res e crianas (Derenzi 1974). Por fim, depois de instalados, verificaram que suas terras no eram to frteis como lhes havia sido prometido na Europa e tambm no receberam a assistncia que deveriam receber do Governo brasileiro.

    As particularidades da colonizao do Esprito Santo, somadas s ca-ractersticas geogrficas do estado e s dificuldades de locomoo pelo seu interior, propiciaram o isolamento da maioria das comunidades de imigrantes, ao passo que algumas outras, localizadas s margens de es-tradas, entraram em contato com os brasileiros j no incio do sculo XX.

    As situaes descritas nos pargrafos acima originaram uma diversi-dade lingustica no estado das mais interessantes. Atualmente, aps 200 anos da chegada dos primeiros imigrantes, vrias comunidades pome-ranas ainda conservam a lngua de herana, mesmo entre as crianas (Bremenkamp 2014); algumas cidades colonizadas por italianos mantm as tradies ancestrais, em festas e grupos de dana e de canto; nas zonas rurais, os descendentes de italianos mais idosos ainda falam a lngua dos antepassados, aprendida na infncia (Cominotti 2015, Loriato 2015); na zona urbana, apenas alguns traos das lnguas ancestrais perduram (Ave-lar 2015, Loriato 2015); e, finalmente, temos muitas comunidades/etnias sobre as quais nada sabemos.

    A fim de descrever as consequncias sociolingusticas da imigrao es-trangeira no Esprito Santo especialmente a italiana foram realizadas diversas pesquisas abordando os contatos lingusticos que aqui ocorreram. Esse o tema da prxima seo.

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    4 O contato entre os dialetos italianos e o portugus no Esprito Santo

    Tendo em vista a histria da colonizao do Esprito Santo, podemos inferir que o portugus aqui falado entrou em contato com as lnguas indgenas e com as africanas nos sculos XVI e XVII e, a partir da, no teve contato direto com elas. Tambm pela forma como se deu a ocupao deste territ-rio, os imigrantes de diferentes etnias que aqui chegaram estiveram rela-tivamente afastados do convvio com os brasileiros, falantes de portugus, durante dcadas, a depender da localizao geogrfica da comunidade.

    Dessa forma, at o final da dcada de 1960, em boa parte das regies do estado colonizadas por italianos, ainda se falava majoritariamente o dialeto ancestral (Derenzi 1974). Por isso, esses dialetos imprimiram suas marcas na linguagem dos talo-descendentes, diferenciando-a da linguagem atual das localidades que no receberam um nmero macio de imigrantes.

    Para tentar descrever a diversidade lingustica do Esprito Santo, em 2010 elaboramos um Projeto de Pesquisa que tinha por objetivos: a) for-mar bancos de dados de fala nas comunidades colonizadas por imigran-tes, sobretudo italianos; b) identificar traos das lnguas de imigrao no portugus falado pelos atuais moradores dessas localidades; c) descrever a importncia de variveis no lingusticas, como o sexo, a faixa etria e o grau de escolaridade dos indivduos, bem como os seus sentimentos a respeito de suas origens, para a manuteno ou a substituio das lnguas de imigrao pelo portugus.

    Nestes anos, dezessete localidades foram estudadas, entre zonas ru-rais e urbanas, principalmente as colonizadas por imigrantes italianos. As pesquisas tm por referencial terico a Sociolingustica, na vertente da Teoria da Variao e Mudana ou do Contato Lingustico, e versam basicamente sobre dois objetos: a) as influncias fontico-fonolgicas das lnguas de imigrao sobre o portugus falado nessas comunidades; b) as causas do fim da transmisso intergeracional dos dialetos pelos italianos. Este ltimo objeto se faz relevante, haja vista que a lngua pomerana e o hunsrck ainda hoje so falados por descendentes desses imigrantes de todas as idades em diversas comunidades do estado. Os dados dos estu-dos variacionistas foram tratados estatisticamente por meio do programa Goldvarb X (Sankoff, Tagliamonte, Smith 2005). Os resultados obtidos por essas pesquisas aparecem descritos a seguir.

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    5 As consequncias lingusticas e sociais do contato entre os dialetos italianos e o portugus

    As pesquisas sobre contato lingustico levadas a cabo nas diferentes co-munidades colonizadas por imigrantes italianos, no Esprito Santo, eviden-ciam vrias diferenas fontico-fonolgicas entre o portugus resultante do contato e aquele que no sofreu influncia dos dialetos por exemplo, o portugus falado na capital do estado, Vitria. Entretanto, cabe ressaltar que o portugus resultante do contato se diferencia entre as comunidades. Assim, aquelas localizadas nas zonas rurais dos municpios apresentam mais traos dialetais, em todas as geraes; ao contrrio, nas zonas urba-nas, esses traos se fazem mais presentes no portugus falado pelos mais idosos, diminuindo ou mesmo inexistindo entre os mais jovens. O quadro a seguir sintetiza as principais diferenas entre o portugus de contato e o portugus falado em Vitria.

    Quadro 2. Caractersticas de duas variedades do portugus falado no Esprito Santo

    Portugus Falado em Vitria Portugus de ContatoH vogais orais e nasais H apenas vogais oraisH ditongo nasal [w] No h ditongo nasal [w]H alamento de vogais mdias tonas finais No h alamento de vogais mdias tonas

    finaisFonemas /t, d/ diante de /i/: [ti], [di] Fonemas /t, d/ diante de /i/: [ti], [di]Consoante lateral em coda silbica: [w] Consoante lateral em coda silbica: [l]Realizao do fonema /r/: [h, ] Realizao do fonema /r/: [, r, ]

    Os resultados obtidos pelas pesquisas variacionistas aparecem a seguir:a. A influncia dos dialetos italianos na pronncia do ditongo nasal foi

    estudada em uma comunidade colonizada por imigrantes vnetos da zona rural de Alfredo Chaves (Picoli 2015). A pronncia marcada, ou seja, com influncia do dialeto, se faz mais presente nas palavras funcionais no, to, ento e nas palavras de mais de uma slaba. Os resultados indicam ainda que as pessoas acima de 50 anos, do sexo masculino e com at 05 anos de estudo so aquelas que mais pronunciam o ditongo nasal com influncia dialetal.

    b. A realizao dos fonemas /t, d/ diante da vogal /i/ foi estudada na zona urbana de Santa Teresa (Avelar 2015), o primeiro municpio a receber imigrantes italianos, no Esprito Santo. O programa Gold-varb X selecionou como significativas apenas as variveis no lin-gusticas: a pronncia de /t, d/ diante de /i/ com influncia do dialeto favorecida pelos informantes com mais de 50 anos, do sexo mas-culino e com baixa escolarizao.

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    Os resultados acima evidenciam que os homens, os indivduos menos es-colarizados e os informantes acima de 50 anos favorecem a manuteno dos traos dialetais no portugus. Esta ltima varivel tambm evidencia que est havendo mudana em progresso, ou seja, que a influncia dos dialetos est se perdendo. Assim, depreende-se a importncia dos fatores sociais para a preservao ou o desaparecimento dos traos das lnguas ancestrais no portugus falado atualmente nas comunidades colonizadas pelos imigrantes italianos no Esprito Santo, mesmo as mais afastadas dos centros urbanos e, por conseguinte, que recebem menos intensamente as presses uniformizadoras da linguagem. Dessa forma, fez-se relevante investigar as causas sociais da substituio dos dialetos italianos pelo portugus, nessas comunidades.

    Os estudos de Contato Lingustico apontam diferentes fatores necess-rios manuteno ou substituio das lnguas de imigrao. Aqui iremos nos reportar aos fatores externos, ou seja, aqueles que no dependem diretamente das atitudes ou dos sentimentos dos falantes para atuar.3 Resumidamente, entre eles, temos:

    O isolamento geogrfico da comunidade. As comunidades rurais cos-tumam manter por mais tempo os traos da cultura e da lngua an-cestral do que as zonas urbanas.

    O nmero de falantes. Os pequenos grupos tendem a substituir sua lngua materna mais frequentemente do que aqueles com uma grande quantidade de membros.

    A religio. Quando a lngua minoritria tambm a lngua da religio, isso dever servir de mpeto para sua manuteno.

    Os casamentos intertnicos. Em se tratando de casamentos em que esto envolvidas duas lnguas distintas, uma delas provavelmente ser preterida em favor daquela que goza de maior prestgio dentro da comunidade.

    O contato com a comunidade de origem. Se os membros de um grupo minoritrio tm a oportunidade de visitar seu pas de origem e/ou de ter contato com seus conterrneos, de forma que usem sua lngua frequentemente, esta ter mais chances de ser mantida.

    O apoio institucional. O apoio institucional a uma lngua minorit-ria que a sua utilizao, por exemplo, pelos veculos de comuni-cao de massa, pela administrao pblica, pela Igreja e pela esco-la podem garantir a sua sobrevivncia.

    As semelhanas entre a lngua e a cultura do grupo e do pas receptor. Se a lngua e a cultura do grupo e do pas de destino forem diferen-

    3 Ao falarmos em fatores externos, no estamos retirando a fora das atitudes ou dos sentimentos dos falantes para a atuao de alguns dos fatores que listamos. Estamos, sim, assumindo que os fatores considerados externos se do de forma mais independente das avaliaes dos grupos sociais.

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    tes, maiores sero as chances de a cultura e, por conseguinte, a lngua minoritria ser mantida.

    A ttulo de ilustrao, comparamos trs lnguas minoritrias do Esprito Santo e os fatores externos que favorecem a manuteno ou a substituio lingustica: o guarani (Calazans 2014), o pomerano (Bremenkamp 2014) e os dialetos italianos (Peres 2014, Cominotti 2015, Loriato 2015).

    Quadro 3. Fatores externos de manuteno/substituio de lnguas minoritrias do Esprito Santo

    Fatores Objetivos Guarani Pomerano Dialetos ItalianosIsolamento Geogrfico Da Comunidade No Sim SimNmero De Falantes Pequeno Pequeno GrandeA Lngua Da Religio Sim No Sim1

    Casamentos Intertnicos No Sim2 SimContato Com A Comunidade De Origem Sim No Sim3

    Apoio Governamental No No NoSemelhanas Entre A Cultura Minoritria E A Majoritria

    No No No

    Manuteno Da Lngua Sim Sim No1 Os imigrantes italianos, durante muitos anos, realizavam celebraes e rezavam o tero em dialeto.2 Seguindo as tradies pomeranas, os casamentos intertnicos no so frequentes; quando acontecem, eles se do preferentemente com descendentes de imigrantes germnicos e luteranos.3 O fluxo de imigrantes italianos, originrios principalmente de trs provncias do norte da Itlia, continuou at o incio do sculo XX.

    Pelo quadro acima, vemos que os dialetos italianos teriam muitas chances de se manter e, por conseguinte, de as comunidades se tornarem biln-gues mas no foi isso o que aconteceu. Dois trabalhos recentes busca-ram determinar as causas do trmino da transmisso desses dialetos s geraes seguintes: Cominotti (2015), que estudou a comunidade rural de So Bento de Urnia, no municpio de Alfredo Chaves; e Loriato (2015), que realizou estudo semelhante nas zonas rurais e na zona urbana de Santa Teresa.

    Os resultados de Cominotti (2015) evidenciam que a comunidade es-tudada mantm a cultura italiana, quando se trata de comida, msica e alguns jogos e brincadeiras. Contudo, com respeito ao dialeto, ele falado por uma minoria dos moradores, quase sempre idosos. Por outro lado, os entrevistados demonstram ter sentimentos positivos em relao a seus antepassados, e os jovens manifestam o desejo de haver aprendido a lngua dos ancestrais. O estudo de Cominotti (2015) revela, assim, que o momento atual requer ateno e cuidado para com o dialeto, se no quisermos que ele desaparea totalmente, na comunidade.

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    Os resultados de Loriato (2015) se assemelham aos obtidos por Cominotti (2015), ou seja, os dialetos4 foram sendo perdidos ao longo das geraes: na atualidade, o seu uso acontece majoritariamente com os informantes mais idosos, quando se encontram com outros falantes. E, assim como em outras localidades do estado, os descendentes de imigrantes italianos de Santa Teresa valorizam suas origens, sua cultura e a lngua dos antepassados, e revelam o desejo de que ela seja recuperada e mantida pelos mais jovens.

    Nas pesquisas realizadas nas comunidades esprito-santenses, foi per-guntado aos entrevistados por que a lngua minoritria no foi transmitida s geraes mais novas. As razes para isso, segundo eles, foram:

    a. a terra ancestral evocava lembranas tristes, fazendo com que os imigrantes e seus descendentes diretos abandonassem o dialeto assim que tiveram contato com o portugus;

    b. o dialeto era usado apenas em conversas entre os pais, quando es-tes no queriam que os filhos compreendessem o que estava sendo falado;

    c. as lnguas estrangeiras foram proibidas no pas, no perodo ditato-rial de Getlio Vargas (1937 a 1945) e, por conseguinte, seu uso foi duramente reprimido;

    d. o preconceito dos brasileiros contra os falantes de uma lngua es-trangeira gerava vergonha nestes. Particularmente por isso, alguns informantes relataram que as mes incentivavam o uso do portu-gus em casa, na tentativa de evitar que seus filhos passassem por constrangimento e discriminao.

    Essas causas demonstram que, em situao de contato lingustico, os fatores externos, objetivos, tm muito menos fora do que os sociais, para a manuteno de uma lngua minoritria.

    6 Consideraes finais

    A histria do Esprito Santo mostra que os dialetos italianos foram fala-dos por muitos anos, principalmente nas localidades mais afastadas dos centros urbanos, mas a escola e a entrada mais intensa dos meios de comunicao de massa s comunidades, alm da migrao interna dos descendentes de imigrantes, fizeram com que o contato dos dialetos com o portugus fosse crescendo gradativamente. Com isso, os dialetos italianos deixaram de ser transmitidos s geraes seguintes.

    Por outro lado, a quase totalidade de nossos entrevistados demons-tra um sentimento muito positivo com relao s suas origens italianas,

    4 Santa Teresa se caracteriza por ser um municpio colonizado por imigrantes de diversas regies do norte da Itlia, ao contrrio de outras localidades, que receberam imigrantes de apenas uma regio italiana.

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    valorizando sua cultura e os dialetos falados pelos ancestrais. Com res-peito a estes ltimos, os informantes jovens lamentam a ruptura de sua transmisso, reconhecem sua importncia e dizem querer aprend-los. Dessa forma, vislumbramos uma chance de tentar recuper-los, evitando o seu desaparecimento entre esses descentes de imigrantes. Embora a valorizao das lnguas minoritrias no pas tenha se dado tardiamente, a partir de 2010, cremos que poderemos nos valer dos Decretos recentes para garantirmos o respeito e a valorizao da diversidade lingustica no Esprito Santo.

    Para alcanarmos os nossos objetivos, necessrio tentar erradicar o preconceito e valorizar essas lnguas e seus falantes. Alm disso, preci-so investir em mais pesquisas sobre outras comunidades colonizadas por imigrantes italianos e de outras etnias no Esprito Santo. Ainda sabe-mos muito pouco a respeito delas. H, entre as serras do estado, muitas comunidades de que sequer temos conhecimento. Dessa forma, preciso um trabalho bastante rduo para resgatar essas histrias e descrever a linguagem resultante do contato entre a lngua estrangeira e o portugus, neste estado. Estamos fazendo uma pequena parte, mas h ainda um imen-so trabalho a ser feito.

    Bibliografia

    Appel, R.; Muysken, P. (1996). Bilingismo y contacto de lenguas. Trad. de Anxo M. Lorenzo Surez y Clara I. Bouzada Fernndez. Barcelona: Ariel.

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  • Diaspore 7DOI 10.14277/6969-122-5/DSP-7-2ISBN [ebook] 978-88-6969-122-5 | ISBN [print] 978-88-6969-123-2 | 2017 29

    Mobilidade humana e circularidade de ideiaDilogos entre a Amrica Latina e a Europaeditado por Luis Fernando Beneduzi e Maria Cristina Dadalto

    Imigrao e lngua em uma perspectiva de gneroLen Medeiros de Menezes(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)

    Abstract Discusses the role of language in the immigration process, focusing on gender. For this, portrays the drama of three immigrant women coming to an unknown country and find themselves in the difficult situation to integrate into the new society. Through interviews of two young men and three women two native speakers of Spanish and Italian the author portrays the challenge, wrapped in fear and suffering related to the need to settle in a foreign country and learning a new language at the same time it is the abandonment of their native language and their cultural identity. Comparing the female and male roles both in the society of origin as at the finish, the author con-cludes that remains to immigrant warmth but also the isolation the home, leaving the children link the role between them and the language and strange society.

    Sumrio 1 Sobre ser estrangeiro(a) na terra de acolhida. 2 Introduzindo o objeto de estudo. 3 A complexidade do aprendizado de outra lngua. 4 Sobre Juana, Angelina e Teodora.

    Keywords Migratory Processes. Immigration Women. Language. Isolation. Integration.

    Considerando-se a questo das invisibilidades nos processos de desloca-mentos, importante lembrar, de imediato, que vrias so as dimenses que atingem as mulheres. Imersas em processos que se situam para alm do simples ato de transpor fronteiras fsicas, elas vivenciam tambm des-locamentos sociais, culturais e, em especial, afetivos. Esses deslocamentos tendem a faz-las experimentar a sensao de no pertencimento, com intensidade e dimenses diferenciadas dos homens, quer em relao ao lugar de partida, quer em relao ao lugar de chegada.

    1 Sobre ser estrangeiro(a) na terra de acolhida

    Com relao mulher imigrante, por tanto tempo negligenciada pela his-toriografia, muitas so as dimenses que restam por ser analisadas, desde seu protagonismo nos processos migratrios aos desafios e problemas na tessitura de uma nova vida em terra estrangeira. Nesse processo, possvel dizer que elas vivem, de forma significativamente particular, os processos de adaptao e aculturao, em parte, por conta dos papis sociais a elas atribudos.

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 29-40

    A partir do conceito de dupla exterioridade, cunhado por Todorov (1991), pode ser observado que as mulheres experimentam, em geral, um senti-do particular de exterioridade, principalmente aquelas que reproduzem, na terra de chegada, papis ligados aos cuidados com marido e filhos. Nesse caso, o lar torna-se seu lugar de abrigo, refgio e de preservao identitria.

    Tanto com relao aos homens quanto com relao s mulheres, porm, ser estrangeiro , inevitavelmente, uma experincia que envolve muitas dificuldades. Segundo Duroselle (2000, 49), o conceito de estrangeiro ainda no mereceu a ateno devida por parte dos historiadores, embora ele seja fundamental na anlise das relaes travadas com respeito quele que vem de fora e sobre o qual recai, regra geral, alguma forma de discri-minao. Amigo ou inimigo, o estrangeiro, segundo o autor:

    um homem diferente e, consequentemente, com comportamento es-tranho, at imprevisvel. o homem que [...] introduz o aleatrio.

    O estrangeiro representa a diferena, mas no toda a diferena e nem sempre as mesmas diferenas. Estas tm origem frequentemente na ra-a [...]. Muitas vezes ainda ela se apega lngua [...] A diferena provm muitas vezes da religio [...]. Finalmente, a longa sequncia de acasos da histria sucesses, guerras, movimentos de populaes e de trocas, que fixaram fronteiras criou tambm a diferena. E quanto mais o tempo passa, mais formam, de uma parte e da outra, aquilo que o gegrafo Jean Gottman chama [...] de iconografias sistemas de imagens, de valores que se distanciam uns dos outros e criam diferena. (Duroselle 2000, 50)

    Com relao questo das diferenas entre o eu, natural da terra, e o ou-tro, que vem de fora, possvel distinguir, segundo o mesmo autor (51-2), entre o estrangeiro conhecido que causa menores estranhamentos e o estrangeiro desconhecido: o misterioso, o longnquo, muitas vezes aquele que vem do mar e aparece bruscamente.

    No caso do estrangeiro conhecido, este teria maiores proximidades com a cultura do pas de acolhida. Dessa forma, no seria to outro quanto o estrangeiro desconhecido, j que este estaria marcado por diferenas mais visveis, passveis, em grau extremo, de fertilizar processos xenfobos, pois, segundo Duroselle (2000, 51): quanto mais nos distanciamos, mais o estrangeiro [tende a se tornar] monstruoso.

    O estrangeiro, portanto, representa a diferena, assumindo, consequen-temente, a posio da outrocidade (Rezende 2011) com relao lngua, religio ou a outros valores culturais. Quando esse estranhamento assume o sentido de ameaa, acaba por implicar atitudes de vigilncia, controle e, at mesmo, de combate.

    Ainda que no se atenha questo da imigrao, o conceito de poti-ca do espao, cunhado por Bachelard, um bom ponto de partida para

  • Mobilidade humana e circularidade de ideia, 29-40

    Medeiros de Menezes. Imigrao e lngua em uma perspectiva de gnero 31

    analisar como as iconografias de que fala Gottman esto inscritas em um espao sujeito a sistemas de representao. Essa potica do espao assim aparece descrita por Said, citando Bachelard (1996, 65):

    O interior de uma casa [...] adquire um sentido de intimidade, segredo e segurana, real ou imaginrio, por causa das experincias que parecem ser apropriadas para tal espao. O espao objetivo de uma casa seus cantos, corredores, poro, quartos muito menos importante do que aquilo de que est poeticamente dotado, que costuma ser uma qualidade com um valor imaginativo ou figurativo, que podemos nomear e sentir: assim, uma casa pode ser assombrada, ou como um lar, ou como uma priso, ou mgica. Da mesma maneira o espao adquire um sentido emocional ou at racional por meio de um tipo de processo potico, que faz a distncia ser convertida em um significado para ns. O mesmo processo ocorre quando lidamos com o tempo.

    As representaes de tempo e de espao, dessa forma, so, inevitavelmen-te, permeadas pela subjetividade, sendo possvel inferir que, no contexto das relaes com o estrangeiro, colocam-se em contato e muitas vezes em oposio diferentes iconografias, to ou mais distanciadas quanto maiores ou menores so as diferenas culturais.

    2 Introduzindo o objeto de estudo

    Inserido no quadro dos deslocamentos sociais, culturais e afetivos que afe-tam os indivduos que por opo ou necessidade transpem fronteiras nacionais, tornando-se o outro em terra estrangeira, este artigo desdobra-mento de pesquisa mais ampla sobre portugueses, espanhis e italianos na cidade do Rio de Janeiro.1 A partir desse contexto mais amplo, o trabalho prope uma abordagem que, dentre os cones culturais, destaca o papel da lngua nos processos migratrios, privilegiando o recorte de gnero.

    As questes discutidas no trabalho esto apoiadas principalmente em trs entrevistas, que colocam o foco na voz de mulheres que, um dia, dei-xaram sua terra natal para se aventurarem no desconhecido. Ao rememo-rarem o passado, suas lembranas estabelecem pontes com o processo de adaptao em terra estrangeira, processo no qual a lngua aparece como registro de dificuldades.

    Os problemas apontados surgiram de forma espontnea nas entrevistas; ou seja, as perguntas a elas dirigidas, em nenhum momento, estiveram

    1 O projeto apoiado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atravs do PROCIN-CIA, e recebe taxa de bancada do Programa Cientista do Nosso Estado, da Fundao Carlos Chagas de Apoio Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 29-40

    orientadas pela questo das dificuldades com a lngua. Foram as depoentes que, convidadas a falar sobre suas dificuldades ao chegar ao Brasil, deram centralidade questo da lngua, demonstrando seu peso no processo de reinveno da vida em terra estrangeira, embora, nos trs casos, se tra-tasse de lnguas latinas, e no de troncos lingusticos desconhecidos ou com maior distanciamento das lnguas romnicas.

    As trs depoentes duas nascidas na Itlia e uma na Espanha narra-ram, em grau muito prximo, as dificuldades que enfrentaram no difcil processo de aprendizagem de uma nova lngua, que lhes parecia incom-preensvel nos contatos iniciais, vindo a causar-lhes inmeros constrangi-mentos. Ainda que as lnguas maternas por elas faladas fossem prximas ao portugus, se comparadas com outras, aprender uma segunda lngua ofereceu-lhes expressivas dificuldades, marcadas para sempre em suas lembranas.

    necessrio que se atente, assim, para o amplo significado que a lngua assume para emigrantes, que, muitas vezes, travam contato com outra lngua apenas no contexto do prprio deslocamento, o que colabora para que a lngua falada no pas de acolhida parea, pelo menos nos momentos iniciais, obstculo quase sempre gerador de angstia e sofrimento.

    No caso das mulheres entrevistadas, elas eram, em ltima instncia, estrangeiras conhecidas. Afinal, oriundas da Europa do Sul, tinham ori-gem latina, e a estrutura e muitas palavras da lngua por elas falada tinha proximidades com o portugus. Levando-se em conta, porm, os depoimen-tos que a seguir sero analisados, essa condio de proximidade no as eximiu de enfrentar dificuldades, ainda que estas se distanciassem signi-ficativamente daquelas enfrentadas, por exemplo, por alemes, chineses, japoneses, russos e tantos outros.

    Bem sabemos que o processo de adaptao em terra estrangeira tem uma temporalidade que varia segundo os distanciamentos existentes. Nes-se processo, as diferenas iniciais tendem a ser minimizadas por conta dos processos de adaptao e aculturao, embora, para muitos, as formas de falar os mantenham, ao longo da vida, como o outro. Essa permann-cia de uma outrocidade visvel, por outro lado, no atinge apenas povos com lngua ou cultura mais distanciadas. Em muitos casos, a diferena se expressa atravs de poderosos esteretipos, presentes, por exemplo, em designaes pejorativas, como carcamano ou at mesmo galego. Neste ltimo caso, longe de a palavra significar um simples gentlico natural da Galcia , ela passa a nomear aquele que se sujeita aos trabalhos des-qualificados e mal remunerados (cf. Silva 2006).

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    3 A complexidade do aprendizado de outra lngua

    Uma breve anlise sobre o complexo processo em que se constitui a aqui-sio de outra lngua no apenas importante mas tambm necessrio, principalmente quando o(a) imigrante colocado(a) em foco, obrigado(a) necessidade de construir uma nova vida, na qual se v na contingncia de falar e pensar em lngua estrangeira.

    A primeira advertncia feita pelos linguistas com relao a esse pro-cesso a de que a lngua no um simples instrumento de comunicao; tampouco ela se constitui em algo que aprendido de forma mecnica e progressiva, ou seja, assimilada em etapas passveis de levar o indivduo a um nvel de domnio considerado ideal.

    Segundo Revuz (1997, 215 in Pereira 2001, 59), a lngua materna forma a prpria psique do sujeito. Para a autora, as palavras so impregnadas de um sistema de valores, pois:

    muito antes de poder falar, a criana falada intensamente pelo seu ambiente, e no h uma palavra que no seja, a um s tempo, designao de um conceito e discurso sobre o valor atribudo a esse conceito pelo ambiente. Esse sistema de valores impregna completamente o sistema lingstico. Ele diz aquilo que se pode dizer e aquilo que no poderia ser dito; ele manifesta uma relao com a prpria lngua e o saber que ela permite construir. (Revuz 1997, 215 in Pereira 2001, 59)

    Nesses enquadramentos, a aquisio de uma lngua estrangeira estra-nha e externa, portanto implica, necessariamente, importantes desloca-mentos. Para alm de sociais e culturais, estes so tambm emocionais e psquicos. Dessa forma, aprender outra lngua , antes de mais nada, um processo desequilibrador, que remete construo de novas conexes ce-rebrais e de uma nova identidade. Nesse processo, a lngua materna car-regada de afetividade nunca esquecida.

    Esse estar j-a da primeira lngua um dado ineludvel, mas essa lngua to onipresente na vida do sujeito que se tem o sentimento de jamais t-la aprendido e o encontro com uma outra lngua aparece efetivamente como uma experincia totalmente nova. (Revuz 1997, 215 in Pereira 2001, 59)

    Com relao novidade em que se constitui o aprendizado de outra ln-gua, a autora nos diz que esta experincia nova no est no encontro do fenmeno lingustico como tal, mas nas modalidades desse encontro, tendo em vista que:

    a lngua estrangeira , por definio, uma segunda lngua, aprendida depois e tendo como referncia uma primeira lngua, aquela da primeira

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 29-40

    infncia. Pode-se apreender uma lngua estrangeira somente porque j se teve acesso linguagem atravs de uma outra lngua. (Revuz 1997, 215 in Pereira 2001, 59)

    O exerccio requerido pela aprendizagem de uma LE se revela to deli-cado porque, ao solicitar a um tempo nossa relao com o saber, nossa relao com o corpo e nossa relao com ns mesmos enquanto sujeito que se autoriza a falar em primeira pessoa, solicitam-se as bases mes-mas de nossa estruturao psquica e, com elas, aquilo que , a um mes-mo tempo, o instrumento e a matria dessa estruturao: a linguagem, a lngua materna. (Revuz 1997, 215 in Pereira 2001, 56)

    Considerando-se que toda aprendizagem , por si s, desestabilizadora, o aprendizado de outra lngua principalmente para o(a) imigrante re-presenta a maximizao desse processo, tendo em vista que ele imprime a necessidade de ver, sentir e nomear o mundo de forma diferente do que nele foi inscrito em lngua materna.

    Nesse sentido, Pereira (2001, 55) norteia seu trabalho sobre o papel da lngua materna na aquisio da lngua estrangeira atravs de duas perguntas principais:

    - possvel esquecer a lngua materna para aprender a lngua estran-geira?

    - Haveria um campo psquico especfico para a aquisio de lngua ma-terna e outro para a lngua estrangeira?

    Perguntas como estas ainda no foram satisfatoriamente respondidas, indicando o quanto ainda h a ser pesquisado sobre o tema, de forma que possam ser estabelecidas as possveis relaes cognitivas e fsico-cerebrais entre uma primeira e uma segunda lngua.

    Observe-se, em acrscimo, que as reflexes da autora tomam como eixo de reflexo o aprendizado realizado em ambiente escolar, no se voltando, assim, para as formas espontneas e no sistematizadas do aprendizado realizado pelo(a) imigrante. Nesse cenrio, possvel encaminhar outros alcances para as perguntas formuladas sobre as relaes estabelecidas entre lngua materna e lngua estrangeira.

    Essa situao diferenciada se repete na escola, quando se trata de crian-as e adolescentes imigrantes, que enfrentam uma situao de sala de aula inscrita em uma lngua que, para ele, estrangeira; ou seja, a lngua falada no espao de aprendizagem em que ele se insere no sua lngua materna.

    As dificuldades por eles enfrentadas na escola podem ser demonstradas pelo jovem Lonard Rudloff. Filho de casal franco-brasileiro (pai francs e me brasileira), ele nasceu na Frana (Beaumont), em 31 de Dezembro de 2001. Com um ano e meio, deslocou-se com a famlia da Frana para a

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    Inglaterra e foi alfabetizado em lngua inglesa. Aps pouco menos de nove anos neste pas o que fez com que o ingls se constitusse, para ele, na verdadeira lngua materna os pais foram transferidos para a Tailndia; depois, para o Mxico e, finalmente, para o Brasil. A cada novo pas, Lo-nard era obrigado a adaptar sua forma de ver o mundo, de falar e de se comunicar, mesmo frequentando escolas internacionais.

    Ainda que a me sempre tenha falado com ele em portugus, possibilitan-do que ele compreendesse perfeitamente a lngua, o contato com as forma-lidades de uma lngua latina deu-se apenas em uma escola internacional no Mxico, onde eram ministradas disciplinas em espanhol, em atendimento legislao do pas. Desde seu ingresso, portanto, ele foi obrigado a ler e escrever em espanhol, entrando tambm em contato com uma cultura completamente diferente; cenografia que, ademais, seria transitria.

    Certamente muitos so os benefcios que o contato com vrias lnguas e culturas possibilitou ao jovem. Isso no descarta, porm, as dificuldades e o sofrimento inerentes ao processo de adaptao lingusticas, culturais, emocionais e cerebrais que permitissem que ele rompesse a excluso social.

    O contato formal com a lngua portuguesa veio a oferecer novas difi-culdades, incluindo, dentre outros, registros diferentes para um mesmo fonema e a acentuao. Passados um pouco mais de dois anos da chegada ao Brasil, a gramtica mais mecnica foi razoavelmente assimilada, mas as dificuldades continuam a estar centradas na interpretao, o que levanta a hiptese de que ele continua a pensar em lngua inglesa, embora palavras nessa lngua no mais invadam textos por ele escritos em lngua portuguesa.

    Segundo palavras do prprio Lonard, a cada pas e a cada escola nova, seu sentimento inicial era sempre o de medo:

    Tinha medo de no conseguir fazer amigos, porque no podia me comu-nicar Tinha medo de no me dar bem na escola. Chegava sempre muito nervoso na escola e no gostava de ir aula. (Rudloff 2015)2

    Se o medo era companheiro de Lonard ao entrar em uma nova escola, o desconforto experimentado nos encontros iniciais com outra lngua nos dado pelo depoimento de Enrique Babio, espanhol da aldeia de Sada, em La Corua, Galcia:

    Senti dificuldade, como eu falo galego, o galego e o portugus se asse-melham, tambm muita coisa eu no entendi, sobretudo o carioca que

    2Depoimento de Lonard Rudloff, prestado autora em entrevista realizada, no Rio de Janeiro, em 15 de Outubro de 2015, no publicado anteriormente, constando sua ntegra em documento que integra o acervo pessoal da pesquisadora.

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    Mobilidade humana e circularidade de ideia, 29-40

    fala muito: xx. Isso a me atrapalhava e nas obras encontrava o nordes-tino, que falava de outra maneira. O carioca entendia melhor a ns, do que ns a eles. Porque na cidade sempre tem o ouvido mais adaptado. O carioca, qualquer idioma entende.3

    Ainda que seja considerada idlica sua viso sobre o carioca, que, segundo ele, qualquer idioma entende, Babio no deixa de ter razo, quando dis-tingue as diferenas de compreenso de um brasileiro frente ao espanhol (ou galego) e de um espanhol frente ao portugus. Em ltima instncia, um desdobramento das diferenas entre o latim erudito e vulgar e das formas pelas quais essas formas foram absorvidas pelos diferentes povos.

    O que se mostra importante no depoimento de Enrique Babio a indicao implcita das formas que o processo de aquisio de outra lngua compreen-de. Para alm do cognitivo, esse processo envolve o emocional, explican-do-se, por exemplo, por que, no caso de crianas bilngues (ou trilngues), estas tendem a desenvolver a gagueira: expresso de um querer dizer que no encontra na mesma velocidade do pensamento palavras apropriadas no ato da enunciao. Explica tambm por que relativamente comum que palavras da lngua materna invadam a fala em lngua estrangeira.

    4 Sobre Juana, Angelina e Teodora

    O depoimento prestado por Juana Naranjo, espanhola de Sevilha, Andalu-zia, demonstra essa invaso de palavras no ato da enunciao, em narra-tivas construdas em outra lngua:

    So Paulo era feia. Vou falar a verdade. que eu vinha de uma cidade pequena, j no es tan pequea hoje, Sevilha ya es una ciudad... uma cidade que voc vai ao centro andando, eu morava no centro, perto da catedral e at o Parque de Maria Luisa, era tranquila. que meu marido tinha alugado dois cmodos, quarto e cozinha l no Tatuap, e a senhora da casa da frente, de Trs dos Montes, de unos cincoenta y tal, eu com vinte e trs anos... Quando eu escutava ela falar, era choc, choc, choc... No entendia nada, nada... e ela me falava, me falava... Mi marido salia a las seis horas, cinco e meia, ele era mecnico, trabalhava na Estrela o dia inteiro e eu ficava sozinha at de tarde, at as seis e meia. E eu escutava aquela mulher e yo deca, madre ma, de donde sali esta mujer... donde yo me he metido (Narajo 2008 in Corner 2012, s.p.)

    3Depoimento prestado a rica Sarmiento da Silva, em 26 de Maio de 2011, fazendo parte de seu acervo pessoal, gentilmente cedido autora para meno neste texto.

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    Pequea, ciudad, cincoenta, donde, mujer foram, dentre outras, palavras espanholas que invadiram um depoimento prestado em lngua portuguesa, embora, nesses casos, os registros fossem bastante prximos. O mesmo se d com verbos como salir e decir. Essa invaso torna-se mais signifi-cativa quando observamos que, no momento do depoimento, j se tinham passado anos desde que Juana chegara ao Brasil, o que a fazia dominar muitas outras palavras, com registros mais distanciados. Ou seja, indepen-dentemente dos anos de permanncia no Brasil, ela continuava trocando as lnguas. Indicaria isso que ela continuava a pensar na lngua materna ou seriam outras as explicaes para essa forma mista de enunciao? A resposta a essa questo, certamente, foge proposta deste artigo, por envolver questes ainda em aberto, relativas elucidao de como se comportam os circuitos cerebrais no caso do aprendizado de outra lngua.

    Para Juana, sua chegada ao Brasil foi acompanhada por um verdadeiro sofrimento no contato com o outro. Segundo o que disse, ela experimen-tava um verdadeiro desespero quando ouvia a vizinha falar em uma lngua que ela no compreendia e que, em seus ouvidos, soava como um choc, choc, choc incompreensvel, que no fazia, para ela, qualquer sentido.

    Outra informao importante no depoimento de Juana sua observao acerca das diferenas que afetavam os cotidianos vividos por ela e pelo marido, o que influenciava diretamente no aprendizado da nova lngua.

    Essa diferenciao tudo tinha a ver com os papis tradicionais por eles desempenhados. No caso do marido provedor do casal ele saa s cinco e meia ou seis horas da manh para o trabalho e ficava fora do lar o dia inteiro. Nessa situao, diariamente mantinha contato com colegas de trabalho e fregueses, e esse contato possibilitou que, rapidamente, ele discriminasse os sons que o cercavam, conferindo-lhes sentido.

    Juana, ao contrrio, permanecia sozinha em casa, raramente saindo rua. Era esta sua rotina diria, que se repetia das seis da manh s seis e meia da tarde, com a possibilidade, apenas ocasional, de ela travar dilogo com a vizinha, que, pelo que demonstra o depoimento da andaluza, no manifestava a mnima preocupao de se fazer entender. Da o desabafo da entrevistada: madre ma, de donde sali esta mujer... donde yo me he metido!.

    Destaque-se que, no caso de Juana, o que estava em jogo no era a opo de ir escola para aprender uma lngua estrangeira, mas a necessidade imperiosa de se comunicar e, atravs desse ato, poder melhor sobreviver na nova terra, desempenhando seu papel de esposa e me em terra estran-geira. Aprender a lngua portuguesa, para ela como para tantas outras, era parte intrnseca e vital da construo de uma nova vida no Brasil, atravs da vivncia de um processo continuado de mudanas que se colocava, no caso especfico da lngua, para alm do enunciar, impondo a necessidade do significar, no sofrido processo de adoo de novos padres lingusticos e simblicos.

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    O difcil processo de adaptao e aprendizagem, vivido pelo(a) imigran-te, associava-se sempre ao medo: medo de no ser compreendido, medo da discriminao, medo da galhofa. Estas eram situaes que, para as mulhe-res, acabava por acarretar um processo de refgio dentro de si, marcado pela opo por pouco falar ou, ainda, de pouco sair e de permanecer no lar, onde podia continuar a falar a lngua materna, sem o sofrimento que o contato com a outrocidade lingustica acarretava.

    Outra depoente, Angelina Amndola, narra as mesmas dificuldades e o mesmo sofrimento. Nesse caso, fica mais explcita uma situao cons-trangedora vivida fora de casa, reforando a representao do lar como refgio. As dificuldades vividas por Angelina s comearam a ser minimiza-das embora nunca superadas quando a filha alcanou idade suficiente para frequentar a escola, passando a ensinar me os meandros da lngua portuguesa.