monografia bacharelado bruno abilio galvão

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA BRUNO ABILIO GALVÃO AS INSTITUIÇÕES DE SEQUESTRO ENQUANTO DISPOSITIVOS DE PODER E SEU FUNCIONAMENTO EM MICHEL FOUCAULT. VITÓRIA 2013

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    BRUNO ABILIO GALVO

    AS INSTITUIES DE SEQUESTRO ENQUANTO DISPOSITIVOS DE

    PODER E SEU FUNCIONAMENTO EM MICHEL FOUCAULT.

    VITRIA

    2013

  • BRUNO ABILIO GALVO

    AS INSTITUIES DE SEQUESTRO ENQUANTO DISPOSITIVOS DE

    PODER E SEU FUNCIONAMENTO EM MICHEL FOUCAULT.

    Monografia apresentada ao Curso de Filosofia do

    Centro de Cincias Humanas e Naturais da

    Universidade Federal do Esprito Santo, como

    requisito parcial para a obteno do grau de

    Bacharel em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Joo

    Assis Rodrigues.

    VITRIA

    2013

  • ii

    BRUNO ABILIO GALVO

    AS INSTITUIES DE SEQUESTRO ENQUANTO DISPOSITIVOS DE

    PODER E SEU FUNCIONAMENTO EM MICHEL FOUCAULT.

    Monografia apresentada ao Curso de Filosofia do Centro de Cincias Humanas e Naturais da

    Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para a obteno do grau de

    Licenciado Pleno em Filosofia.

    Aprovada em 15 de abril de 2013.

    COMISSO EXAMINADORA

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Joo Assis Rodrigues

    Universidade Federal do Esprito Santo

    Orientador

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Ricardo Corra de Arajo

    Universidade Federal do Esprito Santo

    _________________________________________

    Profa. Dra. Thana Mara de Souza

    Universidade Federal do Esprito Santo

  • iii

    RESUMO

    A soberania do Estado possui duas faces, uma que a fundamenta, o discurso de

    soberania e outra que a torna de fato efetiva, as prticas de exerccio do poder que ocorrem

    no que Foucault chama de Instituies de Sequestro, que, por proporcionarem tal efeito, so

    chamadas de dispositivos de poder. Portanto, os dispositivos de poder proporcionam a

    efetivao da soberania do Estado por meio de prticas de exerccio do poder que, por sua

    vez, possuem origem heterognea, vindo a se reunirem em determinados espaos sob o nome

    de poder disciplinar. A disciplina, por sua vez, proporciona a produo de indivduos

    dceis, ou seja, com pouca capacidade de reflexo poltica e eficcia em termos de mo de

    obra. Este tipo de poder estabelece uma relao entre o eixo discursivo e no discursivo, ou

    seja, tudo o que produzido enquanto saber e tudo o que acontece de fato, dessa forma, o

    discurso produzido nessas instituies por meio da observao aplicado nestas produzindo

    novas prticas e tais prticas reformulam sempre o saber produzindo mais discursos. Ento,

    esse regime de prticas estabelecido no interior dos dispositivos de fundamental importncia

    para o Estado, que, enquanto estrutura de poder, regula a vida dos diversos grupos sociais a

    ele interligados.

    Palavras chave: Discurso. Dispositivo. Poder. Soberania.

  • iv

    ABSTRACT

    The sovereignty of the State possesss two faces, one that base it, the sovereignty

    speech and another one that becomes it in fact effective, the practical ones of exercise of the

    power that occurs in what Foucault calls Institutions of Sequestration, that, by providing

    such effect, they are called power devices. Therefore, the power devices provide the

    effectuation of the sovereignty of the State by means of practical of exercise of the power

    that, in turn, possess heterogeneous origin, come if to congregate in definitive spaces under

    the name of disciplinary Power. It disciplines, in turn, provides it the production of docile

    individuals, that is, with little capacity of reflection politics and effectiveness in terms of

    workmanship hand. This kind of power establishes a relation between the discursive stent and

    not discursive, that is, everything what it is produced while to know and everything what it

    happens in fact, of this form, the speech produced in these institutions by means of the

    comment is applied in these producing new practical and such practical always reformulate

    the knowledge producing more speeches. Then, this established regimen of practical in the

    interior of the devices is of basic importance for the State, therefore it provides to regulate the

    life of the diverse linked social groups.

    Words - key: Speech. Device. Power. Sovereignty.

  • v

    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................. 7

    CAPTULO 1: OS DISPOSITIVOS DE PODER E ALGUNS FATOS QUE

    PROPORCIONARAM SEU SURGIMENTO.......................................................10

    1.1 O discurso de soberania e o surgimento das instituies de sequestro............10

    1.2 A modernidade e o homem enquanto indivduo jurdico.................................12

    1.3 O homem como fora de trabalho e a governamentalizao de sua vida........13

    1.4 O homem e o surgimento das prticas de controle e correo do

    comportamento........................................................................................................................16

    1.5 O discurso de soberania e o panptico como instrumentos de exerccio do

    poder.........................................................................................................................................18

    CAPTULO 2: A ESTRUTURA DOS DISPOSITIVOS: A ARQUITETURA E

    AS FORMAS DE EXERCCIO DO PODER.........................................................21

    2.1 A arquitetura.........................................................................................................21

    2.2 O exerccio do poder.............................................................................................23

    2.3 O poder disciplinar...............................................................................................26

    2.3.1 A organizao e disposio dos corpos no espao....................................27

    2.3.2 Controle do tempo e das atividades...........................................................29

    2.3.3 Vigilncia hierrquica................................................................................30

    2.3.4 Sano normalizadora................................................................................31

    2.3.5 O exame........................................................................................................32

  • vi

    CAPTULO 3: O PODER EPISTEMOLGICO E AS FORMAES

    DISCURSIVAS..........................................................................................................36

    3.1 Formao dos objetos do discurso.......................................................................37

    3.2 Modalidades enunciativas.....................................................................................40

    3.3 O que so os enunciados?.....................................................................................40

    3.4 A formao dos conceitos.....................................................................................44

    3.5 Formao das estratgias......................................................................................48

    3.5.1 A organizao e o emprego semntico nos elementos discursivos por

    meio de pontos de difrao.................................................................................................50

    3.5.2 A constelao discursiva e a seleo dos elementos do discurso.............51

    3.5.3 A fundamentao das estratgias nas prticas no discursivas e a

    produo do saber...................................................................................................................54

    CONCLUSO.............................................................................................................57

    REFERNCIAS..........................................................................................................58

    ANEXOS......................................................................................................................59

  • 7

    INTRODUO.

    O objetivo desse trabalho de concluso de curso analisar as instituies de

    sequestro, assim denominados por Foucault, devido prtica de confinamento que

    estabelecida nesses espaos, e que, devido sua funcionalidade e aos efeitos proporcionados

    sobre os indivduos, so caracterizadas como dispositivos de poder. Portanto, iremos tratar de

    um instrumento que corresponde ao aparato concreto das formas de exerccio de poder, que,

    para Foucault, surge no perodo da modernidade cujo objetivo estabelecer relaes de poder

    objetivando a produo de determinada subjetividade. Ento, se esses espaos proporcionam o

    exerccio do poder e a produo de subjetividade porque no interior dessas estruturas

    funciona toda uma dinmica de relaes voltadas para determinado fim. Portanto, tratar dos

    dispositivos de poder no significar somente a anlise dos elementos concretos e slidos

    desses espaos como puro estado de inrcia, mas sim que esses elementos, sendo humanos ou

    ferramentas oriundas de diversas tecnologias, estabelecem entre si movimentos e efeitos de

    uns sobre os outros promovendo todo o funcionamento das instituies de sequestro enquanto

    dispositivos de poder. Ento, o foco desse trabalho falar sobre esse tipo de dispositivo de

    poder abrangendo seus elementos de funcionamento interno e o motivo de sua existncia.

    Para isso, este trabalho monogrfico dividido em trs partes correspondentes a trs

    captulos.

    O captulo 1, intitulado Os dispositivos de poder e alguns fatos que proporcionaram

    seu surgimento, mostra os motivos e acontecimentos histricos que levaram ao surgimento

    desse tipo de dispositivo pautado em uma necessidade de gerir determinados grupos sociais.

    Portanto, trata-se do surgimento deste como forma de exercer o controle dos fenmenos das

    massas sociais direcionando-as para diversos fins. Porm, o ato, de empregar a massa social

    difusa nos mecanismos de poder, se inicia de forma autnoma por parte dos dispositivos,

    vindo estes, posteriormente, serem interligados ao Estado soberano de determinado territrio

    em que se encontram cujo objetivo gerir a vida dos indivduos em todos os aspectos. Este

    captulo, portanto, em seu primeiro tpico, tratar da relao entre Estado soberano e

    Instituies de Sequestro em que o Estado, entenda-se este genericamente, fundamentado,

    segundo Foucault (2010), pelo discurso de soberania, exemplificado pelo discurso de Hobbes

    sobre a necessidade do soberano em seu Leviat e mantido pelas prticas disciplinares que

    ocorrem nos dispositivos. Portanto, a relao mantida entre esses dois elementos ocorrer pelo

  • 8

    fato de o discurso de soberania, somente por si mesmo, no ser suficiente para sustentar uma

    estrutura social seguida e aceita, ento, surgindo a necessidade de se utilizar as tcnicas

    disciplinares e seus mecanismos de poder, que promovem a produo de corpos dceis

    presentes nas instituies de sequestro, recaindo sobre estas a funo de manter os indivduos

    num estado de ignorncia e passividade em termos polticos e, ao mesmo tempo, treinar seus

    corpos para o exerccio das atividades de produo.

    Visto esse primeiro tpico, passaremos a mostrar como as Instituies de Sequestro e

    as prticas de confinamento e exerccio do corpo surgiram. O surgimento desses dispositivos

    atrelado ao surgimento de duas novas concepes de homem interligado a dois mecanismos:

    ao jurdico e ao de produo industrial. Primeiro, baseando se em A Verdade e as Formas

    Jurdicas de Foucault, iremos mostrar como a concepo de homem enquanto indivduo

    submetido a um conjunto de leis modificada passando de um indivduo que, ao cometer um

    crime, considerado como inimigo da sociedade e por isso deve ser excludo desta para uma

    concepo de que este, ao cometer um crime, deve ter o comportamento corrigido. E,

    tambm, a partir desta concepo, surge a ideia de que a criminalidade ser prevenida,

    portanto, diante desta nova forma de conceber o tratamento do indivduo jurdico, surgir a

    necessidade de se cuidar da forma com que este age na sociedade gerindo seu

    comportamento. O outro fator, o de produo industrial, contextualizado pela obra de Mariano

    F. Enguita, A Face Oculta da Escola, mostra o perodo histrico do surgimento das grandes

    indstrias, o que proporcionou o aumento da populao urbana, devido ao fato de ter ocorrido

    migraes para os centros motivadas pela busca de melhores condies de vida. Portanto,

    como essas indstrias careciam de mo de obra, grande parte dessas pessoas foi empregada

    nesses lugares e, visando eficcia da produo, diversas tcnicas disciplinares foram

    introduzidas para tal propsito. Nesse perodo, diversas instituies iro surgir, por exemplo,

    os hospitais e as escolas em que, embora tais instituies j existissem anteriormente a este

    perodo, surgem no sentido de receberem um novo formato e uma nova dinmica, pois agora,

    como dispositivos de poder, assumem outra forma de funcionamento estabelecendo novas

    formas de relaes e uma nova forma de estruturao do espao. Espao que, tratado no

    ltimo tpico deste captulo, corresponde a uma forma de arquitetura que possibilite o

    exerccio de poder com maior eficcia empregada na construo das Instituies de Sequestro,

    trata-se da abstrao arquitetural de Jeremy Bentham denominada de Panptico.

    O captulo 2, A estrutura dos dispositivos: a arquitetura e as formas de exerccio do

    poder, tem por objetivo analisar como as Instituies de Sequestro, enquanto dispositivos de

  • 9

    poder, so constitudas. Primeiro, seguindo a ideia do panptico apresentada no final do

    primeiro captulo, iremos tratar da arquitetura destes dispositivos mostrando que as formas

    de modelos arquitetnicos mudam de acordo com o momento histrico e com a organizao

    da sociedade. , ento, estabelecido um paralelo, de acordo com Salma T. Muchail em

    Foucault, Simplesmente, entre a arquitetura anterior modernidade, em que esta era voltada

    para proporcionar determinado espetculo ao maior nmero de pessoas, com a arquitetura

    panptica, mostrando que houve uma inverso da lgica do espetculo, pois o propsito

    arquitetural passa a ser proporcionar que o maior nmero de pessoas seja posto em

    observao para um grupo menor de pessoas. Feito isto, partimos para as relaes de poder

    que ocorrem em seu interior e que ocasionam seu funcionamento. Primeiro, iremos esclarecer

    o que Foucault compreende por poder e em sequncia ser abordado as diferentes formas em

    que este exercido confluindo para a formao de um conjunto de prticas chamado de

    poder disciplinar.

    O terceiro captulo, O poder epistemolgico e as formaes discursivas, tem como

    ponto de partida a reflexo que se inicia no captulo 2 referente ao exame, que uma

    modalidade do poder em que o saber produzido por meio da observao e registro dos fatos

    molda o mbito das prticas no discursivas. Portanto, com o objetivo de analisar esta questo

    com maior profundidade, este captulo trata somente das prticas discursivas investigando os

    elementos de formao do discurso e sua relao com a esfera no discursiva. Sendo que este

    assunto tema central no perodo arqueolgico de Foucault, a obra principal a ser explorada

    neste captulo A Arqueologia do Saber.

  • 10

    CAPTULO 1: OS DISPOSITIVOS DE PODER E ALGUNS FATOS

    QUE PROPORCIONARAM SEU SURGIMENTO.

    1.1 O discurso de soberania e o surgimento dos dispositivos.

    Este trabalho visa investigar como o poder exercido num sentido de promover a

    submisso de determinado grupamento social soberania do Estado. A submisso ao Estado

    mediada, em determinada formao social, pelo fato de alguns indivduos se apoderarem de

    determinadas estratgias e tecnologias de exerccios do poder e as aplicar sobre uma massa

    populacional difusa e catica, organizando a e a dispondo da maneira mais apropriada para

    que determinado estado dcil seja mantido e reproduzido. Dessa forma, determinado grupo

    capaz de direcionar as atitudes e gestos e canaliz-los para determinados fins, agindo sobre a

    ao do outro, o que Foucault1 denomina de governamentalidade. Portanto, o assunto desse

    trabalho se estrutura a partir dessa forma de governamentalizar populaes, de gerir

    comportamentos e atitudes num exerccio de poder que direciona certo grupo de indivduos,

    de forma sofisticada e sutil, no sentido de que o comando no exercido de maneira

    coercitiva e violenta, mas sim que cada indivduo, ao sofrer ao do exerccio do poder de

    diversas formas, como veremos mais adiante, incorpora as normas estabelecidas sobre suas

    vidas como se fossem a melhor possibilidade. Podemos exemplificar isso por meio da

    metfora do pastor que aponta s suas ovelhas o caminho que devem seguir para manterem-se

    vivas, pois o pastor quem cuida e guia suas ovelhas e elas nele confiam, pois foram

    ensinadas a conceder seu poder de mando a outro mais capacitado. Essa alegoria, to antiga e

    to gasta pelos usos e desusos na histria do pensamento, usada aqui para espelhar um

    princpio bsico do que significa governamentalizar determinado grupo social que,

    primeiramente, no em sentido de maior importncia, mas sim de ordem de abordagem, se faz

    valer de uma crena. Crena que, a partir de FOUCAULT (2002), devemos interpretar como a

    verdade enquanto construo discursiva. Cr-se que h uma instncia maior qual devemos

    delegar nossa capacidade de agir por nossa vontade para que a vida em conjunto seja mantida.

    1 FOUCAULT apud BUJES, 2002.

  • 11

    Tal crena ou discurso de verdade ao qual nos referimos alegoricamente ilustra o que

    FOUCAULT (2010) chama de Discurso de Soberania, que consiste na delegao do poder

    pelo corpo social a uma instncia maior, nesse caso o Estado, visando o bom funcionamento

    social. Ento tal discurso torna legtimo o exerccio de tais prticas de governo, pois ,

    segundo ele, a soberania do Estado delegada pelo prprio corpo social que anseia pelo bom

    convvio.

    O discurso de soberania fundamenta tal prtica numa escolha popular. Thomas

    Hobbes2, por exemplo, em sua ideia do pacto social, defende a afirmativa de que

    determinados indivduos, puramente conscientes da necessidade de assegurar suas vidas em

    meio ao grupo social, abrem mo de algumas possibilidades de exerccio de poder e o

    delegam a uma instncia superior (soberano), pois perceberam, em sua s conscincia, que tal

    ato a melhor atitude a ser tomada. Podemos dizer, a partir de FOUCAULT (2010), que tal

    discurso se fundamenta numa metafsica, ou numa idealizao quase platnica e idealista de

    sociedade, pois tal fato nunca ocorreu, no h tal delegao de poder, porm, o fato que

    acreditamos nesse discurso, pois somos lanados em meio a essas estruturas positivistas

    erguidas a custo de muitos jogos e estratgias, lutas e combates aos quais estes

    posicionamentos sociais se configuraram. A estrutura social no dessa forma pelo fato de

    termos escolhido, mas sim por termos perdido alguns combates.

    Ento, num primeiro momento, o fato de determinados grupos sociais serem mantidos

    ou se manterem num estado de submisso parcialmente devido a uma construo discursiva

    que fundamenta e explica s pessoas o porqu e a importncia de se manter tal regime de

    convvio. Porm o discurso por si apenas no garante que todas as pessoas se mantenham nas

    posies que lhes so apontadas, pois, como foi dito, a constituio do Estado no foi uma

    escolha puramente consciente de todos os indivduos e sim consequncia de derrotas e vitrias

    de determinados grupos e, como na histria, quem vence a guerra que ser o contador desta,

    o discurso de soberania a verdade contada pelos vencedores. Portanto, as formas de

    exerccio de fora e poder permanecem por baixo desse discurso, porm, para Foucault, estas

    se tornaram mais sofisticadas, passando por vrios processos de aperfeioamento que

    progridem medida que a compreenso do que o homem evolui, enquanto corpo e

    subjetividade. Portanto, para que determinado grupo social mantenha-se num estado de

    submisso, o Estado, enquanto soberano e fundamentado em sua construo discursiva, ir

    2 Cf. HOBBES. Thomas. Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado eclesistico e civil. So Paulo.

    Martins Fontes. 2003

  • 12

    ver nascer, em variados espaos particulares, formas de se exercer o poder e controlar as

    atitudes daqueles mantidos como submissos sua ordem. A esses espaos, em que diversos

    mecanismos de exerccio do poder so executados, Foucault3 chama de dispositivos de

    poder. Porm, tais mecanismos, com suas sofisticadas tecnologias de exerccio do poder,

    surgem e se aperfeioam na medida em que o homem formulado, enquanto representao,

    junto com o desenvolvimento do saber sobre si mesmo. Vejamos ento, como que uma

    mudana na representao do homem ocorrida no perodo da modernidade influenciou o

    surgimento e o modo de funcionar de tais dispositivos. Para isso iremos analisar as mudanas

    na representao do homem enquanto indivduo jurdico e enquanto fora de trabalho para as

    indstrias que surgiram nessa poca.

    1.2 A modernidade e o homem enquanto indivduo jurdico.

    A partir do pensamento de FOUCAULT (2002), podemos afirmar que a conjuntura

    jurdica que vivenciamos e tambm outros elementos caractersticos de nossa sociedade

    trilharam por caminhos desencadeados a partir de uma mudana na forma de compreender o

    indivduo criminoso. Para alguns juristas do sculo XVIII, o crime tratava-se da ruptura da lei

    previamente estabelecida, portanto, s pode haver crime se para determinado fato houver uma

    lei prescrita. A lei penal da poca tinha como funo representar e defender o que era til para

    a sociedade, portanto, tudo o que ocorre de forma transgressora danifica o corpo social.

    Seguindo essa lgica, o criminoso caracterizado como inimigo de toda a sociedade.

    Ento, se o ato criminoso provoca um dano ao corpo social, a lei penal deve prescrever

    mecanismos de punio de forma que o dano seja reparado, para isso surgem diversas formas

    de punio defendidas teoricamente, mas que na prtica pouco foram utilizadas. Essas

    penalidades eram as seguintes: expulso ou banimento do meio social, pois o indivduo

    infrator excluiu-se ao romper com a lei; excluso local e moral por meio de calnia; trabalho

    forado visando o pagamento da dvida social; e lei de Talio, em que o criminoso sofria o

    mesmo dano que havia causado. Porm, todos esses mecanismos de punio sero

    substitudos no sculo XIX pela priso (FOUCAULT, 2002).

    3 VEYNE, Paul. Foucault: o pensamento a pessoa. Lisboa. Texto & Grafia. 2009.

  • 13

    Portanto, no sculo XIX, essa construo jurdica sofrer uma mudana, no mais se

    apoiar numa abstrao generalizada de utilidade social, mas buscar ajustar-se ao

    indivduo (FOUCAULT, 2002, pg. 84). Ao se analisar um ato criminoso, a prescrio da

    pena no mais se fundamentar num princpio geral de rompimento da ordem social, mas sim

    em que circunstncias e condies o crime ocorreu, portanto, a anlise do crime e as sentenas

    passam a ser julgadas a nvel individual. H, ento, uma transio de uma forma de legislao

    que visa a defesa geral da sociedade para o controle e a reforma psicolgica e moral das

    atitudes e do comportamento dos indivduos (FOUCAULT, 2002, pg. 85).

    Mas, esse controle e reforma moral no sero aplicados apenas referindo-se ao ato

    cometido, mas tambm visando reduzir as possibilidades de um crime vir a ocorrer. Portanto,

    com o objetivo de prevenir a ocorrncia criminosa, o jurdico buscar atuar na formao das

    virtualidades de cada indivduo. Porm, os mecanismos penais por si s no eram capazes de

    executar tal tarefa, portanto, o Estado buscar em outras formas de poder, poderes locais e

    marginais, mecanismos que possibilitem o controle de toda a sociedade (FOUCAULT, 2002,

    pg. 86).

    1.3 O homem como fora de trabalho e a governamentalizao de sua vida.

    O perodo da modernidade marcado por uma srie de fenmenos polticos e

    econmicos, sendo, talvez o mais significativo, o surgimento das indstrias, o que ocasionou

    vrias mudanas na relao homem trabalho e tambm na forma com que este passou a ser

    compreendido segundo a mudana de necessidades de produo. Antes, num perodo pr-

    moderno, o trabalhador dispunha dos meios de produo e tinha total controle de todos os

    processos na elaborao de seu produto, do tempo e da maneira em que seria produzido sendo

    o produto final fruto de sua arte. Posteriormente, com o advento da indstria, nas fbricas, o

    trabalhador submetido a executar determinadas funes no processo de produo em uma

    escala de tempo previamente definida em troca de um salrio que possibilite apenas a

    manuteno do corpo enquanto fora de trabalho. Esse processo de desenvolvimento

    industrial proporcionou o aumento da populao urbana, num primeiro momento, devido

    migrao da populao rural para os grandes centros em busca de melhores condies de

    sobrevivncia (MARIANO F. ENGUITA, 1989) e posteriormente, com estratgias de

  • 14

    controle do corpo, enquanto aspecto orgnico, visando preservao da vida, o que

    FOUCAULT (2007) chamar de biopoder.

    A modernidade ento marcada pela consolidao de novos mecanismos econmicos

    e tambm por uma crescente populao urbana. O que, a princpio, so fenmenos que se

    complementam, pois, com o surgimento das fbricas h uma demanda por trabalhadores que

    sanada com o aumento da populao. O homem ento passa a ser visto como pea adaptvel

    aos mecanismos de produo, pois a indstria, como dispositivo emergente, com suas

    relaes de poder sendo exercidas, necessita de componentes humanos em suas estruturas

    para funcionar. O crescimento demogrfico urbano fez surgir, para a elite da sociedade, a

    necessidade de se criar mecanismos de controle sobre estes indivduos, pois, com o

    crescimento demasiado da populao, houve a necessidade de civilizar as massas e cuidar

    para que suas impurezas (ENGUITA, 1989) (a populao pobre, alm de carecer de

    cuidados, tambm carregava uma carga de preconceitos) no se propagassem para toda a

    sociedade, para isso surge nesse perodo o que Foucault chama de biopoder (MACHADO,

    1988, p.200). O biopoder uma tecnologia utilizada com o intuito de preservar a vida num

    sentido em que se obtm, ao se esquadrinhar e individualizar as populaes, conhecimentos

    referentes aos processos biolgicos da vida, como por exemplo, a quantidade de mortes e

    nascimentos que ocorrem, informaes sobre a sade da populao, etc. e, mediante tal saber

    produzido, estabelecer formas de intervir e controlar tais movimentos biolgicos da

    populao. Tal tecnologia de poder aplicada segundo a compreenso do corpo enquanto

    espcie, objetivando sua perpetuao e proporcionando o controle de uns sobre os outros.

    Diante dessas mudanas sociais, o Estado, visando o controle populacional num

    sentido de biopoltica e fora de produo, desenvolve o que FOUCAULT (2010) chama de

    governamentalidade. A governamentalidade uma tecnologia que, diante de todo o corpo

    social, delimita o espao de ao de cada indivduo tornando possvel controlar a vida de cada

    um no sentido de direcion-la para um fim especfico ditando normas de conduta. Segundo

    Maria Izabel Edelweiss BUJES (2002, p. 76), a governamentalidade surge pela associao

    entre o que Foucault chama de o jogo da cidade e o jogo do pastor.

    O jogo do pastor constitui-se num tipo de relao pautado no cuidado de um indivduo

    (o pastor) para com os demais (o rebanho) em que o pastor mantm seu olhar sobre cada

    ovelha procurando identificar as fragilidades presentes e zelar por cada uma. O pastor nesse

    mecanismo ocupa tambm a funo de guia, pois, alm de cuidar do rebanho, o direciona a

  • 15

    determinadas posies visando manter viva cada ovelha. J o jogo da cidade surge com o

    crescimento populacional dos centros urbanos e tem por objetivo estabelecer formas coletivas

    de convivncia. Ou seja, trata-se de uma tecnologia voltada populao como um todo,

    pretendendo mant-la sob controle ao estipular modos padronizados de vida. O controle

    estabelecido por essa tcnica no vem somente manter ou reter a populao em seus

    domnios, mas busca tambm aprimorar todo o corpo social no s em fatores econmicos,

    mas tambm em questo de sade, o que proporcionar o surgimento de alguns saberes para

    suprir tais necessidades: inicialmente, a estatstica, a economia e a demografia; depois a

    sade pblica; logo adiante, todas as reas psi (a psiquitrica, a psicologia, a psicanlise)

    (VEIGA-NETO apud BUJES, 2002, p. 77).

    Ento, com a associao dessas duas tcnicas, obtm-se uma forma de governo

    racional e inteligente, capaz de, ao provocar determinados movimentos ou mudanas na vida

    social, obter determinados resultados. Portanto, governo, segundo Foucault :

    [...] a maneira de dirigir a conduta dos indivduos ou de grupos: [governamento] das

    crianas, das almas, das comunidades, das famlias, dos doentes. Ele no recobria

    apenas formas institudas e legitimas de sujeio poltica ou econmica; mas modos

    de ao mais ou menos refletidas e calculadas, porm todos destinados a agir sobre

    as possibilidades de ao dos indivduos. Governo, neste sentido, estruturar o

    eventual campo de ao do outro (FOUCAULT apud BUJES, 2002, p. 77).

    Portanto, a governamentalidade permite ao Estado dispor corpos e os dirigir para obter

    certos efeitos, sendo estes os indivduos operrios, servindo de fora de trabalho para as

    indstrias que surgem nesse perodo, e cidados de bem submissos ordem do Estado.

    Porm, tais disposies e direcionamentos iro proporcionar o surgimento de espaos

    demarcados que se mantenham conectados uns aos outros e ao Estado, como por exemplo, as

    escolas, os hospcios de internao, os hospitais e as prises, pois o efeito objetivado aplicado

    nesses espaos o mesmo: dirigir a vida social de cada indivduo. Para isso, estabelecido

    um conjunto de prticas, de rotina e de rituais institucionais (BUJES, 2002, p.79) que

    orientado por um conjunto de metas, determinadas segundo um processo de racionalizao da

    populao, o que torna tais atividades governamentais. Em meio a esse cenrio e a essas

    tecnologias de poder, surgem os dispositivos que queremos analisar, instituies

    governamentais, mquinas, gerenciando a vida de pessoas e produzindo determinadas

    subjetividades, objetivando assim um efeito: aprimorar, cuidar e controlar o corpo social em

    sua micro partcula, nos gestos, hbitos e pensamento humanos.

  • 16

    1.4 O homem e o surgimento das prticas de controle e correo do

    comportamento.

    Segundo FOUCAULT (2002), as prticas de controle e correo do comportamento

    tm origem por meio de modos de vida comunitria pautados na vigilncia permanente de

    cada indivduo que surgiram principalmente na Inglaterra e na Frana. Esses mecanismos, de

    controle e correo do comportamento, se constituram durante o sculo XVIII por meio de

    prticas marginais e independentes em relao ao sistema jurdico e econmico, portanto,

    reafirmando a frase anterior, so oriundas de grupos populares que produziram um sistema de

    organizao pautado no controle do comportamento dos indivduos, o que, devido ao seu

    funcionamento eficaz, passar a ser operado, posteriormente, pela elite econmica e jurdica e

    ser absorvida e executada nos dispositivos de poder. Esses sistemas de organizao pautados

    no controle se iniciaram na Inglaterra em meados do sculo XVIII, se formaram em

    determinadas localidades em que grupos de pessoas, sem nenhum consentimento jurdico e de

    forma espontnea, constituram uma forma de relao comunitria proporcionando a esta uma

    funcionalidade. Nesses pequenos organismos sociais de controle, algumas pessoas se

    incumbiam da tarefa de vigiar os demais. Portanto, h uma vigilncia sobre a organizao e o

    funcionamento de tal grupo, visando sua manuteno, em que algumas pessoas reivindicam

    para si a tarefa de vigiar a todos, regulando as formas de convvio. Porm, qual a necessidade

    de se instaurar uma relao de subordinao a uma ordem se j existe a subordinao s leis?

    Temos ento duas instncias diferentes que executam papis parecidos, porm de

    formas diferentes. H, tanto na relao do Estado com seus sditos quanto na relao das

    pessoas de um povoado, uma submisso ordem, mas, o infrator diante do Estado punido

    como prev o cdigo de lei, pois o crime, nesse momento, ainda era visto a partir do seu

    acontecimento, ou seja, o indivduo infrator ainda era caracterizado como inimigo da

    sociedade e a pena, na maioria das vezes, era a morte. J nas pequenas sociedades havia um

    trabalho de preveno da falta por meio da vigilncia. Ento, diante dessa situao em que h

    um Estado que pune o criminoso e grupos comunitrios que visam evitar que ocorra um

    crime, podemos dizer, a partir de Foucault, que os mecanismos de controle locais vieram a

    com o intuito de escapar lei do Estado que, na poca, era muito violenta. No incio, esses

    grupos eram constitudos por populares e membros da pequena burguesia, que buscavam

    suprimir os vcios e os maus costumes, eles proibiam a embriaguez, o roubo, a prostituio,

  • 17

    etc. Tratava-se de uma organizao cuja finalidade era assegurar uma moral que os

    impedissem de cometer algum delito e serem assim condenados. Portanto, essa organizao

    pautada na vigilncia local tinha, de certa forma, o objetivo de escapar lei e preservar suas

    vidas.

    Porm, no decorrer do sculo XVIII,

    [...] esses grupos vo mudar de insero social e cada vez mais abandonar seu

    recrutamento popular ou pequeno burgus. No fim do sculo XVIII so a

    aristocracia, os bispos, os duques, as pessoas mais ricas que vo suscitar

    esses grupos de auto-defesa (sic) moral, essas ligas para a supresso dos

    vcios. (FOUCAULT, 2002, pg. 93)

    Ento, alm de possuir um sistema penal violento, agora os grupos dominantes contam

    tambm com mecanismos que tornam possvel controlar a populao. Essa mudana de

    domnio acarretar tambm uma transio da regularidade desses grupos sociais, passando de

    uma regulao moral para uma calcada na penalidade jurdica, promovendo a estatizao

    desses mecanismos de controle. A lei, enquanto discurso e direcionamento de fora, aplica-se

    aos populares e quem aplica ou exerce esse instrumento de poder escapa ao direcionamento

    da lei. Tal sistema demonstrado num texto citado por Foucault, datado de 1804, escrito por

    um bispo chamado Watson que pregava, acerca da Sociedade de supresso dos vcios o

    seguinte:

    As leis so boas, mas infelizmente, so burladas pelas classes mais baixas. As

    classes mais altas, certamente, no as levam em considerao. Mas esse fato

    no teria importncia se as classes mais altas no servissem de exemplo para

    as mais baixas (...). Peo lhes que sigam essas leis que no so feitas para

    vocs, pois assim ao menos haver a possibilidade de controle e de vigilncia

    das classes mais pobres. (FOUCAULT, 2002, pg. 94)

    Na Frana ocorreu algo pouco diferente, decorrente das construes arquiteturais

    mantidas sob a guarda da polcia (Bastilha, Bictre, as grandes prises, etc.) e tambm de algo

    institudo que funcionava concomitantemente a essas construes, a lettres de cachette,

    que no era uma lei nem um decreto, mas uma ordem direta do rei, que obrigava qualquer

    pessoa, a se submeter ao que lhe fosse ordenado. Mediante tal ordem, poderia se obrigar

    algum a fazer qualquer coisa, desde a privao do exerccio de alguma funo ou at mesmo

    ser levado priso. Porm, a priso neste momento ainda no corresponde a uma punio

    jurdica, o jurdico, quando punia, era com a morte, com pagamento de multa ou banimento.

    Ento, em que consiste a lettres-de-cachette?

  • 18

    Esta se tratava de uma forma de poder que funcionava s margens do poder real, cada

    indivduo, insatisfeito com a conduta de alguma outra pessoa pertencente ao seu grupo social,

    poderia solicitar ao rei uma lettre-de-cachette obrigando tal pessoa a se corrigir ou solicitando

    que tal componente do grupo seja mantido na priso at que suas ms condutas fossem

    corrigidas. Dessa forma, as comunidades e grupos sociais exerciam sobre si mesmos o poder

    de controle e normatizao dos indivduos, assim, os grupos asseguravam seu prprio

    policiamento e sua prpria ordem. A priso vir a ser o principal mecanismo de punio

    somente no sculo XIX, num momento em que o poder real no mais se interessar pelos

    meios de punio violenta, pois a populao, no decorrer do tempo, no mais aprovar tais

    prticas, repudiando o Estado ao presenciar cenas de terrvel violncia e tambm com o

    surgimento dos saberes acerca do homem, que o mostram como indivduo passvel de ser

    moldado e manipulado. Houve tambm uma mudana na forma de lidar com os crimes, pois

    antes a lei atuava no momento da infrao, mas, com a priso, com suas prticas fundadas

    numa ideia de correo do comportamento, a penalidade atuar neste aspecto: corrigir os

    indivduos ao nvel de seus comportamentos, de suas atitudes, de suas disposies, do perigo

    que apresentam, das virtualidades possveis (FOUCAULT, 2002, pg. 99). Portanto, essa

    ideia de penalidade pautada na correo por meio do aprisionamento uma ideia policial

    criada paralelamente justia, que no nasce a partir de tericos juristas, mas sim forjada a

    partir de prticas dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo

    e o exerccio do poder (FOUCAULT, 2002, pg. 99). A prtica de encarceramento francesa,

    juntamente com as prticas de vigilncia inglesas, sero trazidas para o interior dos

    dispositivos governamentalizantes.

    1.5 O discurso de soberania e o Panptico como instrumentos de

    dominao.

    A priso, portanto, um dos dispositivos primordiais e o mais significativo enquanto

    modelo de espao em que o poder exercido e adotar sua excelncia de funcionamento com

    a abstrao modelar de Bentham, o Panptico (FOUCAULT, 2007), sua arquitetura era a

    seguinte:

    [...] na periferia uma construo em anel; no centro, uma torre; esta vazada

    de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construo

    perifrica dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da

  • 19

    construo; elas tm duas janelas, uma para o interior, correspondendo s

    janelas da torre; outra, que d para o exterior, permite que a luz atravesse a

    cela de lado a lado. Basta ento colocar um vigia na torre central, e em cada

    cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operrio ou um escolar.

    (FOUCAULT, 2007, pg. 165, 166)

    Portanto, esta uma forma de poder que se exerce de forma individual e contnua por

    meio de um olhar focado em cada indivduo. As prticas de vigilncia populares, incorporadas

    aos dispositivos, adquirem com o Panptico seu mximo de eficcia e, com a mudana de

    paradigma penal, no mais a respeito do que se fez, mas sim do que se pode vir a fazer, o

    modelo Panptico, enquanto diagrama em que relaes de poder so traadas, ser exercido

    por diversas instituies cujo objetivo ser manter o controle da populao, direcionando sua

    subjetividade e comportamento a um modelo dcil no nocivo a lei e til para a sociedade de

    produo. Portanto, as instituies que surgem no sculo XIX tero por funo fixar os

    indivduos (FOUCAULT, 2002, pg. 114), lig-los a um aparelho de transmisso por onde o

    poder passa alcanando seus corpos.

    [...] a fbrica no exclui os indivduos; liga-os a um aparelho de produo. A

    escola no exclui os indivduos; mesmo fechando-os; ela os fixa a um

    aparelho de transmisso do saber. O hospital psiquitrico no exclui os

    indivduos; liga-os a um aparelho de correo, a um aparelho de

    normalizao dos indivduos. O mesmo acontece com a casa de correo e a

    priso. (FOUCAULT, 2002, pg. 114)

    Portanto, o jurdico pe em prtica, interligado a essas instituies com seus micros -

    sistemas penais de vigilncia e correo do comportamento, um conjunto de relaes pautado

    na dominao e sujeio dos indivduos. Vimos que, na histria da modernidade, tais

    grupos de pessoas detentoras do direito de aplicar tais leis eram pessoas que tinham posio

    social acima da pequena burguesia e que possuam ttulos de nobreza e posio social poltica

    dentro do Estado. Tal possibilidade de exerccio do direito sustentada pelo discurso de

    soberania que, para Foucault, a partir da idade mdia, versava a respeito da legitimao e

    tambm dos limites do poder real ou de Estado, de acordo com as mudanas nas formas de se

    governar um povo. Portanto, a teoria do direito tinha enquanto objetivo fundamentar a

    soberania real ou de outros personagens de acordo com os sistemas que se configuraram em

    cada racionalidade. Porm, o discurso de soberania defende o porqu os indivduos de uma

    sociedade devem se sujeitar e paralelo a isso, como j mostramos, as instituies panpticas

    com suas prticas de exerccio de poder atuam no governo direto dos corpos promovendo a

    dominao dos indivduos.

    [...] temos, portanto, nas sociedades modernas, a partir do sculo XIX at

    hoje, por um lado uma legislao, um discurso e uma organizao o direito

  • 20

    pblico articulado em torno do princpio do corpo social e da delegao do

    poder e por outro, um sistema minucioso de coeres disciplinares que

    garantem efetivamente a coeso dentro deste mesmo corpo social.

    (FOUCAULT, 2010, pg. 189)

    Passamos ento agora, aps termos mostrado o surgimento dos muros e das paredes

    dos dispositivos e suas entranhas, aos corpos interligados no interior desses mecanismos de

    poder, e ver como que estes se apresentam imersos em um emaranhado de elementos

    constituintes das relaes de poder e o que que os interligam de vrias maneiras. Portanto,

    passamos agora a investigar como o poder exercido nesses espaos das mais variadas

    formas visando, alm de fixar os corpos em uma determinada localidade, produzir neles uma

    subjetividade dcil.

  • 21

    CAPTULO 2: A ESTRUTURA DOS DISPOSITIVOS: A

    ARQUITETURA E AS FORMAS DE EXERCCIO DO PODER.

    2.1 A arquitetura.

    Como vimos, a sociedade disciplinar iniciou-se a partir de prticas sociais voltadas

    para o controle de determinado grupo de pessoas em localidades especficas, portanto, tais

    prticas situam-se na gnese de um modelo de sociedade que expandido territorialmente o

    mximo possvel. Tais prticas, instrumentadas pelo vis da observao e confinamento,

    proporcionaro uma srie de registros e anotaes acerca daquilo que observado estando

    confinado num espao fechado ou no, possibilitando o surgimento de diversos saberes acerca

    do que observado, o que ocasionar o surgimento das cincias humanas estruturadas sobre

    um regime de verdades que classificam indivduos apontando diversas formas de agir sobre

    eles.

    Portanto, a partir desses saberes e regimes de verdade erguem-se paredes e se

    confinam pessoas, o que FOUCAULT (2002, pg. 115) vem a chamar de rede institucional

    de sequestro em que o objetivo , por meio do confinamento, fixar os indivduos ligando-os

    a um aparelho de transmisso do poder, proporcionando a estes um vnculo com determinadas

    prticas e discursos que visam formao de determinado tipo de subjetividade, cujo foco

    agir direto sobre o comportamento dessas pessoas. Ento, por volta dos fins do sculo XVIII,

    surge isso que Foucault (2002) chama de sociedade disciplinar, que tem como caracterstica

    o confinamento e a organizao dos indivduos num espao, onde estes so vigiados

    constantemente e submetidos a um constante exame de seu comportamento (MUCHAIL,

    2004, pg. 61) em que os desvios so corrigidos de acordo com o que este deve ser, segundo

    um padro de normalidade, ditado por um regime de verdades.

    Porm, para que esse processo seja concretizado, as pessoas, como vimos, so

    confinadas e organizadas em determinado espao que proporciona a eficcia do poder, espao

    construdo, primeiramente, enquanto discurso condizente com uma abstrao utpica de um

    projeto que se concretiza em uma arquitetura que proporciona o exerccio do poder. Portanto,

    o poder dispe de mltiplos elementos, da arquitetura, do discurso e das prticas que

  • 22

    contemplam os gestos e atitudes dos indivduos, ou seja, as prticas no discursivas. O projeto

    de que estamos falando refere-se ao panptico de Jeremy Bentham, elaborado nos fins do

    sculo XVIII como j foi mencionado no captulo anterior. A partir dessas formulaes,

    surgiro as instituies que conhecemos hoje, as fbricas, hospitais, escolas (...), prises,

    etc., cujas caractersticas de fundo ainda hoje permanecem (MUCHAIL, 2004, pg. 63).

    Com o surgimento das instituies panpticas e o alvorecer da sociedade disciplinar,

    Foucault (apud MUCHAIL 2004, pg. 64), nos mostra que, motivado por uma nova

    concepo de sociedade em que, de um lado h a vida privada dos indivduos e do outro o

    Estado agindo sobre seus corpos, em que o Panptico, enquanto concretizao de uma ideia

    mostra-se eficaz para tais fins, a estrutura arquitetural dos monumentos de uma sociedade

    modificada perpetuamente. Anteriormente modernidade, nas sociedades clssicas, o foco em

    termos de convivncia social voltava-se para uma vida comunitria em que as decises e os

    principais acontecimentos polticos ocorriam de forma pblica, portanto, nas sociedades

    clssicas, a arquitetura voltava-se a proporcionar determinado acontecimento, seja este

    relacionado arte, poltica ou religio, para que o maior nmero possvel de pessoas pudesse

    assistir. Portanto, com essa mudana decorrente do surgimento da sociedade disciplinar

    panptica, a arquitetura no mais direcionada a proporcionar o espetculo ao maior nmero

    de pessoas possvel, mas sim a que um nmero reduzido de pessoas observe a maior

    quantidade de pessoas possvel. No que a arquitetura de espetculo tenha sido extinta, mas

    foi restringida a pequenos espaos para apresentaes especficas que no afetem o

    funcionamento disciplinar da sociedade, portanto, podemos dizer que a arquitetura de uma

    sociedade muda simultaneamente de acordo com os interesses e decises daqueles que se

    posicionam hierrquica e estrategicamente no diagrama de poder. Com relao a isso,

    FOUCAULT (2002, pg. 105), ao tratar da arquitetura moderna em Verdade e formas

    jurdicas, cita uma obra chamada Lies sobre as prises do ano de 1830, de autoria de um

    professor universitrio de Berlim chamado Giulius, contemporneo a Hegel, em que aquele

    espelha a preocupao de alguns arquitetos da poca referente s prises, cujo objetivo era

    inverter o modelo de arquitetura clssico, que predominou durante a Grcia estendendo-se at

    os fins do perodo medieval j citado anteriormente, ento

    Isso significa que a arquitetura dever ento assegurar no mais que espetculos sejam dados ao maior nmero de pessoas, mas que indivduos

    sejam dados como que em espetculo a um olhar vigilante (MUCHAIL, 2004, pg. 64).

  • 23

    Essa era a grande questo para a arquitetura moderna, e Giulius, ao levantar essa

    questo, pensava no somente no modelo de priso, mas buscava algo que pudesse valer para

    demais instituies como os hospitais e as escolas. Ao tratar desse assunto, ele tinha em

    mente o panptico de Bentham como possibilidade de satisfazer a necessidade de inverso da

    arquitetura de espetculo. Essas questes e todo esse conjunto discursivo, acerca de

    arquitetura e discusses sobre formas eficazes de aprisionamento e formao de subjetividade,

    culminaro no encontro com o Panptico de Bentham, o que ir promover uma modificao

    massificada das construes dos espaos governamentelizados, promovendo um

    funcionamento, concomitante em cada instituio, regido pelo mesmo princpio de vigilncia

    individualizante, o que instaurar uma nova forma de poder. Ento, como vimos, a forma com

    que os dispositivos so construdos influencia diretamente na forma com que o poder

    exercido em seu interior, portanto, vejamos agora como que isso ocorre.

    2.2 O exerccio do poder.

    Ento, aps termos mostrado a planta sobre a qual as paredes dessas instituies que

    surgiram na modernidade foram erguidas, descreveremos o funcionamento destas em relao

    aos indivduos confinados nesses espaos. Primeiramente, para Foucault, essas instituies,

    pedaggicas, mdicas, penais ou industriais (2002, pg. 115) tm, alm de fixarem os

    indivduos em um espao como alvo do poder, a funo de estabelecer o controle total, ou

    quase total, do tempo de suas vidas. A palavra tempo empregada por Foucault num sentido

    amplo em relao vida dos indivduos, referindo-se tanto sua existncia temporal quanto

    s atividades cronometradas dentro das instituies de produo. Portanto, se olharmos

    superficialmente ao redor de ns mesmos, constataremos, de fato, uma relao ntima entre

    os indivduos e as instituies de sequestro. Do local de nascimento ao possvel leito de

    morte, sempre est presente o olho do poder e seus discursos determinando o que fazer ou o

    que deve ser feito conosco.

    Portanto, durao temporal do homem e instituies so um par ligado e entrelaado, a

    contagem do tempo demarcada pela possibilidade de estadia nesses espaos como, hospital,

    creche, escola, empresa ou indstria, asilo e hospital de novo. Todas as instituies que

    passamos nos formam e direcionam para um propsito de existncia maior, a existncia da

  • 24

    sociedade de produo qual fomos inseridos, sequestrados e adotados. Assim somos

    preparados e treinados para manter o funcionamento ou a existncia dessa sociedade e, por

    isso,

    [...] preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de

    produo; que o aparelho de produo possa utilizar o tempo de vida, o

    tempo de existncia do homem. para isso e desta forma que o controle se exerce (FOUCAULT, 2002, pg. 116).

    Para que esse tipo de sociedade venha a funcionar, primeiramente o sequestro ou a

    insero do indivduo nos meios de produo feita por meio da aquisio ou compra do

    tempo, compreendido como mercadoria, sendo posto, similarmente aos demais objetos

    comercializados, venda, oferecido aos que o querem comprar em troca de um preo baixo, o

    que FOUCAULT (2002, pg. 120) chama de poder econmico.

    O poder econmico, portanto, condiz com a compra de mo de obra por parte das

    instituies. Ele articula e envolve o indivduo na instituio, por meio de um acordo ou

    contrato em que este dispe seu tempo e fora aos comandos de outrem. H tambm, em

    todas as instituies de sequestro, atrelado ao poder econmico, um poder poltico. As

    instituies, por sua vez, so organizadas em hierarquias de comando, dessa forma, os

    dirigentes se delegam o direito de dar ordens, de estabelecer regulamentos, de tomar

    medidas, de expulsar indivduos, aceitar outros, etc. (idem, pg. 120). importante lembrar

    que esse poder poltico exercido setorialmente e cada setor submisso a outro com maior

    poder poltico de comando.

    Durante a vida do indivduo social, as formas de sequestro ocorrem de maneiras

    diferenciadas; num primeiro momento, referindo-se s escolas, o esforo ou interesse de

    insero por parte do Estado, pois h o interesse na formao ou adestramento dos

    indivduos que culminar no futuro operrio e este, ao ser formado, responsvel agora por

    prover a prpria existncia, pe-se na vitrine das relaes de comrcio em que seu currculo

    atesta suas qualidades e habilidades para a produo. Portanto, no primeiro momento, a

    vontade de permanecer no espao escolar quase nula, pois passa pelo mbito da

    obrigatoriedade e, no segundo momento, h um desejo pelo sequestro, um pedido, h a

    necessidade de se ter o tempo comprado, pois o valor pago por este essencial para manter a

    prpria sobrevivncia.

    Em segundo lugar, em relao ao controle do tempo, para que a sociedade possa

    funcionar preciso que este tempo do homem que se compra seja transformado em tempo de

  • 25

    trabalho. Ou seja, uma vez submetido a uma instituio, o corpo do indivduo ser utilizado

    ao mximo possvel, confluindo na transformao do tempo de estadia na instituio em

    tempo de produo. Portanto, para o melhor aproveitamento da fora de trabalho do

    indivduo, faz-se necessrio ter um controle total do tempo e dos gestos deste. Ento, uma vez

    capturados, no interior das instituies, qual o destino dos indivduos? Entendendo destino

    no como uma pr-determinao a histrica ou metafsica, mas sim como finalidade ou

    utilidade do indivduo em um mecanismo maior, semelhante a uma pea encaixada em uma

    grande mquina que funciona como um organismo, o destino destes indivduos, uma vez

    inseridos nesses mecanismos, ser dispor seus corpos para que estes sejam empregados em

    determinada funcionalidade. Os corpos dos indivduos, em conjunto e organizados, compem

    e executam os movimentos da mquina ou mecanismo ao qual so subordinados, assim,

    utiliza-se o tempo comprado. Mas, sendo que quem compra deseja usufruir ao mximo de seu

    produto, os corpos dos indivduos sero submetidos a uma srie de tcnicas de exerccio do

    poder, cuja finalidade a extrao mxima de sua fora de trabalho. Portanto, o exerccio do

    poder no interior do espao demarcado e fechado das instituies se ramifica e desdobra,

    aparecendo em relaes interpessoais de maneiras distintas e funcionalidades diversas, de

    acordo com as necessidades de funcionamento das instituies. Ora o poder exercido de

    determinada forma ora de outra, sendo que tais diversidades podem ocorrer simultaneamente,

    pois o poder no se encontra fixo em uma localidade ou sai de uma abandonando outra. O

    poder muda no em sentido de deslocamento, mas sim na forma em que exercido. A esta

    mutabilidade do poder Foucault chama de polimorfismo ou polivalncia (FOUCAULT,

    2002, pg. 120). Portanto, a forma de poder que se exerce mltipla e mutvel e no

    essencialmente localizvel em um polo centralizado e personificado, mas principalmente

    difuso, espalhado, minucioso, capilar (MUCHAIL, 2004, pg. 69).

    Falar do poder que exercido nessas instituies significa falar das diversas formas

    em que este ocorre na relao entre os indivduos. O poder diferenciado em suas formas e

    embora estas se distingam, so exercidas articuladamente umas s outras, podendo ser

    simultneas. Ento, baseando-se em Verdades e Formas Jurdicas de Foucault, podemos

    dizer que este poder polimorfo e polivalente abarca todo um conjunto de formas em que

    este exercido e tal conjunto de tcnicas, de acordo com a obra Vigiar e Punir, chamado

    de poder disciplinar (FOUCAULT, 2007, pg. 119).

  • 26

    2.3 O poder disciplinar

    O poder disciplinar tornou-se questo para Foucault no momento em que este, ao

    desenvolver uma analtica da histria das penalidades jurdicas, percebeu que, com o

    surgimento das prises, aparecem atrelado a elas mecanismos que permitem um controle

    quase total dos prisioneiros (MACHADO, 1988), e, posteriormente, ele percebeu que tais

    mecanismos de controle tambm esto presentes em outros espaos institucionais, como por

    exemplo, a escola, os quartis, as fbricas, os hospitais, etc. Em sua anlise, ele descreve o

    poder disciplinar como um composto de tcnicas que se originaram em locais diversos,

    portanto, a disciplina no se trata de uma descoberta sbita (FOUCAULT, 2007, p. 119),

    mas de um composto de tecnologias mnimas de poder que, com o decorrer de acontecimentos

    histricos, foram se perpetuando, aperfeioando e sendo reunidas em espaos comuns.

    Portanto, a disciplina um conjunto de tcnicas que, alm de manter um controle

    sobre determinado grupo de pessoas, tambm consiste em esculpir o corpo e a alma de cada

    indivduo, a tcnica que proporciona fabricar corpos submissos e exercitados, corpos

    dceis (idem, pg. 119). Trata-se de uma grande descoberta para a modernidade, pois, com a

    crescente populao e tambm a necessidade de fora de trabalho para as fbricas,

    proporciona um processo de adequao populao trabalho, portanto, por meio da

    disciplina, se abarca toda a massa desordenada, a governamentaliza e lhe d direcionamento.

    Nas escolas capturam-se as crianas, nos hospitais os doentes, nas fbricas os adultos e nos

    quartis os militares. O Estado moderno funciona disciplinarmente, composto por vrios

    mecanismos disciplinares interligados, resultando em uma tecnologia eficaz que proporciona

    intensificar os meios de produo de forma pouco custosa.

    O poder disciplinar, dessa forma, funciona como uma rede que os atravessa

    (aparelhos, instituies, corpos4) sem se limitar a suas fronteiras (MACHADO, 1988, p.

    194), trata-se de (...) mtodos que permitem o controle minucioso das operaes do corpo,

    que asseguram a sujeio constante de suas foras e lhes impem uma relao de docilidade

    utilidade (...) (FOUCAULT, p 131 apud MACHADO, 1988, p 194). Portanto, trata-se de

    uma utilizao racional e poltica do corpo, a disciplina, que com seus mecanismos, ao

    esculpir o homem moderno, funciona como uma tcnica artstica de talhar pedras e delas

    4 Especificao minha.

  • 27

    extrair corpos antes representados segundo a vontade do artista, calculado no detalhe,

    assim tambm atua a tcnica disciplinar, no mais minucioso detalhe do corpo humano,

    govenamentalizando os pequenos gestos, pequenas posturas, tudo transpassado e

    modificado pelo fluxo do poder.

    Foucault, ao observar o poder disciplinar em diferentes espaos, traa algumas

    caractersticas que proporcionam uma atuao de controle sobre o corpo do indivduo no

    mais nfimo detalhe, so eles: a organizao e disposio dos corpos no espao, controle

    das atividades e do tempo, a vigilncia hierrquica entre os indivduos, a sano

    normalizadora e o exame.

    2.3.1 A organizao e disposio dos corpos no espao.

    A arte de organizar e dispor os corpos num espao necessita, primeiramente, que

    tal espao seja moldado com elementos prprios de acordo com o tipo de exerccio de

    poder que se planeja. Tal espao possuir um diagrama prprio que, ao ser atualizado,

    promover o movimento de suas engrenagens, portanto, este espao delimitado deve se

    diferenciar de todos os espaos externos, ento, visando demarcar os muros dos

    dispositivos de poder, estes espaos contam em sua estrutura arquitetnica com o que

    Foucault chama de cerca (2007, p. 122). Uma vez, delimitado o espao e posto em seu

    interior uma massa desordenada e difusa de pessoas, estas sero organizadas e tal

    organizao compete em individualizar cada componente dessa multido desordenada,

    tornando-o visvel e identificado, pois, para se acertar um alvo deve-se visualiz-lo bem

    antes de disparar sobre ele, processo que Foucault chama de quadriculamento (2007, p.

    123). O quadriculamento permite uma localizao imediata de um indivduo, pois lhe

    estabelece um lugar, o dispe no espao demarcado e o associa a um metro quadrado

    que lhe nico, dessa forma possvel perceber seus comportamentos e hbitos que no

    so conformes ao funcionamento do dispositivo.

    Porm, cada indivduo ser disposto num lugar previamente determinado segundo

    uma classificao, o que determinar a sua posio na fila (FOUCAULT, 2007, p. 125).

    Portanto, nos dispositivos, alm de se dispor cada corpo num espao, esses micro - espaos

  • 28

    particularizados colocar-se-o um seguido do outro, em fila. Tomando como exemplo a

    escola, Foucault a descreve da seguinte maneira:

    [...] filas de alunos na sala, nos corredores, nos ptios; colocao distribuda a cada

    um em relao a cada tarefa e cada prova; colocao que ele obtm de semana em

    semana, de ms em ms, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas

    depois das outras; sucesso dos assuntos ensinados, das questes tratadas segundo

    uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatrios,

    cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seus comportamentos, ocupa ora

    uma fila, ora outras; ele se desloca o tempo todo numa srie de casas; umas ideais,

    que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir

    materialmente no espao da classe ou do colgio essa repartio de valores ou de

    mritos. Movimento perptuo onde os indivduos substituem uns aos outros, num

    espao escondido por intervalos alinhados (FOUCAULT, 2007, p.126).

    Podemos ver ento que a tcnica de dispor em fila cria sequncias em que as

    diversas posies so sucedidas de outros elementos pertencentes a sua mesma espcie.

    No caso dos dispositivos escolares, os alunos sero dispostos segundo um conjunto de

    caractersticas valorizadas como, por exemplo, o rendimento medido de cada aluno, pelas

    notas alcanadas e pelo comportamento. Porm, como nos mostra o trecho acima, a arte

    de sequenciar os elementos escolares tambm influi sobre o planejamento do currculo,

    pois o contedo destinado aos alunos ordenado segundo graus de complexidade; a

    disposio das turmas tambm ocorre da mesma maneira, primeiro se divide em sries

    segundo o progresso de aprendizado, depois cada srie organizada em turmas e, em cada

    turma, alunos cuja faixa etria seja o mais prximo do comum a todos. Portanto, os

    elementos escolares esto no espao, cercado e esquadrinhado, dispostos em fila,

    sequencialmente.

    Esta organizao do espao proporciona uma economia de tempo em relao ao

    mecanismo de ensino tradicional, pois, anteriormente, no perodo medieval, o professor

    trabalhava um aluno por vez enquanto que os demais permaneciam ociosos. A disposio

    dos alunos em fila proporcionou ao professor trabalhar e exercer simultaneamente

    controle sobre todos os alunos, assim, portanto, o espao escolar passa a funcionar como

    uma mquina de ensinar (FOUCAULT, 2007, p.126). Dessa forma, essa quadratura

    constitui o que Foucault chama de quadros vivos (idem, pg. 126), que nada mais que

    a organizao das massas difusas caracterizando o indivduo em sua particularidade,

    sendo esta condio primeira para que haja uma microfsica do poder chamado poder

    celular (FOUCAULT, 2007, p. 127).

  • 29

    2.3.2 Controle do tempo e das atividades

    O controle das atividades ocorre por meio da relao do corpo, primeiro e

    necessariamente, com delimitaes de tempo, acrescentando determinaes de gestos precisos

    e depois relacionando com objetos. Primeiramente, tratando-se da relao mais bsica e

    necessria, tempo corpo, esta sempre demarcada por um horrio ou por vrios

    horrios, segundo a fragmentao deste (FOUCAULT, 2007, p. 127). Tal mecanismo uma

    velha herana (idem, pg. 127) das comunidades monsticas que, durante a modernidade, se

    espalhou rapidamente por outros espaos, consistindo na fixao de um horrio inicial e final

    para que as atividades do dia ocorressem nessa delimitao temporal. Porm, no sculo XVII,

    houve uma fragmentao deste horrio, quando diversas instituies passaram a estipular

    pequenos movimentos que deveriam ser realizados, sincronicamente, por todos.

    A atividade, fixada por um horrio e sucesso de pequenos horrios, tambm

    demarcada por um ritmo, pois todos os corpos devem exercitar, ao mesmo tempo, os mesmos

    movimentos; trata-se de um ritmo coletivo posto, principalmente, nos exrcitos com relao

    postura de seus corpos e a execuo de gestos, como por exemplo, a marcha de um batalho,

    h a preocupao para que todos, em sincronia, posicionem seus braos da mesma maneira e

    ergam a mesma perna ao mesmo tempo e executem um passo com o mesmo comprimento

    (Foucault, 2007, pg. 129).

    Produz se, dessa forma, um esquema de comportamento, pautado numa relao que

    integra corpo ritmo tempo, porm aqui o corpo esquadrinhado, pois prescrito a

    atividade ou gesto e sua durao a cada parte do corpo, govenamentalizando cada membro,

    assim, o indivduo por inteiro afetado pelo poder que, ao passar pelo corpo, o decompe e

    estabelece sobre ele um governo.

    Porm, o controle minucioso dos gestos exercitados por cada membro, coordena sua

    disposio para com os objetos manuseados, estendendo seu efeito, o que acarretar um

    aumento da eficcia e, consequentemente, de produo, dependendo de onde for empregado.

    O controle das atividades por meio desses mecanismos visa sempre instrumentalizao do

    corpo em que este, ao aperfeioar determinado gesto, aumenta seu rendimento. Assim o nvel

    de exigncia estendido, pois o tempo de produo e se determinada atividade executada

    num perodo estipulado passa a ser feita com menos tempo, cria-se um vcuo, uma sobra,

  • 30

    entendido como desperdcio, portanto, tal lacuna deve ser preenchida, o que acarretar numa

    busca por maior extrao de fora do corpo levando-o, s vezes, exausto. Tratando-se de

    instituies de cunho formativo como o exrcito e a escola, o tempo de permanncia na

    instituio deve ser segmentado por nveis, competindo a cada nvel certo domnio de

    determinadas habilidades em que a complexidade aumenta gradualmente. Ao final de cada

    segmento, o indivduo submetido a uma avaliao que o classificar, segundo seu

    aproveitamento, para o ingresso ou no na prxima etapa, portanto, cada etapa consta de uma

    bateria de atividades de acordo com cada nvel determinado (FOUCALT, 2007).

    2.3.3 Vigilncia hierrquica.

    Mas, para assegurar quais aes os indivduos devem executar, nas escolas, exrcitos e

    outras instituies, o mecanismo de poder disciplinar conta com uma mquina especfica

    pautada no olhar, um olhar que pretende vigiar cada membro a todo o instante, enfatizando

    que o operrio, o aluno ou o soldado, saibam que esto sendo vigiados. Segundo Foucault

    (2007), a vigilncia legada a um agente do dispositivo, cabendo a este a tarefa de vigiar. Tal

    vigilncia hierrquica, enquanto instituda por uma autoridade, porm no ocorre apenas em

    de cima para baixo, mas tambm lateralmente e de baixo para cima. Portanto, esse inspetor da

    vigilncia, caso no cumpra corretamente alguma de suas atividades, est a merc do olhar

    dos seus subalternos, que podem comunicar suas falhas a uma instncia superior, portanto,

    cada olhar possibilidade de transmisso de informaes.

    Mas, passando dessa instncia, a grande cartada desse mecanismo consiste numa

    vigilncia pautada num olhar mais abrangente e eficaz, consistindo num mecanismo

    arquitetural pautado na disposio de espaos de maneira que possibilite um nico olhar

    perpassar todos os corpos: trata-se do Panptico de Bentham. Esse mecanismo de poder

    ocorre em uma associao entre olhar quadratura, que possibilita exercer um poder celular

    em que cada indivduo observado no mnimo detalhe.

    Podemos dizer ento que o olhar pode ocorrer enquanto pessoal, numa relao corpo

    corpo, em que o vigilante mostra, algumas vezes, sua face ocupando um cargo de

    supervisor que, ao decompormos este adjetivo, fica claro perceber sua funo: super

    visor, ou seja, uma viso no comum, potencializada, super viso, que v em abrangncia e

  • 31

    em detalhe os mecanismos de produo. Por outro lado, temos uma relao mais sutil,

    annima e discreta pautada no diagrama panptico, que constitui um aparelho de poder que

    consiste na disposio da arquitetura do espao, trata-se das disposies celulares dos corpos

    e tambm de grupos de corpos que so novamente divididos.

    2.3.4 Sano normalizadora.

    Todo sistema disciplinar possui um mecanismo penal, pois se h um mecanismo de

    vigilncia que detecta os que no esto conformes com a instituio, h outro que pune tais

    indivduos. Portanto, passvel de ser penalizado todo tipo de inobservncia do cdigo

    interno de conduta, ou seja, tudo o que no est conforme passvel de punio.

    A ordem presente nas instituies, alm de se referir ao comportamento, tambm est

    relacionadas com metas de produo estabelecidas segundo uma mdia padronizada do tempo

    de execuo ou aprendizagem, uma meta classificada como essencial, o que deve ser

    alcanada por todos. Portanto, os que no se comportam segundo o esperado e tambm no

    alcanam o ndice de aproveitamento so classificados como desviantes do padro,

    localizados por meio do olhar e de sua disposio no espao e, segundo o cdigo de

    penalidades, punidos. Porm, uma vez que o poder tem como objetivo aprimorar o corpo e

    extrair dele o mximo de fora, os castigos disciplinares no visam degradar o corpo, mas sim

    intensificar seu exerccio, objetivando integr-lo na norma, portanto, os castigos disciplinares

    so pautados no exerccio. Aquele que no atinge o esperado deve, por meio de exerccios

    relacionados sua fragilidade ou m conduta, ser aprimorado para que tal deficincia seja

    superada.

    Portanto, os desvios so percebidos e sobre eles aplicada uma pena. Os indivduos,

    dessa forma, passam a ser classificados segundo suas caractersticas desviantes, criando-se

    hierarquias por meio de um sistema de pontuao (FOUCAULT, 2007). Ento, esta diviso

    classificatria, alm de marcar os desvios e hierarquizar os indivduos, tambm cria um

    mecanismo de recompensa e punio, em que a prpria mobilidade hierrquica (tomando

    como exemplo o exrcito) serve como mecanismo de recompensa e punio, assim, aos mais

    bem classificados h a possibilidade de ascender a patentes mais altas e aqueles que mais se

    desviam perdem patentes. Na escola, os mais submissos so estipulados como normais e

  • 32

    progridem na escala classificatria, movendo-se para uma srie superior, e os mais desviantes

    so punidos com a reprovao, que consistir em repetir toda uma bateria de exerccios

    visando seu enquadramento. Podemos dizer ento que, nessas instituies, atua um poder

    jurdico que concede a possibilidade dos indivduos comparecerem a instncias de

    julgamento, que podem punir ou recompensar os indivduos. H nessas instituies um

    micro tribunal permanente (FOUCAULT, 2002, pg. 120) em que os indivduos so

    julgados mediante a autoridade conferida a determinados membros dessas instituies. O

    sistema escolar, como exemplo, segundo Foucault, baseia-se inteiramente em uma espcie de

    poder judicirio em que a todo o momento se pune ou se recompensa, se avalia, se classifica,

    se diz quem o melhor, quem o pior (idem, pg. 120).

    2.3.5 O exame

    O exame uma tcnica combinatria entre a vigilncia hierrquica e a sano

    normalizadora, reunindo um controle normalizante, uma vigilncia que permite qualificar,

    classificar e punir. Estabelece sobre os indivduos uma visibilidade atravs da qual eles so

    diferenciados e sancionados (FOUCAULT, 2007, p. 154). O exame consiste, primeiramente,

    em tornar cada indivduo objeto de anlise, sendo este objeto de um estudo, de uma anlise

    que tem por princpio o olhar da vigilncia. Por outro lado, todas as observaes e anlises

    feitas em cada indivduo originaro um documento (idem, p. 157) em que so relatadas

    informaes detalhadas sobre cada indivduo. Portanto, a escrita torna-se um mecanismo de

    poder, pois, por meio dela, o saber adquirido atravs do olhar documentado e arquivado.

    As anlises desses registros possibilitam estabelecer o que homogneo em relao

    aos indivduos, produzindo uma formalizao do que significa determinada classificao de

    indivduo; por exemplo, a produo da loucura enquanto doena surgiu mediante essas

    anlises, o que produziu uma representao conceitual do louco. Portanto, o exame permite

    categorizar as pessoas mediante os saberes produzidos, traar metas e comportamentos

    segundo uma definio de normalidade e, ao possibilitar a anlise de cada caso, localizar as

    diferenas existentes e traar as medidas necessrias a serem tomadas para cada caso.

    Podemos dizer ento que o exame refere-se a uma forma de poder relacionada ao saber sobre

    os indivduos encarcerados, que chamada por Foucault de poder epistemolgico

  • 33

    (FOUCAULT, 2002, pg. 121). O poder epistemolgico possui uma peculiaridade que o

    diferencia das demais formas de poder estabelecendo com estas uma relao de possibilidade,

    pois, como nos diz Foucault (idem, pg. 121) acerca do poder epistemolgico, este um

    poder que, de certa forma, atravessa e anima estes outros poderes, ou seja, os tornam

    possveis devido s construes discursivas que interferem no ambiente das prticas no

    discursivas. Na frase citada, os tradutores5 de A Verdade a as Formas Jurdicas

    (FOUCAULT, 2002), utilizam duas palavras do portugus para expressar uma relao do

    poder epistemolgico com os demais poderes dita por Foucault, o poder epistemolgico

    atravessa e anima os demais poderes. Portanto, uma vez que tal relao transcrita por

    verbos de ao significa que o poder epistemolgico age e interfere nos demais e, uma vez

    que h tal encontro, este tambm sofre uma fora contrria. Por atravessar, dentre as

    possibilidades de significados, podemos destacar duas que mais se adquam a expresso:

    atravessar pode significar passar atravs de ou cruzar, passar alm de 6, portanto o

    poder epistemolgico passa atravs dos demais poderes, ou seja, como um fluxo que

    colide com as formas em que o poder exercido, segue junto, cruza, passa alm deles, ou

    seja, prossegue aps atravessar determinado ponto colidindo com outra forma de exerccio de

    poder, formando assim uma rede que conecta todas as formas de exerccio de poder em um

    determinado espao. Alm de atravessar conectando todas as tcnicas de poder, o poder

    epistemolgico tambm anima os demais poderes. O verbo animar deriva de nimo, que

    vem do latim animus, alma, coragem, desejo, mente, relacionado a anima, ser vivo,

    esprito, coragem, disposio, derivado do indo europeu ane, assoprar, respirar (...) 7.

    Portanto, com base na origem e nas definies do verbo animar, podemos dizer que o poder

    epistemolgico anima os demais poderes num sentido de tornar possvel a ocorrncia

    vital dos demais poderes. Portanto, ao atravessar, passar por e ir alm num sentido de estar

    presente e interiorizado, o poder epistemolgico torna possvel os demais poderes, ele os

    anima.

    Ento, o que se quer dizer com esse discurso a respeito da origem de algumas

    palavras? Todo esse discurso serve para mostrar que, atrelado a esses exerccios diversos de

    poder, h uma especificidade deste que se d enquanto discurso de saber e que este poder

    discursivo faz com que determinadas prticas sejam mantidas e exercidas em conjunto em

    determinado ambiente.

    5 Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais.

    6 www.dicio.com.br/atravessar/

    7 http://origemdapalavra.com.br/palavras/animo/

  • 34

    O poder epistemolgico, por se tratar da ordem discursiva, no consiste em uma

    abstrao final, mas tal saber sempre reformulado de acordo com o que as relaes de poder

    de determinada localidade produzem; assim o poder epistemolgico consiste tambm em

    extrair dos indivduos um saber e extrair um saber sobre estes indivduos submetidos ao

    olhar e j controlados por estes poderes (FOUCAULT, 2002, pg. 121). Portanto, por meio

    da observao constante dos indivduos ento submetidos aos mecanismos de poder e a partir

    de suas reaes a estes, numa relao conflitante entre personalidade particular e

    normatizao do comportamento, tanto em atividade produtiva quanto em relao

    interpessoal, produzido um saber de acordo com a objetividade pretendida, reformulando o

    exerccio do poder e o reexercendo sobre os indivduos. Para Foucault (2002) isso pode

    ocorrer de duas maneiras, uma delas referente produtividade no trabalho, que ocorre como

    ele exemplifica descrevendo a relao do indivduo que exerce uma funo produtiva em uma

    fbrica:

    [...] o trabalho operrio e o saber do operrio sobre seu trabalho, os

    melhoramentos tcnicos, as pequenas invenes e descobertas, as micro -

    adaptaes que ele puder fazer no decorrer do trabalho so imediatamente

    anotadas e registradas, extradas portanto de sua prtica, acumulada pelo

    saber que se exerce sobre ele por intermdio da vigilncia (FOUCAULT,

    2002, pg. 121).

    A citao nos mostra que um operrio, submetido a uma vigilncia constante e

    inserido num mecanismo disciplinar de exerccio de poder, exerce movimentos j

    determinados anteriormente a ele por um saber de produo, porm, a formao discursiva na

    qual inserido mutvel sendo passvel de alteraes que viabilizam o aumento da produo.

    Portanto, ao enquadrada em uma funo objetiva normalizante, a subjetividade desse

    indivduo, ao ser associada com a objetividade do plano de ao, capaz de reformular

    algumas prticas, de forma a aumentar a produtividade, o que, mediante o sistema de

    vigilncia e de exame constantes, se tornar um registro, reformulando o saber que opera no

    sistema de produo.

    A outra forma que o poder epistemolgico ocorre devido produo de outro tipo de

    saber, portanto, a diferena est em relao ao produto e utilidade do saber produzido

    mediante a observao de indivduos. Ento, se na descrio anterior o saber produzido visava

    ao aprimoramento das tcnicas de produo, agora a observao dos indivduos acarretar o

    surgimento de saberes acerca do homem enquanto indivduo social, dotado de uma psique,

    inserido em relaes econmicas e de linguagem, proporcionando o surgimento das cincias

    humanas ou do saber sobre o homem, como a Psiquiatria, Psicologia, Sociologia,

  • 35

    Criminologia, Lingustica, Economia, etc. Porm, os saberes sobre o homem no so passivos

    e neutros politicamente como as demais cincias aparentam, h uma aplicabilidade na esfera

    social, portanto, tanto nesse exemplo de poder epistemolgico quanto no anterior, h uma

    objetividade de interferncia na vida social das pessoas, h uma interferncia nos mecanismos

    de poder, tanto nas instituies quanto nos indivduos fixados nestes que, ao mesmo tempo,

    so objetos de estudo para a formulao de novos saberes que tambm permitir novas formas

    de controle. Em relao a isso, ou seja, em relao mudana na forma com que determinado

    objeto do discurso ou indivduo tratado segundo prescries discursivas, Foucault (2002)

    cita, como exemplo, o saber psiquitrico, que se formou por meio de um campo de

    observao exercido exclusivamente pelos mdicos, enquanto detinham o poder sobre

    territrios demarcados que abrigavam determinados grupos de pessoas, como o asilo e o

    hospital psiquitrico. Tal saber sofreu sua primeira ruptura com Freud que, mediante um

    processo de observao e anlise do comportamento humano, pde reformular o saber

    referente a tal grupo de pessoas. Outro exemplo que pode ser citado o da formao do saber

    pedaggico que ocorreu por meio da observao da adaptao das crianas s tarefas

    escolares, tornado-se em seguida leis de funcionamento das instituies e forma de poder

    exercido sobre a criana (FOUCAULT, 2002, pg. 122).

  • 36

    CAPTULO 3: O PODER EPISTEMOLGICO E AS

    FORMAES DISCURSIVAS.

    Em relao ao poder epistemolgico, sendo este vinculado produo do saber

    circundante no meio social pela via institucional, devemos ento partir para a compreenso

    estrutural do saber. O saber, que instrumento de anlise tomado por Foucault em sua

    arqueologia, por sua vez, consiste em elementos discursivos. Porm, de acordo com

    MACHADO (1988), a anlise discursiva qual Foucault efetua no prioriza nem adota certa

    modalidade de discurso referente a determinado objeto, A anlise feita sem respeitar a

    distino entre tipos de discursos, sem obedecer as tradicionais distribuies dos discursos em

    cincia, poesia, romance, filosofia, etc. (MACHADO, 1988, pgg. 161).

    Portanto, de acordo com o mtodo arqueolgico, determinado saber construdo pela

    intercesso de todas as modalidades discursivas dispersas em determinada poca, h ento,

    um ponto de intercesso, o encontro desses discursos configurando determinada unidade de

    saber, porm, trata-se de uma unidade aberta em que os elementos so descolados entre si,

    organizando-se segundo regras de formao que podem excluir ou adotar determinados

    elementos. Ento, o que Foucault nos tem a dizer sobre essa unidade aberta e descolada

    estabelecida pela interseo de vrios discursos segundo regras especficas? Foucault apud

    MACHADO (1988, pg. 161), nos apresenta uma concluso seccionada em quatro momentos:

    1 o que fez a unidade de um discurso no o objeto a que ele se refere (idem, pg. 161),

    pois o objeto que construdo pelo que dito a seu respeito; 2 a forma com que um

    discurso organizado no presidida por sua forma de encadeamento, uma forma de

    enunciado que seja constante ou um estilo, mas por um grupo de enunciaes heterogneas

    coexistentes em uma mesma disciplina; 3 a unidade de um discurso tambm no se

    estabelece num sistema de conceitos fechados em que todos so compatveis entre si e que

    todas as formulaes posteriores seriam derivaes destes, pois, nas formaes discursivas,

    surgem conceitos distintos e incompatveis com os j existentes em determinado discurso; 4

    um discurso no se individualiza por meio de um tema que abarca determinados elementos,

    um mesmo tema pode ser encontrado em dois tipos diferentes de discursos, como por

    exemplo, no caso do tema evolucionismo citado por Machado (1988), este presente no

    discurso histria natural no sculo XVIII e biologia no sculo XIX. Do mesmo modo que

  • 37

    um tema pode estar presente em dois tipos de discursos, um nico discurso pode produzir dois

    temas diferentes.

    Passado por essas etapas, Foucault afirma que no h princpios de unidade nos

    discursos e que estes so concebidos como pura disperso, portanto, a dita unidade de um

    discurso na realidade uma disperso de elementos. Ento, como possvel a constituio de

    um discurso se este composto por diversos elementos dispersos que no constituem unidade

    discursiva fechada?

    Para Foucault (apud MACHADO, 1988), o discurso, sendo este produto de uma

    disperso, estruturado mediante um sistema configurado por diversos elementos. Portanto,

    a constituio de um discurso se d por meio da regularizao de seus elementos, chamado de

    regras de formao. Portanto, os elementos de uma unidade discursiva (objetos, enunciados,

    conceitos e temas, como veremos no decorrer do texto) so organizados mediante regras que

    os articulam, que, ordenado os elementos, configura o que Foucault chama de formao

    discursiva (MACHADO, 1988, pg. 163). Ento, o discurso, sendo este composto por

    elementos e por regras, sendo os ltimos atuantes sobre os primeiros, dispe de determinados

    tipos de regras que so atuantes em cada tipo de elemento componente do discurso. As regras

    so adotadas de acordo com as estratgias, porm, os discursos no se individualizam

    somente por uma estratgia, mas pela articulao destas. Portanto, aprofundando-se na

    estrutura do discurso, vejamos quais so seus elementos formadores e como eles so

    formados. So eles: objetos, enunciados, conceitos e temas.

    3.1 Formao dos objetos do discurso.

    Para Foucault (2008), os objetos presentes num discurso so produzidos a partir dos

    diversos enunciados a respeito deste, uma vez que, como j foi dito, o discurso se

    individualiza por meio de uma disperso de seus elementos agrupados mediante regras, assim

    tambm ocorre com a produo de objetos do discurso. Como exemplo disso Paul

    RABINOW e Humbert DREYFUS (1995) falam a respeito do trabalho feito por Foucault em

    Histria da Loucura sobre como o objeto doena mental, presente em algumas formaes

    discursivas como a Psiquiatria e a Psicologia foi constitudo:

  • 38

    A doena mental foi construda pelo conjunto daquilo que foi dito no grupo

    de todos os enunciados que a nomeavam, recontavam, descreviam,

    explicavam, contavam seus desenvolvimentos, indicavam suas diversas

    relaes, julgavam-na e eventualmente emprestavam-lhe a palavra,

    articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus

    (FOUCAULT apud RABINOW DREYFUS, 1995, pg. 69).

    Como podemos ver no trecho acima e tambm de acordo com MACHADO (1988), o

    processo de construo da doena mental, particularmente a loucura, pautado na percepo

    decorrente sobre o louco, sendo este a figura em que a loucura manifesta. Ento, observando

    o trecho acima, podemos ver que, presente em alguns versos, a constituio de um objeto do

    discurso forma-se por meio do que dito a partir do que observado sobre determinado

    elemento. Porm, o que dito sobre a loucura varia de acordo com os diferentes espaos em

    que o louco percebido, podemos dizer ento, em relao produo de enunciados, que h

    uma disperso destes referentes ao louco e loucura de acordo com os espaos em que estes

    aparecem. Portanto, os enunciados a respeito de tal objeto possuem um vnculo com a

    instituio (o espao) e, segundo MACHADO (1988), teremos discursos provenientes da

    famlia, da igreja, da justia, da medicina, etc. Portanto, h uma srie de enunciados a respeito

    da loucura, mas, resta-nos ento mostrar como se d a unificao destes que, provenientes da

    percepo sobre louco, dizem algo a respeito da loucura.

    Primeiramente, para mostrar como que um