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  • ConsequnCias de uma Fantasia: ao e reaes obra de Rodrigo Braga

  • ConsequnCias de uma Fantasia:

    universidade Federal do Rio Grande do sulinstituto de artesdepartamento de artes Visuais

    Projeto de Graduao em Histria, teoria e Crtica

    FeRnanda BaRRoso BRuno de CaRVaLHo

    Porto alegre,Julho de 2009

    ao e reaes obra de Rodrigo Braga

  • ConsequnCias de uma Fantasia:

    Monografia apresentada como requisito para obteno do grau de Bacharel em artes Visuais, nfase em Histria, teoria e Crtica. departamento de artes Visuais do instituto de arte da universidade Federal do Rio Grande do sul

    orientadora: Prof. dra. ana maria albani de CarvalhoBanca: Prof. dr. alexandre Ricardo dos santos

    Prof. dra. mnica Zielinsky

    FeRnanda BaRRoso BRuno de CaRVaLHo

    Julho de 2009

    ao e reaes obra de Rodrigo Braga

  • 6Gostaria de agradecer, primeiramente, ao meu anjo da guarda

    que me guiou at um pequeno e simptico restaurante do Bonfim,

    em pleno ms de janeiro, reservou justamente uma mesinha ao lado

    de Ana Carvalho e, ento, tive a oportunidade de lembr-la que j

    era minha orientadora desde de outubro do ano anterior! Sendo

    assim, agradeo profundamente a professora Ana Carvalho, por

    ter se lembrado e aceitado meu convite para ser minha orientadora.

    Obrigada pela disponibilidade, ateno e dedicao em me colocar

    de volta ao eixo dessa pesquisa por diversas vezes durante esses

    meses de trabalho.

    Agradeo tambm aos professores Mnica Zielinsky e Alexandre

    Santos, pelas valiosas contribuies feitas na pr-banca, que foram

    essenciais para delinear melhor a presente monografia.

    Agradeo especialmente Rodrigo Braga, que respondeu

    prontamente ao meu pedido e, mesmo sem nunca ter visto meu rosto,

    confiou em mim e no meu trabalho. Obrigada por todo material

    enviado e pela ateno que sempre teve comigo.

    Agradeo Fundao Vera Chaves Barcellos (Sol Casal), Vivi

    Gil e Llian Gomes, por terem cedido e autorizado o uso de algumas

    imagens que ilustram esse texto.

    Agradeo tambm aos meus cultos amigos, sem os quais essa

    pesquisa no teria a mesma riqueza bibliogrfica: Paula Langie Arajo,

    Camila Schenkel, Lu Campana, Adriana Daccache e Sol Casal.

    Agradeo muito ao apoio logstico e, principalmente, amizade

    de Raquel Alberti, Ana Adams e Ronise dos Santos.

    Agradeo minha famlia, que sempre me acompanha, mesmo

    de to longe.

    Agradeo a todos que me ajudaram de alguma maneira, seja

    ouvindo milhares de vezes sobre esta pesquisa, seja me tirando

    de casa para tomar um solzinho ou um caf.

    agradecimentos

  • 7Palavras-chave

    Arte contempornea, limites, relao esttica, julgamentos, legitimao.

    objetivo

    Compreender os fatores que podem influenciar na maneira

    como uma obra de arte, considerada repulsiva, recebida por um

    determinado segmento de pblico que manifesta suas opinies e

    julgamentos atravs de mdia eletrnica (correio eletrnico, frum de

    discusso e postagens em blogs e sites da internet), atravs do estudo de

    casa da obra Fantasia de Compensao, do brasileiro Rodrigo Braga.

  • 9sumrio

    Introduo 11

    Estudo de caso

    Fantasia de Compensao: repulsa e revolta na obra de Rodrigo Braga 17

    Concluso 41

    Lista e crditos das imagens 44

    Bibliografia 45

    Anexos:

    I. Imagens da srie completa Fantasia de Compensao (2004). 48II. Imagens da srie completa Da Alegoria do Perecvel (2005). 54III. Depoimento do artista. 57IV. Nota de esclarecimento sobre a obra Fantasia de Compensao. 61V. Entrevista com o artista. 63VI. Texto crtico do professor e historiador Paulo Trevisan. 67VII. Reportagem publicada em revista on-line. 69VIII. Postagem sobre o assunto em blogs internet. 71IX. Alguns dos comentrios coletados do blog Curiosidades na Net. 73X. Alguns dos e-mails enviados ao artista entre abril e dezembro de 2008. 77XI. Dados sobre a participao do artista na exposio Colagens Contemporneas cruzamentos

    (im)puros?, realizada na Pinacoteca Baro de Santo ngelo/IA-UFRGS, em 2008. 81

  • 11

    introduo

    A questo desta pesquisa a recepo da arte por um determinado tipo de pblico, que manifesta

    seus julgamentos e opinies atravs de mdia eletrnica, quando a obra apresentada desperta

    sentimentos de insatisfao, repulsa e/ou revolta. Considero a experincia do pblico com a arte

    porque, no contexto deste estudo, envolve no s a relao do espectador com o trabalho em si, como

    tambm com o artista e com a instituio responsvel pela apresentao e exposio de tais obras.

    Quais os fatores envolvidos nessa relao pblico/arte, no caso de obras repulsivas? Qual

    a reao mais frequente do pblico divulgada em meios de comunicao de grande circulao, como

    o caso da internet?

    A proposta desta monografia , ento, compreender esses fatores que envolvem a relao entre

    obra artstica legitimada, considerada repulsiva segundo determinados critrios (que sero discutidos

    posteriormente, neste estudo), sejam relativos ao tema, imagem, aos procedimentos adotados

    pelo artista para a realizao da obra e as implicaes ticas e morais do mesmo, bem como sua

    recepo por este pblico que divulga seus julgamentos e suas consideraes. Para tanto, optamos

    pelo estudo de caso da obra Fantasia de Compensao (2004) do artista plstico brasileiro Rodrigo

    Braga, tendo como suporte as consideraes e motivaes do artista para a realizao do trabalho

    e os comentrios manifestados atravs de mensagens eletrnicas enviadas a ele ou postagens em sites

    e blogs na internet.

    O volume de comentrios divulgados em meio eletrnico, bem como o teor das mensagens

    enviadas ao artista, compem um conjunto de informaes que dizem respeito opinio de uma

    parcela considervel de espectadores. Um pblico, provavelmente, no usual ao ambiente expositivo,

    porm no menos relevante, j que alm do contato virtual com a arte, seus comentrios circulam

    livremente na internet e podem assumir uma proporo maior do que se supe, disseminando um

    tipo de informao, muitas vezes, incompleta e distorcida sobre a obra. importante considerar que a

    internet potencializa a repercusso destas manifestaes e possibilita s pessoas o acesso s imagens.

    Certamente, muitos dos que comentaram sobre a obra Fantasia de Compensao em post de blogs e

    Orkut s viram as imagens atravs da internet e jamais foram alguma exposio, nem a do Rodrigo

    Braga, nem outra qualquer. Alm disso, a internet firma-se como um meio, de certa forma protegido,

    j que no h contato fsico pessoal direto com ningum, no qual as pessoas comentam os maiores

    disparates e expressam o que jamais diriam em outras circunstncias. Este segmento de pblico, que

    em momentos anteriores no tinha um meio para divulgar suas opinies, agora pode manifestar-se

    no anonimato pela internet.

    importante observar tambm que as consideraes baseadas nos dados coletados via internet

    foram feitas apenas em relao ao contedo publicado, uma vez que no possvel determinar alguns

    aspectos que influenciam na relao do pblico com a obra, como por exemplo, a faixa etria e o

    nvel scio-cultural. Sendo assim, as consideraes relacionadas, sobretudo ao aspecto scio-cultural,

  • 12

    como questes referentes aos valores morais ou ticos1, foram tomadas de forma mais generalizada,

    considerando os fatores sociais que envolvem as regras estabelecidas culturalmente em nossa sociedade

    e, portanto, passveis de aplicao a todos os indivduos.

    A escolha por esse tema surgiu da minha inquietao diante de trabalhos que ultrapassam os

    limites de ordem tica ou moral. Ao me deparar com uma obra dessa natureza, juntamente com o

    sentimento de repulsa ou revolta, vrios questionamentos sobre o sistema artstico e social surgiam

    automaticamente. Ao mesmo tempo, observava a reao de outros espectadores, talvez na tentativa de

    identificar reaes semelhantes e, assim, justificar e validar minha prpria reao. fato que sempre

    que uma obra transgressora exposta, vem seguida de comentrios e longas discusses acaloradas

    sobre o objeto visto e os sentimentos gerados, porm, ao final dessas conversas, percebia minhas

    opinies um tanto quanto limitadas e unilaterais. Da necessidade de argumentao, compreenso

    e aceitao desse tipo de trabalho, surgiu o desejo em buscar fundamentao terica sobre o tema.

    A presena frequente de obras que causam rejeio em mostras de grande importncia, como

    Bienais e em instituies renomadas, a reao do pblico e as repercusses, normalmente negativas,

    nos mais variados meios de comunicao apontam para um descompasso entre arte que rompe os

    limites morais mesmo em um contexto que poderamos considerar como permissivo , vigente

    na sociedade moderna ocidental e percepo do espectador. Ao mesmo tempo, aponta para uma

    incoerncia scio-cultural caracterstica do sculo XXI: como possvel uma obra de arte causar

    tanto impacto negativo se convivemos diariamente com imagens que ultrapassam qualquer limite de

    padres tico ou moral nos jornais, TV, filmes e jogos ultraviolentos? Seria a arte o ltimo reduto a

    salvo da degradao dos princpios morais caractersticos da classe mdia ou seria o pblico, de modo

    geral, incapaz de associar arte algumas das obras produzidas atualmente?

    Considerar a arte como reduto dedicado apenas aos valores artsticos ligados ao domnio

    das tcnicas clssicas de produo, apreciao que desperta sentimento de satisfao naquele que

    observa e aos valores morais socialmente aceitos pelos segmentos mdios negar a prpria histria da

    arte, marcada por transgresses. Cada movimento surgido desde o sculo XIX e ao longo do sculo

    XX, por exemplo, pode ser caracterizado por sucessivas rupturas de limites2 sejam de ordem tcnica,

    conceitual, fsica, moral e tica. Considerando apenas os dois ltimos aspectos de transgresso citados,

    a arte j abriga trabalhos fora dos limites morais h pelo menos 45 anos. Basta revisitar a histria

    e conhecer um pouco mais sobre a Body Art e artistas como Marina Abramovic e o grupo Acionismo

    1 Na Filosofia Moral no h um consenso sobre a diviso no sentido entre os termos Moral e tica, j que ambos se referem, de uma maneira ou de outra, ao domnio comum dos costumes. (...) proponho tomar o conceito de moral como o termo fixo de referncia e atribuir-lhe uma dupla funo, a de designar, por um lado, a rea das normas, ou seja, dos princpios do permitido e do probido, e, por outro lado, o sentimento de obrigao como face subjetiva da relao de um sujeito com as normas. (...) E em relao a ele que convm fixar um emprego para o termo tica. Sendo assim, para o autor, o termo tica diz respeito ao enraizamento das normas na vida e no desejo (...) designamos por tica algo como uma metamoral, uma reflexo de segundo grau sobre as normas (...) (RICOEUR, p.591. In Dicionrio de tica e Filosofia Moral, 2007).2 Refiro-me ao limite imposto pelas regras vigentes relacionadas, tanto s questes artsticas (por exemplo, a tcnica e os padres representacionais de determinado perodo), quanto s questes sociais, ticas, morais, econmicas ou culturais, que regulam o funcionamento da vida em sociedade.

  • 13

    Vienense que, j nas dcadas de 60 e 70, no apenas utilizaram o corpo como matria e suporte, o que

    por si s, j era uma transgresso considervel para as regras artsticas vigentes naquele momento,

    como exploraram e extrapolaram limites fsicos, expondo-se no s a situaes imorais para a

    poca, como tambm ao prprio risco de morte. A radicalizao das aes propostas tanto por esses,

    como por outros artistas do mesmo perodo, muitas vezes visavam atingir e provocar o pblico de

    alguma forma e, apesar do tempo transcorrido entre a realizao e a apresentao desse tipo de ao

    artstica e das mudanas sociais e culturais que configuram o cenrio atual, ainda hoje so capazes

    de provocar forte desconforto e despertar sentimentos de revolta e repulsa no espectador.

    Apresentar uma proposta artstica que ultrapasse os limites impostos pelos padres morais de

    qualquer grupo social, envolve no apenas a inteno do artista em faz-lo, como a disponibilidade

    do sistema legitimador (seja galerias de arte, museus, crticos ou curadores) em dar acesso ao pblico

    um tipo de obra que vai contra ao que habitual, ou seja, aos conceitos mais generalizados sobre o

    como deve ser uma obra de arte. Sendo assim, para compreender as transgresses promovidas pelos

    artistas, bem como a dificuldade de aceitao desse tipo de arte por parte dos diversos segmentos de

    pblico, de maneira geral, importante considerar o contexto histrico e social em que a obra foi

    realizada e as intenes ou motivaes do artista, que justificam sua produo como arte: conhecer

    seus questionamentos, buscar elementos que validam suas escolhas artsticas e seus embates sociais ou

    culturais, sem deixar de considerar tambm o prprio posicionamento do pblico enquanto receptor

    dessa obra, ou seja, a forma como se relaciona com esse tipo arte. Se o contexto social influencia na

    maneira como uma obra produzida e na forma como percebida pelo observador, ento pertinente

    conhecer as consideraes relacionadas a sociologia da arte, pois ela aborda o tema sob o aspecto do

    funcionamento social do sistema artstico, considerando os fatores externos (sejam eles econmicos,

    polticos ou culturais de um dado grupo social), que interligam obra, artista, crtico/instituio e

    pblico. No caso especfico da proposta deste estudo importante tambm conhecer as consideraes

    da filosofia da arte relacionadas ao estudo da esttica e aos critrios de julgamentos estticos e morais,

    j que so estudos mais direcionados a uma questo especfica e fundamental para a compreenso

    da relao pblico/arte repulsiva que ser abordado neste estudo de caso da obra de Rodrigo Braga.

    Para contemplar os quatro pontos que considero fundamentais para o desenvolvimento deste estudo,

    ou seja, transgresso, contexto social, intenes artsticas e julgamentos (de gosto, esttico ou moral)

    optei por compor a base terica dessa pesquisa com um autor da sociologia da arte Nathalie Heinich

    e um da filosofia da arte Jean-Marie Schaeffer. A escolha desses autores se deve a pertinncia de suas

    teorias para o desenvolvimento deste estudo, considerando cada ponto citado. No livro Le Triple Jeu de

    lArt Contemporain3 (1998) Nathalie Heinich aborda aspectos sociais e culturais da transgresso da arte,

    contextualizando o tema. A autora analisa a questo da quebra de limites ticos e morais promovidos

    pela arte contempornea, sob diferentes enfoques e considerando os fatores sociais que influenciaram

    3 O Triplo Jogo da Arte Contempornea. Traduo livre da autora.

  • 14

    nesse processo. Jean-Marie Schaeffer foi escolhido por sua anlise sobre a relao esttica espectador/

    obra e o julgamento de gosto, esttico e moral abordadas no livro: Adieu lEsthtique4 (2000). Neste

    livro, Schaeffer apresenta suas consideraes sobre a questo da conduta esttica, enquanto fator

    determinante para o tipo de julgamento expressado pelo observador. Tanto as teorias sociolgicas de

    Heinich, quanto as consideraes filosficas de Schaeffer foram abordadas no contexto da anlise da

    obra Fantasia de Compensao e foram importantes para o desenvolvimento deste estudo, justamente

    por estarem diretamente relacionadas a aspectos marcantes da obra analisada, como a transgresso de

    ordem tica, presente nesse trabalho, e o tipo de recepo desta obra por um pblico especfico, aspectos

    e teorias que sero estudados de forma mais detalhada no prximo captulo.

    Pela complexidade do tema e pelo volume de autores e leituras importantes relacionados

    a cada aspecto abordado nesse estudo e o curto tempo de execuo para um projeto de graduao

    em Histria, Teoria e Crtica, fez-se necessrio concentrar a pesquisa, para que fosse possvel

    levantar algumas das questes relevantes ao assunto proposto, dentro do prazo estabelecido para

    a concretizao dessa monografia. Por isso, escolhemos realizar um estudo de caso e, a partir dele,

    desenvolver o embasamento terico de forma mais pontual sem, no entanto, limit-lo apenas ao

    contexto da obra escolhida.

    Era importante escolher um artista reconhecido e legitimado pelo sistema artstico, que tivesse

    uma obra considerada repulsiva por uma ampla parcela de pessoas que, de alguma forma, tiveram

    contato com ela. Sendo assim, a escolha por estudar Fantasia de Compensao (2004), de Rodrigo Braga

    no poderia ser mais apropriada. O trabalho possui um grande potencial em promover sentimentos

    de repulsa no espectador, tanto na parcela composta por leigos, quanto na parcela composta por

    especialistas ou estudiosos em arte, pela transgresso moral e quebra dos limites materiais para

    a realizao do mesmo. Outro ponto considerado para essa escolha foi a legitimao do artista no

    cenrio nacional e internacional: Rodrigo Braga participou de diversas exposies em importantes

    instituies culturais no Brasil e no exterior, alm de feiras de arte consagradas como a Arco, em

    Madrid. Prova disso so as diversas matrias em importantes jornais do pas e do exterior, disponveis

    em seu site, tanto sobre sua produo artstica, quanto sobre sua atuao profissional. A proximidade

    e facilidade de acesso a algumas das sries do artista tambm foram considerados para essa escolha.

    Obras de Rodrigo Braga integram o acervo da Fundao Vera Chaves Barcellos, em Viamo, regio

    metropolitana de Porto Alegre. Alm disso, tive a oportunidade de ver pessoalmente a obra estudada,

    como integrante da exposio coletiva Colagens Contemporneas: cruzamentos (im)puros? com

    curadoria da artista e professora da graduao e ps-graduao Sandra Rey realizada na Pinacoteca

    Baro de Santo ngelo, do Instituto de Artes da UFRGS, no perodo de 28 de maio a 20 de junho de

    2008. Tambm pude ver pessoalmente as sries Da Alegoria do Perecvel (2005) e Do Prazer Solene

    (2005), ambas expostas no Ita Cultural, em So Paulo, no ano de 2006.

    4 Adeus Esttica. Traduo livre da autora.

  • 15

    Nascido em Manaus, em 1976, Rodrigo Braga reside e trabalha em Recife, onde graduou-se em

    Artes Plsticas pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2002. Artista premiado, sua obra

    marcada pelo uso constante do corpo como suporte e imagem auto-referente. Seus trabalhos trazem

    tona questes auto-biogrficas, permeadas por aspectos emocionais particulares, motivaes

    pessoais que no so, necessariamente, acessveis ao espectador atravs da simples apreciao visual.

    Questes estas traduzidas, na maioria das vezes, em sries de imagens fotogrficas, ora manipuladas

    digitalmente, ora no, ora mesclando as duas possibilidades numa mesma sequncia de imagens,

    como o caso de Fantasia de Compensao.

    Por ser jovem e sua produo bastante recente, a maior fonte de coleta de dados tanto sobre Rodrigo

    Braga, quanto sobre sua obra foi a internet. Para analisar as motivaes do artista quando da execuo

    do seu trabalho foram coletados de seu site o depoimento sobre a obra Fantasia de Compensao e as

    imagens completas de outras sries fotogrficas, apresentadas ao longo do texto ou dados em anexo.

    Ainda do site pessoal do artista, foram coletados os dados biogrficos apresentados aqui, alm de

    reportagens e do catlogo de uma exposio individual realizada no Instituto Cultural Bandepe, em

    Recife, no ano de 2006. Alm disso, mantive contato com Rodrigo Braga atravs de correio eletrnico

    e pude contar com o apoio solcito e gentileza do prprio artista em dedicar parte do seu tempo em

    meio a uma residncia artstica no serto de Pernambuco em me ceder informaes e dados valiosos

    para o desenvolvimento desta pesquisa.

    Em outros sites foram coletados entrevistas do artista, o texto crtico do professor e pesquisador

    em Histria da Arte Paulo Trevisan, publicado em blog pessoal e os manifestos publicados no site

    de uma entidade de defesa dos animais e outros dois blogs pessoais. Optei por manter a formatao dos

    dados coletados na internet, salvo pela alterao da cor e tipo de fonte, para preservar a maneira como

    as informaes circulam nesse meio. Por essa razo, consta nos anexos algumas imagens de trabalhos

    no citados no texto, bem como imagens repetidas da obra estudada. Alm do meio digital, foram

    coletados tambm os dados documentais da exposio Colagens Contemporneas cruzamentos (im)

    puros?, da qual Rodrigo Braga participou com a apresentao da obra estudada.

    A definio da questo da pesquisa como a relao pblico/arte repulsiva e da obra Fantasia

    de Compensao como estudo de caso, revelou a grande repercusso do trabalho e a quantidade de

    comentrios coletados na internet: 284 e-mails recebidos pelo artista no perodo de abril a dezembro

    de 2008; 324 comentrios (at o momento5) publicados em resposta um nico post sobre o assunto,

    num blog na internet, compreendendo o perodo de maio de 2008 a maio de 2009, com o maior volume

    de comentrios publicados entre os meses de maio a julho de 2008. Alm desses, foram coletados

    alguns comentrios publicados em dezenas de fruns de discusso criados em comunidades distintas

    5 Esses comentrios foram publicados no Blog CNN Curiosidades na Net Curiosidades e notcias de tudo que rola na internet, em resposta ao post publicado em 05 de maio de 2008, com o ttulo: Homem costura pedaos de cachorro no corpo!. http://curiosidadesnanet.wordpress.com/2008/05/05/homem-costura-pedacos-cachorro-no-corpo/ltima data de acesso em 08 de junho de 2009

  • 16

    no site de relacionamentos Orkut. Todas essas manifestaes compem um panorama sobre a maneira

    como as informaes tanto sobre a obra, quanto sobre o artista circulam na internet e retratam

    o sentimento de repulsa e revolta relacionado apreciao das imagens deste trabalho.

    Devido ao curto prazo para a realizao desta pesquisa e ao farto material coletado, optei

    por no realizar entrevistas com os alunos e professores do Instituto de Artes/UFRGS sobre a

    exposio desta obra na Pinacoteca, em 2008, embora fosse interessante e enriquecedor conhecer

    de forma mais sistemtica essas opinies.

    Sendo assim, no captulo a seguir, procurei desenvolver o estudo sobre a srie fotogrfica Fantasia

    de Compensao, tendo como fio condutor os possveis fatores que influenciam a relao espectador/

    obra e as reaes manifestadas e coletadas da internet. Para tanto, abordo, questes da fotografia

    como linguagem visual e ndice da verdade; questes sobre conduta esttica e julgamentos, baseados

    na teoria de Schaeffer e nos dados coletados; questes formais do trabalho, quanto execuo da

    obra, bem como as motivaes pessoais do artista. A partir dessa descrio formal da obra, proponho

    uma reflexo sobre os possveis aspectos repulsivos presentes neste trabalho que resultam no tipo de

    manifestao coletada, estabelecendo, para tanto, um paralelo entre a obra Fantasia de Compensao

    e outras duas obras contemporneas que possuem aspectos materiais semelhantes (no sentido da

    matria prima utilizada) obra estudada, sendo uma delas do prprio Rodrigo Braga e a outra da

    artista Karin Lambrecht. Por fim, abordo a questo dos aspectos repulsivos da obra, considerando

    as influncias sociais, culturais e institucionais, baseadas nas teorias de Nathalie Heinich.

    A maior parte do material coletado para este estudo est disponvel integralmente nos anexos.

    Apenas os e-mails enviados ao artista e comentrios publicados nos blogs esto apresentados

    parcialmente, porque alm de serem muitos em termos quantitativos, so tambm um tanto

    quanto repetitivos em relao as opinies manifestadas. Sendo assim, est disponvel em anexo

    apenas uma amostra do tipo de manifestao popular que circula na internet.

    O estudo do material coletado, juntamente com as consideraes do artista e o embasamento

    terico sustentado na sociologia e filosofia da arte compuseram a estrutura para o desenvolvimento

    dessa pesquisa. Atravs da fundamentao terica e da anlise da obra Fantasia de Compensao,

    procurei dar os primeiros subsdios para a melhor compreenso das questes referentes quebra

    de valores ticos e/ou morais promovidos por obras contemporneas e a relao do pblico com

    esse tipo de arte. Para o campo das artes, o direcionamento dessa pesquisa para a recepo de um

    tipo de arte que choca um pblico no usual ao ambiente expositivo uma maneira de inserir

    no sistema artstico as mudanas trazidas pelos novos hbitos culturais e tecnolgicos, j que

    considera tambm como participante ativo nesse processo um outro tipo de fruidor, to atuante

    talvez at mais quanto aquele que frequenta os museus e galerias.

    Apresento a seguir o levantamento das consideraes iniciais sobre o tema, adequadas ao tempo

    de execuo de um projeto de graduao em Histria, Teoria e Crtica, mas com possibilidades

    de desenvolvimento das questes levantadas aqui de forma mais aprofundada, em outra ocasio.

  • 17

    estudo de Caso

    Fantasia de Compensao:repulsa e revolta na obra de Rodrigo Braga

    O que isso? Parada em frente obra, mal posso acreditar no que vejo. O olho percorre

    rapidamente uma sequncia de fotos alinhadas na parede que narram uma histria to real e, ao mesmo

    tempo, to chocante que no pode ser verdade. O desconforto grande frente obra. O olhar passa

    mais uma vez por todas as fotos e para alguns segundos sobre a imagem de uma cabea de cachorro,

    completamente separada do corpo. No consigo olhar muito tempo as fotos que vinham depois disso.

    Vou direto para o final da sequncia e encontro partes da cabea desse cachorro costuradas ao rosto

    de um ser humano. S ento consigo sentir certo alvio e me aproximar da etiqueta para constatar que

    tudo aquilo no passa de uma montagem digital. Tudo? No exatamente tudo. A parte mais chocante

    dessa obra, para mim, no montagem e talvez, por isso, no consigo ficar tanto tempo parada olhando

    esse trabalho. Sigo pela Pinacoteca para ver as outras obras, mas meu olho sempre voltava para aquele

    canto, perplexo. A visita exposio Colagens Contemporneas: cruzamentos (im)puros? era uma

    atividade de aula da graduao, disciplina de Laboratrio de Criao de Texto 3, ministrado pela

    professora Iclia Cattani. Minha turma, de aproximadamente 10 alunos, circulava pela Pinacoteca

    e a maioria parava sempre por mais tempo em frente ao mesmo trabalho. Um chamava a ateno do

    outro, e vrios comentavam alguma coisa parecida com o meu o que isso?. Em geral, a primeira

    reao da minha turma no foi a revolta, mas a perplexidade e/ou a repulsa. A aula prosseguiu em

    uma conversa com a curadora da mostra, professora Sandra Rey e o assunto passou rapidamente

    pela questo da concepo da exposio propriamente dita, para alongar-se em alguma justificativa

    Fantasia de Compensao. Fotografia e manipulao digital. 2004. Colagens Contemporaneas: cruzamentos (im)puros? Pinacoteca Baro de santo ngelo, ia/uFRGs. 2008.

  • 18

    para a escolha daquele artista. Alis, quem era essa

    pessoa? Por que aquele trabalho estava exposto ali,

    to explicito daquele jeito? Minha memria ruim

    e o estado de choque no me permitiram lembrar,

    nem relacionar, o autor daquelas imagens to

    violentas do cachorro, como autor de outras imagens

    hbridas homem/partes de animais, porm muito

    mais brandas ainda que repulsivas para mim

    vistas 2 anos antes, em So Paulo. No percebi que

    j conhecia o rosto daquele artista e ainda hoje no

    consigo definir exatamente o que senti quando fiquei

    diante daquelas fotografias enormes, expostas no

    Ita Cultural. Como tambm no me lembro de

    tudo que foi conversado naquela aula, na Pinacoteca

    do IA, mas lembro que todas as perguntas que fiz

    professora Sandra foi para tentar entender e

    aceitar o motivo para aquele trabalho estar ali.

    E assim, a conversa seguiu at extrapolar o tempo

    da aula e o espao fsico da galeria. Mesmo depois de

    tudo isso, sa da Pinacoteca ainda perplexa. As longas

    discusses seguiram agora em conversas informais

    com colegas do curso e de atelier a respeito de um

    trabalho to marcante por sua capacidade de gerar

    sentimentos repulsivos e a revolta em muitos dos que

    o viram ali.

    Repulsa1 Acepes

    substantivo feminino 1 ato ou efeito de repulsar ou repelir 2 sentimento de repugnncia, de averso 3 oposio, objeo 4 Rubrica: termo jurdico. oposio enrgica de uma pessoa devido violao de certo direito

    1 Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa verso on-line http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=Repulsa. Acessado em 27 de abril de 2009.

    Vernissage Colagens Contemporneas: cruzamentos

    (im)puros? Pinacoteca Baro de Santo ngelo, IA/UFRGS. Porto Alegre, 2008.

  • 19

    Ato ou efeito de repelir. Sentimento de repugnncia. O que faz com que a srie fotogrfica

    Fantasia de Compensao (2004), de Rodrigo Braga desperte esse tipo de sentimento? Por que o efeito

    mais aparente desta obra sobre o pblico, de um modo geral, o repelente? Por que tantas reaes

    e repercusses negativas manifestadas contra esta obra e o artista?

    O trabalho de Rodrigo Braga imagem. Fotografias, s vezes ampliadas em grandes formatos,

    outras no, impactantes muito mais pelo tema e pela possibilidade de representao do real, do

    que por suas dimenses ou qualidades tcnicas. O artista utiliza a fotografia de maneira ampliada,

    explorando o potencial contraditrio do indcio da verdade em imagens manipuladas, bem como

    imagens isentas de alterao, em sries que ora privilegiam a pura e simples representao do objeto

    fotografado, ora ressaltam o rigor e preciosismo tcnico da manipulao de imagem. Na produo

    de Rodrigo Braga, a fotografia se traduz em linguagem visual, capaz de trazer tona suas questes

    artsticas e pessoais.

    Acontece que, o quanto mais me aprofundo nessa linguagem, mais percebo o quanto ela se adequa minha potica artstica hoje. A seduo e potncia da imagem fotogrfica me permite ir alm da representao. Por mais que minha prtica envolva ressignificaes de elementos simblicos para a criao de imagens deslocadas do universo cotidiano palpvel, o que evidencio no produto final (a fotografia) a coisa em si, ou seja: a luz refletida dos objetos que atravessou a lente e se perpetuou atravs do dispositivo fotogrfico. Apesar de, para mim, no restar dvida de que o que venho fazendo fotografia, a minha forma de trabalhar tem referncias mais ampliadas dentro do campo das artes. s vezes mesclo fotografia com performance, outras busco composies como um pintor; tambm posso manipular digitalmente o ndice fotogrfico, como faria um ilusionista, ou ainda apresentar fotos em longas sequncias, como quem edita um vdeo, ou ainda associ-las a objetos, como um escultor. Dessa maneira confesso que trabalhar com fotografia um prazer dadas s enormes possibilidades criativas sem ter que me prender a uma nica tcnica ou procedimento formal. (BRAGA, 2008. In Entrevistando2).

    As possibilidades tcnicas, o envolvimento e dedicao do artista para a realizao de seus

    projetos, muitas vezes, tornam-se praticamente secundrios para o observador frente preciso dos

    resultados alcanados, pois o que apresentado ao pblico so imagens fortes pelas escolhas dos

    materiais utilizados na composio das mesmas, juntamente com a maneira como o artista utiliza

    seu corpo como tema de suas fotos. Tudo muito familiar para quem observa, porm as situaes

    apresentadas esto deslocadas de seu contexto habitual e de fato, a primeira coisa vista. O trabalho

    por trs daquela imagem com a qual nos deparamos, o rigor tcnico, a habilidade de manipulao e

    montagem, o questionamento sobre a verdade da imagem s aparecem quando aparecem depois

    de transpor a barreira da repulsa inicial, fruto do primeiro impacto, do primeiro flerte com a obra.

    O trabalho de Rodrigo Braga no do tipo que se v de passagem. Causa estranheza, assusta,

    2 Entrevista de Rodrigo Braga. Site Olha e V (http://www.olhave.com.br/blog/?p=80) Entrevistando, por Alexandre Belm. Postado em 25 de maro de 2008. Acessado em 23 de abril de 2009.

  • 20

    choca. difcil parar em frente a suas fotografias sem sentir um desconforto inicial, uma curiosidade

    que seja, para que se continue a acreditar na imagem que vemos. Seu trabalho questionador no

    apenas por seus temas polmicos e questes ticas/sociais inerentes s interpretaes, como tambm

    por questionar a prpria linguagem fotogrfica contempornea, dividida entre a representao

    do real e do ficcional, ao mesmo tempo.

    O advento da fotografia, no sculo XIX, possibilitou o registro de fatos reais. No era apenas a

    representao realista de um fato, pessoa ou paisagem, como a pintura, mas era considerada como

    o prprio registro daquilo que real. A reproduo de uma imagem fiel, mesmo que restritas s

    possibilidades tcnicas da poca, deu a fotografia credibilidade quanto ao carter verdico da imagem. A

    tcnica, alis, sempre esteve profundamente ligada a fotografia, j que foi justamente o aparato mecnico

    e qumico hoje muito mais digital que no s permitiu a existncia da fotografia, como determinava a

    estrutura da imagem produzida. Um exemplo disso descrito por Nelson Brissac Peixoto, no artigo Ver

    o Invisvel: a tica das imagens3, quando relata sobre o processo para realizao dos primeiros retratos:

    Os primeiros retratos eram feitos por imperativos tcnicos em parques poucos freqentados. A fraca sensibilidade das chapas primitivas exigia uma longa exposio luz natural, o que obrigava o fotgrafo a colocar o modelo num lugar retirado, onde nada pudesse perturbar sua concentrao. (PEIXOTO, In. 2007, p.428)

    Essas limitaes tcnicas da fotografia do incio do sculo XX foram substitudas por processos

    mais simples e menos desgastantes, fruto da evoluo tcnica de equipamentos, qumicos e

    processos de revelao e ampliao que permitiu o aperfeioamento tanto da captao, quanto

    da impresso das fotos e modificou radicalmente a relao do fotgrafo com a composio da

    imagem. O desenvolvimento da tecnologia relacionada ao processo fotogrfico possibilitou novas

    experimentaes tcnicas que resultavam em efeitos inusitados e abria o campo da fotografia para

    alm da representao fiel da realidade. As experincias artsticas com montagens e manipulaes de

    imagem ocorrem desde o incio do sculo XX e tambm evoluram junto com a capacidade tcnica do

    processo fotogrfico. Porm o uso, cada vez mais frequente da fotografia como prova da realidade em

    outras reas de conhecimento e meios de comunicao de grande circulao, como jornais e revistas,

    acabou por firmar o carter verdico da imagem fotogrfica no meio social. Em seu livro El Beso de

    Judas Fotografa y Verdad (1997/2002), Joan Fontcuberta, diz que:

    Todavia hoje, tanto nos domnios do cotidiano como no contexto restrito da criao artstica, a fotografia aparece como uma tecnologia servio da verdade. A cmera testemunha aquilo que aconteceu; a pelcula fotossensvel est destinada a ser um suporte de evidncias. Mas isto s aparncia; uma conveno que a fora a ser aceita sem paliativos e termina por se fixar em nossa conscincia.4 (FONTCUBERTA, [1997] 2002, p.17)

    3 In. NOVAES, Adauto (org.), tica. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.4 Todava hoy, tanto en los dominios de la cotidianidad como en el contexto estricto de la creacin artsticca, la fotografa

  • 21

    Tendo em conta as possibilidades da fotografia atual, a considerao de Fontcuberta pertinente.

    Em nossa cultura ainda marcante a tendncia em aceitar a veracidade fotogrfica, mesmo diante

    das constantes alteraes de imagens facilitadas por um processo que no mais grava esta imagem

    quimicamente num negativo, mas a arquiva em uma sequncia de nmeros e cdigos virtuais, que se

    presta e muito as manipulaes digitais, to frequentes na fotografia contempornea. Nesse cenrio

    atual, considerando a fotografia digital, no mais possvel tratar a imagem fotogrfica como ndice

    da verdade, embora o hbito de consider-la como tal permanea presente em nossa cultura.

    As imagens manipuladas podem ter muitos objetivos, desde corrigir pequenas imperfeies fsicas

    no rosto e/ou corpo da pessoa fotografada, at a criao de imagens, partindo de algum elemento

    conhecido, totalmente focado para novas experincias em termos de composio, cores e formas.

    Esse tipo de imagem possui uma alta circulao em diversos meios de comunicao e mais comum

    encontrarmos alguns tipos em determinados meios. Hoje, com o aperfeioamento dos recursos

    digitais de manipulao da imagem, no mais possvel acreditar piamente no que vemos, quando

    consideramos a fotografia. Tais recursos permitem inmeras possibilidades que facilitam cada vez

    mais o trabalho de edio e tratamento de imagens. Com o domnio das ferramentas, dedicao e

    tempo para explorar essas possibilidades, se consegue alcanar um resultado to prximo do real se

    essa for a proposta , capaz de colocar em dvida o que nossos olhos tomam como verdade inicial.

    De acordo com Jonathan Lipkin5, a rpida evoluo tecnolgica reduziu os custos relativos ao

    processo fotogrfico, o que ampliou o acesso s cmeras digitais e popularizou o uso e a circulao

    desse tipo de foto, como acontece atualmente.

    A medida que o processo tornou-se menos custoso e mais simples de utilizar, resultou-se o que temos hoje, um fenmeno que toca a vida de milhares de indivduos pelo mundo e que aplicado a todos, seja pesquisador, turista, artista ou especialista em segurana. evidente que a possibilidade de modificar o contedo de uma foto muda fundamentalmente nossa opinio sobre a prtica da fotografia digital.6 (LIPKIN, 2006, p112)

    Essa popularizao do processo fotogrfico inclui os recursos digitais de tratamento de imagem.

    Sendo assim, atualmente, fcil encontrar imagens digitais que tenham passado por algum tipo de

    manipulao, independente da utilidade que essa foto ter depois. As imagens manipuladas de forma

    a preservar certa cota de realismo, tendo como tema principal o corpo ou o rosto de uma pessoa

    aparece como una tecnologa al servicio de la verdad. La cmara testimonia aquello que ha sucedido; la pelcula fotosensible est destinada a ser un soporte de evidencias. Pero esto es slo apariencia; es una convencin que a fuerza de ser aceptada sin paliativos termina por fijarse en nuestra conciencia. Traduo livre da autora.5 Fotgrafo, escritor e professor do Ramapo College, em Nova Jersey. Autor do livro Rvolution Numrique une nouvelle photographie.6 mesure que le procd est devenu moins coteux et plus simple utiliser, il est devenu ce quil est aujourdhui, un phnomne qui touche la vie de milliards dindividus de par le monde et qui est la porte de tous, quil soit chercheur, touriste, artiste ou expert en assurance. Il est vident que la possibilit de modifier le contenu dune photo change fondamentalment notre opinion sur la pratique de la photographie numrique. Traduo livre da autora.

  • 22

    mais comum principalmente na internet e em publicaes de grande circulao, como revistas sobre

    os mais variados assuntos. to comum que praticamente no nos impressiona mais. Somos capazes

    de procurar por evidncias de manipulao de imagens em fotografias publicadas de atrizes famosas

    ou em alguma foto supostamente impossvel de ser real recebida via internet, mesmo que seu tema

    seja chocante ou repulsivo.

    Fora desse circuito eletrnico, fotografias manipuladas digitalmente so presenas constantes em

    muitos museus e galerias de arte contempornea e, portanto no configuram nenhuma novidade nas

    artes visuais. Porm, um dos fatores que faz com que Fantasia de Compensao seja uma obra singular

    a eficincia com que Rodrigo Braga cumpriu sua proposta de criar digitalmente uma realidade

    possvel, desafiando radicalmente o carter verdico da imagem fotogrfica e a atitude crdula do

    espectador frente fotografia, por meio da manipulao de imagem:

    A idia inicial era fazer uso da tecnologia de manipulao de imagem digital (que j havia lanado mo em uma srie anterior) para produzir algo que estivesse dentro da minha potica e ao mesmo tempo contemplasse essa tcnica em todo o seu potencial. (...) Queria, portanto, algo que operasse pelo quase imperceptvel. Que subvertesse o carter indicial da fotografia e deixasse o espectador tonto, flutuando entre o virtual e o palpvel. Tinha a vontade de gerar no o surrealismo tpico de uma montagem fotogrfica mas, sim, fabricar em ambiente grfico digital uma realidade que, de qualquer forma, pudesse ter ocorrido em verdade, pela habilidade manual humana. (BRAGA, In. Dos Bastidores do Auto-Retrato, 2005)7.

    Fantasia de Compensao contrape a fora da imagem fotogrfica com a fora da palavra, seja

    ela escrita ou falada. Isso porque o artista deixa explcito que se trata de imagem manipulada desde

    o incio, seja pela etiqueta com os dados da obra numa exposio, seja pela atuao do mediador, seja

    pela legenda da imagem publicada em seu site. No artigo Rodrigo Braga O Impacto da Imagem e a

    Desmistificao da Atitude8, o professor Paulo Trevisan aborda a questo do impacto da verdade da

    imagem, desmentida pela verdade da informao concedida. Para Trevisan, todo o sentimento de

    repulsa inicial em relao verdade visual proposta pela obra, deveria ser anulado pela informao

    sobre a imagem manipulada:

    Ao nos apercebermos deste jogo visual ludibriante temos uma decepo em relao intensidade e a fora do impacto que teve sobre ns tais imagens. Portanto, uma vez que o artista nos concede esta informao (a da manipulao da imagem) de uma maneira ou de outra, dispondo-a ao nosso alcance seja pelas etiquetas ou pela orientao dos monitores , podemos reorientar agora o motivo do seu trabalho no mais para a ao do artista apresentada nas imagens fotogrficas, mas para a problemtica da funo e do poder da imagem nas artes visuais e da veracidade da atitude do artista (TREVISAN, 2007)

    7 Disponvel em: http://www.rodrigobraga.com.br/textos/fantasia_03.htm. Acessado em 14 de maio de 2009.8 Publicado em fevereiro de 2007. Ver artigo completo em anexo. Disponvel em http://paulotrevisan.blogspot.com/2007/02/rodrigo-braga-o-impacto-da-imagem-e.html . Acessado em 23 de abril de 2009.

  • 23

    Porm, analisando as reaes e manifestaes publicadas na internet e coletadas para esse estudo,

    mesmo cientes de que a obra resultado de uma montagem digital, o sentimento de repulsa e revolta

    permanece na maioria das vezes. Ou seja, no apenas a sensao de engano, como sugere Trevisan,

    que rege a postura do espectador frente obra. Assim, saber a verdade nem sempre ameniza a revolta,

    como nem sempre desvia a ateno do observador sobre o impacto visual da imagem.

    Sent: Saturday, April 26, 2008 1:50 PMSubject: Fantasia de Compensao

    A sua arte d nojo de se ver, sabe? Sendo montagem ou no, fotos de um cachorro sendo estraalhado no so exatamente o que posso chamar de algo genial... (e-mail9 enviado ao artista)

    118.|Maio12,2008at10:45pmEu acho que esse cara um F********************, pode at ser montagem, boneco de borracha, etc .mas esse cara num pensou em quem ia ver isso, crianas e td mais, pode ate ser mentira, mas esse cara tem q se f**** , tem q ser feito a msm coisa com ele ! (comentrio em reposta ao post publicado no blog Curiosidades na Net10)

    De acordo com Lipkin, alguns artistas utilizam intencionalmente a fotografia digital, justamente

    pela facilidade e pela vasta gama de possibilidades disponveis como recursos tcnicos, para

    desestabilizar, junto ao espectador, a convico sobre a realidade da imagem fotogrfica.

    Alguns artistas a utilizam [fotografia digital] para provocar um mal-estar queles que assimilam as fotos realidade. Frente a uma imagem forjada de todas as peas que compe o aspecto de uma fotografia, podemos compreender, intelectualmente, que se trata de uma fico, mas nossa convico de que uma foto representa qualquer coisa de real engendra um sentimento de confuso perturbador. 11 (LIPKIN, 2006, p.9)

    Uma das intenes de Rodrigo Braga com esse trabalho era, justamente, desestabilizar a

    credibilidade do espectador em relao verdade fotogrfica, como relata o prprio artista em seu

    depoimento Dos bastidores de um auto-retrato12, porm sua inteno13 nunca foi provocar mal-estar

    no observador. Mesmo assim, considerando esta srie fotogrfica completamente compreensvel

    9 Optei por manter a grafia de todos os e-mails e comentrios coletados e apresentados no decorrer deste texto, preservando tanto expresses coloquiais, quanto erros de grafia, pontuao e vcios de linguagem, comuns na internet.10 Disponvel em http://curiosidadesnanet.wordpress.com/2008/05/05/homem-costura-pedacos-cachorro-no-corpo/. Acessado em 27 de maio de 2009.11 Certains artistes lutilisent [la photographie numrique] pour provoquer une gene profonde chez ceux qui assimilent les photos la ralit. Face une image forge de toutes pices qui a laspect dune photograpie, nous pouvons comprendre, intellectuellement, quil sagit dune fiction, mais notre conviction quune photo reprsente quelque chose de rel engendre un sentiment de confusion troublant. Traduo livre da autora.12 Ver depoimento completo em anexo.13 posso lhe garantir que de fato no objetivei causar mal-estar, choque ou repulsa em ningum, mas, no sou ingnuo e j sabia desde o incio a respeito desse potencial das imagens. O que quero dizer que a inteno primeira nunca foi o choque e sim questes de ordem muito mais pessoais mas sempre soube que isso existiria para a maior parte das pessoas, ainda que no dimensionasse como hoje. (BRAGA, 2009). Trecho do e-mail enviado por Rodrigo Braga, em resposta ao meu contato. Recebido em 16 de junho de 2009.

  • 24

    a sensao de desconforto, o sentimento de repulsa e a curiosidade que o trabalho desperta na

    maioria dos espectadores. Na exposio de 2008, realizada na Pinacoteca Baro de Santo ngelo, no

    Instituto de Artes/UFRGS, Rodrigo Braga foi um dos oito integrantes da mostra coletiva Colagens

    Contemporneas cruzamentos (im)puros?, a convite da curadora, professora Sandra Rey.

    Quando a Sandra Rey me convidou para a coletiva achei totalmente cabvel dentro do contexto de colagens contemporneas mas a alertei do risco de polmicas... Ela topou e eu que ando mais seletivo em relao s aparies de Fantasia tambm, por considerarmos ainda importante ampliar essas discusses acerca dos limites da prtica artstica e tambm da percepo do pblico e at mesmo do prprio meio artstico.14 (BRAGA, 2009)

    O interesse ou curiosidade do pblico por esse tipo de proposta artstica visvel no livro de

    presenas da Pinacoteca: em pouco mais de trs semanas cerca de 400 pessoas visitaram a mostra,

    nmero elevado para a mdia de visitantes em exposies realizadas na Pinacoteca, visto que uma

    galeria interna, localizada no primeiro andar do prdio do Instituto de Artes, portanto sem o acesso

    direto de quem passa pela rua, por exemplo, e pelas restries de seu horrio de funcionamento (de

    segunda a sexta-feira, das 10 s 18h). claro que o volume de visitantes no se deve apenas a presena

    da obra de Rodrigo Braga, porm, na poca da exposio, certamente foi o trabalho mais comentado

    pelos corredores do Instituto de Artes e mesmo em salas de aula, gerando diversas interpelaes aos

    professores. Geralmente alheios ao recinto da galeria, os prprios funcionrios e mesmo trabalhadores

    eventuais (na ocasio havia uma reforma no prdio), entravam exclusivamente para observar as

    imagens do artista, como informou a prpria equipe da Pinacoteca.

    Fantasia de Compensao15 resultado de uma bolsa de pesquisa e criao, com a qual o

    artista foi premiado no 45 Salo de Artes Plsticas de Pernambuco, em 2003, concedida pela

    Secretaria de Educao e Cultura do Estado Fundarpe. A pesquisa teve orientao da professora

    da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Maria do Carmo Nino e durou 12 meses, sendo

    que 9 deles foi dedicado para a execuo e a apresentao do resultado final desta srie fotogrfica,

    no Museu de Arte Contempornea de Pernambuco, no perodo de dezembro de 2004 e fevereiro

    de 2005. Trata-se de uma sequncia de 20 fotos que mostram o processo cirrgico da retirada por

    completo da cabea de um co da raa rottweiler, da separao de algumas partes dessa cabea

    que, posteriormente foram costuradas no rosto do artista. Com o auxlio de dois professores da

    UFPE, foi confeccionado um molde em silicone da cabea de Rodrigo Braga, onde as partes do co

    foram efetivamente costuradas. Rodrigo registrou todo o processo cirrgico, que durou 6 horas.

    A prxima etapa foi fotografar o artista nos mesmos ngulos e posies daquelas realizadas durante

    a cirurgia no molde. A finalizao da obra foi a montagem digital da sua imagem real sobre as fotos

    do molde de silicone, j com as partes do co costuradas.

    14 Trecho do e-mail enviado por Rodrigo Braga, em resposta ao meu contato. Recebido em 27 de maio de 2009.15 Ver imagens em anexo.

  • 25

    O impacto visual que cada imagem desperta imediato. Todo o processo foi fotografado e cada

    etapa apresentada: o incio do procedimento, a cabea do co separada do corpo, a retirada das

    partes de interesse a saber, focinho, pelo em torno dos olhos e da cabea e parte das orelhas , e

    a costura dessas partes na suposta cabea do artista, sendo as duas ltimas imagens a montagem

    completa da fuso homem/cachorro, nos clssicos ngulos fotogrficos: perfil e frente.

    Definitivamente, em nossa cultura, esse tipo de imagem no considerado como algo que desperte

    sensaes agradveis. Para muitos, procedimentos cirrgicos, sangue e qualquer imagem relacionada

    a questes mais hospitalares no so necessariamente imagens para se estabelecer relaes estticas

    positivas, ou seja, ligadas a sentimentos de satisfao e prazer, mesmo que configure uma proposta

    artstica. Pelo contrrio, imagens de procedimentos cirrgicos esto muito mais relacionados a

    sentimentos de dor e sofrimento.

    Quando me refiro ao termo relao esttica, considero a teoria do filsofo e professor16 Jean Marie

    Schaeffer, autor do livro Adieu la Esthtique (2000). De modo bastante simplificado, segundo o autor,

    relao ou conduta esttica o resultado de uma ateno cognitiva, aliada a uma atitude apreciativa

    com a finalidade de se obter satisfao (ou insatisfao), sendo este sentimento, o regulador dessa

    atividade cognitiva:

    (...) para que uma atividade cognitiva seja elevada uma conduta esttica preciso que seja acompanhada por uma satisfao relativa atividade cognitiva. Digo satisfao, mas a apreciao pode ser entendida tambm como negativa, quer dizer pode se tratar de uma experincia de insatisfao, de desprazer (...)17. (SCHAEFFER, 2000, p.17)

    Em outras palavras, podemos olhar um objeto simplesmente, por exemplo, mas s passaremos a

    estabelecer uma conduta esttica em relao a ele, quando esse olhar passar a ser apreciativo e despertar

    um sentimento de satisfao ou insatisfao que regule tal atividade cognitiva. Esse processo pode

    ser espontneo ou intencional. No caso de obras de arte, a conduta esttica , geralmente, intencional

    uma vez que, culturalmente, buscamos a arte como fonte de prazer e satisfao. Considerando

    ainda, de acordo com Schaeffer (p.15), que (...) o que importa para definir uma conduta esttica no

    o objeto, mas a atitude que se adota frente a ele18, possvel compreender o porqu da conduta

    esttica estabelecida em relao a obra Fantasia de Compensao ser considerada negativa para tantas

    pessoas, como revelam as mensagens coletadas, j que o tipo de sentimento mais frequente que regula

    a atividade cognitiva/apreciativa, nesse caso, a insatisfao, o desprazer e a repulsa.

    Quando um sentimento negativo regula a atividade cognitiva, resultando em uma conduta

    16 Diretor de pesquisa do departamento de Artes e Esttica da cole des Hautes tudes en Sciences Sociais Paris.17 (...) pour quune activit cognitive releve dune conduite esthtique, Il faut quelle soit accompagne dune satisfaction prise lativit cognitive elle-mme. Je dis satisfaction, mais lapprciation peut bien entendu aussi tre ngative, cest--dire quil peut sagir dune exprience de dissatisfaction, de dplasir. (...). Traduo livre da autora.18 (...) que ce qui importe pour definir une conduite esthtique ce nest pas son objet mais lattitude quon adopte face lui. Traduo livre da autora.

  • 26

    esttica negativa, o autor observa que a consequncia mais frequente a manifestao dos julgamentos

    estticos que traduzem esse sentimento. Considero mais adequado apenas salientar que se observa

    que apreciaes negativas parecem despertar maior desejo de expressar o desprazer gerado, enquanto

    a satisfao positiva parece contentar-se em si mesma:

    (...) uma maneira econmica de se descarregar de uma frustrao de exteriorizar, quer dizer de exprimir verbalmente, ainda que de maneira puramente mental. Isto significa que de tais julgamentos elementares o uso privado tem uma funo expressiva, em vez de argumentativa. que, quando um objeto (compreende uma obra de arte) me causa desprazer esttico, meu problema no geralmente me convencer que tenho razes vlidas de no gostar (bem que posso evidentemente ter contextos particulares onde isto meu problema), mas de exprimir meu rancor.19 (SCHAEFFER, 2000, p.53)

    Podemos observar, assim, que os julgamentos estticos, de acordo com Schaeffer (p.50), so

    consequncias das condutas estticas, ou seja, um ato avaliativo que s existe aps a vivncia de uma

    experincia esttica e, por serem resultados de uma experincia cognitiva/apreciativa e individual,

    s existem quando so manifestados.

    Partindo desse pressuposto, possvel perceber a validade das consideraes de Schaeffer para

    esse estudo, quando analisamos os dados coletados na internet e-mails enviados ao artista e

    comentrios em blogs. A esmagadora maioria das mensagens ref lete o carter expressivo do

    julgamento esttico para esse tipo de pblico, ou seja, pode ser considerada muito mais como uma

    maneira de expressar o sentimento de indignao e revolta em relao obra e ao artista, do que

    configurar uma avaliao reflexiva sobre o trabalho. Em geral, conforme Schaeffer (p.51) esse tipo de

    pblico, que no possui vnculo profissional com o campo da arte, no busca uma conduta esttica

    com a finalidade de formular um julgamento de gosto. Tal julgamento acontece como resultado da

    relao esttica estabelecida com um objeto ou alguma situao, seja ela qual for. Nesse sentido,

    considerando que o julgamento de gosto est intimamente relacionado com o tipo de experincia

    vivenciada, interessante observar tambm as consideraes de Ranier Rochlitz20. Podemos pensar

    que as justificativas dessa ordem se referem a questes muito mais subjetivas, do que exatamente

    a uma racionalidade esttica, ou seja, a uma faculdade crtica de avaliao:

    Que uma obra seja sucesso ou fracasso, isso pode se justificar racionalmente, se ela me toca ou no, isto se refere a um outro tipo de discurso. Este tipo de preferncia legtima escapa a racionalidade esttica no sentido exato e s se refere as razes do engajamento pessoal

    19 (...) une faon conomique de se dcharger dune frustration est de lextrioriser, cest--dire de lexprimer verbalemente, ft-ce de manire purement mentale. Ce qui signifie que de tels jugements lmentaires usage prive ont une fonction expressive plutt quargumentative (...) Cest que, lorsquun objet (y compris une oeuvre dart) me cause du dplaisir esthtique, mon problem nest gnralement pas de me convaincre moi-mme que jai des raisons valables de ne pas laimer (...), mais dexprimer mom dpit. Traduo livre da autora.20 Filsofo alemo. Foi pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. autor do livro Subversion et Subvention Art Contemporain et Argumentation Esthtique. Paris: ditions Gallimard, 1994.

  • 27

    que cada um pode invocar em favor de suas avaliaes e de seus gostos particulares21. (ROCHLITZ,1994, p.18)

    Portanto, diferente do julgamento argumentativo e de destinao pblica proposto pelos crticos

    e/ou especialistas estudiosos da arte (em funo de sua prpria atividade profissional), o julgamento

    esttico dessa amostragem de pblico estudada, no caso especfico do contedo das mensagens

    coletadas para essa pesquisa, apenas expressa o resultado da conduta esttica, geralmente negativa,

    estabelecido com a obra. claro que qualquer pessoa pode formular julgamentos mais complexos

    em relao ao objeto/situao sobre a qual est colocada sua ateno cognitiva, porm no o que se

    observa na base de dados analisadas aqui.

    Se o segmento de pblico estudado nesse contexto manifesta seus julgamentos resultantes da

    conduta esttica estabelecida em relao obra Fantasia de Compensao e se tais julgamentos so

    resultados de experincias estticas individuais, podemos observar ento que os critrios avaliativos,

    nesse caso, so de ordem pessoal e dizem respeito ao grau de importncia desse contato pessoal com

    a obra. Sob essa perspectiva, importante ter em conta a relao entre a atribuio de valor por parte

    desse pblico e o julgamento manifestado por ele. Segundo Schaeffer:

    (...) no julgamento esttico, a aprovao ou a desaprovao e ento o valor positivo ou negativo dado ao objeto esto inseridos no (des)prazer que causado pela ateno cognitiva, tanto quanto este (des)prazer funciona s vezes como fator de regulao e como critrio.22 (SCHAEFFER, 2000, p.56)

    Se a atribuio de valor est diretamente relacionada aprovao ou desaprovao, ou seja,

    ao sentimento de prazer ou desprazer gerado pela conduta esttica, ento podemos pensar que o

    sentimento regulador da atividade cognitiva regula tambm a natureza do valor atribudo ao objeto.

    Nesse sentido, os valores so subjetivos, pois se referem a uma formulao pessoal, a um julgamento

    esttico decorrente de uma conduta esttica individual. Sendo assim, as propriedades que os

    julgamento de gosto atribuem aos objetos so predicados de valor; todo julgamento esttico situa ento

    seu objeto numa escala de valor ou ainda prope que o objeto em questo possua tal ou tal qualidade

    (des)valorizante23. (SCHAEFFER, 2000, p.57). Porm, os valores atribudos podem ser tambm de

    natureza coletiva, ou seja, relativos a intencionalidades dos fatos sociais (SCHAEFFER, 2000, p.58).

    21 Quune oeuvre soit russie ou rate, cela peut se justifier rationnellement; quelle me parle ou naon, cela releve dun autre type de discours. Ce type de prfrence legitime chappe la rationalit esthtique au sens strict et ne releve que des raisons qui nengagent personne et que chacun peut invoquer en faveur de ss valuations et de ses gots particuliers. Traduo livre da autora.22 (...) dans le jugement esthtique, lapporbation ou la disapprobation et donc la valeur positive ou negative accorde lobjet sont enchsses dans le (d)plaisir qui est cous par lattention cognitive pour autant que ce (d)plasir fonctionne la fois comme facteur de rgulation et comme critre. Traduo livre da autora.23 (...) les proprits que les jugements de got attribuent aux objets sont des prdicats de valeur; tout jugement esthtique situe donc son objet dans une chelle de valeurs, ou encore asserte que lobjet en question possde telle ou telle qualit (d)valorisante. Traduo livre da autora.

  • 28

    O autor diferencia assim os valores estticos dos valores morais. Essa distino proposta por Schaeffer

    baseado nas teorias do professor e filsofo norte-americano Jonh Searle24, e so consideraes

    bastante relevantes no contexto desse estudo, j que Fantasia de Compensao aborda tanto questes

    inerentes aos valores individuais, quanto questes de ordem moral, referentes s regras estabelecidas

    socialmente e, portanto, coletivas:

    O valor esttico no somente um fato ontologicamente subjetivo, mas de funo individual, j que tem sua fonte na qualidade subjetiva de um estado mental. Os valores morais, por outro lado, so fatos de intencionalidade coletiva, j que so fundados em normas institudas cuja referncia intrinsecamente coletiva, supra-individual. Resumindo: todos os valores so relativos s atitudes, ento so fatos ontologicamente subjetivos, mas no so todos subjetivos no sentido de serem individuais, mesmo se por outro lado todas s existirem enquanto individualizados como estado mental exprimido pelos indivduos25. (SCHAEFFER, 2000, p.58)

    Analisando os contedos das mensagens coletadas da internet possvel notar que a maioria das

    pessoas atribui tanto predicados de valor esttico, considerados aqui como valores de natureza subjetiva

    e individual, como predicados de valores morais, de ordem coletiva, referentes aos valores morais

    estabelecidos em sociedade. Isso porque em um nico e-mail podemos notar a presena de palavras

    que expressam o sentimento gerado pela relao esttica, bem como consideraes relacionadas ao

    convvio coletivo. Para exemplificar essa mistura de valores a que me refiro, selecionei um e-mail,

    recebido pelo artista de uma pessoa familiarizada com o sistema de arte, pois se apresentou como

    uma estudante de Artes Plsticas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo contedo menos

    agressivo e mais elaborado do que a maioria dos e-mails recebidos por Rodrigo Braga e uma outra

    mensagem mais representativa da indignao manifestada e mais prxima do tipo de julgamento

    recorrente nesse recorte estudado:

    Sent: Friday, May 09, 2008 11:05 AMSubject: En:Importante

    Caros,Sou estudante de Artes Plsticas da UFRJ e me causa tamanha estranhesa uma dita galeria ter dentre seus expositores, Rofrigo Braga. Por favor, arte nunca no ser aquilo. Td bem q arte no se define, ela varia de acordo com poca e cultura, mas da pegar um animal (co)que, em nossa cultura, to amado e tem sentimentos, e dissec-lo e fazer aquela aberrao achando que arte, para mim absurdo. O artista utilisa seu talento intrnseco para produzir sua obra. O que ser q esse ser que se auto intitula artista, tem em seu interior? O pior

    24 John Searle um dos mais importantes filsofos contemporneos. Dentre suas teorias de maior destaque est seu estudo sobre a intencionalidade.25 La valeur esthtique est non seulement un fait ontologiquement subjectif, mais elle est par-dessus le march individuelle, puisquelle a sa source dans la qualit subjective dun tat mental. Les valeurs Morales en revanche sont des faits dintentionnalit collective, puisquelles sont fondes sur des norms institues dont la rfrence est intrinsquement collective, supra-individuelle. En rsum: toutes les valeurs sont relatives des attitudes, donc sont des faits ontologiquement subjetifs, mais toutes ne sont pas subjectives au sens o ells seraient individuelles, meme si par ailleurs toutes nexistent quen tant quelles sont individualises comme tats mentaux exprims par des individus. Traduo livre da autora.

  • 29

    saber que, numa viso onde a sociedade um coletivo, a mesma apreciando algo de pssimo gosto e de pssima criao como o feito pelo artista em questo, est se intitulando uma sociedade desraigada de seus valores. A honra ou ao gosto por determinada arte, indica o tipo de moral que a sociedade exerce. Vocs gostariam de criar seus filhos numa sociedade assim? A verdadeira essncia da arte e a do artista poder transformar a realidade de acordo com seus ideais e pensamentos. O que este dito artista est querendo transformar?? Para mim e para milhares de pessoas ele pssimo. Abomino o fato desta galeria expor seus trabalhos. No s eu, como milhares de outras pessoas.Espero que, por abrigar algo de suma importncia para nossa cultura e para nossa histria enquanto sociedade, vocs retirem essa pessoa da exposio. Boicoto todos os seus trabalhos.Sem mais,(e-mail enviado ao artista e Galeria Amparo 60, de Recife)26

    Sent: Saturday, April 26, 2008 3:46 PMSubject: Protesto

    Sr. Rodrigo,Somente algum que tenha perdido completamente o senso de convvio social e de relao com o mundo alm do que existe dentro de cada um capaz de chamar essa atrocidade de Fantasia de Compensao de arte.Se isso arte, fao questo de morrer tosca, burra e cega.Infelizmente j so 4 anos dessa estupidz que voc intitula como fantasia, e espero sinceramente que isso no tenha feito nenhum sucesso ou vou ter que desconfiar da sanidade mental de mais alguns tantos seres humanos.Uma sugesto: em vez da cabea de um co, ponha a cabea de outra pessoa. Ou, ento, ponha uma melancia.Lamentvel.(e-mail recebido pelo artista)

    Considerando o teor das imagens que compem a srie Fantasia de Compensao, ou seja, a

    referncia ao processo cirrgico da fuso rottweiler/ser humano comum a revolta pelo uso do corpo

    do animal sem uma finalidade que justifique a ao do artista e, com base nos dados coletados, a

    proposta artstica no aceita como justificativa desta ao pela maioria das pessoas que divulgaram

    suas opinies na internet. Ao contrrio, um comentrio bastante recorrente e que gera muita

    repulsa no espectador. Socialmente, mais comum que se aceite esse tipo de imagem exposta, com

    menos reaes adversas, se a finalidade de tal procedimento for a recuperao da sade da pessoa ou

    animal submetido cirurgia, ou o estudo da anatomia, ou o desenvolvimento de alguma pesquisa

    cientfica com o objetivo de encontrar a cura de alguma doena, ou melhorar a vida da populao de

    alguma maneira. E, ainda assim, possvel que as pessoas reajam de forma agressiva e manifestem

    suas opinies contrrias aos experimentos cientficos que utilizam animais, mesmo que seja em

    busca da cura de doenas, como descreve o autor Marcelo Leite, no recente artigo Macacos verdes me

    mordam27, publicado no jornal Folha de So Paulo, em 31 de maio deste ano. No estou dizendo aqui

    26 A Galeria Amparo 60 dedica-se a divulgao e insero dos artistas contemporneos pernambucanos no mercado das artes e tem Rodrigo Braga como integrante de seu quadro de artistas.27 Nesse artigo, Marcelo Leite aborda a falta de bom senso em comentrios publicados na internet, sobretudo em blogs. Para tanto, o autor reeditou uma experincia, publicando no blog Cincia em Dia, uma notcia sobre um estudo cientfico realizados em macacos, com objetivo de pesquisar doenas como Alzheimer e Parkinson, que mesmo com uma finalidade

  • 30

    que, tendo uma finalidade justificvel e aceitvel socialmente, imagens deste tipo percam seu carter

    repulsivo. Quero dizer que a finalidade social aceitvel pode amenizar a revolta, sem que isso elimine

    o sentimento de repulsa que possam gerar.

    Apesar de imagens cirrgicas serem usadas como prtica artstica por alguns artistas fato que, de

    modo geral, grande parte dos indivduos que compem nossa sociedade no possui o hbito de aceit-

    las como arte, pelo menos no dessa forma to explicita como Braga prope, por exemplo. Materiais

    orgnicos como o sangue ou partes de animais j foram utilizados na arte e so perfeitamente passveis

    de se estabelecer algum tipo de relao esttica positiva ou, mesmo negativa, com o espectador. Tudo

    depende da forma como esses materiais so utilizados e apresentados ao pblico. Exemplo disso so

    as obras da artista Karin Lambrecht que utiliza sangue em sua produo artstica e, nem por isso,

    desperta a mesma revolta por parte do espectador (pelo menos, no que se tenha conhecimento

    por manifestaes acaloradas e revoltadas circulando na internet). Em 2001, a artista realizou uma

    instalao composta por uma srie de vestidos

    brancos, manchados por sangue proveniente

    do abate de carneiros (para consumo da carne),

    juntamente com a marca das vsceras dos animais

    gravadas como carimbos em papis e uma fotografia

    em preto e branco de mos segurando vscera.

    Apesar de utilizar materiais orgnicos to

    explcitos quanto Rodrigo Braga, a forma como

    Lambrecht utiliza esses materiais decisiva para

    o tipo de reao ao seu trabalho. A comear que

    o sangue usado como se fosse tinta, mesmo que

    as manchas sejam fruto do acaso, j que a artista

    apenas ampara o sangue do animal com o tecido.

    O resultado plstico forte pela presena do

    referencial do corpo humano atravs da forma do

    vestido e da presena do sangue, porm a questo

    da morte do animal no fica to explcita, como nas

    imagens de Fantasia de Compensao.

    Mesmo a fotografia de mos com vscera,

    componente dessa instalao de Karin Lambrecht,

    pode ser interpretada de forma mais amena pela

    ausncia da cor e pelo ngulo da foto. importante

    especfica para a melhoria da qualidade de vida do ser humano, gerou protestos contra a pesquisa, manifestados em comentrios irrefletidos e total falta de bom senso daqueles que expressam sua indignao na internet.

    Karin LambrechetSem ttulo, 2001

    Instalao com vestidos brancos, sangue de carneiro, impresses de vsceras de carneiro sobre papel e

    fotografia de mos segurando vscera.

  • 31

    considerar ainda que a escolha do animal tambm pode influenciar no julgamento moral do pblico

    leigo. Karin optou por usar sangue de carneiro, animal popularmente abatido para o consumo de

    carne. Por esta finalidade comum em nossa sociedade, a relao afetiva das pessoas com esses animais

    completamente diferente daquela estabelecida em relao a animais domsticos. Em nossa cultura

    no existe o hbito de comer carne de cachorro, ou seja, no so animais de abate. Pelo contrrio, so

    animais domsticos, com alto grau de relao afetiva com seres humanos.

    Considerando a obra de Rodrigo Braga, a escolha do corpo de um cachorro, a maneira explicita

    com que ele apresenta e utiliza a matria orgnica deixa pouco espao para que se estabelea uma

    relao esttica positiva inicial com a obra, sobretudo em uma cultura em que no h o hbito de se

    usar corpos, inclusive de animais, sem um propsito justificvel definido, nem de ver esse tipo de

    imagem como arte. No caso do carneiro de Karin, a morte do animal justificada pelo consumo de

    sua carne; j o rottweiler de Rodrigo, tem sua morte justificada pelo Centro de Controle de Zoonoses

    de Recife, porm, analisando a maioria dos comentrios coletados, essa justificativa no significa

    a aceitao da utilizao do corpo do cachorro para fins artsticos:

    Sent: Monday, May 26, 2008 8:38 PMSubject: absurdoooooo!!!

    isso que vc chama de arte????????vc j teve algum animal de estimao?se teve, no gostava dele, nem tinha o menor respeito, n?vc no sabe o que arte...no sabe o que respeito...no sabe o que o amor incondicional de um animal...no sabe nem o que vc ...eu sei: UM INTIL QUE QUER APARECER...tomara que um dia vc seja to ridicularizado quanto os animais que passaram na sua mo!! a diferena que eles so INOCENTES!!!!!(e-mail enviado ao artista)

    Sent: Monday, May 26, 2008 6:43 PMSubject: Re: ABSURDO + UM ARTISTA MATANDO OS ANIMAIS (PE)!!!VAMOS PROTESTAR

    Rodrigo,Isso que voc faz crime!!!!!! Os animais sentem dores que nem ns!!!!!! Sinceramente, os animais so mais dceis que certas pessoas que se dizem seres humanos. Seres humanos, ah, tem muita gente que nem merece ser chamada de humano, por exemplo voc!!!! Que absurdo fazer isso com os animais. Voc no tem piedade da dor que eles sentem? Voc no tem pena de fazer o que faz? Precisamos denunciar gente como voc!!!!! Vamos fazer isso, tenha certeza!!!!!!!!Deixo aqui este recado indignado e revoltado contra seus cruis atos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!(e-mail enviado ao artista)

  • 32

    De outro lado, temos um sujeito que se diz artista e trata cachorros mortos como coisas, brincando de recortar e colar, SEM NENHUM PROPSITO 28 (http://www.contraditorium.com/2008/06/21/tive-uma-idia-vamos-esquartejar-a-me-do-rodriga-braga/)

    As razes do artista para a escolha em usar um corpo real para a composio da obra so

    completamente particulares e psicolgicas e s dizem respeito ou fazem sentido completo para ele.

    No depoimento Dos bastidores de um auto-retrato29, publicado em seu site, Rodrigo relata seu processo

    de criao para a realizao desta obra, deixando claro suas motivaes pessoais.

    Hoje o percebo [o trabalho Fantasia de Compensao] como algo que vai alm da obra acabada, para mim como o desenrolar de uma catarse, uma vez que um auto-retrato e envolve questes psicolgicas que me so caras.

    (...) ainda no me vejo como um rottweiler, mas s vezes acho que precisaria ser... Gostaria de intensificar esse meu lado mais masculino e afirmativo, no de forma violenta, mas um pouco mais corajosa e confiante. De qualquer forma, passei de um ser que se sentia completamente intil e insignificante no mundo a algum que atua e se sente parte desse coletivo to complexo. (BRAGA, 2005)

    Tais razes no so explicitas no trabalho. Para conhec-las preciso que o espectador esteja disposto

    a procur-las em outro lugar, fora do ambiente expositivo, mais especificamente, na internet. preciso

    disposio para acessar e entender tais razes, para que a ao se justifique de alguma maneira.

    A apreenso e a apreciao da obra dependem tanto da inteno do espectador que, por sua vez, funo das normas convencionais que regem a relao com a obra de arte em uma dada situao histrica e social, como da aptido do espectador em conformar-se a estas normas, vale dizer, de sua competncia artstica. (BOURDIEU, p.271, 2005)

    A capacidade do pblico leigo para estabelecer uma relao esttica positiva, ou seja, regulada

    pelo sentimento de satisfao com um objeto ou imagem depende no s das crenas e conceitos

    particulares sobre tal objeto, como tambm das regras e contexto social vigentes. Por razes histricas

    complexas, o Ocidente separa muito radicalmente o domnio de utilidade do campo daquilo que pode

    dar lugar a uma conduta esttica.30 (SCHAEFFER, 2000, p.25). Essa separao do que pode e do que

    no pode dar lugar a uma conduta esttica extremamente presente em nossa sociedade. Em nossa

    cultura, corpos de animais ou humanos podem ser aceitos como materiais de estudo, mas no so

    considerados apropriados para qualquer finalidade. H um respeito pela estrutura fsica, sobretudo se

    for um corpo sem vida. Essa questo , praticamente, um tabu. Os rituais funerrios so considerados

    28 Trecho do post publicado em 21 de junho de 2008. O contedo completamente parcial e revoltado. Obteve 70 respostas e manifestaes de apoio, incluindo ameaas explicitas ao artista Rodrigo Braga. Acessado em 23 de abril de 2009.29 Ver depoimento completo em anexo.30 Pour des raison historiques complexes lOccident spare assez radicalement le domaine de lutile du champ de ce qui peut donner lieu une conduite esthtique. Traduo livre da autora.

  • 33

    sinalizadores da humanidade e da sociedade e envolvem valores e rituais extremamente marcantes, que

    podem, inclusive, revelar caractersticas especficas de determinada cultura. A utilizao de cadveres

    como base para desenvolvimento artstico pode transgredir valores sociais e gerar sentimentos de

    repulsa ou revolta se o propsito da obra no ficar claro e se tais propsitos no se justificarem dentro

    das normas histricas ou sociais em vigor. A ampla maioria dos comentrios coletados sobre a obra

    Fantasia de Compensao reflete que a maior causa de rejeio ao trabalho justamente a finalidade

    e a maneira como o artista utiliza o corpo do animal.

    A utilizao do corpo humano como superfcie ou matria principal em produes artsticas

    mais comum e de maior aceitao popular, tanto pelo tempo em que esse tipo de expresso

    legitimada pelo sistema artstico, quanto pelo fator de conscincia e responsabilidade do artista

    em utilizar-se como arte, mesmo que a performance seja inacessvel para o pblico.

    Rodrigo Braga considera tanto o prprio corpo, quanto corpos de animais como matria para

    sua produo artstica. O artista possui outra srie fotogrfica em que utiliza seu corpo e partes

    de animais como elementos principais para composio das imagens, porm com menos reaes

    adversas. A srie Da Alegoria do Perecvel31 (2005), analisando friamente, possui os mesmos elementos

    que compem a serie Fantasia de Compensao, ou seja, so fotografias em que o artista mescla seu

    rosto com partes de corpos de animais, desta vez, amarrados e sem o recurso da manipulao digital.

    Mas por que essa srie causa menos reaes revoltadas do que a srie Fantasia de Compensao?

    As fotos da srie Da Alegoria do Perecvel so ampliadas em grandes formatos e tambm causam

    impacto, a primeira vista, tanto por suas dimenses, quanto pelos elementos que compem a imagem.

    A diferena est na maneira como esses elementos orgnicos foram trabalhados. Por mais que o artista

    utilize partes de corpos de animais nessa srie, so partes de animais comuns ao nosso hbito de comer

    carne. Alm disso, so utilizados pedaos normalmente descartados, considerando o aproveitamento

    para corte, ou seja, so patas de galinha, p de pato, pata de vaca, bico de aves, orelhas de coelho, rabo

    de peixe. Outro fator que possivelmente influi no tipo de sentimento gerado pela conduta esttica em

    relao a esta obra que essas partes esto amarradas ao seu rosto, num processo menos agressivo

    e, a princpio, indolor. Tambm no so os nicos elementos que formam a composio. O artista

    utiliza outros materiais como fios, plantas, flores e tecidos.

    Um relato de uma mediadora durante a exposio das obras Da Alegoria do Perecvel e Comunho,

    no Ita Cultural, em 2006, exemplifica o sentimento dbio de repulsa e encanto que estas obras

    despertam no espectador sem, no entanto, gerarem a revolta to caracterstica das manifestaes

    em relao Fantasia de Compensao:

    (...) com relao ao pblico, as fotos causam uma reao de repugnncia e atrao ao mesmo tempo, a dvida da veracidade, etc. Mas ao mesmo tempo muitas pessoas acham o trabalho belssimo, uma mulher dizia, To lindas, to repugnantes..., um senhor bem

    31 Ver imagens em anexo.

  • 34

    simples, vendedor de pano de prato, deu uma volta e disse, cultura, minha filha, esta uma relao com a cultura, hoje duas crianas ficaram imitando a sua pose com o bode, ficaram colocando cabea com cabea, foi bonito, no final falaram, parece que o melhor amigo do homem o bode e no o cachorro. Outra turma de crianas ficou dando nome aos seres (Da Alegoria do Perecvel), coeixe, peicoelho, ropeixe, todas pensando que seres hbridos seriam aqueles, etc. (BRAGA, In. 2009, p.100)32

    Apesar de usar outros materiais em conjunto

    com matria orgnica, esse trabalho tambm

    causa repulsa/nojo, porque continua sendo partes

    de corpos de animais aplicados fora do contexto

    que estamos habituados a v-los e, alm disso,

    culturalmente matria orgnica, dependendo

    da maneira como apresentada causa averso.

    Porm, essa srie possui elementos mais prximos

    de se estabelecer uma relao esttica menos

    negativa, j que o que apresentado ao pblico

    a composio pronta, finalizada, no o processo

    cirrgico de obteno de cada parte dos animais,

    nem o processo de coloc-los no rosto do artista.

    Pode parecer um argumento ingnuo ou subjetivo, mas que de fato faz diferena na fruio e se

    aproxima mais com o que estamos habituados a encontrar em uma galeria de arte contempornea,

    considerando composies fotogrficas e museografia. claro que podemos encontrar e de fato

    encontramos vrios trabalhos contemporneos em que o processo ao mesmo tempo o trabalho

    apresentado. A questo no a apresentao do processo para se chegar num resultado, mas no caso

    especfico da obra Fantasia de Compensao, o teor desse processo.

    Apesar de possuir elementos aversivos, a primeira vista, a srie Da Alegoria do Perecvel possui

    outros elementos estticos que se sobrepe matria ou, pelo menos, equilibra o sentimento repulsivo.

    Pode-se estabelecer uma relao esttica negativa com esse trabalho, cair na esfera do gosto, mas no

    se questiona nem a legitimao, nem o valor artstico dessa produo, como acontece em relao

    a obra Fantasia da Composio.

    No caso da srie estudada, nos apresentado uma sequncia fotogrfica que representa o processo

    de uma interveno cirrgica, numa montagem excntrica e ficcional. A matria prima utilizada foi o

    corpo de um animal. Esse fator o mais marcante como desencadeador do sentimento de repulsa e revolta

    32 FERREIRA, Glria; PESSOA, Fernando (org.). In. Criao e Crtica Seminrios Internacionais Museu Vale 2009.

    Comunho I , 2006 Coleo Fundao Vera Chaves Barcellos

    Da Alegoria do Perecvel , 2005

  • 35

    gerado pela relao esttica estabelecida com a obra. O julgamento moral em relao ao uso do corpo

    do animal, por sua vez, o mais frenquente, acredito que, no s pela relao afetiva homem/animal de

    estimao, como pelo respeito cultural ao uso do corpo. Ainda em relao ao uso do animal nesse trabalho,

    outro ponto moral bastante mencionado nas mensagens a forma como esse corpo foi conseguido, ou seja,

    se o artista matou o co propositalmente para a realizao da obra. sabido que Rodrigo Braga buscou

    autorizaes junto aos rgos competentes para a obteno do corpo de um cachorro para fins artsticos,

    autorizao esta, devidamente concedida pelas autoridades locais. O cachorro foi recolhido pelo Centro

    de Zoonoses de Recife, ficando a espera dos donos por 40 dias. Findo este prazo, sem que ningum

    viesse busc-lo, inevitavelmente, o co seria sacrificado e de fato foi como parte de um procedimento

    padro de controle de doenas transmissveis a populao. Tudo isso est explicado por meio de textos

    publicados no site do artista, inclusive por meio de uma nota de esclarecimento33 especfica sobre este

    assunto. Ainda assim, a forte questo moral envolvida no ato de matar um ser vivo fica explcita nas

    mensagens coletadas atravs de julgamentos morais que expressam todo o repdio social relacionado

    este ato em si. Sobre esse tipo questo moral relacionada ao juzo de valor, interessante observar

    as consideraes de Arthur Danto. Para o autor:

    O conceito de perverso carrega uma conotao to forte de juzo de valor que abre espao para a aplicao de imperativos: h coisas que nos provocam reaes que no deveramos ter e coisas s quais deveramos reagir mas no conseguimos; existe uma fraqueza esttica assim como existem fraquezas morais (...). (DANTO, 2005, p.156)

    Considerando a obra em questo, as reaes manifestadas e estudadas aqui, refletem justamente

    a fora desse juzo de valor. O fato de estar em um ambiente expositivo, no altera a condio da

    matria do corpo do cachorro. No h dvidas do que se v nesta srie de fotografia que, nesse caso,

    assume todo seu potencial de ndice da verdade pelo realismo expressado em cada imagem, mesmo

    naquelas que so resultados de manipulaes e montagens digitais e, justamente por essa razo, no

    deveriam ser tomadas como ndice da verdade. a foto da cabea de um co, ou seja, a prova de um

    fato que realmente aconteceu. O momento da dvida chega ao final da sequncia das fotos, quando

    o artista apresenta seu rosto com as partes do co costuradas. Ser que algum realmente teria a

    coragem de costurar partes de um cachorro no prprio rosto, fotografar e mostrar depois? Alm

    de ir contra e ultrapassar todos os princpios fsicos e morais das crenas sociais, a dificuldade

    de discernimento est no processo de trabalho do artista. Parte das imagens foram manipuladas

    digitalmente, mas parte delas so registros de um procedimento que realmente aconteceu. Essa

    composio de imagens originais e imagens alteradas, juntamente com a habilidade do artista em

    manipular essas imagens, potencializa a fora do trabalho. Se fosse apresentado ao pblico apenas

    as trs ltimas fotografias, ou seja, apenas as imagens da fuso cachorro/artista, provavelmente,

    33 Em anexo.

  • 36

    no haveria espao para dvidas quanto a veracidade da imagem. Sem a sequncia que retrata o

    processo cirrgico, seria praticamente automtico reconhecer o trabalho como uma montagem

    digital. Se diante do impacto das imagens o espectador se esquecer de ler a etiqueta, onde est

    escrito que se trata de manipulao de imagem e ningum contar sobre essa parte do processo,

    perfeitamente possvel ter dvida sobre a verdade das fotos.

    parte esse tipo de perverso, pode-se dizer com segurana que quanto maior o grau de realismo pretendido maior a necessidade de indicadores externos de que se trata de arte e no de realidade, os quais se tornam tanto menos necessrios quanto menos a obra realista. (DANTO, 2005, p.62)

    Amplamente divulgada em ambientes virtuais, ao realismo desta srie fotogrfica soma-se,

    geralmente, um tipo de informao tendenciosa e desconexa, que nem sempre indica claramente que

    no se trata de realidade. Isto explica os comentrios que refletem a credibilidade daqueles que apenas

    viram e leram os textos que acompanham as imagens que circulam pela internet.

    Sent: Thursday, May 22, 2008 11:44 AMSubject: fantasia de cachorro

    Prezados Senhores,Venho por meio deste prestar meu repdio com esta obra de Rodrigo Braga.Trabalhamos com entidades de proteo aos animais e achamos uma barbrie o que foi feito. Chama a isso de arte? Assinar34 uma inocente criatura e andar com seus pedaos por a?Entraremos com recurso junto ao Ministrio Publico contra esse absurdo, para que no se repita. Isso um pssimo exemplo para nossos juvens e uma vergonha para a Sociedade.Atenciosamente,(e-mail enviado ao artista)

    19.sahzo|Maio5,2008at11:15pmcomo ele deve comer ?

    61.marcello|Maio7,2008at5:16pmtomara que infeccione tudo e ele morra(respostas ao post publicado no blog Curiosidades na Net35)

    Apesar de possuir um contedo eticamente questionvel, de gerar impactos negativos na maioria

    das vezes, de possuir questes alm de qualidades tcnicas e formais, trata-se de arte. Tanto a etiqueta,

    quanto o local onde o trabalho fisicamente apresentado so indicadores desse fato. um trabalho

    legitimado pelo sistema, aceito em instituies importantes e reconhecidas, tanto no Brasil, quanto no

    exterior, produzido por um artista reconhecido e premiado. O fato de se estabelecer relaes negativas

    com a obra no a desqualifica enquanto arte. Como observa Danto:

    34 Mantive a grafia original do e-mail, mas acredito que a pessoa quis dizer assassinar e no assinar como est grafado acima.35 Idem, p. 15

  • 37

    Mas me parece que a apreciao esttica tambm inclui consideraes negativas: certas obras de arte nos causam repulsa, nojo ou at nusea. Limit