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171 Goiânia, v. 6, n. 1/2, p. 171-186, jan./dez. 2008. , MOVIMENTO E GIS: UMA PERCEPÇÃO DA PAISAGEM D ARTIGO INTRODUÇÃO urante as duas últimas décadas têm crescido consideravelmente o uso dos chamados Sistemas de Informação Geográfica em Arqueologia. A meu ver este fenômeno está associado a três diferentes fatores. Em primeiro lugar há no mercado hoje uma grande variedade de softwares, alguns em plataforma livre como é o caso do SPRING desenvolvido pelo INPE de São Paulo, que torna fácil acesso a estes programas. Soma-se a isso a facilidade em se conseguir softwares piratas em sites na internet ou em programas de compartilhamento de ar- quivo. Em segundo lugar, a interface simplificada da maioria destes programas, sobre tudo o ArcGis da ESRI que segue uma plataforma Windows, torna aparentemente o manuseio e a aplicação destes programas descomplicado. Mas é justa- JOSE ROBERTO PELLINI* Resumo: nos últimos anos tem crescido consideravelmente o uso dos chamados Sistemas de Informação Geográfica como ferramen- ta de análise em arqueologia. Mas toda esta popularidade vem sendo alvo de criticas. No trabalho a seguir apresentamos uma abordagem que utiliza aspectos associados a percepção e movi- mento como uma alternativa aos modelos de análise em GIS vi- gentes em arqueologia atualmente. Palavras-chave: Movimento. Percepção. SIG. Arqueologia.

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INTRODUÇÃO

urante as duas últimas décadas têm crescido consideravelmente o uso dos chamados Sistemas de Informação Geográfica em Arqueologia. A meu ver este fenômeno está associado a três diferentes fatores. Em primeiro lugar há no mercado hoje uma grande variedade de softwares, alguns em plataforma livre como é o caso do SPRING desenvolvido pelo INPE de São Paulo, que torna fácil acesso a estes programas. Soma-se a isso a facilidade em se conseguir softwares piratas em sites na internet ou em programas de compartilhamento de ar-quivo. Em segundo lugar, a interface simplificada da maioria destes programas, sobre tudo o ArcGis da ESRI que segue uma plataforma Windows, torna aparentemente o manuseio e a aplicação destes programas descomplicado. Mas é justa-

JOSE ROBERTO PELLINI*

Resumo: nos últimos anos tem crescido consideravelmente o uso dos chamados Sistemas de Informação Geográfica como ferramen-ta de análise em arqueologia. Mas toda esta popularidade vem sendo alvo de criticas. No trabalho a seguir apresentamos uma abordagem que utiliza aspectos associados a percepção e movi-mento como uma alternativa aos modelos de análise em GIS vi-gentes em arqueologia atualmente.

Palavras-chave: Movimento. Percepção. SIG. Arqueologia.

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mente esta facilidade de manuseio que cria um dos principais problemas associados à utilização do SIG, a falta de precisão dos dados e dos resultados. Isto porque para alguém com o mínimo de conhecimento de sistemas de banco de dados, basta reunir meia dúzia de dados, apertar dois ou três comandos e esperar cinco ou seis minutos para se produzir um Modelo de Elevação Digital de uma determinada área. Mas será que este Modelo de Elevação, que fica lindo em um relatório, em um projeto de pesquisa, representa realmente as especificidades da área estudada? Pior, será que este Modelo de Elevação, foi confeccionado respeitando-se as especificidades da área? Costumo exemplificar este problema com um exemplo bem simplista. Se dermos uma calculadora na mão de uma criança e ela sair apertando os botões, a calculadora evidentemente dará resultados em termos de números. Mas estes números expressam exatamente o que? Porque determinados comandos foram acionados, porque determinados valores foram acresci-dos e para que? O mesmo se passa com o SIG, basta apertar alguns comandos e colocar alguns valores que teremos um lindo mapa colorido. Neste sentido a facilidade de manuseio acaba resultando em uma pratica sem a mínima responsabilidade que tem como resultado modelos que raramente representam as áreas desejadas. Por fim creio que a profusão do SIG em arqueologia está também associada à idéia de valor agregado, ou seja, é como se um projeto de pesquisa que mostrasse ou sugerisse análises de SIG fossem melhores por natureza.

Alguns pesquisadores como Van Leusen (2002) apontam ainda outros problemas associados ao uso do SGI em arqueologia, principalmente por seu suposto caráter de-terminista. A nosso ver, o problema não está no SIG e sim nos modelos de análise que são aplicados, principalmente no que se refere à concepção de espaço. Nos trabalhos de SIG em arqueologia, espaço é normalmente concebido como estritamente cartesiano. Sendo assim o espaço passa a ser universal, mensurável e externo à atividade cultural. O espaço é tratado apenas como pano de fundo, como elemento neutro

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sem nenhum valor cultural. No fundo da tela branca do SIG o espaço faraônico é igual ao espaço medieval anglo-saxão e igual ao espaço paleoíndio sul-americano. Todo espaço é assim apenas uma matriz de números e dados vetoriais, onde a presença humana não tem representatividade.

Associada a esta visão de espaço está a idéia de maxi-mização e racionalização das ações humanas. O homem é visto aqui como o homo economicus e o espaço é visto apenas como o cenário neutro onde se pode obter os recursos necessário. Os mapas preditivos em arqueologia são um grande exemplo desta concepção. Nos modelos preditivos mais usuais busca-se identificar a correspondência entre características geológicas, sedimentológicas, e outras “lógicas” com os assentamentos humanos a fim de determinar áreas de alta ou baixa ponten-cialidade para a identificação de outros sítios arqueológicos. Neste caso os únicos fatores contribuindo para a implantação e posterior identificação dos sítios, são a localização das zonas de matéria prima, localização de canais de drenagem, topografia, declividade, etc. É como se os fatores físicos e econômicos do espaço fossem os únicos responsáveis pelo estabelecimento de assentamentos humanos. Pensemos; alguém compra sua casa por esta estar pura e simplesmente perto de um Pão de Açúcar ou de um posto de gasolina? Será que somente as facilidades do meio é que respondem pela ocupação do espaço?

Bender (1998), Tilley (2006) e Ingold (2000) têm mostrado como esta concepção de espaço é limitada. Bender (2001) define paisagem como um espaço que é mediado pela percepção subjetiva e sensorial dos indivíduos, sendo um elemento construído e apropriado socialmente. Sendo assim se quisermos realmente entender como os indivíduos percebem e interagem com o meio necessitamos de novos modelos de análise que privilegiem aspectos outros que so-mente os físicos.

No caso do SIG, na contramão dos modelos de-terministas, Llobera (2000) e Pellini (in press) propõem o desenvolvimento de abordagens que privilegiem aspectos

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cognitivos principalmente aqueles relacionados à percepção e a movimentação. Movimento é um fator determinante no processo de percepção do entorno. Como aponta Jimenez (2004), se considera que os grupos sociais percebem e ar-ticulam seu entorno através da incorporação de atividades cotidianas e do movimento, a partir de uma perspectiva par-ticular e subjetiva (Tilley, 1994; Ingold, 2000). Se pensarmos que percepção é uma função do movimento como defende Ingold (2000), podemos dizer que a maneira com a qual os indivíduos percebem seu entorno depende de como elas se movem no meio.

Embora as estruturas de movimentação ou a signifi-cância de estruturas visíveis a partir de certos pontos no espaço, não tivessem sido priorizadas nas pesquisas arqueológicas no passado, atualmente figuram como uma das principais preocu-pações quando se tenta determinar a relação do homem com a paisagem em âmbito mais regional (Pellini, 2005). Dentro do contexto da arqueologia entender como e de que maneira as pessoas se deslocavam pode nos dar a chance de entender como e de que maneira elas se apropriavam da paisagem ao seu redor. A Atividade pedestre pode ser considerada como produto de dois componentes distintos: a configuração da paisagem e a localização de atrativos particulares. Neste sentido o conhecimento, ou seja a percepção do meio, atua determinando e sendo determinado pelas estruturas de des-locamento.

O desenvolvimento de abordagens que privilegiam aspectos cognitivos principalmente aqueles relacionados à percepção e a movimentação são uma tentativa de utilizar as ferramentas do GIS além das noções cartesianas de espaço e começar a buscar formas alternativas de análise. Witley (2004), tem argüido que podemos nos utilizar de variáveis espaciais para nos aproximar dos processos cognitivos humanos. Como aponta Ingold (2000), devemos passar a falar de superfícies e não de planos, de locais e não de pontos, de caminhos e não de linhas.

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Pensando nesta direção, desenvolvemos um projeto de pesquisa para tentar adequar uma concepção de espaço mais abrangente às plataformas de SIG. O projeto tem como ponto central a tentativa de trabalhar com a noção de movimento, aspecto central para percepção humana do espaço. Para isto utilizamos como estudo de caso os sítios identificados durante os trabalhos de resgate do Projeto de Resgate do Patrimônio Arqueológico, Histórico e Cultural da Área Direta e Indire-tamente afetada pela Implantação da Mineração Mirabela, Ipiau – Bahia (TELLES; PELLINI, 2007).

DESVENDANDO OS CAMINHOS DE IPIAU

Durante os trabalhos de Levantamento na área da Mineração Mirabela em Ipiau, Bahia, foram identificados 8 sítios Arqueológicos que foram alvo de resgate arqueológico (Telles e Pellini, 2007). Dos sete sítios escavados, cinco se configuram como sítios líticos associados à Tradição Itaparica, Mirabela I, Mirabela II, Miravela III, Mirabela IV e Mirabela VI. Em geral estes sítios se localizam em fundos de vale, pró-ximos a pequenos córregos. Em um dos sítios, Mirabela IV, observa-se a presença de um paleo canal com muitos seixos rolados. A visibilidade a partir dos pontos centrais de cada um dos sítios é muito boa, podendo-se avistar em geral todas as morrarias de entorno. A vegetação é típica da mata atlântica, embora em grande parte influenciada pelo micro clima da cul-tura cacaueira. Os ventos constantes e suaves, principalmente no sítio Miravela IV e Mirabela VI torna a permanência no sítio agradável. Em contra posição no sítio Mirabela III, a proximidade com uma morraria a leste, dificulta a ventilação bem como a visualização do horizonte. Nestes sítios observa-se a presença de instrumentos plano-convexos com retoque fino nas camadas I, II e III. Associados ao instrumental lítico observa-se, sobre tudo nas camadas II e III, lascas e estilhas pertencentes à cadeia operatória de confecção dos plano convexos. Nos sítios Mirabela II e Mirabela IV, observa-se

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na camada I, a presença de um material lítico lascado mais expediente e robusto que não apresenta muitas semelhanças como o chamado material Itaparica. Representam segundo Souza (2008) lascamento proveniente de culturas horticultoras ceramistas. Já os sítios Mirabela V e Mirabela VIII, também conhecido como Cacau do Cajú, se caracterizam por serem sítios ceramistas associados à Tradição Tupiguarani.

Mas qual a relação entre estes oito sítios? Porque eles estão implantados no local onde eles estão implantados? Como esta paisagem esta sendo apreendida, percebida e vivenciada? Será que somente fatores associados à aspectos paleo-econômicos é que determinaram a localização dos sítios?

A fim de tentar responder estas perguntas desenvol-vemos um modelo de analise no SIG que parte do pressuposto de dois pressupostos: 1) Paisagem é o espaço percebido e apropriado subjetivamente; 2) Movimento é um dos fatores essenciais dos processos perceptivos. Movimento cria um senso de espacialidade que não ocorre em um espaço cartesiano vazio. O meio assim existe somente em relação aos observa-dores. Estes observadores são moveis, sendo sua percepção e seu conhecimento sobre o meio é experimentada através do movimento. Por razões sociais ou meio ambientais, alguns vetores de movimento são mais favoráveis do que outros, sendo assim rotas individuais se tornam redes de mobilidade coletiva que permitem interação e auxiliam na delimitação do conhecimento publico. Tais rotas são não somente a estrutura do meio ambiente construído como também estruturadas por ele. Neste sentido creio que se conseguirmos determinar os padrões de movimentação na paisagem poderemos entender como e porque determinado espaço foi ou não apropriada. Isto porque, é através do movimento, locomoção e deslocamento que os indivíduos alteram sua percepção do meio.

O primeiro passo nesta direção foi desenvolver um mapa de custo de superfície que tinha como objetivo mostrar como os fatores fisiológicos influenciavam os deslocamentos neste espaço. Para isso foi criado um mapa de custo metabólico

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de deslocamento (Figura 2, Apêndice), que expressa a energia em watts associada à caminhada.

Modelos de custo mais recentes (PELLINI, 2007; VAN LEUSEN, 2002), tem levado em conta o gasto calórico associado ao deslocamento como base para reconstrução da paisagem. Nestes trabalhos a paisagem é modelada a partir de medidas fisiológicas de gasto de energia para representar o custo de deslocamento de maneira mais realística. A idéia central destes modelos é transformar os fatores de declividade e elevação em índices que mostrem gasto calórico, velocidade ou tempo de deslocamento (PELLINI, 2007). Verhagen et al. (1999) utilizou, por exemplo, a fórmula desenvolvida por Inhold (1950) e reformulada pelo geógrafo Waldo Tobler (1993), onde o efeito da declividade sobre a velocidade do deslocamento é expressa por:

V= 6exp(-3,5 (S + 0,05))

onde (V) representa a velocidade em Km/h, (S) é a declividade do terreno expressa em porcentagem e (Exp) é a base natural de logaritmo. Já Pellini (2008), utiliza a fórmula desenvolvida por Pandolf (1977):

M = 1,5 +2(W+L)(L/W)2 + N(W+L)(1,5V2 + 0.35VG)

onde, (M) é a taxa metabólica expressa em Watts, (W) é o peso corporal, (L) é o peso da carga extra, (V) velocidade, (G) é a declividade do terreno e (N) é o fator do tereno. Van Leusen (2002) modificou a fórmula de Pandolf, alterando o valor final de (G) para representar a simetria da declividade como expressa por Llobera (2000), substituindo-o pelo valor absoluto (G +6). O resultado esperado é uma superfície que apresenta os valores calóricos em watts a partir do centro do sítio. O limite do catchment neste caso seria o chamado opti-mum energético, ou seja, a distância na qual o gasto calórico se iguala ao ganho calórico.

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Em nossa análise o fator N foi representado por um raster que reunia os diferentes custos associados com a pai-sagem em questão. Em primeiro lugar utilizamos os mapas paleo- ambientais desenvolvidos por Ray e Adams (2001) que reconstroem a vegetação presente na área no período de transição entre o Pleistoceno e o Holoceno e no período do Holoceno médio. Neste caso para cada tipo de vegetação foi atribuído um valor conforme tabela de Pandolf (1977). Em seguida foram atribuídos valores de custo para os rios e canais que cortam a área. Por fim utilizamos os mapas de solo e para cada tipo diferenciado de solo foi dado um valor. Cada mapa foi assim reclassificado segundo os novos valores atribuídos e o resultado é um raster que simboliza os custos associados de deslocamento. Em seguida, utilizando a fórmula de Pandolf e o raster calculator do módulo Spatial Analyst da suíte ArcGis 9.2, foi calculado o mapa que representa o gasto calórico em watts associado a deslocamento de uma pessoa de 1,78 metros, 70 kilos que carrega uma carga extra de 5 kilos e se desloca a uma velocidade média de 4,8 km/h.

Como podemos ver na Figura 2 (Apêndice), as áreas em rosa no mapa denotam áreas de menor custo, ou seja, áreas em que o gasto calórico é menor. Se observarmos a localização dos sítios e compararmos a localização com as áreas de gasto metabólico veremos que os sítios estão implantados em áreas onde o custo de deslocamento é menor. Isso não significa ne-cessariamente em um modelo de maximização e economia de energia, mas pura e simplesmente que os sítios foram instalados nas áreas de melhor acesso e fácil deslocamento.

O passo seguinte em nosso modelo foi determinar quais as rotas de excelência dentro da paisagem, ou seja, quais as melhores rotas para se deslocar na paisagem do ponto de vista metabólico.

Para a criação das rotas de excelência ou mapa de permeabilidade, foram utilizados como base os mapas de consumo metabólico. Foram traçados os caminhos de menor custo tomando como ponto de partida cada um dos sítios em

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relação a pontos espaçados a cada 10 km localizados no limite de um perímetro de 150 km.

Como podemos observar na Figura 3 (Apêndice) as rotas e caminhos recriados com a modelagem proposta conectam todos os sítios na área de estudo. Outro detalhe rapidamente observado é a quantidade de caminhos e ro-tas que af luem do sítio Mirabela 8, que aparentemente se mostra como o centro de convergência principal da área. Ao mesmo tempo podemos perceber que apenas 3 rotas cruzam o curso do atual rio, sendo que duas delas partem do Mirabela 8. È interessante notar que uma das principais rotas que cruzam o rio coincide com uma ponte recente, o que de certo modo mostra a validade da reconstrução já que normalmente pontes são colocadas nos pontos de menor custo e dificuldade operacional. Podemos perceber também que existe uma densidade maior de caminhos e pequenas rotas ao redor dos sítios Mirabela 2, 3, 4, 5, 6 e 7, o que pode indicar a existência de uma zona de confluência.

Um dos aspectos importantes é o aparente isolamen-to do sítio Mirabela 6, que não se conecta diretamente com nenhum dos sítios. Sua conexão mais aparente é com o sítio Mirabela 8 e após com o agrupamento descrito acima. Os mapas de rotas mostram em geral um uso intenso da área e um aproveitamento considerável do ambiente. Há de consi-derar a possibilidade de transporte via rio, mas neste trecho o rio é bastante acidentado e veloz, o que prejudica, mas não impede, o seu uso como via de deslocamento. É interessante notar que muitos dos caminhos reconstituídos coincidem pelo menos parcialmente com caminhos existentes ainda hoje, como é possível notar na porção mais sudeste. Podemos observar também a existência de uma grande artéria de locomoção passando no eixo sudeste-noroeste, contornando o morro em que esta localizado o sítio Mirabela 8. Praticanmente todos os caminhos identificados e rotas reconstruídas se conectam com esta artéria, que parece ter funcionado como a principal artéria de deslocamento na área.

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Outro tipo de análise que os Sistemas de Informa-ção Geográfica oferecem dentro desta tentativa de fazer do SIG uma ferramenta de análise da percepção humana frente à paisagem a fim de modelar o comportamento humano são as chamadas análises de visibilidade.

Análises de Visibilidade identificam as áreas dentro de um determinado espaço que podem, ou não, serem vistas a partir de um ponto de observação. È possível determinar também de que localidades o ponto inicial pode ser avistado. Análises deste tipo são úteis principalmente quando se pretende determinar o campo de visão a partir de um dado ponto e se calcular as distâncias envolvidas. Em arqueologia, análises de visibilidade têm sido utilizadas na determinação do campo visual que os indivíduos a partir do assentamento e como se processava a interação entre as chamadas áreas visíveis e não visíveis da paisagem.

O mapa de visibilidade confeccionado a partir dos dados levantados durante os trabalhos de resgate levam em conta três fatores principais: elevação e inclinação do terreno e vegetação.

Analisando o mapa (Figura 2, Apêndice) podemos perceber que os sítios em geral possuem baixa visibilidade de entorno, e que poucos se conectam visualmente. De todos os sítios considerados o mais isolado é o sítio Mirabela 6, que ao mesmo tempo é o sitio mais denso e com o maior núme-ro de ocupações e restos materiais registrados. O sítio com maior alcance de visibilidade, que pode ser visto e observar concomitantemente todos os demais sítios na área é o sítio Mirabela 8.

Sua proeminência visual se dá principalmente pelo fato de estar o sítio localizado na porção mais alta da área, no topo de uma elevação. Tanto o sítio Mirabela 6 quanto o sítio Mirabela 8 são sítios tupi de alta densidade e que pro-vavelmente foram ocupados contemporaneamente. Dada a pequena distância entre eles, menos de 3.200 km, é possível que tenham feito parte do mesmo sistema de ocupação, fato

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esse reforçado pela clara existência de caminhos conectando ambos os sítios. Ao mesmo tempo o campo visual dos sítios Mirabela 1, 2 e 3 é praticamente o mesmo, o que se justifica pelo fato dos sítios praticamente se confundirem no tocante a sua localização, podendo se tratar de um único sitio como vimos acima. Já o sítio Mirabela 7, se mostra o como o sitio com a menor visibilidade entre todos os sítios analisados. Nenhum dos sítios pode ser visto a partir dele e ninguém no sitio pode avistar os demais sítios na área. Mas como vimos acima este isolamento é apenas aparente pois a existência dos caminhos e rotas conectam o sitio com os demais na área como ficou demonstrado anteriormente.

CONCLUSÃO

Como pudemos ver ao longo deste artigo, as análises em GIS oferecem um grande potencial de interpretação da paisagem. Longe de ser uma resposta definitiva para as pergun-tas sobre movimento, percepção, paisagem e principalmente interação, o SIG oferece a possibilidade de visualizarmos e testarmos modelos que nos auxiliam na interpretação das sociedades pretéritas. O suposto determinismo das análises de GIS em arqueologia, como vimos, depende em grande parte das concepções e bases metodológicas das pesquisas. Se pensarmos em paisagem como um espaço neutro e descontex-tualizado iremos inevitavelmente recair nas antigas posturas euclidianas de espaço que tanto dominaram a chamada ar-queologia processual.

Paisagem é um espaço formado por um fazer e apreendida por um olhar. Em nenhuma outra situação este fazer e olhar é mais evidente que no caminhar. Recriando as estruturas de movimentação dos grupos e indivíduos, acredi-tamos ser possível entender a maneira pela qual as sociedades como um todo percebem, atuam e interagem com o mundo a sua volta.

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MOVEMENT AND GIS: A PERCEPTION OF

LANDSCAPE

Abstract: in recent years it has grown considerably the use of so-called Geographic Information Systems as a tool of analysis in archeology. But all this popularity has been the target of criticism, especially those who consider a GIS analysis deterministic. The problem is not GIS but in the concepts behind the analysis that are commonly made. Most studies applying GIS in archeology uses a notion of space that is strictly Cartesian. This approach limits the analysis since it neutralizes and dehumanizes the space. In the following work we present an approach that uses aspects associated with perception and movement as an alternative to cognitive and contextual analysis in models of existing GIS in archeology today.

Keywords: Movement. Perception. Archaeology. GIS.

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* Professor do Instituto Goiano de Pré História e Antropologia (IGPA), Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Diretor Científico Griphus Consultoria.