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Movimento hippie consolidou rebeldia pacífica da geração de 1960 Guerra do Vietnã e histórico da geração beat moldaram os hippies. Drogas foram pano de fundo de encontros 'paz e amor'. Giovana Sanchez Do G1, em São Paulo Há exatos 40 anos, numa certa fazenda de Bethel, perto de Nova York, milhares de jovens se reuniram para cantar, dançar e manifestar o que mais queriam do mundo naquele momento: paz. O festival de Woodstock foi a celebração de um movimento que se tornou símbolo da geração de 1960 e 1970: os hippies pautaram a moda, a literatura e a música. E causaram muitos problemas para as autoridades. O contexto do surgimento do movimento era de desconforto e inconformismo geral. A guerra do Vietnã, o legado da geração beat e a psicodelia se misturavam com a popularização da pílula anticoncepcional e a formação de uma nova esquerda. Entre os jovens do mundo, e principalmente dos EUA, a sensação era de que algo precisava ser feito, e rápido, para mudar o mundo. A palavra hippie veio da palavra "hip", que em inglês significa "ligado, atualizado". "O movimento hippie tinha por objetivo rebelar-se contra os valores instituídos pela sociedade e através do descondicionamento, chegar à existência autêntica, embasada pela formação de uma 'nova consciência'", explica a historiadora e especialista em história social Patricia Marcondes de Barros, em entrevista ao G1. O momento era de efervescência. Os autores Ken Goffman e Dan Joy escreveram no livro "Contracultura Através Dos Tempos" que, nessa época, “novas filosofias eram concebidas com quase a mesma frequência que minissaias” e que, em muitos momentos, “parecia que alguma espécie de prisão psíquica tinha sido aberta e todos os jovens estavam tentando escapar de lá.” Os padrões sexuais da época ainda consideravam o sexo antes do casamento um tabu e, as moradias mistas, ofensivas. Desafiadores, os novos esquerdistas eram claros em seu desprezo a qualquer paradigma ou regra do tipo. E essa postura os transformou na coisa mais sensual do campi. “Enquanto a lógica militarista da Guerra Fria continuava firme na psique da maioria dos americanos durante o início da década de 1960, as soturnas tendências contraculturais autoritárias deixadas pela década de 1950 dos beatniks começaram a evoluir no sentido de um estilo mais alegre, absurdo”, escreveram Ken Goffman e Dan Joy. Enquanto isso, lojas vendiam colares, incenso e camisas indianas.

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Movimento hippie consolidou rebeldia pacífica da geração de 1960 Guerra do Vietnã e histórico da geração beat moldaram os hippies.

Drogas foram pano de fundo de encontros 'paz e amor'.

Giovana Sanchez

Do G1, em São Paulo

Há exatos 40 anos, numa certa fazenda de Bethel, perto de Nova York,

milhares de jovens se reuniram para cantar, dançar e manifestar o que mais

queriam do mundo naquele momento: paz. O festival de Woodstock foi a

celebração de um movimento que se tornou símbolo da geração de 1960 e

1970: os hippies pautaram a moda, a literatura e a música. E causaram muitos

problemas para as autoridades.

O contexto do surgimento do movimento era de desconforto e inconformismo

geral. A guerra do Vietnã, o legado da geração beat e a psicodelia se

misturavam com a popularização da pílula anticoncepcional e a formação de

uma nova esquerda. Entre os jovens do mundo, e principalmente dos EUA, a

sensação era de que algo precisava ser feito, e rápido, para mudar o mundo. A

palavra hippie veio da palavra "hip", que em inglês significa "ligado, atualizado".

"O movimento hippie tinha por objetivo rebelar-se contra os valores instituídos

pela sociedade e através do descondicionamento, chegar à existência

autêntica, embasada pela formação de uma 'nova consciência'", explica a

historiadora e especialista em história social Patricia Marcondes de Barros, em

entrevista ao G1.

O momento era de efervescência. Os autores Ken Goffman e Dan Joy

escreveram no livro "Contracultura Através Dos Tempos" que, nessa época,

“novas filosofias eram concebidas com quase a mesma frequência que

minissaias” e que, em muitos momentos, “parecia que alguma espécie de

prisão psíquica tinha sido aberta e todos os jovens estavam tentando escapar

de lá.”

Os padrões sexuais da época ainda consideravam o sexo antes do casamento

um tabu e, as moradias mistas, ofensivas. Desafiadores, os novos esquerdistas

eram claros em seu desprezo a qualquer paradigma ou regra do tipo. E essa

postura os transformou na coisa mais sensual do campi.

“Enquanto a lógica militarista da Guerra Fria continuava firme na psique da

maioria dos americanos durante o início da década de 1960, as soturnas

tendências contraculturais autoritárias deixadas pela década de 1950 dos

beatniks começaram a evoluir no sentido de um estilo mais alegre, absurdo”,

escreveram Ken Goffman e Dan Joy. Enquanto isso, lojas vendiam colares,

incenso e camisas indianas.

Entre os muitos grupos de contracultura da época estavam os diggers - o nome

vinha do movimento rural inglês do século 17 contra a propriedade privada.

Eles acreditavam que o espaço da rua era essencial para interações e, para

festejar a cultura hippie, promoveram em 1967 um evento chamado “Human

Be-In”, divulgado como “reunião de tribos”, que reuniu 15 mil pessoas no

Parque Golden Gate, no distrito Haight-Ashbury, em São Francisco, Califórnia.

Naquele ano, o “verão do amor” reuniu dezenas de milhares de jovens na

região. Segundo os autores Ken Goffman e Dan Joy, “o que os garotos

perdidos encontraram na „Capital do Sempre‟ foi comida insuficiente,

alojamento insuficiente, um núcleo superlotado de filósofos de rua hippies que

só podiam oferecer conforto e conselhos, e muitas drogas.”

Viagens e viagens

Um dos pilares do movimento era o uso do maior número possível de

diferentes tipos de drogas. Em 1962, por pressão da agência de inteligência

dos EUA (a CIA), a Universidade de Harvard dispensou os pesquisadores

Richard Alpert e Timothy Leary, que faziam estudos sobre substâncias

alucinógenas. A demissão gerou uma onda de rebeldia e despertou o interesse

de muitos estudantes.

Um grupo de jovens se reuniu e escreveu a declaração de Port Huron,

manifesto que definiu uma nova orientação de esquerda radical americana. O

texto dizia, entre outras coisas: “Nós somos pessoas dessa geração, criados

em conforto modesto, agora instalados nas universidades, olhando

desconfortavelmente para o mundo que herdamos. [...] Solidão,

estranhamento, isolamento descrevem a enorme distância que há hoje entre os

homens. Essas tendências dominantes não podem ser superadas por uma

melhor administração pessoal nem por aparelhos melhorados, mas apenas

quando o amor do homem supera a adoração idólatra das coisas pelo homem.”

Os governos empreendiam batalhas contra o LSD, popularizado em letras de

músicas. Logo começaria a repressão. “Em 1966, esse carnaval descontrolado

de jovens selvagens estava começando a preocupar as autoridades,

especialmente nos EUA. Para começar, segundo o FBI, eles eram

aproximadamente mil fugitivos juvenis [...] se jogando em festas selvagens por

toda a noite, com loucas luzes piscando, nudez, sexo, Hell‟s Angels e cada vez

mais gente balbuciando besteiras cósmicas”, escreveram Goffman e Joy.

Uma reportagem da revista Time de 1967 citava um diretor de saúde pública de

São Francisco dizendo que a cidade estava gastando US$ 35 mil por mês com

tratamentos antidrogas para os mais de 10 mil habitantes hippies.

Em maio de 1968, Paris explode em greves e manifestações. A morte de

Martin Luther King piorou o clima entre os proeminentes movimentos pela luta

de direitos para os negros. Nos EUA, conflitos foram registrados em 125

cidades; 40 pessoas foram mortas e mais de 20 mil presas.

Legado hippie

"Nós, nos anos 1960, antecipamos muitas das coisas que temos hoje, como a

luta pelos direitos civis, pelos direitos das mulheres, a yoga. O movimento não

acabou. Eu ainda moro numa comunidade hippie com as pessoas que conheço

há 35 anos. Nós estudamos, trabalhamos, como todo mundo. E hoje o mundo

sofre com o materialismo novamente", disse em entrevista ao G1 o jornalista

John McCleary, autor de "The Hippie Dictionary" - inédito em português.

Segundo a historiadora Patricia Marcondes de Barros, o movimento e suas

principais manifestações foram absorvidos pela tecnocracia. "O próprio teor

crítico com o qual o movimento buscou enfrentar o sistema acabou se

banalizando sob a forma de produtos a serem vendidos e consumidos,

alimentando a estrutura empresarial que se formou em torno de antigos

slogans revolucionários."

Mas, para ela, o legado hippie vai muito além das camisetas tie-dye. "A

contracultura sessentista foi muito além do “verão do amor”. Sua

ressignificação faz-se necessária para entendermos a amplitude e a

importância do movimento. Houve, através dele, a inclusão dentro da história

social das chamadas “minorias”: negros, mulheres e homossexuais. Também

foi importante quanto aos assuntos tão em voga atualmente, como ecologia e

sustentabilidade.

(www.g1.globo.com. Acesso em 11/02/2012)