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Música Brega: crítica social e política nas canções de Odair José Rafael Vasconcelos Cerqueira Oliveira [email protected] NPEC – Núcleo de Pesquisa em Estudos Culturais O presente trabalho busca estender uma discussão iniciada na obra de Paulo Cesar de Araújo – Eu não sou cachorro, não: música cafona e ditadura militar lançada em 2007, editora Record – RJ. Na obra o autor nos apresenta diversos cantores “brega” e indica uma participação política ativa no contexto social brasileiro entre os anos 60 e 80 destes artistas. A discussão provoca uma revisão documental dos arquivos existentes e uma rediscussão por parte dos historiadores e pesquisadores da canção, e sua relação com a ditadura militar. Este trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento, mas as fontes documentais tratadas até o momento nos apontam para uma posição contraria a apresentada pela historiografia precisando ser comprovada. Entretanto, este trabalho, diferentemente do livro de Araújo, que fez um levantamento geral do citado campo musical, coloca para discussão apenas canções do compositor Odair José, um dos artistas mais censurados da música brasileira, mas que é sempre tido como um cantor “alienado”. Vamos discutir através dos processos existentes no (DCDP), presentes no Arquivo Nacional (AN) em Brasília e no (SCDP), disponíveis no AN no Rio de Janeiro, observando as justificativas fornecidas pelos censores enquanto argumento para o veto ou liberação de determinada canção, como estas canções e artistas sofreram censura política. Para tanto, considero os discursos dos técnicos federais da censura do DCDP e SCDP, no período militar, investigando o discurso enquanto prática político-ideológica, entendendo-o como apresentado por Fairclough, como sendo aquele que: [...] estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, neutraliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. (FAIRCLOUGH, 2001:94) Assim compartilho da afirmativa de Kushnir de que toda censura é política, portanto, diverge da ideia de divisão na censura entre moral e política. Perceber Odair José como um dos marcos da canção brasileira e perceber que muito além do rótulo de “alienada”, suas canções dispunham de uma crítica social e política forte, mas que por muito foi negado pela historiografia. Toda essa lacuna existente se pauta inicialmente pelo fato que neste período a “MPB” esteve fortemente ligada a uma elite nacional, formada por um público “jovem, universitário e de esquerda” (NAPOLITANO, 2001: 1), e que excluía outros segmentos da música brasileira, a exemplo dos artistas da Jovem Guarda e os cantores “Cafona/Brega”, pois estes não atuavam politicamente com suas canções. Ao contrário de muitos estudos, coloco os artistas da Jovem Guarda e da música “brega” no “hall’ da “MPB” por entender que os artistas “politicamente engajados” ou “cantores de protesto” não atendiam a uma demanda real da sociedade, era um núcleo restrito da população brasileira”. A “MPB designaria uma música mais refinada, adulta, pronta para o consumo das elites [...]” (SALDANHA, 2008: 8) Palavras-Chaves: Ditadura Militar, Censura e Música Popular Brasileira. “Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”. (LE GOFF, 1994) A Música Popular Brasileira deve ser compreendida em sua plenitude como a representação daquilo que se produz dentro do território nacional e que contemple necessariamente o que é tido como popular e não como

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Música Brega: crítica social e política nas canções de Odair José Rafael Vasconcelos Cerqueira Oliveira [email protected] NPEC – Núcleo de Pesquisa em Estudos Culturais

O presente trabalho busca estender uma discussão iniciada na obra de Paulo Cesar de Araújo – Eu não sou cachorro, não: música cafona e ditadura militar lançada em 2007, editora Record – RJ. Na obra o autor nos apresenta diversos cantores “brega” e indica uma participação política ativa no contexto social brasileiro entre os anos 60 e 80 destes artistas. A discussão provoca uma revisão documental dos arquivos existentes e uma rediscussão por parte dos historiadores e pesquisadores da canção, e sua relação com a ditadura militar. Este trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento, mas as fontes documentais tratadas até o momento nos apontam para uma posição contraria a apresentada pela historiografia precisando ser comprovada. Entretanto, este trabalho, diferentemente do livro de Araújo, que fez um levantamento geral do citado campo musical, coloca para discussão apenas canções do compositor Odair José, um dos artistas mais censurados da música brasileira, mas que é sempre tido como um cantor “alienado”. Vamos discutir através dos processos existentes no (DCDP), presentes no Arquivo Nacional (AN) em Brasília e no (SCDP), disponíveis no AN no Rio de Janeiro, observando as justificativas fornecidas pelos censores enquanto argumento para o veto ou liberação de determinada canção, como estas canções e artistas sofreram censura política. Para tanto, considero os discursos dos técnicos federais da censura do DCDP e SCDP, no período militar, investigando o discurso enquanto prática político-ideológica, entendendo-o como apresentado por Fairclough, como sendo aquele que: [...] estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, neutraliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. (FAIRCLOUGH, 2001:94) Assim compartilho da afirmativa de Kushnir de que toda censura é política, portanto, diverge da ideia de divisão na censura entre moral e política. Perceber Odair José como um dos marcos da canção brasileira e perceber que muito além do rótulo de “alienada”, suas canções dispunham de uma crítica social e política forte, mas que por muito foi negado pela historiografia. Toda essa lacuna existente se pauta inicialmente pelo fato que neste período a “MPB” esteve fortemente ligada a uma elite nacional, formada por um público “jovem, universitário e de esquerda” (NAPOLITANO, 2001: 1), e que excluía outros segmentos da música brasileira, a exemplo dos artistas da Jovem Guarda e os cantores “Cafona/Brega”, pois estes não atuavam politicamente com suas canções. Ao contrário de muitos estudos, coloco os artistas da Jovem Guarda e da música “brega” no “hall’ da “MPB” por entender que os artistas “politicamente engajados” ou “cantores de protesto” não atendiam a uma demanda real da sociedade, era um núcleo restrito da população brasileira”. A “MPB designaria uma música mais refinada, adulta, pronta para o consumo das elites [...]” (SALDANHA, 2008: 8)

Palavras-Chaves: Ditadura Militar, Censura e Música Popular Brasileira.

“Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”.

(LE GOFF, 1994)

A Música Popular Brasileira deve ser compreendida em sua plenitude como a representação daquilo que se

produz dentro do território nacional e que contemple necessariamente o que é tido como popular e não como

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ocorreu entre os anos 60 e 80, e que ainda se reflete na contemporaneidade, de que tal classificação se

destinava somente aos cantores que tratavam da pauta “política” dos movimentos sociais, tais como a União

Nacional dos Estudantes (UNE) e os Centros Populares de Cultura (CPC), de nada tinha de popular, apenas

promoviam eventos dos artistas tidos como “politicamente engajados”. Entretanto, essa classificação de não

atuantes, de alienados, destinados aos artistas “cafona/brega” era pautada por diretrizes estabelecidas dentro

do CPC que concebiam apenas como políticos aqueles artistas ligados as Universidades e que tinham em

seu texto uma linguagem rebuscada, crítica, que bebeu da fonte da Bossa Nova com o sentimento de

brasilidade, estabelecendo com isso uma luta político social com o regime civil-militar instaurado em 1964,

colocando-a como uma cultura superior, em detrimento da cultura popular. Assim sendo:

“Entender a cultura da música de protesto da MPB, como cultura popular, onde esta

trabalha intrinsecamente com crítica política social oriunda da classe média, com um

público intelectualizado seria um erro” (OLIVEIRA, 2008)

Vale ressaltar que muitos historiadores contribuíram para a ideia de uma MPB politizada a exemplo da obra:

Música Popular: de olho na fresta, de Gilberto Vasconcellos, onde o autor classifica compositores da MPB

de “malandros” e os cafonas de “picaretas”, assim ficou desenhado a ligação dos artistas: Malandros

(Resistência) x Picaretas (Conformismo Social). Embora o destaque seja sempre creditado ao engajamento

político social, a disputa no campo da repressão moral se apresentava com a mesma eficácia, mas o que não

significa dizer que são objetos diferentes, muito pelo contrário, a ligação é muito mais direta do que se

imagina.

Nesse sentido é importante perceber que a canção “cafona/brega” era entendida como uma cultura menor,

subalterna, destinada aos estratos da sociedade. Tanto sim, que no inicio chegou a ser classificada como

“música de empregada”, ligando diretamente ao seu público consumidor, o que nos mostra claramente a

exclusão social a qual este segmento musical foi alocado. Assim é interessante pontuar a ideia de cultura

popular aqui tratada, pois a entendo como apresentado por Roger Chartier que: “[...] concebe a cultura

popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente

alheia e irredutível à da cultura letrada”, e foi justamente neste contexto que atuaram os artistas da música

“cafona/brega”.

Assim: Quando se fala na cultura popular, não enquanto manifestação dos explorados, mas enquanto cultura dominada tende-se a mostrá-la como invadida, aniquilada pela cultura de massa e pela indústria cultural, envolvida pelos valores dos dominantes, pauperizada intelectualmente pelas restrições imposta pela elite” (CHAUÍ, p.7)

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Esse “esquecimento” é algo proposital, pois não se podia conceber, dentro da lógica trabalhada pelo CPC,

que era justamente a busca da brasilidade, do sentimento de pertencimento e luta por um país de igualdades

sociais que canções desprovidas deste enfoque fossem divulgadas e classificadas como músicas

representativas da MPB. A canção brega atendia as demandas de um público muito maior, que tinham

aflições outras que não apenas o fato de estar sendo perseguido pelo regime, entretanto, isso não invalida

sua atuação e significância. Tal fato é representado na fala de Odair José, quando este afirma que:

“O que rolava antigamente na música popular brasileira era o namoro no portão sob a luz do luar” – diz ele – “e eu vim falando de cama, de pílula, de puta, de empregada doméstica, porque essa é a realidade do Brasil. E eu sou um cantor de realidade. Eu não sou um cantor de sonhos. Eu sempre digo isso para as pessoas: não ouçam meus discos esperando ouvir sonhos; vocês vão ouvir realidade. Então foi por isso que eu me tornei um artista polêmico e a censura começou a me proibir”. (ARAUJO, 2007, p.57).

A música ela não pode ser desclassificada por outro que a considera fora daquilo que concebeu enquanto

discussão, pois: “[...] a canção é uma expressão artística que contém um forte poder de comunicação,

principalmente quando se difunde pelo universo urbano, alcançando ampla dimensão à realidade social.”

(MORAES, 2000). Nesse sentido, a chamada MPB “politizada” não atendia essa ampla dimensão social,

estes artistas não contemplavam as discussões que circulavam nas ruas do país.

“[...] esta vertente da nossa música romântica tem sido sistematicamente esquecida pela historiografia da música popular brasileira. Nas publicações referentes à década de 70, de maneira geral são focalizados nomes como os de Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Milton Nascimento, e discos como “Sinal Fechado”, “Falso Brilhante” e “Clube da Esquina”, todos, sem dúvida, representativos, mas que na época eram consumidos por um segmento mais restrito de público, localizado na classe média. O que a maioria da população brasileira ouvia eram outras vozes e outros discos” (ARAUJO, 2007, p.15-16)

Não quero dizer com isso que desconsidero tudo o que foi feito e produzido por estes compositores e

cantores, muito pelo contrário, reconheço o papel de relevante contribuição dada à luta pela liberdade do

país do regime civil militar de 1964. Coloco aqui somente um novo olhar sobre essa afirmação de que os

artistas brega não atuaram de forma política.

“[...] em qualquer trabalho de arte, uma escolha estética não se desprende da influência do período histórico ao qual foi criada, porque esta escolha resulta da maneira como o individuo compreendeu a realidade naquele determinado momento.” (SOUSA, 2004, p. 4-5)

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As canções de Odair José, bem como de outros compositores vão abordar discussões que não fazem parte do

mote temático dos artistas “politicamente engajados”, mas que não significa afirmar que não pertença a este

“seleto” grupo. Digo isso reforçando a ideia de que não pode se dissociar a ação da censura enquanto

política e moral, pois assim sendo, deveremos então manter a ideia de uma divisão do conceito de MPB, o

que no entendimento aqui trabalhado não se aplica.

A obra Araújo vai apontar 3 aspectos importantes nestes compositores que reforçam a ideia de participação

político social:

“Em primeiro lugar, a mensagem de suas canções: grande parte delas traz a denúncia do autoritarismo e da segregação social existente no cotidiano brasileiro. O segundo aspecto é a relação entre esta produção musical e o momento histórico: a maioria de seus autores e intérpretes alcança o auge do sucesso entre 1968 e 1978, período de vigência do Ato Institucional nº. 5, sendo também proibidos e intimados pelos agentes da repressão do regime. E o terceiro aspecto, a origem social do público e dos artistas: ambos os oriundos dos baixos estratos da sociedade [...]” (ARAÚJO, 2007, p. 16)

Estes aspectos apontados pelo autor demonstram claramente o papel desenvolvido por estes artistas no

campo de disputa política e social no Brasil nos anos de regime civil-militar, pois como os próprios

processos no DCDP apontam a preocupação política dos censores com estas canções, pois “em muitas das

letras do repertório “cafona” se revelam pungentes retratos da nossa injusta realidade social” (ARAÚJO,

2007, p. 18), o que deixa claro a participação social destes sujeitos.

Contrariamente aos artistas “politicamente engajados” que tinham formação no nível superior, os artistas

brega, salvo Luiz Ayrão, não possuíam essa instrução educacional. Odair José sendo um desses se valeu de

sua proximidade das classes populares para que sua canção atingisse o maior número de pessoa e levasse até

elas a sua visão da realidade que recaia sobre o país nos anos de chumbo. Assim, este lançou canções que se

tornaram clássicos da MPB, não pela vontade dos críticos e pesquisadores, e sim pelo gosto popular.

Canções como Na minha opinião (1975) “Na minha opinião / o importante é se querer / assinar papel pra

que,

isso não vai prender ninguém / eu conheço tanta gente / que pelas leis estão casados / na verdade nem se

falam / dormem em camas separadas”. Esta canção vai discutir um ponto crucial para a sociedade brasileira

nos anos 70, que era instituição casamento, mas que existia um tabu sobre tal discussão, que foi quebrado

em termos discursivos por esta canção. O casamento era e ainda é tido como uma instituição sagrada pela

Igreja, que não admitia nenhuma afronta as suas determinações. Mas, observando essa necessidade de se

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falar deste assunto, Odair José nos

versos citados acima colocar em

discussão a validade do matrimônio

como instituição intocável. Tal

questionamento vai provocar o

confronto direto deste artista com a

Igreja, entretanto este não será o único

confronto. A cópia do processo ao

lado (Figura 1) vai exemplificar muito

claramente o posicionamento do

Estado diante da questão, atendendo a

solicitação e a estreita relação deste

com a Igreja, instituição esta, que no

momento inicial do golpe militar apoio

toda a movimentação, o SDCP e

DCDP optaram pelo veto da canção

(justificando-se no 3º parágrafo do

parecer) por entenderem que “a

preferência do autor já se faz notória,

quando se define, flagrantemente, por causas antissociais, desdenhando de valores morais achincalhando

instituições”.

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O parecer é continuado na página que segue

(Figura 2) onde o censor vai argumentar seu

veto apontando os trechos que classificou

como incongruentes com a política social

brasileira. Neste parecer o censor vai

apresentar o seguinte trecho “quero que o

mundo se dane / se você me quiser / Quero

que você não me engane / sendo minha

mulher”. A argumentação do censor segue

da seguinte forma: “O primeiro verso desse

estribilho manda, sem dúvida, às favas as

leis e convenções sociais”. Em uma

segunda leitura ele prossegue assim: “Ora, a

instituição casamento – isto é ocioso dizê-lo

– está consagrada como um dos mais altos

valores éticos e culturais de nosso povo e,

principalmente, do povo de nosso estado,

cuja tradição familiar de ver suas filhas

casadas perante Deus e perante os homens ainda se conserva praticamente intacta”.

Uma canção que repercutiu positivamente na carreira de Odair José foi: Eu vou tirar você desse lugar, -

“Olha... A primeira vez que eu estive aqui / Foi só pra me distrair / Eu vim em busca do amor Olha.. / A

segunda vez que eu estive aqui / Já não foi pra distrair / Eu senti saudade de você / Eu vou tirar você desse

lugar / Eu vou levar você pra ficar comigo / E não interessa O que os outros vão pensar”. Esta canção trata

de um envolvimento amoroso de um cliente e uma prostituta, tal relação se torna tão real na vida deste

cliente que o mesmo resolve tirá-la daquela “vida”, uma vida cheia de prostituição, mesmo que pra isso ele

tenha que enfrentar problemas, que o mesmo já cita conhecer. Tal discussão nos anos 70 não foi muito bem

vista pelos olhos da censura, bem como também da própria Igreja, mas Odair José, nada mais fez do que

retratar o que ocorria nos prostíbulos das grandes e pequenas cidades do Brasil, mas que nenhum outro

artista teve a coragem de dizer da forma como foi colocada.

A canção, Viagem (1975), - “Venha comigo na minha viagem/ não se preocupe eu tenho as passagens/ ... /

sei que você tem vontade/ mas de repente o medo lhe invade/ e você não vem/ ... / quero colocar na sua

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mente uma luz/ acabar de uma vez com os tabus/ que um

dia inventaram pra gente...”, foi mais uma das grandes

discussões proposta por Odair José. É interessante citar que

esta canção não é muito conhecida pelo público, mas

coloca em debate algo sério na época: as drogas. Relevante

comentar também que esta discussão causa até certa

estranheza a quem tem acesso, pois um artista brega e

“alienado” não deveria discutir temas como este em plena

década de 70, mas ele o fez e brilhantemente.

Outro grave embate de Odair José com a Igreja Católica vai

se dá com a canção Cristo, quem é você? (1972) – “Na

sexta-feira santa eu lhe procurei / fui à sua casa / Mas lá

não lhe encontrei / Minha mãe dizia / Filho pode esperar /

Ele um dia volta / e o mundo vai salvar / Pra onde você foi?

/ Cadê a sua cruz? / Venha me dizer / quem é você Jesus?”.

Isso porque nesta canção a imagem, figura, ideia do Cristo

católico vai ser colocada em questão, e a censura

prontamente vai chamar o compositor a se explicar no DCDP.

Os motes temáticos de O. José eram os mais diversificados possíveis, pois a gama de assuntos que

assolavam as classes populares eram muitas, tinha-se o divórcio, o casamento, o homossexualismo e claro o

amor. Nessa temática, o compositor pregava o amor livre. A canção, Em qualquer lugar (1973) (Figura 3) –

“Se você quiser / A gente pode amar / No meio dessa gente / Em qualquer lugar / Dentro do meu carro / Ou

mesmo no jardim / Debaixo do chuveiro / Você sorri pra mim” – o compositor coloca justamente a prática

dessa liberdade de poder amar como, quando e com quem quiser. Entretanto esta canção foi mais uma das

censuradas e só foi gravada 12 anos depois, agora já com o título: Quando a gente ama, com toda a sua letra

alterada. Esta canção foi vetada pelo censor sob o seguinte argumento: “Texto descritivo de atitudes

comportamentais alusivas ao desejo sexual”.

Na canção Forma de Sentir (1978) “Sei que és entendido e vais entender/ que eu entendo e aceito a tua

forma de amor”, Odair vai trazer a discussão do homossexualismo. Vale lembrar que esta temática era muito

recorrente nas canções não só dele, mas como de diversos outros artistas da música “brega”.

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De todos os sucessos de Odair José, imagino que o

maior deles seja efetivamente Uma vida só (Pare de

Tomar a Pílula) (1973), (Figura 4) “Já nem sei há

quanto tempo /Nossa vida é uma vida só / E nada

mais / Nossos dias vão passando / E você sempre

deixando / Tudo pra depois / ... / Você diz que me

adora / Que tudo nessa vida sou eu / Então eu quero

ver você / Esperando um filho meu / Então eu quero

ver você / Esperando um filho meu / Pare de tomar a

pílula / Porque ela não deixa o nosso filho nascer”

Essa canção trouxe sérios problemas para o

compositor, não muito pela Igreja, mas, muito pelo

Estado, que neste momento desenvolvia uma

campanha de controle de natalidade e aparece esse

compositor tratando justamente da ação contrária à

campanha, o que causou a ira dos generais e a canção

tinha sido liberada, mas foi proibida de tocar nas

rádios, mesmo depois de ter sido gravado os discos.

Os embates de Odair José com a censura e com a Igreja foram inúmeros, chegando a torná-lo mais

censurado que o próprio Chico Buarque, tido como o ícone dos censurados no país. A briga entre Odair e a

Igreja foi tão forte, isso devido as suas diversas canções que falavam abertamente de situações cotidianas,

mas que batiam de frente com as determinações e dogmas religiosos, que o mesmo foi excomungado pela

Igreja católica, e tal fato gerou um dos seus belos discos que foi: “O Filho de João e Maria”.

Conclusão

O que se observa na pesquisa é que necessariamente existem indícios fortes dessa relação direta da canção

brega e atuação política sim, e que estes compositores necessitam desse reconhecimento da própria história

do país, pois os mesmo contribuíram sim para a liberdade político social do país e que não poderiam e nem

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devem ser renegados pela historiografia brasileira. É preciso rever todo o processo de negação desses

artistas e reservar o lugar deste na reconstrução da democracia no Brasil. É fato que a pesquisa ainda

encontra-se em andamento, novos processos estão sendo buscados, mas dizer que os artistas

“cafonas/bregas” eram alienados e não desempenhavam papel político no regime civil militar é no mínimo

desconsiderar os documentos existentes que nos apontam o caminho contrário.

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