msica em conserva

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    Revista Auditrio, Instituto Auditrio Ibirapuera, So Paulo, 2011, pp 160-183

    http://www.auditorioibirapuera.com.br/wp-content/uploads/2011/08/Revista_Auditorio.pdf

    Msica em conserva(*)

    Jos Geraldo Vinci de Moraes (*)

    Cac Machado(**)

    Ouvir e escutar o passado nunca foram tarefas simples. Isso porque sons e

    msicas so elementos que se fazem e se manifestam no tempo: o seu desaparecimento

    acontece quase no mesmo instante de sua apario. Assim, seus registros imediatos

    invadem e se assentam em primeiro lugar sempre na memria. Depois, ganham a forma

    da linguagem e da notao, para no perderem-se. Curioso que historiadores e

    historiografia diretamente interessados em conhecer e compreender o passado -

    raramente consideraram de maneira integral as possibilidades de se escutar essas

    sonoridades do passado e compreender como as sociedades criaram seus sistemas de

    produo de sons e regimes de escuta. Certamente o fato de o conhecimento

    historiogrfico ter construdo um paradigma de memria e de histria fundamentalmente

    centrado na linguagem escrita, colaborou de maneira decisiva para isso. Neste panorama,

    memrias como a oral e a auditiva se transformaram em algum momento em texto,

    criando dilemas e problemas s vezes difceis de serem superados. Do ponto de vista da

    construo do conhecimento, esse padro textual sustentado pelo ler-ver tornou-se o mais

    confivel nas tradies racionalistas e objetivadoras, sobretudo por sua incrvelcapacidade explicativa e analtica1. Essas mesmas condies descartaram aspectos do

    conhecimento humano, mais relacionados ao universo sensorial e das experincias

    sensveis. Histria e historiadores sempre estiveram mais prximos desse mundo textual

    do que do audvel (e outras experincias do mundo sensvel) e, conseqentemente, do

    (*) Este texto est baseado no captulo Msica en conserva. Memoria e Historia de la msica en BrasilVINCI DE MORAES, Jos Geraldo,MACHADO, Cac. en BRESCIANO, Juan La memoria histrica ysus configuraciones temticas. Una aproximacin interdisciplinaria. Montevideo, Ediciones Cruz del Sur,

    2011.(*) Historiador, professor doutor de Teoria e Metodologia da Histria da Universidade de So Paulo epesquisador CNPq. Autor de Sonoridades Paulistanas (Funarte, 1997), Metrpole em sinfonia (EstaoLiberdade, 2000), Conversas com historiadores brasileiros (Ed 34, 2002) e Histria e msica no Brasil,(Alameda, 2010).(**)Msico e Historiador, Diretor do Centro de Estudos do Auditrio Ibirapuera (SP). professor doutorconvidado da Universidade de So Paulo. Foi Diretor do Centro de Msica da Fundao Nacional dasArtes/MinC (2009/2010). Autor de O Enigma do Homem clebre: ambio e vocao de ErnestoNazareth (Instituto Moreira Salles, 2007) e Tom Jobim (Publifolha, 2008).1 - Fentress J. e Wickham, C.,Memria social. Lisboa, Ed. Teorema, 1992.

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    texto (e do contexto) ao invs da msica2. E mesmo quando se aproximaram da msica,

    ela foi confinada ao plano especialista da esttica, da linguagem e de uma dinmica

    temporal muito prpria - que, no entanto, no podem ser recusados.

    Para o historiador nunca foi fcil penetrar neste universo desconhecido e um

    tanto especfico da linguagem musical, uma vez que exige especializaes tcnicas muito

    estritas. A escrita registra a memria e a integralidade da criao sonora, mas no garante

    a forma de sua expresso e exposio em um tempo-espao determinado e muito menos

    sua recepo em quem escuta. Esse carter essencialmente performtico da msica mais

    um elemento que embaralha o trabalho da compreenso histrica. Talvez uma das

    maneiras de vencer esses limites impostos tanto pela memria e prtica evanescentes

    inseparveis, como pela complexidade da teoria e linguagem musical estrita, seja o

    historiador trabalhar com os registros escritos indiretos que comentam e tratam da

    msica. Certamente eles so determinantes para alcanar e compreender o pensamento

    musical de uma poca e, conseqentemente, aproximar-se dos sons produzidos e

    difundidos no passado. Deste modo, a msica no se constitui apenas como som, silncio

    e ritmo, mas tambm tudo aquilo que se escreve e se diz sobre ela, situando-se assim

    tambm no mundo textual e aparece como parte indissocivel da construo do mundo

    das idias e das culturas3.

    Porm, o desenvolvimento no sculo XX da msica em conserva 4

    materializada nos fonogramas significou impacto enorme nestas relaes e transformou

    profundamente os processos de memorizao, registro, divulgao, reproduo e

    recepo da msica, criando um novo mundo de sons, tcnicas, sociabilidades e escutas.

    Ao lado das inumerveis fontes escritas indiretas, os fonogramas surgem assim como

    recursos valiosos e mais acessveis para os historiadores chegarem aos sons do passado.

    2 - Embora vrios historiadores desde pelo menos a dcada de 1970 discutam essas possibilidades e j halguns anos debatam de modo sistemtico esse territrio indefinido, como o caso, p.ex., de Alain Corbin.Ver Do Limousin s culturas sensveis, InPara uma histria cultural, Lisboa, Ed. Estampa, 1998.3 - Fubini, Enrico.Esttica de la msica, Madrid, 2 ed., A. Machado Libros, 2004, pp. 23-26.4 - Entre o final do sculo XIX e inicio do XX a expresso era difundida para expressar o arquivamento dossons e msicas nos cilindros fonogrficos de cera e nos de pianola. Alm da conservao dos registros, aforma dos invlucros tambm colaborava para criar a imagem. Depois ela tambm serviu para designar aschapas e discos fonogrficos. Ver p.ex,. O Rio Musical. Revista litteraria, theatral e sportiva, N 17,setembro de 1922.

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    Porm, seria a associao de todos esses elementos, certamente em condies desiguais e

    distintas, a depender da poca, temtica e objeto abordado pelo historiador, o passo mais

    interessante e seguro para o historiador. Ele teria ento que proceder como um delicado

    luthier (...) que guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade dos sons e dos dedos5, para

    alcanar e recriar o sons e a msicas do passado 6.

    Alm das dificuldades de tratar com um objeto evanescente, a tecnicidade da

    linguagem musical e as suas fontes, campos do conhecimento prximos da Histria

    assumiram melhor durante dcadas a tarefa de compreender a construo, funcionamento

    e a difuso da msica nas sociedades. Elas surgiram no sculo XIX em razo do tardio

    ingresso da msica e dos msicos no universo do belo artstico, at ento restrito s

    artes visuais e plsticas. Assim, alm de ver de alguma maneira os homens procuravam

    escutar o mundo, mesmo que por caminhos epistemolgicos e metodolgicos um tanto

    oblquos do conhecimento positivo e do exagerado cientificismo.

    Evidente que todo esse processo acentuou a relativa surdez da Histria e dos

    historiadores e teve desdobramentos nas tentativas de escuta do passado. Essa condio

    perceptvel nas formas e nas instituies de registros e memria da msica e dos sons!

    preciso considerar sempre o alerta de Marc Bloch de que fontes e documentos no

    aparecem naturalmente ou como mgicas nos arquivos, acervos e bibliotecas: suas

    presenas dependem de causas humanas 7. Certamente toda essa dinmica gerou a

    conhecida ausncia dos registros de sons e msicas, sobretudo a iletrada de diversas

    origens e formas, nos arquivos e acervos. Esta uma condio cruel e dura para os

    historiadores de modo geral e para os brasileiros de maneira especial.

    certo que no perodo anterior ao ltimo quartel do sculo XIX impossvel

    pensar em formulaes e discursos a respeito de uma msica popular e,

    conseqentemente, em sua memria e preservao. As problemticas em torno da

    existncia de uma cultura e de uma msica popular comeavam a se apresentar naEuropa nesta poca. E estavam intimamente vinculadas s demandas nacionais mais

    5 - Bloch, Marc.Apologia da Histria. Ou o ofcio de historiador, RJ, Jorge Zahar Ed. 2001, pp. 54-55.6 - Essa discusso est presente de modo mais aprofundado In Moraes, Jos Geraldo Vinci e Saliba, EliasThom. O historiador, o luthiere a msica. In Histria e msica no Brasil. So Paulo: Alameda, 20107 - Bloch, Marc.Idem, p. 65-6.

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    gerais e fortemente marcadas pelo Romantismo. Elas estavam sendo concebidas do ponto

    de vista cultural e conceitual, e o folclore era quem exercia esse papel inventivo: assim, a

    cultura e a msica do povo comeam a ser compreendidas nesses contornos. E o

    principio bsico e urgente do trabalho com essa memria e seu registro, foram

    profundamente marcados pela idia de salvar a casa em chamas diante do avano

    avassalador do Estado Nacional homogenizador e do mundo moderno e urbano. Assim,

    aqueles que se preocupam neste perodo com o resgate e a preservao da memria e a

    construo da histria da msica, vem e escutam esse universo dividido entre a msica

    artstica que retrata a evoluo linear da tonalidade e do gnio criador - e a do povo

    autntica, pura e base original das nacionalidades!

    Primeiras escutas e narrativas da msica no Brasil

    As primeiras reflexes sobre a msica praticada no Brasil nascem no sculo

    XIX respirando justamente esse oxignio mental e cultural mencionado. Porm, por aqui

    essa problemtica enfrentou outros obstculos j que a questo nacional ainda estava mal

    resolvida e tratada ironicamente como uma florzinha tenra 8. Mesmo que regada lenta

    e cuidadosamente durante o Segundo Imprio (1841-1889), ramos ainda, segundo

    Tobias Barreto (1839-1889), somente um Estado, mas no (...) uma Nao. Para

    alcanar esse segundo e mais importante estgio, certas prticas e tradies precisavam

    ser inventadas social e culturalmente para alm dos elementos unificadores da lngua

    (portuguesa) e da religio (catlica). Ocorre que identidade brasileira permanecia

    completamente indefinida na sociedade escravista, com fortes caractersticas mestias,

    mas regida por uma elite inteiramente indiferente a elas. Sem uma identidade nacional

    consolidada, tornava-se impossvel pensar em uma arte e uma msica nacional.

    precisamente nesses limites que Mrio de Andrade (1893-1945) identificou que no sculo

    XIX no tnhamos ainda uma msica brasileira e uma msica artstica de carter

    nacional, mas apenas uma msica tnica e interessada9.

    8 - Mello, Evaldo Cabral de, Fabricando a nao, In Um imenso Portugal. Histria e historiografia, SP, Ed34, pp15-23.9 - Andrade, Mrio de.Ensaios sobre a Msica Brasileira, Livraria Martins Editora, SP, 1962.

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    Apesar desses limites, surpreendente como a msica - sobretudo a

    popular - gradativamente foi ocupando lugar central na formao de uma comunidade

    imaginada como brasileira. De vrias maneiras, nas primeiras dcadas do sculo XX ela

    j era elemento cultural importante, assumindo certa centralidade na formao e

    caracterizao cultural e social da idia de brasilidade. E no decorrer do sculo se

    transformou em item crucial para identificao e compreenso tanto interna do que era

    ser brasileiro, como tambm configurou as singularidades que nos identificavam diante

    das outras naes.

    No sem razo, portanto, que a msica popular no Brasil tem sido

    considerada nos ltimos tempos um pea chave para a compreenso da sociedade

    brasileira contempornea e, por isso, tm se multiplicado exponencialmente os estudos

    em torno dela. Certamente Mrio de Andrade (1893-1945) foi o primeiro que se

    preocupou com essa questo de maneira sistemtica e profunda, contribuindo ao mesmo

    tempo para formar vrios dos rudimentos da brasilidade e da alma nacional que

    permaneceram no tempo e serviram para construir elementos da comunidade

    imaginada como brasileira10.

    Algumas tradies oitocenistas

    Antes do musiclogo modernista certa tradio folclorista tambm se

    preocupou com os estudos da msica, exclusivamente a popular, para compreender a

    identidade nacional em formao. Autores como Mello Morais (1844-1919), Silvio

    Romero (1851-1914) e Alexina Magalhes Pinto (1870-1921) entre outros comearam a

    pensar as tradies nacionais levando em conta a msica, contribuindo de vrias

    maneiras para esboar certo pensamento cultural em torno dela. Os trabalhos dos dois

    crticos so mais conhecidos e tem aquele perfil oitocentista de recolha e compilao da

    cultura popular 11, quando essas atividades eram parte fundamental da crena

    folclorista de formao da alma nacional. Mas claro que elas serviram tambm de base

    para elaborarem os discursos to caractersticos do perodo sobre a nacionalidade,

    10 - Anderson, Benedict, Comunidades imaginadas, SP, Cia das Letras, 2008.11 - Romero, Silvio. Cantos populares do Brasil. Tomo I, RJ, Livraria Jos Olmpio Ed, 1954 e Filho,Mello Moraes.Festas e tradies populares do Brasil, BH/SP, Ed. Itatiaia/Edusp, 1979.

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    sobretudo no caso de Silvio Romero. J Alexina, enquanto viveu, teve papel secundrio e

    sempre tributrio gerao anterior. No entanto, a importncia de seu trabalho, tambm

    fundado na coleta de canes infantis destinada formao da grande pera lrica

    nacional12

    , como metfora da identidade nacional, pode ser medida pela presena de

    sua obra como fonte central para elaborao, entre 1932-36, do Guia Prtico sob

    responsabilidade de Villa Lobos13. Poderoso instrumento musical institucional, o Guia foi

    determinante durante dcadas para a compreenso do que era a cultura nacional e a

    divulgao de sua msica original e autntica. Tornado obrigatrio nas escolas de

    msica e tambm no ensino fundamental durante dcadas, ele preservou, divulgou, mas,

    sobretudo, construiu e consolidou a memria musical nacional e uma percepo do que

    era ser brasileiro. Geraes de crianas e jovens conheceram e cantaram e ainda

    permanecem cantando e memorizando - Terezinha de Jesus, O cravo, Cai-cai

    balo, Nesta rua, entre dezenas de outras canes, estabelecendo no apenas um

    repertrio musical, mas principalmente uma memria cultural nacional singular. Nesse

    processo de naturalizao da memria musical, ela assume caractersticas quase

    atvicas!

    Porm, curioso notar que antes destes primeiros folcloristas brasileiros e

    nacionalistas, foi um estrangeiro quem deu passo importante no sculo XIX para a

    construo de certa percepo de algumas de nossas singularidades nacionais, com

    repercusses no universo musical. O naturalista bvaro Carl Friedrich Philipe Von

    Martius (1794-1868) chegou ao Brasil em 1817 junto com a misso cientfica que

    escoltava D. Leopoldina, futura esposa de D.Pedro I. Acompanhado do zologo Johan B.

    Spix ele viajou por grande parte do Brasil at 1820, recolhendo e classificando inmeros

    aspectos da natureza e da sociedade colonial. Baseado nos relatos dos dirios da longa

    excurso ele escreveu a obra Viagem pelo Brasil (Reise in Brasilien)14, iniciada a 4 mos

    at a morte do colega em 1826. Nela ele descreve aspectos da natureza e da vida colonial

    que durante o Segundo Reinado serviram para fixar uma imagem fsica e social do Brasil,

    mas tambm de certa escuta muito prpria da sociedade. Como era comum na escrita dos

    12 - Pinto, Alexina de Magalhes. Cantiga das crianas e do povo e danas populares, 1916, pg.913 - Villa-Lobos, Heitor, Guia Prtico. 4 volumes, RJ, ABMFunarte, 2009.14 - Martius, C. F.P. Von e Spix, J.B. Viagem pelo Brasil, 3 volumes, BH/SP, Ed. Itatiaia/Edusp, 1981

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    viajantes, desde Jean de Lery (que deixou o primeiro registro musical da msica indgena

    do sculo XVI 15) as descries das inmeras festas e manifestaes musicais destacavam

    os exotismos. A grande diferena de seu trabalho que, alm dos relatos criteriosos e

    minuciosos, a edio original de 1831 contava com anexo musical contendo partituras de

    cantigas, modinhas e lundus recolhidos em vrias regies, alm de catorze melodias

    indgenas coletadas na Amaznia. Violinista com formao amadora, ele no se separou

    do instrumento mesmo durante a viagem pelo Brasil16. Essa condio permitiu-lhe

    transcrever para o pentagrama parte daquilo que escutou no percurso amaznico. As

    melodias das tribos amaznicas registradas so consideradas at hoje nicas e legtimas

    fontes da msica indgena do sculo XIX17.

    Como se v, Martius colabora de modo direto como fonte legtima para a

    formao de um dos primeiros acervos da msica do povo e compor a escuta do Brasil

    em momento decisivo de formao de sua identidade. Contudo, talvez a maior

    contribuio dele para a compreenso do Brasil no estava relacionada diretamente com o

    universo musical. Em 1840 ele apresentou em concurso do Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro uma monografia intitulada Como se deve escrever a Histria do

    Brasil. Pela primeira vez um texto sobre a Histria do Brasil e a formao do povo

    brasileiro era problematizado a partir da conhecida frmula tnica ternria, composta por

    brancos, ndios e negros18

    . Martius indicou que a contribuio central era a portuguesa(branca, portanto), simbolizada no rio caudaloso que recebe participao dos

    afluentes, os ndios e negros. O naturalista bvaro destacou ainda o papel da

    miscigenao na sociedade brasileira, que surgida na classe baixa tendia a expandir-se

    para as superiores. Ainda de acordo com ele, esta mescla era um destino

    estabelecido pela providncia e, de modo inexorvel, j pertencia Histria

    Universal19. Essa sua compreenso da sociedade brasileira de meados do sculo XIX

    foram importantes em um perodo que a elite (branca) era inteiramente avessa a essas

    15 - Lery, Jean de. Viagem terra do Brasil. BH/SP, Ed. Itatiaia/Edusp, 1980, p. 16216 - Lisboa, Karen M.A Nova Atlntida de Spix e Martius : natureza e civilizao na Viagem pelo Brasil(1817-1820). SP. Hucitec, 1997.17 - Kieffer, Anna M. Viagem pelo Brasil, LP, Estdio Eldorado/Akron, 1990.18 - Martius, C. F.P. Von, Como se deve escrever a histria do Brasil, In O estado do direito entre osautctones do Brasil, SP/BH, Livraria Itatiaia Ed./EDUSP, 1982, pp. 85-107.19 -Idem,p. 88 e 104.

    http://open_window%28%22http//200.144.190.234:80/F/P8GQG8R7UIYDJCKT47CU47ISNKPVBC7796FLRBR3AMX6M3P6SH-00551?func=service&doc_number=000964668&line_number=0012&service_type=TAG%22);http://open_window%28%22http//200.144.190.234:80/F/P8GQG8R7UIYDJCKT47CU47ISNKPVBC7796FLRBR3AMX6M3P6SH-00551?func=service&doc_number=000964668&line_number=0012&service_type=TAG%22);http://open_window%28%22http//200.144.190.234:80/F/P8GQG8R7UIYDJCKT47CU47ISNKPVBC7796FLRBR3AMX6M3P6SH-00551?func=service&doc_number=000964668&line_number=0012&service_type=TAG%22);http://open_window%28%22http//200.144.190.234:80/F/P8GQG8R7UIYDJCKT47CU47ISNKPVBC7796FLRBR3AMX6M3P6SH-00551?func=service&doc_number=000964668&line_number=0012&service_type=TAG%22);http://open_window%28%22http//200.144.190.234:80/F/P8GQG8R7UIYDJCKT47CU47ISNKPVBC7796FLRBR3AMX6M3P6SH-00551?func=service&doc_number=000964668&line_number=0012&service_type=TAG%22);http://open_window%28%22http//200.144.190.234:80/F/P8GQG8R7UIYDJCKT47CU47ISNKPVBC7796FLRBR3AMX6M3P6SH-00551?func=service&doc_number=000964668&line_number=0012&service_type=TAG%22);
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    idias e agia no sentido de silenci-las de diversos modos. E sua concepo baseada na

    fbula das trs raas20 e suas misturas permaneceu de modo central na maioria das

    anlises sobre a formao da msica brasileira, popular ou erudita.

    A msica em conserva e a narrativa da msica brasileira

    Esses apontamentos memorialsticos de Martius seriam superados somente no

    incio do sculo XX quando a evoluo tecnolgica permitiu a gravao dos sons e

    expandiu as possibilidades dos trabalhos etnogrficos e registros sonoros. Curiosamente

    um desses trabalhos foi realizado por outro alemo, o antroplogo Koch-Grnberg (1872-

    1924) que, entre 1911 a 1913, fez viagens etnogrficas pela Amaznia. Inclusive ele se

    dizia muito inspirado e influenciado por Martius. Sua primeira viagem ao Brasil foi em1896, retornando no incio do sculo XX como lder de duas expedies Amaznia; a

    primeira entre 1903-1905 e a outra em 1911-13. Nesta segunda deixou importante obra

    (Vom Roraima Zum Orinoco), publicada em 1917, cujo volume III dedicado

    integralmente etnografia e musicologia dos povos indgenas21. Alm da parte escrita ele

    gravou quase uma centena de cilindros com msica vocal e instrumental desses ndios

    amaznicos, tornando-se um marco da memria e da etnografia amaznica22. Interessante

    tambm saber que Mrio de Andrade, alm de usar seu material etnomusicolgico,

    utilizou alguns dos mitos indgenas transcritos por ele para escreverMacunamao heri

    sem nenhum carter (1928), obra que colaborou de maneira decisiva na construo da

    idia e caractersticas do povo brasileiro. Nesse sentido, apesar da busca da alma

    brasileira original no sculo XIX, desde essa poca evidencia-se a incrvel circularidade

    de culturas e prticas que somam e colaboram na organizao e construo da imagem de

    brasilidade e sua representao cultural e musical.

    20 - Da Matta, Roberto,Relativizando, Uma introduo antropologia social, RJ, 2 ed., Ed. Rocco, 1987,pp. 58-85.21 - Existe apenas a traduo para o portugus do volume I, Do Roraima ao Orinoco, So Paulo, Unesp,2006 e do volume II publicado como "Mitos e lendas dos ndios Taulipang e Arekun", In Revista doMuseu Paulista, N.S. VII, So Paulo, 1953, pp. 9-202.H uma verso condensada em espanhol publicadapelo Banco Central de Venezuela, 1923. A verso integral em alemo pode ser obtida na pgina webhttp://www.brasiliana.usp.br/node/47322 - Koch-Grnberg, Theodor. Gravaes em cilindros do Brasil, 1911-1913, Srie documentos histricos,Berlim: Berliner, Phonogramm-Archiv, 2006.

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    Nesse mesmo perodo, o coronel Cndido Rondon Pacheco tambm realizou

    inmeras incurses pelo pas. Na viagem realizada em 1912 regio do atual estado de

    Rondnia ele foi acompanhado pelo antroplogo brasileiro Roquete Pinto (1884-1954).

    Nesta viagem o jovem estudioso anotou cantos de indgenas e tambm fez vrias

    gravaes em cilindros de cera. Para as anotaes ele contou com a ajuda do musiclogo

    Astolfo Tavares e nas gravaes ao vivo utilizou um moderno fongrafo porttil 23. O

    musiclogo Luiz Heitor Corra considerou essas gravaes como a mais importante

    contribuio etnografia musical amerndia e compositores como Luciano Gallet e

    Villa Lobos harmonizaram as melodias originais ou criaram sobre seus temas novas

    obras, deslocando-as do universo etnogrfico para o repertrio da autntica msica

    nacional. Deste modo, as gravaes de Roquete Pinto desempenharam papis diferentes,

    mas complementares: apresentaram o mais autntico desejo folclorista de recuperar epreservar a pura cultura popular; reforaram a postura da misso nacionalista de criar

    uma memria musical da ptria; e por fim enquadraram-se na ambio dos modernistas

    brasileiros de determinar a escuta da nao e construir a msica e arte nacionais!

    Foi somente com o ambicioso projeto de Mrio de Andrade a partir do final

    da dcada de 1920 que se instaurou verdadeiramente uma escuta na nao, composta

    pela recuperao dos registros musicais, sua preservao, divulgao e, finalmente, a

    construo de uma narrativa explicativa da histria da msica no Brasil. Fundada emconcepes folclorista e romntica da cultura e da msica nacional, essa narrativa tratou

    de documentar, escrever e compreender a msica popular no horizonte estrito da

    formao da nacionalidade. Ela classificou e determinou o que poderia estar dentro e o

    que deveria estar fora dos limites da cultura nacional, discriminando uma vasta cultura

    musical urbana existente e em formao no pas nas primeiras dcadas do sculo XX. Em

    compensao, foram os projetos relacionados a essa percepo que possibilitaram os

    maiores levantamentos, organizao, preservao e difuso da variada cultura musical

    presente na sociedade brasileira, da qual somos tributrios at hoje.

    Em suas obras musicolgicas Mrio de Andrade sempre se preocupou em

    registrar e divulgar as msicas com as quais trabalhou como, p.ex., no Ensaio da msica

    23 - Rondnia 1912. Gravaes histricas de Roquete-Pinto. Coleo documentos sonoros MuseuNacional/Laced.

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    brasileira, As melodias do Boi e outras peas, Msica de feitiaria no Brasil, Samba

    rural paulista24, entre outros. Porm, certamente foi a Misso de Pesquisas Folclricas

    (1937-38), pensada, organizada e financiada por ele durante a direo do Departamento

    de Cultura da cidade de So Paulo, o mais importante desses projetos e talvez,

    infelizmente, ainda permanea nos dias atuais nessa condio. Ela deu marcas musicais

    identidade e cultura nacional por meio de sua prtica etnogrfica e tcnicas inovadoras

    para a poca. Alm disso, construiu o mais interessante e relevante acervo iconogrfico e

    fonogrfico sobre a msica e o cancioneiro popular, todo ele, claro, fortemente marcado

    pelas escutas de certo nacionalismo exagerado. O projeto original estava baseado no

    trinmio recuperar/registrar, preservar e divulgar. AMisso circulou pela regio Nordeste

    e Norte do pas com 4 membros recuperando incrvel material por meio dos registros

    escritos, iconogrficos e fonogrficos. A preservao se deu com a criao de umadiscoteca pblica e a divulgao deveria ocorrer por meio de uma rdio de tipo

    educadora. A emissora no saiu do papel, mas a d iscoteca municipal foi implantada e

    dirigida por sua aluna e discpula Oneyda Alvarenga, que acabou nomeando a

    instituio25.

    Colees e colecionistas

    Alm da atividade pblica e institucional, Mrio de Andrade foi colecionador

    meticuloso e organizador de documentos, livros, partituras e discos. Como poca no

    havia qualquer referncia e apoio institucional para os estudos musicolgicos, sobretudo

    da msica popular, ele se viu obrigado a reunir durante toda a vida um volume incrvel de

    material. Essa prtica colecionista gerou sua fabulosa biblioteca pessoal e acervo

    precioso, que se tornou importante ncleo para os estudos da msica no Brasil. Eles

    foram incorporados ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo em

    24 - As melodias do Boi e outras peas, Livraria Duas Cidades, INL, 1987, Msica de feitiaria noBrasil,BH/SP, Ed. Itatiaia, 1983, Samba rural paulista, In Aspectos da msica brasileira, SP, 2 Ed.Ed.Martins/ INL, 1975.25 - Atualmente a Discoteca est sediada no Centro Cultural de So Paulo e rene acervo musical maisabrangente, sendo o mais importante deles o da Misso de Pesquisas Folclricashttp://www.centrocultural.sp.gov.br/discoteca.asp.

    http://www.centrocultural.sp.gov.br/discoteca.asphttp://www.centrocultural.sp.gov.br/discoteca.asphttp://www.centrocultural.sp.gov.br/discoteca.asp
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    1968 e at hoje so fonte de referncia e de estudos culturais, literrios, historiogrficos e

    musicolgicos26.

    Essa prtica colecionista no era exclusiva de Mrio de Andrade, j que

    muito comum entre os amantes e estudiosos da msica (prtica que ainda permanece

    usual). Na verdade a maior parte dos acervos de msica existentes no pas teve essa

    origem. O acervo do musiclogo alemo Curt Lange (1903-1997), p.ex., teve trajetria

    muito semelhante. Fruto de seu trabalho e militncia musicolgica na Amrica Latina,

    durante dcadas ele reuniu de maneira individual um imenso material bibliogrfico e de

    fontes primrias. Para o caso brasileiro ele foi fundamental para criar uma escuta da

    msica colonial, especialmente do cotidiano musical de Minas Gerais nos sculos XVIII

    e XIX. Depois de passar por vrias instituies, ele foi finalmente integrado

    Universidade Federal de Minas Gerais27.

    Casos semelhantes se multiplicam entre os colecionistas amadores. Talvez

    um dos episdios mais emblemticos seja o do acervo Abraho de Carvalho incorporado

    Biblioteca Nacional. Contador de origem, ele comeou a coleo para ajudar a esposa

    Antonieta de Carvalho, pianista e aluna de Henrique Oswald. Hipnotizado pela prtica

    colecionadora, acabou reunindo quase 10 mil ttulos, entre livros, partituras, peridicos,

    programas de concerto, etc.. A instituio federal comprou o imenso acervo em 1953

    dando origem sua seo de msicaDiviso de Msica e Arquivos Sonoros (DIMAS).

    Este acervo possui em sua coleo de partituras de msica do imprio, por exemplo,

    uma das nicas fontes de msica escrita do perodo. Outras colees de historiadores

    da msica brasileira foram incorporadas ao DIMAS ao longo dos anos 60 e 70, como as

    de Mozart Arajo e Andrade Muricy.

    Mas, por foras das circunstncias culturais e sociais, foi entre diletantes

    interessados pelas novidades da msica urbana e de entretenimento que essa prtica

    colecionadora tornou-se corriqueira, criando forte tradio colecionista e arquivsticaentre os crticos e pesquisadores, como veremos logo a seguir.

    26 - A pgina do Instituto pode ser acessada no endereo http://www.ieb.usp.br/27 - Acervo Curt Lange: www.curtlange.bu.ufmg.br/

    http://www.curtlange.bu.ufmg.br/http://www.curtlange.bu.ufmg.br/
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    Tenses na memria e na escuta

    A perspectiva ancorada no binmio nacional-popular em que o folclore

    tinha papel central tornou-se hegemnica e formou slido campo composto de

    compositores (reconhecidos posteriormente como a escola nacionalista), folcloristas,

    musiclogos e depois etnomusiclogos. A produo e compreenso da msica no Brasil

    popular ou erudita foram muito marcadas por ela at pelo menos o inicio dos anos

    1960. A partir desta dcada, a incrvel expanso dos meios de comunicao de massa

    ampliou as possibilidades de memorizao-registro e de divulgao musical,

    embaralhando de vez o quadro cultural internacional e nacional.

    A influncia do discurso nacional-popular se ampliou a partir da dcada de

    1940, solidificando seus espaos institucionais nas universidades, escolas, academias,

    conservatrios e rgos do Estado. A expanso do movimento folclorista dos anos 40/50

    segue essa dinmica, fortalecido tambm pelo cenrio internacional de expanso de

    trabalhos com essas caractersticas em momento de rearranjo do concerto internacional.

    A criao da ctedra de Folclore Nacionalna Escola Nacional de Msica em 1939 e do

    Centro de Pesquisas do Folclore, em 1943, ambos na Universidade do Brasil (RJ),

    podem ser consideradas marcos deste processo. O musiclogo Luiz Heitor Correa de

    Azevedo foi o primeiro professor da ctedra e participou ativamente do Centro. Na

    verdade ele e Renato de Almeida, amigos, interlocutores e colaboradores de Mrio de

    Andrade, exerceram papis importantes em momentos diferentes deste processo.

    Lideraram, p.ex., a criao da Comisso Nacional do Folclore (CNFL) em 1947, que teve

    como desdobramento a criao de Comisses regionais, a organizao de vrios

    encontros e congressos de Folclore entre1948 e 1963 e tambm a Campanha de Defesa

    do Folclore Brasileiro (1958) 28.

    Luiz Heitor, em razo de suas intensas atividades, foi convidado em 1941

    pela diviso de msica da UPA (OEA) a realizar estgio de 6 meses nos EUA. Lconheceu Alan Lomax, diretor do Archive of American Folk Song, da Biblioteca do

    Congresso, em Washington. O jovem pesquisador americano j era reconhecido por seu

    trabalho com gravaes por todo o pas, com destaque para aquelas realizadas no sul dos

    28 Vilhena, R. Projeto e misso. O movimento folclorista brasileiro 1974-1964. Rio de Janeiro.Funarte/Fundao Getlio Vargas, 1997.

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    EUA. Inspirado nelas, o musiclogo brasileiro realizou entre 1942 e 44 trs viagens

    etnogrficas. Apoiadas pela biblioteca norte-americana, que inclusive enviou

    aparelhagem de gravao, ele viajou para Gois (1942), Cear e Minas Gerais (1944).

    Uma quarta viagem ao RS, ocorrida em 1946, j sem a ajuda externa, contou apenas com

    apoio do governo e instituies deste estado. O material reunido pelo musiclogo no

    centro carioca se tornou, ao lado da Misso de Mrio de Andrade, no acervo mais

    abrangente e importante da msica folclrica. Consolidava-se assim a perspectiva

    folclorista de coletar, documentar, guardar e analisar a msica do povo, tendo em

    vista salv-la na sua pureza e originalidade e colaborar na construo de nossa

    identidade nacional e da alma brasileira.

    A partir da dcada de 1960 o folclorismo sofreu ataques gerais e sistemticos

    da sociologia e da antropologia, alm de sufocado inevitavelmente pelo avano dos meios

    de comunicao. Apesar da insero institucional e influncia intelectual, ele no se

    consolidou definitivamente nos quadro das cincias sociais e, conseqentemente, no meio

    acadmico universitrio, exceo de alguns departamentos de msica. Na verdade, o

    folclore suportou mesmo certo retraimento e ficou identificado com as posturas

    passadistas, alm de vinculado a certas prticas conservadoras e empricas, ao

    colecionismo amador e museificao. Particularmente no universo da msica popular,

    sofreu a forte concorrncia dos estudos sobre a msica urbana, da antropologia da msicae da etnomusicologia em expanso.

    Embora importantes, os estudos e acervos propriamente etnomusicolgicos

    demoraram a preencher o vcuo folclorista e nacionalista, at pela indefinio

    disciplinar e de seu campo cultural. Se eles sucederam o folclore no tempo, do ponto

    de vista terico seus interesses so completamente descontnuos. Seus estudos guardaram

    distncia dos antigos mtodos e pressupostos folcloristas e procuraram a formao de

    outras formas de acervos. Distanciaram, sobretudo, da viso homogeneizadora de povoe do popular e, conseqentemente da meta-msica nacional, atvica e integradora.

    Entretanto, alguns resduos dessa imagem permaneceram vivos e enraizados. De certo

    modo a miragem da pureza e originalidade do povo bom foi transferida para a tela

    multicolorida e tnica dos estudos sobre a msica indgena, afro-americana e nos diversos

    regionalismos. Alm da dificuldade de vencer essa tradio, eles ressoaram tambm tanto

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    os discursos em voga dos multiculturalismos, como o oficial de Estado de defesa da

    pureza das etnias.

    J os estudos da msica urbana e a constituio de seus acervos avanaram

    com dificuldade, mas a partir das dcadas de 1970-80 de modo destacado, assumindo at

    mesmo papel central na forma de ouvirmos o passado e compreender a escuta da

    sociedade brasileira. Seguindo uma trilha muito prpria e em permanente tenso com

    essas foras de memria e da histria, elas apontaram para outro ponto de escuta do

    pas, como discutido a seguir

    O povo canta mais do que l: outras escutas e narrativas

    Curioso como a declarao acima feita pelo cancionista francs ThomasRousseau29 no final do sculo XVIII provavelmente se ajustaria s percepes e

    narrativas que estavam sendo construdas e que apontavam a natural vocao musical

    da sociedade brasileira. A afirmao do cancionista revela de algum modo que na Frana

    pr- revolucionria a prtica da escrita e da leitura ainda eram muito limitadas, apontando

    para a existncia de uma sociedade oral em que provavelmente a msica assumia papis

    importantes (mnemnico, de mediao, comunicao etc.). Nesse contexto cultural, ele

    tambm destacava como as canes assumiam funo de meio de interlocuo e ao

    polticas30. possvel dizer que essa rede informal e mvel de recados tambm esteve

    presente no Brasil a partir do final do sculo XIX e tudo indica que este circuito se

    manifestou de maneira bem mais ampla e extensa do que a do cancionista francs. No

    Brasil ela jamais apresentou um tempo e temticas unvocas, mas uma multiplicidade de

    redes contedos e temas, acompanhadas da incrvel variedade de ritmos, melodias e

    gneros urbanos!

    J a inclinao musical da sociedade brasileira tambm pode ser

    relacionada sua condio cultural basicamente oral que, por uma srie de

    29 - apudBlanning, Tim, O Triunfo da Musica. SP, Cia das Letras, 2011, p. 26630 - Robert Darton j tinha feito apontado para essa condio da msica como uma rede de recados

    polsicos e sociais. Ver An Early Information Society:News and the Media in Eighteenth-Century Paris, In American Historical Review, vol 105, No1, february,2000.

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    circunstncias, permaneceu assim at pelo menos meados do sculo XX. Nessas

    condies a msica assumiu e ocupou papel central na compreenso, produo e

    interlocuo cultural. Porm diferente da cultura e da msica tradicional rural, includa

    nas compreenses e narrativas sobre o pas, essa escuta e msica nasceram no mundo

    urbano e do entretenimento. Esse conjunto composto por uma cultura oral, urbanizada,

    marcada pelo divertimento e definitivamente pelos meios de comunicao, tornou os

    caminhos de constituio de sua memria e de sua histria bem mais tortuosos e

    fragmentados. Sem discurso organizado e base institucional, sua dinmica se aproximou

    daquilo que Michel de Certeau classificou como exerccio de guerrilha, oposto ao

    discurso estratgico (p.ex., do projeto mariaoandradino ou do folclore). Enquanto esses

    discursos hegemnicos criavam e ocupavam os espaos institucionais, essa outra escuta

    deslocava-se por inmeros lugares 31 de memria: nas ruas, teatros, festas profanas,clubes danantes, cafs e bares e, posteriormente na indstria fonogrfica e radiofnica.

    Seus registros originrios das vrias culturas e prticas existentes na sociedade brasileira

    sedimentaram-se nas reminiscncias pessoais, na memria do outro, nas memrias

    comunitrias urbanas, nas relaes mestre-aprendiz e finalmente nos meios de

    comunicao.

    A msica urbana em conserva

    Na segunda metade do sculo XIX visvel como ocorreu certo esforo

    cultural em conservar a msica popular urbana em partitura formando uma memria

    escrita. Contudo, foi um trabalho restrito e marginal diante da infinidade da produo

    musical do mundo citadino cuja rede de sociabilidade era fundamentalmente oral. Alm

    disso, do ponto de vista prtico elas traduziam aquela impossibilidade intrnseca e

    angustiante de no conseguir registrar as aspiraes estticas dos compositores populares

    e alcanar as performances criativas dos instrumentistas. neste sentido que Mrio de

    31 - Certeau, Michel,A inveno do cotidiano. RJ, Ed. Vozes, 1994.

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    Andrade reclama que os maxixes impressos de Sinh so no geral banalidades

    meldicas. Executados, so peas soberbas (...)32

    .

    De qualquer modo, os registros em papel foram realizados neste perodo com

    a edio de modinhas, lundus, polcas, maxixes entre outros gneros urbanos em

    formao. Essas publicaes escritas basicamente para piano inundaram a capital do pas

    e depois outras cidades, colaborando para criar a febre de piano que ficou conhecida no

    meio musical como pianolatria. As contradies que este processo de criao,

    divulgao e inveno da memria musical produziu em alguns compositores foi tema de

    Machado de Assis no conto O homem clebre33. Em sintonia com seu tempo, Machado

    transformou em literatura um tema que o compositor e pianista Ernesto Nazareth34 viveu

    como angstia em sua trajetria pessoal e artstica.

    Outro tipo de registro escrito que tambm surgiu no Rio de Janeiro e

    colaborou para construir a memria musical do perodo, apareceu sob responsabilidade

    da Editora e Livraria Quaresma no final do sculo XIX. Um dos objetivos dessa editora

    nacional era alcanar justamente um pblico semiletrado que crescia e se aglomerava na

    capital. Para isso tratou de editar uma srie de obras de leitura fcil e preo acessvel,

    entre elas alguns livros contendo letras de conhecidas modinhas e canes. Eles

    formaram uma coleo informal conhecida como Bibliotheca dos Trovadores, sob

    responsabilidade do compositor e poeta Catulo da Paixo Cearense . Nela ele publicou

    obras como Cancioneiro popular, Florilgio dos cantores, Choros de violo, Serenatas

    etc. Pouco depois o cantor e compositor Eduardo da Neves tambm publicaria nas

    "edies Quaresma", assim como outros autores populares.

    Apesar desse empenho nos registros escritos, o grande salto no sentido de

    criar uma msica em conserva desta cultura musical urbana em formao foi

    indiscutivelmente o registro fonogrfico. Ao lado da memria oral individual e coletiva, a

    indstria fonogrfica desempenhou papel cultural determinante e mltiplo: foi o espao

    32 - Andrade, Mrio, Ensaio, p. 23. O msico Sinh citado pelo musiclogo Jos Barbosa da Silva,importante compositor, violonista e pianista carioca (1888 - 1930), e que teve papel fundamental para adecantao do moderno samba urbano.33 - ASSIS, Machado, In Contos. Uma antologia. SP, Cia das letras, 1998.34 - Machado, Cac. O enigma do homem clebre: ambio e vocao de Ernesto Nazareth . SP: InstitutoMoreira Salles, 2005.

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    que acolheu e colaborou para decantar os gneros urbanos em desenvolvimento; foi seu

    grande veculo de divulgao; e, por fim, criou, conservou e consolidou a memria da

    msica popular urbana no pas. Mas na verdade a indstria do disco surgiu sem

    nenhuma pretenso cultural formal, como procura fazer crer certas linhas evolutivas da

    msica. Seu objetivo estritamente comercial de vender os produtos, inicialmente apenas

    os aparelhos reprodutores: fongrafos e depois gramofones. E o curioso que foram

    novamente dois estrangeiros que tiveram papel central neste processo: os irmos

    Frederico e Gustavo Figner, ambos de origem tcheca, imigrados ainda jovens para os

    EUA. Frederico chegou a Belm do Par em 1891, circulou pelo pas exibindo a

    mquina falante e com a pretenso de vender alguns aparelhos. Estabeleceu-se na

    capital do pas no ano seguinte e ali tratou de expandir seus negcios. Para isso criou em

    1900 a Casa Edison que se tornaria uma referncia na comercializao aparelhos,cilindros de cera e depois discos. O empresrio rapidamente percebeu a riqueza deste

    mercado e resolveu gravar j em discos canes que circulavam pelas ruas e memria da

    populao carioca. Assim ele faz os primeiros registros fonogrficos em 1902, nos fundos

    da Casa Edison, com autores e cantores brasileiros como Cadete, Baiano, Eduardo das

    Neves, Mrio Pinheiro, mas tambm com a banda do Corpo de Bombeiros do Rio de

    Janeiro. Eles gravaram modinhas, lundus, maxixes e choros, bem ao gosto da populao

    urbana e, por isso, o sucesso do empreendimento foi imediato. Em 1913 ele fundou a

    fbrica Odeon fechando finalmente o circuito da produo fonogrfica no pas35.

    Os irmos Figner tinham pretenses evidentemente comerciais e alcanaram

    sucesso neste universo. Mas tinham ao mesmo tempo forte sensibilidade para as

    manifestaes da cultura popular, pois viviam envoltos nela. Sediados na capital do pas,

    eles registraram exclusivamente a cultura carioca, muito embora a capital do pas

    revelasse vrias culturas regionais, misturando-as e criando novas snteses. Assim, eles

    conservaram e registraram essa cultura, formando o primeiro grande acervo da msica

    urbana, que a partir do final da dcada de 1920 ganharia nova expresso com o

    desenvolvimento e expanso da indstria radiofnica. Por isso, compreensvel que

    durante muito tempo essa memria musical da cidade tenha se afirmado e depois se

    35 - Franceschi, Humberto, A casa Edison e seu tempo, RJ, IMS/Ed Sarapui, 2002, e Tinhoro, Jos R.Msica popular. Do gramofone ao rdio e TV, SP, Ed tica, 1981.

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    elevado condio de representao da msica popular brasileira. Todavia, fortemente

    marcado pelos interesses econmicos e modas circunstanciais, no havia qualquer

    empenho em conservar e arquivar esses registros. A tendncia deles era a de desaparecer,

    no fosse o empenho de um conjunto muito especfico de colecionadores que comeavam

    a surgir: o dos colecionadores de discos e da memria desta nova cultura urbana.

    Colees, rdio e Museu

    Certamente o mais representativo e importante destes colecionistas foi o

    radialista Almirante, apelido do cantor de Henrique Foris Domingues (1908/1980). No

    final da dcada de 1930 ele deu inicio a uma srie de programas radiofnicos que foi

    interrompida somente em 1958 por questes de sade. Desde o incio suas produestinham como objetivo apresentar aos ouvintes a boa e verdadeira msica brasileira,

    mas sem estabelecer fronteiras ntidas entre a cultura popular rural e a urbana. Ele dizia:

    Sirvo-me do rdio para levar aos ouvintes de todo o Brasil o que o Brasil possui de

    mais visceralmente seu36. Baseado nestes princpios, ele elaborou e realizou dezenas de

    programas que transmitiu em vrias emissoras cariocas e de So Paulo, mas com alcance

    nacional. Por meio da transmisso radiofnica ele exaltou artistas, consagrou datas,

    esclareceu eventos, periodizou e os organizou certa diacronia e narrativa sobre o tema.

    Seus programas eram baseados em densa pesquisa e cuidadosamente escritos, dando

    origem ao seu imenso acervo pessoal que se tornaria referncia para os pesquisadores.

    Assim Almirante, ao lado de outros autores de sua gerao (como Vagalume,

    Alexandre Gonalves Pinto, Orestes Barbosa, Mariza Lira, Edigar de Alencar, Jota Efeg,

    e Lcio Rangel) 37, foi muito importante para dar incio ao canteiro de obras 38 de

    construo da narrativa histrica sobre a msica popular. Ele comeou a definir a

    organizao de uma verdadeira operao historiogrfica ao estabelecer um lugar social,

    uma prtica e, por fim, o texto e narrativa sobre o objeto, destitudo de qualquer valor

    36 Acquarone, Francisco. Almirante: as canes de engenho e os preges. In:Histria da msica brasileira.Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, s-d,p.285.37 - Moraes, Jos Geraldo Vinci. Entre a memria e a histria da msica popular, In Moraes e Saliba, Op.Cit,pp 217-268.38 - Certeau, Michel, A operao historiogrfica, In A escrita da histria, Rio de Janeiro. ForenseUniversitria, 1982.

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    cultural e social at meados do sculo XX. Neste universo repleto de recordaes e

    eventos, ele selecionou gneros, autores e obras para compor um roteiro e uma ordem

    narrativa, produzindo conhecimento sobre o assunto. Ele reuniu todo esse universo em

    um imenso arquivo pessoal e depois institucional, fechando assim o processo de

    construo tanto da memria como da histria.

    Em 1965 seu extraordinrio acervo e arquivo foram vendidos ao governo do

    Estado da Guanabara (atual Estado do Rio de Janeiro) e incorporado ao recm formado

    Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Logo depois o acervo fonogrfico do

    jornalista e Lcio Rangel contendo aproximadamente 16 mil discos em 78 rotaes,

    tambm foi comprado pela direo do Museu. Formava-se assim o primeiro arquivo

    institucional contendo parte da memria da cultura musical popular e urbana do sculo

    XX. Almirante permaneceu curador de todo acervo, que a partir de ento passou por

    diversas dificuldades e problemas para organizar e manter viva sua coleo, condio que

    se mantm at hoje39.

    Essa espcie de memria subterrnea40 presente no sculo XIX e nas

    primeiras dcadas do XX acabou definindo uma forma de escutar-ver-compreender a

    sociedade a partir de um discurso muito prprio em que a cano e a msica popular

    tiveram papel central. Baseada inicialmente nessa memria viva de seus agentes, ela

    gradativamente criou nos anos 1940/50 inicialmente seus espaos informais, sobretudo

    na cultura fonogrfica-radiofnica e em certo tipo de crnica especializada em formao

    (a carnavalesca, do cotidiano bomio, do entretenimento e da msica urbana). Com o

    tempo ela formou uma narrativa, documentada e explicativa (uma linha evolutiva).

    Essa nova tradio cultural foi assimilada e compartilhada gradativamente pela

    comunidade brasileira, que imediatamente se identificou com ela. As tenses e debates

    presentes na dcada de 1960 sobre as formas de compreender a escuta do pas

    aprofundaram a discusso e ao mesmo tempo abriram amplo espao de aceitao culturale social. A partir de meados da dcada seguinte ela tomou contornos de uma narrativa

    39 - Cabral, Srgio,No tempo de Almirante. Uma histria do Rdio e da MPB, Francisco Alves, RJ, 1990,Mesquita, Cladia, Um museu para a Guanabara, RJ, Ed Folha Seca, 2009 e Albin, Ricardo, Cravo.Museuda Imagem e do Som. Rastros de memria, RJ, Ed Sextante, 200.40 - Pollak, Michael, Memria, esquecimento, silencio, In Estudos histricos, RJ, vol 2, N 3, 1989, pp. 3-15.

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    slida e acabou se oficializando, tornando aquela memria viva em memria de

    papel41

    , representada a partir de ento por instituies ou espaos como o Museu da

    Imagem e do Som (1965), a Funarte (1975), Associao dos Pesquisadores da Msica

    Popular (1975) e seus congressos 42. Alm disso, uma avalanche de obras coletivas43 e

    individuais escritas por colecionadores, jornalistas e acadmicos tomaram conta da

    memria e da histria da msica, sem contar os filmes documentrios que explodiram na

    dcada de 1990. Assim, a partir deste perodo essa memria conseguiu construir sua

    narrativa, tornando-se hegemnica na compreenso da msica popular no Brasil.

    Reconstruir a trajetria desta autntica operao historiogrfica de

    formao de uma narrativa da msica popular no Brasil, ainda est em curso e uma

    tarefa grandiosa. No entanto, ela criou caminhos que ajudam a compreender melhor as

    razes da organizao e existncia dos atuais acervos e arquivos de msica.

    Sculo XXI: cultura digital e acervos universais

    Se ao longo do sculo XX essas duas trajetrias narrativas centrais sobre a

    msica no Brasil criaram diferentes tipos de interpretaes e de acervos (uns mais

    institucionalizados e outros mais dispersos nas aes pontuais dos colecionadores), o

    incio do sculo XXI foi marcado por iniciativas de vrios setores da sociedade, e mais

    tardiamente, pelo Estado, voltadas, sobretudo para o investimento na migrao desses

    acervos originalmente criados em suportes analgicos (discos, fitas magnticas,

    partituras, etc.) para a tecnologia digital (metadata). A rigor, este processo inicia-se na

    segunda metade dos anos 1990, mas a partir dos anos 2000 que ele ganha corpo e

    forma, com a evoluo e facilidades tecnolgicas.

    Hoje em dia, e mais do que nunca, a msica em conserva se materializa em

    torno do conceito de acervos universais, organizados ou no numa rede virtual que

    41 - NORA, Pierre, Entre Mmoire et Histoire. La problematique des lieux, In Lieux memire, Paris,Gallimard, 1984.p. XXVI.42 - I Encontro de Pesquisadores da Msica Popular Brasileira - Curitiba, 1975; II Encontro Promovido peloInstituto Nacional de Msica da Funarte, 1976; III Encontro de Pesquisadores da Msica Popular Brasileira- Rio de Janeiro, RJ. Promovido pelo Instituto Nacional de Msica da Funarte - Perodo: 15 - 17.abr.1982.43 - Como p.ex. a srie de discos Histria da Msica Popular Brasileira, Ed. Abril Cultural 1970 e aEnciclopdia da Msica Brasileira. Erudita, folclrica, popular, Art Editora, 1977.

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    possibilitam acesso amplo e irrestrito. O contexto em que isso ocorre s pode ser

    compreendido com o advento e expanso da cultura digital, que desloca e desarticula o

    tradicional modo de organizao, consulta e compartilhamento das prticas culturais

    analgicas. Ecoando as tendncias expostas em experincia mundializadas, no Brasil esta

    questo aparentemente do campo das cincias e tecnologias tambm se manifesta

    principalmente como uma questo cultural. Esse complexo processo est em curso e

    ainda um horizonte aberto, mas seus reflexos podem ser identificados nas transformaes

    das prticas dos novos colecionadores da era digital44. E neste novo mundo, os

    institutos culturais tendem a entrar no lugar dos museus como criadores de memria e

    narradores dos discursos estratgicos. J os colecionadores continuam no campo da

    guerrilha recuperando e narrando fragmentos, mas agora munidos de um poderoso

    instrumento: a Internet.

    Saem os museus pblicos, entram os institutos culturais

    No transcorrer do sculo XX os principais centros de memria da msica

    brasileira surgiram das iniciativas individuais e coletivas. O Estado sempre se aproximou

    deste universo posteriormente, absorvendo e encampando vrios destes trabalhos,

    transformando-os em museus, bibliotecas e discotecas, como ocorreu com a Diviso de

    Msica e Acervos Sonoros da Biblioteca Nacional, a Discoteca Oneyda Alvarenga e o

    Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Mesmo assim, diante da permanente

    riqueza e multiplicidade da produo dos registros musicais e das urgncias em proteg-

    los e guard-los", as aes do Estado foram insignificantes e reclamadas pela sociedade.

    Nestas circunstncias rarefeitas, no final da dcada de 1980, surgiram dois

    importantes institutos culturais criados por duas grandes empresas da rea financeira: o

    Instituto Ita Cultural (1987), do Banco Ita, o Instituto Moreira Salles (IMS, 1990), do

    Unibanco45. O processo de redemocratizao do pas e a abertura da economia para o

    capital globalizante ajudam tambm a compreender o contexto do surgimento destes

    institutos. Evidentemente a anlise detalhada revelar um processo histrico mais

    complexo. De qualquer modo, estes institutos culturais tornaram-se protagonistas, a partir

    44 Cf. HERSCHMANN, Micael.Industria da msica em transio. So Paulo: Estao das letras e cores,2010. Cf. os sites de colecionadores digitaiswww.loronix.blogspot.comewww.umquetenha.org45 www.itaucultural.org.br e www.ims.com.br

    http://www.loronix.blogspot.com/http://www.loronix.blogspot.com/http://www.loronix.blogspot.com/http://www.umquetenha.org/http://www.umquetenha.org/http://www.umquetenha.org/http://www.umquetenha.org/http://www.loronix.blogspot.com/
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    de 1990, como instituies referencias para preservao e difuso da msica brasileira,

    sobretudo a popular.

    importante registrar que a msica erudita ficou um pouco a margem desses

    institutos. De maneira geral, o que se percebe so iniciativas mantidas com verbas de

    universidades pblicas, igreja (principalmente no caso do repertrio da chamada msica

    colonial brasileira), agncias de pesquisa ou programas de governos. Alguns deles

    podem ser lembrados como exemplos destes casos. O Museu da Msica de Mariana, em

    Minas Gerais, criado em 1960 e mantido pela Fundao Cultural e Educacional da

    Arquidiocese de Mariana46. Ali existe um importante acervo de msica sacra do perodo

    colonial brasileiro que recentemente, com apoio de um programa de governo (O

    Programa Petrobras Cultural, que ser comentado adiante) realizou o trabalho de

    restaurao digital de partituras e difuso, com a gravao em CD das obras recuperadas.O acervo do pesquisador Francisco Curt Lange, abordado anteriormente, tambm recebeu

    apoio do mesmo programa de governo para a sua conservao e instalao definitiva na

    Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte47.

    No caso especfico da criao de acervos universais de udio, o IMS construiu,

    junto com a Petrobras, um ambicioso projeto: o Centro Petrobras de Referncia da

    Msica Brasileira (CPRMB/IMS), hoje em dia renomeado como Reserva Tcnica

    Musical/IMS. Criado em 2002, ela nasceu com vocao para abrigar, tratar e difundiracervos musicais pelos processos digitais. Possui um prdio no centro cultural do Rio de

    Janeiro dedicado exclusivamente a esta funo. Foram comprados e incorporados acervos

    de grandes autores da msica brasileira como Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Chiquinha

    Gonzaga, Elizete Cardoso, entre outros. Mas os principais acervos so os de dois

    pesquisadores/colecionadores: Humberto Franceschi e Jos Ramos Tinhoro. O primeiro,

    caracteriza-se por ser estritamente fonogrfico formado por cerca de 12 mil discos

    gravados entre 1902 e 1964. Este acervo o que sobrou da memria musical fonogrfica

    brasileira na sua primeira fase de criao. O segundo, tambm tem uma grande base

    fonogrfica (8 mil discos da fase mecnica mais 40 mil eleps) alm da biblioteca e

    hemeroteca do colecionador, pesquisador e historiador J. R. Tinhoro. Ali se encontra,

    46 Cf.http://www.mmmariana.com.br/preview/sobre_pgs/05e2_projetos.htm47 Cf. http://www.curtlange.bu.ufmg.br/

    http://www.mmmariana.com.br/preview/sobre_pgs/05e2_projetos.htmhttp://www.mmmariana.com.br/preview/sobre_pgs/05e2_projetos.htmhttp://www.mmmariana.com.br/preview/sobre_pgs/05e2_projetos.htmhttp://www.mmmariana.com.br/preview/sobre_pgs/05e2_projetos.htm
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    por exemplo, peridicos raros do final do sculo XIX e uma vasta bibliografia. A

    obsesso do colecionar com o rigor do historiador criaram uma biblioteca nica sobre a

    cultura musical no Brasil, que foi a base para o pesquisador erguer certamente uma das

    obras historiogrficas mais importantes sobre msica no Brasil. Desde que a Reserva

    Tcnica Musical foi criada o IMS vem disponibilizando em seu site a mais completa

    discoteca institucional on line do pas.

    Contudo, no podemos perder de vista que tanto Franceschi como Tinhoro

    construram suas narrativas histricas da msica brasileira. O primeiro com foco

    especfico na implementao da indstria fonogrfica no Brasil48, e o segundo com uma

    grandiosa produo bibliogrfica, complexa e com diferentes abordagens ao longo de 50

    anos de trabalho: ora como crtica musical engajada sob orientao terica marxista

    (caracterstica dos anos de 1960); ora como sofisticado historiador no manuseio de fontes

    para a construo tanto dos sons que vem das ruas, como da biografia de Domingos

    Calda Barbosa49.

    Cultura digital

    Simultaneamente ao processo de criao destes institutos que de certo modo

    realizavam a tarefa de institucionalizao da memria e dos acervos musicais, as relaes

    e as prticas culturais informais continuaram a se multiplicar na sociedade brasileira.Neste sentido, o conceito de guerrilha de Michael de Certeau se revela mais uma vez

    como esclarecedor dessas novas aes dos colecionadores digitais.

    A rpida evoluo tecnolgica e sua expanso imediata na primeira dcada do

    sculo XXI foram determinantes para expanso deste processo. Neste perodo a internet

    de banda larga foi potencializada e se ampliou ao mesmo tempo em que ocorria o

    barateamento dos equipamentos de digitalizao de imagem, udio e vdeo. Isto

    possibilitou que os amantes da msica pudessem criar sofisticadas ilhas de produo em

    suas casas (os chamados homestudios), antes restrito somente aos profissionais. E em

    48 Cf. Franceschi, Humberto M. Op.Cit..; Gonalves, Camila Koshiba. Resenha A casa Edison e seutempo. In:Revista de Histria. So Paulo: FFLCH-USP, No. 149 (2O2003), PP. 255-262.49 Cf. TINHORO, Jos Ramos. Os sons que vem das ruas. SP, 2 ed, Ed. 34, 2005. Msica Popular, umtema em debate. Rio de Janeiro: Saga, 1966; TINHORO, Jos Ramos. Histria social da msicabrasileira. Lisboa: Caminho, 1990; TINHORO, Jos Ramos. Domingos Caldas Barbosa. So Paulo: Ed.34, 2004.

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    seguida permitiu a vertiginosa proliferao de blogs com contedo musical digitalizado

    no formato mp3. Na realidade, trata-se de uma prtica no muito diferente daquela dos

    colecionadores da era analgica que guardavam seus discos e fitas magnticas em suas

    casas. A grande diferena pde ser sentida no volume dos registros, sua acessibilidade e

    difuso.

    Os colecionadores digitais conseguem atualmente com incrvel rapidez e

    custos baixssimos publicar seus acervos na Internet. Neste sentido, as redes sociais

    virtuais tornaram-se campo de guerrilha dos amantes/colecionadores de msica.

    Formam, assim, um grande mosaico a partir de pequenos recortes temticos: os amantes

    do jazz, da msica clssica, do rock, da MPB etc. Alguns deles assumiram ntida opo e

    vocao para a pesquisa histrica e formaram rigorosos acervos. O blog Loronix um

    bom exemplo. Organizado pelo Zeca Louro, possui um grandioso acervo de discos deChoro, Bossa Nova e gneros afins entre as dcadas de 1940 e 1970. O trabalho

    meticuloso, os discos so digitalizados e limpos dos chiados analgicos, as capas

    seguem o mesmo tratamento e cada post acompanha a ficha tcnica e um comentrio

    contextualizando a obra. O crtico musical dO estado de So Paulo, Lauro Lisboa

    Garcia, atento ao carter cultural de preservao da memria da msica brasileira

    registrou essa iniciativa: o Loronix tem mais de 2 mil ttulos e recebe colaboraes de

    Jorge Mello e Caetano Rodrigues, conhecido como o maior colecionador de discos de

    bossa nova.50.

    O primeiro desdobramento que surge dessas prticas a sua legalidade. O

    compartilhamento desses arquivos protegidos esbarra, hoje em dia, em uma Lei de

    Direitos Autorais criada e praticada para o mundo analgico. A compreenso dessas

    aes no universo de uma nova cultura digital obriga, necessariamente, a reavaliao

    dessas questes. Aspectos tcnicos como a padronizao de informaes (metadata),

    hospedagem, segurana e perenidade desses acervos virtuais tambm so questes em

    aberto. Em 2010, houve uma primeira iniciativa de discusso destas questes com o

    50 GARCIA, Lauro Lisboa. Blogueiros defendem seu carter cultural In:http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081114/not_imp277593,0.php

    http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081114/not_imp277593,0.phphttp://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081114/not_imp277593,0.phphttp://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081114/not_imp277593,0.php
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    Simpsio Internacional de polticas pblicas para acervos digitais51, realizado em So

    Paulo.

    O Estado e a msica em conserva

    Uma das aes mais importantes neste novo cenrio surgiu em uma rica

    empresa pblica da rea petrolfera com a criao do Programa Petrobras Cultural

    (PPC), a partir de 2001. O que se evidencia desde o incio a inteno do Estado em

    construir polticas pblicas para a memria da msica brasileira. A primeira linha de ao

    possibilitou a criao de novos acervos em instituies de grande porte (pblicas e

    privadas) comprometidas com o uso de tecnolgica avanada. A segunda ofereceu uma

    srie de aes vindas de diferentes origens: instituies de mdio e pequeno porte,

    pesquisadores de universidades, artistas e produtores culturais.O que fica claro nessa iniciativa o desejo de que a memria musical

    brasileira seja tratada como uma matria viva. A ideia da construo do acervo vivo parte

    de um movimento em duas direes opostas, mas complementares: o trabalho

    retrospectivo para a fixao do passado musical, cuja realizao se d pela recuperao,

    preservao e disponibilizao de acervos; e o trabalho prospectivo de registro (editorial,

    visual e sonoro) e de reflexo crtica interpretativa das manifestaes musicais que, fora

    da valorizao conferida pelo mercado, tenham valor em si mesmas e sejam reveladoras

    de conexes com o passado musical. No por acaso que o texto do projeto ressoe o

    pensamento de Mrio de Andrade: batalhador, enquanto pesquisador e diretor do

    Departamento de Cultura, da criao de um patrimnio cultural voltado para arquivo,

    pesquisa de campo, criao de discoteca e biblioteca, Mrio de Andrade intuiu, na sua

    rapsdia [o livro Macunama], que o acervo no deve embalsamar a cultura, mas

    retornar permanentemente aos seus fluxos criativos. O patrimnio no pode esquecer o

    matrimnio do acervo e da pesquisa com a cultura viva.52

    A consultoria para implementao deste programa foi realizada pelo msico e

    professor de Literatura Brasileira da Universidade de So Paulo, Jos Miguel Wisnik.

    51 Cf. http://culturadigital.br/simposioacervosdigitais/52 http://www.hotsitespetrobras.com.br/ppc/

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    Revista Auditrio, Instituto Auditrio Ibirapuera, So Paulo, 2011, pp 160-183

    http://www.auditorioibirapuera.com.br/wp-content/uploads/2011/08/Revista_Auditorio.pdf

    Sintomtico que Mrio ressoe aqui. Tudo indica que Wisnik, especialista em sua obra53,

    vislumbrou a possibilidade de continuidade filtrada de aspectos do ethos marioandradino,

    sobretudo o de mapeamento e fixao da cultura musical brasileira como uma narrativa

    histrica. Contudo, o contexto agora mais amplo e complexo, onde as dimenses do

    popular e do erudito no se apiam mais na noo romntica do folclore e do

    nacionalismo da primeira metade do sculo XX. O que se v desde os anos de 1960 o

    surgimento de culturas em torno das indstrias da cultura com caractersticas singulares.

    A incorporao e a mediao dessas novas camadas so temas inexorveis para o

    mapeamento e a interpretao do nosso passado e futuro musical.

    Diante da perspectiva de respeitar e retomar de forma atualizada algumas das

    tradies do pensamento musical brasileiro, da importncia dos suportes oferecidos e,

    principalmente, dos resultados materiais dessas aes, vale a lembrana de algumasdessas iniciativas, to diferentes e complementares em seus objetivos e prticas. As aes

    contempladas na primeira edio do PPC so indicativos disso.

    O projeto de Preservao e Informatizao do Acervo da Discoteca Oneyda

    Alvarenga do Centro Cultural So Paulo, tem como objetivo, por exemplo, preservar uma

    significativa parte da cultura musical nacional com a digitalizao do acervo de discos de

    78 RPM; digitalizao e informatizao do banco de dados de partituras. Oprojeto Som

    Da Rua segue em outra direo, que a de procura registrar, sonora e visualmente, as

    manifestaes relevantes de msica brasileira absolutamente fora de qualquer evidncia

    de mercado, porm ligadas memria musical brasileira. J o projeto Brasiliana -

    Catlogo Digital Radams Gnattali, pretende criar um catlogo digital multimdia da

    obra completa do compositor fundamental para o conhecimento de uma tradio

    brasileira entre a msica popular e erudita54.

    Sintomtico que aparea aqui o projeto de digitalizao da Discoteca Oneyda

    Alvarenga. Ele simboliza a ponte entre as prticas de pesquisa do incio do sculo XX e a

    necessidade de acessibilidade universal do incio do sculo XXI. Vale lembrar que uma

    primeira iniciativa de transposio de suporte analgico para digital ocorreu no incio da

    53 Cf. WISNIK, Jos Miguel. O coro dos contrrios - a msica em torno da semana de 22. So Paulo: Duascidades, 1977; WISNIK, Jos Miguel. Sem receitaensaios e canes. So Paulo: Publifolha, 2004.54 No site deste programa, citado acima, pode-se avaliar a evoluo dos projetos contemplados, entre 2001e 2009.

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    dcada de 1990, quando o Centro Cultural So Paulo (CCSP) realizou, em 1992, a

    digitalizao deste acervo em fitas DAT (Digital Audio Tape). Todo esse processo se l

    no Catlogo Histrico-Fonogrfico da Discoteca, foi realizado durante as noites e

    madrugadas, quando a corrente eltrica que abastece o CCSP est mais estvel,

    permitindo um registro praticamente sem alterao de voltagem 55. Como se nota nesse

    sincero depoimento, as condies de trabalho foram precrias, refletindo uma situao

    que perdurou por uma dcada.

    Entre iniciativas do Estado, de instituies privadas e prticas culturais marcadas

    pela mundializao em torno da Internet, a msica em conserva vem adquirindo um

    novo mapa no Brasil. Mais rico e complexo, sem dvida. Porm, carente ainda de

    reflexes e anlises mais sistemticas e, por isso, urgente que ela tenha incio desde j.

    55CARLINI, lvaro; LEITE, Egle Alonso. Catlogo histrico-fonogrfico Discoteca Oneyda Alvarenga(Centro Cultural So Paulo). So Paulo: Centro Cultural So Paulo, 1993. P. 34.