natureza no arquivo nacional

DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7976.2014v21n31p11

O INVENTRIO DA NATUREZA AMERICANA NO ACERVO DO ARQUIVO NACIONAL

AMERICAN NATURES INVENTORY IN THE COLLECTION OF NATIONAL ARCHIVES

Cludia Beatriz Heynemann*

Resumo: O Arquivo Nacional detm em seus 70 km de documentos, reunidos ao longo de 176 anos de existncia, um acervo compreendido entre o sculo XVI e os dias de hoje. Neste artigo destaca-se o tema da histria natural na Amrica portuguesa presente nos fundos e colees pertinentes histria luso-brasileira. A correspondncia entre a Corte e as autoridades coloniais evidencia a circulao das ideias, o intenso fluxo de remessas de espcimes, a importncia crescente do conhecimento do meio natural e o significado desse processo no mbito do programa ilustrado da segunda metade do sculo XVIII.

Palavras-chave: Histria Luso-Brasileira. Histria Natural. Arquivo Nacional.

Abstract: The National Archives holds in its 70 km of documents, gathered over 176 years of existence, a collection ranging from the sixteenth century to the present days. In this article we highlight the theme of natural history in Portuguese America present in the funds and collections related to Luso-Brazilian history. The correspondence between the Court and the colonial authorities shows the circulation of ideas, the heavy flow of consignments of specimens, the growing importance of knowledge of the natural environment and the significance of this process in the framework of the illustrated program on the second half of the eighteenth century.

Keywords: Luso-Brazilian History. Natural History. National Archives.

* Supervisora de Pesquisa no Arquivo Nacional. E-mail: [email protected]

12Revista Esboos, Florianpolis, v. 21, n. 31, p. 11-27, ago. 2014.

A criao do Arquivo Pblico do Imprio em 1838 se d em meio s circunstncias mais ou menos reconhecidas como tpicas do sculo XIX, sculo da histria, a se admitir o processo histrico, da historiografia, dos arquivos, da fotografia, da tcnica, da reforma das cidades, das multides, dos imprios e de tantos signos do que podemos definir como modernidade. Alm desses eventos, o Arquivo Pblico nasce no Brasil da Regncia, em momento tambm crucial, aqui, do Estado imperial, e para seus contemporneos e intrpretes, das tentativas de fundao do que seria uma identidade nacional. O compromisso que se enuncia na literatura, na produo acadmica, nas descries da natureza, iria se delinear nas diversas instituies criadas, sobretudo na segunda metade do sculo. Em sua gnese, a Instituio partilha desse horizonte de sentido, de uma histria da nao e uma histria nacional, como um pressuposto dos arquivos nacionais, passando pelas transformaes operadas nas categorias de memria, patrimnio, histria, identidade.

O acervo do Arquivo Nacional contm fundos datados do sculo XVI at hoje, provenientes da administrao colonial, de secretarias de Estado e de rgos portugueses, dos governos do Imprio e da Repblica, de indivduos e instituies privadas, colees e itens documentais, documentos audiovisuais e cartogrficos e uma coleo de livros, folhetos e peridicos raros de cerca de sete mil ttulos. O conjunto preservado na sede no Rio de Janeiro e em Braslia, compreende um denso e importante acervo do mundo luso-brasileiro, de carter orgnico, contemplando documentos do judicirio, arquivos e colees privadas, e cuja abrangncia temtica se evidencia nas pesquisas realizadas e em instrumentos online que do conta desse quadro, a base de dados Roteiro de Fontes do Arquivo Nacional e o site O Arquivo Nacional e a Histria Luso-Brasileira.1

A concepo de uma histria luso-brasileira, atlntica, de origem ibrica, acompanhou de algum modo tanto o projeto poltico e intelectual brasileiro na segunda metade do Setecentos e no sculo XIX quanto esteve presente em obras fundadoras como as de Srgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e tantos outros. Do projeto do conde de Linhares, d. Rodrigo de Souza Coutinho, um de seus mais representativos intelectuais e administradores2, constituio de um Imprio luso-brasileiro, perdido com a Independncia, sobreviveria o trao de continuidade a que se refere Ilmar Rohloff de Mattos em O tempo Saquarema. Um vnculo com a herana ilustrada portuguesa, patente na cultura cientfica, nas academias e Instituies, figurava na juno entre passado e presente que a transferncia da Corte para a colnia teria promovido. O termo transmigrao, pouco usual, significava mudana de domiclio, mas igualmente passar a alma de um corpo a animar o outro, unia a Colnia e a Nao soberana, assinalava uma continuidade futura.3

Entre os incontveis usos e perspectivas assinalados pela ideia de luso-brasileiro podemos pensar que alm dessa expresso encontramos o


luso-tropical, que olha para a experincia americana, mas tambm para a prpria identidade portuguesa e sua capacidade de adaptao aos trpicos, sua plasticidade. Assim, Gilberto Freyre em diferentes captulos de sua obra se refere dissoluo dos portugueses no mundo, sua fora e fraqueza, de domnio, disperso, da origem moura e judaica, da proximidade da frica, enfim, de um Portugal que oscila entre o Velho do Restelo - smbolo da rotina agrria, do apego terra e Ulisses em sua atividade martima e comercial, seu gosto pela aventura. A ideia de uma simbiose luso-tropical marca esse ensaio de 19614, mas a perspectiva do luso-tropical apresenta-se em outros, nos quais a expresso Amrica portuguesa discutida tanto quando afirma essa origem ou duvida do carter extensivo da herana portuguesa e da prpria identidade europeia de Portugal.5

Uma histria luso-brasileira, expresso de fato consolidada entre ns, sugere uma srie de vnculos e uma gnese que se desdobra em qualificaes como latino-americana e ibrica. Essas noes presumem, respectivamente, a insero comum de toda a Amrica Latina nos mecanismos de colonizao e de explorao constitutivos do Antigo Sistema Colonial Mercantilista como assinala Francisco Falcon, enquanto a nfase no carter ibrico tem cunho histrico-cultural ou mesmo antropolgico. Pressupe por exemplo o reconhecimento desse carter no processo de fundao de ncleos urbanos na Amrica portuguesa, apontando para uma perspectiva menos homogeneizadora.6

Mesmo que no submetido unicamente lgica do sistema colonial, o vis luso-brasileiro evoca no apenas a Amrica portuguesa, mas o Imprio quer em sua dimenso idealizada, como projeto, quer pelas relaes e deslocamentos que em vrios nveis, de mercadorias, costumes e ideias se estabelecem entre as colnias e possesses ultramarinas e o reino. O luso-brasileiro no engendra assim, apenas o jogo das mltiplas influncias e mesmo dos contrastes, mas do estranhamento, do desencontro. A aventura portuguesa por um lado confirma a coincidncia entre aquela identidade e as navegaes - qualquer que seja o prisma em relao ao esprito dos Descobrimentos - e por outro evidencia um renitente desajuste. Algo que Srgio Buarque de Holanda expressou em passagem clssica, no livro Razes do Brasil:

A tentativa de implantao da cultura europia em extenso territrio, dotado de condies naturais, se no adversas, largamente estranhas sua tradio milenar, , nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequncias. Trazendo de pases distantes nossas formas de convvio, nossas instituies, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorvel e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.7


O desencontro a que se refere o autor, paradoxal ou no, manifesta-se de qualquer forma por meio de conflitos, de tentativas de conciliao que garantissem modelos, narrativas consolidadas. A escolha de problemas histricos que permitam refletir sobre o perodo no acervo do Arquivo Nacional, nos leva a dois grandes eixos definidos na maior parte das vezes a partir do conflito, das contradies que envolveram a conquista da natureza e o trabalho escravo. Por um lado inegvel que a escravido constituiu aquela sociedade nos longos trs sculos que perdurou, fazendo valer a afirmao de Stuart Schwartz8, de que mesmo quando no nos referimos escravido, dela que falamos. Predominante na agricultura para exportao, no litoral, onde a mata cerrada, a selva, representaram obstculos a superar, com o fogo e o machado, ficaria associada derrubada das florestas, ao atraso e ao que Gilberto Freyre9 consideraria a paisagem montona da monocultura, tambm no campo das ideias.

natureza tropical o colonizador teria se adaptado procurando a similaridade com os seus espcimes e propriedades de todas as ordens, aplicando nomes conhecidos, tal como descreveu Srgio Buarque de Holanda no clebre captulo A botica da natureza.10 O conhecimento do mundo natural tambm se deu por meio dos jesutas, do convvio com as populaes indgenas e de modo destacado, pela entrada no mundo luso-brasileiro do mtodo da histria natural, do sistema de classificao de Lineu, trazendo a ambio da exaustividade do inventrio, da formao das colees, das viagens filosficas entre as quais ficou eternizada a de Alexandre Rodrigues Ferreira. Sedio e Luzes marcam o setecentos luso-brasileiro nos registros de devassas, nas colees de Histria Natural, na correspondncia das capitanias.

Propomos aqui revisitar o acervo do Arquivo Nacional a partir dos registros legados pela poltica fomentista deslanchada pela governao pombalina notadamente em torno da Histria Natural, considerando viagens, colees, jardins, listas, como vestgios desse fenmeno. Um importante captulo da histria das ideias foi escrito em documentos provenientes da Secretaria de Estado do Brasil, da Provedoria da Fazenda, da Marinha e Domnios Ultramarinos, e de outros fundos por meio dos quais se estabelece uma histria luso-brasileira, atlntica.

Parte da cartografia das viagens pelo interior do continente foi empreendida na viagem filosfica de Alexandre Rodrigues Ferreira, mdico e naturalista nascido na Bahia em 1756, formado na Universidade de Coimbra reformada. Entre 1783 e 1792 ele esteve nas capitanias do Gro-Par, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiab, participando de um projeto da Coroa, que incluiu o envio de outros naturalistas a Cabo Verde, Angola e Moambique. Em uma das etapas, percorreu a capitania do Par, de onde partiram remessas de animais e plantas para a metrpole, formando colees destinadas ao Gabinete e Museu de Histria Natural da Ajuda. Conhecida pelo relato e desenhos


gerados, disponveis no Museu Nacional e na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, a expedio do mdico baiano, aluno da Universidade de Coimbra reformada, continua na correspondncia estabelecida entre a metrpole e o ultramar. Os arquivos e livros da viagem multiplicam-se, portanto, dos itens transportados s relaes que os acompanham e s cartas que informam todos esses procedimentos e que hoje formam parte importante desse evento.

Entre os cdices, merece ateno especial a correspondncia original dos governadores do Par com a Corte em 24 volumes e que segue o roteiro por meio das remessas, listas, providncias e ordens, entre o ministro da Marinha e dos Negcios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro e Martinho de Souza e Albuquerque, governador do Par. Nas pginas em que se encontram esses e outros assuntos, so confirmados o envio de caixotes de anil para Lisboa, a chegada do desenhador Jos Joaquim Freire para compor a expedio do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, e solicitados canoas, ndios e mantimentos para a dita expedio.11 Segue-se no mesmo volume, a Relao das plantas vivas e animais, remetidos do Par para o Real Gabinete de Histria Natural da Ajuda, pelo capito Luiz Pereira da Cunha na charrua guia. A lista vinha acompanhada de informaes como o uso que se faz das plantas pelos habitantes da regio12, uma demanda frequente nos pedidos de remessas. Nesse sentido observa-se que embora essas viagens constitussem uma novidade na administrao portuguesa, o teor dessa correspondncia obedece a um gnero - as instrues aos viajantes - e a um mtodo e rotina desenvolvidos e experimentados na formao de colees de Histria Natural e remessas de plantas, animais, sementes, entre outros elementos, vivos ou secos, acondicionados a partir de tcnicas distintas. Onas vivas, plantas em viveiros, tucanos empalhados foram para Portugal com o fim de alimentar jardins, gabinetes, viveiros, herbrios. Cdices e documentos avulsos do Arquivo Nacional no apenas registram esse movimento como so parte dele, comunicando seus agentes e mais, reiterando essa tarefa da Histria Natural, de extrair, registrar, extensiva e exaustivamente tudo o que tem sentido na acepo cada vez mais larga e microscpica da vida.

A mobilizao de embarcaes, navios que partiam carregados com os espcimes coletados corresponde a um dirio de viagem que se escreve em paralelo, enquanto desfilam pelos volumes e folhas desse cdice o que se recortava da paisagem natural, sendo importante no apenas a intensidade daquele processo, mas a composio dessas partidas, as escolhas, o olhar orientado, embora, escrevessem os naturalistas da Ajuda, tudo os interessava, era extico, inexistia na Europa. Testemunha esse processo as remessas listadas, entre agosto e dezembro de 1787, que iam aos cuidados de Martinho de Melo e Castro, Ministro da Marinha e Domnios Ultramarinos, como a que menciona trs macacos, um quati, uma ona, um anac, quatro periquitos e uma arara; a relao de plantas, entre estas, cacau, caf, andiroba e maracuj, alm de


sementes e frutas, enviadas do Par para o Real Gabinete de Histria Natural da Ajuda por Luis Pereira da Cunha; outra que levava a planta do caran.13 Dois anos depois as remessas da viagem filosfica continuaram, como se v no ofcio pelo qual o capito Luis Pereira da Cunha informa ao ministro da Marinha e dos Negcios Ultramarinos, Martinho de Mello e Castro, o envio de um caixo com produtos naturais secos, um barril com animais quadrpedes e rpteis e quatro caixes com plantas vivas destinados ao Real Gabinete de Histria Natural por intermdio do governador do Par, Martinho de Sousa e Albuquerque. Ao naturalista haviam sido remetidas dez caixas de folhas de flandres para que prosseguisse em seus trabalhos, que produziam resultados vultosos como o envio de vinte trs caixes com anil do Rio Negro alm de trinta e trs volumes com produtos recolhidos do Rio Madeira pela expedio filosfica a cargo do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, acompanhados de um saco de cartas do mesmo que iam tambm por navio a Lisboa.14

Nos cdices da correspondncia dos governadores do Par com a Corte, do fundo Negcios de Portugal esto contempladas as diversas iniciativas que se desenvolveram na capitania, no mbito da histria natural. Assim, sob as ordens de d. Francisco de Souza Coutinho, a capitania do Par foi, nesse sentido, estratgica para a histria natural na colnia, sediando o nico jardim botnico, que de fato funcionou no perodo colonial, chamado Horto So Jos, a partir de 1796, recebendo instrues para aclimatao de plantas indgenas, especiarias e plantas exticas regio. A iniciativa de criao de jardins botnicos na colnia obedeceu ao enunciado bsico da aclimatao de plantas exticas - indgenas ou, de modo geral, estrangeiras ao Brasil, oriundas por vezes de outras colnias, com o objetivo de implantao de sua cultura aqui ou de sua remessa para Portugal, como se depreende das inmeras instrues que da metrpole se dirigem aos governos das capitanias.

Ainda na dcada de 1790 ocorreram expedies a Caiena de onde, informava d. Francisco de Souza Coutinho a d. Rodrigo de Souza Coutinho chegavam, por meio de um agente, cravo da ndia, canela, pimenta e diversas rvores frutferas. Podemos ver aqui, entre outras remisses histria lusa, os desenganos ao Oriente, o drama da expanso que esvaziara o reino, quando ento dos armazns da Casa da ndia exalava-se a pimenta e a canela: toda a cidade, e no tarda que seja todo o reino, que rescende a especiaria, comenta Saraiva, citando a rima de S de Miranda, de 1535, mais me temo de Lisboa/que ao cheiro desta canela/o reino nos despovoa.15 A canela, proibido seu plantio na Amrica portuguesa por tanto tempo, simbolizava a reverso na poltica metropolitana, quando para muitos como Manuel de Arruda Cmara constatava-se o erro do empenho ao Oriente e o consequente descaso com aquela que se tornava mais e mais a colnia oficial. A histria natural, atemporal, sem que se confunda com uma abordagem diacrnica, nesse sentido a histria da empresa colonial, da expanso portuguesa e indica


permanncias filosficas e culturais que resistem a demarcaes da cronologia tradicional. As referncias a Plnio, Aristteles, Lineu que fluem nos textos, bem como as inmeras avaliaes que os administradores fazem da histria portuguesa a partir da falta, demora ou expectativa em controlar o conhecimento da histria natural so reveladores da complexidade desses manuscritos.

O ritmo das remessas, ditado na correspondncia entre aqueles administradores-filsofos na definio do abade Raynal, indica que daquela capitania, e de tantas outras, seguiam animais quadrpedes, pssaros, vivos ou mortos, tal como as sementes e plantas que iam secas ou em viveiros para a Metrpole. Elas carregavam muitas expectativas dos europeus depositadas no Novo Mundo como foi o caso da rvore da fruta-po, esperana para a fome dos povos. Ou a quina, cinchona officinalis, uma planta medicinal cuja aceitao, na Faculdade de Medicina de Paris do sculo XVII, como escreveu Jacques Roger16, representou, em conjunto com outras teorias, como a da circulao do sangue, acompanhar passo a passo os modernos. A quina ocupou os naturalistas luso-brasileiros em diversas capitanias, tinha propriedades febrfugas e possibilidades de comercializao, sendo adotada nos hospitais da Misericrdia, registrada na farmacopia do reino. J em 1800, uma carta de Caetano Pinto de Miranda Montenegro a d. Francisco de Souza Coutinho, governador do Gro-Par comunicava o envio de um caixote com as primeiras amostras de casca, ramos e frutos de quina, cujo nome cientfico talvez fosse Cinchona Officinalis, que havia sido descoberta nas serras de So Jernimo.17 O valor da quina era de tal ordem que seria moeda de relaes diplomticas com a Espanha, quando em ofcio enviado a d. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro da Guerra e Negcios Estrangeiros, Joo Carlos Augusto Oyenhausen-Gravenburg, governador da capitania de Mato Grosso, orientado pelo ministro a manter a harmonia com as provncias espanholas conflitantes, enviava-lhe documentos do governador de Moxos e de Santa Cruz de la Sierra, que demonstravam particular amizade. O ofcio estava acompanhado de uma caixa de quina da melhor qualidade remetida Corte para o uso da Casa Real.18

A atribuio e exigncia do nome cientfico, como as referncias classificao de Lineu e s descobertas do naturalista integram a correspondncia, demonstrando a circulao e influncia do sistema lineano nos pases ibricos, no apenas nas sociedades e academias cientificas, mas no cotidiano da administrao, nas instrues aos naturalistas e na produo memorialstica, como a que assinam frei Mariano da Conceio Veloso e Gregrio Jos de Seixas em sua descrio da Quina Quina (Chincona das Officinas)19:

Do-se duas sortes de sinais caractersticos para o conhecimento das plantas, dos quais os primeiros, que formam a aparncia do gnero, se fazem de algumas partes da flor; que nunca devem faltar, os segundos de


toda descrio da flor; que podem variar e nem por isso deixa a planta de pertencer ao gnero em que a pem os signos essenciais. Tais gerando na quina os seguintes sinais essenciais.20

Os sinais essenciais, responsveis pela aparncia do gnero, nas palavras dos dois naturalistas, distinguiam-se, efetivamente, da parte varivel, onde se detiveram na florao e nas cores que cambiavam tambm com a passagem das estaes. O roteiro da descrio era fiel s exigncias de Lineu, partindo da corola, em seguida descrevendo o clix, seguindo, portanto a primeira cobertura dos rgos sexuais das plantas - estames e pistilos.21 A recorrncia a Lineu na correspondncia evidencia o lugar central que a Histria Natural ocupar no programa ilustrado ibrico de modo geral e luso-brasileiro.22 Editor, professor de retrica, de geometria e de histria natural e naturalista, frei Mariano da Conceio Veloso (1742-1811), um dos protagonistas dessa correspondncia. A combinao desses elementos, somados a sua formao franciscana profcua para refletirmos sobre o campo da Histria Natural no mundo ibero-americano setecentista identificando as diferentes tradies cientficas e filosficas que o constituem. Filiado a Lineu, Veloso atua na seleo de animais e plantas para as mais variadas colees, sendo reconhecido pela habilidade em recolher e confeccionar espcimes acondicionados e preparados para os naturalistas lusos. Acompanhado de desenhistas ou riscadores, cumpria as orientaes dos naturalistas da Ajuda que chegavam pela correspondncia, contrastando o interesse das autoridades e o lugar que o estudo das cincias da natureza ocupava mais e mais, com a aridez e as dificuldades de desempenhar aquelas funes na Amrica portuguesa. Tratava-se do adiantamento de uma cincia to importante principalmente em um pas em que a natureza to rica e abundante nas suas produes como desconhecida dos seus habitantes.23 Na prtica, esse desconhecimento apontava para a escassez de naturalistas na colnia, que iam sendo improvisados entre aqueles que demonstravam algum interesse e aptido. Alm de estimular o trabalho de naturalistas e herboristas, procurava-se dotar as capitanias de uma estrutura que permitisse esses trabalhos, valendo-se do trabalho de militares e, igualmente, instando a populao a colaborar, permitindo a entrada de naturalistas nas suas fazendas e todo o exame nos seus matos e nos seus terrenos.24

Tambm contavam com o fornecimento de material para as diligncias pertencentes Histria Natural, patente no atendimento a frei Mariano Veloso que, nesse perodo, encontrava-se trabalhando na Fazenda Santa Cruz. O material solicitado, era entre outros, um alambique de folha de Flandres; um alicate, um cano de lato fundido; pano de linho e Bretanha.25 Um ano depois, frei Mariano solicitava candeeiros, garfos de fenos com suas facas, tachos de cobre, tigelas de Macau com seus pratos, um vidro de gua-forte, etc.26 Esses eram os instrumentos da histria natural, com seus conservantes,


como o lcool de vinho ou esprito de vinho - possivelmente destilado no alambique que o frei solicita - em que se preservariam as plantas, sementes e animais encontrados.

Na colnia, os naturalistas que preparavam as maravilhas e curiosidades, fossem amadores ou cientistas, inscreviam-se nessa apropriao da natureza para oferec-la, sob o filtro da cincia, mas igualmente de uma curiosidade em torno das colees, herbrios e jardins. O preenchimento desse espao se d pelas prprias caractersticas das produes, seu destino e, essencialmente, pela concepo de histria natural que se tem. Assim, as colees e as remessas que so efetuadas carregam as caractersticas desse conhecimento e sua especificidade luso-brasileira, visveis nas remessas que frei Mariano organizou para o Gabinete de Histria Natural da Ajuda, e no elogio dos naturalistas lusos: as sementes que vinham do Rio de Janeiro em caixinhas com areia ou em papis envernizados com aguarrs, haviam brotado em sua maioria e, com igual preveno vieram os pssaros, insetos, peixes e animais, de forma que de nenhuma outra parte tem vindos to perfeitos.27 Mas, era necessrio que o diligente professor que remete tantas belas e bonitas produes, se lembrasse que

Para um gabinete tudo estimvel, ainda os mesmos produtos ordinrios do pas, de que menos caso se faz como so cebolas, sementes e plantas ainda, que sejam ordinrias (tambm se desejam as plantas raras), mas estimando sempre as ordinrias porque estas para a Europa vm a ser particulares: desejam-se para esse Gabinete minerais, cristais, terras, areias e pedras de todas as qualidades [...] desejam-se cobras de todas as qualidades e sendo difcil o prepararem-se o incmodo transporte, ser melhor introduzir pela abertura da parte inferior um fio de arame com um ganchinho na ponta, para pegar nas tripas e extra-las todas depois meter as ditas cobras em barris [...] porm sempre com gua ardente como tambm lagartos, peixes grandes e pequenos, caranguejos, estrelas e ourios do mar [...].28

Era preciso que se identificassem os peixes, que podiam vir em abundncia nos barris e pipas, atravs de seus nomes vulgares. E as conchas do mar, as bivalves e univalves. Caracis e conchas de gua doce e tambm os caracis da terra. E ao final, o reconhecimento de que tais recomendaes eram desnecessrias, uma vez que o professor que os recolhe no precisa tal instruo, pois o mais exato, ou para melhor dizer o nico que remeteu para este Real Gabinete produtos to bem acondicionados.29 A enumerao dos produtos que chegavam a Portugal, para o Real Gabinete, nos permite entrever no apenas o trabalho desempenhado por frei Mariano, mas o sentido dessas produes.


As atividades de frei Mariano, como as de outros, dividiam-se, antes de tudo, a partir da destinao: deveriam preparar as que atendessem aos gabinetes e aquelas que chegariam aos jardins. Essa era sem dvida uma grande distino, gerando uma literatura acerca da forma de acondicionamento dos animais, plantas, sementes e outros. Embebidos em lcool (aguardente ou lcool de vinho), a retirada das entranhas dos animais era essencial a sua conservao, como mencionado para as cobras. Mesmo os elementos minerais, como pedras, areia e cristais conheceriam uma disposio especfica, o estabelecimento de suas dimenses e o distanciamento entre si, para poderem trabalhar e ficarem do tamanho da medida.30 O tempo do transporte e o acondicionamento das produes eram fatores considerados, j que estas enfrentariam uma longa viagem.

Na perspectiva de um pensamento em rede, da sua gnese nos dicionrios e enciclopdias, diversas configuraes se estabelecem entre esses tantos registros, provenientes de diferentes fundos, relacionando temas, atores, discursos, em um paralelo com o prprio imprio, com a comunicao entre os naturalistas e o projeto de um extenso catlogo da natureza. Predominante nos fundos Negcios de Portugal e Secretaria de Estado do Brasil, essas cartas, listas, inventrios esto ainda e de forma significativa em muitos outros arquivos, sinalizando que o conhecimento e domnio da natureza vinculavam Portugal aos cnones da cincia moderna, mitigavam o sentimento lacunar em torno da histria lusitana. Investidos desse carter emergem naturalistas, professores, polticos, envolvidos com a Universidade e instituies, distinguidos pela Coroa, como Gregrio Jos de Seixas que assinara com Veloso a j citada memria sobre a quina. No ano seguinte um ofcio endereado a d. Rodrigo de Souza Coutinho pedia a transferncia deste, apresentado como estudioso das cincias naturais, para o Real Jardim Botnico. Em anexo encontra-se o estudo proposto pelo prncipe regente a Seixas, composto da descrio natural da Vila de Torres Novas com observaes sobre os trs grandes reinos da Natureza. O estudo tambm continha um catlogo com a nomenclatura popular e cientfica das plantas medicinais encontradas naquele distrito.31

Neste sentido, exemplar a troca de correspondncia em torno da ocupao de cargos e cadeiras por conhecidos nomes da Ilustrao luso-brasileira. A coleo Negcios de Portugal32 que engloba fundos e sries como a Mesa do Desembargo do Pao ou a Secretaria de Estado do Ministrio do Reino descreve esse trnsito em documentos como o ofcio de 1811, dirigido ao vice-reitor da Universidade de Coimbra, Francisco Antnio Duarte da Fonseca Montanha, acerca da contratao de Flix de Avelar Brotero, professor de Botnica e Agricultura daquela universidade para a administrao do Real Museu e do Jardim Botnico da Ajuda, que se encontravam em grande decadncia.33 Somente dois anos depois viria o ofcio dirigido ao prncipe regente pelo reitor da Universidade de Coimbra, acerca da promoo de


novos lentes para as cadeiras de Botnica e Agricultura, at ento regidas por Brotero, transferido para a direo do Real Museu e Jardim do Pao da Ajuda no lugar de Domenico Vandelli. No mesmo documento solicita-se a jubilao por tempo de servio de Jos Bonifcio de Andrada, que assim ficaria mais expedido para servir a vossa alteza real no importante lugar de intendente de minas, matas e guas para o qual fora encarregado.34

Entre os temas da Ilustrao portuguesa estava a conservao das matas sendo conhecida a memria de Bonifcio sobre os bosques em Portugal e que permaneceria inspirando os defensores das matas no sculo XIX brasileiro. Essa preocupao se evidencia desde o final do sculo XVIII com proibies do corte de rvores, restries concesso de sesmarias, como ordena a Coroa ao vice-rei conde de Rezende:

[...] sendo as madeiras e paus de construo que se exportam do Brasil um objeto de maior interesse para a Marinha Real e de que a minha Real Fazenda pode tirar um grande rendimento, estabelecendo cortes regulares das mesmas madeiras para vender s Naes estrangeiras: e sendo necessrio tomar todas as precaues para a conservao das matas do Estado do Brasil, e evitar que elas se arrunem e se destruam [...]. Em primeiro lugar declarando ser da propriedade exclusiva da minha Real Coroa todas as matas e arvoredos a borda da costa, ou de rios que desemboquem imediatamente no mar, e por onde em jangadas se possam conduzir as madeiras cortadas at as praias [...].35

Nessas e em outras disposies similares vislumbra-se a cena inicial, do incio da colonizao, quando a mata cerrada oferecia perigos, o serto com feras, tribos inimigas, escurido, e era imperioso destruir, queimar, desbravar. Um retorno aos Descobrimentos marcou o Setecentos, a conscincia de sculos de desvio face o destino glorioso que se abria com as navegaes, de haver ficado margem da Revoluo Cientfica, ao contrrio das naes mais poderosas. Ao sentimento de perda e distanciamento de seu devir histrico, corresponderiam assim os projetos setecentistas de explorao da natureza tropical, imbudos de uma racionalidade econmica, poltica, em moldes compatveis com a cincia moderna, includos o controle e a proteo das matas e florestas situadas borda da costa, de introduo de novas culturas, de plantas exticas, e todo o rol de iniciativas que deveriam dar a esse perodo o perfil ilustrado.

Mais do que o alcance efetivo dessas medidas, a leitura da correspondncia nos d acesso a uma histria das ideias - s rupturas e aos vnculos com a traduo da filosofia clssica, a atualidade do Renascimento, a vitalidade do aristotelismo e da escolstica; tal contaminao de discursos,


entre tantas outras reverberaes, descreve a histria luso-brasileira e tambm a histria natural. certo portanto, que essa escrita se faz sobre releituras, que atravessam a poca moderna. No trabalho desenvolvido pelos naturalistas na colnia, somam-se a essa escrita as questes despertadas pela natureza americana e a especificidade da cultura luso-brasileira.

Coerentes com essa dupla narrativa, as colees formadas seguem os princpios da classificao em Lineu, retomam processos e nomes anteriores, buscam reproduzir em microcosmos o teatro da natureza. No imprio luso-brasileiro reafirma-se entre outras vogas colecionistas, um vigoroso interesse pela ornitologia, bem como o apreo por pssaros vivos para ornamentao das quintas reais, ou empalhados, destinados observao cientfica. Se desde o incio da colonizao as aves haviam fascinado os primeiros europeus, conforme os relatos de viagens, no Setecentos caber aos naturalistas e seus alunos, a confeco de animais empalhados para os gabinetes de histria natural. Assim, a correspondncia assinada pelos naturalistas da Ajuda, em 1776, descrevia uma das remessas chegadas da colnia:

Uma das mais completas colees de pssaros do Brasil que viu a Europa a que acaba de receber de suas mos o Gabinete da Ajuda. A variedade das espcies, a beleza das formas, a naturalidade dos gestos tudo imita exatamente a natureza. Com as obras de gosto mais delicado que ele produz, compete as duas rvores, sobre cujos ramos, parece que naturalmente pousam, nascem e dormem os pssaros preparados. Chegaram o mais bem acondicionados que podiam vir das mos de um naturalista os tucanos, mortos na realidade, mas vivos na aparncia.36

Para que esses objetos pudessem ser vistos, complementarmente ao olhar da cincia, expunham-se os mtodos, antigos e modernos, de preparao das colees. No Rio de Janeiro, o desenvolvimento dessas tcnicas e a divulgao do conhecimento mereceram a criao, pelo vice-rei Lus de Vasconcelos e Sousa, de um gabinete de histria natural que ficaria conhecido como Casa dos Pssaros. O encarregado da Casa, Francisco Xavier Caldeira Cardoso, o Xavier dos pssaros, foi um dos principais taxidermistas37 da colnia. Entre suas funes, inclua-se o ensino da histria natural, aqui, mais provavelmente, das prticas aplicadas s colees. O trabalho durou mais de uma dcada e, em 1797 determinava-se que recebesse uma penso vitalcia de 400$000, com a obrigao de continuar nos trabalhos de recolher, preparar e remeter as produes naturais do pas e de continuar a formar alunos.38

Como professor de histria natural atraiu alunos de outras capitanias, como um alferes do regimento da ilha de Santa Catarina, mandado, em 1784, instruir-se com Francisco Xavier Cardoso que se acha encarregado de aprontar


as curiosidades pertencentes Histria Natural.39 Alguns de seus aprendizes, moradores do largo da Lampadosa, local de funcionamento da Casa, declararam que viviam de serem alunos da Histria Natural40, sublinhando uma das caractersticas de seu trabalho. Caldeira relutou em divulgar seu conhecimento, antes de ser legitimado pelas autoridades, ainda na ilha de Santa Catarina, como vemos na correspondncia que antecede a criao do Gabinete. Havia sido o responsvel pela coleo de pssaros que encantara os naturalistas do gabinete de histria natural da Ajuda e reconhecido por Lus de Vasconcelos que, em correspondncia com Martinho de Melo e Castro, justifica a solicitao de apoio financeiro a Caldeira:

A preparao dos pssaros, quadrpedes, insetos e peixes feita por Francisco Xavier Cardoso, que sendo natural da Ilha de Santa Catarina, e no tendo nunca sado desta capitania, por habilidade rarssima, e natural propenso, tem chegado a fazer as mesmas preparaes com tanta delicadeza e perfeio. A sua habilidade se estende a muito mais e o seu trabalho no de jornaleiro, ao mesmo tempo que ele no tem bens, ou estabelecimento algum, e vive s da sua habilidade. Ele mesmo ora trabalha com igual pressa que perfeio, ora vai pelos matos apanhar insetos e em breves dias traz mais e melhores do que em um ano todas as muitas pessoas a quem tenho encarregado esta diligncia [...].41

As preparaes incluam insetos, tratando-se de uma coleo que vinha sendo reunida por quatro anos, tempo desde o qual tem conservado os primeiros, que se apanharam o mesmo Francisco Xavier com toda perfeio que se v. Havia igualmente, inventado a caixa que abrigava a coleo de borboletas e uma caixa de peixes enviada para Portugal.42 A trajetria do Xavier dos pssaros, dos matos da ilha de Santa Catarina ao Largo da Lampadosa no Rio de Janeiro43, inscreve-se no movimento de naturalistas e dos demais envolvidos com a histria natural, incumbidos de ver cientificamente, ou seja, tornar esses objetos visveis, atravs da taxionomia, da organizao e do estabelecimento de relaes, fazendo existir o que estava disperso e oculto na paisagem. Porque a novidade da Histria Natural, o corte epistemolgico que se opera, define-se pela possibilidade de ver o que se poder dizer. Observar , pois, contentar-se com ver, dir Foucault: [...] ver sistematicamente pouca coisa. Ver aquilo que, na riqueza um pouco confusa da representao, pode ser analisado, reconhecido por todos e receber, assim, um nome que cada qual poder entender.44

Seguir a leitura de cdices e avulsos que registravam a correspondncia - um dos pilares da administrao colonial, em conjunto com a legislao


como ensina Fernando Novais - leva-nos igualmente a outros tpicos caros aos historiadores, como o estabelecimento de gneros e espcies documentais, caso das instrues aos naturalistas, listas de remessas com a classificao e o nome vulgar, catlogos dos jardins botnicos, descries, ou mesmo os dirios de viagem em seu complemento - a srie de missivas entre as autoridades com providncias sobre as expedies, incluindo as demarcaes de limites que envolviam a assinatura de tratados. Cartas como as que encontramos no arquivo privado do marqus de Lavradio, e como gnero consagrado, as memrias que se organizam por 25 volumes do cdice 807.45

Em uma abordagem mais ampla envolvendo a circulao de ideias e o discurso ilustrado, um leque de temas se apresenta, entre eles, o da leitura e da censura de livros, das invases francesas, da administrao joanina no Brasil incluindo as prticas mdicas e as atividades do Fsico Mr, a presena da Corte no Rio de Janeiro, da Inconfidncia mineira, da vida artstica a partir de 1808, a criao da Junta do Comrcio, Agricultura, Fbricas e Navegao, das reformas do ensino na segunda metade do Setecentos, entre muitas possibilidades de pesquisa no acervo do Arquivo Nacional. O conhecimento da Histria Natural comportava, para muitos o esprito das Luzes, da Razo, e portanto, da possibilidade de libertar-se da sociedade hierrquica e de privilgios do Antigo Regime. O iderio iluminista manifesta-se em outras culturas, na Itlia, na Pennsula Ibrica, no Brasil. As academias e sociedades cientficas e literrias, as bibliotecas que conhecemos graas s devassas, as conjuraes de Minas, Rio de Janeiro, Pernambuco, as notcias de traio dos que sadam Junot em Lisboa marcam esse momento claramente identificado pelos homens da poca pelo poder revolucionrio daquelas ideias. A conscincia do perigo que encerravam est em cartas como a do desembargador Joo de Figueiredo ao conde de Resende, vice-rei do Brasil, em1799 informando que haviam sido encontrados diversos livros proibidos em poder de Vicente Guedes, natural de Moambique que se encontrava a bordo do navio Conceio, de partida para a ndia. Entre os livros descritos como perniciosos entra-se o Emlio de Jean Jacques Rousseau e outros contrrios a f catlica.46 A certeza do mal que causavam tais princpios podia retroceder ao sculo XVII, Revoluo Cientfica, como expressa Caetano Pinto de Miranda Montenegro, governador da capitania de Pernambuco ao saudar a vinda de d. Joo para os seus Estados da Amrica:

Sua Alteza Real vai dar principio a um Santssimo Imprio, que longe de receber leis inquas, as dar sempre justas a muitas, muito ricas, e mui remotas regies. O novo Imprio da Amrica Meridional, separado pelo Oceano desse turbilho cartesiano, ou desse incndio, devorador de tantos tronos e monarquias, h de ser o asilo mais seguro da religio e da virtude; da justia, humanidade e inocncia


oprimida; da indstria, comrcio e de todas as artes, que voaro do antigo para este novo mundo, e nele abriro canais imensos de riquezas incalculveis.47

Poucos anos aguardavam a revoluo do Porto e a mudana de perspectiva que era sugerida no plano de reforma poltica e cientfica e de renovao do ensino elaborado por Jos Albano Fragoso, convocado pelo prncipe d. Pedro em 1821. Nesse documento, recomenda a leitura de filsofos franceses como Diderot, dAlambert, Montesquieu, e britnicos como F. Bacon e T. Paine no ensino, para que, atravs de uma educao liberal, fossem formados Cidados Constitucionais.48 Na proposta de leitura dos enciclopedistas e na consulta aos documentos da Instituio desenha-se o fundamento do Imprio, na continuidade da Ilustrao e na construo de uma identidade nacional sedimentada no elogio e grandiosidade da natureza americana.

NOTAS

1 Consultar http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/ e http://www.an.gov.br/anac. 2 NEVES, Guilherme Pereira. Transmigrao da Corte. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionrio do Brasil Imperial. 1822-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 701.3 Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formao do Estado imperial. So Paulo: Hucitec, 1990. p. 285-286.4 FREyRE, Gilberto. O luso e o trpico. Lisboa: Comisso Executiva das Comemoraes do V Centenrio da morte do Infante d. Henrique, 1961. p. 49-61.5 Cf. FREyRE, Gilberto. Antecedentes europeus da histria brasileira. In _____. Novo Mundo nos trpicos. 2 ed. Rio de Janeiro: Top Books, 2000.6 FALCON, Francisco Jos Calazans. A cidade colonial: algumas questes a propsito de sua importncia poltico-administrativa (sculos XVII/XVIII). Colquio de estudos histricos Brasil-Portugal (1: 1994. Belo Horizonte). Belo Horizonte, PUC/MG, 1994, p. 91.7 HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. 23 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1991. p. 3.8 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. So Paulo: Companhia das Letras, 1988.9 FREyRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introduo histria da sociedade patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 315.10 HOLANDA, Srgio Buarque de. A botica da natureza. In: _____. Caminhos e fronteiras. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.11 Arquivo Nacional. Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte. Negcios de Portugal, cdice 99, v. 9, fls 25, 25v e 26, Belm, Par, 18 mar. 1788.12 Ibidem, fls 33, v. 33 e 34, 22 mar. 1788.

13 Arquivo Nacional. Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte. Negcios de Portugal, cdice 99, v. 8, 1787.


14 Arquivo Nacional. Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte. Negcios de Portugal, cdice 99, v. 10, 1789. 15 SARAIVA, op. cit., p.153.16 ROGER, Jacques. Les sciences de la vie, dans la pense franaise au XVIIIe sicle. Paris: Albin Michel, 1993. p. 175.17 Arquivo Nacional. Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte, cartas e anexos. Negcios de Portugal, cdice 99, v. 22, fls 8 e 8v, Cuiab, 30 jun. 1800.18 Arquivo Nacional. Srie Guerra, Cuiab, 22 ago. 1809. IG 226.19 Acreditamos que aqui tenha ocorrido uma adaptao do termo officinalis que designa as plantas de virtude teraputica.20 Arquivo Nacional. Negcios de Portugal, caixa 715, pacote 1, 1802.21 LARSON, James. L. Reason and experience: the representation of natural order in the works of Carl von Linn. Berkeley: University of California Press, 1971. p. 78.22 HEyNEMANN, Claudia B.. As culturas do Brasil. So Paulo: Hucitec, 2010.23 Arquivo Nacional. Vice-reinado, portarias, Secretaria de Estado do Brasil, cdice 73, v.15, fl.83, 1783.

24 Ibidem.25 Ibidem, fl.48, 1782.

26 Ibidem, fl. 86, 1783.

27 Arquivo Nacional. Correspondncia da corte com o vice-reinado, cdice 67, v. 12, fl 48, 1784.28 Ibidem.29 Ibidem.30 Ibidem.31 Arquivo Nacional. Coleo de memrias e outros documentos sobre vrios objetos, Diversos Cdices SDH, cdice 807, v. 22. 32 Segundo o SIAN - Sistema de Informaes do Arquivo Nacional trata-se de uma coleo composta basicamente da documentao trazida de Portugal por d. Joo VI, quando da transferncia da Famlia Real para o Brasil e daquela enviada para c, no perodo em que no Rio de Janeiro se instalou a corte. Rene documentos de alguns fundos, unidos pela temtica, como por exemplo, o Gabinete do Rei e Ministrio do Reino, que recebia a documentao enviada pelos rgos portugueses para exame no Brasil. As notaes aqui utilizadas so relativas ao arranjo anterior, sem prejuzo do acesso aos documentos que possuem equivalncia. Ver http://www.arquivonacional.gov.br33 Arquivo Nacional. Livros de consulta da Mesa do Desembargo do Pao. Negcios de Portugal, cdice 252, v. 1.34 Arquivo Nacional. Secretaria de Estado do Ministrio do Reino. Negcios de Portugal, caixa 665, pacote 2, Lisboa, 18 maio 1813.35 Arquivo Nacional. Correspondncia da Corte com o vice-reinado. Secretaria de Estado do Brasil, cdice 67, v. 22, fl. 62. 18 mar. 1797.


36 Arquivo Nacional. Correspondncia da corte para os vice-reis, cdice 67, v.12, fl.126, 1776.37 O termo taxidermia surge no incio do sculo XIX, em 1803 no artigo Taxidermie de Louis Dufresne, do Nouveau Dictionnaire no dHistoire Naturelle. As colees de espcimes preparados j se encontravam nos gabinetes de curiosidades do Renascimento, sendo no sculo XVIII, no entanto, perodo de emergncia dos gabinetes e colees de histria natural que se pode falar em uma origem moderna desses procedimentos, com o advento de um grande nmero de tcnicas que associavam a conservao montagem de animais mortos caracterizados em seu estado original. Inventos como o sabo arsnico, em meados do setecentos por Jean-Baptiste Bcoeur, foram nesse sentido revolucionrios, abrindo caminho para que o sculo seguinte aprimorasse com o uso de armaes e manequins, a possibilidade de dotar de uma aparncia viva, animais de diferentes portes. A referncia taxidermia, mesmo para perodos anteriores ao uso da palavra, corrente na literatura sobre o tema, por referir-se ao processo como um todo..38 Arquivo Nacional. Coleo Negcios de Portugal, caixa 725, pacote 1, doc. 55, 1797.39 Arquivo Nacional. Registro da correspondncia do vice-reinado com diversas autoridades, cdice 70, v. 12, fl.130, 1784.

40 Arquivo Nacional. Coleo Desembargo do Pao, caixa 138, doc. 51, 1810.41 Arquivo Nacional. Correspondncia do vice-reinado com a corte, cdice 68, v.6, fl 79, 1783.42 Ibidem, fl.79.43 Em 1783, um ano antes da criao da Casa dos pssaros (para muitos, o embrio do Museu Real e, posteriormente Museu Nacional), ordenava-se a instalao de viveiros no quintal da casa de Francisco Xavier, por se achar incumbido da diligncia e cuidado dos mesmos pssaros, que a mesma portaria classificava de preciosssimos. Cf. Arquivo Nacional. Vice-reinado, portarias, cdice 73, v.15, fl.180, 1783.44 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 148.45 Cf. Arquivo Nacional. Coleo de memrias e outros documentos sobre vrios objetos. Diversos Cdices - SDH.46 Arquivo Nacional. Correspondncia diversa. Vice-reinado, caixa 491, pacote 3. Rio de Janeiro, 4 ago. 1799.47 Arquivo Nacional. Ministrio do Reino. Pernambuco, Correspondncia do presidente da provncia, Srie Interior, IJJ9 237, Recife, 4 jan. 1808. 48 Arquivo Nacional. Coleo de memrias e outros documentos sobre vrios objetos. Diversos Cdices - SDH. Cdice 807, v. 20, Rio de Janeiro, 29 dez. 1821.

Artigo recebido em maio de 2014. Aceito em julho de 2014.

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