nina rodrigues - mestiçagem, degenerescência e crime

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  • 8/7/2019 Nina Rodrigues - Mestiagem, degenerescncia e crime

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    v.15, n.4, p.1151-1182, out.-dez. 2008 1151

    Mestiagem, degenerescncia e crime

    Mestiagem, degenerescncia e crime1

    Race crossing, degenaration, and crime

    Dr. Nina RodriguesProfessor de Medicina Legal da Faculdade da Bahia 2

    I

    Mestiagem. A mestiagem humana um problema biolgico dos mais apaixonantesintelectualmente e que tem o dom especial de suscitar sempre as discusses mais ardentes.

    A questo da unidade ou da multiplicidade da espcie humana, do monogenismo e dopoligenismo, que parece pertencer ao domnio das cincias naturais e apresentar um interessepura e exclusivamente antropolgico, provoca as mais ardentes disputas. No calor dodebate, reconhecemos freqentemente que nesta questo est contida outra, transcendente,filosfica, e at teolgica: a da origem natural ou sobrenatural do homem, do transformismoou da criao divina.

    Ao aceitar como critrio fundamental da espcie a fecundidade indefinida doscruzamentos, era natural que os poligenistas apoiassem o hibridismo dos cruzamentoshumanos, contra os monogenistas, que se esforam por demonstrar a viabilidade perfeita

    de todos os mestios.Assim, o critrio de viabilidade e de capacidade dos mestios foi posto no terreno das

    cincias naturais. Tanto como para os animais, esse critrio deveria ser a perfeita eugenesiados mestios humanos, que uns apoiavam e outros negavam.

    Colocados nesse campo, foi fcil aos monogenistas declarar os que os contraditavamcomo vencidos, demonstrando, com numerosos fatos em seu apoio, a eugenesia exuberantede produtos do cruzamento, ainda que provenientes das raas consideradas pelospoligenistas espcies distintas, tais como as raas branca, negra e vermelha.

    O debate entre o monogenismo e o poligenismo estava, entretanto, destinado a perderafinal quase todo seu interesse filosfico, j que, admitindo com os transformistas que a

    origem do homem se deu entre os primatas, e no entre os smios ou pr-smios, admissvelque ela se localize tanto em um s tronco quanto em troncos diversos, de tal modo queatualmente h tanto transformistas que aceitam a hiptese polifiltica (Haeckel, Popinardetc.) quanto os que aceitam a hiptese monofiltica (Keane etc.).

    1 Traduo de Mariza Corra do artigo Mtissage, dgnerescence et crime, publicado nos ArchivesdAnthropologie Criminelle, v.14, n.83, 1899. O exemplar usado para esta traduo, cpia do existente naFaculdade de Medicina da Bahia, trazia uma dedicatria em francs, manuscrita, para Alfredo Britto, naqual s legvel a palavra amiti, assinada por Nina Rodrigues e com a data de 10 de janeiro de 1900.Abaixo, a informao sobre a editora: Lyon, A. Storck & Cie, Imprimeurs-diteurs; e a data.2 Nota de traduo: conforme o frontispcio do artigo.

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    Esta , precisamente, a posio que a mestiagem da Amrica Latina tem ocupado na

    discusso.As grandes propores que o cruzamento de raas que deviam ser consideradas espcies

    distintas tem tomado nesses pases deveriam forosamente atrair a ateno dos debatedores,e o Brasil, assim como as repblicas sul-americanas, tem-se tornado o exemplo obrigatrio,lembrado por todos nesse debate.

    No trabalho que publicou em 1855, Gobineau6 j fazia um quadro bem negro dadecadncia dos mestios sul-americanos. Mas em 1861, Quatrefages7 invocava, precisamentecontra ele, o exemplo da Amrica do Sul a favor do sucesso completo da mestiagem epunha em relevo a intrepidez e a energia da empresa dos paulistas8 brasileiros. Mais tarde,em 1863, Agassiz9 que por sua vez v a mestiagem como a causa fundamental da deca-dncia miservel dos mestios do vale amaznico. Sem ir mais longe, recentemente vemos

    Gustave Le Bon10 considerar as repblicas sul-americanas a prova incontestvel da influnciasocial desastrosa dos mestios, ao passo que Keane11 os apresenta como a prova no menosconclusiva das vantagens da mestiagem.

    II

    Em tais condies, a utilidade de procurar resolver o problema atravs da observaodireta e imediata indiscutvel.

    A observao, tal como feita at hoje, voltando-se para todo um povo ou para casosmuito limitados e muito especficos, no pode trazer seno provas muito discutveis e nopode iluminar a questo com as luzes soberanas da verdade. Num pas inteiro e sem orecurso a estatsticas no caso dos povos que se prestam a essa discusso, quase impossveldistinguir a influncia da mestiagem entre as mil outras causas complexas, suscetveis deproduzir sua decadncia. Em alguns casos muito especiais sempre justo suspeitar de umaexceo ou de uma influncia degenerativa local, responsvel pela ao imputvel aocruzamento.

    Para evitar esses escolhos, procurei, em minhas observaes, preencher duas condiesfundamentais: estudar pequenas localidades, nas quais mais fcil distinguir as diferentes

    causas degenerativas, dado que a populao local no se distingue em nada do tipo mdiogeral da provncia ou estado; e completar o estudo da capacidade social da populaoatravs do exame de sua capacidade biolgica escalonada sobre sua histria mdica.

    6 Gobineau,Essai sur linegalit des races humaines, Paris, 1855.7 Quatrefages, Lunit de lespce humaine, Paris, 1861.8 Habitantes do estado ou provncia de So Paulo.9 Agassiz, Voyage au Brsil, trad., 1869.10 Gustave Le Bon, loc. cit.11 Keane, loc. cit.

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    Se existe uma localidade na qual os mestios brasileiros constituem uma populao

    capaz de oferecer esperanas de futuro, certamente Serrinha. No se deveria acreditar, noentanto, a partir da reputao da qual goza, que ela uma exceo regra.

    Em primeiro lugar, se ela no padece de uma indolncia invencvel, como muitas outras,no obstante est longe de ser realmente trabalhadora. Os procedimentos de cultivo sode fato primitivos; cultiva-se apenas os produtos mais comuns: cereais, tabaco, mandioca. disso que se ocupam os trabalhadores durante uma pequena parte do ano, o que s exigedeles um trabalho intermitente, leve, bom para mulheres e crianas mais do que parahomens. As pessoas se dedicam criao de gado, mas utilizam o mais primitivo dossistemas; os animais, deixados soltos a pastar nos campos naturais ou no cultivados,quase voltaram ao estado selvagem e seus donos no tomam outro cuidado que o de saberonde eles foram parar. Nada mais apropriado para manter o gosto da vida nmade nesse

    povo semibrbaro. Em segundo lugar, sua previdncia no vai muito longe; ele fica satisfeitoassim que encontra o estritamente necessrio vida cotidiana; o desejo de riquezas, debem estar, at do simplesmente confortvel no o aguilhoa nem o estimula ao trabalho.Entre os raros indivduos que fazem exceo a essa regra, o esprito empreendedor poucoprogressista, sempre estreito e quase nulo.

    III

    Degenerescncia. Propus-me a verificar se esta populao, que sob todos os aspectosno se separa nem se distingue do tipo mdio da populao mestia do estado, tinha ovigor, a atividade que podemos esperar de uma populao nova, saudvel e fortificadapelo cruzamento.

    A tendncia degenerescncia , ao contrrio, to acentuada aqui quanto poderia sernum povo decadente e esgotado. A propenso s doenas mentais, s afeces graves dosistema nervoso, degenerescncia fsica e psquica das mais acentuadas.

    Como em todas as pequenas localidades nas quais a populao se desenvolve gradual-mente em torno de um pequeno ncleo de habitantes, os laos de parentesco, mais ou

    menos estreitos, fazem deles, em Serrinha, especialmente na cidade, uma nica grande famlia.Na tbua genealgica que vou esboar, tentei representar a histria mdica dessa

    localidade tal como a pude reconstituir com os dados de minhas observaes diretas e comas informaes que recolhi cuidadosamente sobre pessoas ainda vivas. Ela compreendeperto de seis geraes e demonstra, com uma eloqncia indiscutvel, os acmulos notveisde tara hereditria degenerativa. Obrigado a omitir todos os esclarecimentos que pudessemtornar reconhecveis as pessoas, observarei apenas que nessa tbua s se encontram osindivduos que foram atingidos por formas degenerativas to evidentes que elas so,reconhecveis at pelo vulgo. No incluo os casos nos quais a degenerescncia no serevestiu de formas mrbidas suscetveis de serem reconhecidas pelos leigos e de serem

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    Observao V. N.O., 32 anos, mestia quase branca, bem situada, mas se ocupa com

    trabalhos domsticos fatigantes; cinco filhos. Antes de casar teve um acesso de depressomelanclica acompanhado de fenmenos neurastnicos que permanecem h um ano.Volta das tendncias melanclicas depois de seu ltimo parto; tristeza, vontade de chorar,repugnncia pelo trabalho, insnia, sensao de cabea estalando, impossibilidade defixar a ateno, dores ceflicas. Tem um pai degenerado, alcolatra. H tudo para crernuma forte tara hereditria.

    A histeria, to freqente na populao mestia do estado, relativamente rara em Serrinha.Encontramos a perturbaes e crises histeriformes freqentes entre os neurastnicos, masquase no h a histeria convulsiva comum, doena das mais freqentes na Bahia entre osmestios e os brancos. Mencionarei apenas alguns casos de histeria major.

    Observao VI. Arm..., 28 anos, mestia de ndio apresentando sinais bem marcantesda raa vermelha, verdadeiro tipo indgena. Mulher estril, casada duas vezes. Bem situada,quase sem ocupao. Desde sua mais tenra infncia teve acidentes histricos graves, e maistarde numerosos acessos de grande histeria que por vezes lhe causam contraturas rebeldes,s vezes estados delirantes prolongados; mesmo em estado de viglia, ela constantementeatormentada por iluses sensoriais e alucinaes visuais e auditivas; manifestaesdermopticas notveis. Forte tara hereditria.

    Observao VII. A..., mestia parda, quase branca; bem situada, sem ocupao. Casadaduas vezes. Fortemente histrica, foi tratada vrias vezes na nossa cidade. Tara hereditria.

    Observao VIII. J..., 40 anos, mulata clara, considerada cega h muito tempo. Simplesblefarospasmo muscular bilateral, no doloroso. Abertas as plpebras com a ajuda dosdedos, a doente pode ver perfeitamente. Estigmas histricos, anestesia, ovrio etc. Me deuma jovem que no pude ver e que tem acessos de histeria convulsiva, comum, ou pequenahisteria.

    A epilepsia tambm muito freqente; tenho anotaes sobre seis casos que observeiem pardos, mulatos claros e escuros, negros e brancos.

    A degenerescncia fsica e mental excessivamente freqente. Desde verdadeirasmonstruosidades at simples estigmas de degenerescncia, tais como lbio leporino, palato

    fendido, surdo-mudez, associam-se a numerosas manifestaes de degenerescncia inferior.As anomalias e as monstruosidades sobre as quais conservei anotaes compreendemtipos diferentes, alguns muito curiosos por sua associao a manifestaes muito complexasde degenerescncia. Diferentes casos de no-viabilidade de recm-nascidos devida a essacausa chegaram ao meu conhecimento e pude recolher alguns esclarecimentos a esse respeito.

    Observao IX. Recentemente atendi uma senhora de Serrinha, atingida por um

    violento acesso de melancolia que sofreu aps ter dado luz um monstro com hipertrofia

    cartilaginosa do tecido sseo, biabdominal, com encurtamento dos membros superiores

    encaixados no trax. Natimorto.

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    falamos. Depois do parto, novo acesso de melancolia gemedora com sitiofobia opinitica

    que nos obrigou a recorrer, durante vrios dias, sonda alimentar, fazendo cateterismo doesfago pelas fossas nasais. A doena persiste; a famlia se recusou a internar a doente.

    Observao XIX. A.J..., mulata escura, 55 anos, teve onze filhos, seis dos quais esto

    vivos. Delrio de alucinao alcolica h longos anos com alternncias de melhora e deagravamento. Me alienada.

    Observao XX. Joanna, jovem de 16 anos, mestia de sangue indgena bem marcada

    pelos caracteres da raa vermelha. Tara hereditria pesada. Mal desenvolvida fisicamente;

    j teve duas ou trs vezes delrios polimorfos, mais ou menos longos. Nscia. Quando a vi,

    estava atacada por um delrio agitado, mas incoerente.

    Observao XXI. Valeriano Baptista, 40 anos, mulato baixo e musculoso. Casado, 14filhos. Antecedentes hereditrios desconhecidos. Trabalha no campo. Delrio de perseguio

    com alucinaes mltiplas, sobretudo auditivas. Sem ser alcolatra, com freqncia no

    est sbrio. Alienado h cerca de seis anos, a doena apresenta perodos de calma que lhe

    permitem voltar ao seio da famlia e retomar seus trabalhos habituais.

    Observao XXII. Antonio Oliveira, 55 anos, mulato alto, magro, mas bem constitudo

    e ainda vigoroso. Falta de sobriedade. Casado com uma mulata j velha; tem vrios filhos

    que atingiram a idade adulta, alguns dos quais so casados. Antecedentes hereditrios

    desconhecidos. Delrio de perseguio sob a forma de um violento delrio de cimes; v emtoda parte amantes de sua mulher, a quem acusa de infidelidade com a cumplicidade de

    seus prprios filhos. Toma mil precaues ridculas para surpreend-la; freqentemente a

    maltrata e a ameaa de morte. Por causa de suas perseguies, fui chamado a examin-lo a

    pedido das autoridades.

    Observao XXIII. F..., 30 anos, mulato claro, alto, vigoroso, bem constitudo.

    Antecedentes hereditrios desconhecidos. Atingido pela loucura h cerca de cinco anos,numa poca em que no morava em Serrinha. Parece ter tido um ataque de melancolia;

    atualmente delirante polimorfo; delrio hipocondraco, de perseguio, religioso, poltico,

    de grandeza etc. Tendncia pronunciada demncia.

    Observao XXIV. A..., mulato, 28 anos, antecedentes desconhecidos. Hipocondraco,

    concepes delirantes provenientes de uma nevrose do estmago. Pouco tempo depois de

    minha partida de Serrinha, o revi no asilo desta cidade; ele pedia que lhe abrissem o ventre

    para retirar os animais que o carcomiam.

    Observao XXV. M..., negra, 30 anos; histeria, delrio de possesso demonaca hmeses. Antecedentes: descobri que ela descendia de pais africanos filiados seita iorub,estando conseqentemente exposta aos xtases e aos fenmenos de sonambulismo.

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    determinantes das psicoses so em realidade os primeiros sintomas de um estado

    neuroptico.Nossas concluses sero as mesmas no que tange s localizaes nervosas da sfilis, cuja

    freqncia pode denunciar apenas uma degenerescncia latente.Mas sobretudo a consanginidade que vemos geralmente como causa eficiente dessas

    manifestaes, essa sendo a opinio corrente na localidade, o que contm certamente umagrande parte de verdade. Os belos estudos sobre a consanginidade, no topo dos quais,como estudo de conjunto, quero colocar o importante artigo de meu eminente mestre eamigo, o professor Lacassagne,15 deixaram fora de dvida a sua impossibilidade de causarsozinha a degenerescncia, no obstante ser uma causa de seu agravamento. Ora, nopodemos negar que nossa tbua genealgica principal demonstra com eloqncia a grandeinfluncia da hereditariedade consangnea sobre a degenerescncia da populao de

    Serrinha, mas impossvel atribuir-lhe uma ao maior.Como fica evidente nesse estudo, no apenas existem em Serrinha vrias famlias

    degeneradas sem laos de parentesco entre elas, como vemos ainda a hereditariedadeatravessar facilmente as barreiras do parentesco consangneo.

    realmente curioso ver na grande rvore genealgica o mesmo indivduo, casadosucessivamente com duas mulheres estranhas sua famlia, transmitir a tara hereditriaaos filhos nascidos dessas duas unies. A observao XII nos mostra o marido infectado,verdadeiro louco moral, que transmite aos filhos legtimos que ele teve com uma prima amesma manifestao de degenerao que transmitiu a uma filha adulterina, nascida deuma negra.

    As causas reais das manifestaes mrbidas ou de degenerescncia estudadas napopulao de Serrinha devem ser mais longnquas e mais poderosas, e essas causas no sooutras seno as ms condies nas quais se efetivaram os cruzamentos raciais dos quaissaiu a populao da localidade analisada.

    O cruzamento de raas to diferentes antropologicamente, como so as raas branca,negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frgil resistncia fsica e moral,no podendo se adaptar ao clima do Brasil nem s condies da luta social das raassuperiores.

    A degenerescncia das populaes mestias se constitui, sem dvida, num fenmenomuito complexo que no podemos reduzir a manifestaes mrbidas fatais ou irremissveis.Proteiforme, ela pode bem tomar formas que vo desde brilhantes manifestaes de

    inteligncia como entre os degenerados superiores, passando por uma mdia de capacidadesocial de tipo inferior, mal tocada por tendncias degenerativas, que tomaro corpo maise mais nas geraes futuras , at as manifestaes estridentes da degenerescncia-enfermidade, nas quais os estigmas se impem pelo franco desequilbrio mental ou sob aforma impressionante de monstruosidades fsicas repugnantes.

    Temos de convir, no entanto, que a degenerescncia-enfermidade aqui a conseqnciade uma fragilidade congnita, do germe de um desequilbrio diattico que trabalha para aextino da raa sem ser incompatvel com a existncia de uma sade vigorosa dos

    15 Verbete consanguinit,Dict. encycl. des sciences mdicales, de Dechambre.

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    Rio de Janeiro; o terceiro foi um eminente jurista. So eles em geral citados entre ns como

    sendo a negao mais formal da degenerescncia dos mestios. Mas esquece-se facilmente,ou finge-se ignorar, que o mdico foi atingido pela loucura, e dela morreu, e que oengenheiro recentemente ps fim a sua vida, recorrendo ao suicdio. Silva, tambm professorna Faculdade da Bahia, outro mestio notvel pelo talento, apresentado como prova dovalor da mestiagem. Ora, todos sabem que Silva morreu de uma mielite, e sua degene-rescncia gensica que fazia dele um homossexual ativo notria. O eminente Barreto, umde nossos mestios de maior valor intelectual, levou sempre uma vida desregrada e morreuem conseqncia dela. Um de seus crticos (Araripe), antigo condiscpulo dele, observa,falando de seu lirismo como poeta, que ele se ressente da incurvel lubricidade da raanegra, qual pertencia. Outros mestios se mostraram superiores em nosso pas; talvezfosse fcil demonstrar sua degenerescncia ou a existncia de taras em suas famlias.

    que as caractersticas fsicas e morais das duas raas no se fundem nos mestios demodo a resultar sempre num produto mdio. Muitos exemplos, que no vale a pena lembraraqui, demonstram que as qualidades fsicas e morais podem se transmitir formandocombinaes muito variadas. Um mestio pode herdar a inteligncia da raa superior eoutras caractersticas da raa inferior, como o caso do engenheiro Lislet Geoffray,correspondente do Instituto Francs,16 inversamente, ou ainda em caso de fuso proporcional,certas qualidades das tendncias, dos instintos ou dos sentimentos das raas puras podempredominar. Esta desigualdade, entre os mestios, da influncia das duas raas que se cruzam um fato sancionado pela prtica mais distanciada da especulao cientfica.

    Nossos antroplogos j observaram que os mestios brasileiros no so igualmente

    dotados de boas qualidades.Couto de Magalhes afirma que o melhor mestio (de branco com ndio) aquele queresulta do tronco branco com no mximo um quinto de sangue indgena. Ladislau Nettoobservou em famlias mulatas que os filhos nos quais se acentuam as caractersticas da raanegra que so por vezes os mais inteligentes.

    Nesses casos, os mestios so mais ou menos retornados ao equilbrio de uma das raaspuras, e se distanciam dos tipos rigorosamente mdios nos quais parece revelar-se em todasua plenitude, em toda sua brutalidade, o conflito que irrompeu entre qualidades psquicase condies fsicas e fisiolgicas muito desiguais de duas raas profundamente diferentes,caractersticas que a hereditariedade fundiu numa combinao, num amlgama defeituoso,no produto resultante da unio, do cruzamento, das duas raas.

    Ora, se do antagonismo e da diferena entre as caractersticas antropolgicas outnicas das raas que se cruzam que devem vir todos os defeitos dos produtos mestios,como conseqncia de anulaes ou combinaes que podem ser feitas entre elas, claroque no podemos julgar a mestiagem em bloco, como fez Mme. Clmence Royer, mas que preciso, ao contrrio, distinguir entre o cruzamento das raas prximas e pouco diferentese aquele de raas antropologicamente muito distintas. Atualmente, todos os fatos confirmaminteiramente a seguinte opinio de Spencer, dada h um bom quarto de sculo:Podemos

    16 In Quatrefages,Lunit de lespce humaine, Paris, 1861.

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    chocante. Pois bem, o elemento branco que se mistura no deixa de se extinguir, no cria

    uma causa menor de degenerescncia. Conheo inmeros casos nos quais os mestios, aindaque de segundo ou de terceiro sangues, tendo recebido uma dose nova de sangue branco,continuam a degenerar ao invs de regenerar. Os casos seguintes esclarecero esse aspecto.

    Observao XXVII. Portugus casado com uma mulata clara; seis filhos, muito claros.O mais velho, impetuoso, violento, nervoso; o segundo, neurastnico hereditrio desdemuitos anos; uma menina atingida pela pequena histeria; uma segunda degenerada:assimetria facial, histeroepilepsia; outra com boa sade, mas com tendncia a engordar;enfim, uma ltima, ainda pequena, tem boa sade at agora.

    Observao XXVIII. Portugus casado com uma mestia de branco e indgena. Seis

    filhos. O mais velho tem um temperamento nervoso; o segundo, degenerado, perturbado,tuberculoso; uma menina com histeria e tuberculose pulmonar; outra menina, mstica,pretende-se poeta; uma menina completamente degenerada, doenas com tiques, comacessos histrico-epilticos. Por ltimo, um adolescente que at agora apresenta um estadonormal.

    Observao XXIXX. Italiano, casado com uma senhora mestia quase branca, cincofilhos. O mais velho idiota, epilptico; a segunda, muito bonita, histrica, com muitasfobias. Duas crianas pequenas com uma assimetria facial notvel; outro, taciturno.

    Observao XXX. Alemo casado com uma mulata escura, cinco filhos. Um, taciturno,concentrado, dissimulado; outro, alienado, esteve internado na Alemanha e no nossoasilo; um que parece normal e duas meninas nas mesmas condies.

    No pretendo discutir a no adaptao da raa branca aos climas trridos nem a dosnegros aos climas frios. Permitam-me, no entanto, lembrar que os holandeses, que ocuparamo norte do Brasil durante quase trinta anos, no deixaram outros vestgios de sua linhagemque no alguns nomes de famlia, ao passo que as colnias alems do extremo sul, nasquais os negros decrescem numericamente, esto em plena prosperidade. Quatrefages,20

    monogenista notvel e partidrio decidido da unidade da espcie humana, pode escrever: verdade que o europeu branco transportado abaixo da linha [do Equador] ou s regiesintertropicais definha e perece freqentemente sem deixar posteridade, ou essa se extingueao fim de um pequeno nmero de geraes. verdade que o negro africano emigrado paraa Europa freqentemente morre de tsica. tambm verdade que na nossa colnia daArglia a mortalidade dos adultos, e sobretudo a das crianas, bastante superior queobservamos na me ptria. Mas de que perspectiva podem essas verdades ser invocadas afavor do poligenismo? A raa, como vimos, antes de tudo um produto do meio. Formadasob o imprio de certas condies de existncia e encontrando-se bruscamente sob novas

    20 Quatrefages, Lunit de lespce humaine, Paris, 1861, p.368.

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    so, de modo nenhum, em geral, degenerados fsicos; se s vezes eles parecem ricamente

    dotados, tanto do ponto de vista da energia vital quanto do da inteligncia, podemosdizer que entre eles a inteligncia parece mesmo tanto mais ativa e mais potente porque elano nunca perturbada pela conscincia.

    Se a violncia, e at a impulsividade inata das raas inferiores, deve exercer uma influnciadecisiva sobre a qualidade dos crimes, pode bem no ter nenhuma influncia sobre suaquantidade.

    Spencer observou que existem muitos selvagens, sobretudo os da Amrica, dotados deuma apatia extrema; ele busca explicar esse fato por uma predisposio constitucionalorgnica. Pode ser, diz ele,22 se as raas americanas no se mostram dispostas a agirdepois do primeiro impulso, que esse defeito provenha de uma inrcia constitucional. Eno entanto esta apatia no exclui entre eles as exploses de um furor violento provocadas

    s vezes por causas da menor importncia.Pois bem, em Serrinha a criminalidade muito baixa: estamos longe de poder dizer o

    mesmo da populao mestia do pas. A falta de estatsticas no nos permite fazer umestudo comparativo da criminalidade baiana. Neste pas, os ensaios de estatstica feitos athoje nos autorizam apenas a confirmar, de maneira geral, as concluses s quais chegaramem seus estudos, em grande parte sem estatsticas rigorosas, de Flaix,23 para os EstadosUnidos; Kocher,24 para a Arglia; Bertholon,25 para os muulmanos da Tunsia; de Lorion,26

    para a Conchincina; Gentini,27 para o Mxico; Corre,28 para as colnias francesas, isto ,que o tipo violento predomina na criminalidade da populao de cor.

    o que podemos concluir, no que diz respeito ao Brasil, das estatsticas limitadas oumuito incompletas de Clovis Bevilaqua,29 para o Cear; de Candido Mota,30 para So

    Paulo; de Saraiva,31 para Minas Gerais.Mas do fato de que em Serrinha a criminalidade seja baixa, no se pode concluir que a

    degenerescncia, to nitidamente existente nesse local com seus traos mrbidos, no exerauma influncia muito forte nas manifestaes criminosas.

    Para convencer-se de que a criminalidade tambm a uma simples manifestao dadegenerescncia produzida pela mestiagem, suficiente ler a histria das duas famlias dasquais se vai falar, nas quais vemos a criminalidade associar-se franca e intimamente com as

    22 Spencer,Principes de sociologie, trad. por E. Cazelles. Paris, 1886, p.83.23 Fournier de Flaix, La criminalit aus tats-Unies, Revue Scientifique, 1893.24 Kocher,La criminalit chez les arabes en Algrie, Paris, 1884.25 Bertholon, Esquisse de lanthropologie criminelle des tunisiens musulmans, Archives dAnthropologieCriminelle, 1889.26 Lorion, Criminalit et mdecine judiciaire em Cochinchine,Archives dAnthropologie Criminelle, 1887.27 Gentini, La criminalit nel Messico, Archivio di Psychiatria, Scienze Penali ed Anthropologia Criminale,v.IX.28 Corre, Etnographie criminelle, Paris, eLe crime en pays croles, Paris.29 Bevilaqua, Criminologia e direito, Bahia, 1896.30 Candido Mota, Relatrio , So Paulo, 1894.31 Saraiva Salvinho,Relatrio, Minas Gerais, 1894.

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    Mestiagem, degenerescncia e crime

    de toda sorte, jogo, embriaguez, vive constantemente em castigo. O administrador afirma

    que no sabe mais o que h de fazer dele.[Resolvi-me a completar o estudo deste criminoso.] um pardo em que os caracteres do mulato e do mameluco34 esto bem combinados.

    Ainda completamente imberbe; apenas ligeiro buo. No apresenta deformao ou estigmafsico, no canhoto, nem ambidestro. As medidas ceflicas tomadas do os seguintesresultados:

    Dimetro anteropostero mximo............ 180 mmDimetro transverso mximo................... 155mmDimetro frontal mnimo......................... 110mmDimetro frontal mximo......................... 150mmAltura nasal............................................... 52 mm

    Largura nasal............................................. 42 mm

    donde calculamos ndice ceflico hiperbraquicfalo de 86,11 e ndice nasal de 80,75 [80,76].A fisionomia do criminoso sem expresso, tem aparentemente um ar de submisso

    que parece convencional; de fato ele impassvel referindo o crime em todas as suasminudncias como se se tratasse da coisa mais natural do mundo. [Todavia nem faz garbodo crime, nem revela logo primeira vista o cinismo do menor que far objeto da observaoseguinte.] Por que parte entram nessa conduta a perversidade congnita e o lapidamentoda priso, o que no posso dizer. [Embora com dificuldade, consegui hipnotizar ocriminoso e desde ento] procurei indagar que influncia podiam ter exercido no seuesprito a suposta ordem do inimigo do pai e a do companheiro a quem imputa a sugesto

    do roubo. [Hipnotizado, revelou o criminoso] *Assim, tentei hipnotiz-lo, mas o criminosologo confessou* que tal ordem nunca havia existido e que o verdadeiro mvel do crimehavia sido a circunstncia de ter ele, na ausncia do pai, cortado um p de mandioca eprometido um tio que assim que o pai chegasse lhe havia de comunicar o fato para que elecastigasse o filho. Foi, pois, para evitar o castigo que este cometeu o parricdio.

    Da em diante [mesmo em viglia] o menor passou a contar-me o fato por este modo,confessando que tinha sido falsa a inveno de um mandante. [Tambm por este meioconsegui] *Obtive igualmente* a confisso completa dos seus hbitos pederastas que atento ele teimava em negar.

    Nada indica que este rapaz tenha sido vtima de sugestes estranhas na prtica dos seuscrimes. [Continuo a estud-lo, mas no de difcil hipnotizao35] *Ele difcil dehipnotizar*

    e ope *rudes* obstculos s sugestes, aparentando aceit-las, mas sendo realmente muitodissimulado.

    Trata-se neste caso de um criminoso nato, ou de criminoso de hbito aperfeioado pelomeio? Esta ltima classificao tem em seu favor a falta dos grandes estigmas fsicos docriminoso nato. Mas a [precocidade] *perversidade* desse criminoso, a natureza do seucrime, em que se revela uma ausncia completa do sentimento de piedade, ou pelo menos

    34 *Produto de branco e ndio*.35 Nota de traduo: de acordo com a frase seguinte, talvez o no tenha sido includo por erro decomposio na edio brasileira.

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    Mestiagem, degenerescncia e crime

    Linha colateral cujos antecedentes so desconhecidos

    Clemente, mestio quase negro. X., mulher de ClementeBriguento, tentou assassinar seu patro,que acusa de ter atentado contra a honrade sua filha e que recusava-se a pagar indenizao.Tio de C. e D. por aliana, , portantoirmo do bisav/bisav de Lino.37

    Muitos filhos, um negro e alcolatra contumazMuitos filhos, um assassino (Obs. XXXV)

    A histria dos membros anormais dessa famlia, ainda que resumida, tem grande valor,j que facilita extremamente a compreenso exata da impulsividade dos mestios.

    Observao XXXIII. O mestio C..., irmo do assassino Manoel Felipe, um homemde cerca de cinqenta anos, escuro, com caractersticas bem ntidas de negro e indgena. um vaqueiro, considerado pelas pessoas da vizinhana um homem srio. Extremamentecolrico, no pode tocar em bebidas alcolicas sem se tornar provocativo, briguento esempre acaba por chegar violncia e at ao crime. Ele me disse que evita as discusses etem tanto medo de no poder se controlar, que, quando insultado, foge dos lugaresonde se encontra.

    Observao XXXIV. Manoel-Felipe, irmo do anterior, mestio escuro, mostrando

    igualmente as caractersticas do negro e do indgena bem acentuadas (ver a fotografia 2,tirada na penitenciria).

    No dia 9 de dezembro de 1888, s sete horas da noite, Manoel assassinou a jovemIsabelle, a quem queria simplesmente castigar.

    Encontrando Isabelle na porta da cabana em que moravam, comeou a discutir comela, cobriu-a de golpes de faca e quando abandonou sua vtima ela no era mais que umcadver coberto de feridas. O assassino estava sob o jugo de um forte acesso de violncia.

    Ele tentou fazer com que os vizinhos acreditassem que a jovem infeliz tinha cadovtima de um ataque; preso, ainda procurou resistir.

    Felipe magro e alto, mede um metro e 72 de altura e um metro e 76 de envergadura. ainda vigoroso, apesar de ter cerca de sessenta anos, e no apresenta anomalias nem estigmas

    dignos de chamar a ateno. Alegre, ele conversa e brinca por iniciativa prpria e ri de simesmo. Sua conduta na cadeia, onde est desde 1889, exemplar: um prisioneiro moderado,obediente, trabalhador.

    Quando o interrogo sobre as causas de seu crime, ele me responde que no estavabbado e que no sabe como pde fazer tal coisa. O cime tinha se apoderado dele halgum tempo; ele queria castigar a vtima, com quem vivia maritalmente, e que o enganava:

    37 Nota de traduo: se Clemente era tio por aliana de C. e D., teria sido casado com uma irm do pai ouda me deles e, portanto, no era irmo do bisav ou bisav de Lino, mas sim seu cunhado. Ver, no final,as genealogias recompostas a partir da descrio de Nina Rodrigues, onde esta entra como a de nmero 4.

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    Observao XXXVI. Francisco V..., negro, 45 anos, assassinou duas mulheres, na estrada,

    a golpes de foice, durante a jornada de trabalho do dia primeiro de outubro de 1889.Uma delas, sua antiga concubina, que o tinha abandonado porque ele era preguioso

    e violento, era incessantemente perseguida e ameaada por ele.

    Na penitenciria, V... nos relatou o crime da seguinte maneira:

    Embora separado de sua amante, ele decidiu um dia de manh ir at sua casa buscar

    uma foice que tinha deixado l. No encontrando ningum na casa, viu uma garrafa que

    conhecia bem e bebeu um pouco de cachaa. Sentiu-se fora de si, excitado, exaltado, no

    podendo se dar conta do que fazia. Foi nesse estado que saiu, tomou a estrada, e a umacerta distncia encontrou as duas mulheres que seriam suas vtimas; ele se joga sobre elas,

    corta a cabea da primeira, abate a segunda, que tentava fugir, e corre atrs de um jovem

    que as acompanhava.

    Mais adiante, ele encontra uma criana que no conhecia, persegue-a inutilmente e,

    tendo perdido a noo exata das coisas, vai em direo cidade de Nazar, e ao acordar

    encontra-se no hospital. Ao chegar na cidade, o criminoso entra numa venda, compra e

    toma um pouco de bicloruto de mercrio e vai se entregar autoridade judicial, confessando

    seu crime. Ele acrescenta que est envenenado; comea a vomitar; ento que o levam aohospital no qual d entrada como emergncia.

    Nos exames que fiz nesse individuo, estive principalmente preocupado com as

    modificaes pelas quais a memria passou ou podia ter passado.

    V... se lembra perfeitamente de ter atacado as duas mulheres e conserva, ainda que de

    maneira confusa, a lembrana de sua posio e do lugar onde elas caram; ele lembra em

    parte da fuga, da perseguio da criana, mas sua memria no conserva trao do que sepassou a partir de sua entrada na cidade, e o que ele sabe, ouviu dos soldados ou de outros

    detentos. Tem, no entanto, algumas lembranas e parece que com algumas informaessua memria revive, ao menos no que diz respeito a alguns pontos. Ele acredita em seu

    envenenamento, mas o atribui bebida alcolica que tinha tomado.

    Como podemos ver ao examinar a Figura 3, V... um negro muito preto com um leve

    grau de assimetria frontal; suas orelhas so muito deformadas. Ele canhoto e tem uma

    certa fraqueza no membro inferior direito. Os membros superior e inferior do lado esquerdo

    so maiores do que os do lado direito. Ele conta que na adolescncia contraiu uma molstia

    na floresta que comeou com uma completa perda de sentidos. Mas este um ponto que

    no pude elucidar e no sei a verdade a este respeito.Ao chegar penitenciria, ele mostrou uma perda absoluta da memria e se queixava

    de fraqueza; tais incidentes desapareceram.

    Ele est detido na penitenciria da Bahia h oito anos, sua conduta excelente e ele

    aprendeu o ofcio de charuteiro. Nunca teve ataques de qualquer tipo e ningum observou

    que tenha tido ausncias; sua humildade beira o servilismo: poder-se-ia falar de uma

    verdadeira apatia. Esse servilismo deve ser considerado elemento do carter epilptico, se

    lembrarmos que antes do crime ele era visto como violento e preguioso.

    Assim, nesse indivduo degenerado e impulsivo, as exaltaes de uma briga com suaamante, talvez ampliadas pelas decepes causadas pela perda dos bens que ela herdou, e

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    Mestiagem, degenerescncia e crime

    Tbua genealgica 1

    Esse quadro comea com duas irms, sobre as quais no se tem maiores informaes, eapresenta a sua descendncia. Vou cham-las de irm A e irm B. A irm A casou-se com umdesequilibrado e teve seis filhos: (A1) uma mulher de boa sade, casada com um mulatoescuro, teve cinco filhos, dos quais um violento, impulsivo, e um imbecil; (A2) um homemcolrico, inconstante, teve seis filhos, dos quais (2.1) uma, com boa sade, casou-se com ofilho imbecil de (A1) e tiveram trs filhos com boa sade e um que morreu de eclmpsia; e(2.2) um idiota; (A3) um homem desequilibrado, que teve sete filhos de boa sade; (A4) umhomem desequilibrado, excntrico, teve sete filhos. Esses sete so: uma mulher que estavabem; um homem que estava bem; um homem violento, colrico, com trs filhos; um homemneuropata, que tinha reteno de urina e cinco filhos; um homem desequilibrado, mentirosoe criminoso, que teve cinco filhos com boa sade; uma mulher colrica, violenta; e umhomem degenerado, verdadeiro louco moral, que teve com uma negra uma filha adulterinaan. Este ltimo casou-se com a primeira filha de (A5) e teve cinco filhos, um ano infantile outro imbecil. O quinto filho da irm A(5), afetado por tabes dorsalis, tambm teve setefilhos: uma mulher polisarcique; um homem com tabes dorsalis; um homem desequilibrado,com quatro filhos; uma mulher neurastnica hereditria; uma mulher de boa sade, comquatro filhos; uma mulher alienada que morreu no asilo; e um homem alienado, que esteve

    internado no asilo e hoje se porta bem, com cinco filhos. O sexto filho da irm A(6),homem com boa sade, casou-se com a primeira filha da irm B(1), mulher de boa sade, eteve um filho homem desequilibrado e prdigo que, por sua vez, teve um filho ilegtimo,dispsomanaco. O segundo filho da irm B(2), era um homem de boa sade, que no tevefilhos. O terceiro (B3), era homem de boa sade, que teve quatro filhos. O quarto (B4) eraum homem diabtico, que morreu paraltico e teve filhos com duas mulheres: uma mulataque lhe deu trs filhos uma filha com 11 filhos, um homem com quatro filhos, e uma filhacom 15 filhos, dois natimortos, com o palato fendido e uma ndia que tambm lhe deutrs filhos. Essa ndia tinha uma irm que teve uma filha imbecil e delirante. Com a ndia eleteve um filho homem, imprevidente, com 12 filhos, dos quais uma filha, delirante, que secasou com um primo; um homem com boa sade, 11 filhos, um degenerado fsico; e um

    homem com poliomielite crnica, que se casou com uma mulher asmtica, neurastnicahereditria de tendncias melanclicas, estril. Esta mulher tinha quatro irmos: um homemcom boa sade; um homem com boa sade, casado com uma moa muito degenerada; umamulher casada, estril; e um homem jovem degenerado, delirante. Os pais desses cinco irmoseram uma mulher tsica, casada com um homem que morreu alienado e cujo pai tambmera alienado. Os irmos da me eram uma mulher que morreu alienada; um homem casado,sem filhos, e uma mulher com boa sade. Esta teve cinco filhos: uma mulher com boa sade;um homem epilptico que morreu afogado; um homem com boa sade e 14 filhos; umhomem com boa sade, quatro filhos, um deles lydis-cefalique e uma mulher degenerada,manaca.

    Anexos1

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    no menstruada; quase an; teve convulses na infncia, problemas oculares. (7) Idaline,

    18 anos, boa sade. (8) Firmina, estropiada, morta aos oito anos. (9) Porcina, estropiada,morta aos trs anos. (10) Mariana, 14 anos, boa sade. (11) Adlia, 13 anos, aspecto deuma criana de cinco anos, constituio muito frgil; membros muito longos e finos;grande desvio da coluna vertebral (escoliose) que s lhe permite a posio sentada; membrosinferiores magros, coxas arqueadas, sem outro aspecto de deformao devido ao raquitismo;cabea bem conformada; nunca pde caminhar nem ficar em p. A doena teve o mesmocurso entre as outras crianas estropiadas (Obs. XIV). (12) Morta. (13) Theodolina, 11anos, boa sade.

    NOTAS DE TRADUO

    1 As quatro genealogias que acompanham o artigo so um pouco confusas, j que no seguem qualquernotao convencional, sendo semelhantes ao quadro includo ao final da observao nmero XXXII.Optei por descrever o contedo delas no primeiro quadro, que o mais complicado de visualizar. Nosoutros a traduo literal. No primeiro, todas as definies dos personagens so de Nina Rodrigues; sestabeleci a relao entre eles. Agradeo a Maria Celina Pereira de Carvalho por ter feito a transposiodessas genealogias para sua forma convencional, includas a seguir.2 Pode ter sido um erro de composio e tratar-se de Arajo (Obs. XXXI).3 No artigo original este quadro era apresentado no lugar das observaes XIII e XIV, que no sorelatadas.

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    Tb

    ua

    genealgica

    2