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  • Miscelnea, Assis, v. 12, p.169-180, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 169

    11 ______________________________________________________________

    NO MEMORIAL DO CONVENTO,

    O ESPAO ENQUANTO SUGESTO BARROCA

    In the Baltasar and Blimunda,

    the space as suggested baroque.

    Pedro Fernandes de Oliveira Neto1

    Derivaldo dos Santos2

    RESUMO: Em Memorial do convento, de Jos Saramago, os acontecimentos na diegese se

    localizam temporalmente no entre sculos XVII-XVIII. Para se aproximar do contexto histrico

    no qual est situado o romance e possibilitar no leitor um efeito realista, o narrador adota na construo dos elementos narrativos procedimentos lingusticos que recuperam uma atmosfera

    barroca. Nosso objetivo discutir a construo do espao ficcional neste romance, entendendo-o

    como sugesto visual e sensorial que, potencializado em direo rede perceptiva do leitor, apela matria fsica, desnudando, por exemplo, a tessitura da Lisboa setecentista, com sua

    ostentao e grandeza. As consideraes aqui pensadas apontam que, mais que representar o

    tempo histrico no qual esto situados os acontecimentos do romance e, portanto, uma

    revisitao pardica da Histria, o que pretende o escritor reaproximar-se da cosmoviso

    barroca, entendendo-a como elemento atemporal e significativo na construo de um romance

    que se inscreve na teatralidade dos contrastes. PALAVRAS-CHAVES: Espao; Representao; Cosmoviso Barroca; Memorial do convento.

    ABSTRACT: In Baltasar and Blimunda, by Jos Saramago, the events in the diegesis are temporally located between the seventeenth and eighteenth century. In order to approach the

    historical context in which the novel is set and to allow the reader a realist effect, the narrator

    makes use of linguistic procedures in the construction of narrative elements that restore a baroque atmosphere. Our aim is to discuss the constitution of fictional space in this novel,

    considering it as a visual and sensory suggestion that, potentiated towards the readers receptive

    scope, resorts to physical matter, uncovering, for instance, the texture of the eighteenth century Lisbon, with its ostentation and grandeur. Our thoughts here suggests that, rather than

    representing the historical time in which the events of the novel are situated, it is a parodist

    revisiting of History, what the writer has in mind is to become close once again to the baroque worldview, understanding it as timeless and significant element in the construction of a novel

    that takes part of the theatricality of contrasts.

    KEYWORDS: Space; Representation; Baroque worldview; Baltasar and Blimunda.

    1 Aluno do Doutorado em Literatura Comparada, pelo Programa de Ps-Graduao em Estudos

    da Linguagem (PPGEL), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Bolsista CAPES. 2 Doutor em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco; professor da Universidade

    Federal do Rio Grande do Norte (Mestrado e Doutorado em Literatura Comparada PPGEL).

  • Miscelnea, Assis, v. 12, p.169-180, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 170

    [...] as palavras so assim mesmo, vo e voltam, e vo, e

    voltam, e voltam, e vo.

    Jos Saramago, A caverna.

    Memorial do convento um romance que tem sua narrativa

    circunscrita na interseco entre o passado e o presente; isto porque os

    acontecimentos na diegese se localizam temporalmente no entre sculos

    XVII-XVIII e o seu narrador, que o comentarista e avaliador explcito do

    narrado, est situado no sculo XX. Evidentemente que a construo do

    narrador a est distante de ser unitariamente heterodiegtico; so vrias as

    ocasies em que h uma oscilao entre o estar fora da narrativa e o estar em

    coparticipao dos fatos narrados, como j bem notou Dino Del Pino em O

    narrador excntrico do Memorial do convento (1999). E esta movimentao

    entre a linha externa e a interna da narrativa feita, na maioria das situaes,

    no interior de um mesmo perodo, cumprindo um pacto polifnico entre o

    visto, o dito e o pensado, denotando que o narrador detentor de todos os

    limites da ao. Comporta-se, como j dito por Carlos Reis, como uma

    entidade que se move entre o passado, o presente e o futuro, o colectivo e o

    individual, a descrio dos amplos cenrios e a aluso dos pequenos

    pormenores (1986, p. 98).

    O seu enredo toma como ponto de partida uma promessa feita

    entre o rei D. Joo V e os franciscanos para a construo de um convento se

    Deus logo permitisse rainha D. Maria Ana o dom de dar um herdeiro

    coroa. O ato, entretanto, torna-se um mero pretexto do narrador que deitar

    seu interesse pela histria dos trabalhadores, os da arraia mida que

    ajudaram a erguer o convento e em particular o par amoroso Baltasar e

    Blimunda, que juntamente com o padre Bartolomeu de Gusmo engendram

    outra construo, a de uma mquina de voar, que ironicamente atingir seu

    interesse muito antes do fim das obras em Mafra, levada rbita por um

    combustvel metafrico na expresso, as vontades humanas.

    Poderemos, ento, concordar que seja este um romance de

    construes pelo menos cinco: a primeira delas, a do convento, aponta

    para uma construo da prpria identidade portuguesa, a marcada pela

    contrao espacial e pela ambio exploratria do perodo em que se

    desenvolve a diegese; a segunda, a da passarola, aponta para a construo de

    uma nova histria do povo portugus que possa nela incluir a esfera dos

    desvalidos, dos que realmente esto na base de engrenagem da histria; e por

    fim, ambas as construes vo em direo prpria construo do romance.

    No seria larga pretenso dizer que novamente o romancista se aperfeioa

    depois do ensaio de romance Manual de pintura e caligrafia em que o

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    gesto pictural da personagem pintor de retratos se confunde com o gesto

    escritural, ou mesmo em Levantado do cho que sendo a histria da tomada

    de voz de um grupo desvalido tambm a tomada de voz do prprio escritor

    que se encontra a certa altura do romance perseguido pela necessidade de

    construo de outra possibilidade dentro do gesto narrativo e logo tambm

    uma aquisio de uma voz que destoe da corriqueirice narrativa.

    No so raras as situaes no Memorial que apontam para essa

    ideia de metarromance. Lembremos aqui apenas de uma delas, uma que j foi

    retomada em tantas ocasies semelhantes: uma cena situada j num

    momento alto da narrativa. Quando os trabalhadores do convento esto

    trazendo de Pro Pinheiro uma pedra, a me de todas as pedras, o narrador,

    antes de presentificar uma srie de nomes dos envolvidos no trajeto, comenta

    acerca do que seria uma funo do romance em questo ser sua escrita

    um gesto de imortalidade s vidas silenciadas: tudo quanto vida tambm,

    sobretudo se atribulada, principalmente se miservel (SARAMAGO, 2007,

    p.233).3 A justificativa ganha seus contornos quando damos contas de

    estarmos diante de um texto que se predefine no ttulo como um memorial

    do convento, o apanhado histrico da construo em Mafra e sua elevao

    ao status de monumento representativo do poderio de Portugal, mas que finda

    alcanando outro lugar no jogo de significados para o termo: um memorial,

    sim, mas das vidas escamoteadas da histria oficial: j que no podemos

    falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos,

    essa nossa obrigao, s para isso escrevemos, torn-los imortais (p.233).

    O comentrio justifica no apenas o desvio ou reinveno de sentidos

    daquilo que se espera inicialmente do texto, mas justifica o prprio ato de

    romancear. O romancista tem a liberdade esttica de refazer determinadas

    leituras sobre o acontecido e por nesta ordem o silenciado e o ocultado pelas

    vias comuns. A escrita justifica o romance como um ato que restitui o

    ocultado orbe da histria. , por fim, um romance de construes de

    espaos: o espao do monumento reduzido ao levante dos degredados do

    espao histrico; a escrita ficcional como gesto de ensaiar uma nova histria.

    Sendo a construo do convento, um espao fsico, um pretexto

    para uma histria outra, neste ponto que vamos encontrar o Memorial como

    uma narrativa cuja elaborao espacial um dos trabalhos, tal como a do

    narrador, dos mais sofisticados do escritor. No romance podemos assinalar

    pelo menos trs formas de apresentao do espao, seja o resultado da

    necessidade de recriao do espao real, onde se do os acontecimentos,

    3 A partir daqui passaremos a utilizar apenas o nmero da pgina onde est a citao, j que a

    edio utilizada para anlise neste texto apenas uma mesma, que se encontra referendada nas

    referncias.

  • Miscelnea, Assis, v. 12, p.169-180, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 172

    isto , o macroespao de Lisboa e Mafra com seus espaos internos e

    externos, seja o do espao psicolgico, em que se revelam atravs da

    imaginao, do sonho, as emoes e o estado psquico das personagens, seja

    ainda o do espao social, o lugar de atuao das personagens como seres

    sociais. Nosso interesse firma-se nesta ltima forma e de nossa opinio que

    seja este um espao sugerido, como propomos j no ttulo do texto, pela

    razo nica, at o momento, de que o espao a se mostra como representao

    de um ponto de vista do narrador que visa propor um quadro da vida social