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Noite de Noite de Natal Natal Sophia de Mello Breyner Sophia de Mello Breyner Andresen Andresen Publicada em: http://www.escolovar.org

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Noite de Noite de NatalNatal

Sophia de Mello Breyner Sophia de Mello Breyner AndresenAndresen

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O amigoO amigo

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Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta. No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito

antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do

cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus

fazia muitas casas pequenas encostadas ao tronco escuro.

Page 4: Noite de Natal Sophia de Mello Breyner Andresen Publicada em: :

Depois imaginava os Depois imaginava os anõezinhos que, se anõezinhos que, se existissem, poderiam morar existissem, poderiam morar naquelas casas.naquelas casas.

E fazia uma casa maior e mais E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos complicada para o rei dos anões.anões.

Page 5: Noite de Natal Sophia de Mello Breyner Andresen Publicada em: :

Joana não tinha irmãos e brincava Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou vinham brincar os dois primos ou outros meninos. outros meninos.

E , às vezes, ela ia a uma festa. Mas E , às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu musgo e maçavam-se imenso no seu jardim. jardim.

E Joana tinha muita pena de não E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.Só sabia estar sozinha.

Page 6: Noite de Natal Sophia de Mello Breyner Andresen Publicada em: :

Mas um dia encontrou um Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de amigo. Foi numa manhã de Outubro. Outubro.

Joana estava encarrapitada Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo um garoto. Estava todo vestido de remendos e os vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. sorrindo às folhas do Outono.

O coração de Joana deu um O coração de Joana deu um pulo na garganta.pulo na garganta.

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-Ah! – disse ela.-Ah! – disse ela.E pensou:E pensou:““Parece um amigo. É Parece um amigo. É

exactamente igual a um exactamente igual a um amigo.”amigo.”

E do alto do muro chamou-o:E do alto do muro chamou-o:- Bom dia!- Bom dia!O garoto voltou a cabeça, O garoto voltou a cabeça,

sorriu e respondeu:sorriu e respondeu:-Bom dia!-Bom dia!Ficaram os dois um momento Ficaram os dois um momento

calados.calados.

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Depois Joana perguntou:Depois Joana perguntou:- Como é que te chamas?- Como é que te chamas?- Manuel – respondeu o garoto.- Manuel – respondeu o garoto.-Eu chamo-me Joana.-Eu chamo-me Joana.E de novo entre os dois, leve e aéreo, E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta.o sino de uma quinta.Até que o garoto disse:Até que o garoto disse:- O teu jardim é muito bonito.- O teu jardim é muito bonito.- É, vem ver.- É, vem ver.Joana desceu do muro e foi abrir o portão.Joana desceu do muro e foi abrir o portão.

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E foram os dois pelo E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho jardim fora. O rapazinho olhava uma por uma cada olhava uma por uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes tanque e os peixes vermelhos. Mostrou-lhe o vermelhos. Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a pomar, as laranjeiras e a horta. horta.

E chamou os cães para E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-ele os conhecer. E mostrou-lhe todas as árvores e as lhe todas as árvores e as relvas e as flores.relvas e as flores.

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- É lindo, é lindo – dizia o rapazinho gravemente.- É lindo, é lindo – dizia o rapazinho gravemente.- Aqui – disse Joana – é o cedro. É aqui que eu - Aqui – disse Joana – é o cedro. É aqui que eu

brinco. brinco. E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro.E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro.A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava

cheio de paz e de frescura. cheio de paz e de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha Às vezes do alto de uma tília caía uma folha

amarela que dava voltas no ar. Joana foi buscar amarela que dava voltas no ar. Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos anões. Brincaram assim construir a casa do rei dos anões. Brincaram assim durante muito tempo. Até que ao longe apitou uma durante muito tempo. Até que ao longe apitou uma fábrica.fábrica.

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- Meio-dia – disse o garoto -, tenho de me ir embora.- Meio-dia – disse o garoto -, tenho de me ir embora.- Onde é que tu moras?- Onde é que tu moras?- Além nos pinhais.- Além nos pinhais.- É lá a tua casa?- É lá a tua casa?- É, mas não é bem uma casa.- É, mas não é bem uma casa.- Então?- Então?- O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A - O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.ter uma casa.- Mas à noite onde é que dormes?- Mas à noite onde é que dormes?- O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem - O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.ali também.- E onde é que brincas?- E onde é que brincas?- Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da - Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.parte.

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- Mas eu não posso sair deste jardim. Volta - Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.amanhã para brincar comigo.

E daí em diante todas as manhãs o E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.empoleirada em cima do muro.

Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombraa sombra

redonda do cedro.redonda do cedro.E foi assim que Joana encontrou um amigo.E foi assim que Joana encontrou um amigo.Era um amigo maravilhoso. As flores Era um amigo maravilhoso. As flores

voltavam asvoltavam assuas corolas quando ele passava, a luz era suas corolas quando ele passava, a luz era

mais brilhante em seu redor e os pássaros mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.

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A festaA festa

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Passaram muitos dias, passaram Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal. muitas semanas até que chegou o Natal. E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.meia saiu do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo, Quando chegou ao andar de baixo, ouviu vozes na sala grande ; eram as ouviu vozes na sala grande ; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os casa de jantar ver se já lá estavam os copos . copos .

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Os copos passavam a sua vida fechados dentro de Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos . Era como chave. Lá dentro havia sombras e brilhos . Era como o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fecha das muitas coisas, coisas segredos. Estavam lá fecha das muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de um prato com três maçãs de cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas. doiradas.

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Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.duas portas.

No dia de festa, do fundo das sombras do interior No dia de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.música das festas.

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam tão frios e luminosos que mais pareciam lá estavam tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário.do fundo de um armário.

As velas estavam acesas e a sua luz atravessava As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.

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Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.diferentes.

Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.ramos cobertos.

E muito alto, por cima das árvores, era a E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes: velas isso havia muitas coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa maior, com milhões e no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.milhões de estrelas.

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Joana ficou algum tempo com a Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em cabeça levantada. Não pensava em nada.nada.

Olhava a imensa felicidade da Olhava a imensa felicidade da noite no alto escuro e luminoso, sem noite no alto escuro e luminoso, sem nenhuma sombra.nenhuma sombra.

Depois voltou para casa e fechou a Depois voltou para casa e fechou a porta .porta .

- Ainda falta um bocadinho, - Ainda falta um bocadinho, menina – disse a criada.menina – disse a criada.

Então Joana foi à cozinha ver a Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira. Gertrudes, que era uma cozinheira. Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se nas facas mais aguçadas sem se cortar e mandava em tudo, e sabia cortar e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.importante que ela conhecia.

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As luzes eléctricas estavam apagadas.As luzes eléctricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.Só ardiam as velas do pinheiro.

Joana tinha nove anos e já tinha visto nove ve -Joana tinha nove anos e já tinha visto nove ve -zes a árvore do Natal. Mas era sempre como se zes a árvore do Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez.fosse a primeira vez.

Da árvore nascia um brilhar maravilhoso queDa árvore nascia um brilhar maravilhoso quepousava sobre todas as coisas. Era como se o pousava sobre todas as coisas. Era como se o

brilhobrilhode uma estrela se tivesse aproximado da Terra.Erade uma estrela se tivesse aproximado da Terra.Era o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzeso Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzese os seus ramos se carregavam de extraordiná -e os seus ramos se carregavam de extraordiná -rios frutos em memória da alegria que, numa noiterios frutos em memória da alegria que, numa noitemuito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra. muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.

E no presépio as figuras de barro, o Menino, aE no presépio as figuras de barro, o Menino, aVirgem, São José, a vaca e o burro, pareciam con-Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam con-tinuar uma doce conversa que jamais tinha sido in-tinuar uma doce conversa que jamais tinha sido in-terrompida. Era uma conversa que se via e não seterrompida. Era uma conversa que se via e não seouvia.ouvia.

A Joana olhava, olhava, olhava.A Joana olhava, olhava, olhava.Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.

Page 20: Noite de Natal Sophia de Mello Breyner Andresen Publicada em: :

A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Na -A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Na -tal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peitotal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peitorecheado, já estava toda doirada.recheado, já estava toda doirada.

- Gertrudes, ouve uma coisa – disse Joana.- Gertrudes, ouve uma coisa – disse Joana.A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.- O que é? – perguntou ela.- O que é? – perguntou ela.- Que presentes é que achas que eu vou ter?- Que presentes é que achas que eu vou ter?- Não sei – disse Gertrudes -, não posso adivinhar.- Não sei – disse Gertrudes -, não posso adivinhar.Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso conti-Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso conti-

nuou a fazer perguntas.nuou a fazer perguntas.- E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?- E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?

- Qual amigo? – disse a cozinheira- Qual amigo? – disse a cozinheira

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- O Manuel.- O Manuel.- O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.- O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.- Não vai ter presentes nenhuns!?- Não vai ter presentes nenhuns!?- Não – disse a Gertrudes abanando a cabeça.- Não – disse a Gertrudes abanando a cabeça.- Mas porquê, Gertrudes?- Mas porquê, Gertrudes?-Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.-Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.- Isso não pode ser, Gertrudes.- Isso não pode ser, Gertrudes.Mas é assim mesmo – disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.Mas é assim mesmo – disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era

“assim mesmo”.“assim mesmo”.Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a

ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.coisas e os homens.

Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.ficou calada a cismar no meio da cozinha.

De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:Já chegaram os primos.Já chegaram os primos.Então Joana foi ter com os primos.Então Joana foi ter com os primos.

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Daí a uns minutos apareceram as pessoas Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.grandes e foram todos para a mesa.

Tinha começado a festa do Natal. Havia no ar Tinha começado a festa do Natal. Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro.um cheiro de canela e de pinheiro.

Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doira -doira -

das. E as pessoas riam e diziam umas às das. E as pessoas riam e diziam umas às outras: “Bom Natal”. Os copos tilintavam com outras: “Bom Natal”. Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joanaisto Joana

pensava:pensava:- Com certeza que a Gertrudes se - Com certeza que a Gertrudes se

enganou. O Natal é uma festa para toda a enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.Com certeza que ele também tem presentes.

E consolada com esta esperança Joana voltou E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes. a ficar quase tão alegre como antes.

O jantar de Natal era igual ao de todos os O jantar de Natal era igual ao de todos os anos.anos.

Primeiro veio na canja, depois o bacalhau Primeiro veio na canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.

No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.se de par em par a porta e entraram na sala.

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Um dos Primos puxou-a por um braço.Um dos Primos puxou-a por um braço.- Joana, ali estão os teus presentes.- Joana, ali estão os teus presentes.Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a a

bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.À sua volta todos riam e conversavam.À sua volta todos riam e conversavam.Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, tido,

falando ao mesmo tempo.falando ao mesmo tempo.E Joana pensava:E Joana pensava:- Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.- Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.E a festa continuava.E a festa continuava.As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a

conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar. conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar. Até que alguém disse:Até que alguém disse:- São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são - São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas horas

de as crianças se irem deitar.de as crianças se irem deitar.Então as pessoas começaram a sair.Então as pessoas começaram a sair.O pai e a mãe de Joana também saíram.O pai e a mãe de Joana também saíram.- Boa noite, minha querida. Bom Natal – disseram eles.- Boa noite, minha querida. Bom Natal – disseram eles.E a porta fechou-se.E a porta fechou-se.

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Daí a um instante saíram as criadas.Daí a um instante saíram as criadas.A casa ficou muito silenciosa. Tinham A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.cozinha a arrumar as panelas.E Joana foi à cozinha. Era a altura boa E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.para falar com a Gertrudes.

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- Bom Natal, Gertrudes – disse Joana.- Bom Natal, Gertrudes – disse Joana.- Bom Natal – respondeu a Gertrudes.- Bom Natal – respondeu a Gertrudes.Joana calou-se um momento. Depois perguntou:Joana calou-se um momento. Depois perguntou:- Gertrudes, aquilo que disseste antes de jantar é verdade?- Gertrudes, aquilo que disseste antes de jantar é verdade?- O que é que eu disse?- O que é que eu disse?- Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal - Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.porque os pobres não têm presentes.- Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve - Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza. - Mas então o Natal dele como foi ?- Mas então o Natal dele como foi ? - Foi como nos outros dias.- Foi como nos outros dias.- E como é nos outros dias?- E como é nos outros dias?- Uma sopa e um bocado de pão.- Uma sopa e um bocado de pão.- Gertrudes, isso é verdade?- Gertrudes, isso é verdade?- Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a - Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.noite.- Boa noite – disse Joana.- Boa noite – disse Joana.E saiu da cozinha.E saiu da cozinha.

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Subiu as escadas e foi para o seu quarto. Os seus pre -Subiu as escadas e foi para o seu quarto. Os seus pre -sentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-ossentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-osum por um. E pensava:um por um. E pensava:

- Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros.- Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros.São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo

ooque queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.

E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes,E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes,Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza.

Pôs-sePôs-sea imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bema imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bemuma casa, mas um curral de animais.uma casa, mas um curral de animais.

““Que frio lá deve estar!”, pensava ela.Que frio lá deve estar!”, pensava ela.“ “ Que escuro lá deve estar!”, pensava ela.Que escuro lá deve estar!”, pensava ela.“ “ Que triste lá deve estar!”, pensava.Que triste lá deve estar!”, pensava.E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhumaE começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma

luz onde Manuel dormia em cima de palhas, aquecido sóluz onde Manuel dormia em cima de palhas, aquecido sópelo bafo de uma vaca e de um burro.pelo bafo de uma vaca e de um burro.

- Amanhã vou dar-lhe os meus presentes – disse ela.- Amanhã vou dar-lhe os meus presentes – disse ela.Depois suspirou e pensou:Depois suspirou e pensou:““Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite deAmanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de

Natal.”Natal.”

Page 27: Noite de Natal Sophia de Mello Breyner Andresen Publicada em: :

Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros esprei-Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros esprei-tou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria tou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.era o pinhal.

Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.doze pancadas da meia-noite.

““Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.”Natal.”

Foi ao armário tirou o casaco e vestiu-o. Depois pegou na Foi ao armário tirou o casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também

a a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.bonecas.

Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu. Na sala de jantar havia uma arrumar as panelas e não a ouviu. Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.ficar só fechada no trinco.

Depois Atravessou o jardim. O Alex e a Chibita ladraram.Depois Atravessou o jardim. O Alex e a Chibita ladraram.- Sou eu, sou eu – disse Joana.- Sou eu, sou eu – disse Joana.E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

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A estrelaA estrela

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Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos e folhas enchiam o céu de desenhosárvores pareciam enormes e os seus ramos e folhas enchiam o céu de desenhosiguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àque-Àque-la hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas,la hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas,dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viamdentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viampessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas apessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas aolhavam e a ouviam como pessoas.olhavam e a ouviam como pessoas.

““Tenho medo”, pensou ela.Tenho medo”, pensou ela.Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre doisQuando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois

muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem mu -muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem mu -ros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e ros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e

redondaredondae toda brilhante.e toda brilhante.

O silêncio era tão forte que parecia cantar . Muito ao longe via-se a massa O silêncio era tão forte que parecia cantar . Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.escura dos pinhais.

““Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana.Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana.Mas continuou a caminhar.Mas continuou a caminhar.Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas.Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas.

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Ali no descampado sopravam um curto vento de neve que lhe cortavam Ali no descampado sopravam um curto vento de neve que lhe cortavam a cara a cara

como uma faca.como uma faca.““Tenho frio”, pensou Joana.Tenho frio”, pensou Joana.Mas continuou a caminhar.Mas continuou a caminhar.À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até maior. Até

que ficou enorme.que ficou enorme.Joana parou um instante no meio dos campos.Joana parou um instante no meio dos campos.«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à suasua

frente não havia rasto.frente não havia rasto.«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.E levantou a cabeça.E levantou a cabeça.

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Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava. “ “Esta estrela parece um amigo”, pensou ela.Esta estrela parece um amigo”, pensou ela. E começou a seguir a estrela.E começou a seguir a estrela. Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram

umaumaroda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam

comcomgrandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que grandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que

pareciampareciammurmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de murmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de

som-som-bras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além bras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além

dedetodas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela.todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela. Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos. “ “Será um lobo?”, pensou.Será um lobo?”, pensou. Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgirParou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgirentre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.

““Será um ladrão?”, pensou.Será um ladrão?”, pensou.

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Mas o vulto parou na sua frente e ela viu Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei.que era um rei.

Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul seus ombros caía um longo manto azul

todo todo bordado de diamantes.bordado de diamantes.

- Boa noite – disse Joana.- Boa noite – disse Joana.- Boa noite – disse o rei - . Como te - Boa noite – disse o rei - . Como te chamas?chamas?- Eu, Joana – disse ela.- Eu, Joana – disse ela.- Eu chamo-me Melchior – disse o rei.- Eu chamo-me Melchior – disse o rei.E perguntou:E perguntou:- Onde vais sozinha a esta hora da - Onde vais sozinha a esta hora da noite?noite?- Vou com a estrela – disse ela.- Vou com a estrela – disse ela.- Também eu – disse o rei - ,também eu - Também eu – disse o rei - ,também eu vou com a estrela.vou com a estrela.

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E juntos seguiram através do pinhal.E juntos seguiram através do pinhal.E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto manto

vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.Boa noite – disse ela -, chamo-me Joana e vou com a estrela.Boa noite – disse ela -, chamo-me Joana e vou com a estrela.- Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela e o meu nome é - Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.Gaspar.E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de barulho de

passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis dos pinheiros escuros.passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis dos pinheiros escuros.Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde verde

Bordado de pérolas. A sua cara era preta.Bordado de pérolas. A sua cara era preta.- Boa noite – disse ela. – O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.- Boa noite – disse ela. – O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.- Também eu – disse o rei – caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.- Também eu – disse o rei – caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.E juntos seguiram os quatro através da noite.E juntos seguiram os quatro através da noite.No chão os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava No chão os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entrevas árvores e os grandes mantos bordados dos reis do Oriente entrevas árvores e os grandes mantos bordados dos reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.

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Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou. parou. E continuou a caminhar.E continuou a caminhar.Até que chegaram ao lugar onde a estrela Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava .o brilho dos anjos o iluminava .E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.dormia sorrindo.Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos .O seu corpo não tinha nenhum peso e era anjos .O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.feito de luz sem nenhuma sombra.E com as mãos postas os anjos rezavam E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar. ajoelhados no ar. Era assim, à luz dos anjos, o Natal de ManuelEra assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel

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E com as mãos postas os anjos rezavam E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados ajoelhados

no ar.no ar.Era assim, à luz dos anjos, o Natal de ManuelEra assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel-Ah – disse Joana -, aqui é como no presépio.-Ah – disse Joana -, aqui é como no presépio.Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus

presentes.presentes.

FIMFIM