nós que amvamos tanto a revoluo

18
E nós que amávamos tanto a revolução... E NÓS QUE AMÁVAMOS TANTO A REVOLUÇÃO TEXTO DE EWERTON FREDERICO 1

Upload: camila-villela

Post on 29-Sep-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

EWERTON FREDERICO

TRANSCRIPT

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    E NS QUE AMVAMOS TANTO A REVOLUO

    TEXTO DE EWERTON FREDERICO

    1

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    CENA 1O palco est totalmente escuro.Um homem entra,ele est apenas com a luz da lanterna acesa.Aponta para platia.

    HOMEM: Algum deseja sair?(pausa)Algum deseja sair?(enftico)Vocs pelo menos tiveram escolha.Blecaute.

    CENA 2poca atualNo centro do palco esta um Velho sentado em uma cadeira de rodas.Ele sofre de Parkinson, a luz da lanterna apontada para ele.A cena remete a um interrogatrio.

    HOMEM: O senhor acusado de prender e torturar presos polticos durante o regime militar no Brasil.

    VELHO: E que provas essas pessoas tem contra mim?

    HOMEM: Um parente de uns dos presos te reconheceu e o denunciou por assassinato!

    VELHO:Infmia,infmia...Querem me desmoralizar diante da minha corporao e da minha famlia.O que mais eles querem se nem a minha prpria vida eu tenho mais.

    HOMEM: O que o senhor fazia no Dops?

    VELHO: Eu era delegado e naquela poca as leis eram para ser cumpridas e no questionadas.

    HOMEM: E o senhor nunca viu cenas de torturas nas celas do Dops?

    VELHO: Depende do que o senhor chama de tortura...

    2

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    HOMEM: Cadeira do drago,pau de arara,choque eltrico...

    VELHO:Olha(P)Se fiz alguma coisa de errado peo desculpas,dizer que no cometi erros hipocrisia,eu tambm no concordava com aquilo,mas o que eu podia fazer?

    HOMEM: Vou te falar alguns nomes...

    VELHO: No adianta.J faz muito tempo e naquela poca as coisas estavam complicadas.O presidente Costa e Silva tinha acabado de assinar o Ato Institucional N.5.Eu vi muita gente entrar ali.Estudantes,professores,sindicalistas,jornalistas.Foi um ano tumultuado.

    HOMEM: Joo,Pedro,Paulo,Ana...(P)Antonio Maria Pereira!O Velho reage ao ouvir o nome.

    HOMEM: Este o nome do homem que uma mulher o acusa de ter assassinado.Era um homem pacato,professor de uma escola primaria e que nunca se envolveu com poltica.

    VELHO: Ningum que preso totalmente inocente.Mas eu me lembro desse homem.Eu tentei ajud-lo,mas ele no aceitou.

    HOMEM: Ento o senhor...

    VELHO: No!Se vai me perguntar se eu o matei,no.Este homem quando entrou no Dops,j estava morto.

    Som de tiro.Blecaute.

    CENA 3

    Sala do DOPS.So Paulo, dezembro de 1968 (aps o AI-5).Msica.ANTONIO MARIA esta sentado, olha para os lados nervoso. sua frente esta um Homem que bate maquina freneticamente.O ESCRIVO fixa os olhos em Wladimir que se sente desconfortvel.Longo silncio.

    ESCRIVO: Nome?

    ANTONIO MARIA: Antonio Maria Pereira.

    3

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    ESCRIVO: Cidade onde nasceu?

    ANTONIO MARIA: Belo Horizonte.

    ESCRIVO: Mora em So Paulo quanto tempo?

    ANTONIO MARIA: 20 anos.(Descontrado) Mas sou mineiro, o mineiro sai de Minas, mas Minas no sai do mineiro j dizia Drummond.

    O Escrivo reage ao ouvir o nome.

    ESCRIVO: Quem este?

    ANTONIO MARIA: Drummond (pausa) Carlos Drummond de Andrade.

    ESCRIVO: Ele tambm um terrorista?

    ANTONIO MARIA: No! Ele um poeta, escritor mineiro, meu conterrneo.

    Homem volta a datilografar.

    ESCRIVO: Data de nascimento?

    ANTONIO MARIA: 29 de Maio de 1924.

    ESCRIVO: Idade?

    ANTONIO MARIA: 44 anos.

    ESCRIVO: Estado civil?

    ANTONIO MARIA: Solteiro, sem filhos.

    ESCRIVO: Filiao?

    ANTONIO MARIA: Antonio Carlos Pereira e Maria Aparecida Pereira,meus pais j so falecidos.

    Escrivo para de bater a mquina.Olha com desdm para Antonio Maria.Volta a datilografar.

    ESCRIVO: Profisso?

    4

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    ANTONIO MARIA: Sou professor de uma escola primria.

    Escrivo l com ateno o que escreveu.Fala dando nfase a cada palavra.

    ESCRIVO: O senhor acusado de pertencer a vrias organizaes terroristas...

    ANTONIO MARIA(INTERROMPENDO): Terroristas!

    ESCRIVO:O senhor tambm acusado de promover mensagens com contedo subversivo que ameaa a ordem da segurana nacional.(pausa) Como se declara?

    ANTONIO MARIA: Inocente.

    Escrivo volta a datilografar.Aperta com muita fora a ultima tecla.Os dois se olham.Blecaute.

    Cena 4

    Retro projetor com cenas de manifestaes contra a ditadura.Fotos e noticias da poca.Na falta das projees pode ser usado tambm uma rosa no centro de palco com um foco fechado.

    Narrao em off:Existem alguns anos em nossas vidas que so divisores. Cenas de atos que ficam registrados na memria de nossa histria. como ouvir uma musica que nos faz lembrar de algum que deixou marcada a sua passagem.Imagine agora que com a sua idade atual, voc acaba de voltar no tempo. Estamos em 1968, de repente voc esta em uma passeata com cem mil pessoas, gritando palavras de ordem contra o regime. Dos edifcios, papis picados e aplausos, isso te enche de orgulho e autoconfiana. Na cabea, o grande hino da poca, Pra no dizer que no falei das flores, de Geraldo Vandr. A revoluo esta logo ali na esquina, ao alcance de todos, com a cabea cheia de idias e nas mos um fuzil.Chegam os homens, a policia, marcham juntos, munidos de escudos e cacetetes de madeira, o cheiro do gs lacrimogneo sufoca. Tem gente que sai com o rosto ensopado de sangue e hematomas pelo corpo. A policia leva, prende e d uns cascudos. Se voc no apanhou muito e nem foi preso, da pra chegar num barzinho no comeo da noite pra

    5

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    encontrar o pessoal da esquerda intelectualizada. Entre chopes e cuba-libre, voc tira da bolsa um exemplar da revista Veja que acabou de ser lanada. Ali lemos e discutimos noticias que nos deixam indignados, como a invaso dos tanques soviticos na Tchecoslovquia, voc chora com o assassinato de Martin Luther King, quer se vingar dos PMs que mataram o estudante Edson Luiz. Um amigo teu comenta da estria da pea Roda Viva de Chico Buarque e Jose Celso no teatro Ruth Escobar em So Paulo, a policia chegou quebrando tudo desceu o cacete nos atores. Da algum coloca na vitrola o disco Tropiclia.Mas depois de um discurso do deputado Marcio Moreira Alves, o presidente Costa e Silva decretou o Ato Institucional n 5. Foi o golpe dentro do golpe, depois disso qualquer vestgio de liberdade se evaporou. A policia saiu atirando para matar, o DOPS passou a ser a casa de quem ia contra o regime, ali era cenrio de prises e torturas. A campanha Brasil ame-o ou deixe-o, era o lema de quem preferiu ficar e viver com razo. Teve gente que pra no morrer subiu no rabo de um foguete e foi embora. O cerco tinha se fechado e a juventude queria ser como Che Guevara. As pessoas passaram a pegar a pegar em armas para comear a guerrilha contra a opresso e o totalitarismo. H quem pagou com a prpria vida o desejo de liberdade. Gente que tinha culpa e gente que nada devia, mas mesmo assim pagou.Assim era viver naquele ano de 1968, foram anos de crena, em que se acreditava no homem, na poltica e na moral. Tinha-se f na revoluo que ia mudar o pas, a Terra e a humanidade.

    Fim das imagens.Blecaute.

    Cena 5Som de gritos.Foco em Antonio Maria que esta no centro com as mos amarradas e um capuz na cabea.

    Antonio Maria(Murmurando): gua...gua...

    Del.Miranda(Entrando):Fernando Gabeira,Deputado Rubens Paiva,Wladimir Herzog.Vamos fale aqui para o seu companheiro,quero nomes,quero endereos,quero saber quem quem destas organizaes que vocs criaram.Fala!

    Antonio Maria(Gritando): Eu no sei!

    Del.Miranda (incisivo): No sabe? Ento como explica que um jornalzinho comunista de merda tenha publicado um poema de sua autoria.

    6

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Antonio Maria: Eu no sei, s tomei conhecimento desta publicao quando fui trago para c.

    Del. Miranda: Ento o r. alega que teve um manifesto contra o governo, publicado em um jornal de grande circulao sem o seu consentimento?

    Antonio Maria: Isso mesmo, mas no um manifesto, um poema.

    Del.Miranda: O que o Sr. faz, trabalha em que?

    Antonio Maria: Sou professor,dou aulas em uma escola primaria.

    Del.Miranda (irnico): E nas horas vagas poeta?

    Wladimir: Eu escrevo poesias, mas so muito pessoais nunca mostrei a ningum. Por isso nem sei como um poema meu foi publicado em um jornal.

    Del.Miranda entra na sala.Esta fumando um charuto.

    Del.Miranda: Estivemos em sua casa, bem grande por sinal, para um homem que mora sozinho, sem esposa, sem filhos...

    ANTONIO MARIA: A casa herana de meus pais, que j so falecidos.

    Delegado: Nos j sabemos disso Sr Antonio Maria, sabemos tudo a seu respeito.Uma casa bem grande,fico tentando imaginar que tipos de planos obscuros vocs faziam dentro daqueles cmodos.

    ANTONIO MARIA:Nunca me reuni para confabular coisa alguma,nunca me envolvi com poltica.

    Del.Miranda: E com que o senhor se envolve?

    Antonio Maria:Tenho um compromisso com o meu trabalho,com meus alunos.

    Del.Miranda: E...

    Antonio Maria: s isso,no me envolvo com poltica sou um homem descente.

    7

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Del.Miranda:Esta dizendo que a poltica imoral?

    Antonio Maria:H muitas coisas acontecendo por ai,e nem todas podemos dizer que sejam legais.

    Del Miranda:E que tipo de coisas seriam essas?

    Antonio Maria:Acho que essa pergunta o senhor pode responder melhor do que eu.

    Del.Miranda (Cnico): Ento o senhor diz no pertencer a nenhuma organizao terrorista,alega que no sabe como um poema seu foi publicado e que no oferece nenhum risco a segurana nacional.

    Antonio Maria: Isto mesmo senhor,eu no tenho nada haver com isso. Eu s quero voltar pra minha casa.

    Del.Miranda: O senhor vai voltar pra casa, s que antes temos que resolver um problema.

    Wladimir: Qual senhor?

    Del.Miranda: O Sr. se declara inocente de todas as acusaes que lhe foram feitas. Neste caso, ns temos aqui um ato de injustia contra um cidado de bem. Responda-me uma coisa poeta, acha que os policiais responsveis pela sua arbitrria priso devam ser punidos?

    Antonio Maria (pensa):Cada um age de acordo com sua conscincia.

    Del.Miranda: A policia age de acordo com o que melhor para o pas.Devemos proteger pessoas de bem,de pessoas como voc.

    Antonio Maria: Senhor eu j estou aqui nem sei quanto tempo, o meu corpo todo esta dolorido de tanta pancada que j me deram. Perguntaram-me um monte de coisas, querem que eu d nomes, mas eu no sei de nada, eu s quero voltar pra casa.

    Del.Miranda: O Sr.fuma?

    Antonio Maria acena com a cabea que no.

    Del.Miranda: So charutos cubanos, dizem que so os melhores, ganhei de meu sogro. J esteve em Cuba Senhor Antonio Maria? O que acha de Fidel

    8

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Castro? Eu particularmente acho que ele um porco socialista de merda. E voc o que acha?

    Antonio Maria: Eu nunca estive em Cuba, portanto, eu no sou comunista.

    Del.Miranda: O Senhor no comunista? Ento como explica que este poema de contedo claramente subversivo tenha sido publicado?

    Antonio Maria: Eu no sei senhor, isto apenas um poema antigo, eu o escrevi apenas com a inteno de ser um poema, nada mais.

    Del.Miranda: Neste caso eu vou ler para que o senhor tenha a idia do tamanho do seu crime.

    Del.Miranda retira um papel do bolso, e com um certo cinismo, comea a ler.

    Del. Miranda:

    Amanh

    Por favor, acendam as luzes,Eu no quero dormir agora.Antes prefiro ouvir um disco na vitrola.A cano?No importa...

    Musica.Antonio Maria comea a falar o poema junto com o Delegado.Em um determinado momento, o delegado para e Antonio termina por recit-lo sozinho.

    Antonio e Del.Miranda:Desde que abafe o som que vem de fora.Veja, o livro ainda esta na pagina marcada.Como terminar a historia?

    Antonio recita sozinho:No, no v embora. muito tarde pra sair agora,Fique e tranque a porta.Logo, logo chegara a aurora.Amanh eu varrerei o cho,Pintarei paredes,

    9

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Jogarei no lixo o que no serve mais.Como aquela roupa velha...Que eu usava h algum tempo atrs.Amanh eu correrei na areia,Subirei em arvores,Colherei mas,Amanh e nos amanhs...

    Sobe a msica.Silncio.

    Del.Miranda: Isto uma ntida tentativa de promover a anarquia, uma forma que vocs comunas estpidos encontraram para desestabilizar o governo. (Pausa) Senhor Antonio me responda uma coisa, o que pensa do Brasil?

    Antonio Maria: Eu amo o meu pas.

    Del.Miranda: E do governo, o que acha?

    Antonio fica em silncio.

    Del.Miranda (insiste) Eu lhe fiz uma pergunta, e do governo, o que pensa?

    Antonio Maria: Penso que nenhum governo maior do que o seu povo.

    Del.Miranda aplaude sinicamente.

    Del.Miranda: Bravo! Bravo! (Pausa)O senhor um tipo de comunista, que eu ainda no conhecia. Julga-se inocente de todas as acusaes e vem me dizer que nenhum governo maior que seu povo!

    Antonio Maria: nisso que eu creio.

    Del.Miranda (ameaador): Acredito que tenha percebido senhor poeta, que aqui ns temos meios muito teis para obter informaes. Mas para provar que este um regime democrtico vou lhe dar uma alternativa. Voc assume o seu desligamento da organizao e entrega os nomes e endereos dos integrantes do movimento, e em troca eu me comprometo de providenciar a sua liberdade. E ento, no uma boa troca?

    Antonio Maria: Eu no posso barganhar com o que eu no tenho.

    Del.Miranda avana para Antonio com extrema violncia.

    10

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    D um golpe de gravata.

    Del.Miranda: Acho melhor facilitar o meu trabalho, porque se no vou enfiar um ferro no teu cu s que antes vou esquenta-lo na brasa.

    Antonio Maria: Mas eu j disse que no sei de nada. Qual a minha culpa,a de ser poeta ou a de ser inocente?

    Del.Miranda (spero): No existem inocentes entre os que no apiam o governo.

    Antonio Maria:Vocs me acusam de pertencer as varias organizaes terroristas,mas nada disso faz sentido.Sou professor de uma escola cujos pais so militares,acha mesmo que se eu tivesse escondendo alguma coisa eu viveria por ai,indo e voltando...

    Del Miranda: E no esconde?

    Antonio Maria:No escondo porque nada sei,mas acho que o senhor quem esta se escondendo,me mantendo com a cabea coberta,talvez com medo de que eu o veja.

    Del. Miranda: Ento voc prefere bancar o heri a colaborar conosco, seu comunista filho da puta, eu quero olhar para a tua fua, eu vou cuspir em voc enquanto estiver apanhando. Vamos ver at aonde vai o seu herosmo.

    Del.Miranda avana para Antonio Maria.Com violncia afoga o professor num tonel cheio de gua. Arranca o capuz.Os dois se olham, parecem estar diante de uma viso aterradora.

    Del Miranda: 1944.Rio de Janeiro. Eu e voc nos juntamos a cinco mil homens e embarcamos naquele navio responsvel pelo nosso transporte at a baia de Npoles, onde lutaramos juntos em campos europeus em defesa da...

    Antonio Maria(cnico):Democracia,da justia...Os nossos ideais mudaram muito.

    Del.Miranda: Foi voc que...salvou a minha vida, que me tirou da linha de fogo e impediu que um tiro de fuzil atravessasse o meu crnio.

    11

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Silncio.

    Antonio Maria: Como a vida irnica, no acha?

    Del.Miranda (murmura): ...

    Antonio Maria: Miranda... Posso te chamar assim? (Pausa) Acho que no, o senhor agora uma autoridade. Delegado?

    Del.Miranda confirma com a cabea.

    Antonio Maria: E o que tem feito da vida? (Insinuoso) Alm disso, claro!

    Del.Miranda: Estou cumprindo com o meu dever de cidado. Como homem da lei tenho que zelar pela ordem a favor da segurana do nosso pas.

    Antonio Maria: Claro, afinal o que seria de um pas sem as leis.

    Del.Miranda: Eu consigo entender a sua ironia... Eu tambm estou atordoado com tudo isso... Mas este o meu trabalho, e sou pago pra isso.

    Antonio Maria:Eu sempre tentei imaginar o que teria acontecido com voc,mas nunca imaginei que estivesse to mau.

    Del.Miranda: Voc foi torturado vrios dias seguidos.Esto te tratando como Judas e vo fazer com voc o que fizeram com Cristo. Porque no fala logo o que queremos saber. At parece que voc quer morrer.

    Antonio Maria: No falo nada porque nada sei. Essa a opo que fiz diante da vida. (Conformista) Depois disso tudo, morrer secundrio.

    Del.Miranda: Quer ser mrtir, pra qu? J foi heri. Posso te tirar daqui, sem nenhuma leso a mais, basta me entregar os seus companheiros da organizao. Posso conseguir fazer com que saia do pas em segurana.

    Antonio Maria: Exlio no!

    Del.Miranda: Mas voc no quer ir pra casa, no quer ter a sua vida de volta?

    Antonio Maria: Ser exilado pensar na volta o dia inteiro. (Pausa) Agora j nem sei mais, antes eu pensava que pra viver bastava eu voltar pra casa.

    12

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Del.Miranda: Mas voc no quer voltar?

    Antonio Maria: S quero voltar, se eu pudesse voltar inteiro.

    Del.Miranda: Eu garanto a tua integridade fsica.

    Antonio Maria: No disso que estou falando. algo maior que isso, a minha integridade fsica e moral deixou de existir quando eu entrei aqui. S quero deixar claro, que a minha decadncia no foi vocacional, nem planejada, foi imposta.

    Del.Miranda: Senhor Antonio Maria o Brasil um pais livre, aqui no impomos nada a ningum.Mas no podemos deixar que ele se transforme em uma terra sem leis, em um faroeste, onde qualquer um pode fazer o que bem quiser e ficar impune.(Pausa) Sabe o que eu no entendo, como pode uma pessoa inteligente como o senhor que h anos atrs estava lutando comigo em defesa do pas, tenha hoje se debandado para essa organizao comunista antinacionalista.

    Antonio Maria: Eu lutei contra a tirania e em favor da liberdade.E quanto a este movimento do qual me acusam pertencer, eu no sei se antinacionalista ou no, s sei que eu no sou comunista.

    Del.Miranda:Eu preciso perguntar algo...Hoje depois de tudo o que foi dito, voc se arrepende de ter salvado a minha vida?

    Antonio Maria: No!Eu fiz o que deveria ter feito,como voc far o que deve fazer. Afinal, voc pago pra isso, no isso que o senhor sempre diz.

    Del.Miranda: Se voc pelo menos concordasse em entregar os terroristas.

    Antonio Maria (riso irnico): Terrorista! Nunca pensei que um dia algum me chamaria assim.

    Del. Miranda: Voc esta rindo de uma situao critica.

    Antonio Maria: No adianta eu dizer que pegaram o homem errado. Nunca vo acreditar em mim, no ?

    Del. Miranda: Entenda uma coisa. (Pausa) Imagine que isto uma partida de futebol. Um jogador do seu time chutou a bola para fora, um jogador do meu agarrou e se intitulou o dono dela. Vocs tentaram brigar, mas no

    13

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    conseguiram, o juiz estava do nosso lado e deu carto vermelho para o adversrio. Final do jogo 1 X 0 para ns.

    Antonio Maria: Pelo visto, voc tambm no acredita que eu seja inocente.

    Del. Miranda: E isso faz alguma diferena?

    Antonio Maria: Acho que no...J que voc me colocou do outro lado da trincheira. Lutamos juntos, mas isso foi h muito tempo.

    Del. Miranda: Eu ainda guardo a minha farda.

    Antonio Maria: Eu no. Joguei a minha fora.

    Del. Miranda: Por que?

    Antonio Maria: Naquela poca ramos muito imaturos, por mais que nos dissessem o que era a guerra, o nosso pensamento era de quem ia fazer turismo.

    Del. Miranda: Mas ns estvamos preparados para morrer, no front voc ou o inimigo, cara a cara.

    Antonio Maria: Mas l nos conhecamos o inimigo, sabamos quem ele era e ainda assim, se eu encontrasse um deles e ele levantasse as mos se rendendo, eu no atirava. Havia tica e respeito, diferente de agora.

    Del. Miranda: L no dava tempo de sentir medo. O pior vem depois na hora de dormir qualquer rudo te assusta.

    Antonio Maria: Pra mim o pior era entrar na casa das pessoas para procurar bombas ou inimigos. A sensao de deixar as pessoas apavoradas era horrvel. contra o meu principio de vida.

    Del. Miranda (frieza): Mas tudo isso j passou. Estamos vivos e j escrevemos o nosso nome na histria.

    Antonio Maria: Essa histria que tambm foi escrita com o sangue de muitos pracinhas brasileiros que no retornaram.

    Del. Miranda: Mas toda guerra assim. Alguns ganham, outros perdem. Ns vencemos.

    14

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Antonio Maria: Estupidez achar que existe vantagem em vencer uma guerra. At hoje escuto o barulho das balas passando raspando por minha cabea. Tenho pesadelos quando me lembro daquela imagem grotesca do corpo do ditador Benito Mussolini pendurado em praa publica. Na guerra no tem quem vena, s quem perde.

    Del. Miranda: Talvez voc tenha razo. Mas isso no importa mais agora.

    Antonio Maria: Claro que importa, no percebe a situao em que estamos. Esta tambm uma guerra que vocs declararam. S vo me considerar inocente se eu me declarar culpado. Essa uma guerra injusta.

    Del. Miranda: Se eu pudesse, eu no teria escolhido te reencontrar dessa forma. Mas nem sempre temos escolhas.

    Antonio Maria: Temos sim.

    Del. Miranda: Mas a escolha que voc esta fazendo no momento, no muito favorvel.

    Antonio Maria: Veja bem. A minha escolha a verdade, confio nela. Se me mandarem atravessar um campo minado com os olhos vendados eu vou, porque conheo o meu medo e o meu limite. Quando voc assume uma escolha e essa escolha a verdade que voc acredita, ento voc j esta pronto para escolher.

    Del. Miranda (incisivo): A verdade que eu acredito essa em que eu vivo, e nela que escolho permanecer. Voc pode me chamar de sdico, de louco ou o que quiser. Esse o nosso governo, e por ele que eu vivo.

    Blecaute.

    Cena 6Luz, indicando passagem de tempo.Musica.Entra o delegado.

    Antonio Maria: Achei que voc no voltaria mais.

    Del. Miranda: Eu voltei pra dizer que voc no tem mais tempo e nem escolha. (Pausa) Eu tentei de alguma forma convencer os outros que voc apenas um bode espiatrio, mas eles no se convenceram disso. A tua nica sada assumir a culpa e entregar os outros.

    Antonio Maria: Ento eu acho que o meu atestado de bito j foi assinado!

    15

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Silncio.

    Antonio Maria:Pode soltar as minhas mos?

    Del. Miranda:Pra que?

    Antonio Maria:Calma eu s quero um cigarro.

    Del Miranda:Mas voc no fuma.

    Delegado retira o cigarro do bolso.Acende os cigarrosAntonio da uma tragada engasga e solta a fumaa,fica brincando com ela.Os dois sentam na mesa um de costas para o outro.

    Del. Miranda: Daqui a algumas horas ser 1969.

    Antonio Maria: 1968...O ano que no terminou. Talvez um dia algum escreva sobre isso.

    Del. Miranda: Dizem que o homem vai chegar a Lua no prximo ano, pelo menos o que os americanos pretendem.

    Antonio Maria: o desejo de ser livre, o homem nasceu para ser livre.Me lembro da primeira vez que os russos mandaram aquela cadelinha para o espao,nunca me senti to triste.

    Del. Miranda (apagando o cigarro no cho): Acho que j esta na minha hora. (Pausa) Ainda d tempo de voc mudar de idia.

    Antonio Maria: Agora entendo, porque sempre me disseram que eu sou um idealista sem causa alguma.

    Antonio levanta. Segue at o delegado.

    Wladimir: Quero que saiba que foi uma honra ter lutado ao seu lado naquela guerra (bate continncia).

    Del. Miranda visivelmente emocionado repete o gesto.

    Antonio Maria:Mas amanh um outro dia.

    16

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    Delegado vai saindo.Para um instante e vira-se para Antonio tenta abra-lo,mas este se recusa.

    Del. Miranda:Quando chegar a hora, feche os olhos, respire fundo e voc no sentir nada:

    Antonio Maria:Como voc sabe disso?

    Msica.Foco sobre os dois,luz vai apagando lentamente.

    17

  • E ns que amvamos tanto a revoluo...

    18