nossa america 35

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publicação da fundação memorial da américa latina

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GOVERNADORJOSÉ SERRA

VICE-GOVERNADORALBERTO GOLDMANSECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAISJOSÉ HENRIQUE REIS LOBO

FUNDAÇÃO MEMORIALDA AMÉRICA LATINA

CONSELHO CURADORPRESIDENTEJOSÉ HENRIQUE REIS LOBO

SECRETÁRIO DE CULTURAJOÃO SAYAD

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO GERALDO ALCKMIN

REITORA DA USPSUELY VILELA

REITOR DA UNICAMPFERNANDO FERREIRA COSTA

REITOR DA UNESPHERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD

PRESIDENTE DA FAPESPCELSO LAFER

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO

DIRETORIA EXECUTIVA

DIRETOR PRESIDENTEFERNANDO LEÇA

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRODE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINAADOLPHO JOSÉ MELFI

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAISFERNANDO CALVOZO

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIROSÉRGIO JACOMINI

CHEFE DE GABINETEJOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO

DIRETOR PRESIDENTEHUBERT ALQUÉRES

DIRETOR INDUSTRIALTEIJI TOMIOKA

DIRETOR FINANCEIROCLODOALDO PELISSIONI

DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS

LUCIA MARIA DAL MEDICO

Número 34ISSN 0103-6777

REVISTA NOSSA AMÉRICA

DIRETORFERNANDO LEÇA

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTELEONOR AMARANTE

COLABORADORA DE EDIÇÃOANA CANDIDA VESPUCCI

TRADUÇÃO

CLAUDIA SCHILLING

PRODUÇÃOHENRIQUE DE ARAUJO

DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOSFELIPE DE OLIVEIRADOUGLAS MALUTALUANA DE ALMEIDA

COLABORARAM NESTE NÚMEROBenedito Braga, Carlos Eduardo Lins da Silva, Celso S. Machado, Eduardo Milan, Florencia Battiti, Hernan Chaimovich, Ives Gandra Martins, Maria Ligia Prado, Nelson Pereira dos Santos, Orlando Azevedo, Reynaldo Damazio.

CONSELHO EDITORIALAníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Ro-berto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbo-sa, Ulpiano Bezerra de Menezes.

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimes-tral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura An-drade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected]. Os textos são de inteira responsablidade dos autores, não refletindo o pensamen-to da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.

CAPAFoto: Orlando Azevedo

EDITORIAL

CINEMA

AGENDA

LIVROS

CÁTEDRA

ANÁLISE

OLHAR

HOMENAGEM

LITERATURA

PATRIMÔNIO

DEMOCRACIA

ECOLOGIA

POLÍTICA

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FERNANDO LEÇA

REYNALDO DAMAZIO

HERNAN CHAIMOVICH

CARLOS E. LINS DA SILVA

LEONOR AMARANTE

ORLANDO AZEVEDO

FLORENCIA BATTITI

IVES GANDRA

MARIA LIGIA PRADO

BENEDITO BRAGA

CELSO S. MACHADO

NELSON P. DOS SANTOS

POESIA

EDUARDO MILÁN66

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Privatizar ou estatizar? A di-cotomia entre regimes capitalistas e socialistas ficou menos clara com o término da Guerra Fria, como obser-va Celso de Souza Machado, cientista político da PUC de São Paulo, em uma das reflexões que integram esta edi-ção, apontando exemplos de governos pró-capitalismo em países socialistas e governos de esquerda em países capita-listas. A situação merece amplo debate e Machado analisa vantagens e desvan-tagens de cada modelo.

Outro tema importante para América Latina é o teor de suas Cons-tituições. O jurista Ives Gandra Mar-tins faz um contraponto entre algu-mas das que vigoram em países da região, para concluir que a brasileira se mostra a mais ajustada aos princí-pios democráticos, simplesmente por conferir equilíbrio de poderes a Exe-cutivo, Legislativo e Judiciário.

Assunto também atual, e que vem ensejando oportunas abordagens, é o

compartilhamento de bacias hidrográfi-cas, muito comum em todo o mundo, mas que exige racionalidade e planeja-mento. Benedito Braga, diretor da Agên-cia Nacional de Águas - ANA, defende a cooperação entre países e exemplifica com a Hidroelétrica de Itaipu, a maior do mundo em geração de energia.

Uma figura mitológica, Robinson Crusoe, criada pelo escritor Daniel De-foe e inspirada em um personagem real, é o tema de um exame acurado de Maria Lígia Prado, historiadora da USP. A aven-tura desse náufrago, lançada em 1719, es-conde algumas peculiaridades que as in-vestigações da pesquisadora desvendam para o leitor. Outro nome lendário, este no meio cinematográfico da atualidade, é Nelson Pereira dos Santos, que parti-cipou do Festival Latino-Americano de Cinema realizado no Memorial. Na oca-sião, ele falou de sua vida e obra e, evi-dentemente, de cinema em geral. Parte de seu depoimento está agora publicado nesta edição da Nossa América.

EDITORIAL

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Rubem Grilo é o homenageado desta edição, ainda dentro das come-morações dos 20 anos do Memorial, uma vez que uma personagem sua é o ícone de uma das coleções de publi-cações da Fundação. Mais um artista ganha as páginas de Nossa América: é o fotógrafo curitibano Orlando Azevedo, que percorreu o país para registrar suas múltiplas faces. Dele consta um ensaio sobre personagens da região Sul do País que, longe das metrópoles, conservam hábitos e costumes trazidos de muito longe, como Ucrânia e Polônia.

Da área acadêmica, vale ressaltar a Cátedra Memorial da América Latina, que chega a seu quarto módulo tratando do papel da Ciência e da Tecnologia no desenvolvimento da América Latina. Seu catedrático, o professor Hernan Chai-movich, discorre sobre a importância do tema, já que conhecimento, no seu entender, será fundamental na supera-ção da crise econômica gerada em 2008. Mais uma questão que demanda debates

é a gestão de Barack Obama e sua polí-tica externa. O jornalista Eduardo Lins da Silva comenta como está o governo do presidente americano aos olhos de seu povo e do mundo, depois de seis meses e muitas expectativas quanto a seu desempenho.

Na seção destinada aos livros, uma resenha sobre O Crime do Restaurante Chi-nês, em que o historiador Boris Fausto monta um relato surpreendente de um fato real. Em Agenda, como sempre um resumo dos melhores momentos da pro-gramação do Memorial da América La-tina, que continua repleta de shows, ex-posições, palestras e cursos de qualidade. E para encerrar, um poema do uruguaio Eduardo Milán, um dos grandes nomes da literatura latino-americana.

Ótima leitura!

Fernando LeçaPresidente do Memorial

da América Latina

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xAS VANTAGENS

E DESVANTAGENSCELSO DE S. MACHADO

POLÍTICA

O término da Guerra Fria significou não somente a possibilidade crescente de governos de direita (pró-ca-pitalismo) dentro dos países socialistas; significou tam-

bém o contrário: a possibilidade crescente de gover-nos de esquerda (pró-socialismo) dentro dos países capitalistas, uma possibilidade que antes não ocorria ou só ocorria excepcionalmente. E a América Latina tem sido rica em experiências de partidos ou frentes políticas de esquerda vencendo eleições e exercendo o Poder Executivo: já em meados da década de 80 em governos municipais (como em Lima, no Peru, e em Diadema e Fortaleza, no Brasil) e depois tam-bém em governos estaduais – e governos federais.

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Nossa América já em 2004 era considerada a “região com a maior concentração de governos de esquerda do mundo”. Ditaduras sangrentas não conseguiram impedir que a esquerda mundial conquistasse o direito não só de existir legalmente, mas também de se eleger e exercer efetivamente o Poder Executivo. Mesmo nos países comunis-tas ou ex-comunistas que se democrati-zaram, abriu-se a possibilidade de gover-nos de esquerda comprometidos com a correção de eventuais deformações ou retrocessos do projeto socialista.

Um partido ou frente política de esquerda no comando de um governo dentro da ordem constitucional capi-talista e sob um regime democrático está em situação radicalmente nova – e não prevista pelos teóricos da esquer-da (Marx, Lênin, Gramsci, etc.): como combater os problemas econômicos (recessão, crise econômica, crise ener-gética, falta de investimentos, infla-ção, falta de matérias-primas, caos nos transportes, etc.) e como combater os problemas sociais (desemprego, pre-vidência, fome, falta de água, de hos-pitais, de habitações, de escolas, etc.) dentro das regras do jogo de uma so-ciedade capitalista democrática ? Não em condições pré-revolucionárias ou pós-revolucionárias, mas sim tendo de respeitar (estado de direito) a legislação em vigor – inclusive para as eventuais mudanças nessa legislação. E se não combater os problemas econômicos e sociais com resultados convincentes para o eleitorado, poderá ser derrotado nas próximas eleições.

Assim, por quase um século, a economia de mercado é que foi con-siderada responsável pela desorgani-zação da economia, pela ineficiência do sistema econômico, pelos proble-mas econômicos e sociais, e pela ex-plosão periódica de crises econômicas (que podiam desembocar em guerras,

inclusive mundiais). A forte presença do Estado na economia era de modo geral considerada fundamental para corrigir e evitar essas ineficiências. Políticas privatizantes ou que preten-dessem diminuir a presença do Estado na economia eram então consideradas como historicamente superadas.

A situação se inverteu na década de 80 e, principalmente, na década de 90: a presença do Estado na economia é que passou a ser considerada res-ponsável pela ineficiência do sistema econômico, pelas crises e pelos pro-blemas econômicos e sociais. As polí-ticas estatizantes é que passaram a ser consideradas como coisa do passado. Em quase todos os países, os proble-mas econômicos e sociais passaram a ser combatidos por meio da dimi-nuição da intervenção do Estado na economia. E não somente no sentido de os governos reduzirem fortemente sua ação reguladora e indutora sobre a economia, mas principalmente, no sentido de os governos promoverem a privatização de suas empresas. A pri-vatização, ao gerar a competição entre os empresários privados, ao promover uma economia de mercado, ainda que inicialmente agravasse alguns problemas, acabaria por desenvolver a eficiência do sistema como um todo – e, dessa ma-neira, iriam sendo combatidos os pro-blemas econômicos e sociais e evitadas as crises.

Com a multiplicação de crises, inicialmente na periferia do sistema in-ternacional (como as crises do México em l994 e da Coréia do Sul em l997) e, em 2008 e 2009, no próprio epicentro da economia mundial (EUA, Europa e Japão), a situação começa a se inverter novamente. Como tem ocorrido em toda a história contemporânea, gover-nos de diferentes orientações ideológi-cas – espremidos entre o agravamento dos problemas econômicos e sociais, e a

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pressão do eleitorado ou do povo – são obrigados a tomar uma atitude – o que significa aumentar sua intervenção na economia. Já estão ocorrendo estatiza-ções ou reestatizaçãoes tanto nos países pobres quanto nos países ricos, inclusi-ve nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Não obstante os vaivéns das políticas econômicas e sociais, hou-ve um processo de cristalização de dois métodos básicos – embora com nuanças – de os governos combate-rem os problemas da economia e os problemas da população. Diante, por exemplo, de um problema econômi-co como a recessão ou um proble-ma social como o desemprego, ou eles próprios começam a produzir e, assim, a gerar produção e empregos em suas próprias empresas, ou se li-mitam a induzir a economia (isenções de impostos, subsídios, empréstimos, etc.) e prestar assistência à população

(auxílio-desemprego, etc.). Diante do problema dos transportes coletivos, ou o governo desenvolve empresas próprias para esse fim (ônibus, me-trô, trem) ou privatiza suas empresas e se limita a monitorar as empresas privadas de transporte coletivo e a subsidiar o preço das passagens para a população carente. Todo problema econômico e social pode – levando em conta obviamente as particularida-des de cada problema – ser combatido pelo método estatizante ou pelo mé-todo privatizante. Em outras palavras, ou os governos combatem os proble-mas econômicos e sociais entrando no jogo, ou saindo dele. Embora seja difícil – diante das limitações de cada governo e da própria complexidade da vida democrática – um governo ado-tar um dos dois métodos para todos os problemas econômicos e sociais, é igualmente difícil pretender, no con-

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junto da sua política, ficar em posição intermediária: é mais ou menos como pretender ficar numa posição inter-mediária entre monarquia e república, entre feudalismo e capitalismo.

Numa análise comparativa, qual dos dois métodos – o estatizante e o privatizante – deu mais certo ?

Como vimos acima, a resposta a essa questão tem seguido mais ou me-nos os ciclos de predomínio de um e outro método. Numa maré de predo-mínio do método estatizante, predo-minam avaliações no sentido de que o crescimento do parque empresarial dos governos tem dado mais estabilidade, desenvolvimento e eficiência às eco-nomias (embora divirjam as correntes quanto ao tamanho e à permanência desse parque empresarial). Numa maré de predomínio do método privatizan-te, predominam avaliações inversas: no sentido de que a diminuição do parque empresarial dos governos é que tem dado mais estabilidade, desenvolvimen-to e eficiência às economias. Contudo, um debate objetivo, rigoroso e meto-dologicamente orientado sobre os prós e os contras, as vantagens e as desvan-tagens, as virtudes e os defeitos de cada tipo de política (e, no limite, de cada tipo de economia: a socialista e a capi-talista) – parece que nunca chegou a ser realizado: as restrições impostas pela extrema tensão do período da Guerra Fria e, no período pós-Guerra Fria, a histeria mundial de políticas privatistas impediram que esse debate fosse rea-lizado – ou comprometeram a objeti-vidade do debate. No entanto, com a crise do neoliberalismo e a nova onda de estatizações e reestatizações, e isso tudo num cenário de conquista demo-crática pós-Guerra Fria, com todas as correntes podendo disputar e exercer o Poder Executivo – esse debate terá agora de ser travado, tanto nas disputas eleitorais quanto no mundo acadêmico,

tanto entre economistas e entre admi-nistradores públicos quanto nos parti-dos e nos sindicatos. E será um debate de extraordinário valor para a educação ideológica e política do eleitorado de todos os países.

Por outro lado, quais as dificul-dades e quais as facilidades para a exe-cução de cada um dos dois métodos ?

Embora seja mais fácil fazer um governo privatizante (basta o go-verno vender suas empresas e utilizar o dinheiro – até que o dinheiro aca-be...), é também mais constrangedor e limitado: o governo mais ou menos reconhece que não é ele quem vai re-solver os problemas econômicos e so-ciais, mas sim a economia privada – o governo vai apenas regular o jogo da economia e prestar socorro à popu-lação. Embora seja mais difícil fazer um governo estatizante, é também mais corajoso e arrojado: o governo começa a ter em suas próprias mãos um arsenal crescente de ferramentas (empresas) com as quais terá um po-der crescente para imprimir uma linha à economia e assim equacionar efeti-vamente os problemas econômicos e sociais.Contudo, ao lado das dificul-dades, o Poder Executivo – confor-me cada nível de governo (federal, estadual e municipal) – dispõe, legal-mente, das facilidades de uma série de instrumentos e prerrogativas que o setor privado não tem e que capaci-tam os governos para a execução do método estatizante.

No entanto, combater os proble-mas econômicos e sociais pelo método estatizante tem para um governo de di-reita (pró-capitalismo) um significado diferente do que tem para um governo de esquerda (pró-socialismo).

Para um governo de direita – que defende a supremacia do sistema empresarial privado na economia -, o método estatizante tem sempre o ob-

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jetivo de prestar socorro, prestar as-sistência, prestar ajuda a esse sistema. Como vimos acima, trata-se de socor-rer a população e de socorrer a eco-nomia. Não se trata, portanto, de tor-nar as empresas públicas ou estatais atores-jogadores efetivos na econo-mia, mas sim de apenas infraestrutu-rar e subsidiar o jogo. – Daí deverem, principalmente as empresas estatais de bens, ser – na ótica de um governo pró-capitalismo – privatizadas sempre que as condições o permitirem.

Para um governo de esquerda, o método estatizante tem um outro significado. Embora haja várias cor-rentes no interior da esquerda, todas concordam ou devem concordar que, para uma perspectiva de esquerda, não é possível resolver os problemas econômicos e sociais dentro do sis-tema empresarial privado (capitalis-mo). Enquanto a lógica desse siste-ma – mesmo que modernizado – for a lógica dominante na economia, só excepcionalmente, e em geral à custa de uma brutal exploração sobre ou-tros países, uma economia conseguirá, não resolver, mas abafar ou congelar seus problemas econômicos e sociais. Assim, para uma posição de esquerda, só um outro tipo de sistema empre-sarial – em que as grandes empresas sejam propriedade de toda a socieda-de – conseguirá livrar a humanidade do horror do desemprego, das várias formas de miséria, das violentas cri-ses econômicas (e do genocídio que provocam), da anarquia nas econo-mias internacional e nacionais, das de-sigualdades sociais, etc. Embora haja correntes de esquerda que se mostrem vacilantes quanto à centralidade da estatização (uma “esquerda-que-tem-medo-da--estatização”), a história tem sinalizado que o modo de apropria-ção de toda a sociedade sobre o seu sistema empresarial é a estatização, é

a empresa estatal ou pública: não só as revoluções vitoriosas de esquerda como também o próprio movimento espontâneo da economia capitalista têm conduzido ao gigantesco avanço do sistema empresarial estatal. Por ou-tro lado, o próprio jogo de forças a que está submetido um governo de es-querda, os compromissos que esse go-

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verno encarna, sua postura ideológica e a pressão crescente do eleitorado e dos problemas econômicos e sociais tendem a ir evidenciando a alternativa estatizante como a mais sensata, plau-sível e, de certa forma, inevitável.

Dessa forma, um governo de es-querda estará sempre colocado na situação de ter de escolher entre combater os pro-blemas econômicos e sociais mais como enfermeiro ou mais como parteiro, mais como bombeiro (apagando o incêndio no edifício) ou mais como arquiteto (arquite-tando a construção de um outro edifício), mais como Robin Hood (tirar dos ricos e dar aos pobres) ou mais como Che Gue-vara (construir um outro sistema, em que não haja ricos nem pobres) – mais como pronto-socorro ou mais como maternida-de. Em outras palavras, combater os pro-blemas econômicos e sociais aprofundando o distributivismo e a regulação (estratégia de posição) ou aprofundando a estatiza-ção (estratégia de ocupação). Se isso ainda não se tornou claro, é porque a esquerda começou a exercer o Poder Executivo no meio de uma pandemia mundial pró-pri-vatização (neoliberalismo).

Por outro lado, para a classe dos trabalhadores assalariados (desprovi-dos de empresas) – classe a que a es-querda pretende representar –, é me-lhor trabalhar no setor estatal ou no setor privado ? Ao trabalhar no setor público, o trabalhador conquista a esta-bilidade de emprego (algo impensável no setor privado) e, como o ingresso é por concurso público, não há discrimi-nação por idade, sexo, etc. Mesmo sem proclamar que statal is beautiful, o tra-balhador sabe ou sente que conquistar um emprego no setor público equivale a conquistar alforria.

Se a esquerda já conquistou o direi-to não só de existir legalmente, mas tam-bém de ocupar e exercer o Poder Execu-tivo, e a direita não tem mais força para dar um golpe – então a relação de forças

mudou radicalmente ! (Ou será que é pre-ciso tocar o despertador ?) A gravidade e a profundidade da atual crise econômi-ca mundial e de outras crises que deverão ocorrer tendem a colocar, para o eleitora-do de todos os países, a plausibilidade do método privatizante e do método estati-zante em condições de igualdade, se não com superioridade deste último. Contudo, combater os problemas econômicos e so-ciais com políticas estatizantes hoje exige que se leve em conta toda a experiência de quase um século com esse tipo de política – levar em conta no sentido de evitar seus erros e omissões, aproveitar seus acertos e, assim, extrair as lições de toda essa ex-periência. A importância de se construir um Estado cada vez mais eficiente, mais ético e mais democrático é uma lição com a qual tanto governos de esquerda quanto governos de direita parecem concordar. Para os governos de esquerda, no entan-to, que defendem a supremacia do sistema empresarial público ou estatal na econo-mia, essa construção é quase uma questão de vida ou morte.

As dificuldades de construção desse Estado cada vez mais eficiente, mais ético e mais democrático são obviamente mui-to grandes. Mas são dificuldades normais no complexo processo de construção de qualquer alternativa de política econômi-ca. São mais ou menos como as dificulda-des de construção da república (na supe-ração da monarquia), ou da construção da democracia (na superação da ditadura).

São dificuldades benignas e bené-ficas. Por outro lado, ciclos de avanços e retrocessos também são normais no co-nhecido ritmo da história: dois passos pra frente, um passo pra trás.

Celso de Souza Machado é licenciado e ba-charel em Ciências Sociais (USP) e em Filo-sofia (USP). Especialização em Ciência Po-lítica (PUC/SP/Bolsista CNPq). Exerce o cargo de Executivo Público no governo do Estado de São Paulo.

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CONSTITUIÇÕESEQUILÍBRIO DE PODERESIVES GANDRA MARTINS

DEMOCRACIA

A Constituição Brasileira, com 250 artigos de disposições perma-nentes, 95 de disposições transi-tórias e 62 emendas - das quais 56 originárias de processo or-dinário e 6 da revisão de 1993

- tem sido considerada uma Constituição dema-siadamente pormenorizada, com inúmeros arti-gos que não mereceriam encontrar-se num texto supremo - como, por exemplo, o artigo 242 § 2º, que impõe a permanência do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, na órbita federal. Apesar de prenhe de defeitos, seu mérito maior, todavia, em face da absoluta liberdade que os constituintes ti-veram para a discussão de um modelo de lei fun-damental, foi o de ter criado um sistema em que o

Em nOmE dA lEIE dA ORdEm

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equilíbrio de Poderes é inequívoco. Em nenhum texto anterior (1824, 1831, 1934, 1937, 1946 e 1967, com suas emendas) tal realidade revelou-se de maneira tão nítida como no de 1998.

Nem mesmo Estados Unidos, pá-tria do presidencialismo, segue a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu, - que a própria França não hospeda - com separação tão nítida como no Bra-sil, nada obstante o instituto das medidas provisórias ofertar impressão diversa.

Deve-se tal equilíbrio ao fato de que toda a formatação da nossa lei maior tem sido para um sistema parla-mentar de governo, ideal frustrado nas discussões finais do texto, em plenário da Constituinte, com o que alguns dos mecanismos de controle dos poderes, próprios do parlamentarismo, remanes-ceram no texto brasileiro. A própria me-dida provisória, cujo teor foi, quase por inteiro, cópia da Constituição de um país parlamentarista (a italiana), demonstra que a mudança do “rumo dos ventos”, no plenário da Constituinte, não foi ca-paz de alterar o espírito que norteara as discussões nas Comissões, até então.

Creio que a solução não foi ruim.Criou-se um Poder Judiciário, como guar-dião da Constituição (artigo 102), que tem exercido com plenitude tal função, evitando distorções exegéticas que pode-riam pôr em risco a democracia no País; um Poder Legislativo, com poderes reais de legislar, não poucas vezes tendo rejei-tado medidas provisórias do Executivo; e um Poder Executivo, organizado dentro de parâmetros constitucionais, que lhe permitem adotar as medidas administra-tivas necessárias para que o País cresça e viva plenamente o regime democrático, sem tentações caudilhescas por parte de seus presidentes.

Por esta razão, nestes vinte anos, O Brasil conheceu um impeachment pre-sidencial, superinflação –não hiperin-flação, que sempre desorganiza as eco-

nomias- escândalos como dos anões do congresso e do mensalão, alternân-cia do poder e jamais, aqui, se falou em ruptura institucional, numa demons-tração de que as instituições funcionam bem. Os três Poderes, nos termos do art. 2º da lei suprema, são “indepen-dentes e harmônicos”.

Este equilíbrio inexiste em nossos vizinhos. A Constituição Venezuelana, com seus 350 artigos e 18 disposições transitórias, além de uma disposição fi-nal, de rigor, apesar de mencionar cinco Poderes, hospeda um apenas, visto que o poder judiciário, o ministério público e o poder legislativo são poderes acó-litos do Executivo e o quinto poder, o povo, manipulável pelo Executivo.

Assim é que, no seu artigo 236, admite, pelo inciso 22, que não só pode o presidente convocar “referenduns”, como, pelo inciso 21, dissolver a Assem-bléia Nacional, sobre ter, pelo inciso 8, o direito de governar, sem a Assembléia Nacional, por meio de leis habilitantes.

No Brasil, o plebiscito e o refe-rendo são convocados pelo congresso nacional (art. 14 incisos II e III) e o presidente de República, não tem, entre suas competências (art. 84), o poder de dissolver o congresso.

Ao contrário, o presidente da repú-blica pode sofrer o impeachment (arts. 85 e 86) do congresso nacional, sendo, neste particular, uma Constituição em que o Le-gislativo tem força para afastar o presiden-te da República, mas o presidente não tem forças para dissolver o congresso.

Como se percebe, o modelo vene-zuelano é de um poder só, o presidencial, o que tem levado o caudilho Hugo Chá-vez a abusos crescentes, mediante cerce-amento da liberdade de expressão, com fechamento de emissoras de TV e redes da oposição, convocações de referendos, que manipula a ponto de não permitir, nos mesmos lugares em que faz comícios para defender seus pontos de vista, que a

oposição se utilize daqueles mesmos espa-ços para expor as suas idéias.

O modelo venezuelano de um só poder, o que vale dizer, de um Execu-tivo forte e legislativo e judiciário su-bordinados, lastreia-se nas lições de um grupo de professores socialistas da Es-panha (CEPES) segundo o qual apenas dois poderes são democráticos: o povo e o seu representante no executivo. Por isto, reduz os outros poderes à função servil e sugere consultas populares per-manentes - altamente manipuláveis por quem está no comando - a guisa de dar legitimidade ao único poder efetivo, que é o do presidente executivo.

O modelo socialista, que Chávez chama de “bolivariano”, foi seguido tam-bém pelo Equador, na sua Constituição de 444 artigos, 30 disposições transitórias, 30 de um regime de transição com uma disposição final. Por ela, pode o presiden-te da República dissolver a Assembléia Nacional, se ela atrapalhar o Plano Na-cional de Desenvolvimento do presidente ou se houver uma grave crise política ou comoção interna (art. 148), passando o Presidente da República a dirigir sozinho o país, convocando novas eleições.

Poderá a Assembléia Nacional (art. 130) destituir o Presidente da Re-pública, mas neste caso, também se dissolverá, convocando-se, no prazo máximo de sete dias, eleições gerais presidenciais e legislativas.

Em outras palavras, o presidente da República pode dissolver a Assem-bléia Nacional, sem perder o cargo, mas a Assembléia Nacional, se destituir o pre-sidente, também estará se destituindo!!!

Não é diferente a Constituição bo-liviana, com 411 artigos e dez disposições transitórias, com uma disposição derroga-tória e outra final. Aqui, o artigo 182 torna o regime mais perigoso, pois o Tribunal Superior de Justiça terá seus magistrados eleitos por sufrágio universal por seis anos. Vale dizer: o poder judiciário, que é um

Poder Técnico, passa a ter seus integrantes eleitos pelo povo e sem as garantias míni-mas necessárias para exercer suas funções com imparcialidade!!! E o pior, com man-dato de 6 anos, muito embora não possam ser reeleitos seus juízes.

Normalmente, os poderes polí-ticos, numa real democracia –e não na simulação de democracia dos três países analisados- são o Poder Executivo e o in

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Legislativo. Suas forças se equivalem, não existindo apenas um poder forte, o Exe-cutivo, e um fraco o Legislativo. O Poder Judiciário é sempre um poder técnico, vale dizer, um poder cuja função é a pre-servação da lei produzida pelo legislativo. Por esta razão, é que, nas verdadeiras de-mocracias, o povo não participa direta-mente na sua escolha e de seus membros. Transformar o poder Judiciário em po-der eletivo é tirar-lhe a individualidade e neutralidade, levar o magistrado a ter que fazer campanha política para ter o seu nome sufragado universalmente!

Perde, pois, o país a seriedade que deveria ter a Suprema Corte, nas suas decisões, para amalgamar os três poderes num só, em prol de uma força maior outorgada ao Executivo, à seme-lhança das Constituições Venezuelana e Equatoriana (art. 172), com o direito de ditar decretos supremos e resolu-

ções (inciso 8) e convocar sessões ex-traordinárias da Assembléia Nacional (inciso 6).

Como se percebe, há um profundo abismo entre a Constituição Brasileira, de três Poderes harmônicos e indepen-dentes, e as Constituições dos três países mencionados, em que, de rigor, apenas um poder existe (o Executivo), os demais são acólitos. O chamado “poder popu-lar”, permanentemente convocado, é de fácil manipulação pelo presidente, visto que, nas consultas populares, jamais po-deria o povo examinar em profundidade a complexidade legislativa da consulta, como, por exemplo, discutir uma Consti-tuição de algumas centenas de artigos!!!

O modelo espanhol adotado – e de nítida conformação socialista- ob-jetiva apenas legitimar, por consultas manipuláveis do povo, o regime dita-torial, que parece começar a implan-

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tar-se na América Latina, com suces-sivas buscas de perpetuação no poder por parte dos dirigentes destes países, com reeleições ilimitadas.

O próprio presidente Ortega, da Nicarágua, pretende o direito à reelei-ção, em consulta popular que está bus-cando concretizar.

E a influência dos países que afa-gam aspirantes à perpetuidade no poder parece ter contaminado a OEA, pois, no episódio de Honduras, de rigor, a expressão “golpista” só poderia ser apli-cada ao presidente deposto.

Com efeito, o artigo 239 da Cons-tituição hondurenha permite o afasta-mento do presidente, se descumprir a lei, a ordem e desrespeitar os poderes consti-tuídos. Honduras não tem o instituto do impeachment que o Brasil consagrou, nos artigos 85 e 86 da lei suprema.

Ora, o presidente Zelaya preten-deu desrespeitar a Constituição hondu-renha, respondendo às advertências do Poder Legislativo e do Poder Judiciá-rio no sentido de que não respeitaria a “cláusula pétrea” da lei suprema do país - que não permite reeleições - e que faria um plebiscito para conseguir a aprova-ção de seu intento.

No momento em que desobedeceu a decisão do Poder Judiciário, que decla-rou inconstitucional a consulta popular, à evidência, o desrespeito à lei e à ordem se caracterizaram, e seu afastamento se deu, nos termos da Constituição.

É interessante que dispositivo semelhante temos na Constituição brasileira, estando o artigo 142 assim redigido: “Art. 142. As Forças Arma-das, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são insti-tuições nacionais permanentes e regu-lares, organizadas com base na hierar-quia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à ga-rantia dos poderes constitucionais e,

por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifos meus).

Qualquer dos Poderes constitu-ídos brasileiros (Executivo, Legislati-vo e Judiciário) pode chamar as for-ças armadas para restabelecimento da ordem e da lei.

Apesar da disposição do artigo 142 da C.F., o equilíbrio de poderes existente na democracia brasileira de tal ordem, que jamais passaria pela idéia de qualquer cidadão ou de qualquer autoridade não acatar a decisão do poder judiciário, ou de qualquer governante não cumprir as leis produzidas pelo Poder Legislativo.

É inconcebível, no Brasil, que o Presidente Lula ou qualquer presidente possa declarar que não cumprirá deci-sões do Supremo Tribunal Federal, por considerar-se acima de qualquer outro poder. No Brasil, só mesmo, na Cons-tituição de 1937, escrita pelo gênio de Francisco Campos - de quem se dizia que “quando as luzes de sua inteligência acendiam geravam curto circuito em to-dos os fusíveis da democracia” - o Pre-sidente da República tinha o direito de não acatar decisões da Suprema Corte.

Concluindo este breve artigo, es-tou convencido de que há um processo inverso à democracia, que começa a in-vadir diversas nações da América Latina, nas quais o equilíbrio dos poderes deixa de existir, para a criação de um caudi-lhismo do século XIX e utilizando-se a manipulação do povo, no mesmo estilo de Hitler, Mussolini e Stalin.

Felizmente, o Brasil, graças a Constituição de 1988, não corre o risco que os nossos vizinhos estão vivendo.

Ives Gandra Martins é advogado atuante nos ramos de direito constitucional, tributário e econômico.

1818

RIQUEZACOMPARTILHADA BENEDITO BRAGA

ECOLOGIA

Existem no mundo 261 bacias hi-drográficas cujos rios fluem atra-vés de dois ou mais países. São as chamadas bacias hidrográfi-cas transfronteiriças. Essas ba-cias cobrem 45,3% da superfície

do globo (Wolf et al., 1999). Nelas os limites físico-geográficos não coincidem com os limi-tes políticos dos países envolvidos. Em alguns casos, como do rio Nilo, a bacia hidrográfica engloba nada menos do que 10 países. A racio-nalidade sugere o uso dos limites físicos das ba-cias hidrográficas para promover o planejamento e a gestão de seus recursos hídricos. No âmbi-to brasileiro é o que determina a lei federal nº 9433/97 também conhecida por Lei das Águas.

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Entretanto, como os países detêm soberania sobre seus territórios e as ações sobre o território têm impacto direto nos córregos, rios e lagos da bacia hidrográfica, impõe-se o gran-de desafio da cooperação multilate-ral para alcançar a gestão adequada da água neste âmbito.

Em algumas regiões do mundo onde a água é escassa esta cooperação multilateral é uma necessidade vital. Entretanto, a cooperação multilateral não pode tomar a feição de tradicio-nais acordos e tratados assinados em reuniões internacionais que em geral não têm consequência prática. Como exemplo de um desses acordos, pode-se citar a Convenção das Nações Unidas sobre a Lei de usos não-navegáveis de rios in-ternacionais que levou 27 anos para sua aprovação pela Assembléia Geral em 1997. Hoje, passados 12 anos somente 16 países ratificaram a Convenção que não foi implementada. A prática indi-ca que os países adotam uma postura de cooperação não em função de uma

ética de cooperação, mas, e principal-mente, em função de benefícios ad-vindos da cooperação. Talvez por isso persistam ainda impasses em bacias de rios transfronteiriços no Oriente - Mé-dio onde se costuma dizer que as guer-ras do futuro não serão pelo petróleo e sim pela água. Ao contrário, como será mostrado mais adiante, a história de sucesso em cooperação na bacia do Prata baseia-se em desenvolvimento de infra-estrutura hidráulica compartilha-da entre os países da bacia.

A bacia do Prata desenvolve-se por uma extensão de 3,1 milhões de km2 sendo compartilhada por Brasil, Argen-tina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Com uma população aproximada de 100 mi-lhões de habitantes as atividades econô-micas nesta bacia são responsáveis por 70% do PIB destes cinco países. A água é um elemento crucial neste resultado uma vez que nada menos que 75 hidro-elétricas de grande porte encontram-se localizadas em rios da bacia. Destaca-se a maior hidroelétrica do mundo em gera-FO

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A Bacia do Prata estende-se por três milhões de quilômetros quadrados compartilhada por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

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ção de energia, Itaipu no rio Paraná, com potência instalada de 12.600 MW chega a produzir 92 TWh de energia por ano (95% da demanda por energia elétrica no Paraguai e 24% no Brasil).

Além do uso hidrelétrico, ou-tros importantes usos da água estão presentes nesta bacia. Desde longa data a navegação é um dos usos mais tradicionais com seus 3.442 km de ex-tensão. Esta hidrovia está associada à própria história dos países que dela se servem. A decisão dos governos dos cinco países ribeirinhos de coordenar ações com vistas a aprimorar a eficiên-cia, a segurança e a confiabilidade da navegação nos rios Paraguai e Paraná data de 1987, quando o desenvolvi-mento do sistema fluvial formado pe-los rios Paraguai e Paraná foi declara-

do de interesse prioritário pelos cinco países signatários do Tratado da Bacia do Prata, em vigor desde agosto de 1970, que estabelece o enquadramento político-diplomático para a integração física da Bacia do Prata. A irrigação é utilizada em todos os cinco países que compartilham a bacia sendo muito importante na sub-bacia do Uruguai onde a irrigação de arroz no Rio Gran-de do Sul ocupa posição privilegiada com mais de 1 milhão de ha irrigados no sistema de inundação. Na Argenti-na cerca de 90% da pesca continental se desenvolve na bacia utilizando-se de 40 portos. Da mesma forma uma importante atividade econômica é o turismo fluvial e ambiental. No Brasil a pesca continental representou cerca de 24,8 % da produção pesqueira bra-

Além do uso hidrelétrico, outros usos da água estão presentes em rios da bacia, desde a navegação à irrigação.

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sileira, com parte significativa dentro da bacia do rio da Prata.

Subjacente a esta bacia hidrográfi-ca encontra-se o aqüífero Guarani com seus quase 1,1 milhões de km2 esse re-servatório de proporções gigantescas de água subterrânea é formado por derra-mes de basalto ocorridos nos Períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo Inferior (entre 200 e 132 milhões de anos). É constituído pelos sedimentos areno-sos da Formação Pirambóia na Base (Formação Buena Vista na Argentina e Uruguai) e arenitos Botucatu no topo (Missiones no Paraguai, Tacuarembó no Uruguai e na Argentina). Compar-tilhado por Brasil (68%), Argentina (21%), Paraguai (8%) e Uruguai (3%), este aqüífero é confinado em quase toda sua extensão e representa uma reserva

estratégica de água de boa qualidade para abastecimento doméstico e indus-trial. Considerando-se uma espessura média aqüífera de 250 metros e poro-sidade efetiva de 15%, estima-se que as reservas permanentes do aqüífero (água acumulada ao longo do tempo) sejam da ordem de 45.000 Km³ (DAEE, 2009).

Entretanto, cuidados importan-tes devem ser exercidos em função da fragilidade de suas áreas de recarga. Em função da complexidade de reversão de processos de poluição em aqüíferos des-ta natureza, o uso do solo na região de recarga (principalmente no Estado de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Para-guai) deve ser preservado da utilização de agrotóxicos e excesso de fertilizan-tes. A disposição de resíduos sólidos domésticos e industriais nessas regiões FO

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deve seguir a melhor técnica de imper-meabilização para evitar que o chorume (líquido gerado no aterro sanitário) per-cole e atinja desta maneira o aqüífero.

A gestão de recursos hídricos no âmbito desta grande bacia hidrográfica se dá internamente aos países que dela fa-zem parte. O Brasil desde 1997 dispõe de uma legislação de recursos hídricos mui-to moderna que impõe como unidade de gestão a bacia hidrográfica. Entretanto, a nossa constituição federal inclui entre os bens dos estados os rios que nele fluem e atribui à União aqueles cursos d’água que servem de fronteira entre estados ou que fluem através de dois ou mais estados. A natureza federativa de nosso país garan-te aos estados autonomia para gerir seus rios e lagos. Assim, apesar de não haver nenhum acordo específico para a gestão de bacias hidrográficas entre os países, o Brasil, em função de sua legislação dá um primeiro passo na direção de um po-tencial acordo transfronteiriço de gestão desta bacia do Prata.

Entretanto apesar desta evolução no sistema de gestão brasileiro, nele ain-da persiste a dissociação da gestão de água superficial da água subterrânea. Apesar do ciclo hidrológico não reco-nhecer diferenças entre água superficial e subterrânea (é a mesma água fluin-do com velocidades diferentes), não se tem noticia de um sistema de gestão que incorpore estes dois domínios da água. No Brasil, por exemplo, não existe água subterrânea de domínio da União. Mesmo um aqüífero da importância do Guarani, que se estende por sete esta-dos da federação, tem sua administração autônoma em cada parcela estadual.

Mesmo não havendo acordo es-pecífico para gestão de águas, diversos acordos multilaterais relacionados com o uso dos rios desta bacia já foram as-sinados desde o século 19. Destaca-se a Tratado de Amizade, Comércio e Nave-gação entre Brasil e Argentina de 1856; o acordo sobre e o Rio Jaguarão de 1926 entre Brasil e Uruguai,o acordo tripartite

A Hidroelétrica de Itaipu, no Rio Paraná, a maior do mundo.

Irrigação de arroz noRio Grande do Sul.

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de 1979 entre Brasil, Argentina e Para-guai sobre a usina hidrelétrica de Itaipu e a utilização das águas do Rio Paraná. Este último foi necessário em função de um acordo anterior entre Brasil e Para-guai em 1973 para construção da hidre-létrica de Itaipu. As oportunidades de di-álogo intenso à partir destes acordos foi que levou à uma sólida aliança política e à iniciativa de integração que levaram ao processo de criação do Mercosul.

Nota-se assim que água desem-penha um papel importantíssimo nesta região da América do Sul. De um lado possibilitando o desenvolvimento eco-

Benedito Braga é professor titular da Escola Politécnica da USP, vice-presidente do World Water Council e Diretor da Agencia Nacional de Águas - ANA.

nômico e social dos países através da infra-estrutura hidráulica para energia, produção de alimentos e navegação. De outro, os acordos para o desenvol-vimento destes recursos hídricos tor-nou possível uma aproximação maior que desaguou na aproximação polí-tica e na união maior de seus povos.

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COLEÇÃO EXEMPLARFLORENCIA BATTITI

PATRIMÔNIO CULTURAL

Atualmente é difícil imaginar o cenário artístico da Argenti-na sem a presença do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires. A partir de sua abertura em setembro de 2001,

o Malba tem construído programaticamente uma identidade institucional que o posiciona como um dos protagonistas do circuito de mu-seus e centros culturais do país. Sua inaugura-ção ocorreu no final de 2001 em um contexto sumamente convulsionado, tanto em nível in-ternacional quanto local. Agustín de Arteaga, seu primeiro diretor, de nacionalidade mexica-na, abandonou o país poucos meses depois de assumir o cargo para cedê-lo a quem até hoje

mAlBAREFERÊnCIA nO CEnÁRIO ARTÍSTICO

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Frida Kahlo - Autorretratocon chango y loro.

Diego Rivera - Retrato de Ramón Gómez de la Serna.

Tarsila do Amaral - Abaporu.

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é o curador-chefe do museu: o his-toriador da arte argentina Marcelo Pacheco. Esta passagem de gestão – além das razões conjunturais que a geraram – sem dúvida deu origem a uma política de curadoria diferente da traçada originalmente, isto é, orien-tada principalmente para a produção de exposições de artistas argentinos. Reconhecendo que a crise econômica não era alheia ao futuro do museu em termos de conteúdos, Pacheco deli-neava sua estratégia com as seguin-tes palavras: “Não vim para o Malba

Edifício especialmente concebido para o museu.

para pensar em exposições de um mi-lhão de dólares (…) A ideia é realizar quatro mostras temporárias por ano, das quais uma ou duas serão de artis-tas argentinos. Não se trata apenas de uma questão de custos, mas porque o Malba é um museu de arte latino-americana em Buenos Aires. Nossos artistas têm muito a dizer”. De alguma maneira, esta estraté-gia está relacionada com o modo em que foi formado o núcleo fundamen-tal do museu: a coleção do empresá-rio argentino Eduardo F. Costantini,

presidente da Fundação que leva seu nome e da qual o Malba depende. O ponto de partida da coleção foi a arte moderna argentina, núcleo que foi se ampliando rapidamente nos anos 80 para abranger as vanguardas e a modernidade do rio da Prata (com a aquisição de obras de Xul Solar, Emilio Pettoruti, Antonio Berni, Al-fredo Guttero, Joaquín Torres Gar-cía, Pedro Figari, José Cúneo e Rafael Barradas) para mais tarde incorporar artistas fundamentais da arte latino-americana, como Frida Khalo, Diego Rivera, Wifredo Lam, Roberto Mat-ta e Tarsila do Amaral. No final dos anos 90, a implementação dos “Prê-mios Costantini” – que concediam um primeiro e um segundo prêmios, de 30.000 e 15.000 dólares, respecti-vamente – transformou-se em uma estratégia eficaz para a incorporação de obras de artistas argentinos con-temporâneos, como León Ferrari, Nicola Costantino, Pablo Suárez e Marcia Schvartz, entre outros. Assim, a partir da exibição de sua coleção permanente de arte argenti-na e latino-americana, iniciou-se um programa de exposições temporárias de grande formato (entre as quais se destacam as de Guillermo Kuitca, Jor-ge de la Vega, Víctor Grippo, Antonio Berni, Gego e Félix González-Torres); ainda foi criado o programa Contem-porâneo, de 2002 a 2008 destinou uma sala para a difusão de artistas jovens ativos na região; o programa Inter-venções, que comissiona e financia um projeto especial para o museu, em que a palavra de ordem “intervir” em seu espaço físico e/ou simbólico, e as obras que temporariamente são exibidas na “esplanada” de acesso ao museu (Jesús Soto, Penetrable, Artur Lescher, Teus olhos, e Sergio Avello Volumen, entre outros), o Malba não só se posicionou como referencial de

legitimação no cenário artístico local, mas também implementou como ne-nhum outro espaço cultural na cida-de a museografia como forma visual do discurso de curadoria e não como mero acompanhamento ou “decora-ção” da sala de exibição. Sem dúvida, a qualidade de gestão do Malba (que se traduz visivelmente na produção de exposições e catálo-gos) deve-se em grande parte à verba que é administrada por uma institui-ção de caráter privado. Situação que contrasta, por vezes brutalmente, com as gestões implementadas em nosso país a partir das instituições públicas. Este fato foi (e continua sendo) evidente para o público em geral, mas também soube captar a atenção da crítica especializada. Nes-te sentido, a historiadora da arte An-drea Giunta frisava que a “abertura do Malba coloca uma coleção privada no espaço público por meio de um projeto que reúne as condições que gostaríamos que todos os museus da Argentina tivessem”4. No entanto, advertia que era inadequado consi-derar que “tudo o que não pode ser feito no espaço público pode se fazer no privado, (já que) apesar da falta de verba (razão sempre apresentada para justificar o estado de muitos museus que contêm coleções públicas), não são feitas muitas coisas que poderiam ser feitas, e não por falta de recursos, mas pela mais absoluta negligência.”5 É interessante ler essas reflexões levando em consideração outro museu recentemente inaugurado em Buenos Aires a partir de uma coleção privada: a coleção de Amalia Lacroze de For-tabat. Nesse caso, embora o prédio tenha sido construído, assim como o do Malba, com essa finalidade e com padrões museológicos de nível in-ternacional, sua contribuição com o cenário artístico local em termos de

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À esquerda, de cima para baixo:Miguel Covarrubias, Fernando Botero,Wifredo Lam, Xul Solar, José Cuneo. Ao lado,Joaquín Torre-García, Emilio Pettoruti, Agustín Lazo (à direita), Diego Rivera (abaixo).

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Estrutura metálica e vidro garantem a iluminação.

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conteúdos é notavelmente menor que o de muitas instituições públicas. Portanto, e em função do que foi exposto, é inegável reconhecer o aporte do Malba à dinâmica cultural de nosso país. Como destacam Isabel Plante e Talía Bermejo, “este museu parece sensível às mudanças nas prá-ticas artísticas (que) se concentram mais na ação que nas formas e aten-dem mais à ética de certas práticas que à aplicação de novas tecnologias”6. E, embora seja certo que o Malba exer-ce um poderoso polo de atração para os artistas contemporâneos devido às suas condições de máxima visibilida-de, a dinâmica dos espaços alternati-vos e independentes (que muitas vezes são auto-geridos por artistas) se confi-gura e ordena em campos de ação nos quais sempre houve e haverá institui-ções privadas de “caráter forte”, como o Malba ou Fundação PROA. Por último, é provável que o maior aporte do Malba, tanto para a Argen-

tina quanto para a América Latina, seja a apresentação de um relato da arte latino-americana construída a partir da especificidade dos projetos artísticos regionais, denotando claras diferenças com as versões da arte la-tino-americana desenvolvidas tanto a partir da Europa quanto dos Estados Unidos. Em sintonia com recentes pesquisas acadêmicas, a política da curadoria do Malba centra o relato da arte latino-americana no contexto da conjuntura sóciocultural de nos-sa região, dando às obras de artistas argentinos como Berni ou Xul Solar uma nova perspectiva de leitura que destaca as contribuições próprias e particulares em torno do debate da modernidade latino-americana.

Museu sensível às mudanças das práticas artísticas.

Florencia Battiti é pesquisadora, professora e crítica de arte argentina.

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PARTE OBSCURADA HISTóRIA CONHECIDA

MARIA LIGIA PRADO

LITERATURA

O romance de Daniel Defoe, Vida e Aventuras de Robin-son Crusoe, publicado em 1719, consagrou seu autor e se transformou em enorme e imediato êxito editorial. Suas

incontáveis edições atravessaram os séculos fa-zendo com que o título permanecesse nos catá-logos das editoras até o presente. O crítico Ian Watts o considerou o primeiro romance mo-derno em língua inglesa. O interesse por essa obra pode ser medido pela vasta e notável pro-dução intelectual por ela suscitada, incluindo autores tão diversos quanto James Joyce e Karl Marx, cujos olhares circunscreveram aspectos específicos e produziram reflexões originais.

AvEnTURACOmEçA nA BAhIA

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Neste artigo, pretendo fazer um recorte particular, colocando a famosa narrativa do náufrago na ilha deserta em um lugar privilegiado dentro do univer-so dos diálogos culturais entre o Velho e o Novo Mundo.

Defoe (1660-1731) se baseou na história real do marinheiro escocês, Ale-xandre Selkirk (1676-1721), cujo navio bucaneiro navegava pelo Atlântico sul em busca das riquezas transportadas por navios da Coroa espanhola. Depois de um ataque “bem sucedido”, do qual resultou um belo botim, o navio sofreu avarias. Selkirk desentendeu-se com seu comandante, que não queria consertar o navio antes de voltar à Europa pelo Cabo Horn. O episódio culminou com a deci-são do capitão de castigá-lo, desembar-cando-o na ilha Mas a Tierra, no arquipé-lago Juan Fernández, na costa do Chile. Isso ocorreu em 1704 e Selkirk lá viveu completamente sozinho por quatro anos até ser resgatado por outro navio britâni-co que o levou de volta à Europa. Têm-se repetido que as aventura de Selkirk se constituem na principal inspiração para o romance do escritor inglês. Já madu-ro, quase aos sessenta anos, escreveu seu primeiro romance, Robinson Crusoe, que lhe deu notoriedade, mas não resolveu seus problemas financeiros.

A história de Robinson Crusoe não interessou a diversos editores para os quais Defoe mostrou os originais. Finalmente, em maio de 1719, William Taylor, decidiu-se por sua publicação. O sucesso foi tão inesperado quanto im-pressionante, havendo seis impressões em apenas quat ro meses, num total aproximado de 80.000 exemplares ven-didos. O livro também foi rapidamente traduzido para diversas línguas. Para nos determos na França, a primeira tradução, à qual muitas se seguiram, é de 1720. Na França, houve outras adaptações para a juventude com ênfase nas questões educativas e morais do texto, tendo até

mesmo sido incorporado como livro de texto nas escolas.

Todos conhecem a história do náu-frago Robinson Crusoe que viveu por 28 anos numa ilha deserta, desenvolvendo suas potencialidades individuais em con-fronto com a natureza e encontrando os meios para sobreviver a partir de suas ha-bilidades e conhecimentos. Como afirma James Joyce, de náufrago na ilha, com uma faca e um cachimbo no bolso, Robinson se transforma em “arquiteto, carpinteiro, afiador de faca, astrônomo, padeiro, cons-trutor de navios, oleiro, agricultor, alfaiate, fazedor de guarda-chuvas e clérigo”. De-foe constrói um modelo otimista das pos-sibilidades do domínio do homem sobre a natureza, através do conhecimento racio-nal. Robinson planta, cria cabras, faz uma casa, levanta uma fortaleza para defender-se de supostos inimigos.

Muitas vezes, entretanto, passa de-sapercebido ao leitor o fato de que a fatí-dica viagem de Crusoe inicia-se no Brasil – onde, depois de muitas aventuras, ele chegara trazido por um capitão português e onde vivia como proprietário de terras – com destino à África, tendo como ob-jetivo determinado a compra de escravos. O naufrágio acontece no mar do Caribe, pois a desembocadura do rio Orenoco é a última referência geográfica indicada pelo autor antes do desastre. Como afirma Pe-ter Hulme em seu Colonial Encounters, ain-da que a ilha de Crusoe esteja claramen-te localizada e que os ameríndios citados por Defoe, incluindo Sexta-feira, sejam sempre apresentados como Caribes, o romance não é pensado como um livro caribenho. É uma fábula puritana, um ro-mance sobre o individualismo econômico, ou simplesmente a história de um homem em uma ilha deserta perdida no oceano, cuja localização carece de importância.

Nesse sentido, as ilustrações das primeiras edições de Crusoe não contêm qualquer evidência em termos da flora, fauna ou clima que identifique o lugar

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como uma ilha do Caribe. No frontispí-cio da primeira edição inglesa de 1719, em desacordo com o clima quente, Robinson aparece descalço, mas vestido de pele de cabras cobrindo todo o corpo. De forma significativa, carrega uma espada à cintura e segura duas armas de fogo. (fig.1) Essa imagem será repetida à exaustão nas edi-ções seguintes. Na primeira edição france-sa de 1720, ele aparece vestido, com um guarda-sol, uma arma de fogo, um cesto às costas e um serrote à cintura. (fig.2) Mais de um século depois, na edição fran-cesa de 1840, ele é desenhado de forma semelhante com os mesmos apetrechos, mas o guarda-sol desapareceu e ele ga-nhou umas sandálias. (fig.3) Um século à frente, na edição francesa de 1933, Robin-son continua aparelhado com os mesmos emblemas do homem moderno: armas de fogo e ferramentas de trabalho e vestido de maneira inadequada ao clima. (fig.4)

Como afirmei anteriormente, mui-to se escreveu sobre Robinson Crusoe, propondo questões e interpretações que pretendem desvendar os múltiplos sig-nificados da obra. Referência obrigatória para nós historiadores é o artigo clássico de Christopher Hill, Robinson Crusoe, que pode ser entendido como uma entra-da principal para o universo de problemas debatidos referentes à personagem central

do romance. O historiador inglês indica as ambiguidades do comportamento de Robinson na ilha em comparação a um modelo estrito do puritanismo inglês. Em primeiro lugar, Robinson não batiza Sex-ta-feira, ainda que o considere um cristão; não sabe o que responder a ele, quando este pergunta por que Deus permitiu a existência do demônio. Além disso, en-quanto estava na ilha longe do mundo comercial, foram o católico capitão portu-guês e o convento brasileiro de agostinia-nos que cuidaram de suas terras e rendas tão bem quanto a viúva protestante de Londres. Há uma perspectiva de tolerân-cia religiosa, pois ele está bem confortável no Brasil, sob a ordem dos “papistas” e mantém boas relações com os espanhóis quando estes chegam à ilha.

Por outro lado, Hill aponta também para os traços típicos de uma visão religio-sa presbiteriana. O ascetismo, a auto-disci-plina e o trabalho árduo guiam seu padrão de comportamento. Crusoe acredita que seus infortúnios foram um castigo por sua desobediência ao destino que seu pru-dente pai lhe havia traçado. Aceitando que Deus usa nossas próprias ações para nos punir, demonstra acreditar na predestina-ção, de acordo com a tradição calvinista na Inglaterra. Robinson guarda o sétimo dia da semana, como o dia do Senhor, seguin-FO

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do o imaginado calendário por ele elabora-do. Adquire o hábito de pedir a benção de Deus antes de comer e não pode suportar a idéia da nudez, mesmo estando sozinho na ilha; assim cobre o corpo inteiramen-te, como já vimos nas ilustrações iniciais. Na trilha da mesma tradição religiosa, es-creve um diário no qual anota as coisas boas e as coisas más que lhe sucedem e que funciona como um balanço espiritual. Também marca seus “lucros” e suas “per-das”. Estas anotações são a prova de que a sobrevivência e o final enriquecimento de Crusoe se devem ao trabalho constante e à recusa da perda de tempo. Segundo Hill, no romance, o protestantismo tradicional está acompanhado por uma visão de mo-ralidade nos negócios na perspectiva do espírito do capitalismo de Weber.

Defoe cria um final feliz para Cru-soe, que volta à Inglaterra acompanhado por seu “fiel escudeiro”, Sexta-feira, que

o segue de muito bom grado. Em seu país natal, Robinson descobre que se tornara um homem rico, pois o pecúlio que deixa-ra com a honesta viúva inglesa lhe rendera lucro e a venda das terras no Brasil tam-bém lhe proporcionara um grande mon-tante de dinheiro. Baseado nas transações econômicas empreendidas por Robinson que culmina com seu enriquecimento ao final do livro, Stephen Hymer produz uma inesperada interpretação sobre as práticas de Robinson desvendando os segredos da acumulação primitiva do capital. Para isso, afirma que quer ir além dos detalhes da história de Robinson para ilustrar a aná-lise de Marx sobre a economia capitalista, especialmente o período da acumulação primitiva que é seu ponto de partida. Esta interpretação de Hymer é um exemplo radical das possibilidades de reflexão so-bre o romance, ainda que – como no caso citado – o autor se descole do texto do

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romance para fazer outras considerações.A relação entre Robinson e Sexta-

feira imaginada por Defoe incita a ou-tra ordem de reflexões. Na minha pers-pectiva, ela pode ser entendida como a construção modelar da “relação bem sucedida” entre o colonizador europeu e o colonizado americano. Como o ir-landês James Joyce observou em 1912: “O verdadeiro símbolo da conquista dos britânicos está em Robinson Crusoe. Ele é o verdadeiro protótipo do coloni-zador britânico, assim como Sexta-feira (o confiante selvagem que chega em um dia infeliz) é o símbolo das raças subme-tidas”. Acrescento que a saga do homem solitário no “deserto” mundo americano é uma reprodução em miniatura da “des-coberta” do Novo Mundo pelos euro-peus e de sua “obra civilizatória”.

Na narrativa de Defoe, a relação en-tre Robinson e Sexta-feira foi naturalizada e surge diante dos olhos do leitor como uma conseqüência lógica da dinâmica dos encontros humanos assimétricos, aqui protagonizados por representantes do Ve-lho e do Novo Mundo. Se Robinson sal-vou a vida de Sexta-feira que ia ser devora-do num festim canibal, a resposta do índio somente poderia ser a de uma pessoa eter-namente grata. Em segundo lugar, como sua vida foi salva pela utilização de uma arma de fogo, produto da técnica moder-na, Sexta-feira deveria curvar-se diante da superioridade européia e aceitar seu lugar subordinado. O resultado apresentado por Defoe é, nessa seqüência, o de uma relação harmoniosa, na qual as duas partes conhecem seus lugares e não os colocam em dúvida. A submissão de Sexta-feira é relatada nos mínimos detalhes. Robinson dá o nome de Sexta-feira ao índio – referi-do ao dia em que ele chegou, no imagina-do calendário robinsoniano. Mas ele não é considerado digno do batismo. Crusoe ensina-lhe a língua inglesa, porém Sexta-feira jamais será capaz de aprendê-la cor-retamente, falando de forma trôpega. Sin-

tomaticamente a primeira palavra ensinada e aprendida é Master. Fornece roupas para vestir sua nudez e coloca-o para dormir do lado de fora de sua cabana, mais preci-samente na porta. A roupa, exterioridade palpável da condição de civilizado, faz de Robinson um ser diferenciado do bárbaro índio nu. O ato de vestir Sexta-feira tem um valor simbólico, pois representa o pri-meiro passo no seu ritual de passagem da selvageria para a civilização.

Robinson ensina Sexta-feira a plan-tar, a criar cabras. Com argumentos ra-cionais, explica-lhe que deve abandonar o costume de comer carne humana, ad-vertência também aceita por Sexta-feira. No tratamento dispensado ao caribenho não se coloca a questão da individualida-de do “outro”. Está fora do universo cul-tural de Robinson/Defoe perguntar algo sobre as crenças, a língua, os hábitos e os costumes anteriores do índio. Sua vida anterior, na qual deveria ter um nome, é apagada. Sua real existência se inicia no dia do encontro com o homem branco. O encontro estabelece o momento da origem da relação fazendo tabula rasa do passado individual e cultural do índio.

O momento da chegada de Sexta-feira à ilha aparece sempre nas ilustra-ções. Numa edição inglesa do século XVIII, Robinson vestido com as peles de cabra, com uma arma ao ombro e outra apoiada no chão, ar de herói vencedor, olha em direção a Sexta-feira, totalmente nu, estirado ao chão, beijando-lhe humil-demente os pés. A culminância do ato de submissão/dominação está representada pela postura de Sexta-feira que coloca o pé de Robinson sobre sua cabeça. (fig.5) No começo do século XX, há uma edi-ção brasileira que reproduz exatamente a mesma cena. (fig.6) Numa edição francesa da década de 1920, a ilustração mantém a mesma moldura. Robinson paramentado e com a arma às costas encena um gesto paternal estendendo a mão sobre Sexta-feira; este vestido apenas com uma tanga,

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de joelhos, faz uma espécie de reverência diante do inglês. (fig.7)

Quase ao final da história, chega à ilha um grupo de espanhóis prisioneiros dos índios que se preparam para executá-los. Neste preciso episódio acontece a perfeita conversão de Sexta-feira à civi-lização com sua decidida escolha pelos valores ingleses. Robinson permite que Sexta-feira empunhe uma arma de fogo – suprema prova de confiança do inglês - para ajudá-lo a salvar os espanhóis, ma-tando os indígenas caribenhos. Ao atirar contra seus “irmãos selvagens”, Sexta-feira demonstra sua adesão completa à ordem do colonizador branco. Por sua importância, o episódio aparece constan-temente nas ilustrações.

Fiz referência anteriormente ao fato do esquecimento do lugar – o mar do Caribe – onde a saga de Robinson Crusoe e Sexta-feira se desenrola. Este não-lugar, aliado à possibilidade da suspensão do tempo em que a história acontece, contri-buiu para a proliferação de reapropriações do tema. Desse modo, a narrativa foi ga-nhando uma roupagem mítica – fora do tempo e do espaço. Essa dimensão pode explicar as últimas ilustrações que apre-sento, indicando as metamorfoses pelas quais passou Sexta-feira. Nas edições do século XVIII, como já foi mostrado, ele é representado como um índio nos seus traços fisionômicos e na cor da pele. Essa representação do bárbaro como índio continuou a ser reproduzida.

Entretanto, há uma fundamental transformação do “selvagem” índio em “selvagem” negro africano, a partir de al-gumas edições do século XIX. Essa alte-ração nos contornos da figura modelar do colonizado vai se processando de maneira paulatina. Na edição francesa de 1845, a pele de Sexta-feira assume um tom mais escuro a ponto dele poder ser confundido com um africano. (fig.8).O mesmo acon-tece com os índios na já identificada gra-vura da edição brasileira da Garnier do sé-

culo XX. (ver fig. 9).Mas a transformação inequívoca ocorre em edição francesa do começo do século XX: Sexta-feira foi ple-namente transfigurado em negro africano. (fig.10). Tal transformação foi apropriada pela edição brasileira da Editora Itatiaia de 1964, que integra a Coleção Clássicos da Juventude. Na capa, está Sexta-feira pin-tado como um negro africano com lábios grossos e cabelos crespos; eles estão atra-vessados por ossinhos, associando – de forma equivocada – a África ao canibalis-mo. (fig.11) Se entrarmos aleatoriamente na internet em busca de representações de Sexta-feira, encontraremos imagens de um negro africano, mostrando a permanência dessa imprópria assimilação. (fig.12)

As apropriações e adaptações da história original de Robinson Crusoe e Sexta-feira carregam fortes significados culturais e políticos que se renovam até o presente. A história do inglês náufra-go no Caribe oferece elementos que permitem releituras e contribuem para sutilmente defender a lógica da superio-ridade da “civilização” sobre a “barbá-rie” e justificar o encontro assimétrico entre colonizador e colonizado em qual-quer época da História. O olhar imperial se manifesta naturalizando essa relação e ocultando sua violência.

Nos diálogos culturais entre o Velho e o Novo Mundo, no alvorecer dos tempos modernos, a saga de Ro-binson Crusoe e Sexta-feira desponta como texto referencial por sua sim-plicidade, sua pretensa neutralidade e sua contundente formulação da possi-bilidade da construção de uma relação harmoniosa e ingênua entre coloniza-dor e colonizado.

Maria Ligia Prado é historiadora (USP) e au-tora de diversos livros sobre América Latina.

HUMOR IRREVERENTELEONOR AMARANTE

HOMENAGEM

hAs gravuras de Rubem Grilo acompanham as publicações do Memorial da América Latina há anos. Não poderiamos dei-xar de homenageá-lo, quando a instituição completa vinte anos.

A imagem da menina ao lado, é a nossa Marilyn Monroe, o charmoso ícone da Coleção Memo / Ensaio e Ficção e que já soma mais de cem auto-res. Os personagens estampados no editorial desta edição são igualmente de sua autoria e fazem parte do singular inventário desse instigante artista, um dos mais expressivos das artes plásticas brasileiras. Grilo é um observador que traduz, seleciona e or-ganiza o cotidiano e os objetos que o circundam com um processo de interação muito especial.

RUBEmGRIlO

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Suas gravuras dispensam a escrita. Seja em formatos mínimos ou médios, ele expõe a questão do olhar para o universo urbano, uma observação cor-relacionada ao meio que ele transfor-ma e complementa.

Seus personagens abrem uma sé-rie de pistas sobre a investigação artísti-co-política, na qual ele inclui a automa-ção do homem alienado pelo trabalho e em muitos momentos nos faz entrar em contato com as realidades irreais. Nes-sa tentativa de subverter o paradigma

da relação do homem com os objetos, Grilo provoca um diálogo inusitado em que o humor aliado a um traço fino e elegante marca o tempo.

O humor funciona como deslo-camento nesses traços realizados com diferentes instrumentos de gravação. Cenas fantásticas se alternam entre o verossímel e o imaginado sempre com uma sutileza ímpar. Grilo parecer se di-vertir aos estruturar um mundo particula-rizado povoado por personagens únicos que movimentam seu universo imaginá-

rio. Sua crítica é subliminar e delicada, mas deixa transparecer sua paixão.

Autor de um traço excepcional, Grilo grava tudo de maneira poética, mesmo quando destila críticas sobre a sociedade. Nascido em Minas Gerais, mas radicado no Rio, é consagrado em todo o País. Autor de xilogravuras minúscu-las, ele consegue um resultado tão ex-pressivo que transcende sua diminuta dimensão e se agiganta no conjunto da obra. As gags sobre objetos utilitários vão muito além da mera gravura e traba-lham também sobre o fluxo do tempo. Isso funciona tanto para a gravura, cujo traço revela a massificação do homem diante da máquina, quanto para objetos cotidianamente usados em várias épocas, como a bengala. Aliada a uma criativida-de compulsiva, a correta limpeza formal faz dessas pequenas gravuras preciosida-des na história das artes brasileiras.

Como escreveu o filósofo fran-cês Gaston Bachelard, para o gravador a matéria não existe, o que existe é uma vontade matérica. “O verdadeiro gra-vador começa sua obra num deva-neio de vontade.”

Leonor Amarante é crítica de arte e editora executiva da Revista Nossa América.

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PELA OBjETIVA DEORLANDO AZEVEDO

OLHAR

das viagens pelos quatro can-tos do Brasil o fotógrafo Or-lando Azevedo compôs um acervo de milhares de ima-gens em cores e em bran-co e preto, que toma conta

de seu estúdio em Curitiba. O resultado é um documento multifacetado, singular e com ele-gância formal rara. Por isso nossa dificuldade na escolha. Optamos pelo recorte de um en-saio documental pouco explorado: personagens da região sul do país onde ucranianos, polo-neses, alemães, longe das grandes metrópoles, podem conservar seus hábitos e culturas. O homem e a arquitetura explodem numa simbio-se de transe criativo com o capricho técnico.

OUTRO ROSTOdO BRASIl

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QUARTO MóDULO DACÁTEDRA DO MEMORIALHERNAN CHAIMOVICH

CÁTEDRA

O foco do quarto módulo da Cátedra Memorial da América Latina é o papel da ciência e da tecnolo-gia no desenvolvimento da América Latina. Este

tema é particularmente pertinente hoje, pois muitos indicadores mostram que na recupera-ção econômica, após a presente crise, a posição relativa dos países será ainda mais dependente de conhecimento que antes da débâcle financei-ra de 2008. Cabe ao Brasil uma responsabilida-de global adicional, por ser o único país conti-nental que pode construir uma nova civilização que, baseada no conhecimento, produza uma sociedade desenvolvida, justa e sustentável nos

CIÊnCIA, TECnOlOGIAE ATIvIdAdE ECOnÔmICA

nA AmÉRICA lATInA

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trópicos (Da civilização do petróleo a uma nova civilização verde, de Ignacy Sachs).

A América Latina e o Caribe se ca-racterizam pela sua profunda diversidade geográfica, demográfica, cultural, linguís-tica, social e econômica. Numa era em que o conhecimento é um dos motores cen-trais, as relações internacionais neste con-tinente poderão estar determinadas pela

capacidade de incorporação de ciência, tecnologia e inovação a um desenvolvi-mento sustentável com equidade social. O uso que se faça da capacidade local de gerar conhecimento pode determinar, então, as relações entre pessoas, empresas e países.

Embora o conhecimento pare-cesse ser um bem universal, o uso deste bem depende da capacidade de criá-lo.

Estudo recente do Conselho InterAca-demias (InterAcademy Council, Inven-ting a better future) resume esta situação quando descreve a urgência da promo-ção de capacidades globais em ciência e tecnologia(C&T). Este estudo sintetiza a necessidade de construir, em cada país, uma capacidade local de criação que permita fazer uso do conhecimento uni-

versal de uma forma adequada para as necessidades locais. Ciência e tecnologia vêm determinando a aceleração das mu-danças no mundo. Reconhecidamente uma parte destas mudanças, exemplifi-cadas pela componente antropogênica do aquecimento global, é ameaçadora para o planeta, mas é consensual que o enfrentamento destas ameaças requer FO

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mais conhecimento. A capacidade local de C&T é essencial para usar e contribuir para o estoque global de conhecimento e, para que isto aconteça, investimentos em C&T, que permitem crescimento econômico, devem ser considerados. As estratégias para alcançar uma capacidade local de C&T são necessariamente diver-sificadas pois dependem da identifica-ção nacional de prioridades. Contudo, e especialmente em nosso continente, en-sino superior e treinamento técnico são necessários em cada nação. Além disso, cada nação deve desenvolver, atrair e, sobretudo manter os seus talentos em C&T. A construção local de capacida-des não pode ser considerada uma ini-ciativa somente local pois constitui res-ponsabilidade regional compartilhada.

O Memorial da América Lati-na, por meio da sua Cátedra, apresen-tará no segundo semestre deste ano uma oportunidade única para alunos e outros interessados nas relações entre Ciência, Tecnologia e Atividade Econô-mica na América Latina. Um conjunto de cientistas, diplomatas e empresá-rios, ocupando posições de destaque no Brasil, oferecerá suas visões sobre este tema a partir das suas experiências.

Análises recentes sugerem que a ciência produzida no Continente não criou ligações virtuosas com os atores socialmente relevantes, estando majori-tariamente determinada pelos caminhos seguidos pelos países centrais. Outras apreciações apontam para o pouco im-pacto da ciência produzida na América Latina no contexto mundial. De fato, quando se compara a produção científica latino-americana (estimada como núme-ro de trabalhos indexados) com algumas regiões do mundo pode-se constatar que nos últimos dez anos a AL passou de uma contribuição de aproximadamen-te dois a quatro por cento. No mesmo período Ásia, que em 1996 tinha uma contribuição de dezoito, passou a trinta

e um por cento de todas as publicações (www.scimagojr.com). Uma tese expli-cativa sugere que esta baixa contribui-ção da AL ao conhecimento científico e técnico global pode estar relacionada a pouca importância relativa que os Es-tados da AL dão a estes investimentos. Com exceção do Brasil o investimento em C&T na AL raramente excede meio ponto percentual do produto nacional bruto, enquanto nos países desenvolvi-dos este investimento alcança dois a qua-tro por cento (www.ricyt.org). Somado ao fato que o PNB da região é relativa-mente modesto e que os investimentos em C&T são essencialmente públicos, pode-se compreender que os países do continente sejam pouco expressivos na produção de conhecimento em C&T.

Dentro da aguda diversidade no nível de desenvolvimento de C&T&I na América Latina, o Brasil se desta-ca, pois a produção científica conti-nua a ocupar cada vez mais espaço no mundo, ao mesmo tempo em que crescentemente incorporam-se ciên-cia e tecnologia em segmentos impor-tantes da produção nacional. Estes movimentos simultâneos sugerem novos padrões nas relações entre o Brasil e os países do Continente.

Assim, esta realidade brasilei-ra, na qual ciência e tecnologia se inserem crescentemente no tecido social, gera a necessidade de reexa-minar as relações científicas, culturais e econômicas com a América Latina.

Os palestrantes mostrarão um novo quadro em que as questões levan-tadas acima serão abordadas pelos pró-prios atores responsáveis por parte signi-ficativa destas mudanças. A Cooperação Internacional será abordada consideran-do tanto a parceria como a solidariedade. Diversos palestrantes considerarão as oportunidades e os dasafios da coope-ração em C&T, a diplomcia da Ciência e os impactos tecnológicos da produção

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de conhecimento no Brasil. Sem deixar de se perguntar sobre pesquisa, quem, quando como, por que e para que, os expositores devem construir um espec-tro de reflexão que é ao mesmo tem-po urgente e pouco explorado com esta abrangência. Estas contribuições, bem como um conjunto selecionado de monografias de alunos matriculados do Curso deve constituir o cerne de um livro a ser editado pelo Memorial.

A Cátedra, neste semestre, deve compreender mais duas atividades com o mesmo foco, um levantamento cien-tométrico que investigará a relação entre produção científica e economia nos países latino-americanos e do Ca-ribe e um Seminário Internacional de Gestores de Política de Ciência e Tec-nologia da América Latina e do Caribe.

No levantamento pretende-se obter uma visão semiquantitativa que permita responder a pergunta seguinte: existe relação entre a Ciência produzi-da na América Latina e no Caribe com as principais atividades econômicas de cada um dos países? Dois exemplos ilustram o tipo de dado que se pode ob-ter com esta investigação. Entre 2007 e

2009, Chile e Brasil apresentavam 1,8 e 0,27 por cento da produção total de arti-gos científicos (apps.isiknowledge.com). Usando como palavras-chave atividades econômicas no Chile se encontram os dados seguintes(palavra (percentagem)): cobre (0,8%), salmão (1,5%). Assim o Chile produz conhecimento em áreas de (seu) interesse econômico que estão aci-ma da média de produção do país em to-das as áreas. No Brasil se destaca o setor da cana de açúcar, no qual o país produz 37% de todo o conhecimento científico do mundo nessa área. Estes dados cons-tituirão uma base de informação útil para reflexão de políticas públicas que possam contribuir à incorporação de conhecimento à atividade econômica.

A atividade final da Cátedra deve ser um encontro entre gestores das políticas de C&T&I da América La-tina e do Caribe que sirva para anali-sar as possibilidades de colaboração continental à luz dos resultados do curso e do levantamento proposto.

Hernan Chaimovich é professor de Bioquí-mica da Universidade de São Paulo.

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CAPITAL POLÍTICOPARA AVANÇAR

CARLOS E. LINS DA SILVA

ANÁLISE

provavelmente ninguém assumiu nenhum governo cercado por maior interesse e pensamento po-sitivo de tantas pessoas no mundo inteiro quanto Barack Obama nos EUA em 20 de janeiro de 2009.

Nenhuma análise minimamente realista dei-xou de ressaltar desde sua eleição em novem-bro de 2008 que era impossível Obama sa-tisfazer a todas as expectativas dos que nele votaram, trabalharam, acreditaram, confiaram.Sua meteórica transformação de mero legislador estadual e professor de direito em Illinois em ocu-pante do mais importante cargo público da Terra ocorreu em meros quatro anos, nos quais ele foi um obscuro senador, exceto pelos extraordinários

OBAmAE O mUndO QUE CATIvOU

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dotes de oratória e a impressionante ca-pacidade de infundir esperança nas pes-soas. Havia, portanto, muito pouca base factual para antecipar o que ele realmente faria como presidente dos EUA. Tradicionalmente, o presidente recém-empossado ganha da opinião pú-blica nacional um período de graça de cem dias, durante os quais nada ou muito pouco lhe é cobrado. No caso de Obama, a magnitude da crise econômica que ele pegou junto com o cargo certamente fez com que se lhe fosse ofertado um tempo maior de tolerância coletiva. As pesqui-sas na época da posse mostravam que a maioria dos americanos se dispunha a esperar um ano até começar a exigir re-sultados do novo presidente. Mas aos seis meses, completados em 20 de julho de 2009, as compara-ções com os antecessores começaram a ser feitas. E, para a surpresa de muitos, mas certamente não de todos, o que se constata é que Obama – o mais popu-lar presidente em início de mandato na história recente dos EUA – completou seu primeiro meio ano de poder com taxas de aprovação quase iguais às dos que deixaram o cargo com as mais baixas

marcas de todos os tempos: George W. Bush e Richard Nixon e muito inferiores às de John Kennedy, Dwight Eisenhower e George H. Bush seis meses a posse. Não que elas sejam ruins: em torno de 60%, mas em queda indiscutí-vel e acelerada (em 6 de agosto, já havia pesquisas que mostravam 50%). O mais grave para o futuro político imediato de Obama é o fato de que suas marcas caem especialmente no grupo de eleitores que se consideram independentes, nem de-mocratas nem republicanos, faixa que vem se alargando a cada eleição desde meados dos anos 1970 e se tornando cada vez mais decisiva. Dois terços de-les achavam em fins de julho que Obama tem a tendência de gastar mais dinheiro público do que deveria e, por isso, não aprovam seu governo. Obama assumiu com uma lista de deveres de casa de extensão sem pre-cedentes. Durante a campanha, conseguiu evitar dar respostas precisas sobre quais entre elas seriam suas prioridades. Quan-do deu mãos à obra, ficou claro quais se-riam: reforma do sistema de saúde, medi-das para enfrentar as mudanças climáticas e aumento do poder do governo federal FO

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no sistema de educação do país. Os outros pontos da agenda ficariam para depois. Com o privilégio que nenhum predecessor exceto Franklin Roosevelt teve de contar com maiorias folgadas nas duas Casas do Congresso (257 a 178 na Câmara, 60 a 40 no Senado) e com taxas de apoio e confiança públicas sem prece-dentes (na casa dos 80%), Obama parecia ter capital político suficiente para avançar bastante e rapidamente na sua missão. Mas as coisas começaram a se complicar. Primeiro, porque o país está demorando para sair da recessão. Nin-guém esperava que ela passasse depressa. Mas uma coisa é saber que algo desagra-dável vai perdurar por muito tempo, outra é sofrer os efeitos desse prolongamento. A crise não se aprofundou; ao contrário,

as coisas melhoraram nos primeiros seis meses, mas não o bastante para que a maioria o percebesse em sua vida real. Segundo, Obama tem demonstra-do capacidade muito menor de convencer grupos pequenos de pessoas – entre elas, os congressistas – do que as grandes mul-tidões que ele cativou na campanha. O presidente parece ter a tendência de deixar a cargo de terceiros a tarefa de obter os votos de que precisa para fazer passar seus projetos em vez de se engajar pessoalmen-te nesse esforço, o que parece confirmar uma impressão cada vez mais generaliza-

da de que ele é um líder que prefere lidar com as grandes linhas estratégicas do que se incomodar com a administração dos detalhes de sua implementação. No cam-po da política legislativa, em qualquer país do mundo, nos EUA inclusive, esse traço de personalidade pode ser fatal se os pre-postos do comandante não forem muito eficazes. E os de Obama por enquanto não estão provando ser. Em terceiro lugar, Obama pa-rece estar sendo vítima de uma estranha combinação de leniência por parte dos meios de comunicação tradicionais e de extrema intolerância por parte dos ad-versários políticos, que se vêm valendo dos instrumentos mais modernos, como a internet. O resultado é que começa a se cristalizar entre muitos eleitores indepen-dentes e centristas a impressão de que ele é “esquerdista” demais, no sentido de que defende mais do que a maioria dos americanos gostaria, a presença do Esta-do no cotidiano nacional. A mais expressiva demonstração desse sentimento coletivo é a formação de um bloco de deputados do Partido Democrata (o de Obama) que tem o princípio da responsabilidade fiscal entre os seus dogmas e que na prática vem atu-ando como oposição ao governo, princi-palmente no que se refere ao crucial pro-jeto da reforma do sistema de saúde, que era – no meio do verão americano – o tópico número um das preocupações da sociedade. Este grupo, chamado de “blue dog Democrats” (referência aos tradicionais “yellow dog Democrats” do fim do século 19 e começo do século 20, que era o nome dado aos mais leais integrantes do partido) somam 52 de-putados, número que eventualmente tira de Obama a maioria da Câmara. E não é só à direita que o presi-dente enfrenta resistências. Embora nos ambientes mais conservadores o rótulo de “socialista” (e até “comunista”) co-mece a colar com força cada vez maior à sua imagem, nos setores liberais do

O presidente Luiz Inácio Lula da Silvae Barack Obama.

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país (como se denomina a esquerda lá), a desilusão é grande e o nível de cobrança do que eles julgavam ser compromissos assumidos por Obama na campanha se eleva dramaticamente. Para esses liberais frustrados, Obama tem ajudado excessivamente as grandes empresas e os seus executivos nas medidas de estímulo à economia, deixa de cumprir as promessas de que lobistas não teriam acesso a seu governo, fez concessões excessivas à oposição no seu plano para lidar com a mudança cli-mática, não tem nomeado juízes federais suficientemente jovens e comprometidos com causas progressistas nas vagas que se abrem e manteve inúmeros instrumentos criados na administração de George W. Bush para combater o terrorismo e con-siderados como ameaças aos direitos in-dividuais (como detenções prolongadas de suspeitos sem acusação formal, técni-cas brutais de interrogatório, espionagem de cidadãos americanos). Em política externa, na qual o presidente dos EUA desfruta de liberdade de ação muito maior do que nos assuntos domésticos, já que depende menos do Congresso para decidir, Obama também tem tido nos seis primeiros meses um desempenho que pode ser considerado muitíssimo aquém das possibilidades de mudança em relação ao passado recente que sua campanha prenunciava. Ele fez três grandes discursos: em Praga, anteviu um mundo livre de armas nucleares; no Cairo defendeu bri-lhantemente que o Ocidente se abrisse para o Islã e a necessidade da criação de um Estado palestino como condição indispensável para solucionar os pro-blemas seculares do Oriente Médio; em Accra, chamou os países africanos à res-ponsabilidade com a autoridade moral que só um presidente americano filho de um cidadão do Quênia poderia ter. Na prática, no entanto, pouco aconteceu. É evidente que a dimensão

dos obstáculos é enorme e que Oba-ma, por menos que alguns acreditem, é apenas um ser humano. Os discursos tiveram um efeito positivo imediato: a imagem dos EUA em outros países me-lhorou muito e quase universalmente. As pesquisas periódicas feitas pelo Ins-tituto Pew mostram, por exemplo, que a atitude favorável aos EUA entre julho de 2008 e julho de 2009 pulou de 42% para 75% na França, de 31% para 64% na Alemanha, de 47% para 61% no Bra-sil, de 64% para 79% na Nigéria. Mas em países de maioria muçulmana, como Egi-to, Líbano e nos territórios palestinos, ela permaneceu estável e baixa, mesmo de-pois do pronunciamento do Cairo. O que demonstra que o carisma do presidente ainda não é suficiente para mobilizá-los. A política externa de Obama é marcantemente diferente da de W. Bush. Não só em estilo. Ela é pragmática, não idealista. Não se preocupa em doutrinar nem impor padrões de comportamento a outros países. É aberta ao diálogo. Isso é muito favorável ao entendimento entre os povos e já resultou em alguns suces-sos, como a libertação de duas jornalistas americanas presas na Coreia do Norte. Mas para ser capaz de mudar o mundo, precisará de mais ação e menos retórica. Mesmo aqui, na nossa América, faltam fatos, como se viu no episódio do golpe de Estado em Honduras, que Obama condenou – como era de esperar – mas vem tolerando preocupantemente na prática e no caso dos caminhoneiros mexicanos, que continuam com restri-ções de entrada nos EUA, apesar do que diz em contrário o Nafta.

Carlos E. Lins da Silva é editor da revista Políti-ca Externa, presidente do Conselho Acadêmico do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) da Unesp, membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional (Gacint) da USP e ombudsman da Folha de S. Paulo.

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MESTRE DOCINEMA NOVO

CINEMA

C inco filmes meus foram exibi-dos no 4° Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo no Memorial da América Latina. São filmes de diferentes contex-tos políticos e cinematográficos,

feitos entre as décadas de 1950 e 1980. Nesse período, tanto o regime político quanto a história do cinema brasileiro mudaram muito. A história desses filmes e todas essas mudanças foram temas da Aula Magna que proferi durante o Festival.

Rio 40 Graus foi lançado em 1955. Sou pau-listano. Herdei a vocação dos bandeirantes e fui em busca, em meados da década de 1950, de coi-sas além do Rio Tietê. No caso, para o Rio de

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Vidas Secas, uma das mais importantes produções da cinematografia brasileira. 1962

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Janeiro, a convite do Alex Vianny, um carioca que tinha trabalhado comigo em O Saci, de Rodolfo Nanni. Fui para o Rio passar alguns meses. Fiquei até hoje. O cinema no Brasil, naquela épo-ca, era financiado só pela iniciativa pri-vada. Em São Paulo havia a Vera Cruz (Companhia Cinematografica) e, no Rio, a Atlântida. O cinema daquela época ti-nha um público importantíssimo. Os fil-mes chegavam ao público e se pagavam.

dias o filme rendeu primeira página nos jornais. Naquele ano havia a cam-panha eleitoral para presidente, com Juscelino Kubistchek candidato. E o chefe de polícia era um opositor, da UDN. Então, todos os que apoiavam Juscelino apoiavam o filme. Apesar da proibição, o governador de Minas exibiu o filme em Belo Horizonte. O mesmo aconteceu em Salvador – quando eu conheci Glauber – e em

Cena de Como Era Gostoso o meu Francês. 1970

Porto Alegre e Niterói. Isso durou até o fim do ano, quando foi liberado e lançado logo no começo de 1956.

O episódio revela que, apesar de não contar com dinheiro público, havia, sim, relação com o Estado: a da censura. Além de determinar a fai-xa etária, dizia se o filme era de “boa qualidade” ou não. O que significa-va boa qualidade? Não se explicava.

Vidas Secas foi lançado em 1963, também sem apoio do Estado. Havia alguns loucos, como o dono

Era dinheiro do próprio mercado: o dis-tribuidor adiantava uma parte da renda para o produtor, que tinha crédito nolaboratório, inclusive de negativos. As-sim eu fiz Rio 40 Graus. E tivemos sorte: ainda na mixagem, o dono do labora-tório viu, gostou e conseguiu uma dis-tribuição da Columbia. No lançamento, no Rio, porém, o chefe de polícia achou o filme “perigoso” e vetou a exibição.Isso acabou sendo um presente: ga-nhamos uma publicidade enorme. Por quatro meses, praticamente todos os

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do Banco Nacional de Minas Gerais, José Luís Magalhães de Lins, que fi-nanciava cinema por meio de crédito pessoal; funcionava assim: eu assi-nava um “papagaio” de milhões do produtor e o produtor assinava um “papagaio” no meu nome. Eu não tinha nem um Fusca, como é que podia dar lastro financeiro a uma dívida assim? Quem descobriu esse caminho, e deu certo, foi o brilhante

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produtor Luiz Carlos Barreto. Para o Vidas Secas tive também a associação de um produtor consolidado, Her-bert Richards. Era começo dos anos 1960, e o Brasil passava por uma tre-menda confusão política, com João Goulart presidente parlamentarista. Continuava havendo propostas, mui-tas para um esquema estatal de cine-ma, mas tanto eu, com Vidas Secas, como Glauber Rocha, com Deus e o Diabo na Terra do Sol, não tivemos absolutamente nenhum investimen-

to públicos. Nem pensávamos nisso. Este filme também tem um fato

curioso: eu tentei fazer pela primeira vez no fim da década de 1950, mas choveu no sertão. Inicialmente, que-ria fazer um filme sobre os flagela-dos da seca com roteiro próprio. Mas meu livro de consulta era o Vidas Secas. Lá pelas tantas, me dei con-ta de que o filme já estava “escrito” por Graciliano Ramos. Tive, também,

muito contato com o Ricardo Ramos, filho do Graciliano, que me prestou grande ajuda. Ele me ajudou muito a esclarecer alguns pontos de Vidas Secas, me contou como o pai dele ra-ciocinava para criar um personagem. Por exemplo, a Sinhá Vitória, com-binação de índia e negra, e Fabiano, branco, olhos e cabelos claros. Gra-ciliano implicava com aquela história de raça pura, em voga nos anos 30. Então fez a Sinhá Vitória inteligen-te e o Fabiano burrão. Na primei-

Memórias do Cárcere. 1984

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ra versão de Vidas Secas eu ia fazer tudo errado. Ainda bem que choveu.

El Justicero, de 1967, foi de cer-ta maneira financiado pelo Estado. Tudo começou quando o diretor e crítico de cinema Flávio Tambellini conseguiu pôr na Lei de Remessas de Lucros um artigo em favor do cinema. A lei funcionava assim: toda empresa importadora de filmes podia expor-tar 70% da renda desses filmes ao seu país de origem. Sobre esses 70% havia um imposto a pagar. Pois bem: 25% desse imposto, posteriormente 50%, até chegar a 75%, poderia ser aplicado, pela empresa distribuidora, na produção de filmes, em associação com produtores brasileiros. El Justi-cero foi feito com dinheiro dessa lei, em associação com a Condor Filmes.

Fazendo um parênteses, falan-do da Embrafilme e voltando ao as-sunto da interferência do Estado no cinema, eu sempre faço a seguinte pergunta: quem nasceu primeiro? O Cinema Novo ou o Instituto Nacio-nal de Cinema (INC)? Claro que foi o Cinema Novo, que apareceu esponta-neamente, com sua liberdade e cria-tividade. Só que, em plena ditadura, os filmes do Cinema Novo não cor-respondiam à publicidade oficial, que dizia que por aqui estava tudo bem, somos um país rico. O Cinema Novo contava história de gente triste, mi-serável. Daí inventaram o INC, pois a constatação foi a de que, apesar de a censura ser severa naquela época, não tinha controle sobre a criação.

O filme podia ser proibido só depois de pronto e, mais dia, menos dia, seria liberado, exibido e conhe-cido. Aí surgiu o INC, para ter aces-so ao filme ainda no roteiro. Além disso, a Embrafilme retirou o poder que as distribuidoras estrangeiras ti-nham de produzir filmes aqui. Tudo tinha que passar pelo crivo do Esta-

do. Assim, essa primeira Embrafilme começou a comprar e a pagar mais por filmes coloridos, que mostrassem as belezas do Brasil. Eles compravam filmes do Jean Manzon, de propa-ganda, para tentar reduzir o impacto do Cinema Novo. El Justicero é des-se período, quando já existia o INC.

Como Era Gostoso o meu Francês, concluído em 1968, segue o caminho de El Justicero. Também foi financia-do pela Condor, mas sob fiscalização do INC. Ainda assim, tive liberdade de realização. Não houve interferên-cia para mudar roteiro, ou vestir os índios. O filme foi feito, o INC en-goliu. Mas a Censura não, e proibiu. Ele foi, porém, apresentado na Fran-ça e no Festival de Berlim, em 1968.

Um ano ou dois depois, mu-dou o chefe da Censura. Eu esta-va em Paris, quando recebi um te-lefonema do Luiz Carlos Barreto:- Você tem de ir a Brasília. As frei-ras gostaram do seu filme (risos).

É que o ministro da Cultura, o Jarbas Passarinho, queria liberar o fil-me, por tê-lo achado histórico. Man-dou o filme para a CNBB, para ouvir a opinião da ala católica. E as freiras que estavam lá disseram que a úni-ca coisa imoral do filme era quando um francês matava o outro. Mesmo assim, enfrentei um censor bravo de-mais e tive de cortar várias partes do filme, que ficou completamente sem nexo. Foi lançado assim mesmo. No dia do lançamento, eu tive uma de-cepção. Ouvi o seguinte comentário: - O filme é bom, mas o índio mata o mocinho... (risos). Pensei: “Que lou-cura! O cara tem DNA de índio, mas está com o francês!” Isso porque, no cinema americano, o herói é sempre aquele que mata o índio. No meu fil-me, o francês é devorado pelo índio.

Eu gosto muito de Memórias do Cárcere, produzido integralmente pela

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Embrafilme. Mas é bom lembrar que existiram duas Embrafilmes, aquela depois do Cinema Novo, que divul-gava só coisas boas, e outra, que co-meçou no governo Geisel, que insti-tuiu, junto com seus ministros Ney Braga e Reis Velloso, uma comissão para reestudar o cinema nacional. Eu fiz parte desta comissão. Foi daí que nasceu a segunda Embrafilme, uma empresa de mercado que, como empresa, seria produtora ou copro-dutora, distribuidora, exibidora e até importadora de filmes. A execução da lei, porém, foi combatida. Para torná-la distribuidora foi uma batalha enorme. Havia grande resistência dos distribuidores já existentes. Já a exi-bidora não aconteceu, e a importado-ra, muito menos. E assim, em vez de empresa moderna, a segunda Embra-filme virou uma repartição pública.

De todo modo, deu um impul-so ao cinema, auxiliada por uma for-te legislação nacionalista, que obri-gava toda e qualquer sala de cinema do Brasil a exibir filmes brasileiros

no mínimo 180 dias por ano. Isso é exagero e nunca ninguém cumpriu. Daí que surgiram os filmes da Boca do Lixo, produzidos com baixo orça-mento e “liberdade temática” (risos).

Outra coisa que a lei criou foi a obrigatoriedade de exibição de curtas brasileiros – que teriam direito a 5% da renda – acompanhando todo fil-me estrangeiro. A reação foi violen-ta. Aí, a segunda fase da Embrafilme, profissional, acabou logo em seguida, pois, quando acabou o governo Geisel, acabou a Embrafilme nestes moldes. As-sumindo Figueiredo, ele só perguntava para Delfim Netto, seu ministro: - Quan-do é que você vai fechar aquela m...?

Voltando a Memórias do Cárcere, tive a sorte de lançá-lo em 1984, ano das Di-retas Já! Um filme político, que saiu num ano político, com um milhão de pessoas na rua. Apesar de ser um filme de três horas, teve boa bilheteria e foi até para Cannes.

FOTO

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ãO Nelson Pereira dos Santos é cineasta, nome

importante do cinema novo brasileiro.Colaboração de Tânia Rabello.

Rio 40 graus. 1957

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AGENDALIVROS

LIVROS

A exposição que esteve em cartaz na Galeria Marta Traba foi sucesso de público. A proposta de Linha Líquida foi envolver o público em um movi-mento fluído e dinâmico no percurso da exposição. Com o patrocínio da Sabesp, reuniu 33 artistas de diferentes países latino-americanos, como Chile, Argenti-

na, Bolívia, Equador e Brasil, com obras e diversas atividades paralelas. Duran-te o período de exibição, o espaço foi permanentemente reconfigurado, os artistas finalizaram trabalhos no local e também trabalharam no processo de implementação das etapas. Foram vários workshops, palestras e performances.

lInhA lÍQUIdA

AnISTIA pARA TOdOS

O Memorial é referência para os bolivianos, diz o cônsul geral da Bolívia em São Paulo, Jaime Valdívia. Isto por conta da Festa da Comunidade Boliviana, realizada na Praça Cívica, já em segunda edição. Daí a escolha da fundação para abrigar o Programa de Documentação do Cidadão Boliviano no Brasil. O ob-jetivo é emitir documentos de inscrição consular e regularizar a vida de cidadãos que chegaram antes de fevereiro deste ano. O programa ganhou o estímulo da lei 11.961, promulgada em julho deste ano pelo presidente Lula, que anistia os es-trangeiros em situação irregular no Brasil.

hISTóRIA IlUSTRAdA Fica em cartaz até outubro uma ex-posição que pretende familiarizar os estudantes e interessados em ge-ral com a história da América Lati-na. Quem elucida a trajetória dessas terras e povos é a arte popular que o Pavilhão da Criatividade guarda e preserva. Por meio de peças utilitá-rias, indumentárias, adornos e outras mais, o visitante percorrerá caminhos passados e presentes do Continente, a começar pela Argentina, prosse-guindo por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador e México, além de Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

Fotografia, Fragmento. Naiah Mendonça, 2003

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CRImE BÁRBARO QUE ESCAndAlIZOU A CIdAdE

O historiador Boris Fausto tomou como objeto de estudo um crime bárba-ro, ocorrido na cidade de São Paulo em 1938, na manhã da quarta-feira de cinzas. Naquele dia, o chinês Ho-Fong e sua es-posa Maria Akiau, donos do estabeleci-mento, e dois funcionários que dormiam no local - o lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Lindolfo Rocha - fo-ram brutalmente assassinados a porre-tadas e por estrangulamento. Um outro funcionário, ao chegar para o trabalho, encontrou a cena de horror, com os cor-pos e muito sangue espalhados pelo res-taurante. A arma usada para estraçalhar os crânios das vítimas foi uma mão de pilão, com cerca de setenta centímetros, e aparentemente não havia razão para a série de mortes, embora objetos de valor tenham sido furtados.

O crime escandalizou a cidade, mo-bilizou a opinião pública e foi um prato cheio para as especulações da imprensa. O restaurante ficava no centro da cidade e gozava de certa popularidade. Havia o preconceito racial pouco digerido desde a abolição da escravatura, muito recente historicamente, e a rejeição aos imigrantes que vieram ao país em busca de trabalho, justamente para substituir a mão-de-obra que antes era ocupada pelos escravos.

As investigações, reforçadas pelo depoimento do garçom e funcionário mais antigo da casa - Manoel Custódio Pinto -, levaram a polícia a suspeitar do jovem negro Arias de Oliveira, ex-funcio-nário do estabelecimento e desemprega-do na ocasião. Negro e de origem muito pobre, Oliveira tinha acesso ao restau-rante e estava para voltar a trabalhar com Ho-Fong. No início, ele negou o crime,

mas chegou a confessá-lo espontanea-mente em seguida, sem passar por tortu-ra, recurso muito comum nos interroga-tórios policiais daquele período. Para as autoridades, o crime estava resolvido. No caso da opinião pública, mais um tema para discussões sensacionalistas.

O fato, no entanto, teve uma revi-ravolta que despertou o interesse de Boris Fausto, por suas características peculiares. Depois de quatro anos na prisão, o réu foi absolvido por júri popular, em decisão apertada, e o caso foi arquivado, sem con-clusão. Defendido pelo advogado Paulo Lauro, que na década seguinte se tornaria o primeiro prefeito negro de São Pau-lo (1947-1948), a acusação foi abordada como perseguição racial, com apelação à situação de pobreza e humildade do su-posto criminoso. Com tais argumentos, Lauro conseguiu sensibilizar a opinião pú-blica em favor de seu cliente, deslocando o crime para uma questão social.

Boris Fausto disseca o episódio, apoiando-se nos conceitos da micro-his-tória - que busca revelar os fatos históri-cos a partir do cotidiano, dos costumes, da vida de personagens menores, em oposição aos grandes panoramas - para revelar as sutis ligações entre o crime com o ambiente carnavalesco e a euforia do futebol, centrada na figura do jogador Leônidas, herói negro da seleção brasilei-ra e goleador. Para o historiador, o fato aparentemente banal da chacina, que dei-xou muitas perguntas no ar, pode repre-sentar um importante vetor de questões ideológicas, filosóficas e culturais que estão em conflito num determinado mo-mento da sociedade.

AGENDALIVROS

LIVROS

Reynaldo Damazio, sociólogo e jornalista, autor de Horas perplexas (Editora 34), entre outros.

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POESIA

(AGUA) al fin es la cancióndel fin canto de ir: decircanción es ir em arcosarco es ir al aire adóndevuelve donde a arcoadónde vuelvea donde aire al ir es arco limite: aire sueltodevuelto en corte al agua en arcoso en paréntesis al agua en ramalíneas de água(se cimbre como rama) tensocímbrase: gotas de rama picosgarras hojastensoaçude extenso va hacia (aspira)a donde escancia vacía (canción fueraáspero: águavuélvese adentro)

mIlÁnEdUARdO

Eduardo Milán é poeta e crítico uruguaio, publicou os seguintes livros de poesia: Secos y Mojados (1974), Nervadura (1985), Cuatro poemas (1990), Errar (1991); ensaio: Una Cierta Mirada (1989). Atualmente é crítico literário independente e membro da revista mexicana Vuelta.