nota para uma leitura da crítica da razão pura, de kant, como uma “gramática transcendental”

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1 NOTA PARA UMA LEITURA DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA, DE KANT, COMO UMA GRAMÁTICA TRANSCENDENTAL1 César Romero Fagundes de Souza * e-mail: [email protected] Resumo: Este trabalho apresenta uma proposta de interpretação da Crítica da Razão Pura de Kant como uma gramática transcendental, seguindo a sugestão de Kant nas Vorlesungen über die Metaphysik e nos Prolegomena. A argumentação é baseada na análise do uso que Kant faz do termo ‘razão’ na Crítica como um uso metonímico, de acordo com o qual, o termo ‘razão’ poderia ser lido como ‘linguagem simbólica de um tipo especial que opera através de conceitos, segundo uma regra estrita, que é o princípio de contradição’. O objetivo desta interpretação é apresentar uma proposta para conceber o trabalho de Kant na primeira Crítica como uma investigação acerca do uso da linguagem na e para além da experiência, i.e. acerca do uso tanto empírico como puro da linguagem. Abstract: This paper presents a proposal for an interpretation of Kant’s Critic of Pure Reason as a transcendental grammar, following his suggestions on Vorlesungen über die Metaphysik and on Prolegomena. The argumentation is based on an analysis of the use of the term ‘reason’ by Kant in the Critic as a metonymic (pars pro toto) use, according to which ‘reason’, in the Critic, could be read as a ‘symbolic language of a special kind which works through concepts, following a strict rule, which is the principle of contradiction’. The goal of this interpretation is to present a proposal t o conceive Kant´s work on his first Critic as an investigation about the use of language on and beyond experience, i.e. about both the empirical and the pure use of the language. Na Crítica da Razão Pura 2 , Kant pretende fazer uma ‘crítica ao uso puro da razão para além da experiência’. Mas, ao falar assim, o que Kant entende por ‘razão’? Qual o significado desta palavra no texto da Crítica? Na verdade, se quisermos entender o intento de Kant, o primeiro passo deve ser dado na direção do esclarecimento do que parece ser o ponto fundamental da sua trama conceitual, a saber, o conceito de ‘razão’. Por quê? Principalmente, porque Kant não inicia sua exposição, na Crítica, dizendo o que ele entende por ‘razão’ e, com isso, não apresenta um uso unívoco desta palavra, utilizando-a, muitas vezes, no lugar de outras dentre essas, ‘entendimento’, ‘pensamento’ e ‘linguagem’—, parecendo assim equivocar-se quanto ao significado dessas palavras. Desse modo, o uso da palavra ‘razão’, na Crítica, parece substituir o de outras palavras, cujos significados são tratados, por meio desse uso, indiretamente. Mas por que Kant assim o faz? Por que ele teria se descuidado de um aspecto tão importante e polêmico de seu trabalho? Sugiro três hipóteses: ou (i) Kant realmente equivocou-se quanto ao significado da palavra ‘razão’, tendo sido vítima de uma falta de precisão de seu vocabulário; ou (ii) não havia necessidade de apresentar um conceito de ‘razão’, uma vez que seu trabalho se encontrava ‘‘colado’’ a um contexto de discussão, no qual a palavra ‘razão’ era um elemento do instrumental lingüístico vigente, cujo significado se encontrava muito bem assentado; ou (iii) Kant tinha a intenção mesma de fazê-lo assim, valendo-se da especificidade do significado da palavra ‘razão’, com o fim de, primeiro, elevar a sua argumentação a todo o domínio de atividades humanas ao qual fosse aplicável o conjunto dos conceitos que ele enunciava em sua doutrina, i.e. a todas as atividades humanas ditas racionais; e, segundo, com isso, obter uma economia de palavras e de equívocos. As suposições (ii) e (iii) parecem estar mais de acordo com o que se esperaria do trabalho de Kant. Com a exposição que seguirá, pretendo desenvolver a hipótese de que Kant se vale de um ‘‘princípio de economia lingüística’’ ao utilizar a palavra ‘razão’ na Crítica, i.e. ‘razão’ estaria por uma formulação mais complexa, a saber: ‘linguagem simbólica de tipo especial, que opera por meio de conceitos 3 , segundo uma regra estrita, o princípio de contradição’. 1 O texto que segue é uma síntese da primeira parte de minha dissertação de mestrado, defendida em setembro de 1997, junto ao departamento de pós-graduação em Filosofia da UFRGS, em Porto Alegre, intitulada O idealismo transcendental de Kant sob a perspectiva do sentido na linguagem. Agradeço ao Prof. Dr. Valério Rohden pelo apoio na escolha do tema e pelo estímulo e orientação constantes concedidos durante o desenvolvimento do trabalho. Publicado na revista Hífen, Uruguaiana, v. 27, n. 51/52, p. 7-23, jan./dez., 2003. * Doutorando em Filosofia, PUCRS. 2 KANT, I., Kritik der reinen Vernunft (K.r.V.), Herausgegeben von Ingeborg Heidemann, Stuttgart, Philipp Reclam Jun, 1985. 3 Conforme posição de Bennett, segundo a qual a linguagem humana é uma linguagem de tipo especial que opera por meio de conceitos. BENNETT, J. La ''Crítica da razón pura'' de Kant: 1. A Analítica (Kant's Analytic; Cambridge University Press, 1966); tr. A. Montesinos, Madrid, Alianza editorial, 1979, p. 96.

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Resumo: Este trabalho apresenta uma proposta de interpretação da Crítica da Razão Pura de Kant como uma gramática transcendental, seguindo a sugestão de Kant nas Vorlesungen über die Metaphysik e nos Prolegomena. A argumentação é baseada na análise do uso que Kant faz do termo ‘razão’ na Crítica como um uso metonímico, de acordo com o qual, o termo ‘razão’ poderia ser lido como ‘linguagem simbólica de um tipo especial que opera através de conceitos, segundo uma regra estrita, que é o princípio de contradição’. O objetivo desta interpretação é apresentar uma proposta para conceber o trabalho de Kant na primeira Crítica como uma investigação acerca do uso da linguagem na e para além da experiência, i.e. acerca do uso tanto empírico como puro da linguagem.

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Page 1: Nota para uma leitura da Crítica da Razão Pura, de Kant, como uma “gramática transcendental”

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NOTA PARA UMA LEITURA DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA, DE KANT,

COMO UMA “GRAMÁTICA TRANSCENDENTAL”1

César Romero Fagundes de Souza* e-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho apresenta uma proposta de interpretação da Crítica da Razão Pura de Kant como uma gramática transcendental, seguindo a sugestão de Kant nas Vorlesungen über die Metaphysik e nos Prolegomena. A argumentação é baseada na análise do uso que Kant faz do termo ‘razão’ na Crítica como um uso metonímico, de acordo com o qual, o termo ‘razão’ poderia ser lido como ‘linguagem simbólica de um tipo especial que opera através de conceitos, segundo uma regra estrita, que é o princípio de contradição’. O objetivo desta interpretação é apresentar uma proposta para conceber o trabalho de Kant na primeira Crítica como uma investigação acerca do uso da linguagem na e para além da experiência, i.e. acerca do uso tanto empírico como puro da linguagem.

Abstract: This paper presents a proposal for an interpretation of Kant’s Critic of Pure Reason as a transcendental grammar, following his suggestions on Vorlesungen über die Metaphysik and on Prolegomena. The argumentation is based on an analysis of the use of the term ‘reason’ by Kant in the Critic as a metonymic (pars pro toto) use, according to which ‘reason’, in the Critic, could be read as a ‘symbolic language of a special kind which works through concepts, following a strict rule, which is the principle of contradiction’. The goal of this interpretation is to present a proposal to conceive Kant´s work on his first Critic as an investigation about the use of language on and beyond experience, i.e. about both the empirical and the pure use of the language.

Na Crítica da Razão Pura

2, Kant pretende fazer uma ‘crítica ao uso puro da razão para além da

experiência’. Mas, ao falar assim, o que Kant entende por ‘razão’? Qual o significado desta palavra no texto da Crítica? Na verdade, se quisermos entender o intento de Kant, o primeiro passo deve ser dado na direção do esclarecimento do que parece ser o ponto fundamental da sua trama conceitual, a saber, o conceito de ‘razão’. Por quê? Principalmente, porque Kant não inicia sua exposição, na Crítica, dizendo o que ele entende por ‘razão’ e, com isso, não apresenta um uso unívoco desta palavra, utilizando-a, muitas vezes, no lugar de outras — dentre essas, ‘entendimento’, ‘pensamento’ e ‘linguagem’—, parecendo assim equivocar-se quanto ao significado dessas palavras. Desse modo, o uso da palavra ‘razão’, na Crítica, parece substituir o de outras palavras, cujos significados são tratados, por meio desse uso, indiretamente.

Mas por que Kant assim o faz? Por que ele teria se descuidado de um aspecto tão importante e polêmico de seu trabalho? Sugiro três hipóteses: ou (i) Kant realmente equivocou-se quanto ao significado da palavra ‘razão’, tendo sido vítima de uma falta de precisão de seu vocabulário; ou (ii) não havia necessidade de apresentar um conceito de ‘razão’, uma vez que seu trabalho se encontrava ‘‘colado’’ a um contexto de discussão, no qual a palavra ‘razão’ era um elemento do instrumental lingüístico vigente, cujo significado se encontrava muito bem assentado; ou (iii) Kant tinha a intenção mesma de fazê-lo assim, valendo-se da especificidade do significado da palavra ‘razão’, com o fim de, primeiro, elevar a sua argumentação a todo o domínio de atividades humanas ao qual fosse aplicável o conjunto dos conceitos que ele enunciava em sua doutrina, i.e. a todas as atividades humanas ditas racionais; e, segundo, com isso, obter uma economia de palavras e de equívocos.

As suposições (ii) e (iii) parecem estar mais de acordo com o que se esperaria do trabalho de Kant. Com a exposição que seguirá, pretendo desenvolver a hipótese de que Kant se vale de um ‘‘princípio de economia lingüística’’ ao utilizar a palavra ‘razão’ na Crítica, i.e. ‘razão’ estaria por uma formulação mais complexa, a saber: ‘linguagem simbólica de tipo especial, que opera por meio de conceitos

3, segundo uma regra estrita, o princípio de contradição’.

1 O texto que segue é uma síntese da primeira parte de minha dissertação de mestrado, defendida em setembro de 1997, junto ao

departamento de pós-graduação em Filosofia da UFRGS, em Porto Alegre, intitulada O idealismo transcendental de Kant sob a perspectiva do sentido na linguagem. Agradeço ao Prof. Dr. Valério Rohden pelo apoio na escolha do tema e pelo estímulo e orientação constantes concedidos durante o desenvolvimento do trabalho. Publicado na revista Hífen, Uruguaiana, v. 27, n. 51/52, p. 7-23, jan./dez., 2003. * Doutorando em Filosofia, PUCRS. 2 KANT, I., Kritik der reinen Vernunft (K.r.V.), Herausgegeben von Ingeborg Heidemann, Stuttgart, Philipp Reclam Jun, 1985.

3 Conforme posição de Bennett, segundo a qual a linguagem humana é uma linguagem de tipo especial que opera por meio de conceitos.

BENNETT, J. La ''Crítica da razón pura'' de Kant: 1. A Analítica (Kant's Analytic; Cambridge University Press, 1966); tr. A. Montesinos, Madrid, Alianza editorial, 1979, p. 96.

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Para demonstrar essa hipótese, primeiro apresento uma breve reconstrução histórica do contexto de discussão, retornando à época de Kant acerca do significado da palavra ‘razão’, do qual extraio a afirmação de que ‘razão é linguagem’; a seguir, desenvolvo duas provas: uma intrínseca e outra extrínseca; a primeira se encontra na própria Crítica, e sustenta que Kant se vale de um recurso sintático-semântico na utilização da palavra ‘razão’; e a segunda consiste em conceber a Crítica como uma ‘gramática transcendental’, que se ocuparia com estabelecer as condições de possibilidade do sentido do juízo em geral. Essa prova — que se apóia no depoimento explícito de Kant acerca de como poderíamos interpretar o que fez na Crítica como uma gramática transcendental — se encontra em dois outros trabalhos seus: um anterior e outro posterior à Crítica, a saber, nas Vorlesungen über die Metaphysik e nos Prolegomena.

Em termos mais precisos, pretendo, primeiro, justificar gramaticalmente a utilização que Kant faz da palavra ‘razão’, em lugar dos seus ‘‘afins’’, freqüente na Crítica, a partir da suposição de que ele partiu de uma ‘‘regra sintático-semântica’’ de seleção lexical de elaboração frasal, a saber, a metonímia, a qual pretendo explicitar. Esse recurso sintático-semântico, uma vez analisado, se mostrará o mais acertado, no que diz respeito à clareza da sua exposição, na eliminação de um possível desvio de objetivos, e, principalmente, porque assegura o caráter universal dos seus resultados, para os fins a que se dirige. Esta análise, por sua vez, deverá preparar o caminho para que possamos a seguir mostrar, segundo Kant — ao contrário do que alguns seguidores e opositores contemporâneos seus afirmaram — que é possível ler a Crítica enquanto uma investigação acerca do uso da linguagem na e para além da experiência, i.e. acerca do uso tanto empírico quanto puro da linguagem.

I. O uso da palavra ‘razão’ na Crítica da razão pura No final do século XVIII, Kant foi ostensivamente acusado por autores contemporâneos seus,

como Hamann (em Metacrítica sobre o Purismo da Razão, de 1784), e Herder (em Abhandlung über

den Ursprung der Sprache, de 1772, e em Verstand und Erfahrung: Eine Metakritik zur Kritik der

reinen Vernunft, de 1799), de não ter reservado um lugar para o tratamento da linguagem em sua doutrina crítica —mais especificamente, na Primeira Edição da Crítica

4. Com eles iniciou-se a reação

à chamada ‘visão racionalista da linguagem’. Seus trabalhos introduziram os pressupostos do que se denominou posteriormente a ‘filosofia não-analítica da linguagem do romantismo alemão’

5,

desenvolvida e aprofundada mais seriamente por Wilhelm von Humboldt (em especial, no seu Über die Verschiedenheit des Menschlichen Sprachbaues, de 1836).

Dadas as nossas limitações, bem como as de nossa investigação, é impossível desenvolver aqui, minimamente, os pormenores da discussão envolvida nesses trabalhos, cuja retomada das idéias centrais impulsionou fortemente os estudos lingüísticos, bem como a própria filosofia da linguagem, no início de nosso século

6. No entanto, é necessário que, ao menos, procuremos situar a Crítica no

contexto geral dessa discussão, a fim de determinarmos, tanto quanto possível, o conceito de ‘razão’ e de ‘linguagem’ vigente na época, e que, isso sim, interessa à nossa investigação, sobretudo no que diz respeito ao fato de terem sido, muitas vezes, concebidos como termos sinônimos.

Ao examinarmos, com alguma atenção, o contexto dessa discussão, vemos que, progressivamente, a palavra ‘razão’ foi sendo sobrepujada pela palavra ‘linguagem’; e, mais que as palavras, podemos dizer que houve uma subsunção mesmo da própria noção de uma à da outra. Por conseguinte, passou-se a reconhecer entre ambas uma relação de dependência, cuja ênfase era dada na direção de uma subordinação da razão à linguagem como a sua verdadeira fonte

7.

Esse modo de encarar o problema acerca da relação entre razão e linguagem, e do estatuto de ambas com respeito ao conhecimento humano servia bastante bem aos propósitos emergentes do movimento romântico alemão — como veremos adiante —, que se enraizava no alargamento e

4 De acordo com Riedel, ''que o autor da 'Crítica da razão pura' não esclareceu esse problema, sim, passou por alto calado, esta é uma das

principais objeções <Haupteinwände>, que já tinham sido feitas a ele pelos seus primeiros leitores. A crítica da razão de Kant, conforme o argumento de Herder, que se assemelha também ao de Hamann e Jacob, que não procede de maneira suficientemente crítica, transcende a linguagem que nós falamos e com isso a condição fundamental <Grundbedingung> da possibilidade da experiência, que o verdadeiro filósofo crítico tem de investigar''. RIEDEL, M., Vernunft und Sprache, Grundmodell der transzendentalen Grammatik in Kants Lehre vom Kategoriengebrauch (pp. 44-61), in: Urteilskraft und Vernunft, Kants ursprüngliche Fragenstellung, Suhrkamp, Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft, 1989, p. 45. 5 Cf. CHOMSKY, N. Linguagem e pensamento (Language and Mind), tr. Francisco M. Guimarães, RJ, Vozes, 1971.

6 Ver Chomsky.

7 Cf. CASSIRER, E., Antropologia Filosófica, trad. por Eugenio Ímaz, México, Fundo de Cultura Econômica, 1992, p. 48.

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aprofundamento do conceito de ‘subjetividade’, que se encontrava, naquele momento, em progressiva elaboração pela filosofia moderna.

Conforme Cassirer, o novo modo de conceber as ‘atividades do espírito’, i.e. o surgimento de ‘‘uma nova concepção verdadeiramente universal da espontaneidade do espírito’’, trouxe consigo, por assim dizer, um ‘‘novo momento constitutivo da atividade da linguagem’’. A linguagem passa a ser vista não mais meramente como ‘‘o signo e o delegado de uma representação, mas também [como] o signo emocional do afeto e da pulsão sensível’’

8.

Em linhas gerais, o traço comum da posição desses autores, segundo Chomsky, era a importância concedida ao ‘‘aspecto criador do uso da linguagem, como característica essencial e definidora da linguagem humana’’

9. Essa concepção da linguagem, por sua vez, derivava em grande

parte do desenvolvimento das posições fundamentais da chamada ‘‘lingüística cartesiana’’. De acordo com Chomsky, Descartes

10 atribuía a diferença entre o ser humano, o animal e um

autômato à natureza criadora da linguagem humana. Para Descartes, o uso da linguagem por parte dos animais e por parte dos autômatos poderia ser explicado em termos meramente mecânicos, i.e. como manifestações de impulsos e estímulos

11, mas o uso humano não

12.

Segundo, ainda, Chomsky, a chamada concepção cartesiana da linguagem humana —expressa tanto por Descartes, como por seus seguidores e opositores — consistia na admissão de que, ‘‘em seu uso normal, a linguagem humana é livre de controle de estímulos e não serve a uma função meramente comunicativa, mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações’’

13. (Considerada de um modo geral, era essa a posição compartilhada

em grande medida pelos seguidores do movimento romântico alemão, dentre eles, Hamann, Herder, Humboldt, Schlegel)

14.

Os trabalhos de Hamann — um dos protagonistas dessa nova perspectiva acerca da linguagem, e um dos iniciadores, portanto, da reação à concepção racionalista da linguagem —, assim como os de Herder — que, inicialmente foi, além de aluno, seguidor de Kant —, têm por alvo, fundamentalmente, as posições que Kant desenvolve na Crítica.

Porém, ao lermos com atenção alguns de seus textos em que tratam de apresentar suas posições acerca da origem e importância da linguagem, criticando o sistema e os conceitos formulados por Kant, na Crítica, vemos claramente que ambos demonstram não ter compreendido o que estão a criticar: pois suas críticas às posições de Kant podem ser consideradas, sem dúvida, além de mal formuladas, equívocas.

Todavia, fica claro que a notoriedade de seus trabalhos não marcou época pelos equívocos em relação à doutrina crítica de Kant, mas pelo modo assistemático — sob a forma de ensaios — com que formularam os pressupostos da nova perspectiva acerca do caráter criativo da linguagem. Nesse sentido, as considerações que eles tecem serão, em inúmeros aspectos, de inestimável importância para os desenvolvimentos futuros da pesquisa no campo da filosofia da linguagem, bem como da lingüística.

Posteriormente, a partir do desenvolvimento das idéias contidas em germe na obra desses dois autores, bem como da releitura séria da doutrina crítica de Kant, Humboldt irá construir os fundamentos sólidos da nova visão acerca da função da linguagem nos processos cognitivos, ao incluir, na descrição das línguas particulares, elementos culturais. Conforme Chomsky, para

Humboldt, ‘‘uma língua humana, como totalidade organizada, interpõe-se entre o [ser humano] e ‘a

natureza interna e externa que atua sobre ele’15

‘‘. Pois, mesmo que ‘‘as línguas tenham propriedades

8 CASSIRER, E. La philosophie des formes simboliques, 1. le langage; tr., de l'allemand Philosophie der symbolischen Formen, par Ole

Hansen-love et Jean Lacoste, Paris, Éditions de Minuit, 1972, p. 94. 9 CHOMSKY, N. Lingüística Cartesiana (Cartesian Linguistics, 1966), trad. de Francisco M. Guimarães, RJ, Vozes e Edusp, 1972, p.

30. 10

Ver DESCARTES, R., Discurso do Método, in: Obra Escolhida, tr. De Gilles-Gaston Granger, SP, Difusão Européia do Livro, 1973, Parte V. 11

Cf. Bennett, ''A classe das linguagens possíveis se divide naqueles cujo uso consiste, e aqueles cujo uso não consiste, unicamente em um padrão de respostas a estímulos sensoriais.'' Bennett, op. cit., p. 112. (Bennett trata com profundidade desse assunto em Racionality, Londres, 1964, §§ 9-11). 12

Chomsky, Lingüística Cartesiana, op. cit., pp. 13-23. 13

Chomsky, ibid., p. 23. 14

Cf. Cassirer e Chomsky. 15 ''[...] die innerlich und äusserlich auf ihn einwirkende Natur''. Humboldt, W., Über die Verschiedenheit des Menschlichen Sprachbaues

(1836), p. 74, apud Chomsky, N., Lingüística Cartesiana, op. cit., p. 31.

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universais, atribuíveis à mentalidade humana enquanto tal, cada língua oferece um ‘mundo de pensamento’ e um ponto de vista de tipo único. Ao atribuir este papel na determinação dos processos mentais às línguas individuais, Humboldt separa-se radicalmente do quadro da lingüística cartesiana, evidentemente, e adota um ponto de vista que é mais tipicamente romântico’’. Mas ao considerar a ‘‘linguagem primordialmente como meio de pensamento e auto-expressão mais do que como um sistema funcional de comunicação de tipo animal’’, pois, para ele, o ser humano ‘‘cerca-se de um mundo de sons para captar e elaborar em si mesmo o mundo dos objetos’’

16, Humboldt permanece

dentro dos pressupostos gerais da lingüística cartesiana. De acordo com Cassirer, para Humboldt, ‘o que distingue as línguas, não são os sons e os signos, mas as próprias visões do mundo.’

17 É aí que

se encontra em Humboldt, o fundamento objetivo último de toda a pesquisa sobre a linguagem.’’18

. Por outro lado, as considerações sobre razão e linguagem, tanto de Hamann como de Herder,

mesmo equívocas no que dizem respeito às suas interpretações ‘‘críticas’’ aos elementos da doutrina crítica de Kant, interessam, sob inúmeros aspectos, aos propósitos de nossa investigação. Porque algumas de suas formulações, tanto acerca da razão como da linguagem — mesmo contra a pretensão desses autores —, podem ser utilizadas em nossa tentativa de mostrar que Kant, na Crítica, tinha claramente a intenção de fazer uma crítica ao uso da linguagem, principalmente, como veremos, porque o objeto de sua crítica era o campo da formulação e da aplicação dos juízos da Metafísica. Mas, se Kant tinha essa intenção, por que, em vez de falar em razão, não falou de linguagem? Vejamos o que segue.

II. ‘Razão’ como ‘linguagem’: uma interpretação gramatical acerca do uso da palavra ‘razão’ na

Crítica da Razão Pura De acordo com Cassirer

19, a tradição identificou seguidamente a linguagem com a razão ‘‘ou

com a verdadeira fonte da razão’’, e pelo fato de possuir a linguagem, o ser humano foi considerado um animal racional. Conforme Cassirer, tal definição, porém, não permite com que vejamos todo o campo recoberto pela linguagem. Por quê? Porque, sob essa perspectiva, deixa-se de ver uma diferenciação importante, uma vez que o domínio da linguagem abrange também a esfera da linguagem racional, e não apenas esta.

Conforme Cassirer, considerar a linguagem como razão é ter uma visão restrita da linguagem, uma vez que, vista desse modo, ‘‘uma parte se toma pelo todo: pars pro toto’’

20. Enquanto meio

objetivo de manifestação de estados subjetivos, toda a linguagem é constituída por signos (sinais) sonoros, gráficos, gestuais, etc.. A linguagem dos animais — ou, ainda, formas mais primitivas de linguagem — limitam-se às manifestações emotivas

21. E, nesse caso, o signo é imanente àquilo do que

ele é signo, ou seja, não há outra instância. Em outros termos, o signo está direta e univocamente vinculado àquilo que ele sinaliza.

Consideremos isso de uma outra maneira. A linguagem, tal como a temos descrito, pode ser considerada como um meio de representação, i.e. como algo que está por algo diferente dela. E nesse sentido, mesmo uma linguagem primitiva, que se dá meramente por signos (sinais), é uma linguagem representacional, porque um signo qualquer, emitido como manifestação exterior de um estado interior, é um algo que está por um algo diferente dele. Porém, nesse nível de linguagem, o signo nunca ultrapassa o limite da referência, que é sempre imediata, seja interior seja exterior, i.e. o signo nunca é signo de outro signo. Em outros termos, não há aqui ainda aquilo que chamamos sentido.

O passo decisivo dado na direção de utilizar o signo não mais meramente como representando algo físico ou subjetivo, i.e. um objeto exterior ou um estado emotivo, mas também como representando outro signo, permitiu ao ser humano passar de uma linguagem ‘‘sinalizante’’ para uma linguagem ‘‘simbolizante’’. É por meio desse uso da linguagem que o ser humano passa a poder

16

''[...] umgiebt sich mit einer Welt von Lauten, um die Welt von Gegenständen in sich aufzunehmen und zu bearbeiten''. Humboldt, W.,

1836, p. 70, apud Chomsky, N., ibid., p.31. Conforme Chomsky, esta posição é compartilhada por Schlegel, em seu livro Kunstlehre, ao

dizer que não ''podemos traçar analogias entre a função intelectual humana e a animal. Os animais vivem num mundo de ''situações''

<Zustände>, não de ''objetos'' <Gegenstände> no sentido humano...''. Schlegel, A.W. apud Chomsky, N., ibid., p. 29. 17

Humboldt, W., 1836, apud Cassirer, E., La philosophie des Formes Simboliques, Paris, Éditions de Minuit, 1972, p. 106-107. 18 Cassirer, ibid., p. 106-107. 19 CASSIRER, Antropologia Filosófica, México, Fundo de Cultura Econômica, 1992, p. 48. 20 Ibid., loc.cit. 21

Ver HERDER, J.G., Abhandlung über den Ursprung der Sprache, in: Sprachphilosophische Schriften, von Erich Heitel, Hamburg,

Verlag von Felix Meiner, 1960, p. 3.

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‘‘descolar-se’’ do real, reconstruindo o mundo dos objetos na ausência destes, simbolicamente22

. Através desse uso da linguagem, o ser humano passa a elaborar abstratamente o mundo presente e o vivido. Passa a poder enunciar o passado e a pré-enunciar seu futuro

23. Este uso da linguagem instaura

o sentido no universo humano. De acordo com Kemp Smith, a passagem de um estágio a outro estabelece a diferença entre a inteligência animal e a inteligência humana, ou seja, entre o mero uso do signo para a consciência do uso do signo como signo

24, pois conforme Kemp Smith, ‘‘nenhum animal

mostrou conclusivamente ser capaz de apreender um signo como um signo’’. E se ‘‘os animais são isentos de toda consciência de significado, a eles tem de ser negado também qualquer coisa análoga ao que nós podemos significar pelo termo consciência’’

25.

Para Cassirer, o que caracteriza verdadeiramente a diferença entre a linguagem animal e a humana é o fato de o ser humano ter ultrapassado o limite do uso emotivo da linguagem. Para ele, é a natureza simbólica da linguagem humana que a distingue da linguagem animal

26. Essa característica

simbólica da linguagem humana é o que vai estruturar todas as atividades humanas em todos os domínios, sejam lingüísticos ou não. Por isso, podermos designar o universo humano como simbólico, e mais, no lugar de definir o ser humano ‘‘como um animal racional, Cassirer propõe que o definamos, não essencialmente, mas apenas funcionalmente

27, ‘‘como um animal simbólico’’

28.

Esse modo de definir, funcionalmente, o ser humano a partir da natureza da sua linguagem nos encaminha, pela primeira vez até aqui, para uma resposta plausível à pergunta acerca do que é razão. Nesse momento da exposição, é-nos possível, portanto, dar uma definição provisória da palavra ‘razão’ como o nome que designa, em geral, o ‘conjunto das operações simbólicas humanas’. Reservemos esta definição para a retomarmos a seguir.

Se considerarmos a linguagem, de uma maneira abrangente, tal como Schlegel a define em Briefe über Poesie, Silbenmaß und Sprach, como ‘‘tudo aquilo pelo qual o interior se manifesta no exterior’’

29, devemos, pois, distinguir, dentro do domínio total da linguagem, pelo menos duas esferas,

a saber: a esfera das manifestações emotivas e a esfera das manifestações não-emotivas, portanto, racionais. Sob esta perspectiva, conforme Cassirer, a razão se mostra como ‘‘um termo verdadeiramente inadequado para abarcar as formas da vida cultural humana em toda sua riqueza e diversidade’’

30, pois, basta observarmos o conjunto das atividades humanas, para vermos que, ‘‘junto à

linguagem conceitual temos uma linguagem emotiva; junto à linguagem lógica ou científica, a linguagem de uma imaginação poética’’

31. E, nesse sentido, a linguagem, enquanto um meio de

exteriorização, parece subsumir a razão, que se manifesta também por meio da linguagem. Em um trecho de uma carta a Jacobi, de 6 de agosto de 1784, Hamann escreve o seguinte: ‘‘a

Razão é Linguagem, Logos. Eu não paro de roer este osso tão rico de substância e eu o roerei até minha morte [sic.]...’’

32. Para Hamann, a essência autêntica da razão se encontra na linguagem, que é

seu organon; e é ‘‘aí que se encontra a Razão pura e ao mesmo tempo sua crítica’’ [sic.]33

. 22

Bennett concorda com Kant quanto ao fato de ''que as criaturas que carecem de linguagem carecem de conceitos, ainda que não pelo que parece ser sua razão, i.e. que as criaturas que carecem de linguagem não podem efetuar juízos''. Bennett, op. cit., p. 110. 23

Cf. Bennett, ''as linguagens humanas têm meios para fazer ao menos dois tipos de enunciado ...: enunciados gerais, e enunciados sobre o passado. Estes não têm que ser respostas a, ou operações sobre, contextos em que se formulam. Mais ainda, expressam juízos que não podem expressar-se, salvo em uma linguagem. Existe um sentido natural, ainda que débil, de 'expressar' no qual é verdadeiro que muitos tipos de juízo podem expressar-se mediante uma conduta não lingüística; mas os juízos gerais e no tempo passado não se encontram entre eles. [...] Sem uma linguagem, não existe nenhum modo de expressar juízos sobre o passado sem expressar ao mesmo tempo juízos gerais, ou de expressar juízos gerais sem expressar ao mesmo tempo juízos sobre o passado.''. Bennett, op. cit., p. 113. 24

Ver Bennett, op. cit., p. 114. 25 KEMP SMITH, N., Commentary to Kant’s ‘Critique of Pure Reason’, London, Macmilan and Co., Limited, 1918, p. XLIX. 26 Cf. Cassirer, é necessário ''distinguir cuidadosamente entre signos e símbolos. Parece um fato comprovado que se dá um complexo

sistema de signos e sinais na conduta animal, e até podemos dizer que alguns animais, especialmente os domesticados, são extremamente suscetíveis a eles. [...] Mas há uma distância imensa destes fenômenos à inteligência da linguagem simbólica e humana..., os símbolos, no sentido próprio desta palavra, não podem ser reduzidos a meros sinais. Sinais e símbolos correspondem a dois universos diferentes do discurso: um sinal é uma parte do mundo físico do ser; um símbolo é uma parte do mundo humano do sentido. Os sinais são ''operadores''; os símbolos são ''designadores''.''. Cassirer, La philosophie des Formes Simboliques, op. cit., p.56-7. 27 Cassirer, Antropologia Filosófica, op. cit., p. 109. 28 Ibid., p. 49. 29 ''[...] alles, wodurch sich das Innere im äussern offenbart, mit Recht Sprache heißt''. Schlegel apud Chomsky, N., Lingüística

Cartesiana, op. cit., p. 27. 30 Cassirer, Antropologia Filosófica, op. cit., p. 49. 31 Ibid., p. 48. 32

HAMANN, J.G., Carta a Jacobi de 6 de agosto de 1784, ed. em 1868, p. 122, VII, 151 sq., apud Cassirer, E., La philosophie des Formes Simboliques, p. 97. 33

HAMANN, J.G., Carta a Scheffner, de 11 de fevereiro de 1785, ed. em 1868, VII, p. 216, apud Cassirer, E., ibid., p. 97.

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Herder, por sua vez, discípulo dissidente de Kant e seguidor das idéias de Hamann, afirma que

a razão dispõe duma esfera própria: o imenso território dos pensamentos humanos, por intermédio da palavra. Tudo o que puder ser expresso, retido ou tornado entendível, por meio de qualquer sinal, pode também entregar-se confiadamente à razão

34 [...]. Por meio da língua

é-lhe dado tudo o que for susceptível de ser expresso pela linguagem, no sentido mais vasto da palavra. A razão é ela própria linguagem

35.

Como vemos, aqui, as posições de Hamann e de Herder confluem na direção de conceber a

razão como linguagem. Examinemos um pouco de perto esta afirmação. Considere o seguinte: qual a diferença entre dizer (i) ‘razão é linguagem’ e (ii) ‘linguagem é razão’? Se a relação de atribuição entre os termos das afirmações tem uma única direção, i.e. se não é reversível, a diferença conceitual entre ambas parece simples: em (i) trata-se de conceber a classe daquilo que se denomina ‘razão’ incluído na classe daquilo que se denomina ‘linguagem’; e em (ii), ao contrário, a classe daquilo que se denomina ‘linguagem’, na classe daquilo que se denomina ‘razão’. Em outros termos, isso equivale a dizer que, em (i) a razão está subordinada à linguagem, e em (ii) a linguagem está subordinada à razão.

Como vimos, de acordo com Cassirer, a concepção expressa por (ii) se revelou equívoca, uma vez que não levava em conta todas as manifestações possíveis que são levadas a cabo por meio da linguagem. Se Kant fosse partidário dessa concepção, a crítica endereçada a ele pelos filósofos românticos teria sido, sem dúvida, mais que acertada, pois tal visão da linguagem é, antes de tudo, restrita. Mas a concepção expressa em (i), e que é professada por Hamann e Herder, é, como querem estes autores, incompatível com o que Kant faz na Crítica? E, supondo que Kant partilhasse dessa concepção, por que ele não a explicitou, no texto da Crítica, dando azo às críticas que se seguiram? Em outros termos, por que ele, na Crítica, não expressou textualmente a razão como linguagem?

Se esta suposição procede, ou seja, se Kant era partidário de (i), a opção por ter utilizado, na Crítica, o termo ‘razão’ no lugar de ‘linguagem’ demonstra que ele assim o fez intencionalmente. Ou seja, Kant sabia da distinção entre (i) e (ii). Mas, então, por que Kant fala em razão em vez de linguagem?

Considere a linguagem do ponto de vista da sua estrutura. Tome a frase, enquanto unidade menor de sentido, como o ponto de partida de qualquer análise lingüística. Quanto à estrutura, podemos conceber duas dimensões de desenvolvimento progressivo da linguagem: a dimensão horizontal e a dimensão vertical. A dimensão horizontal nos dá a ordem do arranjo entre os termos da frase: o eixo sintagmático ou a linha de combinação

36; a dimensão vertical nos dá as possibilidades

lexicais de atualização nos sintagmas: o eixo paradigmático ou a linha de seleção. Cada classe de palavras — do ponto de vista estrutural, gramatical — é mais geral, p.ex., o substantivo, e, dentro desta, cada palavra (significante) primária, quanto ao significado — do ponto de vista semântico — é mais específica; o substantivo ‘homem’ possuiria um paradigma, p.ex., a classe dos substantivos (sintagma): homem, menino, lobo, etc.; dentro da classe do substantivo ‘homem’ (paradigma): Pedro, animal pensante, jogador de futebol, e assim por diante. Teríamos, portanto, duas direções de possibilidades de arranjos lexicais: a linha de combinação, no nível sintagmático — i.e. entre os sintagmas, no sentido horizontal —, e a linha de seleção, no nível paradigmático — i.e. dentro do paradigma, no sentido vertical.

Segundo uma definição gramatical tradicional clássica, a figura polar de estilo metonímia é a ‘‘translação de sentido pela proximidade de idéias, que consiste, dentre outras combinações, em tomar a parte pelo todo [pars pro toto] ou vice-versa’’

37. De acordo com a abordagem estrutural

38, mais

contemporânea, a metonímia é a ‘‘vinculação de um significante [palavra] a um significado secundário

34 Cf. HERDER, J.G. Extractos de Entendimento e Experiência (1799) —Uma Metacrítica à Crítica da Razão Pura— (Aus ''Verstand

und Erfahrung'': Eine Metakritik zur Kritik der reinen Vernunft, 1799), tr. de José M. Justo et alii, in: Ergon ou Energueia, Filosofia da Linguagem na Alemanha Sécs. XVIII e XIX, Apáginastantas, Lisboa, 1986, pp. 96-7. A leitura da tradução desses ''Extractos'' foi cotejada com a edição do texto de Herder de Heitel:— Herder, J.G. Sprachphilosophische Schriften, von Erich Heitel, Hamburg, Verlag von Felix Meiner, 1960. 35 ''[...] Mittels der Sprache ist ihr alles gegeben, was sich durch Sprache im weitesten Sinne des Worts ausdrücken läßt. Sie [die

Vernunft] selbst ist und heißt Sprache''. Herder, Ibid., 10. Vernunft und Sprache, op. cit., p. 226. 36

JAKOBSON, R., Lingüística e Comunicação, SP, Cultrix, 1995, pp. 39-40. 37

BECHARA, E., Moderna Gramática Portuguesa, SP, CEN, 1966, p. 418. 38

Sobre lingüística e semântica estrutural, ver: Stegmüller, Greimas, Palmer, Chomsky (1965), Jakobson, Katz e Fodor, Lyons.

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associado por contigüidade com o significado primário’’39

, i.e. tal significante —que pode ser primário —, p.ex., ‘razão’, é associado por contigüidade semântica ao significado primário ‘linguagem de tipo especial’, mas também pode ser vinculado a um significante secundário, p.ex., ‘entendimento’ ou ‘pensamento’, por poder designar primariamente tais significantes aos quais os traços semânticos que ele veicula primariamente pertencem a estes significantes secundariamente.

Isso posto, considere o caso que estamos examinando aqui, a propósito da correlação sinonímica entre as palavras ‘linguagem’ e ‘razão’. Conforme a direção em que se dirija a metonímia — i.e. se do significante secundário ao significado primário, ou, ao contrário, do significante primário ao significado secundário —, tal procedimento sintático-semântico é por isso considerado como consistindo em tomar a parte pelo todo <pars pro toto>, ou, o contrário. Em nosso caso, a linguagem pela razão, a razão pela linguagem, a razão pelo pensamento/entendimento/sujeito pensante, etc.. Se estabelecermos uma hierarquia entre estes dois significantes — ’linguagem’ e ‘razão’—, a partir dos seus traços distintivos mínimos, teremos:

[LINGUAGEM] [RAZÃO]

/+signo/ /+signo/

/±símbolo/ /+símbolo/

/±ícone/ /±ícone/

/±instrumento/ /+instrumento/

/±número/ /±número/

/±palavra/ /±palavra/

/±emoção/ /-emoção/

/±pensamento/ /+pensamento/

/±humano/ /+humano/

/±sujeito ao princípio de contradição/

/+sujeito ao princípio de contradição/

Ao utilizar ‘linguagem’ no lugar de ‘razão’, restrinjo a linguagem aos traços peculiares somente às operações racionais, tomando uma parte do domínio da linguagem — aquele não-emotivo, que é expressão do pensamento, e que está sujeito ao princípio de contradição. No caso de utilizar ‘razão’ no lugar de ‘linguagem’, como este é um significante menos determinado semanticamente do que aquele, realizo a operação contrária, me valendo dos traços determinados e decisivos do significante ‘razão’ — ser instrumento simbólico humano do pensamento, sujeito ao princípio de contradição, etc. — e levo estes traços ao significante ‘linguagem’, que também inclui tais traços, mas não só.

Ao vincular, portanto, o significante ‘razão’ ao significante ‘linguagem’, associo, por contigüidade semântica — i.e. de traços semânticos — este significante primário a um significante secundário, por este ser a ele contíguo quanto ao significado, ou seja, o significante secundário ‘razão’, por contigüidade semântica, pode ser associado ao significante primário ‘linguagem’, e vice-versa. Em ambas as seleções lexicais, opero por meio da metonímia.

Em suma, segundo esta análise dos significantes, ‘linguagem’ inclui ‘razão’, como um significante cujo campo semântico é mais geral, no entanto, o contrário não procede, pois a razão é um tipo de linguagem simbólica que obedece ao princípio de contradição, mas nem toda linguagem é uma linguagem simbólica que obedece ao princípio de contradição.

A resposta à pergunta acerca do fato de por que Kant utiliza ‘razão’ no lugar de ‘linguagem’ se torna um pouco mais clara agora. Do que foi dito acima, depreendemos facilmente que, se Kant se propusesse a fazer uma crítica ao uso da linguagem humana, deveria dar conta, em seu sistema crítico, de problemas que não interessavam à filosofia, enquanto conhecimento a priori. Pois uma crítica ao uso da linguagem humana em geral implicaria uma crítica ao uso de todo o modo de expressão humano, que deveria dar conta também de usos emotivos da linguagem. O que certamente não interessava a Kant, na Crítica. Claro está, porém, que isso não equivale a dizer que Kant não se interessou pela linguagem, ao contrário, o objeto da Crítica de Kant é, sim, o uso da linguagem, mas o uso de um tipo específico de linguagem, conforme Bennett, ‘uma linguagem de tipo especial’

40, aquela

39 Jakobson, op. cit., p. 113. 40

Bennett utiliza ‘’a expressão 'linguagem que emprega conceitos' como abreviatura de 'linguagem do tipo altamente desenvolvido em conexão com a qual pode proporcionar-se ao "conceito" uma verdadeira função, i.e. cuja metalinguagem pode conter utilmente a palavra "conceito".''. Bennett, op. cit., p. 110.

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esfera do domínio da linguagem em que operamos por conceitos, e que deve satisfazer o princípio regulador de todo pensamento, a saber, o princípio de contradição.

Proponho, portanto, chamar o uso que Kant faz da palavra ‘razão’ na Crítica de uso metonímico. Por quê? Porque Kant se apropria do caráter essencial da razão, que consiste na esfera do domínio das operações simbólicas humanas. Em outros termos, por contigüidade semântica, ‘razão’ é utilizada, enquanto portador de um significado mais específico, para designar, em geral, todas as operações simbólicas humanas que podem ser descritas como uma ‘linguagem de tipo especial que opera por meio de conceitos e obedece ao princípio de contradição’.

Em resumo, o que tem de ficar claro, aqui, sob a perspectiva que adotamos, é que podemos conceber a razão (humana) como linguagem, mas não o contrário, uma vez que a linguagem é mais do que operações simbólicas.

Assim, podemos compreender que regras, expressas e constituídas apenas por meio da linguagem — os princípios de contradição e o do terceiro excluído — possam a priori determinar, estruturar, restringir e orientar todas as operações racionais — simbólicas, representacionais — do ser humano; e, por conseguinte, todo o seu pensar, assim como seus produtos, os conhecimentos empíricos e puros, pois, nesse caso, as regras da linguagem podem coincidir com as da razão, enquanto operações racionais.

Deve ficar claro também que tais regras se restringem ao uso da linguagem apenas no que concerne às operações simbólicas relacionadas ao pensar e ao conhecer; objeto da filosofia e da ciência de um modo geral. No que diz respeito ao uso da linguagem para outros domínios, igualmente humanos, tais regras podem não ter valor algum, como p.ex. no domínio dos sentimentos, desejos e paixões humanas em geral, assim como no domínio da espiritualidade humana, domínios esses em que predomina a impossibilidade da determinação do verdadeiro e do falso, seja pelo caráter inacessível dos seus objetos, seja pela nossa postura cambiante em relação a eles, que, por conseguinte, sob a perspectiva racional, i.e. sob a perspectiva das regras que legislam as atividades lingüísticas racionais, gera contradições. Portanto, a linguagem da qual trata Kant na Crítica é a linguagem ordinária em seu uso normal, considerada não em toda a sua aplicação possível, mas somente aquela esfera desta que procede segundo o princípio de contradição, que é o princípio supremo de todo o pensamento e do sentido. Por isso, quando utilizarmos o termo ‘razão’ aqui, ao nos referirmos à Crítica, teremos sempre em mente o sentido que resultou de nossa investigação precedente, ou seja, quando nos referirmos à razão, na Crítica, estaremos considerando-a como uma ‘linguagem simbólica de tipo especial, que opera por meio de conceitos e obedece ao princípio de contradição’.

III. A Crítica da razão pura como ‘gramática transcendental’

Convém, porém, delimitar o âmbito em que consideraremos aqui ‘razão’ como equivalente a linguagem; e, por conseguinte, nessa direção, uma investigação das maneiras do dizer deverá estar relacionada diretamente com uma investigação acerca das maneiras do pensar e do conhecer; em outros termos, devemos explicitar em que medida uma investigação gramatical — portanto, uma investigação acerca das maneiras de dizer — sobre as condições de possibilidade do sentido do juízo sintético em geral —uma semântica a priori de objetos

41, nos termos de Loparic— tem a ver com uma

investigação —epistêmica, conforme Allison42

— sobre as condições de possibilidade do conhecimento em geral; ou seja, como são possíveis juízos em geral e, em especial, juízos sintéticos a priori — condições de possibilidade de todas as ciências constitutivas do saber humano.

Por isso, será necessário partirmos de um conceito unívoco de ‘gramática’, que seja válido para uma abordagem da razão sob a perspectiva das suas leis, no que diz respeito às condições de

41

Na qual, as categorias (os conceitos puros do entendimento) dariam as condições formais, e o espaço e o tempo (formas puras a priori da sensibilidade) dariam as condições materiais para os objetos serem pensados pelo entendimento. Para Loparic, o problema de Kant, ao fundamentar a priori a metafísica, consiste em ''estabelecer uma semântica a priori de proposições sintéticas em geral, tanto a priori como a posteriori''. LOPARIC, Z., Kant e o Ceticismo, in: Manuscrito, XI, 2 (1988), p. 73 et passim. Em Scientific problem-solving in Kant and Mach Loparic estabelece três condições de possibilidade dos juízos sintéticos: uma condição formal, o princípio de contradição, e duas condições semânticas, a saber: a aplicabilidade de conceitos a objetos e a interpretação sensível das cat egorias e das formas lógicas do juízo. Cf. LOPARIC, Z., Scientific problem-Solving in Kant and Mach (Dissertation presented for the degree of Doctor of Philosophy), Catholic University of Louvain, 1982, pp. 9-10. (Em 2000, a tradução, revista e ampliada, da primeira parte desse trabalho de Loparic foi publicada sob o título A semântica transcendental de Kant). 42

ALLISON, H.E., El Idealismo Trascendental de Kant: una interpretación y defensa, tr. de Dulce M. Granja Castro, Barcelona, Anthropos, 1992.

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possibilidade do discurso significativo no domínio do pensar e do conhecer, segundo o idealismo transcendental de Kant.

Na época de Kant, o paradigma vigente no tocante à teoria gramatical era a Gramática de Port-Royal de 1660, de Arnauld e Lancelot. Esta obra deu início ao que veio a ser conhecido como a tradição da gramática filosófica, cujos fundamentos foram inspirados por Descartes, continuados por Leibniz e desenvolvidos de uma forma mais acabada por Humboldt na década de 1830. Conforme Chomsky, ‘‘uma das inovações da Gramática de Port-Royal de 1660 foi o reconhecimento da importância da noção da frase como unidade gramatical’’

43, pois antes de Port-Royal, a teoria

gramatical consistia em um estudo de ‘‘classes de palavras e de inflexões’’. O conceito de ‘gramática’ que temos em vista aqui é o mesmo expresso pela Gramática de Port-Royal, por Humboldt e por Chomsky

44, a saber: considerando uma língua (linguagem) particular L como uma relação entre som

(signo) e significado, uma gramática G seria um conjunto finito de regras para dar conta da produção de um número infinito de proposições P com sentido nessa língua

45.

Esta definição, aplicada ao domínio transcendental, i.e. aplicada ao domínio das condições de possibilidade da linguagem humana enquanto tal, teria a seguinte formulação: considerando a linguagem humana L enquanto tal, i.e. transcendentalmente, como uma relação entre signo e significado, uma ‘gramática transcendental’ G seria um conjunto finito de regras para dar conta das condições de possibilidade de construção de um número infinito de proposições P com sentido em nossa linguagem.

Na Crítica, Kant parte do juízo para falar do conhecimento, da sua possibilidade e dos seus limites. A ocupação de Kant com a forma lógica dos juízos, bem como com as condições transcendentais do sentido, já seriam suficientes para entrevermos em sua investigação crítica um tipo de gramática, nos termos acima definidos. Pois, à sua época, a teoria gramatical vigente, a de Port-Royal, como vimos, também partia da frase (juízo) como unidade gramatical de sentido para estudar e estabelecer as relações da linguagem com o pensamento, e, destas, às condições de possibilidade do discurso com sentido. Se estas constatações não constituem prova suficiente, encontramos duas outras situações que vêm a corroborar essa hipótese, nas quais Kant afirma explicitamente ser possível conceber o trabalho que ele realizou na Crítica como uma gramática transcendental.

A primeira destas afirmações, encontramos nas Vorlesungen über die Metaphysik, obra quase contemporânea à Primeira Edição da Crítica, usada por Kant para ministrar cursos universitários, mas que, segundo de Vleeschauwer

46, menos que uma adaptação para fins didáticos, continha já, em linhas

gerais, muito do que viria ser o texto da Crítica, pois ‘‘no momento em que Kant professa o curso, a Crítica lhe estava presente diante do espírito nas suas articulações sistemáticas’’

47.

43

Para Humboldt, de acordo com Chomsky, ''a pessoa que fala faz um uso infinito de meios finitos. Sua gramática, portanto, deve conter um sistema infinito de estruturas profundas e superficiais, adequadamente relacionadas. Deve também conter regras que relacionam estas estruturas abstratas com certas representações de som e significado, representações que, presumivelmente, são constituídas de elementos pertencentes respectivamente à fonética universal e à semântica universal. Na essência, este é o conceito de estrutura gramat ical que está sendo desenvolvido e elaborado hoje em dia''. Chomsky, op. cit., pp. 30-31. Sob essa perspectiva, Chomsky considera uma língua <language> como ''um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em extensão e construída a partir de um conjunto fini to de elementos. Todas as línguas <languages> naturais em sua forma escrita ou falada são línguas <languages> nesse sentido, desde que cada língua <language> natural tenha um número finito de fonemas (ou letras em seu alfabeto) e cada sentença seja representável como uma seqüência finita destes fonemas (ou letras), mesmo que exista uma quantidade infinitamente grande de sentenças.''. Chomsky, N. Syntactic Structures (1957), Paris, Mouton, the Hague, 1968, p. 13. 44

Ver Chomsky, Linguagem e Pensamento, op. cit., p. 30-31. 45

Conforme Chomsky, ''O principal objetivo na análise lingüística de uma linguagem L é separar as seqüências gramaticais que são as sentenças de L das seqüências agramaticais que não são sentenças de L e estudar a estrutura das seqüências gramaticais. A gramática de L será portanto um mecanismo que gera todas as seqüências gramaticais de L e nenhuma das agramaticais. Um modo para testar a adequação de uma gramática proposta por L é determinar se as seqüências que ela gera são atualmente gramaticais ou não, i.e. aceitáveis a um falante nativo, etc.''. Chomsky, Syntactic Structures, op. cit., p. 13. 46

de VLEESCHAUWER, H.J., de. La Déduction Transcendentale dans l'Œuvre de Kant, v. I, ch. III: La Déduction avant la Critique, D.: La Déduction transcendentale de 1770 à 1781, § 4: Vers la Critique de la Raison Pure, I. Les ''Vorlesungen über die Metaphysik'', Paris, Librairie Anciénne Honoré Champion, 1934. 47

De acordo com de Vleeschauwer, as Vorlesungen constituem ''a exposição sistemática de uma doutrina, cuja metade, representada pela ontologia, é a primeira exposição de uma maneira breve e precisa do criticismo, mas cuja outra metade, formada pelas três disciplinas conexas à metafísica (cosmologia, psicologia e teologia racionais), não apresentam um caráter uniforme, que nós possamos entender sob um único título de classificação. A organização do curso evidencia que Kant repartiu sua matéria, neste momento, após o plano da Crítica, modificando sensivelmente a ordem que os problemas seguem na obra definitiva. (...) Certos detalhes nos obrigam a aproximar o curso de metafísica mais da situação de 1775, em vez de o colocar na vizinhança imediata da Crítica.'' (pp. 284-5). de Vleeschauwer acredita que, devido a certos detalhes terminológicos, é possível ''tratar o curso [...] mais do que como uma adaptação da Crítica às necessidades do ensinamento universitário'', de Vleeschauwer, op.cit., pp. 285-6.

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Na passagem das Vorlesungen, na parte I, intitulada Ontologie, no tópico intitulado Die Transcendentale Philosophie, que nos interessa aqui, encontramos o seguinte:

A Filosofia Transcendental é a Filosofia dos princípios, dos elementos do conhecimento humano a priori. Ela é ao mesmo tempo o fundamento de como uma Geometria a priori é possível. É, porém, muito necessária para saber como uma ciência pode irromper de nós mesmos, e como o entendimento humano poderá, portanto, ter produzido algo. Esta investigação não consideraria a Geometria tão necessária, se nós não tivéssemos outros conhecimentos a priori, que para nós são muito importantes e interessantes; p.ex. da origem das coisas, da necessidade e acaso, e se o mundo é necessário ou não. Estes conhecimentos não têm semelhante evidência, como a Geometria. Por isso, nós desejamos saber como um conhecimento a priori é possível para o [<ser humano>]; assim nós temos que distinguir e investigar todos os conhecimentos a priori; portanto, nós podemos determinar os limites do entendimento humano, e de todas as quimeras, que aliás na Metafísica são possíveis, que seriam produzidos sob princípios e regras determinados. Agora, nós distribuímos os princípios do conhecimento humano a priori: 1) nos princípios da sensibilidade a priori, e isto é a Estética Transcendental que comporta em si o conhecimento e os conceitos a priori de espaço e tempo; e 2) nos princípios do conhecimento intelectual humano a priori, e isto é a Lógica Transcendental. Estes princípios do conhecimento humano a priori são as categorias do entendimento [...], e estas esgotam tudo aquilo que o entendimento concebe a priori nele, destes, porém, mais tarde ainda outros conceitos podem ser deduzidos. Assim, se nós analisássemos os conceitos transcendentais; isto seria então uma Gramática Transcendental <transcendentale Grammatik>, que conteria o fundamento da linguagem humana [...]. Se estabelecêssemos isto, teríamos então uma Gramática Transcendental <transcendentale Grammatik>. A Lógica conteria o uso formal do entendimento. Portanto, a Filosofia Transcendental poderia resultar na doutrina dos conceitos universais a priori.

48

A outra passagem que abona a interpretação que estamos propondo, encontramos em sua obra

Prolegomena de 1783, que, conforme de Vleeschauwer, ‘‘manifesta às vezes um caráter explicativo e um caráter defensivo ou polêmico’’

49. Kant teria escrito os Prolegomena, a fim de tornar mais claros

os princípios desenvolvidos na Crítica, e que não haviam sido compreendidos de todo, tal o modo como tomaram suas formulações. Muito desse insucesso de Kant se deveu, conforme de Vleeschauwer, principalmente ao desinteresse de seus contemporâneos em tomar parte da discussão que ele propunha em seu trabalho inicial. De outra parte, essa dificuldade e afastamento provinham ‘‘da extensão e aridez escolástica do debate que Kant encetava nela’’

50. No § 39, A 118, dos

Prolegomena, quando Kant comenta o trabalho que realizou na dedução das categorias, na Crítica, lemos o seguinte:

Extrair do conhecimento comum os conceitos que não se fundam em nenhuma experiência particular e que, não obstante, ocorrem em todo o conhecimento de experiência, de que, por assim dizer, constituem a simples forma de conexão, não exigia uma maior reflexão ou mais discernimento do que extrair em geral, de uma língua, as regras do uso [efetivo <wiklichen>] das palavras e reunir assim os elementos de uma gramática <Grammatik> (na realidade, estes dois empreendimentos são entre si muito aparentados), sem no entanto poder indicar a razão por que cada língua possui justamente esta característica formal e não outra, ainda menos porque é que, nem mais nem menos, se podem em geral encontrar tais determinações formais da mesma.

51

Com isso, não estamos afirmando que Kant é um gramático, no sentido ordinário do termo, e

que o que ele fez na Crítica tenha sido uma gramática de alguma língua particular. O que interessa 48

KANT, Immanuel. Vorlesungen über die Metaphysik, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1988, pp. 77-78. 49

Cf. de Vleeschauwer, op. cit., II, p. 420. 50

Ibid., p. 421. 51

KANT, I., Prolegômenos a toda Metafísica futura, p. 103, trad. de Artur Morão, Portugal, Edições 70, 1987, cf.: KANT, I., Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können, Stuttgart, Philipp Reclam Jun., 1995, p. 92.

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aqui é mostrar que — tal como Kant sugere —, subjacente ao idealismo transcendental, nós podemos entrever uma investigação gramatical sobre o sentido na linguagem, e, sob essa perspectiva, a Crítica pode ser vista, analogamente, como uma ‘Gramática Transcendental’, mas somente na medida em que Kant está interessado nas condições universais da possibilidade do sentido do juízo em geral. E isto significa considerá-lo como estando ocupado, não com uma língua em particular, mas com a linguagem humana enquanto tal, no que se refere, especificamente, à possibilidade do pensar e do conhecer no sentido humano.

Portanto, como o próprio Kant sugere, o que ele realiza em seu trabalho pode ser comparado ao que se faz em uma gramática de uma língua particular, o que não equivale a dizer que este é o caso. Seu trabalho pode ser visto como uma gramática, mas somente no que diz respeito às condições de possibilidade da linguagem humana, tal como pode ser visto na passagem das Vorlesungen, supra-citada

52. Vista assim, a Crítica pode ser concebida como uma gramática apenas no sentido

transcendental, i.e. enquanto se ocupa dos fundamentos da razão humana — ‘linguagem de tipo especial que obedece ao princípio de contradição’. Em outros termos, enquanto se ocupa com a determinação das condições de possibilidade do sentido do juízo em geral, e, por conseguinte, das condições de possibilidade do pensar e do conhecer. IV. A Gramática Transcendental do Conhecer e do Pensar

Para entendermos o que Kant diz, devemos ter uma noção inicial acerca do que ele entende por conhecimento bem como dos elementos que este envolve. Comecemos, então, perguntando o seguinte: que é conhecer? Podemos responder, provisoriamente, assim: conhecer é formular juízos. Mas formulamos juízos acerca do quê? Acerca de objetos. E de que tipo de objetos tratam os juízos? Objetos efetivos ou possíveis da experiência sensível. E como formulamos juízos, i.e. como acessamos os objetos da experiência sensível? De um lado, pelo entendimento, de outro, pela sensibilidade; i.e. por meio de conceitos e de intuições sensíveis. E por meio do que, de qual instrumento, acessamos tanto o entendimento (com os conceitos) quanto a sensibilidade (com as intuições sensíveis)? Por meio da razão, pura ou efetivamente. O uso puro da razão nos dá conhecimento do possível e do necessário; o uso efetivo, conhecimento do efetivo.

Perguntemos agora o seguinte: qual é a sede da razão (humana)? Na direção da argumentação

de Kant, na Crítica, podemos dizer que a sede da razão é o entendimento. E qual a sede do entendimento? A mente. Inicialmente, podemos dizer, seguindo Kant, que a mente <Gemüt>

53, na

perspectiva do conhecimento, é uma capacidade (faculdade) humana constituída por três outras sub-capacidades, que são: o entendimento, a sensibilidade e a imaginação. Cada uma destas sub-capacidades executa uma operação específica no processo cognitivo

54, produzindo três elementos, sem

os quais o juízo, e, por conseguinte, o conhecimento, não seria possível, a saber: 1. o entendimento, que é ativo, produz espontaneamente conceitos; 2. a sensibilidade, que é passiva, dá intuições sensíveis; 3. a imaginação, que é a capacidade mediadora, constrói os esquemas dos objetos de conhecimento. Resumindo: a mente é uma capacidade (ou faculdade) humana, que é constituída por três outras capacidades: o entendimento, que produz conceitos de objetos; a sensibilidade, que dá intuições

52

Mesmo que Kant compare seu trabalho a uma gramática tradicional, i.e., como uma ''gramática de classes de palavras e de inflexões'', na medida em que ele parte da proposição como unidade fundamental do sentido, estaríamos mais inclinados a supor que, ao contrário, ele está mais perto da concepção inaugurada pela Grammaire de Port Royal, que, conforme Chomsky, considera a construção de proposições sob duas perspectivas: a da estrutura de superfície e a da estrutura profunda. Vista sob a perspectiva do idealismo transcendental, a primeira se ocuparia com o arranjo dos termos, tarefa da lógica geral, e a segunda, com o significado dos conceitos e, por conseguinte, das condições de possibilidade do sentido da proposição, tarefa da lógica transcendental. Isto, porém, tem de ser investigado. 53

Cf. Rohden, na Crítica da Faculdade do Juízo, ''Kant entende o Gemüt <ânimo> como o princípio unificador das diversas faculdades em relação recíproca, tendo sentido transcendental cognitivo e também estético vivificante das faculdades de conhecimento''. Já na ''Crítica da razão pura o Gemüt aparece como a totalidade das faculdades transcendentais''. ROHDEN, V., em: O sentido do termo ''Gemüt'' em Kant, Rev. Analytica, v. 1, 1993, pp. 61-7. 54

Cf. Strawson, a metalinguagem da Crítica é psicológica, pois Kant concebeu a sua investigação, acerca da estrutura geral e das idéias e princípios que são pressupostos em todo conhecimento empírico, ''como um estudo da estrutura e da maneira de proceder das capacidades cognoscitivas de seres tal e como nós somos''. No que se refere à nossa concepção da experiência, qualquer necessidade encontrada por Kant foi atribuída à natureza de nossas faculdades. STRAWSON, P.F., Los Limites del Sentido: Ensayo sobre la Crítica de da Razón Pura de Kant, trad. de Carlos Thiebault Luis-André, Madrid, Rev. de Occidente, 1975, p. 17.

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sensíveis múltiplas de manifestações externas aos sentidos; e a imaginação, que recolhe os dados múltiplos da sensibilidade e os organiza segundo os conceitos do entendimento, formando o esquema do objeto a ser conhecido. A intuição pura dá a forma da sensibilidade; o entendimento puro dá a forma do pensamento; e a imaginação, com os dados puros da intuição e do entendimento — i.e. com os conceitos puros e com as intuições puras —, constrói o esquema puro (transcendental) do objeto, i.e. um objeto em geral. A razão, por sua vez, é o meio estruturante — simbólico e conceitual, sujeito ao princípio de contradição

55— por meio do qual o entendimento realiza as operações mentais

envolvidas no processo de conhecimento. Antes, porém, de analisarmos cada uma dessas sub-capacidades, bem como sua função no

processo cognitivo, a fim de evitar distorções lingüísticas e conceituais futuras, em nossa interpretação, devemos determinar qual é e o que é o elemento que é o suporte inicial e final do processo do conhecimento. Pois bem, qual é então este elemento: a mente, o entendimento, a sensibilidade, a imaginação, ou a razão? Todos e nenhum em especial, pois ‘aquele-que-conhece’ é o sujeito, que é dotado de razão e constituído por cada uma destas capacidades operativas. E que é esse sujeito? Podemos definir, provisoriamente, esse ‘sujeito-que-conhece’, o sujeito cognoscente, como a mente consciente (o eu) das operações realizadas pelo entendimento, por intermédio da razão, sobre as demais capacidades. Esta consciência do sujeito de que representações são dadas em sua mente é o que Kant chamará de apercepção transcendental (pura)

56, da qual provém a possibilidade e para a qual se

encaminha todo o conhecimento, pois só através da unidade do entendimento na apercepção transcendental é possível o conhecimento.

V. O juízo enquanto unidade do sentido A razão, enquanto meio de representação através de signos (sinais), opera segundo

determinadas formas (leis/regras). Estas formas se manifestam nos juízos; i.e. elas podem ser identificadas na maneira como estes são constituídos, pois os juízos são os veículos da razão para expressar conhecimento. Enquanto tais, os juízos são entidades lingüísticas, constituídas ou: 1. por elementos da forma da razão apenas; ou 2. por elementos da forma da razão e por elementos da forma da experiência; ou 3. por elementos da forma da razão e por elementos da experiência segundo a sua forma. Os primeiros são os juízos puros, que se referem a objetos necessários (à razão); os segundos são os juízos puros, que se referem a objetos possíveis (na experiência); os terceiros são os juízos empíricos, que se referem a objetos efetivos (da experiência). Os juízos puros de tipo 1 e 2 são totalmente a priori, pois independem da experiência — ainda que os juízos de tipo 2 não independam da forma da experiência. Os juízos empíricos do tipo 3 são a posteriori, pois dependem parcialmente da experiência efetiva de objetos, pois em todo juízo há uma parte pura a priori, tanto do lado da intuição (sua forma pura) como do lado do entendimento (as categorias ou conceitos puros)

57.

Que significa um juízo depender ou independer da experiência? De acordo com a interpretação que estou propondo, um juízo depender ou não da experiência significa o seguinte: O juízo, enquanto entidade (unidade) lingüística (enquanto produto da razão, portanto, da linguagem), é um todo representacional: enquanto todo, é composto de partes; enquanto representacional, tem a função de estar-por-algo diferente dele. Ora, se as partes que o compõem significam — i.e. referem-se a algo que não elas —, o todo tem sentido, e cumpre a sua função; i.e. ele representa aquilo pelo que está. Consideremos os juízos empíricos.

Conforme Kant, na Dissertatio, a verdade do juízo empírico consiste na concordância do predicado com um sujeito dado. O sentido, i.e. a representação dos elementos do juízo, consiste na referência —, relação <Beziehung>, na Crítica—, do conceito do sujeito, enquanto fenômeno, à faculdade sensível de conhecer, por meio da qual também são dados ‘‘os predicados observáveis

55

Cf. Kant, ''o critério meramente lógico da verdade, a saber, a concordância de um conhecimento com as leis universais e formais do entendimento e da razão [o princípio de contradição], é em verdade a conditio sine qua non [...] de toda verdade''. B 84. Ver, também, Kant, K.r.V., B 12 e seg., e Prolegomena, § 2, A 26. 56

Para Kant, a apercepção é a consciência da percepção, é ''a completa identidade [da consciência] consigo mesma em todas as representações'’. Kant, K.r.V., B 154. 57

Pois, conforme Kant, em K.r.V., A 96, em cada experiência, encontramos conceitos que contêm a priori o pensamento puro, estes conceitos são encontrados nas categorias.

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sensivelmente’’58

. É, portanto, pelas mesmas leis que as representações do sujeito e do predicado se constituem na mente, e, somente por isso, ‘‘dão ocasião a um conhecimento totalmente verdadeiro’’

59.

Portanto, antes de verificarmos a verdade de um juízo, necessitamos determinar em que condições ele pode ser verdadeiro, i.e. determinar os seus valores de verdade, o que equivale a verificar se ele tem ou não sentido. Nos termos de Kant, equivale a verificar se nossas representações (os conceitos nele expressos) se referem ou não a objetos efetivos ou possíveis

60.

Um juízo depender ou não depender da experiência, ou de sua forma, significa, portanto, que ou o seu sentido depende da experiência ou da forma desta, ou não depende da experiência nem de sua forma. Por isso, os juízos que não dependem da experiência efetiva de objetos para terem sentido serem a priori; e os juízos que dependem da experiência efetiva, segundo sua forma, serem a posteriori.

Todavia, é necessário distinguir nos juízos a priori, aqueles que não dependem da experiência para terem sentido, mas que dependem da forma desta, i.e. da sua possibilidade, da possibilidade de um objeto ser dado na série empírica futura (a experiência possível). Os juízos a priori que não dependem da experiência nem da forma desta são juízos de esclarecimento (analíticos), e se dão no nível do entendimento apenas. Por meio deles o entendimento apenas pensa e torna claros conceitos ou representações dadas de antemão. Com eles o entendimento concebe as suas regras (os conceitos) — i.e. as regras para conhecer objetos, para receber dados da experiência sensível como objetos.

61

Os juízos a priori que dependem da forma da experiência e os juízos a posteriori, que dependem da experiência efetiva de objetos, segundo a sua forma, são juízos de ampliação (sintéticos) do conhecimento, que se dão no nível do entendimento também, mas que recebem a contribuição da forma da experiência, no primeiro caso, e da experiência segundo a sua forma, no segundo. Por meio deles o entendimento concebe objetos empíricos possíveis ou efetivos.

Os juízos de esclarecimento são, conforme Kant, analíticos, pois não é necessário que saiamos do entendimento para que determinemos seu sentido. Os juízos de ampliação (extensivos)

62 são

sintéticos, porque não basta analisar seus termos para determinarmos o seu sentido meramente pelo entendimento, é necessário que saiamos deles a fim de consultarmos ou os dados da sensibilidade, segundo a sua forma, ou a sua forma; tarefa esta que consiste em, por meio da imaginação, fazermos a síntese <Synthesis> do múltiplo dado pela sensibilidade — segundo a forma da experiência — sob a forma do pensamento

63. Estes juízos (sintéticos) são, quanto à sua fonte —se segundo a experiência ou

à sua forma: ou a posteriori ou a priori. Com isso, temos os seguintes tipos de juízos:

1. os juízos analíticos — que são sempre a priori — têm por objeto produtos do entendimento (conceitos) ou as suas regras de funcionamento. Tais juízos não têm referência nem possível nem efetiva fora do entendimento, pois tratam apenas do modo pelo qual estes objetos podem ser pensados pelo entendimento, segundo suas regras, que são equivalentes às regras da razão, e têm portanto referência necessária; 2. os juízos sintéticos a posteriori, que têm por objeto dados sensíveis segundo a forma da sensibilidade, i.e. objetos efetivos. Tais juízos têm referência efetiva, pois tiram seu sentido de sua correspondência efetiva com a realidade; 3. os juízos sintéticos a priori, que têm por objeto o modo segundo o qual objetos podem ser dados na experiência, segundo a sua forma, i.e. objetos possíveis. Esses juízos têm referência apenas possível, pois tiram seu sentido de sua correspondência com a forma segundo a qual objetos são dados na

58

KANT, I., Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e inteligível (Dissertatio) tr. Leonel Ribeiro dos Santos, Imprensa Nacional, Lisboa, 1985, seção II, § 11. 59

Os fenômenos, conforme Kant, enquanto objetos indeterminados dos nossos sentidos, não são idéias dos objetos nem apresentam suas qualidades internas e essenciais. E mesmo que estes sejam a única manifestação que podemos receber dos objetos, são contudo passíveis de conhecimento verdadeiro. Porque, uma vez que são recebidos pelos sentidos, enquanto conseqüência de algo diferente do que percebemos, testemunham a presença do objeto; e isto, conforme Kant, contraria o idealismo, para o qual a existência dos objetos fora de nosso pensamento é duvidosa. Conforme Kant, mesmo que, para nós, não sejam senão fenômenos, nós podemos conhecer as coisas sensíveis, das quais não há intelecção real, mas apenas lógica. Ibid., loc.cit.. 60

Kant, K.r.V., B 300-2. 61

Ver Allison, op. cit., pp. 64-65, sobre a noção de objeto como ''sujeito de um juízo possível''. 62

Ver Kant, I., Prolegomena, op. cit., §2 (A 24-30). 63

Pois, conforme Kant, estas duas propriedades são essenciais, uma vez que sem ''sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos <Gedanken> sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas''. Kant, K.r.V., B 75.

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experiência; seu objeto é possível à medida em que se refere ao modo como objetos podem ser dados na experiência; têm por objeto, portanto, a possibilidade da experiência. Estes juízos servem de regras de reconhecimento de experiência.

Portanto, por meio de 1 pensamos; por meio de 2 e 3, conhecemos. Nos juízos sintéticos a priori, para verificarmos a atribuição do predicado ao sujeito (o seu

sentido), não basta analisar o conceito do sujeito e o do predicado; eu necessito sair do domínio meramente judicativo, i.e. do entendimento. Porém, o fundamento dessa predicação não se encontra no domínio da experiência. O que torna a síntese possível no juízo não é um recurso à experiência nem tampouco a análise do conceito do sujeito e do predicado, mas um recurso à forma da experiência. Kant dá como exemplo o juízo ‘‘Tudo o que acontece tem uma causa’’. Segundo Kant, no conceito do que acontece pensamos a existência de algo que a precede no tempo. Mas o conceito de causa está completamente fora do conceito de sucessão e ‘‘indica algo distinto daquilo que acontece’’

64, não

estando portanto contido nessa representação. Como então posso afirmar, a partir do conhecimento de que algo em geral acontece, algo tão diverso dele como o conceito de causa enquanto lhe pertencendo? Conforme Kant, o fundamento dessa síntese não pode ser a experiência, porque ‘‘o mencionado princípio acrescentou essa segunda representação à primeira não somente com maior generalidade, mas também com a expressão da necessidade, por conseguinte, completamente a priori e a partir de simples conceitos’’

65.

Quanto ao sentido e à verdade, os juízos analíticos são necessários, pois são verdadeiros a priori, e seu contrário não é possível nem pensável; os juízos sintéticos a posteriori são efetivos, pois são verdadeiros somente a posteriori, e seu contrário é possível e pensável; e os juízos sintéticos a priori são apenas possíveis, pois, mesmo que sejam verdadeiros a priori, seu contrário é, além de possível, pensável. Mas o seu contrário só é possível na série empírica, que é condicionada por sua verdade. Como esses juízos estão no princípio de todas as ciências (como axiomas) e, portanto, de todo nosso conhecimento, pois os condicionam, sua verdade é indemonstrável. Por isso seu sentido ser determinado a priori, e sua verdade ser suposta.

O entendimento é estruturado pela razão, que funciona segundo regras. É por meio dessas regras que o entendimento opera. E esta operação, por sua vez, é o pensamento. Para que o entendimento funcione bem, ele deve pensar (operar) segundo essas regras. Nesse sentido, pensar é, essencialmente, operar a razão segundo regras. Essas regras estão na base, na estrutura, do entendimento. São, pois, a forma como ele está estruturado, constituído. Nem o entendimento nem a razão produzem essas formas (regras). Ele apenas as explicita nos juízos. Cabe a nós, refletindo sobre como opera o entendimento, constituído segundo essas regras racionais, verificar os modos como os juízos se constituem, i.e. como os formamos. Daí, se a forma do dizer (do juízo) é equivalente à forma do logos (razão/ linguagem), ela é, portanto, lógica.

Dos modos segundo os quais os elementos, nos juízos, se relacionam, o entendimento extrai as formas lógicas dos juízos. Estas, uma vez levantadas (na Tábua das Categorias, B 106), dão toda a gama de possibilidades de combinação dos elementos que constituem o juízo; elas dão todas as possibilidades de formação de juízos. Nesse sentido, essas formas são a priori, uma vez que constituem a própria estrutura do entendimento, conforme leis inerentes. Se o entendimento opera de acordo com estas formas lógicas, que podem ser verificadas nos juízos, todas as operações do entendimento têm as mesmas formas; i.e. seguem (obedecem a) as mesmas regras, que são lógicas.

Um juízo, considerado segundo a sua forma, é uma estrutura composta por dois elementos numa relação de atribuição (ou dois lugares lógicos a serem preenchidos)

66: ou seja, dois elementos

numa relação de atribuição de algo a algo. No nível da estrutura, portanto, do juízo, i.e. no nível apenas lógico da relação de atribuição do entendimento, o lugar do elemento que recebe a atribuição — o receptor do atributo — é o do sujeito, por isso chamado sujeito de atribuição; e o lugar da atribuição e do atributo é o do predicado.

Estas formas, destituídas de uma relação efetiva ou possível, são vazias, e dizem respeito apenas ao modo segundo o qual nosso entendimento funciona, i.e. o modo como formulamos juízos. O estabelecimento dessas formas lógicas dos juízos é tarefa de uma lógica geral (formal), segundo Kant.

64

Kant, K.r.V., B 13. 65

Ibid., loc.cit. 66

Cf. Kant, K.r.V., B 324, todo conceito é um lugar lógico.

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E uma tal lógica deve levar em conta apenas a forma segundo a qual juízos são construídos, i.e. apenas a ‘‘forma do pensamento em geral’’

67.

Conforme Kant, o princípio que rege toda a construção dos juízos é o de contradição. Segundo esse princípio, nenhum pensamento pode contradizer-se a si próprio, no ato de sua formulação, i.e. o predicado não pode afirmar e negar uma mesma propriedade do sujeito num mesmo juízo. Este princípio garante a unidade do sentido do juízo, que é o veículo de todo nosso conhecimento de objetos.

Como o interesse de Kant na Crítica é o de estabelecer os limites do pensamento e demonstrar a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, podemos dizer que Kant não trata senão de juízos analíticos e sintéticos, e, especialmente, que está ocupado com verificar a possibilidade destes últimos, pois somente por meio deles nós temos conhecimento acerca do mundo (dos objetos do mundo).

Juízos analíticos e juízos sintéticos, segundo Kant, são juízos categóricos, e, por conseguinte, se deixam formular segundo uma relação entre sujeito (S) e predicado (P)

68. No caso do juízo analítico,

não é necessário recorrer ao domínio da experiência para determinar seu sentido e sua verdade, pois o conceito do P está contido no conceito do S; i.e. tal juízo é analítico, pois basta analisar o conceito do S para verificar se o conceito do P se aplica a ele ou não. No caso do juízo sintético, não basta analisar o conceito do S e do P, mas temos que recorrer ao domínio da experiência para o determinarmos quanto ao sentido (tal como vimos acima).

Segundo Kant, a lógica geral descreve os juízos em geral como a ‘‘representação de uma relação entre dois conceitos’’

69, a saber, o conceito do sujeito e o do predicado. Kant, porém, diz que

esta descrição ‘‘atende quando muito aos juízos categóricos, mas não aos hipotéticos e disjuntivos (que como tais contêm uma relação não de conceitos e sim de juízos)’’. Em B 100-101, Kant apresenta as modalidades dos juízos —problemáticos, assertóricos e apodíticos — como uma função destes que se refere ao ‘‘valor da cópula com referência <Beziehung> ao pensamento em geral’’. Conforme Kant, os

[j]uízos problemáticos <[p]roblematische Urteile> são aqueles em que se admite o afirmar ou o negar como meramente possível (arbitrário); juízos assertóricos aqueles em que se o considera [o negar ou o afirmar] efetivo <wirklich> (verdadeiro) e juízos apodíticos aqueles em que se o encara como necessário.

70

Na Lógica 71

, encontramos uma referência importante e elucidativa de Kant acerca da necessária distinção entre juízo <Urteil> e proposição <Satz>, cujo fundamento residiria nas modalidades do juízo. Nela, lemos o seguinte:

É na distinção entre juízos problemáticos e assertóricos que se funda a verdadeira distinção entre juízos e proposições, que de outro modo se costuma situar erroneamente na mera expressão mediante palavras, sem a qual não se poderia jamais julgar. No juízo, a relação de diferentes representações em vista da unidade da consciência é pensada como meramente problemática; numa proposição, ao contrário, como assertórica.

72

67

Ver Kant, K.r.V., B 78-9, e Lógica, tr. por Guido Antônio de Almeida (de Immanuel Kants Logik ein Handbuch zu Vorlesungen), RJ, Tempo Brasileiro, 1992, Ak 94/ A 144, pp. 111-12. 68

De acordo com Leibniz, a proposição categórica é o fundamento de todas as demais proposições, i.e. as modais, as hipotéticas e disjuntivas, pois a pressupõem. Proposição categórica, para Leibniz, é aquela que pode ser descrita sob a forma ''A é B, ou A não é B —i.e. É falso que A é B— , complementada com uma variedade de 'signum' , de modo que a proposição seja, ou universal e se entenda de todo sujeito, ou particular e se entende de algum''. LEIBNIZ, G.W., Seis escritos de lógica, tr. por Roberto Torretti, in: Dialogos, v. 51, 1988, p. 166. 69

Kant, K.r.V., B 140. Porém, segundo Kant, se investigamos mais de perto em cada juízo a ''referência de conhecimentos dados e, enquanto pertencentes ao entendimento'' os distinguimos ''da relação segundo leis da imaginação reprodutiva (que possui somente validade subjetiva)'', vemos ''que um juízo não é senão o modo de levar conhecimentos <Erkenntnisse —intuições, cognições, conhecimentos> dados à unidade objetiva da apercepção.'', Kant, K.r.V., B 141. 70

Na Lógica de Jäsche, A 169/Ak 108, § 30, lemos o seguinte: ''Quanto à modalidade, aspecto pelo qual está determinada a relação do juízo inteiro com a faculdade de conhecer, os juízos são ou problemáticos, ou assertóricos, ou apodícticos. Os problemáticos são acompanhados da consciência da mera possibilidade; os assertóricos, da consciência da realidade efetiva; os apodícticos, por fim, da consciência da necessidade de julgar''. Kant, I., Lógica, op.cit.. 71

Ibid., loc.cit. 72

Observação 3, § 30 da Lógica, op. cit., A 170/Ak 109.

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Toda proposição, para Kant, portanto, é um juízo, mas nem todo juízo é uma proposição, pois, antes ‘‘de ter uma proposição, tenho primeiro que julgar; e eu julgo sobre muita coisa que não decido, o que porém tenho que fazer tão logo determino um juízo como proposição’’.

73

Considere, agora, a seguinte passagem, no desdobramento de B 101, onde Kant parece esclarecer a diferença entre a modalidade problemática e a assertórica:

A proposição problemática <problematische Satz> é, portanto, aquela que só expressa possibilidade lógica (que não é objetiva), i.e. uma livre escolha de deixar valer uma tal proposição, uma acolhida meramente arbitrária da mesma no entendimento. A proposição assertórica diz da efetividade <Wirklichkeit> ou verdade <Wahrheit> lógica.

Em outros termos, a primeira se refere apenas à possibilidade, enquanto a segunda à verdade. Na Crítica, Kant se interessa por todos os tipos de juízos: os categóricos, os hipotéticos e os

disjuntivos. Com base nessa elucidação, para nossos fins, porém, suporei que, na Crítica, Kant se ocupará em pormenor da possibilidade dos juízos categóricos, em cuja classificação caem os juízos analíticos e sintéticos, que podem ser descritos segundo a fórmula S é P, donde S e P são conceitos colocados em relação pela cópula ‘‘é’’. Em outros termos, adoto a perspectiva segundo a qual Kant está ocupado na Crítica em investigar a possibilidade dos juízos categóricos, em especial, os assertóricos, i.e. os que têm a ver com a verdade.

Supondo que, na Crítica, Kant estivesse interessado, particularmente, em demonstrar a possibilidade dos juízos categóricos assertóricos —a priori ou a posteriori

74—, tal como propus, como

estes são proposições (conforme a Lógica), poderíamos dizer então que Kant estaria interessado, na Crítica, em investigar a possibilidade da proposição em geral, em outros termos, investigar em que condições em geral uma proposição pode ter sentido.

Como procurei demonstrar nas linhas precedentes, é possível, portanto, ler a Crítica como uma investigação acerca do uso da linguagem. Pois, por detrás da formulação do objetivo de Kant, com a Crítica, i.e. por detrás da pergunta acerca da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, podemos encontrar uma intenção mais básica e, da mesma forma, universal, que seria a de estabelecer a possibilidade, acima de tudo, dos juízos sintéticos em geral

75. Em outros termos, com a Crítica, Kant

estaria buscando responder a uma pergunta mais elementar e extremamente importante, a saber: Como podemos falar — com sentido — acerca do mundo? Ou, em termos mais aproximados: Como seriam possíveis juízos acerca de objetos?

Se seguirmos com atenção essa linha de raciocínio, o que encontramos por detrás da pergunta acerca da possibilidade da proposição em geral é uma pergunta ainda mais básica, e esta sim essencial a todo o saber humano. Portanto, se estivermos de acordo com relação ao fato de todo o conhecimento humano ser judicativo (discursivo) — que é o resultado da operação do entendimento sobre os dados da intuição a partir dos conceitos puros —, i.e. ser mediado pela linguagem, antes de estabelecermos a fonte dos juízos, i.e. se são a priori ou a posteriori, ou se são analíticos ou sintéticos, o que temos de estabelecer é, na verdade, se tais construções sintáticas têm ou não sentido, pois, caso contrário, não poderiam expressar pensamento algum, e muito menos descrever algo verdadeira ou falsamente.

Visto dessa maneira, poderíamos interpretar a empresa de Kant com a Crítica, antes, como uma investigação acerca da possibilidade —ou condições — do sentido de nossas proposições, uma vez que, de acordo com o próprio Kant, o maior problema da Metafísica no seu tempo era o fato de ela não ter clareza acerca do que estava falando, não dando, por conseguinte, sentido às suas proposições.

Sob essa perspectiva, o problema com o qual Kant se defrontaria na Crítica assume outra dimensão, uma vez que ele mesmo vai procurar colocar a Metafísica no seu devido lugar com o estabelecimento do domínio, dos limites e do objeto em relação aos quais nós, racionalmente (i.e. por meio da razão) podemos buscar conhecer, e até que ponto podemos ir legitimamente, com e sem a

73

Ibid., loc.cit. 74

Por exemplo, em Kant, K.r.V., B 189, na analítica dos princípios, Kant escreve o seguinte: ''[e]ntretanto, também temos que falar do princípio dos juízos analíticos, e isto em oposição ao dos juízos sintéticos com os quais propriamente nos ocupamos [...].''. [grifo meu]. 75

Cf. Bennett, os ''usos da linguagem que não são meras respostas lingüísticas a estímulos, e que expressam juízos que não podem ser expressos exceto em uma linguagem, se solapam ou coincidem com os usos que são mais pertinentes para ver se uma linguagem dada emprega conceitos.''. Para Bennett, ''o interesse primário de Kant recai sobre os juízos acerca de estados de fatos gerais e passados, e que é por isto que ele só se ocupa dos juízos expressáveis em uma linguagem, e se limita ademais às linguagens do tipo desenvolvido que eu digo 'que empregam conceitos'.''. Bennett, op. cit., p. 113.

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experiência — o que, em outras palavras, seria determinar acerca do que nós, de posse do instrumental da razão e do material da intuição, podemos falar com sentido. E isto nada mais seria então do que estabelecer, por meio da investigação do processo da construção de juízos sobre objetos, as condições de possibilidade de sentido desses juízos.

Como a lógica que Kant desenvolve na Crítica não é uma lógica geral (formal) — que abstrai do conteúdo do objeto —, mas sim uma lógica transcendental, que leva em conta, não o conteúdo do objeto, mas sim que objetos são dados a uma intuição sensível segundo as formas puras do espaço e do tempo, e que, por meio de conceitos do entendimento, deles formulamos juízos, se interessando, portanto, pela fonte desses juízos, as condições transcendentais do sentido deverão acompanhar toda a argumentação de Kant

76.

Com base nisso, proponho que na Estética e na Lógica Transcendental Kant nos apresenta as condições universais da possibilidade do sentido de nossos juízos sobre objetos: a Estética Transcendental nos apresenta as condições de possibilidade fornecidas pela sensibilidade, e a Lógica Transcendental, as condições de possibilidade fornecidas pelo entendimento, em outros termos, os elementos de uma semântica transcendental.

Esta proposta de interpretação poderia indicar um caminho para uma resposta à pergunta que Kant se faz na Carta a Marcus Herz, a saber: ‘‘sobre que fundamento <Grund> repousa a relação daquilo que se chama em nós representação <Vorstellung> com o objeto <Gegenstand>?’’

77. Em

outras palavras, como são possíveis conceitos de objetos, ou, ainda, como a linguagem pode referir-se ao mundo. Sob essa perspectiva, a tarefa de investigar a origem e a aplicabilidade de conceitos a objetos se aproxima de uma investigação acerca da significação das palavras.

78

Visto dessa maneira, o objetivo de Kant na Crítica é bastante assemelhado ao de Wittgenstein no Tractatus

79, uma vez que, conforme o modo como lemos o trabalho de Kant, ele, ao procurar

estabelecer os limites do conhecimento pela razão pura, sem a experiência, termina por estabelecer os limites da razão. Mas para Wittgenstein, estabelecer tais limites implicaria fazer aquilo que se quer evitar, uma vez que fora da razão não há sentido. Daí, não se poder falar dos limites da razão sem sair desses limites e, portanto, falar sem sentido. Quando Kant, na Crítica, estabelece o noumeno (ou objeto transcendental) como um parâmetro para a razão, i.e. como o limite para o conhecer, transgride o próprio limite ao postular o empiricamente impossível, o incognoscível; i.e. o próprio limite. Kant, portanto, infringe a regra que pretende estabelecer a fim de estabelecer a regra; ou ainda, transgride os limites do conhecimento a fim de estabelecer este limite. Se, com o estabelecimento do noumeno como limite para o conhecer, Kant estabelece o limite dos juízos e com eles os limites a que a razão pura (a razão sem referência a objetos) tem de se ater no caminho do conhecimento puro, Kant estabelece, ao mesmo tempo, os limites para o pensar com sentido, que devem coincidir com os limites do discurso significativo.

76

Em outros termos, a lógica de Kant não é formal, e é, portanto, transcendental, porque ele está interessado em investigar como é possível em geral que nossas proposições tenham sentido; sua preocupação, portanto, é com a possibilidade do objeto ser dado e com a fonte do juízo, e não meramente com a sua forma. De acordo com Kant, em Kant, K.r.V., A XVI, a tarefa da Lógica Transcendental é determinar o valor objetivo dos conceitos puros do entendimento a priori, i.e. a sua aplicabilidade a objetos da experiência possível. 77

KANT, I., Carta a Marcus Herz, tr. de António Marques, Imprensa Nacional, Lisboa, 1985, p. 142. A tradução portuguesa desta Carta foi cotejada com a tradução francesa de ''Lettre à Marcus Herz'' de Alexis Philonenko, editada junto com a tradução de Paul Mouy de ''La Dissertation de 1770'', Paris, Vrin, 1976. 78

Pois, se, conforme Hobbes, os nomes são signos de conceitos, e não os signos das próprias coisas (Hobbes, T., Elementorum philosophiae, sectio prima, De corpore, I, 2, sect.5 apud Cassirer, La philosophie des Formes Simboliques, op. cit., p. 80) ''[o] problema da construção dos conceitos caracteriza o instante em que o contato entre a lógica e a filosofia da linguagem é mais estreito, onde um e outro parecem se fundir em uma unidade indissolúvel. Toda análise lógica dos conceitos parece finalmente levar a um ponto onde estudar os conceitos lembra estudar as palavras e os nomes. O nominalismo conseqüente reúne estes dois problemas: a seus olhos, a validade do conceito se reporta à validade e à fecundidade da palavra. A verdade torna-se então uma determinação menos lógica que lingüística: ''Veritas in dicto, non in re consistit''. Ela é o fato de uma concordância que não é procurada nas próprias coisas, nem nas idéias, mas que se refere exclusivamente ao encadear dos signos, em particular dos signos fonéticos. Um pensamento absolutamente ''puro'', que não falasse, que não conhecesse a oposição do verdadeiro e do falso, que não produzisse senão na e pela fala. Assim a questão da validade e da origem do conceito é necessariamente referida aqui ao problema da origem da palavra: a investigação da gênese das significações e das classes aparece como o único meio de tornar inteligíveis o sentido imanente do conceito e sua função na elaboração do conhecimento.''. Cassirer, ibid., p. 247. Sobre esta posição acerca da dificuldade de estabelecimento de um limite definido entre lógica (linguagens artificiais) e semântica (linguagens naturais), ver MONTAGUE, R., Universal Grammar, in: Theoria, 36 (1970), pp. 373-398. 79

WITTGENSTEIN, L., Tractatus Logico-Philosophicus, tr. Luiz Henrique Lopes dos Santos, SP, Edusp, 1993.

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