notas sobre o conceito de logos e a origem da metafísica · semântica do termo logos [λόγος]...
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Notas sobre o conceito de logos e
a origem da Metafsica
Prof. Dr. Jadir Antunes Dep. de Filosofia da Unioeste PR
Agosto de 2017
Material didtico da disciplina de Filosofia Poltica Moderna II Programa de Ps-graduao em Filosofia da Unioeste
Favor no reproduzi-lo, divulg-lo ou cit-lo
Escutando no a mim, mas ao , sbio homologar: tudo
um [ ]. Por isso, preciso
seguir o-que--comum []. Mas, sendo o o-que--
comum [], vivem os homens como se tivessem uma
inteligncia particular [... ]. [Herclito de feso.
Sobre a Natureza. Fragmentos 50 e 02]1.
Introduo
Nosso artigo pretende, a partir da definio fornecida por dois
importantes dicionrios da lngua grega antiga, o Dictionnaire tymologique de
la langue grecque, de Pierre Chantraine e de A Greek-English Lexicon, de
Henry George Liddell & Robert Scott, mostrar a riqueza e a pluralidade
semntica do termo logos [] presentes na cultura popular grega para em
seguida comparar com o destino dado ao termo pelo nascimento da filosofia.
No final do artigo, ainda, procuramos mostrar as possveis causas para o
surgimento da metafsica e da reduo do termo logos ao seu sentido abstrato
e moderno de ratio e cognitio.
1. Etimologia do termo
uma palavra de origem grega derivada do verbo lgo
[] ou lgein [] que possui vrios significados prximos. Entre os mais
significativos sentidos de e , geralmente empregados pela tradio
1HERCLITO: Hraclite dEphse. Edio online: http://philoctetes.free.fr/heraclite.pdf.
http://philoctetes.free.fr/heraclite.pdf
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filosfica, podemos citar: ao de colher e recolher; ao de reunir e ordenar;
ao de contar e enumerar; ao de estender e entregar. e podem
significar tambm ao de pensar, raciocinar, pronunciar e dizer. pode
significar, ainda, a ao de conter e sustentar. O que recolhe, organiza,
ordena, sistematiza e estende num conjunto, num universal, tambm, assim,
o que contm e sustenta o conjunto daquilo que reunido e
sistematizado.
Segundo Liddell-Scott, etimologicamente o verbo tem sua
origem em dois termos distintos: [gather = agarrar, reunir, juntar, colher,
recolher, escolher, apanhar e congregar] e [lay = pr, estender, pousar,
deitar e entregar]2. Para Chantraine3, possui o sentido original de juntar,
recolher e escolher (rassembler, cueillir e choisir). , por isso,
originariamente, ao de agarrar, reunir, colher, recolher e, ao mesmo tempo,
estender, deitar, pousar e entregar.
O verbo tambm pode significar a ao de contar, narrar,
numerar, enumerar, calcular, pensar, dizer, discorrer, discursar e expor em
palavras, aes que remetem ao significado de enquanto esprito e
linguagem. Na linguagem, o aquela ao de organizar e dar forma s
palavras recolhidas dentro de um discurso que se mostra ordenadamente
diante daquele que diz. assume ainda o sentido de sentido orientador,
significado, orientao. O que no possui no possui sentido, significado
e orientao, sendo aquilo que vago, vazio, indeterminado e desorientado.
De derivam palavras como , conversao,
linguagem ou discusso; , dotado para a discusso; , arte
do dilogo e da conversao; , refletir ou considerar; ,
conversar, dialogar; , em Atenas significava lista de cidados inscritos
para o servio militar; , reunio de pessoas, assembleia; ,
anlogo; , palavra, estilo; , discurso; , o irracional, ausncia
ou privao de . Traduzidos para o latim, , e podem
significar ligare, colligare, colre, collgo, collgi, collectum, lgo, lgi e lectum.
2 Henry George Liddell & Robert Scott: A Greek-English Lexicon.
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dle%2Fgw2 3 Pierre Chantraine: Dictionnaire tymologique de la langue grecque. Tomo III. Paris: ditions
Klincksieck, 1974, pp. 625-626.
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dle%2Fgw2http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dle%2Fgw2
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, por isso, significa, originariamente, a ao de colher,
recolher, coletar, ligar, coligar, reunir e ordenar o abstrato, o disperso e o
indeterminado dentro de um nico sistema concreto, belo, harmnico e perfeito.
O , portanto, aquilo que recolhe, rene, governa, ordena, regra, legisla
e, assim, universaliza e sistematiza, seja todos os entes seja todas as palavras,
dentro de um mesmo cosmos e de um mesmo mundo.
2. Sentidos do termo
em seu sentido originrio, no pode ser compreendido
como ratio ou cognitio, seja como proporo entre dois nmeros, como ordem
do discurso ou como faculdade humana. Ainda que o termo possa ser
empregado com um sentido tcnico mais preciso, como ratio, por exemplo, e
menos amplo para a filosofia, para a cultura popular grega em geral, no
uma ao restrita exclusivamente esfera da linguagem e da matemtica,
como se poderia supor, uma ao que se estende a todos os campos
da atividade humana, sejam elas intelectuais ou manuais. Assim, por exemplo,
tambm o pedreiro, o marceneiro, o construtor, e todos os demais artesos,
praticam a ao de , na medida em que recolhem, renem, contam,
enumeram, estendem e pousam o conjunto do material recolhido do seio da
natureza, sobre uma ordem mtrica, regular, proporcional e humana antes no
existente. Como ocorre em Homero e Pndaro, onde [aimasis
lgon] pode ser traduzido como coletar pedras para a construo de muralhas
[picking out stones for building walls]4.
Na cultura grega antiga, pode ser empregado como sufixo
indicador da atividade [como ] ou como sufixo indicador daquele que
exerce determinada atividade [como ] nos mais variados domnios da
realidade, desde as mais elevadas at as consideradas mais baixas e indignas.
Como exemplos deste ltimo emprego podemos citar palavras tais como: 1.
[o astrnomo ou astrlogo]; 2. [o coletor de tributos];
3. [o coletor de impostos e pedgios - Aristophanes, Frogs Ar.
Ras. 363]; 4. [o recolhedor de vegetais]; 5. [o
recolhedor de resduos]; 6. [o investigador da physis - Arist.
Metaph. 986b14, 990a3]; 7. [o recolhedor de frutas]; 8.
[o coletor de pedras para a construo]; 9. [o investigador dos 4 Henry George Liddell & Robert Scott: An Intermediate Greek-English Lexicon:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dle%2Fgw2
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dle%2Fgw2http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dle%2Fgw2
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meteoros - Arist. Mete. 354a29: Pl. Cra. 401b]; 10. [o marujo
coletor de peixes do mar]; 11. [o investigador das palavras]; 12.
[o coletor de trigo para a cidade]; 13. [o poeta investigador
e produtor de discursos sobre os deuses, como Hesodo e Orpheu - Arist.
Metaph. 1000a9; Arist. Metaph. 1071b27]; 14. [o coletor de
dinheiro]; 15. [o coletor de forragem]; 16. [o coletor de
dinheiro]5.
Alm destes, a cidade grega antiga contava ainda entre seus
cidados com o mytholgo, o poeta criador dos mitos, com o dikaiolgos [o
advogado guardio e defensor da justia], o physilogos [o investigador do
da natureza], o genealgos [o investigador da gnese], o tholgos [o
pintor dos caracteres e costumes humanos], o ionikolgos [o recitador de
versos poticos], o mimolgos [o recitador da mmesis humana] e o
anthropolgos [o conhecedor do homem].
Na cultura grega antiga, litholgos [] aquele contrutor
[; ], conforme referido por Plato nas Leis [858b] e por
Thucdides na Gerra do Peloponeso [6.44]6, aquele pedreiro que constri
uma casa no com qualquer pedra recolhida ao acaso, no com qualquer
pedra indeterminada, mas com aquela pedra determinada, selecionada e
recolhida reta e justamente do universo indeterminado das pedras para caber
exatamente em seu devido e correto lugar e na ordem bela e harmnica da
construo.
Litholgos o lithotmos [], aquele cortador de pedras
que sabe como serrar, como partir, como extrair do universo abstrato e
indeterminado de uma rocha, a melhor e determinada pedra para a construo.
O cortador de pedras aquele que, ento, da escurido da caverna, do breu da
indeterminao, capaz de ver, escolher, recolher e trazer para a presena da
determinao, para a presena do dia e da luz, a melhor parte do mrmore
para a construo.
O do arteso trabalhador , assim, negao e atuao,
ao de arrancar a coisa do breu da abstrao e da indeterminao e traz-la
5 Greek Dictionary Headword Search Results:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform?lang=greek&type=end&page=1&lookup=logos 6 [one who picks out stones for building: hence, one who builds with stones picked
out to fit their places, not squared]. Plato, Laws [Pl.Lg.858b; masons and joiners, [Thucydides, The Peloponnesian War Th.6.44, cf. 7.43, X.HG4.4.18].
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform?lang=greek&type=end&page=1&lookup=logos
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para a luz da existncia, da concretude e da determinao. Este
produtor, assim, como o da parteira socrtica, tem a fora de arrancar a
coisa do interior e traz-la para a presena do exterior e da vida. Este
poitico e construtor, assim, como o especulativo do filsofo, tem a fora
de arrancar a coisa da indeterminao do esquecimento e traz-la para a
presena da determinao e do conceito.
O originrio grego no investiga, portanto, somente as
coisas divinas e sobre-humanas, como fazem o thelogos, o meteorolgos, o
astrlogos e o physilogos, mas, tambm, para no dizer sobretudo, as coisas
no divinas e humanas como as coisas da natureza que esto a ao dispor do
homem, como as rochas, as frutas e os vegetais, como fazem os lithologoi [os
pedreiros coletores de pedras para a construo das casas e das muralhas da
cidade], o karplogos [o coletor de frutas para uso humano] e o sitlogos [o
coletor e guardio do trigo da despensa pblica]. O originrio grego se
dedica, ainda, nas figuras do dasmolgos, do eikostolgos, do chalkolgos e do
chrisolgos, a investigar, contar, coletar, recolher, entregar e guardar esta coisa
baixa e impura chamada dinheiro, os tributos pagos pelos cidados. O
abstrato da lei, que cria o tributo apenas em palavras, se mostra aqui em
perfeita unidade e harmonia com o concreto do coletor e do contador,
que o recolhem, contam e guardam nos cofres do tesouro da cidade.
O originrio, portanto, no somente ao de dizer, e de
dizer com ordem e sistematicidade, mas , sobretudo, ao de fazer e de
construir, , sobretudo, ao de determinar, de conceber e de trazer vida,
com ordem e sistematicidade, tudo aquilo que existe ainda somente na forma
da dynamis, da indeterminao e do vir-a-ser. O originrio, seja o do
intelecto, seja o das mos humanas, possui, assim, a capacidade
extraordinria, capacidade divina para a cultura grega, de recolher e reunir o
disperso dentro de uma ordem universal justa e proporcional e de um sentido
belo, harmnico e inteligvel.
O discurso e a prtica sustentados pelo em sua origem,
assim como a prtica do arteso, recolhem, renem, unificam, ordenam e do
um sentido comum a toda a multido dos entes da realidade, sejam estes os
mais diversos e plurais dos entes: matemticos, divinos, sensveis ou
inteligveis. O originrio, deste modo, a fora unificadora, ordenadora e
inteligvel de toda a realidade das palavras e dos entes. Sendo o a arkh
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de todas as palavras e de todos os entes, o tambm o princpio
fundador, governador e ordenador de todos os discursos sobre os entes. As
palavras e os entes so o que so pela fora e originalidade, pela
primordialidade e precedncia ontolgica do em relao a todos os
discursos e a todos os entes. Tudo o que s , portanto, no e atravs
do . Fora do originrio no poderia haver, por isso, nenhuma
existncia real e efetiva. Fora do a coisa viveria como coisa precria,
indeterminada e abstrata. O , assim, em sua origem, a determinao
viva e concreta de todas as coisas pensadas, ditas ou feitas.
O originrio grego no est no particular e na abstrao,
porque o no muitos, o nico, o a unidade viva e
pulsante de todas as partes constituintes da realidade dentro de um nico e
mesmo sistema concreto, belo, harmnico e ordenado. Saber conjugar estes
muitos fatiados, desgarrados e esparramados pela realidade num nico
e mesmo discurso, numa nica e mesma viso, numa nica e mesma prtica,
saber homologar e dizer como Herclito que tudo um no universo do
originrio, seja ele pensamento, ser ou linguagem.
3. O empobrecimento do termo pela letra dos filsofos
Ao longo do tempo, especialmente com o surgimento da filosofia
clssica, porm, a riqueza semntica do termo ser lentamente reduzida
a um significado abstrato de ratio e cognitio, pensamento, discurso, raciocnio,
razo e linguagem. O deixar de representar assim, a plenitude dos
sentidos prticos, poiticos e noticos do homem para representar apenas o
significado abstrato de palavra, raciocnio ou razo.
Segundo Michel Fattal7, Herclito fora quem, pela primeira vez,
empregou o termo na histria da filosofia ocidental. Antes de significar
razo e raciocnio cientfico, porm, para Herclito contm uma
pluralidade de significaes, tais como inteligncia, palavra, discurso, fogo,
guerra, harmonia, relao, lei sabedoria e deus que conservam o sentido
originrio da palavra.
7 Michel Fattal: Logos, pense et verit dans la philosophie grecque. Paris: LHarmattan, 2001,
p. 75.
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O heracliteano operaria em dois nveis distintos e
complementares, diz Fattal8, como -cosmos e -inteligncia. Deste
modo, Herclito teria sido o primeiro, para no dizer o nico, ao lado de Hegel,
a transportar para a filosofia o significado originrio de , de unitrio
que abarca em seu interior as duas dimenses da realidade: a csmica e a
inteligvel; a ontolgica e a lgica; a do fazer e a do dizer; a do ser e a do
pensar. Como diz Fattal9, para Herclito logos e cosmos so indissociveis. O
-cosmos o onde tudo um, o da unidade e do arranjo
harmonioso do mundo e de todas as coisas em comum. O -inteligncia
o do universal e do que comum, o que faz abstrao do
particular e do individual para deixar passar atravs dele o universal e a
unidade de todas as coisas, diz Fattal10. O -inteligncia [ ;
] o comum [ ], o que se ope
inteligncia particular [ ] do homem comum, deste homem cego
e surdo que no v nem escuta o que comum.
Neste mesmo sentido de compreender o heracliteano como
unidade de pensamento e realidade, de abstrato e concreto, segue tambm
Philip Wheelwright11, para quem a unidade indivisvel entre concreto e abstrato
especialmente evidente em Herclito na ideia e na imagem central do fogo.
O fogo aludido por Herclito, diz Wheelwright, no o fogo fsico, mas o fogo
que simboliza a unidade do que inteligncia com o que o
cosmos. Este fogo, diz ainda Wheelwright, o fogo dos romnticos alemes,
como Goethe, que define o fogo heracliteano como um smbolo genuno, como
uma instncia particular unida com o universal que, desse modo, desempenha
um papel nico e revelador, de um modo que nenhum outro ente particular
poderia revelar, da natureza universal desse algo mais geral e comum a todos
os entes e inteligncias do mundo que o 12.
Com Pitgoras, clebre filsofo dos nmeros que mais tarde
influenciar toda uma ampla gerao de filsofos da cincia, ainda
aparecer com o significado de conjunto de todos os sentidos e atividades do
homem, de recolher, juntar e ordenar, porm, j aparecer em seu reduzido e
abstrato sentido matemtico de ratio e cognitio, de razo, raciocnio ou
8 Fattal, p. 77.
9 Fattal, p. 79.
10 Fattal, p. 83.
11 Philip Wheelwright: Herclitus: New Jersey: Princeton University Press, 1959, p. 14.
12 Wheelwright, pp. 14-15.
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proporo entre dois nmeros. Como o nmero seria a arkh do universo, o
nmero corresponderia sua razo, ao seu e quilo que permitiria ao
conjunto dos entes sua estabilidade e unidade. Sem o nmero e a unidade, o
universo estaria desprovido de uma arkh, de uma ordem e de uma
estabilidade que lhe governassem e tornassem possvel sua existncia.
Como diz Aristteles na Metafsica [985b]13, os pitagricos
acreditaram que os princpios da matemtica eram os princpios de todos os
seres e que os nmeros eram, por natureza, anteriores a todas as coisas. Os
pitagricos acreditavam encontrar a essncia das coisas bem mais nas suas
relaes numricas do que nos elementos qualitativos e sensveis da natureza,
como o fogo, a terra, o ar e a gua. Sendo o elemento dos nmeros a essncia
de todos os seres, os pitagricos abstraam da essncia dos seres, assim,
todas as suas determinaes qualitativas e sensveis, convertendo-as em
determinaes externas e sem nenhum valor ontolgico.
Com os pitagricos, porm, ainda que o nmero em sua
qualidade abstrata seja visto como a essncia da realidade e do pensamento,
esta essncia ainda uma essncia visvel ao olhar do homem comum, pois
uma essncia numrica presente nas prprias relaes entre os seres que
poderia ser apreendida pelas mais variadas artes prticas e utilitrias,
especialmente pela arquitetura. Como diz Gilberto Garbi14, comentando a
matemtica pitagrica: apesar de ser a Matemtica algo ideal e abstrato, sua
presena no mundo fsico era percebida por toda a parte, nos cus e na Terra.
O famoso teorema pitagrico de que em qualquer tringulo retngulo o
quadrado da hipotenusa igual soma do quadrado dos catetos de ampla
verificao emprica e utilidade prtica. O nmero, assim, para os pitagricos,
ordenava racionalmente tanto o universo dos cus e o mundo inteligvel do
pensamento quanto o mundo emprico das mos e do cosmos humano. A
linguagem abstrata dos nmeros, a linguagem da matemtica, de suas
equaes, de seus teoremas e de suas frmulas seria, assim, na viso
pitagrica, a verdadeira linguagem do .
Com Parmnides, ao contrrio de Pitgoras, o nmero ser
totalmente excludo da determinao essencial da realidade. A essncia,
segundo ele, ser algo totalmente qualitativo e indeterminado, no ter 13
Aristteles: Metafsica. Mxico: Editorial Porra, 1992, p. 14. 14
Gilberto Geraldo Garbi: A Rainha das Cincias: um passeio histrico pelo maravilhoso mundo da matemtica. So Paulo: Editora Livraria da Fsica, 2009, p. 27.
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nenhuma relao com o mundo fsico e sensvel nem ordenar este mundo,
essencialmente desordenado em sua viso, mas somente o mundo inteligvel
do pensamento e da linguagem gramatical. Com Parmnides, o ser
excludo definitivamente das atividades manuais para tornar-se propriamente
razo gramatical abstrata, crtica e negativa, como razo capaz de pensar e
dizer o ser dentro de determinadas regras ou princpios precisos e a priori, tais
como o princpio de identidade.
Com Parmnides e Xenphanes, surge pela primeira vez na
histria da filosofia a ideia de associar no mais ao conjunto das
atividades manuais e mentais do homem, mas s ideias de verdade e razo, ao
-altheia, ao -ratio, ao -noen, ao -noma e ao -
lgein. Segundo Fattal15, Xenphanes j falava, antes ainda de Parmnides, da
necessidade de se encontrar um caminho para o verdadeiro do discurso
e das palavras puras [ ].
O mtodo de Parmnides consiste em separar, primeiro, o
das mos do do pensamento e da linguagem. Parmnides desconsidera
totalmente o saber tcnico e poitico do homem comum, o saber necessrio
vida, como saber do , para ele, somente o pensamento e a linguagem
abstrata do ser podem ser considerados como verdadeiras atividades do
. Uma vez que o separado do trabalho, Parmnides separa,
ainda, o da doxa, atribuindo a esta o sentido de falso, irracional e
desordenado. Enquanto o discurso abstrato do filsofo seria o discurso do que
sempre [ ; ; ], o discurso dos mortais seria o discurso da doxa
[], e do que no [ ]. O discurso do filsofo seria o nico
discurso digno de f [ ] e a nica crena verdadeira [
], enquanto o discurso da doxa, da doxa dos mortais [ ],
seria o discurso no fivel e no verdadeiro16.
Para Parmnides, o nico caminho filosoficamente fivel o
caminho do ser [], do ser abstrato que no nem este nem aquele ser, o
ser que no no ser, do ser que o ser. O caminho do no ser [ ], o
caminho da doxa e da glssa do homem comum, o caminho do totalmente
impensvel e incognoscvel. O caminho do no ser o da falsidade e das
15
Fattal, p. 36. 16
Le pome de Parmnide. Traduo francesa de Paul Tannery. Disponvel online na verso grego-francs com link de acesso ao site da Perseus Digital Library e do Dicionrio Grego-Ingls de Henry George Liddell & Robert Scott: http://philoctetes.free.fr/uniparmenide.htm.
http://philoctetes.free.fr/uniparmenide.htm
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trevas. O caminho do ser, porm, o da verdade e da luz, pois o mesmo
pensar e ser [ ].
A fora e a veracidade do poema de Parmnides residem no
interior do prprio caminho escolhido para encontrar a altheia []: o
caminho do pensamento e da linguagem racional. Uma vez que Parmnides
escolhe o pensamento e a linguagem como o lugar natural do e da
, fica fcil mostrar que a verdade no pode estar entre a doxa e a glssa
da multido, mas somente na linguagem abstrata da lgica, que fala do ser
somente enquanto categoria pura e abstrata do pensamento. Como diz Fattal17,
Parmnides teria sido o iniciador da linguagem, na medida em que teria
percebido... a importncia do verbo ser na constituio de toda proposio, de
todo pensamento e, por consequncia, de toda lgica.
Elegendo, assim, o apenas como pensamento e linguagem,
tornou-se fcil para Parmnides excluir do toda forma de saber no
fundamentada na nova ontologia por ele concebida. A concepo lgica de
Parmnides teria, assim, um valor de verdade superior e insupervel em
relao ao originrio enquanto saber da vida e do trabalho manual.
Enquanto em Herclito predominaria a ideia original de
enquanto sntese, de um -, de um do que comum, em
Parmnides predominaria a ideia de um crtico e analtico, de um
, de um -ratio que julga, discrimina, diferencia e separa.
Em nome deste -ratio abstrato e purgado do sensvel de
Parmnides, Scrates em sua Repblica imaginava uma cidade organizada e
dirigida por uma classe elitizada de reis filsofos, onde as mais variadas
atividades manuais e produtivas da cidade, por ele consideradas como
carentes de , como atividades da doxa, ficariam submersas na base da
pirmide de poder, trabalhando e vivendo para alimentar este abstrato
dos filsofos. A razo abstrata dos filsofos purgaria a cidade de toda fealdade
e imperfeio oriundas do que no , expulsando dela todos os
defensores de um mltiplo e variado, como os poetas Homero, Hesodo,
Simnides e Pndaro e todos os defensores da vida como relao, novidade,
variao e movimento.
17
Fattal, p. 37.
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Esta separao entre o que sensvel e concreto e o que
abstrato e inteligvel tem origem em Scrates em sua conhecida Teoria das
Formas [Repblica: 509d a 511e]18, onde Scrates institui a diviso da
realidade em dois domnios distintos e separados: o domnio do visvel
[], e o do inteligvel [], sendo o primeiro, o domnio onde residem
as coisas sensveis produzidas pela natureza e pela arte humana, e o segundo,
o domnio abstrato das ideias puras, que existiriam em si mesmas como
substncias separadas do concreto e do sensvel. Estas substncias, agora
separadas do concreto e da realidade humana, do cotidiano, do trabalho e dos
afazeres prticos, s poderiam ser alcanadas pelo pensamento e, como o ser,
enunciadas pela linguagem abstrata de Parmnides. Como em Parmnides,
em Scrates se repete a ideia da existncia de um verdadeiro, de um
abstrato que puro pensamento, e de um falso, que pura
glssa, phon e doxa.
Aristteles vai mais longe ainda do que Scrates na concepo de
um totalmente abstrato e lingustico, ao separar o complexo das
atividades humanas em categorias separadas e opostas entre si. Com ele, a
atividade produtiva das mos, a tekn e a poisis, a atividade da maioria dos
indivduos da cidade, ser excluda da atividade prtica poltica e moral, a
chamada prxis, e das atividades noticas, as atividades contemplativas da
alma humana que apreendem o absoluto e os primeiros princpios de todos os
seres, atividades tidas como excelncias e prprias somente dos senhores.
Em nome deste purgado e abstrato concebido por
Parmnides, Aristteles em sua Poltica chegava, assim, at mesmo a negar o
direito de cidadania a todos aqueles membros da cidade que no tivessem o
, o enquanto linguagem e discurso, como sua atividade central, tais
como as mulheres, os artesos e os escravos. Segundo Aristteles, estes
indivduos podiam ser exmios manejadores do corpo e das mos, podiam
ainda ser exmios manejadores dos nmeros, mas no da palavra, do discurso,
do dilogo, da concrdia e do entendimento.
Para justificar seu preconceito em relao s camadas populares
da cidade e ao em seu sentido originrio, Aristteles diferenciava
de glssa e phon. seria a atividade propriamente lgica do pensamento 18
Plato: A Repblica. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 258. Disponvel online na verso grego-ingls no site da Perseus Digital Library: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0167 .
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0167
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e da linguagem, enquanto phon e glssa seriam vistos meramente como voz
e como lngua. Os artesos, os escravos e mesmo as mulheres gregas
possuiriam phon e glssa, mas no . Em nome de um abstrato,
do que somente palavra, Aristteles negava, assim, como Parmnides,
haver racionalidade nas mais variadas atividades humanas, na maioria das
atividades na verdade, nas atividades essenciais vida humana, onde o
enquanto palavra no se fazia diretamente presente.
J no mundo romano e a partir da emergncia do cristianismo,
continuou a ser empregado especialmente, se no exclusivamente, no
sentido unilateral e subjetivo de palavra e discurso. Nos evangelhos cristos,
que mais tarde determinaro toda a concepo medieval de ,
aparece claramente com este significado subjetivo de dizer, de verbo e palavra.
Especialmente no Evangelho de Joo, sempre compreendido como
verbo ou palavra. Irmos, no vos escrevo um novo mandamento, mas o
mandamento antigo, que desde o princpio [] tivestes. O antigo
mandamento a palavra [] que desde sempre ouvistes: Epstola de Joo
2.7. O que era desde o princpio [], o que temos ouvido, o que temos
visto com os nossos prprios olhos, o que contemplamos, o que as nossas
mos apalparam, com respeito ao Verbo da vida [ ]: Epstola de
Joo 1.1. No princpio era o Verbo [], e o Verbo [] estava com
Deus, e o Verbo era Deus [ ]: Evangelho de Joo 1.1.
Tambm no Livro do Apocalipse, aparece como palavra: Estava vestido
com um manto tinto de sangue; e o nome pelo qual se chama a Palavra de
Deus [ ]: Apocalipse 19.13.
A partir da Modernidade e de volta s mos e letra dos filsofos,
especialmente daqueles ligados ao nascimento das cincias da fsica e da
matemtica, o termo voltar a ser visto em seu sentido pitagrico de
nmero, razo e proporo. Ao sentido pitagrico de juntar-se-, ainda, o
sentido latino de como faculdade, como cogito, ratio e cognitio. Com este
sentido pitagrico e romano do termo, ser visto pelos filsofos da
cincia moderna meramente como a faculdade da razo de raciocinar,
enumerar e calcular corretamente.
Mesmo em Hegel, filsofo de profunda inspirao grega e crtico
da racionalidade cientfica concebida pela modernidade, o enquanto
Geist ou Esprito ser visto essencialmente como linguagem, como j viam
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Scrates, Plato, Aristteles e toda a tradio filosfica crist. Ser na
linguagem, ainda que no na linguagem dos nmeros, do sentimento, da arte e
da f, mas na linguagem do Esprito, que o se expressar em toda a sua
verdade, especialmente em sua Cincia da Lgica, a cincia do ser puro e
abstrato, do ser que totalmente pensamento.
A Cincia da Lgica de Hegel a apresentao pura e racional do
enquanto linguagem, do enquanto o conjunto das categorias
abstratas e puras do pensamento, a cincia emancipada de todo carter
prtico e utilitrio, a cincia das cincias, a lgica das lgicas e o saber de
todo saber. A Cincia da Lgica, assim, o estudo do saber puro, das
essencialidades puras e dos pensamentos puros. A Cincia da Lgica, assim,
o esprito que pensa sua essncia19, diz Hegel. Deste modo, diz Hegel, a
lgica se determinou como a cincia do pensar puro, que tem como seu
princpio o saber puro... o ser sabido como conceito puro em si mesmo e o
conceito puro sabido como o ser verdadeiro20.
O conceito puro sabido como o ser verdadeiro porque para a
lgica, como para toda ontologia desde Parmnides, ser e pensar, realidade e
pensamento, so o mesmo. Estudando-se o pensamento em suas categorias
puras e conceituais, estuda-se e se conhece, ao mesmo tempo, a realidade
que estaria fora do pensamento, pois esta mesma realidade pensamento.
Nesta relao de coincidncia entre pensamento e realidade e sendo as
determinaes do pensamento as mesmas determinaes do ser, a Lgica se
torna uma Ontologia e, por conseguinte, como diz Taylor comentando a Cincia
da Lgica de Hegel21, descobrindo as relaes necessrias entre os conceitos
categoriais da lgica transcendental [da lgica que uma ontologia], tambm
estaremos descobrindo a estrutura necessria da realidade. Por conseguinte,
diz Taylor a Lgica apresenta uma cadeia de conceitos necessariamente
conectados que fornecem a estrutura conceitual da realidade22.
Causas da noo abstrata de
19
George W. F. Hegel: Cincia da Lgica. 1. A doutrina do ser. Petrpolis R.J: Editora Vozes, 2016. 20
Hegel, p. 63. 21
Charles Taylor: Hegel: Sistema, mtodo e estrutura. So Paulo: Editora Realizaes, 2014, p. 255. 22
Taylor, p. 259.
-
A separao do enquanto razo, pensamento e linguagem,
enquanto ao abstrata do intelecto, do enquanto ao de recolher,
juntar e ordenar manualmente tem origem, inicialmente, na diviso social do
trabalho fundada na escravido. Com a escravido grega clssica, surge pela
primeira vez na histria humana uma separao real e verdadeira entre as
atividades puras e abstratas do intelecto e as atividades das mos operadas
pelos escravos, artesos e mulheres da cidade. O surgimento de uma classe
de homens ociosos e liberados das necessidades do trabalho tornou
sociologicamente possvel a emergncia da metafsica, da lgica e da filosofia
enquanto cincias puras e abstratas, sem qualquer propsito prtico e utilitrio
imediato. A atividade manual das mulheres, dos escravos e dos artesos, que
permaneciam presos s necessidades da natureza e do trabalho, aparecia,
assim, para esses homens ociosos, diante da sofisticada e complexa
linguagem categorial da filosofia e da lgica, como pura doxa sem pensamento
e sem .
A necessidade dessa base natural desenvolvida e dessa diviso
social do trabalho para o surgimento de um pensamento de natureza
especulativa e no utilitria j era compreendida por Aristteles ainda no
mundo antigo. Como diz ele no Livro I da Metafsica comentando o surgimento
das cincias no utilitrias, como a Matemtica egpcia e a Filosofia:
Todas as artes utilitrias j estavam inventadas quando se
descobriram estas cincias que no se aplicam nem aos prazeres
nem s necessidades da vida. Nasceram primeiro naqueles
pontos onde os homens gozavam do cio. As matemticas foram
inventadas no Egito, porque neste pas se deixava muito tempo
livre para a casta dos sacerdotes.23
Hegel, que assim como Aristteles fora um grande historiador da
filosofia, comenta esta passagem da Metafsica em sua Cincia da Lgica
confirmando que a necessidade de ocupar-se com os pensamentos puros
pressupe um longo percurso pelo qual o esprito humano tem que ter passado
e que a ausncia e a abstrao da carncia, da utilidade, da praticidade e da
23
Aristteles: Metafsica, p. 07.
-
necessidade estavam na base do surgimento da lgica como a cincia dos
objetos na sua abstrao completa24.
Porm, j em sua juventude de Iena, Hegel compreendia que a
filosofia como cincia tinha sua origem numa ciso ocorrida no interior do
. Como diz ele na Diferena entre os sistemas de filosofia de Fichte e
Schelling [p. 18], a ciso [Entzweiung] e a contraposio [Entgegenstze] entre
esprito e matria, alma e corpo, f e entendimento, liberdade e necessidade,
razo e sensibilidade, inteligncia e natureza, subjetividade e objetividade, ser
e no-ser, conceito e ser, finitude e infinitude, e tantas outras, so as fontes da
necessidade da filosofia.
O desenvolvimento infinito da diversidade [unendlichen
Entwicklung von Mannigfaltigkeit] e da particularidade no interior da unidade
originria do , a transformao de contraposies relativas em
contraposies absolutas [absolut Entgegengesetzten], o fixar absoluto da
ciso por meio do Entendimento [das absolute Fixieren der Entzweiung durch
den Verstand], o desenvolvimento da anlise e das contraposies do
Entendimento em detrimento do desenvolvimento da sntese e da Razo e a
transformao destas contraposies em essncias fixas, imutveis, isoladas e
autnomas uma da outra esto na base da origem da necessidade da filosofia,
diz Hegel [pp. 17-24].
Uma vez que a unidade originria do cindida e suas
partes complementares so isoladas e contrapostas como coisas estranhas
umas s outras, uma vez que surge a atividade abstrata do Entendimento
transformando aquilo que mera manifestao do absoluto no prprio
absoluto, surge a necessidade da reunificao e da reconciliao do absoluto
pela atividade da Razo e da Filosofia. Como diz Hegel: a necessidade da
filosofia surge quando o poder de unificao [die Macht der Vereinigung]
desaparece da vida dos homens e os opostos [Gegestze] perdem sua viva
relao e interao e cobram uma vida de autonomia [Selbstndigkeit] [p. 20].
A emergncia de um poder racional unificador representado pela
Razo [Vernunft] e a Filosofia se faz necessria, diz Hegel, quando o
Entendimento [Verstand] contrape, frente a frente, como duas essncias fixas,
separadas e estranhas, um mundo de ser pensante e de essncia pensada
24
Hegel, p. 34.
-
em contraposio a um mundo de realidade efetiva [eine Welt von denkendem
und gedachtem Wesen, im Gegensatz gegen eine Welt von Wirklichkeit] [p.
21].
Com a ciso no interior da unidade e da identidade originrias do
surge a inverso metafsica e o que mero fenmeno aparece como
sendo o prprio absoluto. Na histria da cultura, por isso, diz Hegel, aquilo que
manifestao do absoluto [Erscheinung des Absoluten] se tem isolado do
absoluto [Absoluten isoliert] e se fixado como algo autnomo [ein Selbstndiges
fixiert] [p. 18]. Na formao da cultura surgem, deste modo, a metafsica e a
inverso mstica da realidade, onde aquilo que era mero fenmeno
[Erscheinung] e manifestao aparente do absoluto [Erscheinung des
Absoluten], onde aquilo que era mera essncia parcial e diversa
[mannigfaltigen Teilwesen], diz Hegel, se tem hipostasiado e se entificado na
forma do ser absoluto enquanto tal.
A histria da cultura filosfica, diz Hegel, pode ser assim definida
como a histria das diferentes formas assumidas pelo absoluto enquanto
essncia ou substncia no interior do mundo dos entes. No progredir da
cultura, diz Hegel, estas diferentes contraposies e manifestaes do absoluto
se isolam em domnios totalmente separados e para cada um deles no tem
nenhum significado o que sucede com o outro [p. 22]. Nesta histria, porm,
diz Hegel [p. 20], a atividade infinita do devir e do produzir [unendlichen
Ttigkeit des Werdens und Produzierens] da Razo tem superado o
Entendimento e unificado o que estava dividido, e rebaixado a ciso tida como
absoluta [absolute Entzweiung] a uma ciso relativa [relativen Entzweiung]
condicionada identidade originria [ursprngliche Identitt] do .
O mesmo Hegel, porm, no tem qualquer pudor em se
contradizer e repetir o velho modelo parmenideano de repartir o em
material e espiritual, sensvel e suprassensvel, abstrato e concreto, finito e
infinito e atribuir exclusivamente aos aspectos espiritual, suprassensvel,
abstrato e infinito do o carter de verdade, efetividade, realidade e
essencialidade, em contraposio aos demais aspectos contrrios,
considerados como no verdadeiros, no efetivos, no reais e no essenciais
[Colletti, pp. 11 a 13 principalmente].
Alm desta origem sociolgica, a lgica e a metafsica possuem
ainda uma origem ontolgica. Em segundo lugar, assim, a lgica e a metafsica
-
tm sua origem na capacidade natural contida no interior do prprio
pensamento de se cindir com a realidade que est fora do pensamento, de se
distinguir e se separar da ao e do fazer manuais. A metafsica e a eleio do
como pensamento e linguagem tem origem na capacidade natural do
intelecto de abstrair da multiplicidade emprica e sensvel dos entes suas
determinaes essenciais e ontolgicas e da transformao destas abstraes
em essncias, categorias e conceitos.
O segundo passo para a transformao destas categorias e
conceitos em abstraes e essncias metafsicas ocorre quando estas
abstraes, estes meros predicados e qualidades abstratas da coisa pensada,
so hipostasiadas e transformadas em sujeitos, essncias, substncias, almas
e entidades separadas, independentes e autnomas, tornando-se coisas em si
e por si mesmas, sem nenhuma dependncia com a coisa da qual tm sua
origem e sua existncia. Uma vez hipostasiadas e entificadas, estas essncias
e predicados passam, ento, invertidamente, a se relacionarem entre si como
verdadeiras substncias e sujeitos autonomizados da vida humana. Nesta
inverso metafsica, o que era predicado torna-se essncia e sujeito e o que
era sujeito torna-se predicado e, assim, coisa de menor valor ontolgico.
Deste modo, Scrates, por exemplo, acreditava, na Repblica
[Livro X 596b a 599b], na anterioridade lgica e ontolgica do pensamento
em relao ao de fazer pela circunstncia de que o arteso fabricante de
camas, antes mesmo de se debruar sobre a matria da cama, antes mesmo
de apreender, de separar e de arrancar a cama com as mos do interior da
madeira, j a possua previamente apreendida e separada como ideia no
interior do intelecto.
A cama fabricada pelo arteso seria, assim, na ontologia de
Scrates, mera cpia da cama ideal, da cama cujo autor seria Deus, sendo
esta cama divina o modelo verdadeiro, fiel e perfeito da cama no divina. A
ideia de cama guardada na memria do arteso, a representao ideal da
coisa fabricada, a capacidade desta coisa permanecer separada e guardada
eternamente na memria mesmo depois da cama real se desfazer, se consumir
e desaparecer da realidade aparecia para Scrates como prova da existncia
prvia, independente, separada, real e efetiva da ideia em relao matria
fabricada que se encontrava fora da mente. A cama fabricada pelo marceneiro
aparecia, ainda, para Scrates, como ontologicamente inferior em perfeio e
-
realidade cama que existia previamente como ideia e concepo de Deus. O
verdadeiro da realidade aparecia, assim, para Scrates, como o
passivo e abstrato do pensamento de Deus, e no como o concreto e
ativo das mos do fabricante.
Aristteles tambm partia desta mesma circunstncia para
explicar a relao entre forma e matria na Metafsica [Livro Stimo captulos 8
a 11]. Aristteles compreendia que a matria em si e por si mesma uma
substncia inexistente e totalmente dependente da ao superior e inteligvel
da forma, que a matria no poderia, nem mesmo em pensamento, existir
separada da forma. A forma, por seu lado, por ser uma substncia imaterial,
por ser puro pensamento, poderia ser separada, ainda que apenas
mentalmente, da matria, podendo existir e ser pensada em si e por si mesma,
independentemente da matria.
A metafsica e a separao entre forma e matria se completa
quando os filsofos passam a conceber entes e ideias puras, ao contrrio da
ideia de um bem fabricado, que j no possuem qualquer referente sensvel
fora do pensamento, tais como as ideias de beleza em si, bondade em si,
justia em si, ser puro, nada puro, espao puro, tempo puro, eu puro, saber
puro, essncia, substncia, alma, deus e tantas mais. A partir de ento, o
filosfico se emancipa completamente do sensvel, partindo para uma
viagem etrea alm do mundo e para a anlise metdica e detalhista de suas
prprias criaes mentais puras e abstratas, sem se preocupar com sua
existncia ou no fora do pensamento.
A partir destas duas circunstncias, sociolgica e ontolgica, os
filsofos puderam acreditar realmente que seria possvel separar o pensamento
que est na mente da realidade que est fora da mente, produzindo, assim,
uma viso de enquanto puro pensamento, enquanto pura ao de
pensar e raciocinar que se manifestava em suas prprias produes
intelectuais puras e abstratas, como na Metafsica, na Ontologia e
especialmente na Lgica. A ideia original de como a totalidade viva,
inteligvel e prtica das aes do homem, como unitrio que
simultaneamente um fazer da mente e das mos, uma ao conjunta de
distinguir, separar, juntar, enumerar, ordenar, dispor, estender e significar todos
os entes da realidade, sejam estes entes os signos abstratos da linguagem e
dos nmeros ou os demais signos da realidade, como os deuses, a justia, a
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guerra, o trabalho, a pesca, o plantio, a colheita, a partilha, o consumo e a vida
como um todo.
Em terceiro lugar, o empobrecimento do rico sentido originrio do
termo pela letra dos filsofos pode ser compreendido pelo seguinte
motivo. enquanto linguagem se relaciona ideia de discurso, dilogo,
concrdia e entendimento e se ope diretamente ao termo grego hybris, que
pode ser compreendido como violncia, desmedida, excesso, desregramento,
discrdia e disputa.
Os filsofos gregos compreendiam que a linguagem seria aquilo
que prprio natureza do homem, que o homem seria, sobretudo, um ser de
linguagem, um ser capaz de se relacionar entre si de maneira ordenada,
regrada e racional atravs da palavra racional e regrada do . Se
relacionar entre si atravs do , de um que somente pensado,
falado e ouvido, de um ordenado segundo as regras da gramtica, de
um medido e comum a todos os falantes de uma comunidade, era o que
haveria de propriamente humano no homem, ao contrrio da hybris, da
selvageria, da violncia e da desmedida das paixes, da guerra e dos conflitos
civis, das matanas e mortes entre si, to comuns entre as cidades gregas do
perodo clssico. Pela fora divina e ordenadora do , pela fora do
dilogo, de seus discursos, de sua concrdia, de seu entendimento, de suas
palavras e de sua educao, os filsofos acreditavam poder domesticar e
reprimir a fora violenta, selvagem e desumana da hybris grega.
A hybris seria, assim, na viso filosfica grega, aquilo que
prprio natureza dos animais e, quem sabe, dos brbaros e dos escravos do
Mediterrneo, daqueles que no possuem linguagem, mas apenas lngua e
voz, glssa e phon, como dizia Aristteles em sua Poltica referindo-se aos
brbaros.
No seria pela hybris e pela violncia, portanto, que os homens se
entenderiam entre si como homens, mas pelo , pela palavra e pelo
discurso. Para combater a violncia e a brutalidade da hybris, das paixes
desenfreadas e dos excessos do prazer, os filsofos gregos passaram, ento,
a imaginar e a descrever cidades ideais construdas e organizadas pelo ,
pelo metafsico que somente razo, pensamento e linguagem, e a
excluir destas cidades, ou da cidadania, todos aqueles que contrariassem, em
aes ou em palavras, o abstrato e metafsico da linguagem filosfica.
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Segundo o princpio de identidade concebido por Parmnides, da
guerra s poderia surgir a guerra, assim como do fogo s poderia surgir o fogo,
do ser o prprio ser e do no ser o no ser. A diferena e a desigualdade
jamais poderiam vir do ser. Assim como a identidade e a igualdade jamais
poderiam vir do no ser. Assim, para combater a hybris, a violncia e a guerra
civil que tomavam conta da cidade clssica, no se poderia empregar a prpria
hybris, pois da hybris no poderia vir o .
Para combater a hybris seria necessrio ento, desenvolver sua
fora contrria, a fora do , a fora abstrata da palavra e do
entendimento, que se ope absolutamente desmedida e irracionalidade da
hybris, pois do , que dilogo, concrdia e entendimento, s poderia vir o
. O romantismo filosfico grego, em sua crena parmenideana da
identidade e em sua viso abstrata e idealizada de , tombaria, assim,
como tombou historicamente, vtima de seus prprios pressupostos idealizados
e abstratos.
Concluso
Com a ciso e a dissoluo da unidade originria do , a
realidade passa a ser determinada e governada monocraticamente por um
nico fragmento particular do . Este cindido e autonomizado se
apresenta, ento, diante dos outros fragmentos, como o absoluto e a
verdadeira arkh de toda a realidade. Os demais fragmentos sero, por sua
vez, considerados como falsos representantes do e da realidade. Na
medida em que forem vistos como verdadeiros, a verdade destes fragmentos
dever sua origem ao fragmento superior e autonomizado pelo pensamento.
Com a ciso surgiro, assim, na histria da cultura, a filosofia e a metafsica
como cincias oficiais da realidade.
A metafsica se sustenta na ideia de que haja na realidade um ser
absolutamente incondicionado que seja essencialmente em-si e para-si mesmo
em oposio a outro que seja somente ser por-outro e para-outro. A metafsica
se sustenta na prtica da hypostasia, na converso em absoluto daquilo que
somente relativo e parte de uma totalidade maior. A metafsica possui, assim,
como pressuposto, a ciso e a oposio entre pensamento e ser, esprito e
natureza, linguagem e pensamento, trabalho material e trabalho intelectual, e
tantas outras do rico arsenal categorial da realidade e do pensamento, e a
crena que a parte relativa ao pensamento constitui, por si s e isoladamente,
-
toda a realidade e efetividade em si e por si mesma, independente da
existncia de todas as demais partes.
A Metafsica se constri atribuindo aos aspectos supostamente
superiores do , os aspectos do pensamento, do espiritual, do infinito e do
suprassensvel a qualidade de ser em-si e por-si, a qualidade de ser absoluto,
em oposio aos aspectos supostamente inferiores, os aspectos da matria, do
finito e do sensvel, que so vistos como dependentes e carentes de realidade
em-si e por si-mesmos, sem perceber o carter contraditrio desta mesma
atribuio, pois, como pode algo existir absolutamente ao lado do que no
absolutamente sem deixar de ser absolutamente? Como pode o infinito existir
absolutamente ao lado do finito sem deixar de ser infinito? Como pode a
unidade existir absolutamente ao lado da multiplicidade sem deixar de ser
unidade? Como pode o absolutamente espiritual existir enquanto tal ao lado do
material sem deixar de ser absolutamente? Como pode o absolutamente
pensado existir enquanto tal ao lado do no pensado sem deixar de ser
absolutamente? Enfim: como pode o absoluto existir enquanto tal ao lado do
no absoluto sem deixar de ser absoluto?
A metafsica no consegue perceber que o abstrato, o infinito e o
suprassensvel representados pelo pensamento e pelo espiritual no passam
de meras qualidades abstradas do , no passam da negao da
materialidade, da finitude, da sensibilidade e da concretude presentes no
interior do prprio , que o abstrato, o infinito, o pensamento, o espiritual e
o suprassensvel so, por isso, qualidades e entidades to negativas quanto as
qualidades e as entidades que pretende combater e condenar ao mundo da
no existncia e da no essencialidade. A mesma metafsica deixa
transparecer em sua prpria linguagem que ao se referir ao abstrato, ao infinito,
ao pensamento, ao esprito e ao suprassensvel, se refere, inconscientemente,
ao que a negao do concreto, do finito, da matria, do corpo e do sensvel.
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