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Novas Cronicas Clovis Vieira - 2012

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Novas crônicas literárias de Clovis Vieira, acadêmico correspondente da Academia de Letras de São João da Boa Vista-SP

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NovasCronicas

Clovis Vieira - 2012

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Foto da capa: www.sxc.hu - Algumas fotos cedidas por amigos, e que ilustram alguns textos, foram modificadas pelo autor do livro.

A cronica

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Novas Crônicas

33333Assim como a fábula e o enigma, a crônica é um gênero narra-

tivo. Como diz a origem da palavra (Cronos é o deus grego dotempo), narra fatos históricos em ordem cronológica, ou trata detemas da atualidade. Mas não é só isso. Lendo esse texto, vocêconhecerá as principais características da crônica, técnicas de suaredação e terá exemplos.

“Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. Édizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando aspontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudin-do a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos,fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre afebre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace estrompue está começada a crônica. (...)

(Machado de Assis. "Crônicas Escolhidas". São Paulo: EditoraÁtica, 1994)

Publicada em jornal ou revista onde é publicada, destina-se àleitura diária ou semanal e trata de acontecimentos cotidianos.

A crônica se diferencia no jornal por não buscar exatidão dainformação. Diferente da notícia, que procura relatar os fatos queacontecem, a crônica os analisa, dá-lhes um colorido emocional,mostrando aos olhos do leitor uma situação comum, vista poroutro ângulo, singular.

O leitor pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, umleitor de jornal ou de revista. A preocupação com esse leitor éque faz com que, dentre os assuntos tratados, o cronista dêmaior atenção aos problemas do modo de vida urbano, do mun-do contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do dia a diacomuns nas grandes cidades. (Alfredina Nery)

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Muitas destas novas crônicas foram escritas “sob encomen-da” para amigos a quem eu prezo.

Um deles edita a Revista Atua, veículo de comunicação daAssociação Comercial e Empresarial de São João da Boa Vista-SP. A cada mês, o desafio era diferente do anterior e os desafios,como se sabe, são muito estimulantes e motivadores.

Outro, produz o folheto com a programação mensal da BVCi-Boa Vista Cabo e internet, informando seus clientes sobre osfilmes a que poderão assistir. Aqui, a crônica suaviza o conteúdoimpessoal dos panfletos.

Duas crônicas foram realizadas a partir de fotografias. AAcademia de Letras de São João da Boa Vista-SP propôs quefotógrafos interessados enviassem seus trabalhos para análiseaprovação: as imagens selecionadas foram entregues a váriosacadêmicos que as “traduziram” em textos maravilhosos. Osmeus aqui estão, para a análise do leitor.

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Novas Crônicas

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IndiceUma cidade de artistas pág. 06O Natal no escritório pág. 08Passarinhos pág. 10Em busca do arco-íris pág. 12Uma tragédia sanjoanense pág. 14Dia de Professor pág. 16Testamento pág. 20Os visitantes pág. 24A caminho pág. 26Presentes de Natal pág. 28Cidade de Mulheres pág. 32Madeira, pó-de-serra, memórias pág. 36Um tempo de Festivais pág. 40As casas da Rua Benjamin pág. 42Atílio pág. 44Os fantasmas do Theatro pág. 46Muitas histórias, algumas pinturas pág. 50Márcio pág. 54Em nossa memória auditiva pág. 58Crianças reinando em nossas vidas pág. 62Natal, serenatas e outras providências pág. 66Memória pág. 70Ah, a falta que o Jaibas faz pág. 72Biografia pág. 75

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Uma cidadede Artistas

Foto: Projeto Alpha - Praça Cel. Joaquim José em São João da Boa Vista-SP

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Novas Crônicas

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Abra os olhos, aguce o pensamento, afine os ouvidos: podeser que esta cidade seja um palco. Pode ser uma pauta.Uma tela em branco. Uma coreografia. Pode ser que São

João seja uma fala de personagem, uma cena muda. Umfraseado musical. Uma pincelada precisa ou um passo de dança.

Esta é uma cidade de atores representando textos teatrais,cotidianamente em seus afazeres. São músicos tocando invisí-veis instrumentos e entoando cantos harmônicos em suas deci-sões. Este é um lugar de pintores colorindo o crepúsculo ouredesenhando o emaranhado das ruas. São João é feita de baila-rinos cumprindo uma não-planejada coreografia que encanta osvizinhos.

Quando os bastidores se abrem, quando as cinco linhas para-lelas dos desafios se oferecem à escrita, quando os pinceis dafaina diária se encharcam de cores e as sapatilhas se aprumamna vertical... é porque a cidade já está perfeitamente prontapara as luzes da ribalta e os holofotes. Em cena, somos comple-tos, vivemos todas as histórias, sabemos todos os finais, noscurvamos em reverência. Somos um filme.

É por isso que nos acostumamos tão rapidamente às semanasde Arte, às Viradas Culturais, ao Cineclube, à Banda na praça,aos livros lançados por escritores de todas as letras. A cidadenão perdoa: ela se anuncia ninho de talentos e mostra esse parirconstante e impune, para o deleite de todos.

Todo bairro é uma paleta multicor. Em cada casa mora umartista. Em cada esquina os meninos recitam notas musicais.Enumeram objetos diretos e indiretos, exibem nuances deguache e aquarela. Cada curva também é um palco, um micro-fone, uma página. Alguns nós são megafones estridentes.

Pode ser que esta cidade seja uma festa. Um evento, umhappening, uma salva de palmas. Diariamente somos vistos,ouvidos, somos lidos com todos os acentos, cedilhas, hífens.Mas é preciso ligar o rádio, folhear as páginas, abrir as cortinas.Senão... a cidade não será vista desse modo. Será somente umacidade.

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O Natalno escritorio

Foto: Natal no escritório de contabilidade de Weldo Vestin - 20 de dezembro de

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Vai chegando essa época do Natal e eu vou ficando comvontade de ter trabalhado o ano todo num desses escri-tórios de contabilidade. Torno-me meio borocochô. Hou-

ve alguma coisa ali pelo Natal de 1970, que fixou em minhamemória emocional essa delícia de ter atravessado na labuta oano contábil e, então, aproveitar as festas com os colegas detrabalho.

Eu nunca atuei em locais assim e confesso que não tenhoessa aptidão. Mas como foi bom aquele 20 de dezembro de 1970,com aquelas pessoas desconhecidas num momento e, logo emseguida, amigas para sempre! Entre os funcionários do escritóriodo Sr. Veldo Westin (ah, saudades de Dona Eny) eu apenasconhecia a Zeza, a quem namorava já com meio jeito de amiga,e a Celinha sua colega.

Depois desse encontro, nunca mais consegui repetir o feito depassar uma festa natalina em meio a máquinas de datilografia,papel ofício, copiadoras de documentos... Pareceu mágica, pare-ceu profundamente amigável aquele encontro, como se todos aliassim se comportassem no restante do ano.

Foi um tempo em que realizar o jogo de ‘amigo secreto’ aindaera muito bom, muito divertido e surpreendente. No desapareci-do Depósito Alvorada, nós comprávamos uns kits da Bozzano,numa caixa já com cara de presente, onde repousava creme debarbear+loção pós barba e o sucesso era certo. Foi o tempo,também, da colônia Sândalo que vinha num frasco com jeitomeio oriental... Esse cheiro foi a minha ‘perdição’ depois dessafesta, mas não vou dizer o porquê.

Tantos amigos eu não os reencontrei mais. E mesmo os queficaram por aqui, a Vida foi espalhando e promovendo odesencontro. Vez ou outra ainda os vejo e nos cumprimenta-mos. Eu volto àquele dia, é claro.

Tenho boas lembranças de tantos natais e quem sabe seja porisso que gosto bastante dessa época. Gosto do cheiro que elegicomo sendo ‘de Natal’, vindo de uma pequena palmeira quehavia na esquina da rua São João com a praça da Matriz.

Por isso é bom ficar velho: quando a realidade nos oprimepodemos abrir essa porta e nos refugiar no passado. Ele estásempre disponível, sempre colorido das cores que escolhemospintá-lo sem saber que o estávamos fazendo.

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Passarinhos

Foto: Sílvia Ferrante, no Cemitério São João Batista - São João da Boa Vista-SP

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Na pequena cidade, os passarinhos começaram a desapa

recer. Aflitos, os moradores enlouqueciam a sua procura. Não se ouvia mais o seu canto, não se percebia mais

o fru-fru das asas, o ar estava totalmente limpo dos seus vôos...

O eremita, que há muito se refugiara na montanha, desceuaté a cidade e reuniu as pessoas a sua volta. “Os passarinhosque se foram não mais voltarão. Misteriosamente, eles aprende-ram a voar além dos limites; tornaram-se encantados, fluídos,translúcidos. E ganharam o direito de subir até onde a nossaimaginação apenas supõe. É possível que... eles nos esperam lá”,explicou.

Para a Neusa, mãe do Fernando

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Em busca doarco-iris

Foto: Marcos José Silva - Texto produzido para a Academia de Letras de São João da Boa Vista-SP

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Não, não importa a extensão da caminhada! Vou conver-

sando com o meu cajado e tirando da mochila alimentopara a minha alma. Sei que a cada passo adiante, vou

deixando para trás o conforto do meu destino de origem.

É preciso correr contra esse tempo atroz e obscuro que moveum tremendo poder: o de arrancar de toda gente o brilho doolhar e o pulsar do coração. É preciso que o meu herói adorme-cido desperte do seu sossego e me venha em socorro.

Aluno que sou, me cabe essa missão de ensinar o afeto, dereinaugurar a gentileza nas mentes que foram cegadas para aluz. E esse intento me faz rever esses mesmos sentimentos queme foram ofertados um dia. Presentes de amor.

Vista daqui, da altura das minhas intenções, aquela cidadeparece mansa. Seus homens e mulheres e crianças e velhosestão silenciados pelo tremendo poder, mas isso não se percebedesse ponto da minha viagem. Eu preciso chegar logo ao próxi-mo destino.

O primeiro povoado em que meus pés pousarem precisaquerer me ouvir, me entender... e precisa desejar espalhar a boa-nova que trago. O povo - ainda gentil - em que eu pousar osmeus olhos e fazer ouvir a minha voz precisa manter a sua forçae desfraldar bandeiras e tocar o sino.

No entanto, até que lá eu chegue, me persegue o risco de sercapturado a caminho. Em minha ânsia de logo chegar vou tro-peçando em pedras, cruzando riachos, conhecendo trilhas... Oque me guia é o compromisso de não permitir que o tremendopoder se mantenha.

Antes que o dia se torne noite, e que a canção ser convertaem lamento, eu preciso chegar e preciso ensinar a lição e precisoque as pessoas a aprendam. Peregrino e portador que sou da luzdo amanhã, não posso precisar do afago. Essa riqueza viráquando eu cumprir com a missão.

É por isso que caminho incansável. Não importa que o tre-mendo poder tenha tirado a cor da vida.

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Uma tragediasanjoanense

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Dia 30 de abril de 1968, à tarde. A mulher desce correndo

a rampa que vem da garagem de sua casa até a calçada,na rua Getúlio Vargas. Ela vem gritando com as mãos

na cabeça: “meu Santo Antonio!”, “meu Santo Antonio!” São osseus gritos desesperados que nos chamam a atenção: Pistelli eeu estamos na calçada oposta, andando calmamente; estoulendo para ele a crônica “Mudança”, do Paulo Mendes Campos,e estamos rindo.

Somente quando passamos defronte ao portão é que nosdeparamos com a tragédia. A mulher nem se importa se o trân-sito naquele momento lhe abre espaço - ela se projeta sobre ofilho de três anos que está caído no asfalto. O menino acaba deser atropelado e está ali, misturado com suas roupas parecendouma trouxa que vai à lavanderia. O atropelador fugiu e nemmesmo eu ou o Pistelli sabemos dele.

O impacto dessa cena é muito forte para nós dois e nem porum segundo pensamos em interromper a nossa caminhada, tãoacelerado está o nosso coração e repleto de gritos da mulherestá o nosso ouvido. Enquanto nos distanciamos mudos daquelacena, a mãe desesperada abraça o filho já morto, na tentativainsana de trazê-lo de volta. Neste momento, é o pai do meninoquem desce a rampa da garagem e também se joga sobre atragédia viva ali na sua frente.

Já a meio quarteirão dali, vou explicando isso tudo ao Pistelli.De ouvido aguçado, ele pode criar suas próprias imagens apartir do que ouviu naqueles segundos infinitos de tempo. Logo,chegamos a sua casa e entramos sem ligar música, como faze-mos de costume. Beethoven, Ravel e Chopin ficam bem quietosem seus sulcos nos LPs.

Já faz tanto tempo que presenciamos este fato. Tínhamosapenas 16 anos, mas ele sempre me volta à memória como sequisesse se resolver em minha vida. “Viver, filosofei pela rama, écolecionar ruínas”, afirma o escritor naquela crônica que eu liano momento da tragédia.

Não sei dizer como sobreviveram os pais do garoto morto noasfalto da rua Getúlio Vargas, não procurei por notícias posteri-ores. Como sobreviver a fatos assim? Viver é colecionar tragédi-as, corrijo Paulo Mendes Campos, pretensiosamente...

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Dia deProfessor

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Você chegará logo mais à escola e seu eu o conheço bemgastará um tempo no pátio, debruçando o seu olharsobre aquelas crianças. Nenhuma delas é sua vizinha ou

brinca com seus filhos, ou já sabe que é você o novo professor,enfiado nesse jaleco azul claro.

Essas percepções não se aprendem na universidade, porque aVida corre solta mesmo é nos pátios escolares, nas salas de aula,na hora da merenda... Portanto, para aprender a ser um profes-sor será preciso sentir esse pulsar. Será preciso ser humano.

Na classe, que será somente sua naquele momento da aula,você pegará o giz branco em sua mão, consultará inseguro assuas fichas sobre a mesa, olhará mais uma vez os alunos inquie-tos nas carteiras - humildes, vindo de famílias de solidez diver-sas - e escreverá no quadro negro.

Em momento algum toda a sua argúcia lhe proverá comqualquer certeza de que a sua mensagem foi recebida ou chegouao destino naquelas mentes infantis. Será assim ao longo doano: você disparará setas certeiras, mas não saberá se atingiramo alvo.

Imagine de quantas distrações se compõem aquelas‘cabecinhas de vento’ sentadas a sua frente! Algumas criançasvieram para a escola sem almoço, outras vieram contra a pró-pria vontade e outras, ainda, chegaram com a promessa de quena volta iriam nadar no riacho.

Talvez, o que seus alunos querem não está no livro grossoonde você estudou, e sabe de cor, e que é o seu porto seguronessa maré educacional brasileira. Arrisco dizer que esses meni-nos e meninas querem, mesmo, é brincar de ser criança. Antesque sejam empurrados precipício a baixo.

No intervalo entre as aulas, você será posto à prova na Salade Professores. É ali que se reúnem os deuses desse Olimpoescolar, crentes de que estão construindo um mundo. Seuscolegas, profissionais que caminham diariamente sobre umacorda bamba, já terão construído para si uma fortaleza queimpeça a entrada da ‘artilharia pesada’ trazida pelos alunosmais velhos, os veteranos.

E é de dentro desses muros que muitos mestres decidem qualserá o melhor meio de entrar e sair ilesos das salas de aula. Elesirão propor a você as suas próprias descobertas... Essa será amaior prova pela qual deverá passar, ouvindo o que eles têm adizer e ficar ponderando, ponderando.

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Se você foi feito do material que eu suponho, correrá o riscode gastar o seu tempo de merenda entre os seus alunos, nopátio, comendo lanche com eles e ouvindo as suas prosas. Éaprendizado certo! A indisposição obtida junto aos seus colegasprofessores você negocia mais tarde. Agora, é hora de aprendera ser.

Haverá datas cívicas, quando você será convocado a compa-recer na escola. É feriado, mas será preciso acordar no horáriode semana e seguir para lá. Sem o seu jaleco azul, é possível quevocê se torne absolutamente irreconhecível!

Por um passe de mágica, você se torna homem, não maismestre. Sem a sua marca registrada cobrindo o corpo, os olharesde algumas alunas mudarão de aspecto. As garotas se tornarãolânguidas, suas vozes se amaciarão e você se divertirá perceben-do isso tudo.

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1919191919O altar da pátria, humildemente construído no canto esquer-

do do pátio, resume em buquês de flores meio murchas e ban-deiras um tanto amarfanhadas, a situação que cabe a vocêconsertar com a sua jovem motivação e o seu seguro empenhoem fazer o melhor. Sentimentos que devem despertar vivos emcada manhã.

Quando o hino nacional sair estridente de uma pequenacaixa de som, e os pelos do seu braço se arrepiarem com aquelestoques marciais, estará selada a certeza de que você foi escolhi-do por aquela escola e por aquelas crianças para desempenharuma missão.

É por isso, meu filho, que também escolhi esse caminho depedras pelo qual trilhei tantos anos. Eu também fui escolhido,não há como escapar. Quando me assustei no momento em quevocê decidiu repetir o meu feito, tornando-se um professor, pediaos céus que o fizesse passar por quase tudo o que passei. Daquia algum tempo, teremos muitas histórias para trocar.

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Testamento

Foto: Exposição de quadros na sede do Palmeiras FC - São João da Boa Vista-SP

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A pequena e frágil senhora senta próximo de mim, numadessas cadeiras modernas, feitas de cano e pintadas debege. Apesar de seus oitenta e poucos anos, ela ainda

parece ágil, tem os olhinhos vivos, gosta muito de falar, detransformar a banalidade do seu cotidiano em histórias que elajulga interessantes a todos. Quando caminha pela cidade, levaconsigo a sua bolsa feita desses tecidos que também recobremsofás. Esse seu aparato já está um pouco surrado pelo uso, mascarrega muita coisa útil a ela.

Uma lista de afazeres é dessas utilidades que estão ali, paramostrar a quem com ela dialoga. Talvez, sejam os últimos afaze-res de sua vida: ela está pensando em organizar um grandeleilão dos muitos quadros a óleo que pinta em seu abarrotadoestúdio, para reverter parte do lucro a uma ou duas entidadesassistenciais. Meu papel nesse empenho é conseguir o salãoprincipal do clube onde trabalho, para reunir seus convidadosque, possivelmente, darão lances nos muitos lotes que ela jáestá organizando.

A outra lista em sua bolsa é a relação de tudo o que ela e omarido colecionaram ao longo da vida e que também será doa-do. Móveis do apartamento, guarda-roupas repleto, os muitoslivros que o marido escreve e que não têm saída entre leitores,um mundo de lembranças materiais... A senhorinha consideraque os filhos não precisam disso e daquilo. Assim, ela preferedecidir em vida o destino dos seus pertences e fica me repetindoque o tempo vem passando muito rápido, que ela não tem maisagilidade física, que o marido mal consegue enxergar e selocomover...

Essa imensa decisão de se desfazer dos pertences aconteceuporque seus filhos resolveram que ela precisa parar de pintarquadros, e o seu marido, de escrever livros. Sem o antigo poderque exercia sobre seus rebentos, ela obedece. O marido também.

O tempo passou e semanas após esse encontro, nos vemos nacalçada defronte o Grupo Escolar e paramos para conversar:agora, os filhos também não aprovam o leilão pretendido. Elaestá triste e não deseja esconder isso de mim. Faz queixascontra o passar do tempo e agarra-se a sua bolsa de tecido.

Diferente do encontro anterior, hoje ela está muito magra,debilitada, andando sonambulicamente pelas ruas, buscandoencontrar um motivo para continuar viva...

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Divido com ela a minha surpresa diante de tantas proibiçõesque lhe são impostas. Arrisco algumas soluções que poderiamconvencer seus filhos da importância do seu trabalho com asformas e cores, e do seu marido com as palavras. Ele seguraminhas mãos, agradece o esforço do amigo e anuncia que vaiesperar pelos acontecimentos futuros.

Nos dias que se seguiram, não mais a vi. Seu atelier estámesmo fechado. A sala onde o marido estocava seus livros temnovo inquilino. Tenho medo de reencontrá-la e ver que se apa-gou o brilho dos olhos, com os quais ela percebia e pintava aVida.

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Os visitantes

Foto: André Carbonara - Texto produzido para a Academia de Letras de São João da Boa Vista-SP

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Ano 2010 – O grupo de peregrinos desloca-se em direção àlatitude 21º58’09" sul, longitude 46º47’53" entrando naregião cristalina da Serra da Mantiqueira. O local que

essas pessoas buscam ocupa as primeiras colinas dessa área,que se elevam, gradativamente, até o rebordo de um grandeplanalto.

Embora possam ser chamados de ‘peregrinos’, os pesquisado-res que caminham sob esse sol de janeiro não vestem trajestípicos daqueles caminhantes originais: estes estãotecnologicamente paramentados, dentro de verdadeiras arma-duras protetoras feitas de tecido inteligente.

Protegidos e monitorados desde o seu local de origem, seuorganismo é controlado por chips biológicos a cada passo dadonesse terreno acidentado, de difícil caminhada. Nada deveráinterromper sua pesquisa, iniciada em 2095, como trabalhoestabelecido por professores exigentes na fantástica Universida-de “Cosmos Inc.”.

A devastação ocorrida dez anos antes (em 2085), neste mes-mo local onde ora os visitantes tropeçam nos seixos e terrenoúmido, foi o motivador principal dessa sondagem. A viagem notempo, que acontece como um flash fotográfico, deslocou para opassado pessoas em busca da reconstrução do que foi perdido.

Já é grande a surpresa ao chegarem: ar puro, temperaturacálida, o silêncio... Depois, o ruído de pequenos animais (aquineste tempo ainda são abundantes), o correr dos riachos deágua pura, o som dos próprios pés sobre a relva, sobre folhassecas...

O líder do grupo, Prof. Spencer, pressente a aproximação dodestino em busca do qual vieram através das décadas: comosensitivo especial, tem no seu plexo-solar a melhor bússola e omais claro mapa. O seu trabalho é este, encontrar destinos,apontar para o alvo.

Ele apenas não soube preparar a emoção dos demais viajan-tes, seus companheiros, para o que estava oculto pela colina àfrente. Não pode avaliar a intensidade do impacto da próximacena. Assim, todos já arfantes de cansaço e ansiedade, guiaram-se pelas indicações do Mestre e subiram quase correndo o pe-queno morro para, maravilhosamente, preencher os olhos com amais bela visão.

Tudo o que havia sido inevitavelmente perdido estava ali, asua frente, uma visão espetacular, de roubar o fôlego, de parali-sar o coração, de emocionar às lágrimas.

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A caminho

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Hoje, estou naqueles dias em que gostaria de sair pelo

mundo com uma mochila vazia nas costas, caminhan-do até cair de cansaço e, quem sabe, ter a memória

completamente apagada de tudo o que eu já vivi.

Sim, nem tudo merece continuar vivo como lembrança. Seriacomo renascer com o HD totalmente limpo, sem arquivos des-necessários ou softweres que não funcionam bem.

Esquecer as pessoas, suas frases de efeito, seus gestos inócu-os e olhares vazios. Ter o coração esperançoso, como o foi umdia, e um sorriso sincero para novos encontros e descobertas.

Seria assim, olhar para o caminho que se apresenta diantedos olhos e saber que nele eu posso andar na minha velocidadee sem relógios no pulso.

Perceber que em minha direção vêm pessoas novas, que nãome conhecem, não sabem de mim nem de minhas escolhasanteriores. Eu gostaria de abraçar essa gente nova, sentir o calorque vem dos seus corpos cálidos e generosos.

Daí, quem sabe, a Natureza possa me oferecer a dádiva daMorte: eu estaria feliz, completo, independente. Do mesmomodo que nasci, tempos atrás.

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Presentesde Natal

Foto: Rogério dos Santos - Natal de Rua 2010 - São João da Boa Vista-SP

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A menina - 13, 14 anos -, fica um tempo diante das vitrinesescolhendo presentes de Natal para si mesma. Ela nãosabe querer nada muito facilmente e seu coração se

divide entre vestidos com brilhos, um kit importado de cosméti-cos para o cabelo e esses telefones celulares com rádio e televi-são digital.

A calçada das lojas tem muita gente animada com a vésperado Natal e ela vai esbarrando em gente que besunta o vidro daslojas com suas mãos ávidas de alegria. A cidade tem música noar, vinda de uns altofalantes em cada esquina, e também luzescoloridas que se enrolam nos troncos dos flamboyants.

Cansada de olhar e de desejar, a menina se põe à mostramais perto da sarjeta e logo um desses SUV estaciona com omotor ligado. Ela sabe que foi escolhida e facilita a aproxima-ção: chega à janela do veículo e fica ouvindo as frases do moto-rista, que se supõe sedutor. Seus ouvidos estão ali, mas as pala-vras que saem daquela boca soam como em câmera lenta, emsons embaçados que ela apenas vai meneando com a cabeçasem adivinhar seus significados.

O veículo roda por bairros ainda inacabados, onde o escuro eo silêncio podem garantir essa privacidade urgente que o pre-tendente anseia. O interior da cabine se transforma numefêmero centro de prazer onde mãos, lábios e pernas se mistu-ram com palavras pela metade, suor manchando camisas delinho e gemido de dor e êxtase.

Com a ansiedade em paz e o coração pulando em recém-taquicardia com o presente que acaba de se dar, o homem abrea carteira e acerta o encontro.

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De volta ao centro, ele a deixa na mesma sarjeta das vitrines.Seu SUV desaparece em direção ao lado nobre da cidade, ondeuma festa de luzes e assados o aguarda no seio da família.

Em pé na calçada, diante de suas lojas prediletas, a meninavolta a desejar indecisa. O relógio em seu pulso a desperta dosonho e ela corre para casa - receber o Natal na avenida não é oseu plano. Sua pequena silhueta vai se diluindo na noite à medi-da em que se afasta das luzes, rumo à periferia.

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Novas Crônicas

3131313131Longe, agora, a garota põe a chave na porta e a abre com

cuidado, sem fazer um ruído. Atravessa o primeiro cômodo,deixa sobre a TV parte do dinheiro arrecadado. Sua mãe é quemvai saber usá-lo melhor.

No quarto - uma cama de solteiro e um outro colchão aolado, no chão -, é onde sua mãe está, sonolenta, recostada nacabeceira da cama. Ela segura seu neto de 11 meses, uma chu-peta azul na boca, pele de pêssego. Muito carinhosamente, amenina pega o filho em seus braços e se senta ao lado da mãe.Trocam olhares gentis. Ao passar de um colo ao outro, o bebêdesperta e oferece aquele sorriso impossível de se descrever.

A jovem mãe o põe sentado em suas pernas e retira de suabolsa colorida o pequeno presente de Natal que pode comprarpara ele; e olha por um longo tempo, profundamente, em seusolhos.

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Cidadede Mulheres

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São João é a cidade das mulheres bonitas!” Esta fama per-corre a região e ‘mata’ de inveja as cidades vizinhas.Porém, o nosso município também é terra de mulheres

fortes, decididas, que podem mudar o rumo da história com asua personalidade.

Guiomar Novaes, Patrícia Galvão (a Pagu), MariaSguassábia... são alguns exemplos de sanjoanenses que entra-ram para a história da cidade e do País. Esta última, mesmosendo de Araraquara, destacou-se aqui em São João, durante aRevolução de 1932. A sua incrível história é bem conhecida.

E quantas outras mulheres maravilhosas estão relacionadasno site www.mulheresdesaojoao.com.br criado e mantido pelaacadêmica Neusa Menezes. Entre elas Jaçanã Altair, DonaBeloca, Dona Tita, Anésia Mattos, Dona Ziza, Chafica Antakly,a Rosinha do Bilú e, mesmo, a esquecida Niquita, que percorriaas ruas da cidade praguejando a sua dor...

Atenta ao seu tempo, aquela acadêmica está incluindo no sitemais alguns nomes como Marta Salomão, Profa. MaísaBarcellos, Lucila Martarello Astolpho (autora da letra do Hinode São João), Maria Leonor Alvarez e Silva, Ione Blotta, SallyOliveira, Sarah Salomão...

Cada uma delas atuante em área diversa da comunidade,colaborando para tornar melhor a vida de muitos, sejam alunos,sejam pessoas carentes, seja a cidade como um todo.

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Da mesma forma que essas mulheres foram ‘descobertas’, épreciso voltar os nossos olhos a quem está muito perto de nós,para descobrirmos quem deixamos passar despercebido. São asdonas-de-casa, são as mães, são as secretárias, as balconistas, asfuncionárias municipais, as vendedoras que empurram seuscarrinhos de guloseimas pelo asfalto da cidade...

Elas não são atrizes, não escrevem livros, talvez não toqueminstrumentos nem participem de grandes empenhos que mu-dam a face da realidade. São as mulheres do nosso dia a dia,que mantém acertados os ponteiros do relógio, que põem comi-da sobre a nossa mesa e nos contam histórias na hora de dor-mir.

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3535353535Se aparentam fragilidade, cuidado! Elas resolvem situações

críticas mais efetivamente do que muitos homens “fortes”. Suamente ágil encontra soluções onde antes havia um ‘caos’. Fa-zem tudo isso mantendo a suavidade de alma.

E quer saber? Essas mulheres maravilhosas realizam as tare-fas mais banais sem perder o seu charme, o seu olhar maliciosoe sensual, o seu jeito de corpo que enlouquece os homens. Averdade é que elas são merecedoras da fama que a cidade os-tenta com orgulho: “São João é a cidade das mulheres bonitas!”

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Madeira,po-de-serra, memorias

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Fico me perguntando como me interessei por Arte e Cultu-ra crescendo num mundo tão diverso destes.

Havia dois flamboyants na esquina onde funcionava a fábricade carrocerias de meu pai. Um deles, na rua Padre José; o outro,na rua Cons. Antonio Prado ainda com paralelepípedos e guiasde sarjeta que os meninos da ‘turminha’ limpavam periodica-mente. Quando as árvores floriam, nós escalávamos seu troncoe galhos para colher aquelas flores vermelhas com pontos ama-relos. Seu destino certo eram os túmulos da família, já que omês de novembro traz o dia dos mortos e suas saudades.

Mas no interior da fábrica, a grande brincadeira era o montede pó-de-serra! Esse material ia se acumulando com a faina daserra circular e o seu perigoso movimento de cortar madeiragrossa. Chegava um momento em que havia tanto resíduoencostado na parede de tijolos pintados de branco, que nãotínhamos saída: o melhor a fazer era se jogar nele e afundar ocorpo naquele colchão macio e poeirento de madeira pulveriza-da.

Papai era mais tolerante e entendia a graça do filho e seusamigos desmanchando em risos aquele acúmulo de pó grosso.Tio Ramiro é quem passou a vida sendo um homem sério e asua sizudez nos incomodava até nestes momentos de lazergrátis, quando nos dava broncas por espalharmos por ali aqueleconteúdo.

Nos outros dias, queríamos encontrar no chão da fábrica ostoquinhos que sobravam dos cortes na madeira e sua infinidadede formatos. Era com eles que construíamos casas, caminhões,bichos... esses brinquedos que a imaginação constroi e ela mes-ma faz a manutenção dos enredos que nos ajudam a atravessaro dia vivendo uma infância muito divertida e boa e simples.

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No restante do tempo, a realidade era bruta no dia a dia detrabalho. A fábrica produzia um incômodo e amplo ruído decortar, serrar, aplainar, perfurar e montar madeira de váriascores e aromas. Dali, saíam prontas carrocerias para caminhõesenormes que vinham até de outros Estados.

No barracão sujo e com teias de aranha nas quinas das pare-des também eram feitas caixas e objetos de todos os tipos, eencomendas especiais como alguns móveis exclusivos. Os funci-onários do meu meu pai eram sempre gente jovem; eles acaba-vam se tornando nossos amigos e iam conosco à Piscina do Boiem alguns finais de semana para nadar e comer aquelas comi-das gostosas que mamãe fazia.

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3939393939Eu poderia muito bem ter me especializado em trabalhar com

madeiras, colas, tintas... Eu poderia ter me tornado um dessesempresários que enriquecem a custa de muito suor e de serieda-de. Houve, então, algum outro caminho que me seduziu mais.Talvez tenha sido a leveza com que papai sempre entendeu aVida.

Quando a fábrica foi fechada, ele comprou uma perua Vera-neio verde e se tornou motorista de táxi. Até hoje, muitos ami-gos se lembram dele como aquele sujeito divertido, que dirigiamuito bem e que tornava a viagem mais gostosa do que a che-gada ao destino final.

Apesar do sucesso da fábrica de carrocerias, meu pai nuncafoi um homem rico. Quem o via de chinelos e de camisa abertana praça Gov. Armando Sales, a qualquer hora do dia, nemimaginava o homem doce e inteligente e criativo que estava ali.Quando ele se foi, nunca vimos tantas flores e coroas e manifes-tações de pesar.

A amizade que ele deixou por aqui, sim, era a sua riqueza.

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Um tempode festivais

Foto: Salão Diocesano, década de 1970, em São João da Boa Vista-SP

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Não existe emoção mais intensa, angustiante e deliciosa

do que estar nos bastidores de um festival de música, sevocê ainda é um adolescente na década de 1970. Olhar

pela fresta da cortina o público ruidoso, o palco com todosaqueles instrumentos, os músicos fazendo expressões de neutra-lidade esperando por sua entrada com a música na ponta dalíngua...

Graças ao fantástico empenho da professora GlorinhaAguiar, muitos alunos do Instituto de Educação participaramdos festivais de música que ela promovia, um esforço extremodaquela mulher. Sabe-se lá quantas batalhas ela travou parapromover aqueles encontros na sede do Palmeiras, na Av. DonaGertrudes, ou no palco do Salão Diocesano, na Praça da Cate-dral.

O resultado em nossas almas não tem como ser mensurado, éimpressão indelével, é para o resto da vida.

Naquele tempo não tínhamos essas atrações eletrônicasfabulosas de hoje. Então, cantar e se expor humildemente numpalco de cidade do interior era simplemente o máximo! Houveum desses festivais que coincidiu em data com o desfile do dia24 de junho, aniversário da minha cidade. Ah, muitos de nósnem trocaram de roupa: subimos ao palco com aquele uniformebranco mesmo, tênis, meias, calça e camiseta impecáveis.

Se fazíamos sucesso, você pergunta? Parece que sim, porqueem nossa escola éramos olhados de modo diferente, como sefôssemos especiais. Não éramos, a bem da verdade. Nossa vozdesafinava, nossa insegurança ficava pública e a criança queainda sobrava em nós esperava que as pessoas a nossa volta nosadmirassem.

Nós é que nos sentíamos especiais ali nos bastidores, porqueestávamos num local exclusivo onde somente os cantores podi-am ir. E podíamos espiar as pessoas na plateia e podíamosconversar com os professores de igual para igual, imagine! Nãoexiste emoção mais intensa, angustiante e deliciosa do queescapar da mesmice e abrir as cortinas dos palcos da Vida.

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As casasda Rua Benjamin

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Há duas casas na Rua Benjamin Constant, que são as

minhas preferidas em toda a cidade. Elas têm, em mi-nha ilusão, muitas das características da arquitetura

que se praticava nos anos 1950/60 e a fantasia é participar deuma festa naquelas residências, quem sabe em 1965.

Bobagem esse desejo meu, já que aquela década há muito sefoi para o Infinito, e as pessoas de hoje vivem muito mais solitá-rias do que enfiadas em festas ingênuas como aquelas. Porém,mesmo assim minha imaginação constroi uma reunião e tantoquando passo calmo naquela rua.

Vejo DKVs e lambretas prateadas estacionando nas ruaspróximas, vejo rapazes chegando com suas famílias, trazendonas mãos pratos de salgados. Vejo a casa iluminada, com seusamplos espaços habitáveis...

No centro daquele grande espaço que há sob a sala principal,ficará a mesa recoberta de quitutes e garrafas de Coca-Cola.Talvez haja balões de gás pelas paredes e funcionárias vestidasde branco trazendo mais copos e talheres, cumprimentando osconvidados que chegam.

A festa? É um aniversário, eu penso. Alguns convidados vêmcom presentes embrulhados e amarados com fita. O dono dacasa recebe os seus amigos e a esposa fica com as amigas, tudomuito bem ‘ensaiadinho’, um ritual cumprido à risca.

Na vitrola, é claro que é a Bebel Gilberto cantando “So Nice”,a versão norte-americada do Samba de Verão, do Marcos Valle.Não pode haver trilha sonora melhor para uma festa assim...

Eu estaria nela atento, vívido, completo, com o coração dispa-rado...

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Atilio

Foto: Acervo Depto de Natação da Sociadade Esportiva Sanjoanense - São João da Boa Vista-SP

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Foi na minha adolescência que conheci o Atílio GalloLopes. Acabei entrando no grupo de teatro organizado emantido pela professora Vera Gomes, o TESS-Teatro do

Estudante Secundário Sanjoanense, na década de 1960. Asreuniões aconteciam no prédio que havia na rua Professor HugoSarmento e que hoje dá lugar a uma auto-escola.

Todo o mundo em redor era efervescente, a psicodelia hippieda Inglaterra, a liberdade sexual (que nunca chegou mesmo poraqui), o poder de cada um se expressar como quisesse e depoisser deportado ou preso...

E, em meio a isso tudo, estava o meu deslumbre de meninomuito recluso que ganhara o direito de sair à noite de casa ecompartilhar os movimentos do TESS e seus integrantes geniais,criativos, muito “antenados” com tudo o que se movia na Arte ena Cultura brasileiras.

Eu simplesmente adorava zanzar pelos bastidores daqueleteatro, suas fiações elétricas dependuradas no teto, os muitocartazes espalhados pelas paredes, as escadas de madeira quelevavam ao palco, os camarins... e poder observar a platéia apartir de dentro da cena.

Entre os integrantes do grupo, havia o Atílio.

Belo, antes de tudo, pele e olhos claros, uma intensa vitalida-de sempre disponível a qualquer experiência, um corpo flexívelque o fazia meio que flutuar por onde estivesse. Era um dosatores mais prezados pela professora Vera. Ela o admiravamuito, isso ficava transparente. Mas nós todos o admirávamos,porque claramente ele não fazia parte do que éramos - ele esta-va muito lá na frente como ser-humano-divindade.

Em muitas mentes, até hoje pulsa a sua criação do persona-gem Pluft, da peça infantil de Maria Clara Machado. Foi umacontecimento marcante não apenas para o TESS, mas paratoda a cidade tal o desprendimento e o talento do Atílio em setransformar no fantasminha.

Depois, o tempo passou. Deixei de participar do grupo. Comofazer teatro era a matéria dos sonhos do Atílio, ele também nãocoube mais em sua cidade natal e se foi para Londres. Sua luziluminou diversas plateias, fiquei sabendo. Luz intensa, como sóquem é ser-humano-divindade tem e sabe distribuir. Por aqui,ficou um ponto cego, sem luz.

Hoje, Atílio faz parte de uma dessas constelações que recheiao nosso céu de imaginação.

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Os fantasmasdo Theatro

Foto: Sílvia Ferrante, no interior do Theatro Municipal - São João da Boa Vista-SP

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Ali, no primeiro piso do Theatro Municipal de São Joãosobrevivem fantasmas que dão um charme especialàquela casa.

Alguns são atores e atrizes que passaram por aquele palco hámuito tempo; adoraram a experiência e a receptividade dopúblico e resolveram voltar, depois da morte. Ficam por lá,flanando, repetindo as suas falas, desta vez com muito melhorentonação (coisas que o tempo lapida).

Outros vultos são de expectadores, gente que se sentia me-lhor na plateia do que em casa, suportando um casamentodesastroso, embora útil. Estes não sobem aos pisos superiores:rodam vezes e vezes por entre as poltronas, entram e saem dasfrisas laterais projetando na rotunda cenas imaginárias dasmuitas peças teatrais a que assistiram. São amantes de teatro.

Coordenando todo esse povo vaporoso, estabelecendo horári-os para esta ou aquela aparição, está o fantasma severo de IdaVita. Quem hoje tem mais de 50 anos se lembrará dela. Sob umatênue luz pendurada no teto do final do primeiro piso, ela ven-dia balas Chita e outras guloseimas baratas que todos nóscrianças podíamos comprar.

Eu tinha muito medo dela. Ela parecia estar sempre no finalde um corredor funesto, como se fosse um local proibido de irporque o risco era muito grande. Suas dezenas de rugas trans-formavam o rosto em uma máscara que eu preferia não ver...mas não havia como evitar, pois adoçar a boca significava enca-rar a Dona Ida, como em cena iluminada pelo próprio AlfredHitchcock...

Parecia que ela não vendia muito daqueles produtos dispos-tos a sua frente, em uma mesinha exígua, com cadeiras, ondeperfilavam potes de vidro cheios de doces e pratinhos comoutras delícias. Sua irmã ficava ao seu lado, algumas vezes.Dona Ida ficou tanto tempo fazendo isso no Theatro que - éclaro - preferiu permanecer nele do que zanzar pelo cemitériopolindo diariamente o mármore do seu túmulo.

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Ela é, mesmo, a fantasma-chefe do prédio. William não con-fessa, mas todos temos a certeza de que ele a percebe quandoestá em plena faina da manutenção do seu adorado TheatroMunicipal.

William é um sujeito discreto e acha que é melhor não mexercom aquilo que está suspenso no ar... além de cortinas,bambolinas, varas de iluminação e outros elementos de cena.

Hoje, quando entramos naquela casa para ver ou ouvir oartista que está no palco, todo esse pessoal translúcido perma-nece no mais sepulcral silêncio, respeitando o cantor ou o atorem cena.

Porém, todos sabemos que eles estão ali assistindo sempre,aplaudindo em cena aberta ou ao final de um agudo bem trina-do. São gente muito boa, sabem apreciar a fina Arte.

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Muitas historias,algumas pinturas

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Saio da Av. Dona Gertrudes e desço até a rua GetúlioVargas para ver a exposição de quadros de Marcondes, naGaleria Papyrus. Quando vou cumprimentar a Lúcia,

sempre brincalhona e gentil comigo, percebo que ela está con-versando com o pintor Ronaldo Noronha.

Fico muito feliz com esse encontro, porque é rara essa opor-tunidade de falar com o artista ao vivo. Quando pergunto a elequando será a sua próxima exposição, revela que será agora, nomês de agosto.

Daí em diante, ele se mostra um ótimo contador de histórias.Entre as muitas que ouvi com extremo prazer, fico sabendo queele fez muito rádio-teatro na Rádio Tupi de São Paulo, décadasatrás. Ronaldo conta que trabalhou com muita gente famosa dorádio brasileiro como Lima Duarte, Cassiano Gabus Mendes...

E se lembra de muitas confusões com trilhas sonorasinseridas em hora errada, por seus companheiros. Só derelembrar, ele ri tudo de novo! Ronaldo revela que entregou àsua filha Fafá um punhado de scripts radiofônicos, que elautilizou em sua defesa de tese na universidade. Preciosidades, éclaro.

Depois que eu digo que essa história de rádio-novela estámesmo no sangue da família, Ronaldo confirma que seu irmão -o talentoso Fábio Noronha - foi um pioneiro neste assunto, naRádio Difusora, hoje Piratininga de minha cidade. Quem temmais de 50 anos se lembra muito bem. O pintor diz que tinhacombinado escrever com ele um livro com as muitas e saborosashistórias daquele tempo. Quem sabe um bom biógrafo nãoresgata tudo isso e edita um volume cheio de causos...

E foi assim esse encontro; a cada “arrancada” que eu davapara voltar ao trabalho, Ronaldo segurava em meu braço paracontar mais uma história. Não tenho boa memória e lamenteinão ter comigo ali o gravador que uso para entrevistas no jornalonde trabalho. Então, ficaram gravadas mais no meu espíritoessas muitas histórias que ouvi do pintor.

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Quando o Francisco, dono da Papyrus, chega à nossa conver-sa, aproveito para ver as pinturas do Marcondes:Impressiontantes! Destaco duas delas que você precisa ver: umaluta de dois homens no Oriente Médio e uma mulher catadorade entulho.

Quando volto ao convívio dos amigos, o Ronaldo está testan-do o Francisco com uma história enigmática de elevador... Apro-veito e conto uma piada de garçons, que deixa os dois amigosrindo a valer, enquanto saio sorrateiro, lamentando ter de aban-donar essa conversa tão saborosa.

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Marcio

Foto: 1971, um sábado

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No Natal de 1970, participei de uma festa no escritório doSr. Veldo Westin que marcaria de modo indelével a mi-nha vida. Foi a partir dali que me apaixonei pelo Natal e

suas circunstâncias. Zeza e eu éramos namorados recentes, elatrabalhava naquele escritório.

Ali também conheci amigos do tipo “para sempre”, com osquais convivi e convivo até hoje. Naquela festa, o Márcio tinha15 anos. A nossa amizade nasceu instantânea e passamos afrequentar as casas um do outro: eu na Rua Cons. AntonioPrado, ele na Rua Cezário Travassos.

Os LPs de Ray Conniff e os de Johnny Mathis fizeram a trilhasonora do nosso convívio. As serenatas pelas ruas de São Joãotambém proporcionaram muita trilha sonora. Era muito bomficar na rua depois da meia-noite pondo canções em vitrolaspara as namoradas ouvirem.

No primeiro semestre de 1971, essa amizade já estava bastan-te fortalecida, nós tínhamos muito em comum como o gostomusical, por exemplo. Eu trabalhava na extinta Comissão Muni-cipal de Esportes (praça Armando Salles) e o Márcio no escritó-rio (rua Marechal Deodoro).

Eu acabara de ganhar meu primeiro carro (um Dauphine) demeu pai e o Márcio me ajudou a treinar a baliza para o momen-to de “tirar a carta” de motorista: nós íamos até um espaço quehavia próximo à rua do cemitério e ele ficava incansavelmenteme ajudando.

Por circunstâncias de minha formação, sempre fui muitocaseiro, confinado em meu quarto, não tinha predileções extra-vagantes além dos discos; a vida do Márcio pontuava de novida-des a minha vidinha boba. Sem ele saber, pautava o meu dia eeu ficava muito feliz com tudo aquilo. Quantos sábados eleapareceu de manhã em casa, me acordando e colorindo tudocom a sua intensa alegria e vitalidade.

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O desafio que um impunha ao outro, era aparecer com umdisco novo do Ray Conniff (eu) ou do Johnny Mathis (ele) paraa surpresa do outro. Sem o menor senso crítico musical, nós nosdeleitávamos com aquelas canções e vozes. Muito auditivamen-te marcante. Destaco a canção “Come Saturday Morning” coma principal lembrança auditiva, que detém toda a significação denossa amizade.

Daí, como acontece mesmo, a Vida e o tempo nos afastaramum do outro a partir dos anos seguintes da década de 1970.Anos depois, o Márcio casou, teve filhos, foi trabalhar na FAE.Eu me tornei radialista, redator de jornal, professor de LínguaPortuguesa.

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5757575757Assim, essa avalanche que se chama Vida nos levou por

direções diversas, mesmo morando na mesma cidade. E ficoudifícil uma reaproximação com o Márcio e aquele universo quetínhamos criado juntos. Cada um na sua. Distantes, mas com aamizade viva, é claro. Por telefone vivíamos nos prometendouma reunião musical... nunca aconteceu, na verdade.

Hoje, logo mais às 16h30, vou até o velório para o sepulta-mento do Márcio. Uma doença fatal o levou desta vida parauma outra melhor (como queremos acreditar). Ficam sua espo-sa, seus filhos, seus irmãos, seu pai... Ele vai ao encontro damãe, que padeceu do mesmo mal e já havia sido levada anosantes.

Diante dessa realidade, eu percebo como a minha vida temsido pequena, circunscrita em poucos eventos e ações. Em mim,toda a atividade acontece no nível do mental, do pensamento.

Ouvir a orquestra de Ray Conniff ou a voz de Johnny Mathisserá trazer de volta as melhores lembranças de minha vidaadolescente. Foi muito bom ter conhecido o Márcio. Foi bom,mesmo.

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Em nossamemoria auditiva

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Este terceiro milênio é o Paraíso dos saudosistas. A internetinstaurou, definitivamente, o Nirvana dos nostálgicos aopermitir que um passado musical esteja disponível ao

toque de um dedo.

Antes relegada a um triste esquecimento, essa gente bacanapode ouvir novamente todas as músicas que foram trilha sonorade momentos importantes de suas vidas. Basta desejar!

Todas as sonoridades, de todas as décadas do século passado,estão de volta: de uma orquestra cujo maestro se chama PercyFaith ao sanjoanense Almir Ribeiro, cujos discos eram umararidade e agora podem ser comprados na rede mundial.

Sim, estou defendendo os saudosistas porque – naturalmente– faço parte do time. Reviro a internet em busca de CDs daorquestra de Ray Conniff e tenho encontrado muita coisa boa.Durante décadas, amarguei a vontade não satisfeita de ouvirtudo o que o Maestro havia gravado.

Uma das saídas era comprar discos importados, quando issoera possível. Depois, comecei a explorar os amigos que seguiamviagem aos Estados Unidos: “Virgin” é o nome de uma loja emNova Iorque, onde se encontra de tudo do universo da música.

Porém, antes de esse empenho ser necessário, quem supria ogosto musical do sanjoanense era aquela loja de discos quehavia no início da Avenida Dona Gertrudes, a Anfe. Misturandopeças automotivas com discos 78 RPM, a Anfe deixava o clientesatisfeito e era única na cidade e região.

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Minha via sacra pela loja começou nos anos 1960, quandopara lá eu corria em busca dos compactos simples de ChicoBuarque cantando “A Banda” ou de Caetano Veloso defenden-do a sua “Alegria, Alegria”. Por detrás do balcão, havia sempre osorriso da Ditinha Maltempi, que conhecia todas as novidades epodia indicar com segurança quando o disco era bom.

Quantos LPs de Ray Conniff eu comprei ali! Na década se-guinte, me tornei freqüentador assíduo da loja, sempre ansiosopor novidades. Ainda tenho aqueles discos todos, um poucoempoeirados, detendo uma qualidade sonora que – dizem – éinigualável.

Em 1972, quando o Ray Connif lançou o LP Love Theme fromGodfather, eu trabalhava como office-boy no Banco ComercialBrasul, que ficava ali na esquina da Catedral de São João Batis-ta. Não existem mais office-boys, não é? Tampouco, aqueleBanco. Mas naquela função eu rodava a cidade sobre umabicicleta, entregando correspondência e cantarolando as can-ções daquele disco.

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6161616161Sim, a trilha sonora da minha década de 1970 foi orquestrada

pelo Maestro, no tempo em que o assobio substituía os MP3players!

Hoje, a Anfe Som passou para a História. No entanto, en-quanto existiu foi persistente: o Sr. Miguel Jorge Anfe (o “seu”Michel) a inaugurou no ano de 1949 misturando confecções,instrumentos musicais e escapamentos de automóveis numaloja que abriu na Praça Governador Armando Salles.

Somente em 1960, é que a loja foi para a Av. Dona Gertrudes.E ali ficou até o ano de 2005, causando boas impressões emnossa memória auditiva.

Disco de massa, LP de vinil, fita cassete, CD de plástico echip de silício... Essa revolução do suporte musical vem sendoacompanhada de perto pelos amantes sanjoanenses da músicamundial. O que virá pela frente? A resposta ainda é um mistériotecnológico que, com certeza, vai surpreender.

O que não muda – graças aos céus! – é o talento humanocapaz de criar milhares de canções diversas a partir de apenassete notas musicais.

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Crianças reinandoem nossas vidas

Foto: Gerinaldo Nascimento Silva - Feirinha de Artesanato em Poços de Caldas-MG

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Aquela mulher vai chegando devagar no artista que seexibe na feirinha dominical de Poços de Caldas. Ela nãosabe muito bem se ‘aquilo’ a sua frente é mesmo uma

estátua de barro ou um ator com grande controle sobre seusmovimentos: o rapaz está ali parado faz tempo, inteiro cobertopor lama, que o sol já transformou em placas que vão se soltarde sua pele a qualquer momento...

Antes de confrontar a verdade, olhando nos olhos da estátua,ela me pede algumas moedas para depositar, em reverência, nochapéu do artista. A senhora está completamente mesmerizadapela performance teatral - a criança que ela guarda em seucoração está perplexa com aquela Arte ao vivo, ao ar livre, paraquem a quiser ver.

Logo após jogar as moedas no chapéu, a mulher encara oartista e fica bebendo aquela surpresa em forma de “vamosbrincar de estátua?”. Ele, sensível, percebe o que está fazendopor ela e não se nega: faz uns gestos que parecem uma dançadesconexa, sem torcer um milímetro sua musculatura facial.Esse seu esforço fortalece a sua condição de imagem de barro edesperta na admiradora anônima imagens de bonecas mecâni-cas, que talvez já a tenham encantado anteriormente.

Quando ela se percebe objeto da dança do rapaz, do seucarinho e da sua atenção, os seus olhos se enchem de lágrimas.Ela voltou a ser criança. Por inteiro, em cada fremor do seucorpo de 84 anos, vividos duramente. Infância mesmo que ébom, ela não teve. Seu corpo magrinho, naquela época de sermenina, serviu a muitas famílias mineiras e sanjoanenses comoempregada doméstica desde os 7 anos de idade.

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Então, ela não se conteve e se aproximou do seu príncipe. Emperfeita sintonia com o que está acontecendo naquele momen-to, o artista de lama se deixa aconchegar e se move num volteioque a encaixa sob o seu braço direito.

Alguns visitantes da feirinha também percebem esse momen-to mágico para ambos e param para ver aquela cena tão singu-lar - ao invés de ali estar uma criança real, que naturalmente seencantaria com as supresas do mundo, está esta mulher quejamais abandonou a criança que desejou ser.

Ela posa para algumas fotos. Sua expressão facial misturamuitos sentimentos bons.

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6565656565Quando o encanto termina, nós não nos cansamos de aplau-

dir e agradecer o artista. Em estado de graça, a mulher seguepelos meandros da feirinha poçoscaldense com um brilho novonos olhos.

Os muitos objetos que ali estão à venda não se comparam aovalor da lição por ela oferecida: nunca se furtar a expor essacriança que vive e reina em nossas vidas. E que, em muitasvezes, fica trancafiada solitária, brincando com as memórias dopassado, sem a menor chance de sair, de respirar novas experi-ências, de conhecer gente nova.

Ou estátuas novas.

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Natal, serenatase outras providencias

Década de 1960: uma das formações do Coral do Instituto de Educação. Violões - Renato dos Santos Jr,Heloisa Aguiar e Terezinha Prímola. Regendo o grupo está aProfa. Glorinha Aguiar

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Logo que chegava dezembro, era assim: a professoraGlorinha Aguiar contratava um caminhão e iniciava prepa-rar aquelas serenatas. No final da década de 1960, ainda

tínhamos o coração à mostra e gostávamos de cantar. Ora, paraobter verba de formatura para o Curso Normal do Instituto deEducação (que formava normalistas, talvez você não saiba o queé isso), a solução era ‘vender’ serenatas!

Com a lista de canções e os muitos endereços nas mãos, e ocaminhão estacionado em frente àquela casa maravilhosa daAv. Oscar Pirajá Martins, onde a professora morava, começava afaina após a meia-noite dos sábados de dezembro: subir para acarroceria o seu piano, o violino do Sr. Emílio Casline (um luxo!),os instrumentos da percussão, o Coral que a professoraGlorinha coordenava no Instituto de Educação e nós, os adoles-centes que gostavam de cantar. Entre eles o Luís Carlos Pistellicom o seu violão.

Esquadrinhávamos a cidade na carroceria daquele veículomusical. A melhor parte era que as pessoas se esqueciam de tercomprado a serenata e se emocionavam às lágrimas quandocomeçávamos a entoar a primeira canção... Noss grupo deseresteiros chegava sempre ‘de mansinho’ nas casas e o únicosom que quebrava o silêncio era mesmo o da primeira música,que fazia abrir janelas de toda a vizinhança, mostrando gente depijamas de muitas cores saindo no sereno da noite, abraçadosuns aos outros.

Não éramos o Papai Noel descendo pela chaminé. Nós surgí-amos luminosos na área da frente de sua casa ou por entre asrosas do seu jardim, entre partituras e harmonias vocais, can-tando aquelas canções de Natal que a sua criança interior sabede cor.

Que sorte nós tivemos! Conseguimos aproveitar o finalzinhodos melhores tempos gentis. Hoje, eu não sei mais o que se fariapara emocionar as pessoas nessa época de festa. Quem sabeaparecer com um grande, caro e brilhante presente, cantarolan-do o seu jingle publicitário que afirma ser de última geração eque tem garantia de cinco anos contra defeitos...

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Logo mais, estaremos vivendo o último ano da primeiradécada desse novo século. Às vezes, eu penso que é um gestonatural avançar em direção ao futuro, procurando manter essaslembranças bem acorrentadas no passado. Porém, em outrasvezes, eu duvido da sanidade dessa decisão. Vamos nos dissol-vendo, nos dividindo e nos espalhando pelo correr dos anos; echega este momento em que não sei mais quem sou.

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6969696969Tenho a impressão de que o espírito de Natal é aquele senti-

mento que chega somente no final de um ano duro, espinhoso,para renovar em nós todas as esperanças que são paulatinamen-te destruídas no restante dos meses. Talvez, o espírito de Natalesteja naquele espaço impensado entre o conteúdo da vitrine eo nosso coração infantil. Você sabe onde é.

No entanto, somos habilidosos em substituir esse sentimentoprecioso pelas preocupações com os assados que estarão sobre amesa e com a lista de presentes a providenciar. Nem imagina-mos que ainda possa haver milagres nesses nossos dias. E seráuma surpresa se, de repente, ouvirmos música vinda de fora dacasa, quem sabe na área da frente, ou por entre as rosas donosso jardim.

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Memoria

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Novas Crônicas

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Homem, de aproximadamente 30 anos, de cor branca, comcabelos pretos e 1,75m deu entrada no Hospital em outu-bro do ano passado. Ninguém sabe que ele é. Entre médi-

cos e enfermeiras é conhecido como ‘paciente 808’. Foi submeti-do a um sério tratamento, em virtude de seu gravíssimo estadode saúde. No braço direito, ele tem uma tatuagem onde se lê‘Nicolas e Micael: papai ama vocês’. No braço esquerdo, há odesenho de um peixe e um polvo. Sofre de amnésia.”

A notícia do jornal pede encarecidamente a quem o reconhe-ça pela foto, que venha com informações. Ele mesmo não sabequem é...

Quando despertar do tratamento e retomar suas funções degente, o homem buscará identificações e não encontrarásintonia com o que lhe vai em redor. A cor da parede, o formatodo quatro, os cheiros, os ruídos, a luz que entra pela persiana.

Depois, virão as pessoas. A enfermeira o cumprimenta comoa um amigo antigo, o rapaz das refeições no carrinho, o médico(tão jovem, ainda!) que agora pode perguntar com algumagarantia de obter respostas.

A todos, o homem do quarto 808 desejaria fazer as mesmasperguntas. Alguma tragédia pessoal roubou dele a sua linha dotempo, embaralhando o passado confinando-o num ‘presente’sem forma nem conteúdo.

Passa pela porta do seu quarto a acompanhante do pacientedo quarto vizinho. Ela sabe da sua perda de memória e lamentanão ter ocorrido o mesmo com ela. Obrigada a conviver diaria-mente com tantas amargas lembranças que esmagam a suapequena alma, ela lança sobre o paciente 808 um olhar de inve-ja. Ele não percebe.

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Ah, a falta que oJaibas faz

1972: amigos do colegial no I.E. Cel. Cristiano Osório de Oliveira. Jaibas está em destaque na foto

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7373737373Devo muito ao Jaibas e não vou mesmo conseguir pagar ou

retribuir o tanto que ele fez de bom pela minha alegria e meusenso de liberdade. Por isso, dedico a minha década de 1970 aele. Foi exatamente no dia 26 de junho de 1976 que conheci a suapequena quitinete em plena Avenida São João, em São Paulo.

Uma revelação!O edifício era muito alto e nós ficávamos no quarto andar,

apartamento 404, esquina com a Avenida Duque de Caxias. Alido alto, a gente via tudo acontecer lá em baixo: milhares deautomóveis diários, carros de bombeiros na urgência, ônibussuperlotados, paulistanos transitando...

O lugar do Jaibas era bem pequeno, com uma mini-cozinhaapertada, em cujo mini-corredor só cabia uma pessoa passando.O restante era dividido ao meio: aqui uma sala, ali o quarto comjanela pra avenida. Era difícil dormir com aquele barulho cons-tante, mas acordar era garantia de festa, de novidade, de totalliberdade de expressão. Não tem preço!

A primeira canção que ouvi naquele apartamento de descober-tas veio de um disco compacto simples, de vinil, com o EltonJohn dividindo o vocal com a Kiki Dee em “Dont go breaking myheart”. Depois, as emissoras de rádio me cantariam o resto. ARecord FM era o máximo!

A explosão musical chamada Discoteque estava em seu auge(e que auge!) e foi o Jaibas quem me fez entrar pela porta defrente naquela alegria intensa e desmesurada que pegava (e aindapega) as pessoas pelo ouvido.

Jaibas já fazia parte de minha vida desde o colegial, quandofomos colegas de classe aqui em São João. Ele não sabia, mas jáme ensinava naquela época o que é ser uma pessoa de bem coma vida, mesmo que a vida esteja de mal de gente.

Portanto, eu era um caipira do interior do Estado, sem qual-quer vivência em viagens e em cidades grandes. O impacto queeu recebi foi além do que conseguia assimilar e é isso, justamen-te, o que faz a fantasia surgir nestes tempos depois.

Foram muitas as viagens até seu pequeno apartamento: quan-do ele vinha para São João, eu ia para São Paulo. Mas, nas vezesem que estávamos juntos naquela terra maluca... como foi bom!Parece que ele conhecia todo mundo, em todos os lugares, distri-buindo seu sorriso imediato e sua amizade duradoura.

O seu sonho de tornar-se um ator teatral acabou em nada,mas a cidade soube recompensá-lo com outras realizações. Jaibasse divertia todas as noites, indo a boates, cinemas, shows, 0tea-tros, encontrando amigos, fazendo sexo sem medidas. Ele deci-frou a capital e fez dela uma aliada.

Mas, malvada como é, a criatura devorou o criador. Que faltao Jaibas faz.

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Biografia

Consciência

Não. Deus não me presenteou com a santa ignorância. Euestou aqui, confinado na consciência, percebendo a vida por esseviés muito particular, que é capaz de matar.

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Um sonho: manter a minha motivação na vida, mas ela já estáficando com as cores um pouco esmaecidas.

Criar: um Centro de Busca da Felicidade.Um (a) grande artista: Michelangelo Buonarotti.Um filme: The Matrix, Ao Mestre com Carinho.Uma grande atriz: aqui Fernanda Montenegro; lá Meryl

Streep.Um grande ator: aqui Paulo Autran; lá Sir Anthony Hopkins.Um lugar: o interior do Inconsciente.Uma imagem: um olhar que recebi em meio a muita gente,

muita movimentação, em plena década de 1990, e que criouimediatamente uma conexão que dura até hoje e que será parasempre.

Uma saudade: meu pai.Um sabor: o primeiro strogonoff, comido em 1969 na residên-

cia do Dr. Raul Andrade, junto com os colegas do grupo teatralTESS-Teatro do Estudante Secundário Sanjoanense, que eradirigido pela Profa. Vera Gomes.

Uma viagem: as idas da família a Santos na década de 1960.Um momento especial: entregando troféus de Melhores aos

meus alunos de teatro (Externato Santo Agostinho) no CICSanto André superlotado de gente, em 1977.

Um (a) grande amigo (a): nós somos os nossos melhores (epiores) amigos.

O pensamento que te guia: “Só pode falar de dor quem estásangrando”, de Geraldo Vandré.

Os primeiros exemplos: gostaria de ter nascido músico; talvezeu me arriscasse a ser um maestro, como o foi Ray Conniff.

Trabalho (s) que mais te deu prazer em realizar e por quê: amontagem de “Enquanto Houver Espetáculo”, com poemas deCecília Meireles. Como ele, meu grupo de teatro amador CenaIV abriu a 1ª Semana Guiomar Novaes, um enorme sucesso,devastador. De todos nós, Suia Legaspe e Aída Cassiano sãodestaques até hoje na área artística da capital do Estado.

O (a) maior mestre (a) e por quê: vou trocando de mestrecontinuadamente; em cada área de minha atuação elejo um novoe o respeito profundamente, ele me ensina e eu me torno eterna-mente grato pelas lições.

Uma grande emoção: já tive algumas, mas elas castigaram omeu espírito por sua intensidade; daí passei a não querer maissentir grandes emoções. No entanto, algumas composiçõesmusicais driblam essa vigilância em me arrancam lágrimas depura e intensa emoção a qualquer momento do dia, em qualquerlugar. A sensação que tenho nestes momentos é de que a Vidapode valer a pena.

Um medo: a solidão pode ser boa e pode ser má! Tenho medoda solidão que castiga.

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Novas Crônicas

7777777777Seu trabalho como fotógrafo: já não tenho disponibilidade

vital para fotografar como fazia antes. Era muito bom e gratifi-cante. Lembro-me de uma série em P/B realizada na FazendaCachoeira, década de 1970, com Zeza Freitas. Muita gente aconsiderou de excelente qualidade. Mas, as fotos e os negativosse perderam.

E o teatro, acabou para você? Sim, o teatro acabou para mim;às vezes penso que nunca gostei muito de teatro; é trabalhosofazer, é difícil administrar o grupo da montagem; acho que este éum trabalho de escravo, de onde se sai cansado, com as energiasgastas e sem muitas compensações. Não acho que o teatro valhaa pena. E quando vou assistir a montagens teatrais, fico muitotenso com medo dos atores esquecerem as falas, das luzes não seacenderem no momento exato, da cortina não se fechar no final.Um dos resultados da minha incursão pelo teatro é a extintaOficina de Arte, uma escola de iniciação teatral que fez muitagente gostar de teatro, promoveu diversas apresentações empraça pública e colaborou para o descobrimento de talentossanjoanenses como Cristina Colla e Marli Silva. Outro produto éo livro "Como Organizar Teatro em Sala de Aula", de ediçãoprópria.

A passagem pelo rádio: tornei-me radialista porque fui morarem Mogi das Cruzes e precisava muito arranjar trabalho; entãomenti que já era locutor e ganhei de cara um programa diário. Foiuma luta para adestrar a minha voz, a entonação, aprender a

respirar... Paguei consulta para uma fonoaudióloga (SelmaBertolli) e ela me deu dicas preciosas. Quando voltei a São Joãotrabalhei por anos na Rádio Mirante FM; tinha os meus fãs,gostei demais do trabalho, recebia todos os discos de sucesso,conseguia “lançar” músicas aqui que estavam no fundo de muitosLPs e que outros DJs não se arriscavam.

Seu trabalho como escritor: gosto muito de escrever; às vezespenso que nasci para isso. Tenho percebido que desenvolvi umestilo próprio, que gosto muito, fruto de anos de suor sobre umpapel em branco. Mas tenho auto-crítica muito severa, me enver-gonho de textos que acabei de escrever; muitos deles eu escondodo público. Não é bom um texto que extrai de imediato umaemoção do leitor. Penso que para se escrever bem é precisomuita concentração, foco; e que para se escrever muito bem épreciso entrar em transe!

Você ainda compõe? Não componho mais canções. Sempreme digo que quando aposentar vou me tornar um músico...promessas, promessas.

Suas andanças pelo cinema: não ando nem entrando em cine-ma. Vejo filmes pela TV e, mais recentemente, arrisquei unsfilminhos com a câmera fotográfica, mas destes não gostei mui-to. O período maravilhoso com o Sr. Dilo Gianelli foi o bastante.Passou e deixou ótimas lembranças. O Sr. Dilo era genial.

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Sua vida de jornalista: é muito ativa. Escrevo muito, todos osdias, as pessoas me lêem e eu fico muito inseguro com isso. Soumuito grato por poder escrever como se fosse um jornalista –formação acadêmica abortada na adolescência por falta de recur-sos financeiros. Já passei por quase todos os jornais da cidade,seja como colaborador ou funcionário. O problema é que escrevocom intensidade e critério literário, isso desgasta, dói. Escreverdói.

O que falta para você realizar? Falta tudo! Quero escrever ummusical de sucesso, um livro best-seller, uma canção eterna,quero um programa do tipo talk-show na TV, um programa derádio nas madrugadas, quero fazer uma novela de rádio comoaquelas antigas... Quando terei tempo e disponibilidade paraisso?

Desafios? Sim: manter-me vivo, manter-me emocionalmentesão, manter-me de bom humor, manter-me interessado na vida.

Uma mensagem para São João: melhor que não! Se o fizesse,seria um grito que só interessa ao ouvido de quem grita. A cidadejá trata bem essas áreas do meu interesse. A cidade me recebebem, me trata bem, me tolera muito bem, obrigado

Foi a cantora, escritora e atriz Sílvia Ferrante quem me envioueste questionário, para que eu o respondesse e, quem sabe, fizesseparte de um livro com algumas pessoas ligadas à Arte e à Culturaem São João da Boa Vista-SP.

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Consciência

Não. Deus não me presenteou com a santa ignorância. Euestou aqui, confinado na consciência, percebendo a vida por esseviés muito particular, que é capaz de matar.