novas ideias filosoficas
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EDGAR WILLEMS
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Edições Pro-Musica
BIENNE (SUíÇA)
29, Rue Neuve
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Novas ideias ... , a afirmação é talvez ousada e mesmo
incorrecta, pois não se disse já tudo sobre as leis da vida
e sobre as da música? Mas, na primavera, após a letargia
hibernal, quando as flores desabrocham de novo, não dize-
mos nós: «eis as novas flores
»?
A inovação pode pois
residir numa relação nova que existe entre uma ideia e
a época, ou ainda entre uma ideia e a sua aplicação. Não
vamos portanto demorar-nos na significação limitada da
palavra; as palavras são sempre insuficientes quando se
trata de falar sobre a vida. E é sobretudo acerca da vida
musical que desejo falar aqui.
Existe, com efeito, vida e forma, qualidade e quanti-
dade, arte e material sonoro, vida rítmica que é a causa
e formas rítmicas que são os seus efeitos, espírito técnico
e formas técnicas. Estamos sempre em presença de dois
elementos complementares: um, a forma, sempre visível,
que os nossos sentidos apreendem fàcilmente, da qual
todos se ocupam muito e têm grande cuidado em desen-
volver nos alunos; o outro elemento, a vida, o espírito,
tão frequentemente ignorados e incompreendidos.
Proponho-me passar em revista, infelizmente de uma
forma demasiadamente condensada, alguns aspectos da
vida, os quais são idênticos para a música. Pretendo falar
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da «unidade» da vida, da sua «dualidade» e do «triplo
aspecto» da natureza humana.
Da «unidade muito haveria a dizer; o assunto é ao
mesmo tempo muito simples e muito complexo; apenas
diremos algumas palavras a seu respeito: a unidade é o
elemento principal para o qual se deve encaminhar a obra
de arte. Na vida e na natureza, uma flor, um animal, um
ser humano representam sempre uma unidade intrínseca.
Igualmente, a obra de arte comporta ela mesma esta uni-
dade, unidade não apenas de técnica, de forma exterior,
mas unidade de vida interior que nem sempre é fácil de
descobrir, e ainda unidade entre as duas.
Nos grandes criadores esta unidade existe já antes da
criação da obra. Beethoven diz de si próprio que, antes
de escrever uma composição, a concebia já no seu con-
junto. Mozart diz que, antes de escrever uma obra, ele a
realizava primeiro mentalmente. Bach, neste ponto, não
era inferior a Mozart ou a Beethoven. Spitta, que estudou
de perto este assunto, diz-nos que Bach realizava de uma
só vez o conjunto da obra e que nunca lhe acontecia supri-
mir ou interverter um elemento, o que Beethoven fazia
com frequência. Acrescentemos em favor de Beethoven
que, se Bach se contentava na maioria das vezes com for-
mas conhecidas e estabelecidas, Beethoven, esse, estava
sempre à procura de formas novas. Determinar esta uni- .
dade é coisa tão impossível como determinar a vida. Mas,
se não podemos determinar a natureza profunda desta
unidade viva, podemos muitas vezes pressenti-Ia, senti-Ia,
podemos estudar o seu carácter, os seus diferentes aspec-
tos. Em muitos casos ela é superficial e não diz respeito
senão à forma. Esta unidade exterior constata-se
fàcil
mente no pintor porque a sua profissão compreende um
elemento estável e material: a cor; ao passo que o som,
elemento ao mesmo tempo mais imaterial e sujeito à fuga
do tempo, escapa ao controlo imediato dos nossos senti-
dos. Todavia o músico profissional e o compositor sabem
reconhecer esta unidade formal, e, embora ela participe
em grande parte na unidade espiritual da obra, não é
contudo senão o seu revestimento.
Se analisarmos esta unidade, estaremos primeiro que
tudo em presença de «dois pólos opostos e complemen-
tares»: a matéria sonora e o espírito artístico. Não é ~ -
toda a manifestação cósmica ou humana uma interferência
de duas radiações de energia? Não estamos nós sempre
em presença de uma força e de um elemento material
(energia condensada)? Por outro lado, cada um destes
dois pólos escapa em parte às nossas investigações, porque
nos levam ambos para o desconhecido, quer das leis da
matéria, quer das do espírito. O ser humano é influen-
ciado pelos dois pólos; visto de um outro ângulo, pode-
mos dizer que ele é a resultante da reacção mútua destes
dois pólos, o que representarei por meio do seguinte
esquema:
Desconhecido das leis
materiais
SER HUMANO
Desconhecido das leis
espirituais
_ _ _ _ _ _ _ _ ~ _ A ~
POLO ESPíRITO
OLO MATÉRIA
MúSICA
Desconhecido das leis
artísticas
Desconhecido das leis
do som
Admitimos hipoteticamente que o desconhecido das
leis materiais e o das leis espirituais se reúnem num
mesmo todo: o Cosmos, o Divino dos deístas ou o Grande
Todo dos panteístas.
Ilustremos este esquema com uma definição da mú-
sica. Escolherei uma das mais simples e das mais con-
cisas: a música é a arte dos sons. E aqui estão os dois r
pólos claramente indicados: a arte, elemento espiritual,
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e o som, elemento materiaL Se aprofundarmos estes dois
termos, encontrar-nos-ernos diante dos enigmas da vida
espiritual e material, pois nem o espírito artístico nem a
natureza do som nos revelaram já todos os seus segredos.
Com efeito: «a arte» é a expressão do Belo. - Expres-
são é vida e a vida leva-nos para o desconhecido. - O Belo
é um aspecto do Todo, do Divino, da Vida, portanto do
desconhecido.
O «som» é uma vibração da matéria. - Vibração é
força, ou energia, ou vida. - A matéria apresenta-se-nos
em última análise sob o aspecto de
moléculas,
e em seguida
de átomos e de partículas; eis-nos uma vez mais no des-
conhecido.
Entre o pólo da matéria e o do espírito situa-se a vida
humana. E esta vida, nós consideramo-Ia sob um «triplo
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É indiscutível que existe, em todo o artista, uma uni-
dade de vida profunda que pode escapar-nos, mas que
engloba ao mesmo tempo as suas qualidades humanas e
a sua produção artística.
Esta unidade, bem entendido, pode exprimir-se por
contraste e concebe-se sem dificuldade um artista cuja
obra exprima um ideal tanto mais elevado que ele não
consiga
realizá-lo
na sua vida diária, mas estas duas mani-
festações, à primeira vista contraditórias, partem todavia
de um fundo comum.
Podemos portanto admitir a possibilidade de encon-
trar raízes comuns aos principais elementos da natureza
humana e da sua expressão através da música. O conheci-
merito profundo dos elementos fundamentais da música
tomados na sua essência vital, permitirá que cornpreen-
damos melhor a música ocidental, a nossa música, e que
comunguemos em conhecimento de causa com as produ-
ções musicais orientais ou dos negros.
Se partimos de bases humanas, a música de todas as
raças e de todas as épocas
ser-nos-á
acessível. Estaremos
também em estado de acompanhar as criações dos nossos
contemporâneos que frequentemente ultrapassam a su;
época; pois a nossa sensibilidade desenvolvida liberta-
e o nosso conhecimento aprofundado das leis naturais
permitir-nos-ão distinguir o falso do verdadeiro, as com-
binações intelectuais das que são ditadas pelas leis da vida.
O conhecimento e a sensibilidade devem agir livre-
.me~te e não entravados por opiniões preconcebidas, quer
d~ epoca quer de raça.
s
relações que estabeleci podem
ajudar-nos a atingir esta finalidade. .
Outrora julguei encontrar, através do estudo dos sis-
temas filosóficos, a solução dos problemas musicais. Infe-
lizmente os filósofos partem com demasiada frequência
ou de considerações metafísicas ou de considerações inte-
lectuais. Ora, na medida em que somos músicos, devemos
I
t
poder partir da própria musica, compreendida como uma
manifestação directa do ser humano. Todo o elemento
musical, qualquer que seja, está em relação directa com
o elemento humano que lhe deu génese.
necessário também poder colocar as origens da
música no ser humano a uma profundidade t que, par-
tindo delas, possamos acompanhar a sua evolução, a sua
expressão em todos os ramos da vida e, por consequência,
em todas as actividades artísticas.
Para antecipar certas
objecções,
que tendam a dife-
renciar as várias manifestações artísticas, nós diremos
que, com efeito, as diferentes artes comportam elementos
de expressão diferentes, na medida em que estes elemen-
tos são tributários de um sentido diferente (tacto, vista,
ouvido), mas estes elementos não são mais do que os
«meios» de expressão pelos quais os «impulsos vitais» se
exteriorizam. Estes impulsos vitais primeiros (físicos, afec-
tivos, mentais ou intuitivos) são comuns a todas as artes,
embora, evidentemente, em graus diferentes.
Durante longos anos estes problemas têm sido o
objecto dos meus estudos. Para os resolver, abstive-me
da especialização. Procurei descobrir bases humanas sufi-
cientemente amplas para poderem servir de ponto de par-
tida às actividades humanas superiores as mais diversas,
tanto clássicas como modernas, tanto conservadoras como
evolucionistas. Tendo praticado a maioria das artes, estou
longe de ser um génio em qualquer delas, mas tive a feli-
cidade de atingir certas origens profundas, e estou hoje
em estado de demonstrar como fontes comuns alimentam
as diferentes actividades humanas, e como raízes comuns
lhes dão a força de crescer e frutificar.
Para determinar com precisão estes elementos, toma-
dos no seu ponto de partida, vejo-me forçado a recorrer
a abstracções matemáticas ou geométricas.
Desejo falar dos números e das dimensões.
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Os números podem ser considerados sob três aspectos:
1) «cardinal» (um, dois, três ... ); 2) «ordinal» (pri-
meiro, segundo, terceiro ... ); 3) «filosófico» (unidade, dua-
lida de, ternário ... ); as dimensões podem também ser enca-
radas sob este triplo aspecto. Podem representar-se as
três dimensões por meio da linha, da superfície e do
volume. Segundo o aspecto «cardinal», a superfície tem
mais valor do que a linha, e o volume mais valor do que
a superfície. Segundo o aspecto «ordinal», a linha, sendo
o elemento primeiro, tem a prioridade, dado que sem ela
os outros não podem existir. Para falar do aspecto «filo-
sófico» das dimensões é necessário recorrer a uma signi-
ficação mais profunda, pois trata-se de três reinos de vida
e de consciência (uni-dimensional, bi-dimensional, tri-di-
mensional, etc.), que terão entre si as mesmas relações
que os elementos geométricos; mas aqui a linha é consi-
derada como uma direcção, um movimento, sobre o qual
não podemos pousar nada; a superfície, pelo contrário,
permite-nos espalhar uma cor; o cubo terá, ainda mais,
um conteúdo.
Acharemos estas três dimensões de vida representadas
nos mundos vegetal, animal e humano.
Estabeleceremos portanto o seguinte esquema:
um
linha
vida física
vida rítmica
mundo vegetal
dois
superfície
vida afectiva
vida melódica
mundo animal
três
volume
vida intelectual
vida harmónica
mundo humano
Este esquema permite-nos estabelecer relações que,
à primeira vista, poderiam ser consideradas inverosímeis
devido à falta aparente de laços entre os elementos da
musica e estas abstracções matemáticas ou geométricas;
poder-se-ia duvidar, do mesmo modo, do seu valor no
ponto de vista prático.
Ora, nós julgamos poder dizer, pelo contrário, que
este enunciado esquelético, bem compreendido, pode aju-
dar grandemente a resolver os problemas que se apresen-
tam na actividade artística. Trata-se sobretudo de ver em
profundidade, para lá das formas que aparecem imediata-
mente aos sentidos. Tal como sob vestuários diversos,
sob os aspectos infinitamente variados dos indivíduos, se
esconde a mesma estrutura invisível, assim em arte, leis
simples e profundas se dissimulam aos nossos olhos.
Se retomarmos o exemplo dos três números, aplica-
dos à música, compreenderemos que, se por um lado o
«um» contém em potência, o «dois», por outro lado o
«ritmo», elemento primeiro em música, conterá em potên-
cia a melodia, elemento segundo, e dar-lhe-á génese; por
sua vez a melodia conterá em potência a «harmonia», ele-
mento terceiro.
Sem pretender provar aqui esta afirmação, limitar-
-nos-ernos a chamar a atenção para o facto de que o ritmo
sonoro, pelos seus elementos de duração e de intensidade,
provoca flutuações na altura do som, e introduz-nos assim
no campo melódico; do mesmo modo, uma melodia bem
equilibrada contém já na sua estrutura os acordes desti-
nados a dar-lhe suporte harmónico.
Se encararmos o problema sob outro ângulo estare-
mos em presença de outras relações, igualmente tão ver-
dadeiras e tão profundas apesar da sua aparente sim-
plicidade: o «dois» contém o «um», e o «três» contém
simultâneamente o «dois» e o «um»; do mesmo modo,
transpondo estas relações para a música, diremos que a
melodia contém necessàriamente o ritmo e que a harmo-
nia contém a melodia e o ritmo.
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Conquanto não nos possamos alongar sobre cada um
destes pontos para demonstrar a sua evidência, esperamos
entretanto que se reconheça que um enunciado tão simples
tem a vantagem de nos fazer penetrar na natureza íntima
dos elementos da arte e da vida, e que ele pode servir de
ponto de referência, tanto no aspecto artístico, como peda-
gógico, psicológico ou filosófico. Parece-nos também que
as divergências de opiniões, no domínio artístico e parti-
cularmente musical, são devidas na sua maioria à igno-
rância destes princípios elementares.
Eis outra consideração fundamental: não há solução
de continuidade entre os diferentes domínios, portanto
eles não devem ser considerados como elementos separados
uns dos outros; a sua interpenetração impede qualquer
demarcação exacta: 1) entre o ritmo e a melodia; 2) entre
esta e o acorde (que é de natureza harmónica). Eis um
exemplo para ilustrar. o primeiro caso, respeitante ao
ritmo e à melodia: batamos um ritmo sobre um tambor
ou sobre um objecto sonoro, e teremos um fenómeno de
ordem puramente rítmica; variemos a intensidade e tere-
mos sons de alturas diferentes. Cantemos um ritmo sobre
um mesmo som; cantemo-lo em seguida subindo ligeira-
mente um som um quarto de tom, e em seguida um meio
tom; continuemos, modificando agora vários sons, e esta-
remos em presença de um fragmento melódico. Apartir de
que momento exacto entramos em contacto com o elemento
melódico? Quanto ao segundo caso, o que respeita aos
dois elementos (melódico e harmónico) teremos também
unia gradação insensível se partirmos do intervalo de oitava
(que
é
considerado como uníssono) para chegar ao acorde
(união de três sons harmoniosos). As diferentes etapas,
serão: a quinta e a quarta, a terceira e a sexta. Estes
dois últimos intervalos têm já (os sons resultantes no-lo
demonstram) um valor harmónico: com deito, a estes
dois sons vem juntar-se automàticamente um terceiro som
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que todo o ouvido sensível pode discernir; este som é a
quinta para o intervalo de terceira e a quarta para o
intervalo de sexta, formando assim nos dois casos um
.acorde subentendido. Acrescentemos que as diferentes
formas de polifonia são também graus intermediários
entre a melodia e a harmonia.
Podemos estabelecer as mesmas relações no que diz
respeito aos elementos da vida uni-dimensional (física),
bi-dimensional (afectiva) e tri-dimensional (mental).
Deixamos de parte por agora o elemento quadri-di-
mensional, que completaria este conjunto; ele far-nos-ia
exceder os limites que o assunto nos impõe aqui.
Se se admitir que a música pode ter bases universais
e profundas e que uma ordem preside às suas diversas
relações, será então inútil insistir sobre as numerosas con-
siderações que de aí provêm. Contentar-nos-emos com
dar algumas ilustrações dos esquemas e alguns exemplos
práticos, tomados dos diferentes campos.
Consideremos por um instante o «tocar do pianista».
Iremos dos elementos mais densos aos elementos mais
subtis: há em primeiro lugar a mão; esta mão funciona;
ao pousar no teclado ela adquire um certo modo de tocar;
estamos aqui no reino dos sentidos, o ouvido e a vista
participando na execução; a sensibilidade dos órgãos
desenvolve-se e reage sobre a nossa afectividade; a ima-
ginação musical, seguidamente a memória, aparecem; gra-
ças à memória, comparações e juízos colaboram no desen-
volvimento da consciência musical; a inteligência, con-
creta ao princípio, torna-se abstracta; a audição interior
desenvolve-se cada vez mais e permite novas combinações
de sons, criações; o pianista improvisa e compõe.
Este conjunto, visto de um outro ângulo, pode muito
bem ser interpretado em sentido contrário, isto é, do pólo
espiritual ao pólo material. O quadro pode ser invertido,
eu diria mesmo que o podemos fazer rolar como se faz
(,'
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rolar uma esfera - a ordem e as relações permanecem
as mesmas. Todavia, se se diz que uma composição mu-
sical parte do espírito, da inspiração e não da matéria,
é preciso não esquecer que os seus elementos evoluem
entre dois pólos; ora estes dois pólos reagem continua-
mente um sobre o outro e a propulsão pode vir quer de
um pólo, quer do outro, quer de um elemento interme-
diário.
Com efeito, a composição musical pode partir da
natureza do som, do seu timbre, de um impulso rítmico
do corpo, do amor por um som ou por um acorde, de
uma emoção, de uma afecção ou de um sentimento, de
uma consideração intelectual, de uma intuição ou de uma
inspiração. Isso não quer dizer que um só destes elemen-
tos seja suficiente para fazer uma composição musical.
A presença da maioria destes elementos é simultânea, mas
eles aparecem-nos numa desordem aparente. O fenómeno
musical é como um jogo de xadrez: o espectador, à pri-
meira vista, não vê senão uma mescla cujo segredo ele
desconhece; os jogadores, esses compreendem bem a
ordem que preside à mistura das peças, e o bom jogador
conhece ao mesmo tempo a ordem do seu jogo e a do
jogo do seu parceiro. Do mesmo modo, o músico pode
conhecer todos os elementos da música e a ordem que
preside às suas diversas combinações.
A «natureza do som» oferece-nos uma ilustração do
segundo esquema que diz respeito aos três domínios.
Com efeito, o som tem três qualidades: a intensidade,
a altura e o timbre. Ora há relações estreitas entre a
intensidade e o ritmo, entre a altura e a melodia, e entre
o timbre e a harmonia (pois o timbre é o resultado .de
um conjunto de sons harmónicos que se unem ao som
fundamental).
Graças a aparelhos científicos, pode actualmente estu-
dar-se de perto a natureza do som. Os oscilógrafos e os
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analisadores harmónicos transformam o som em gráficos
e permitem assim que se façam cálculos exactíssimos no
que respeita à amplitude da vibração (intensidade), à sua
frequência (altura) e à sua forma particular (timbre).
Na aplicação, se admitirmos as bases e as relações
expostas, deveremos ter o cuidado, quanto ao «ritmo», de
o trabalhar fisicamente, muscularmente. Ao compor ou
improvisar, partiremos frequentemente do dinamismo cor-
póreo efectivo ou figurado; a imaginação plástica pode
substituir o movimento efectivo. No ensino deveremos
tomar em conta a natureza física do ritmo (que por exten-
são pode tornar-se em ritmo emotivo ou mental) e pe~i-
remos do aluno uma colaboração corpórea; esta consis-
tirá, no mínimo, em bater o compasso com todo o braço,
de forma a que haja contacto entre a mão que bate e os
pulmões que são, com o coração, o centro dinâmico do
corpo (o braço e o ombro, portanto, não ficarão imóveis).
Em muitos casos, se um aluno improvisa mal, é porque
lhe falta impulso rítmico (corpóreo); impõe-se então um
retrocesso, e os exercícios de improvisação rítmica prece-
derão a improvisação melódica. Eu sei que muitos pro-
fessores, tanto para a improvisação como para a música
em geral, partem de bases mentais; até o ritmo mesmo
é trabalhado com a ajuda de valores intelectuais: míni-
mas, semínirnas, colcheias, etc., mas desta forma onde
está a ligação com a vida? Onde está a ligação com o ser
humano em carne e músculos? Onde está a ligação com
a emoção que se traduz muitas vezes fisicamente (rítmica-
mente)?
Para a «melodia», tal como para o ritmo, não basta
a inteligência; ela não é o ponto de partida, a base, nem
de um nem do outro. Como o elemento melódico pertence
ao segundo campo, isto é, ao da sensibilidade, é com esta
e por meio desta que o músico se expressará; e será tam-
bém a ela que o pedagogo recorrerá quando o aluno é
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melodicamente deficiente. Quantas vezes, com alunos prin-
cipiantes, eu tenho tido de afastar a intrusão do pensa-
mento quando se trata de cantar uma frase de oito ou
dezasseis compassos Obstruído pela inteligência, que quer
encarregar-se de um campo que não é o seu, o aluno ape-
nas consegue cantar sucessões de sons desprovidos de
vida interior; assim que ele afasta todo o pensamento a
frase desliza instintivamente, flexível e harmoniosa.
Quantas vezes temos estado em presença de alunos
que, sem querer, tinham produzido uma cisão na sua sen-
sibilidade, da qual deixaram uma parte para a vida cor-
rente, para a atracção do sexo oposto ou para a religião,
e a outra para a música. Ora nós sabemos que todo o
sentimento, toda a emoção podem ser traduzidos em mú-
sica. Será um privilégio reservado aos grandes mestres,
o de viver e de exprimir a sua sensibilidade através da
música? Intuitivamente eles estabeleceram, muitas vezes
apesar do ensino-recebido, os elos vivos entre a sua arte
e a natureza humana.
Quantos alunos têm começado, jovens, a música com
alegria e entusiasmo E esta alegria aumentou, enrique-
ceu-se de experiências no decurso do trabalho? E este
entusiasmo cresceu pela descoberta progressiva dos esplen-
dores da vida? Ou
ter-se-á
o aluno confiado ao intelecto
que promete dar aquilo que ele próprio não possui?
Será então assim tão difícil conservar na música a
ligação com a vida?
Quanto ao terceiro elemento, à «harmonia», podere-
mos dar ao intelecto, à inteligência, um lugar preponde-
rante. Com efeito trata-se de ouvir vários sons simultânea-
mente, o que, segundo os
fisiólogos,
apenas se efectua
graças ao cérebro, capaz de síntese e de análise. Na
harmonia estamos em presença de sínteses, de abstrac-
ções. Quando, por exemplo, eu falo do acorde de 7 sobre V,
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estou em presença de uma unidade da qual o meu sentido
auditivo não pode tomar consciência senão nota após nota.
Outra coisa é portanto o acorde realizado auditivamente,
por exemplo sol, si, ré, fá, e o pensamento do acorde de
7 sobre V (recordemos que o elemento
harmónico
encerra
necessàriamente o elemento melódico). Na prática eu
faria portanto um erro capital ao pretender obter, de um
aluno ou de mim próprio, um trabalho harmónico apenas
através da sensibilidade. Pelo que diz respeito à harmonia
propriamente dita, a inteligência desempenha um grande
papel, um papel de primeiro plano. Na obra de arte,
harmonia, melodia e ritmo fundem-se numa unidade nova.
Vou dar um último exemplo no «desenvolvimento
auditivo». Aqui também, os esquemas são aplicáveis na
sua complexidade e na sua simplicidade. Na prática do
ensino da audição, estaremos em presença de diversos
elementos, nos quais achamos a mesma ordem e as mes-
mas relações que achamos na música em geral ou nos
elementos da natureza humana.
São eles: o órgão auditivo, o ouvido (pólo material);
o funcionamento do ouvido (vida física); a sensibilidade
afectiva (vida afectiva); a consciência auditiva (vida men-
tal); a audição interior com as suas possibilidades de
criação artística (pólo espiritual).
Cada um destes elementos pode constituir o objecto
do nosso cuidado. O ouvido, como «órgão», é pouco ou
nada modificável; em certos casos requer cuidados mé-
dicos (doença, surdez parcial). O ouvido depende do estado
geral do corpo. A vida do ouvido, a sua «receptividade»
ao som, pode ser desenvolvida pela educação. Os músicos-
-natos têm por instinto uma grande actividade auditiva;
os músicos por educação são com
freqüência
demasiada-
mente cerebrais e muito pouco sensoriais; em muitos
casos impõe-se uma reeducação. Podemos verificar o grau
de sensibilidade física do ouvido por meio de um
audió-
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metro; pessoalmente, utilizo para este fim um pequeno
harmónium, que eu próprio fabriquei, e que comporta
quinquagésimos, centésimos e ducentésimos de tom (con-
segui mesmo obter um octingentésimo de tom, o que não
é um limite, pois o som é divisível até ao infinito).
Não faltam os meios práticos para aumentar a sensi-
bilidade do ouvido; citemos apenas dois, nos quais não
se pensa suficientemente: 1) escutar os ruídos da natu-
reza; 2) escutar o som com tanta flexibilidade orgânica
(o que o pensamento frequentemente nos impede) que se
possam ouvir os sons harmónicos e os sons resultantes,
que tão grande papel têm desempenhado na evolução
musical.
No campo da «sensibilidade afectiva auditiva», gos-
taria de chamar a atenção para a relação que há entre
esta sensibilidade e os intervalos melódicos, não apenas
tal como os encontramos no piano, mas sim tal como os
conhecemos quando podemos dominar o espaço intra-
-tonal. Melodicamente, com efeito, um ré sustenido não
é igual a um mi bemol. Por necessidades harmónicas e
por razões práticas do instrumento nós temperámos o
teclado; desta maneira privámos a melodia de uma das
suas prerrogativas que é a afinação natural, a única capaz
de exprimir com exactidão certas emoções. Todo o cantor,
todo o músico que toque um instrumento de corda (não
excluímos as madeiras nem os metais) deveriam utilizar
a afinação natural que lhes dá, do ponto de vista da
sensibilidade, uma superioridade incontestável sobre os
instrumentos de teclado temperado.
Nós vamos mesmo mais longe ao dizer que, artistica-
mente falando, a afinação natural não é o limite dos nossos
meios. Pois, tal como nas outras artes, trata-se muitas
vezes, não de produzir uma coisa tal como ela é, mas sim
tal como nós desejamos que ela seja; em muitos casos
podemos portanto, por exemplo no intervalo dó mi bemol,
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produzir o mi bemol mais baixo do que ele seria segundo
a afinação natural. Poderemos fazê-lo se quisermos acen-
tuar o dinamismo da linha melódica. Este dinamismo,
que faz que esta nota tenda a descer, é de importância
capital na arte, e nós não podemos dorniná-lo sem domi-
nar o espaço intra-tonal, Este domínio, podemos desen-
volvê-lo pela prática.
Digamos de passagem que o nome das notas é muitas
vezes um obstáculo ao desenvolvimento da sensibilidade.
Com o intervalo harmónico e os acordes entramos no
campo da «inteligência auditiva». O ouvido, pelas suas
ramificações, continua o seu trabalho no cérebro; só este
é capaz de fazer uma síntese consciente ou inconsciente.
Aqui, o nome da nota será bem-vindo; em muitos casos
ele é absolutamente necessário para a tomada de cons-.
ciência do domínio sonoro.
Cada intervalo e cada acorde serão objecto de um
estudo aprofundado; não são eles os elementos primeiros
que constituirão a música harmónica? Trata-se portanto
de poder reconhecer pela audição cada intervalo e cada
acorde (m-esmo sem o auxílio dos nomes das notas, mas
com a simples consciência do som). Como para a audição
são necessárias duas pessoas, uma que toca os acordes e
outra que os deverá reconhecer, inventei um pequeno apa-
relho, o «audicultor», o qual consiste num pequeno dispo-
sitivo que se coloca sobre o piano e numa série de placas
que, por uma simples pressão, permitem que se produzam
os intervalos e os acordes a reconhecer; pode-se desta
forma trabalhar só.
A última etapa do desenvolvimento auditivo é a da
audição interior. Aqui, as sensibilidades física e afectiva
reúnem-se à consciência musical e são postas ao serviço
da criação artística musical, que pode ultrapassar as possi-
bilidades da inteligência; entramos no campo do des-
conhecido imaterial, intuitivo ou espiritual.
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Para terminar, quero responder
à
objecção ~ue se faz
com frequência contra a consciência em arte. Diz-se: «Não
é necessário saber o porquê das coisas; tantos artistas
têm feito obras de arte sem saber como».
Evidentemente, muitas pessoas fazem coisas sem saber
como, e fazem-nas mesmo sem saber que as fazem. Esta
inconsciência não tem, em si própria, valor algum, e não
é uma característica dos grandes artistas; ela só adquire
valor depois de ter passado pelo trabalho inteligente (do
próprio artista ou dos seus antepassados) para se tornar
supra-intelectual, a não ser que ela seja intuitiva, o que
requer uma maturidade humana ou uma receptividade
especial.
Se, em arte, a sensibilidade ultrapassa muitas vezes
a consciência, é incontestável que esta última, obedecendo
a um impulso interior, procura afirmar-se cada vez mais;
do mesmo modo, a evolução da arte está Intimamente
ligada ao desenvolvimento da consciência humana, diri-
gida neste caso para a consciência da beleza.
Desta maneira o trabalho musical torna-se, cada vez
mais, uma parte intrínseca de nós próprios;
unir-se-á
à
nossa vida diária; será realmente a nossa razão de ser.
Nós compreenderemos e apreciaremos melhor os grandes
mestres, porque estaremos mais perto deles; bebendo,
embora com os nossos fracos meios, das mesmas fontes,
nós compreenderemos melhor a sua linguagem e talvez
assim as suas almas, que, de longe, nos guiam para a
eterna beleza.
BIBLIOGRAFIA DO MESMO AUTOR
. \
NOVAS IDEIAS FILOSOFICAS SOBRE A MúSICA, 1. edição por-
tuguesa - «Pro Musica» - Bienne, Suíça, 1968.
(Existe também em língua francesa).
LES BASES PSYCHOLOGIQUES DE L É DUCATIO MUSICALE,
Presses Universitaires de France - Paris, 1956.
L ÉDUCATION MUSICALE NOUVELLE, 2
e
édition- «Pro Musica»
- Bienne,
1968.
LA PRÉPARATION MUSICALE DES TOUT·PETITS, 3
e
éditon M.
& P. Foetisch - Lausanne, 1967.
L OREILLE MUSICALE, tomo I, 2
e
édition= e Pro Musica»-Bienne.
L OREILLE MUSICALE, tomo I I , 2
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édit ion - Pro Musica» - Bienne.
LE JAZZ ET L OREILLE MUSICALE, 3 édition - «Pro Musica»>-
Bienne, 1968.
LE RYTHME MUSICAL, Presses Universitaires de France - Paris,
1954.
CADERNOS PEDAGÓGICOS:
N.O
INITIATION MUSICALE DES TOUT-PETITS.
INICIAÇÃO MUSICAL DAS CRIANÇAS (Tradução
Portuguesa).
N.o - CHANSONS DE DEUX
À
CINQ NOTES.
N.o 2 -CHANSONS D INTERVALLES.
N.o 2 B - CHANSONS D INTERVALLES AVEC ACCOMPAG·
NEMENT POUR PIANO.
N.o 3 - EXERCICES D AUDITION.
N.o 4 - EXERCICES DE RYTHME ET DE MÉTRIQUE.
N.O 5 - INTRODUCTION À LÉCRITURE ET À LALECTURE.
N.o 5 B - LES DÉBUTS DU SOLFEGE.
N.o 6 - LES DÉBUTS AU PIANO.
N.o 7 -MORCEAUX TR:E . S FACILES POUR PIANO.
N.o 7B - PETITS QUATRE MAINS.
N.o 7 C - AMUSEMENTS AU CLAVIER.
N.O 8 - DOUZE MORCEAUX FACILES POUR PIANO.
N.o 9 - PETITES MARCHES FACILES.
N.o 10 - PETITES DANSES, SAUTS ET MARCHES.