novas ideias filosoficas

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    IC ÇÕES PRÁTIC S

     

    TR UÇÃO PORTUGUES

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  • 8/18/2019 Novas Ideias Filosoficas

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    EDGAR WILLEMS

    NOV S IDEI S FILOSÓFIC S

    SO RE MÚSIC

    E

    SU S PLIC ÇÕES PRÁTIC S

    Edições Pro-Musica

    BIENNE (SUíÇA)

    29, Rue Neuve

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    Novas ideias ... , a afirmação é talvez ousada e mesmo

    incorrecta, pois não se disse já tudo sobre as leis da vida

    e sobre as da música? Mas, na primavera, após a letargia

    hibernal, quando as flores desabrocham de novo, não dize-

    mos nós: «eis as novas flores

    »?

    A inovação pode pois

    residir numa relação nova que existe entre uma ideia e

    a época, ou ainda entre uma ideia e a sua aplicação. Não

    vamos portanto demorar-nos na significação limitada da

    palavra; as palavras são sempre insuficientes quando se

    trata de falar sobre a vida. E é sobretudo acerca da vida

    musical que desejo falar aqui.

    Existe, com efeito, vida e forma, qualidade e quanti-

    dade, arte e material sonoro, vida rítmica que é a causa

    e formas rítmicas que são os seus efeitos, espírito técnico

    e formas técnicas. Estamos sempre em presença de dois

    elementos complementares: um, a forma, sempre visível,

    que os nossos sentidos apreendem fàcilmente, da qual

    todos se ocupam muito e têm grande cuidado em desen-

    volver nos alunos; o outro elemento, a vida, o espírito,

    tão frequentemente ignorados e incompreendidos.

    Proponho-me passar em revista, infelizmente de uma

    forma demasiadamente condensada, alguns aspectos da

    vida, os quais são idênticos para a música. Pretendo falar

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    da «unidade» da vida, da sua «dualidade» e do «triplo

    aspecto» da natureza humana.

    Da «unidade muito haveria a dizer; o assunto é ao

    mesmo tempo muito simples e muito complexo; apenas

    diremos algumas palavras a seu respeito: a unidade é o

    elemento principal para o qual se deve encaminhar a obra

    de arte. Na vida e na natureza, uma flor, um animal, um

    ser humano representam sempre uma unidade intrínseca.

    Igualmente, a obra de arte comporta ela mesma esta uni-

    dade, unidade não apenas de técnica, de forma exterior,

    mas unidade de vida interior que nem sempre é fácil de

    descobrir, e ainda unidade entre as duas.

    Nos grandes criadores esta unidade existe já antes da

    criação da obra. Beethoven diz de si próprio que, antes

    de escrever uma composição, a concebia já no seu con-

    junto. Mozart diz que, antes de escrever uma obra, ele a

    realizava primeiro mentalmente. Bach, neste ponto, não

    era inferior a Mozart ou a Beethoven. Spitta, que estudou

    de perto este assunto, diz-nos que Bach realizava de uma

    só vez o conjunto da obra e que nunca lhe acontecia supri-

    mir ou interverter um elemento, o que Beethoven fazia

    com frequência. Acrescentemos em favor de Beethoven

    que, se Bach se contentava na maioria das vezes com for-

    mas conhecidas e estabelecidas, Beethoven, esse, estava

    sempre à procura de formas novas. Determinar esta uni- .

    dade é coisa tão impossível como determinar a vida. Mas,

    se não podemos determinar a natureza profunda desta

    unidade viva, podemos muitas vezes pressenti-Ia, senti-Ia,

    podemos estudar o seu carácter, os seus diferentes aspec-

    tos. Em muitos casos ela é superficial e não diz respeito

    senão à forma. Esta unidade exterior constata-se

    fàcil 

    mente no pintor porque a sua profissão compreende um

    elemento estável e material: a cor; ao passo que o som,

    elemento ao mesmo tempo mais imaterial e sujeito à fuga

    do tempo, escapa ao controlo imediato dos nossos senti-

    dos. Todavia o músico profissional e o compositor sabem

    reconhecer esta unidade formal, e, embora ela participe

    em grande parte na unidade espiritual da obra, não é

    contudo senão o seu revestimento.

    Se analisarmos esta unidade, estaremos primeiro que

    tudo em presença de «dois pólos opostos e complemen-

    tares»: a matéria sonora e o espírito artístico. Não é ~ -

    toda a manifestação cósmica ou humana uma interferência

    de duas radiações de energia? Não estamos nós sempre

    em presença de uma força e de um elemento material

    (energia condensada)? Por outro lado, cada um destes

    dois pólos escapa em parte às nossas investigações, porque

    nos levam ambos para o desconhecido, quer das leis da

    matéria, quer das do espírito. O ser humano é influen-

    ciado pelos dois pólos; visto de um outro ângulo, pode-

    mos dizer que ele é a resultante da reacção mútua destes

    dois pólos, o que representarei por meio do seguinte

    esquema:

    Desconhecido das leis

    materiais

    SER HUMANO

    Desconhecido das leis

    espirituais

    _ _ _ _ _ _ _ _ ~   _   A   ~

    POLO ESPíRITO

    OLO MATÉRIA

    MúSICA

    Desconhecido das leis

    artísticas

    Desconhecido das leis

    do som

    Admitimos hipoteticamente que o desconhecido das

    leis materiais e o das leis espirituais se reúnem num

    mesmo todo: o Cosmos, o Divino dos deístas ou o Grande

    Todo dos panteístas.

    Ilustremos este esquema com uma definição da mú-

    sica. Escolherei uma das mais simples e das mais con-

    cisas: a música é a arte dos sons. E aqui estão os dois r

    pólos claramente indicados: a arte, elemento espiritual,

     

    5

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    e o som, elemento materiaL Se aprofundarmos estes dois

    termos, encontrar-nos-ernos diante dos enigmas da vida

    espiritual e material, pois nem o espírito artístico nem a

    natureza do som nos revelaram já todos os seus segredos.

    Com efeito: «a arte» é a expressão do Belo. - Expres-

    são é vida e a vida leva-nos para o desconhecido. - O Belo

    é um aspecto do Todo, do Divino, da Vida, portanto do

    desconhecido.

    O «som» é uma vibração da matéria. - Vibração é

    força, ou energia, ou vida. - A matéria apresenta-se-nos

    em última análise sob o aspecto de

    moléculas,

    e em seguida

    de átomos e de partículas; eis-nos uma vez mais no des-

    conhecido.

    Entre o pólo da matéria e o do espírito situa-se a vida

    humana. E esta vida, nós consideramo-Ia sob um «triplo

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    É indiscutível que existe, em todo o artista, uma uni-

    dade de vida profunda que pode escapar-nos, mas que

    engloba ao mesmo tempo as suas qualidades humanas e

    a sua produção artística.

    Esta unidade, bem entendido, pode exprimir-se por

    contraste e concebe-se sem dificuldade um artista cuja

    obra exprima um ideal tanto mais elevado que ele não

    consiga

    realizá-lo

    na sua vida diária, mas estas duas mani-

    festações, à primeira vista contraditórias, partem todavia

    de um fundo comum.

    Podemos portanto admitir a possibilidade de encon-

    trar raízes comuns aos principais elementos da natureza

    humana e da sua expressão através da música. O conheci-

    merito profundo dos elementos fundamentais da música

    tomados na sua essência vital, permitirá que cornpreen-

    damos melhor a música ocidental, a nossa música, e que

    comunguemos em conhecimento de causa com as produ-

    ções musicais orientais ou dos negros.

    Se partimos de bases humanas, a música de todas as

    raças e de todas as épocas

    ser-nos-á

    acessível. Estaremos

    também em estado de acompanhar as criações dos nossos

    contemporâneos que frequentemente ultrapassam a su;

    época; pois a nossa sensibilidade desenvolvida liberta-

    e o nosso conhecimento aprofundado das leis  naturais 

    permitir-nos-ão distinguir o falso do verdadeiro, as com-

    binações intelectuais das que são ditadas pelas leis da vida.

    O conhecimento e a sensibilidade devem agir livre-

    .me~te e não entravados por opiniões preconcebidas, quer

    d~ epoca quer de raça.

      s

    relações que estabeleci podem

    ajudar-nos a atingir esta finalidade. .

    Outrora julguei encontrar, através do estudo dos sis-

    temas filosóficos, a solução dos problemas musicais. Infe-

    lizmente os filósofos partem com demasiada frequência

    ou de considerações metafísicas ou de considerações inte-

    lectuais. Ora, na medida em que somos músicos, devemos

    I

    t

    poder partir da própria musica, compreendida como uma

    manifestação directa do ser humano. Todo o elemento

    musical, qualquer que seja, está em relação directa com

    o elemento humano que lhe deu génese.

      necessário também poder colocar as origens da

    música no ser humano a uma profundidade t que, par-

    tindo delas, possamos acompanhar a sua evolução, a sua

    expressão em todos os ramos da vida e, por consequência,

    em todas as actividades artísticas.

    Para antecipar certas

    objecções,

    que tendam a dife-

    renciar as várias manifestações artísticas, nós diremos

    que, com efeito, as diferentes artes comportam elementos

    de expressão diferentes, na medida em que estes elemen-

    tos são tributários de um sentido diferente (tacto, vista,

    ouvido), mas estes elementos não são mais do que os

    «meios» de expressão pelos quais os «impulsos vitais» se

    exteriorizam. Estes impulsos vitais primeiros (físicos, afec-

    tivos, mentais ou intuitivos) são comuns a todas as artes,

    embora, evidentemente, em graus diferentes.

    Durante longos anos estes problemas têm sido o

    objecto dos meus estudos. Para os resolver, abstive-me

    da especialização. Procurei descobrir bases humanas sufi-

    cientemente amplas para poderem servir de ponto  de par-

    tida às actividades humanas superiores as mais diversas,

    tanto clássicas como modernas, tanto conservadoras como

    evolucionistas. Tendo praticado a maioria das artes, estou

    longe de ser um génio em qualquer delas, mas tive a feli-

    cidade de atingir certas origens profundas, e estou hoje

    em estado de demonstrar como fontes comuns alimentam

    as diferentes actividades humanas, e como raízes comuns

    lhes dão a força de crescer e frutificar.

    Para determinar com precisão estes elementos, toma-

    dos no seu ponto de partida, vejo-me forçado a recorrer

    a abstracções matemáticas ou geométricas.

    Desejo falar dos números e das dimensões.

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    Os números podem ser considerados sob três aspectos:

    1) «cardinal» (um, dois, três ... ); 2) «ordinal» (pri-

    meiro, segundo, terceiro ... ); 3) «filosófico» (unidade, dua-

    lida de, ternário ... ); as dimensões podem também ser enca-

    radas sob este triplo aspecto. Podem representar-se as

    três dimensões por meio da linha, da superfície e do

    volume. Segundo o aspecto «cardinal», a superfície tem

    mais valor do que a linha, e o volume mais valor do que

    a superfície. Segundo o aspecto «ordinal», a linha, sendo

    o elemento primeiro, tem a prioridade, dado que sem ela

    os outros não podem existir. Para falar do aspecto «filo-

    sófico» das dimensões é necessário recorrer a uma signi-

    ficação mais profunda, pois trata-se de três reinos de vida

    e de consciência (uni-dimensional, bi-dimensional, tri-di-

    mensional, etc.), que terão entre si as mesmas relações

    que os elementos geométricos; mas aqui a linha é consi-

    derada como uma direcção, um movimento, sobre o qual

    não podemos pousar nada; a superfície, pelo contrário,

    permite-nos espalhar uma cor; o cubo terá, ainda mais,

    um conteúdo.

    Acharemos estas três dimensões de vida representadas

    nos mundos vegetal, animal e humano.

    Estabeleceremos portanto o seguinte esquema:

    um

    linha

    vida física

    vida rítmica

    mundo vegetal

    dois

    superfície

    vida afectiva

    vida melódica

    mundo animal

    três

    volume

    vida intelectual

    vida harmónica

    mundo humano

    Este esquema permite-nos estabelecer relações que,

    à primeira vista, poderiam ser consideradas inverosímeis

    devido à falta aparente de laços entre os elementos da

     

    musica e estas abstracções matemáticas ou geométricas;

    poder-se-ia duvidar, do mesmo modo, do seu valor no

    ponto de vista prático.

    Ora, nós julgamos poder dizer, pelo contrário, que

    este enunciado esquelético, bem compreendido, pode aju-

    dar grandemente a resolver os problemas que se apresen-

    tam na actividade artística. Trata-se sobretudo de ver em

    profundidade, para lá das formas que aparecem imediata-

    mente aos sentidos. Tal como sob vestuários diversos,

    sob os aspectos infinitamente variados dos indivíduos, se

    esconde a mesma estrutura invisível, assim em arte, leis

    simples e profundas se dissimulam aos nossos olhos.

    Se retomarmos o exemplo dos três números, aplica-

    dos à música, compreenderemos que, se por um lado o

    «um» contém em potência, o «dois», por outro lado o

    «ritmo», elemento primeiro em música, conterá em potên-

    cia a melodia, elemento segundo, e dar-lhe-á génese; por

    sua vez a melodia conterá em potência a «harmonia», ele-

    mento terceiro.

    Sem pretender provar aqui esta afirmação, limitar-

    -nos-ernos a chamar a atenção para o facto de que o ritmo

    sonoro, pelos seus elementos de duração e de intensidade,

    provoca flutuações na altura do som, e introduz-nos assim

    no campo melódico; do mesmo modo, uma melodia bem

    equilibrada contém já na sua estrutura os acordes desti-

    nados a dar-lhe suporte harmónico.

    Se encararmos o problema sob outro ângulo estare-

    mos em presença de outras relações, igualmente tão ver-

    dadeiras e tão profundas apesar da sua aparente sim-

    plicidade: o «dois» contém o «um», e o «três» contém

    simultâneamente o «dois» e o «um»; do mesmo modo,

    transpondo estas relações para a música, diremos que a

    melodia contém necessàriamente o ritmo e que a harmo-

    nia contém a melodia e o ritmo.

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    Conquanto não nos possamos alongar sobre cada um

    destes pontos para demonstrar a sua evidência, esperamos

    entretanto que se reconheça que um enunciado tão simples

    tem a vantagem de nos fazer penetrar na natureza íntima

    dos elementos da arte e da vida, e que ele pode servir de

    ponto de referência, tanto no aspecto artístico, como peda-

    gógico, psicológico ou filosófico. Parece-nos também que

    as divergências de opiniões, no domínio artístico e parti-

    cularmente musical, são devidas na sua maioria à igno-

    rância destes princípios elementares.

    Eis outra consideração fundamental: não há solução

    de continuidade entre os diferentes domínios, portanto

    eles não devem ser considerados como elementos separados

    uns dos outros; a sua interpenetração impede qualquer

    demarcação exacta: 1) entre o ritmo e a melodia; 2) entre

    esta e o acorde (que é de natureza harmónica). Eis um

    exemplo para ilustrar. o primeiro caso, respeitante ao

    ritmo e à melodia: batamos um ritmo sobre um tambor

    ou sobre um objecto sonoro, e teremos um fenómeno de

    ordem puramente rítmica; variemos a intensidade e tere-

    mos sons de alturas diferentes. Cantemos um ritmo sobre

    um mesmo som; cantemo-lo em seguida subindo ligeira-

    mente um som um quarto de tom, e em seguida um meio

    tom; continuemos, modificando agora vários sons, e esta-

    remos em presença de um fragmento melódico. Apartir de

    que momento exacto entramos em contacto com o elemento

    melódico? Quanto ao segundo caso, o que respeita aos

    dois elementos (melódico e harmónico) teremos também

    unia gradação insensível se partirmos do intervalo de oitava

    (que

    é

    considerado como uníssono) para chegar ao acorde

    (união de três sons harmoniosos). As diferentes etapas,

    serão: a quinta e a quarta, a terceira e a sexta. Estes

    dois últimos intervalos têm já (os sons resultantes no-lo

    demonstram) um valor harmónico: com deito, a estes

    dois sons vem juntar-se automàticamente um terceiro som

    12

    que todo o ouvido sensível pode discernir; este som é a

    quinta para o intervalo de terceira e a quarta para o

    intervalo de sexta, formando assim nos dois casos um

    .acorde subentendido. Acrescentemos que as diferentes

    formas de polifonia são também graus intermediários

    entre a melodia e a harmonia.

    Podemos estabelecer as mesmas relações no que diz

    respeito aos elementos da vida uni-dimensional (física),

    bi-dimensional (afectiva) e tri-dimensional (mental).

    Deixamos de parte por agora o elemento quadri-di-

    mensional, que completaria este conjunto; ele far-nos-ia

    exceder os limites que o assunto nos impõe aqui.

    Se se admitir que a música pode ter bases universais

    e profundas e que uma ordem preside às suas diversas

    relações, será então inútil insistir sobre as numerosas con-

    siderações que de aí provêm. Contentar-nos-emos com

    dar algumas ilustrações dos esquemas e alguns exemplos

    práticos, tomados dos diferentes campos.

    Consideremos por um instante o «tocar do pianista».

    Iremos dos elementos mais densos aos elementos mais 

    subtis: há em primeiro lugar a mão; esta mão funciona;

    ao pousar no teclado ela adquire um certo modo de tocar;

    estamos aqui no reino dos sentidos, o ouvido e a vista

    participando na execução; a sensibilidade dos órgãos

    desenvolve-se e reage sobre a nossa afectividade; a ima-

    ginação musical, seguidamente a memória, aparecem; gra-

    ças à memória, comparações e juízos colaboram no desen-

    volvimento da consciência musical; a inteligência, con-

    creta ao princípio, torna-se abstracta; a audição interior

    desenvolve-se cada vez mais e permite novas combinações

    de sons, criações; o pianista improvisa e compõe.

    Este conjunto, visto de um outro ângulo, pode muito

    bem ser interpretado em sentido contrário, isto é, do pólo

    espiritual ao pólo material. O quadro pode ser invertido,

    eu diria mesmo que o podemos fazer rolar como se faz

    (,'

    13

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    rolar uma esfera - a ordem e as relações permanecem

    as mesmas. Todavia, se se diz que uma composição mu-

    sical parte do espírito, da inspiração e não da matéria,

    é preciso não esquecer que os seus elementos evoluem

    entre dois pólos; ora estes dois pólos reagem continua-

    mente um sobre o outro e a propulsão pode vir quer de

    um pólo, quer do outro, quer de um elemento interme-

    diário.

    Com efeito, a composição musical pode partir da

    natureza do som, do seu timbre, de um impulso rítmico

    do corpo, do amor por um som ou por um acorde, de

    uma emoção, de uma afecção ou de um sentimento, de

    uma consideração intelectual, de uma intuição ou de uma

    inspiração. Isso não quer dizer que um só destes elemen-

    tos seja suficiente para fazer uma composição musical.

    A presença da maioria destes elementos é simultânea, mas

    eles aparecem-nos numa desordem aparente. O fenómeno

    musical é como um jogo de xadrez: o espectador, à pri-

    meira vista, não vê senão uma mescla cujo segredo ele

    desconhece; os jogadores, esses compreendem bem a

    ordem que preside à mistura das peças, e o bom jogador

    conhece ao mesmo tempo a ordem do seu jogo e a do

    jogo do seu parceiro. Do mesmo modo, o músico pode

    conhecer todos os elementos da música e a ordem que

    preside às suas diversas combinações.

    A «natureza do som» oferece-nos uma ilustração do

    segundo esquema que diz respeito aos três domínios.

    Com efeito, o som tem três qualidades: a intensidade,

    a altura e o timbre. Ora há relações estreitas entre a

    intensidade e o ritmo, entre a altura e a melodia, e entre

    o timbre e a harmonia (pois o timbre é o resultado .de

    um conjunto de sons harmónicos que se unem ao som

    fundamental).

    Graças a aparelhos científicos, pode actualmente estu-

    dar-se de perto a natureza do som. Os oscilógrafos e os

     

    14

    analisadores harmónicos transformam o som em gráficos

    e permitem assim que se façam cálculos exactíssimos no

    que respeita à amplitude da vibração (intensidade), à sua

    frequência (altura) e à sua forma particular (timbre).

    Na aplicação, se admitirmos as bases e as relações

    expostas, deveremos ter o cuidado, quanto ao «ritmo», de

    o trabalhar fisicamente, muscularmente. Ao compor ou

    improvisar, partiremos frequentemente do dinamismo cor-

    póreo efectivo ou figurado; a imaginação plástica pode

    substituir o movimento efectivo. No ensino deveremos

    tomar em conta a natureza física do ritmo (que por exten-

    são pode tornar-se em ritmo emotivo ou mental) e pe~i-

    remos do aluno uma colaboração corpórea; esta consis-

    tirá, no mínimo, em bater o compasso com todo o braço,

    de forma a que haja contacto entre a mão que bate e os

    pulmões que são, com o coração, o centro dinâmico do

    corpo (o braço e o ombro, portanto, não ficarão imóveis).

    Em muitos casos, se um aluno improvisa mal, é porque

    lhe falta impulso rítmico (corpóreo); impõe-se então um

    retrocesso, e os exercícios de improvisação rítmica prece-

    derão a improvisação melódica. Eu sei que muitos pro-

    fessores, tanto para a improvisação como para a música

    em geral, partem de bases mentais; até o ritmo mesmo

    é trabalhado com a ajuda de valores intelectuais: míni-

    mas, semínirnas, colcheias, etc., mas desta forma onde

    está a ligação com a vida? Onde está a ligação com o ser

    humano em carne e músculos? Onde está a ligação com

    a emoção que se traduz muitas vezes fisicamente (rítmica-

    mente)?

    Para a «melodia», tal como para o ritmo, não basta

    a inteligência; ela não é o ponto de partida, a base, nem

    de um nem do outro. Como o elemento melódico pertence

    ao segundo campo, isto é, ao da sensibilidade, é com esta

    e por meio desta que o músico se expressará; e será tam-

    bém a ela que o pedagogo recorrerá quando o aluno é

    15

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    melodicamente deficiente. Quantas vezes, com alunos prin-

    cipiantes, eu tenho tido de afastar a intrusão do pensa-

    mento quando se trata de cantar uma frase de oito ou

    dezasseis compassos  Obstruído pela inteligência, que quer

    encarregar-se de um campo que não é o seu, o aluno ape-

    nas consegue cantar sucessões de sons desprovidos de

    vida interior; assim que ele afasta todo o pensamento a

    frase desliza instintivamente, flexível e harmoniosa.

    Quantas vezes temos estado em presença de alunos

    que, sem querer, tinham produzido uma cisão na sua sen-

    sibilidade, da qual deixaram uma parte para a vida cor-

    rente, para a atracção do sexo oposto ou para a religião,

    e a outra para a música. Ora nós sabemos que  todo o

    sentimento, toda a emoção podem ser traduzidos em mú-

    sica. Será um privilégio reservado aos grandes mestres,

    o de viver e de exprimir a sua sensibilidade através da

    música? Intuitivamente eles estabeleceram, muitas vezes

    apesar do ensino-recebido, os elos vivos entre a sua arte

    e a natureza humana.

    Quantos alunos têm começado, jovens, a música com

    alegria e entusiasmo E esta alegria aumentou, enrique-

    ceu-se de experiências no decurso do trabalho? E este

    entusiasmo cresceu pela descoberta progressiva dos esplen-

    dores da vida? Ou

    ter-se-á

    o aluno confiado ao intelecto

    que promete dar aquilo que ele próprio não possui?

    Será então assim tão difícil conservar na música a

    ligação com a vida?

    Quanto ao terceiro elemento, à «harmonia», podere-

    mos dar ao intelecto, à inteligência, um lugar preponde-

    rante. Com efeito trata-se de ouvir vários sons simultânea-

    mente, o que, segundo os

    fisiólogos,

    apenas se efectua

    graças ao cérebro, capaz de síntese e de análise. Na

    harmonia estamos em presença de sínteses, de abstrac-

    ções. Quando, por exemplo, eu falo do acorde de 7 sobre V,

    16

    estou em presença de uma unidade da qual o meu sentido

    auditivo não pode tomar consciência senão nota após nota.

    Outra coisa é portanto o acorde realizado auditivamente,

    por exemplo sol, si, ré, fá, e o pensamento do acorde de

    7 sobre V (recordemos que o elemento

    harmónico

    encerra

    necessàriamente o elemento melódico). Na prática eu

    faria portanto um erro capital ao pretender obter, de um

    aluno ou de mim próprio, um trabalho harmónico apenas

    através da sensibilidade. Pelo que diz respeito à harmonia

    propriamente dita, a inteligência desempenha um grande

    papel, um papel de primeiro plano. Na obra de arte,

    harmonia, melodia e ritmo fundem-se numa unidade nova.

    Vou dar um último exemplo no «desenvolvimento

    auditivo». Aqui também, os esquemas são aplicáveis na

    sua complexidade e na sua simplicidade. Na prática do

    ensino da audição, estaremos  em presença de diversos

    elementos, nos quais achamos a mesma ordem e as mes-

    mas relações que achamos na música em geral ou nos

    elementos da natureza humana.

    São eles: o órgão auditivo, o ouvido (pólo material);

    o funcionamento do ouvido (vida física); a sensibilidade

    afectiva (vida afectiva); a consciência auditiva (vida men-

    tal); a audição interior com as suas possibilidades de

    criação artística (pólo espiritual).

    Cada um destes elementos pode constituir o objecto

    do nosso cuidado. O ouvido, como «órgão», é pouco ou

    nada modificável; em certos casos requer cuidados mé-

    dicos (doença, surdez parcial). O ouvido depende do estado

    geral do corpo. A vida do ouvido, a sua «receptividade»

    ao som, pode ser desenvolvida pela educação. Os músicos-

    -natos têm por instinto uma grande actividade auditiva;

    os músicos por educação são com

    freqüência

    demasiada-

    mente cerebrais e muito pouco sensoriais; em muitos

    casos impõe-se uma reeducação. Podemos verificar o grau

    de sensibilidade física do ouvido por meio de um

    audió-

    17

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    11/12

    metro; pessoalmente, utilizo para este fim um pequeno

    harmónium, que eu próprio fabriquei, e que comporta

    quinquagésimos, centésimos e ducentésimos de tom (con-

    segui mesmo obter um octingentésimo de tom, o que não

    é um limite, pois o som é divisível até ao infinito).

    Não faltam os meios práticos para aumentar a sensi-

    bilidade do ouvido; citemos apenas dois, nos quais não

    se pensa suficientemente: 1) escutar os ruídos da natu-

    reza; 2) escutar o som com tanta flexibilidade orgânica

    (o que o pensamento frequentemente nos impede) que se

    possam ouvir os sons harmónicos e os sons resultantes,

    que tão grande papel têm desempenhado na evolução

    musical.

    No campo da «sensibilidade afectiva auditiva», gos-

    taria de chamar a atenção para a relação que há entre

    esta sensibilidade e os intervalos melódicos, não apenas

    tal como os encontramos no piano, mas sim tal como os

    conhecemos quando podemos dominar o espaço intra-

    -tonal. Melodicamente, com efeito, um ré sustenido não

    é igual a um mi bemol. Por necessidades harmónicas e

    por razões práticas do instrumento nós temperámos o

    teclado; desta maneira privámos a melodia de uma das

    suas prerrogativas que é a afinação natural, a única capaz

    de exprimir com exactidão certas emoções. Todo o cantor,

    todo o músico que toque um instrumento de corda (não

    excluímos as madeiras nem os metais) deveriam utilizar

    a afinação natural que lhes dá, do ponto de vista da

    sensibilidade, uma superioridade incontestável sobre os

    instrumentos de teclado temperado.

    Nós vamos mesmo mais longe ao dizer que, artistica-

    mente falando, a afinação natural não é o limite dos nossos

    meios. Pois, tal como nas outras artes, trata-se muitas

    vezes, não de produzir uma coisa tal como ela é, mas sim

    tal como nós desejamos que ela seja; em muitos casos

    podemos portanto, por exemplo no intervalo dó mi bemol,

    18

    produzir o mi bemol mais baixo do que ele seria segundo

    a afinação natural. Poderemos fazê-lo se quisermos acen-

    tuar o dinamismo da linha melódica. Este dinamismo,

    que faz que esta nota tenda a descer, é de importância

    capital na arte, e nós não podemos dorniná-lo sem domi-

    nar o espaço intra-tonal, Este domínio, podemos desen-

    volvê-lo pela prática.

    Digamos de passagem que o nome das notas é muitas

    vezes um obstáculo ao desenvolvimento da sensibilidade.

    Com o intervalo harmónico e os acordes entramos no

    campo da «inteligência auditiva». O ouvido, pelas suas

    ramificações, continua o seu trabalho no cérebro; só este

    é capaz de fazer uma síntese consciente ou inconsciente.

    Aqui, o nome da nota será bem-vindo; em muitos casos

    ele é absolutamente necessário para a tomada de cons-.

    ciência do domínio sonoro.  

    Cada intervalo e cada acorde serão objecto de um

    estudo aprofundado; não são eles os elementos primeiros

    que constituirão a música harmónica? Trata-se portanto

    de poder reconhecer pela audição cada intervalo e cada

    acorde (m-esmo sem o auxílio dos nomes das notas, mas

    com a simples consciência do som). Como para a audição

    são necessárias duas pessoas, uma que toca os acordes e

    outra que os deverá reconhecer, inventei um pequeno apa-

    relho, o «audicultor», o qual consiste num pequeno dispo-

    sitivo que se coloca sobre o piano e numa série de placas

    que, por uma simples pressão, permitem que se produzam

    os intervalos e os acordes a reconhecer; pode-se desta

    forma trabalhar só.

    A última etapa do desenvolvimento auditivo é a da

    audição interior. Aqui, as sensibilidades física e afectiva

    reúnem-se à consciência musical e são postas ao serviço

    da criação artística musical, que pode ultrapassar as possi-

    bilidades da inteligência; entramos no campo do des-

    conhecido imaterial, intuitivo ou espiritual.

    19

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    Para terminar, quero responder

    à

    objecção ~ue se faz

    com frequência contra a consciência em arte. Diz-se: «Não

    é necessário saber o porquê das coisas; tantos artistas

    têm feito obras de arte sem saber como».

    Evidentemente, muitas pessoas fazem coisas sem saber

    como, e fazem-nas mesmo sem saber que as fazem. Esta

    inconsciência não tem, em si própria, valor algum, e não

    é uma característica dos grandes artistas; ela só adquire

    valor depois de ter passado pelo trabalho inteligente (do

    próprio artista ou dos seus antepassados) para se tornar

    supra-intelectual, a não ser que ela seja intuitiva, o que

    requer uma maturidade humana ou uma receptividade

    especial.

    Se, em arte, a sensibilidade ultrapassa muitas vezes

    a consciência, é incontestável que esta última, obedecendo

    a um impulso interior, procura afirmar-se cada vez mais;

    do mesmo modo, a evolução da arte está Intimamente

    ligada ao desenvolvimento da consciência humana, diri-

    gida neste caso para a consciência da beleza.

    Desta maneira o trabalho musical torna-se, cada vez

    mais, uma parte intrínseca de nós próprios;

    unir-se-á

    à

    nossa vida diária; será realmente a nossa razão de ser.

    Nós compreenderemos e apreciaremos melhor os grandes

    mestres, porque estaremos mais perto deles; bebendo,

    embora com os nossos fracos meios, das mesmas fontes,

    nós compreenderemos melhor a sua linguagem e talvez

    assim as suas almas, que, de longe, nos guiam para a

    eterna beleza.

     

    BIBLIOGRAFIA DO MESMO AUTOR

    . \

    NOVAS IDEIAS FILOSOFICAS SOBRE A MúSICA, 1.  edição por-

    tuguesa - «Pro Musica» - Bienne, Suíça, 1968.

    (Existe também em língua francesa).

    LES BASES PSYCHOLOGIQUES DE L É DUCATIO MUSICALE,

    Presses Universitaires de France - Paris, 1956.

    L ÉDUCATION MUSICALE NOUVELLE, 2

    e

    édition- «Pro Musica»

    - Bienne,

    1968.

    LA PRÉPARATION MUSICALE DES TOUT·PETITS, 3

    e

    éditon M.

    & P. Foetisch - Lausanne, 1967.

    L OREILLE MUSICALE, tomo I, 2

    e

    édition= e Pro Musica»-Bienne.

    L OREILLE MUSICALE, tomo I I , 2

    e

    édit ion -  Pro Musica» - Bienne.

    LE JAZZ ET L OREILLE MUSICALE, 3  édition - «Pro Musica»>-

    Bienne, 1968.

    LE RYTHME MUSICAL, Presses Universitaires de France - Paris,

    1954.

    CADERNOS PEDAGÓGICOS:

    N.O

     

    INITIATION MUSICALE DES TOUT-PETITS.

    INICIAÇÃO MUSICAL DAS CRIANÇAS (Tradução

    Portuguesa).

    N.o - CHANSONS DE DEUX

    À

    CINQ NOTES.

    N.o 2 -CHANSONS D INTERVALLES.

    N.o 2 B - CHANSONS D INTERVALLES AVEC ACCOMPAG·

    NEMENT POUR PIANO.

    N.o 3 - EXERCICES D AUDITION.

    N.o 4 - EXERCICES DE RYTHME ET DE MÉTRIQUE.

    N.O 5 - INTRODUCTION À LÉCRITURE ET À LALECTURE.

    N.o 5 B - LES DÉBUTS DU SOLFEGE.

    N.o 6 - LES DÉBUTS AU PIANO.

    N.o 7 -MORCEAUX TR:E . S FACILES POUR PIANO.

    N.o 7B - PETITS QUATRE MAINS.

    N.o 7 C - AMUSEMENTS AU CLAVIER.

    N.O 8 - DOUZE MORCEAUX FACILES POUR PIANO.

    N.o 9 - PETITES MARCHES FACILES.

    N.o 10 - PETITES DANSES, SAUTS ET MARCHES.