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Ano: 2010 . nr 03 . Mês: Abril . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço0,01 € 04 . 10 A Visita do Papa NR 03 É um daqueles acontecimentos que faz parar o País. Um país já muito lento pela inacção e pela incriatividade. E que faz deste pequeno território o centro do mundo, para compensar a sua situação de periferia e de insignificância na globalidade. A atitude perante o Papa é um acto de ado- ração. Queiram ou não os teólogos católicos, o Papa passa por ser um ente divino. Os católicos veneram o Papa como um deus vivo. Seja ele um mortal e um pecador (como qualquer humano), os fiéis reser- vam-lhe as atitudes devidas a um deus incarnado. Segundo um dogma de 1870 ele é infalível. Auto-proclamado infalível. Junte-se a isso o fenómeno Fátima, o sítio da Terra escolhido pela «Mãe de Deus» para aparecer (nas simbólicas humanas, a «Mãe de Deus» está acima de Deus), e temos dois traços culturais típicos do catolicismo mediterrânico, da área cultural que os anglos- saxões abreviam em pigs (Portugal, Itália - ou a Irlanda, a católica por excelência - Grécia e Espanha). Podíamos acrescentar Marrocos. A religião desta área cultural é exteriorizada, visualizável, multitudinária, massificada pela imitação, regida por infalibilidades e pela espe- rança em messias providenciais. O Papa e Fátima são, hoje, dois símbolos do catolicismo, mas que - tendo em conta os textos sagrados fundadores do cristianismo compa- rados sociologicamente com as práticas - difi- cilmente se coadunam com a filosofia religiosa da origem que é alheia àquele tipo de culto e a qualquer chefia infalível. A visita do Papa tem mais impacto em Portugal do que em qualquer país do mundo, já que é mal vista nos paí- ses anglo-saxónicos e nórdicos que são cristãos protestantes. Uma visita à Itália não faz sentido porque é lá que ele reside. Na Irlanda, enfrentaria a popu- lação cristã-protestante. A visita à Grécia será apenas diplomática porque os gregos, católi- cos ortodoxos, seguem os respectivos «papas» locais ou metropolitas. Em Espanha, uma visita do Papa provoca uma dor de cabeça à Igreja e ao Estado dada a capacidade de rebeldia e de contestação dos espanhóis. Em Portugal, o Papa está como que em casa. Os portugueses são seguidistas em deterimento da reflexão individual e da inovação; privilegiam a exte- riorização da religião em deterimento da espi- ritualidade; a salvação vem-lhes pelo confor- mismo; votam como lhes mandam; idolatram os ricos que os sugam; atropelam-se para ver o cacique bem-falante que lhes mente; admi- ram os grandes ladrões e os corruptos porque «são espertos». Demitem-se face aos podero- sos. São subservientes por opção. Em suma: já são «papistas» por cultura, papistas «avant la lettre». Daí que ver o papa- paradigma, o do antigo Império - o infalível pela via dum decreto - é o máximo. Fátima e visitas papais servem, hoje, para superar a falência do catolicismo enquanto doutrina para a Salvação (em que já ninguém acredita, suplantado progressivamente pelo cristianismo evangélico). O catolicismo deixou de ser uma praxis espiritual, bíblica, apontada para o pós-morte. Tende a ser, apenas, uma referência cultural que se assume numa identidade exteriorizada em monumentos. A pró- pria Igreja só já conse- gue afirmar-se com essas referências, obliterando o que ela própria esta- beleceu como práticas «indis- pensáveis para a Salvação» que são os Sete Sacramentos. Nos princípios dos anos 70 do séc. XX, 90% dos portugue- ses declaravam-se «católicos» e cerca de 65 % praticavam os Sete Sacramentos. Nos anos 80, cerca de 80% declaravam-se católicos mas, só, entre 15 e 20 % praticavam. Hoje, os praticantes situam-se entre os 10 e 15 %. E temos uma classificação tipicamente portuguesa: «católicos não praticantes», quer dizer, segue-se um líder sem aderir a uma doutrina. Hoje, a Igreja vocaciona-se para a defesa de «valores»... mas só de alguns valores - os da «família tradicional» e pouco mais. O catolicismo era uma «reli- gião sociológica», uma justifi- cação para a defesa da Cultura. Este pressuposto desapareceu. Mas persistem outros traços cul- turais ancestrais: a divinização do líder, a demissão do indivíduo face ao «todos», a condenação das diferenças, a exteriorização religiosa ver- sus espiritualidade... Assim, Fátima conta sobretudo porque «junta muita gente» e segue-se o Papa porque é um chefe, e «carismático» (bonito, etc), e porque «arrasta multidões» (as multidões comandam o indivíduo). Men- sagens para a Salvação pós- morte que era o objectivo do catolicismo: zero. Moisés Espírito Santo Prof. Cated. da UNL Sociólogo das Religiões Entrevista a Maria das Dores Meira PÁGS. 2 e 3 Não há maçãs podres no fundo do cesto PÁGS. 8 e 9

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Jornal Cultural e debates

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Page 1: NR 3_O SUL_ABR_10

Ano: 2010 . nr 03 . Mês: Abril . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço0,01 €

04.10

A Visita do Papa

NR

03

É um daqueles acontecimentos que faz parar o País. Um país já muito lento pela inacção e pela incriatividade. E que faz deste pequeno território o centro do mundo, para compensar a sua situação de periferia e de insignificância na globalidade.

A atitude perante o Papa é um acto de ado-ração. Queiram ou não os teólogos católicos, o Papa passa por ser um ente divino. Os católicos veneram o Papa como um deus vivo. Seja ele um mortal e um pecador (como qualquer humano), os fiéis reser-vam-lhe as atitudes devidas a um deus incarnado. Segundo um dogma de 1870 ele é infalível. Auto-proclamado infalível.

Junte-se a isso o fenómeno Fátima, o sítio da Terra escolhido pela «Mãe de Deus» para aparecer (nas simbólicas humanas, a «Mãe de Deus» está acima de Deus), e temos dois traços culturais típicos do catolicismo mediterrânico, da área cultural que os anglos-saxões abreviam em pigs (Portugal, Itália - ou a Irlanda, a católica por excelência - Grécia e Espanha). Podíamos acrescentar Marrocos. A religião desta área cultural é exteriorizada, visualizável, multitudinária, massificada pela imitação, regida por infalibilidades e pela espe-rança em messias providenciais.

O Papa e Fátima são, hoje, dois símbolos do catolicismo, mas que - tendo em conta os textos sagrados fundadores do cristianismo compa-rados sociologicamente com as práticas - difi-cilmente se coadunam com a filosofia religiosa da origem que é alheia àquele tipo de culto e a qualquer chefia infalível.

A visita do Papa tem mais impacto em Portugal do que em qualquer país do mundo, já que é mal vista nos paí-ses anglo-saxónicos e nórdicos que são cristãos protestantes. Uma visita à Itália não faz sentido porque é lá que ele reside. Na Irlanda, enfrentaria a popu-lação cristã-protestante. A visita à Grécia será apenas diplomática porque os gregos, católi-cos ortodoxos, seguem os respectivos «papas» locais ou metropolitas. Em Espanha, uma visita do Papa provoca uma dor de cabeça à Igreja e ao Estado dada a capacidade de rebeldia e de contestação dos espanhóis. Em Portugal, o Papa está como que em casa. Os portugueses são seguidistas em deterimento da reflexão individual e da inovação; privilegiam a exte-riorização da religião em deterimento da espi-ritualidade; a salvação vem-lhes pelo confor-mismo; votam como lhes mandam; idolatram os ricos que os sugam; atropelam-se para ver o cacique bem-falante que lhes mente; admi-ram os grandes ladrões e os corruptos porque «são espertos». Demitem-se face aos podero-sos. São subservientes por opção. Em suma: já são «papistas» por cultura, papistas «avant la lettre». Daí que ver o papa- paradigma, o do antigo Império - o infalível pela via dum decreto - é o máximo.

Fátima e visitas papais servem, hoje, para superar a falência do catolicismo enquanto doutrina para a Salvação (em que já ninguém acredita, suplantado progressivamente pelo cristianismo evangélico). O catolicismo deixou de ser uma praxis espiritual, bíblica, apontada para o pós-morte. Tende a ser, apenas, uma referência cultural que se assume numa identidade exteriorizada

em monumentos. A pró-pria Igreja só já conse-gue afirmar-se com essas referências, obliterando o que ela própria esta-beleceu como práticas «indis-

pensáveis para a Salvação» que são os Sete Sacramentos.

Nos princípios dos anos 70 do séc. XX, 90% dos portugue-ses declaravam-se «católicos» e cerca de 65 % praticavam os Sete Sacramentos. Nos anos 80, cerca de 80% declaravam-se católicos mas, só, entre 15 e 20 % praticavam. Hoje, os praticantes situam-se entre os 10 e 15 %. E temos uma classificação tipicamente portuguesa: «católicos não praticantes», quer dizer, segue-se um líder sem aderir a uma doutrina. Hoje, a Igreja vocaciona-se para a defesa de «valores»... mas só de alguns valores - os da «família tradicional» e pouco mais.

O catolicismo era uma «reli-gião sociológica», uma justifi-cação para a defesa da Cultura. Este pressuposto desapareceu. Mas persistem outros traços cul-turais ancestrais: a divinização do líder, a demissão do indivíduo face ao «todos», a condenação das

diferenças, a exteriorização religiosa ver-sus espiritualidade... Assim, Fátima conta sobretudo porque «junta muita gente» e segue-se o Papa porque é um chefe, e «carismático» (bonito, etc), e porque «arrasta multidões» (as multidões comandam o indivíduo). Men-sagens para a Salvação pós-morte que era o objectivo do catolicismo: zero.

Moisés Espírito SantoProf. Cated. da UNL

Sociólogo das Religiões

Entrevista a Maria das Dores Meira

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O SUL - Jorge Sena disse: “A cultura serve para mos-trar a nós próprios que somos melhores do que pensamos ser”. Numa das cidades mais pobres do país, como pode a cultura enfrentar este paradigma?

Maria das Dores Meira - Sem cultura, o local onde vivemos não faz sentido, o município não se desenvolve sem cultura. Somos um município privilegiado, com um enorme legado deixado pelos nossos antepassados, a nível histórico, ambiental e humano de referência, o que nos dá a base para desenvol-vermos Setúbal para aquilo que queremos ser. Temos de continuar com as nossas raí-zes, música, poesia, escrita e associações.

S - O que está a ser feito para salvaguardar a memó-ria da cidade, visto que sem memória não há futuro?

M. D. M - Na área da música temos um projecto de divulgação do canto lírico, que não acontece em mais nenhum sítio do país, tendo como referên-cia a Luísa Todi, que nos faz continuar. Apoiamos as escolas de música e o nosso conservatório.

Ta m b é m n a á r e a d a s artes, em relação ao patri-mónio edificado, a preser-vação e requalificação do Convento de Jesus, é extre-mamente impor tante . É uma peça arquitectónica, um edifício que não pode desaparecer, para que ali possamos mostrar o melhor que temos na área da pin-tura, e que seja um museu vivo, onde se faça música, exposições e vários tipos de arte como já teve.

Setúbal também é extre-mamente rica na área do teatro, temos uma compa-nhia profissional e várias amadoras, o que não existe em muitos munic íp ios . Também não é normal ter-mos dois ranchos de fol-

clore, a riqueza das tradi-ções e da etnografia ligada à nossa memória das sali-nas e do estuário que eles cantam e preservam. Na área da poesia, homenage-ando o Bocage e o Sebastião da Gama, temos poetas que é uma coisa lindíssima. Nós também apoiamos e que-remos que tenham meios para que possam editar os seus livros.

Também temos a cinema-tografia, mais um privilégio, o Festróia, que promove o cinema através de um festi-val, temos também o Curtas Sadinas, que começou com doze ou treze curtas-metra-gens, e este ano estão cin-quenta a concurso.

Não posso deixar de refe-rir os nossos museus, que fazem parte da Rede Por-tuguesa de Museus, inclu-sivé já ganharam prémios, museus vivos, o Museu de Setúbal nem tanto porque as con-dições não são as melhores, mas o Museu d o T r a b a -l h o é u m museu vivo, com projec-tos que inte-ragem com a população e as várias comuni-dades que exis-tem em Setúbal, e é um dos pou-cos que existem na Europa com os três sectores do mundo do trabalho. Acho que isto é uma riqueza como não existe em muitos lugares.

S - Que razões exis-tem para não haver um museu da cidade aberto para perpetuar a nossa memória?

M. D. M - As razões são a falta de espaço. O Museu da Cidade vai funcionar no Con-vento de Jesus , e

aguardamos que dentro no máximo de dois anos esteja todo reabilitado, caso contrá-rio perderemos a candidatura ao QREN, para ter o espólio de pintura e escultura acessí-veis aos cidadãos, com expo-sições permanentes e itine-rantes, que possam contar e relatar a história da nossa cidade. Como se fez ainda há pouco tempo com a exposi-ção de João Vaz na casa da Baia, que os nossos serviços fazem com muita qualidade, temos também o privilégio de ter técnicos excelentes a tra-balhar connosco.

S - Como cada época segrega uma cultura pró-pria, o que está a ser feito para o apoio à cr iação actual?

M. D. M - Temos várias áreas de criação. Na área do teatro pretendemos ajudar os grupos de teatro na sua organização e do ponto de vista logístico, porque sem condições de trabalho é muito difícil criar. Vamos ter um auditório a funcio-nar no Quartel do 11, jun-tamente com a escola de hotelaria. Esperamos ter condições de acomodar o

TAS como companhia residente e no tea-

tro de Bolso, vir a dar lugar a mais

u m a o u d u a s companhias p a r a t e r e m outro tipo de condições. Em relação

à música quere-mos con-solidar o c a n t o l í r i c o e

promover o

estudo desta área, fazendo com que a casa Luísa Todi, que já tem o projecto ter-minado, avance ainda este mandato e passe a ser a casa do estudo da música erudita e clássica, e venha a ter uma gestão parti-lhada com o Conservató-rio, a Academia de Música e outras escolas, para ali haver um estudo da música diferente. Ainda na área da música temos previsto um espaço na Casa da Cultura, que irá ser criada, e em conjunto com a Associação José Afonso, um arquivo e fundo documental para a música tradicional por-tuguesa, de intervenção e popular. Estamos também preocupados em arranjar aí um espaço onde as ban-das de garagem, a música, o jazz se possam desenvolver e criar. De dizer que algu-mas das bandas que pas-saram no nosso Concurso de Bandas de Garagem, e que ajudámos a promover, andam em digressão pelo mundo. Estamos empe-nhados em criar o Museu da Educação em associa-ção com o Centro de Estu-dos Bocageanos, em prin-cipio será na antiga Prisão das Mulheres ou na actual Biblioteca Municipal, uma vez que irá para um espaço novo, e vamos continuar a apoiar na área da poe-

sia na edição de livros. Temos algumas edi-

ções nossas por sair e outra até lançadas

por técnicos nossos dos museus.

S - E apoio efectivo à cria-ção contempo-rânea, nome-a d a m e n t e a projectos?

M . D . M - Te m o s o p r o -

jecto RESARTE no qual participa-

mos, e para já ainda não temos mais nada

previsto. Apoio a projec-tos específicos não é fácil fazê-lo, em Setúbal, porque causa do orçamento que não é muito grande. Mas temos agora um projecto

Passados seis meses após uma vitória inequívoca nas elei-ções autárquicas, O SUL entrevista Maria das Dores Meira, Presidente da Câmara Municipal de Setúbal para procu-rar descortinar junto da autarca as práticas e políticas culturais que defende para a capital de Distrito.

Maria das Dores Meira

PATRÍCIA TRINDADE COELHO

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que vai avançar que tem a ver com arte pública. Vamos lançá-lo para escultores e jovens escultores, para se fazer arte pública em jardins e praças da cidade. Temos também alguns projectos muito pontuais com escolas, mas ainda não é nada estru-turado e com continuidade, infelizmente.

S - Estamos a assistir ao ressurgimento de associa-ções em várias áreas cul-turais. De que forma vê a sociedade civil disponível para este fenómeno?

M. D. M - Não é muito fácil, o movimento associativo é muito r ico, mas às vezes existem cri-ses directi-vas, de man-ter as pessoas. Como sabe-mos o trabalho é volun-tário e quase missioná-rio, e sabem daquilo que falo porque o fazem. Não é muito fácil num mundo globalizado em que as pes-soas estão assoberbadas pelos horários, alguns até na procura de trabalho por-que estão desempregados, outros a tentarem manter-se numa competitividade feroz, e pouco tempo lhes sobra para fazerem este trabalho extremamente meritório e importante, e estas crises de dinamização da sociedade civil aparecem.

Lembro-me que, por cau-sas extremamente nobres e importantes, como no caso da luta contra a co-ince-neração, assistimos a um mobilização muito fraca, face àquilo que nós sentimos serem as preocupações das pessoas. E neste momento é muito difícil dinamizar as pessoas, apesar delas nos dizerem que concordam,

tal como em torno do Con-vento de Jesus. Felizmente hoje temos a obra a arran-car, mas há uns anos quando era necessário pressionar as entidades do poder central que têm poder financeiro, era muito pouca gente em relação à maioria que acre-ditava na causa. De qualquer forma temos alguns grupos de teatro e associações que fazem muito e bom trabalho, e é sempre bom que apare-çam mais para ajudar a dina-mizar e mexer com as coi-sas, não podemos estagnar, é preciso agitar consciências e pôr as pessoas a pensar, mas

s e n t i m o s q u e existem várias razões que pren-dem as pessoas a suas casas.

S - A c a p i -tal de Distrito foi decapi-tada da única universidade aqui existente. Sem Artes e Humanidades como rein-ventar a sociedade?

M. D. M - É necessário haver outra Universidade, não faz sentido que a sul do Tejo até quase ao Algarve nada exista. Existem cur-sos que parece não termos direito ou acesso a eles, o que eu acho uma enorme maldade. Os acontecimen-tos relativos à Universidade Moderna foram muito mal geridos e tratados, o Ministé-rio da Ciência e Ensino Supe-rior nem sequer nos ouviu. Depois de várias pressões, inclusive junto do Sr. primei-ro-ministro, a quem solicitá-mos que intercedesse junto ao ministro Mariano Gago, para nos ouvir. É inadmis-sível que uma autarquia não tenha voz em algo com esta importância, o muni-cípio estava disposto a dar a sua cota-parte, e assumir a sua responsabilidade até

na gestão do próprio edifí-cio. Tínhamos algumas solu-ções para ajudar a resolver o problema, e para não fechar a Universidade, mas tal não aconteceu, o que revela um grande desrespeito por quem foi eleito pelos setubalenses, e pelos setubalenses. Fizemos algumas abordagens junto a uma universidade em Lis-boa, que não posso revelar visto ainda continuarmos em negociações, no sentido de vir um pólo com os cursos ministrados em Lisboa ou, pelo menos, alguns cursos para termos a trabalhar num pólo universitário em Setú-bal. Estamos a encetar esfor-ços para no próximo ano, virem senão os cursos, pelo menos as pós-graduações, para se começar a criar hábi-tos, e vamos ver o que acon-tece. Mas acho muito redutor não haver ensino universitá-rio na cidade, isto apesar do excelente trabalho do Insti-tuto Politécnico, é algo que nos faz muita falta.

S - Como se sente sendo m u l h e r à f r e n t e u m a autarquia?

M. D. M - Sinto que é um privilégio e uma honra a escolha dos setubalen-ses, pela minha pessoa e pelo partido que repre-sento, para dirigir o rumo da autarquia. Somos a Capi-tal de Distrito que maior PIB entrega nos cofres do poder central. É uma res-ponsabilidade enorme por-que sinto todos os dias que não posso falhar a aposta que os cidadãos fizeram em mim. Enquanto mulher, eu ou qualquer outra mulher somos uma mais-valia. A sinceridade que as mulheres têm, em qualquer área; acho que encaramos a missão de forma diferente dos homens, as mulheres têm maior espí-

rito de entrega, não desis-tem enquanto não resol-vem as questões, indepen-dentemente da hora a que regressam a casa. Na maior parte dos homens, o com-portamento não é o mesmo. Eu não sou feminista, por-que acho que a jornada da vida deve ser complemen-tada pelos nossos parcei-ros homens, m a s e s t o u s ó a f a l a r de caracte-rísticas. Por e x e m p l o , à frente de uma empresa, digo i s t o , p o r -que a minha formação é na área do direito. Como agente ofi-cial de propriedade indus-trial, tenho alguns escri-tórios, pelo que digo isto porque o trabalho estava sempre em primeiro lugar. Claro que verificava pri-meiro se o meu filho estava bem, mas é totalmente dife-rente a entrega. No municí-pio é extremamente moti-vante ver a transformação em que podemos participar e dá-nos uma força muito grande , ver que somos capazes e, com os outros, poder realmente mudar e ajudar em todas áreas. No início foi atípico o meu apa-recimento como Presidente da Câmara. Este mandato é mais formal e institucional. Não quer dizer que o outro não fosse, mas não é nor-mal aparecerem presiden-tes a meio do mandato. Esta substituição primeiramente não foi bem vista pelas pes-soas. Apesar da sua legali-dade, alguns sectores mani-festaram o seu desagrado. Se eu fosse um homem era normal, apesar de já ter acontecido noutras câmaras deste pais, enquanto mulher

as dúvidas apareceram: “Ela não vai ser capaz de gerir um barco deste tamanho”, afinal trata-se de um muni-cípio com um défice finan-ceiro muito grande, com muitos problemas sociais e de várias ordens, e dizia-se que: “Uma mulher não vai ter pulso”. Acho que conse-gui, passado um ano, provar

que assim não era, mas no pri-meiro ano sen-tia-me perma-n e n t e m e n t e a ser testada pelos partidos da opo-sição, a tentarem tudo com algum desrespeito. As

coisas nunca são fáceis, mas passado um ano, consegui ganhar o respeito de todos. Para os resultados eleito-rais alcançados foi preciso trabalhar quase o triplo do que seria normal. Gostava de dizer também que Setú-bal tem sido um Distrito atípico no que toca à ges-tão por mulheres. À frente da Assembleia Municipal tínhamos a Dra. Odete San-tos, tínhamos como Gover-nadora Civil a Arq. Teresa Almeida e, depois, a Dra. Eurídice Pereira. Eu estou como Presidente da Câmara, temos ainda uma Directora dos Serviços Prisionais, uma Directora da Polícia Judiciá-ria, uma Directora da Segu-rança Social, uma Directora do Festróia, outra da Aca-demia de Dança; à frente do Club Setubalense tínhamos uma mulher, na vossa coo-perativa Prima Folia, uma mulher, em quatro esqua-dras, no IEFP…; deveria ser feito um estudo, somos um concelho atípico no que res-peita às cotas.

Leonardo da [email protected]

A Presidente da Câmara Municipal de Setúbal em entrevista

“ Sem cultura, o

local onde vivemos não faz sentido (...)

“ É necessário

haver outra Univer-sidade, não faz sen-tido que a sul do Tejo até quase ao Algarve nada exista.

FICHA TÉCNICA:Propriedade e Editor: Prima Folia - Cooperativa Cultural, CRL Morada: Largo António Joaquim Correia, nr 7 1º Dto, 2900-231 Setúbal Director: António Serzedelo Subdirectores: Anita Vilar e José Luís Neto Consultor Especial: Fernando Dacosta e Raul Tavares Conselho Editorial: Hugo Silva, Leonardo da Silva, Maria Madalena Fialho e Patrícia Trindade Coelho Directora de Arte: Rita Oliveira Martins Consultor Artístico: João Raminhos Morada da redacção: Rua Deputado Henrique Cardoso, nr 30-34, 2900-109 Setúbal E-mail: [email protected] Site: http://www.jornalosul.com Registo ERC: 125830 Depósito Legal: 305788/10 Periodicidade: Mensal Tiragem: 10.000 exemplares Impressão: Tipografia Rápida de Setúbal Morada da tipografia: Travessa Gaspar Agostinho, nr 1 - 2º - 2900-389 Setúbal Telefone: 265 539 690 Fax: 265 539 698 E-mail: [email protected]

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Há uma anedota portuguesa que conta a história de uma beata, tão beata, que era fumada por um padre. Este começo popular leva-me a falar-vos hoje de duas coisas: das mulheres dentro da igreja e da sua impossibilidade de ministrarem as missas.

É claro que muitas são teólo-gas, fundamentalistas acérrimas sobre a interrupção voluntária da gravidez e da eutanásia, o que serve para exemplificar este tipo de marca de tabaco.

Confuso? Passo a descre-ver esta campanha publicitá-ria sobre as beatas humanas. Recordem-se da lei que vigora desde 1 de Janeiro de 2008 que obriga as pessoas a fumarem na rua, fora do seu lugar de traba-lho, centros comerciais, bares, discotecas. Nessa altura, correu logo uma piada “Ainda dizem que a igreja católica está em crise! Desde esta manhã que há uma mani-festação de beatas nas ruas à procura de novos fiéis (…)” O que é que isto tem a ver com as mulheres na igreja e na sua impossi-bilidade de pode-rem dar missas? Ou terem outros cargos dentro da igreja para além de só serem teólogas ou freiras? Claro que tem. Falo-vos então das mulherzinhas, habi-tuadas a estar na igreja, cren-tes, ajudantes, como se fossem uma doméstica da igreja que só servisse para rezar o terço ou, no melhor dos casos, a gover-

nanta do Senhor Padre… Mas há algo de podre no reino da Vir-gem Maria… Apesar de muitas terem abraçado a fé, serem mis-sionárias, freiras nos mais varia-dos cantos do mundo, algumas estiveram nas antigas colónias em Angola, Moçambique, Timor, outras até receberam o Prémio Nobel da Paz em 1979 e recor-do-me, então, de Madre Teresa de Calcutá.

Mas questiono-me logo … será que ela não foi para o Seminário? Será que deu alguma vez missa ? Haverá alguma vez espaço dentro da igreja católica para uma mulher padre, bispo ou papa? Contam-se lendas de uma papisa… mas será que o Vaticano aceita ? Será que nos livros de Nostradamus haverá passagens que falem sobre isso? E o Padre António Vieira falou nalguma parte delas no famoso

Quinto Impé-rio? A mulher na Igreja Cató-lica estará sem-pre condenada a ficar nos basti-dores, apesar de terem um olhar crítico e viperino sobre o que se passa sobre a vidinha de cada um; não gostam

de mudanças… até parece que têm medo de estar no palco de uma arena da fé … mas elas continuam lá na igreja, cala-das a apararem-lhe os golpes, dão-lhes uns beliscões psico-lógicos para ver se os acor-dam, mas nada, algumas até

manipulam os fiéis quando estes seus meninos continuam a esticar as cordas nas suas acções dominicais e pessoais, preparam ardilosamente um abaixo-assinado dirigido ao senhor bispo, para correrem com aquele herético dali para fora. Digam lá se não há aqui um serviço de bastidores?

Afinal, as beatas dão cházi-nhos na hora do terço, nas mis-sinhas aos domingos e noutros locais de beneficiência; coitadas, não podem entrar nos quadros da fé corporativa ou até mesmo absolutista, porque o galo de Roma continua a cantar no seu poleiro como quer e dispõe. Alguns deles até comentam: E se elas fossem papas, o fumo dei-xaria de ser branco ou passaria a ser rosa choque? Haveriam pastoras de interiores? Have-riam hóstias com sabor a diver-sos pratos culinários? De onde viria o vinho? Teriam que dar a missa a correr para fazer as tarefas domésticas? Haveria espaço para terços Ives Saint- Laurent? As velas da Igreja do Vaticano seriam do Empo-rio Armani Casa? Seria lan-çado algum perfume da Caro-lina Herrera com o nome de Santa Teresa de Ávila?

Serão estes os pontos que os homens temem? Ou serão outros em que elas responde-riam aos problemas com uma maior eficácia? Até porque a Igreja foi e ainda é hoje um óptimo instrumento de poder. Não tomariam elas com mãos de ferro a questões ligadas à pedofilia dentro da igreja? Não

evitariam os abortos que se fazem quando são padres a sugerir o aborto a algumas das fiéis mais fervorosas que trarão dentro de si um novo salva-dor do mundo? Ou não vigia-riam alguns homens que iriam para a Igreja para se casar com Deus? Já que a família não per-mite que me casem com uma pessoa do mesmo sexo que eu, a sociedade não aceita e a igreja também não? Porque não casarem-me com Deus, ao menos assim comiam dois ovos da Páscoa de uma vez só. Dariam o laço matrimonial perfeito sem se manifestarem, até porque como diz a Igreja o que Deus uniu, jamais nin-guém pode separar…

Se elas chegassem a padres, bispos ou até mesmo papas, será que não haveria um novo cisma ou até mesmo uma crise de fé? Não haveria aqui um remake do século XVI das 95 teses de Lutero ? Não seriam construídas as bases de uma nova fé?

Nalgumas seitas ou deriva-ções do Cristianismo já exis-tem mulheres pastoras e bis-pas. Alguns pastores evangé-licos quando viram mulhe-res a ministrarem cultos con-verteram-se ao Catolicismo. O que eles pensaram foi mais ou menos isto: bem se não os posso vencer, junto-me a eles. Creio que eles temam o resul-tado do Livro do Apocalipse de São João tendo que se curvar à besta da Lilith... Pensemos que o grande mistério desta situa-ção é que a sua bíblia não seja aquela a que é lida nas missas,

mas sim um livro de Moliére “As Preciosas Rídiculas “.

Bento XVI até poderá mesmo escrever um livro com o nome de “As Preciosas Beatas “, podendo até escrever isto:

- Vocês, gajas missionárias, sairam da costela de Adão, são descendentes de Eva que deu a maçã a Adão, não queiram que vos aconteça o mesmo à única mulher que se divorciou dele com o apoio da Igreja. Coitada, foi condenada a errar pela eter-nidade. Vejam lá se não que-rem fundar a Congregação das Irmãs Descalças de Lilith? Vocês estão condenadas a ser apenas umas preciosas beatas.Enquanto nós, padres, teremos direito a ler o Record Missionário, trei-nar no Ginásio Missionário, ir à Portugália Missionária, enfim às coisas que nós, gajos mis-sionários, fomos preparados para dar missas. Porque vocês, como disse, estão condena-das a ser umas preciosas bea-tas; continuem aí, a rezar, a pre-parar-nos as coisas a que nós estamos habituados enquanto o mundo durar. Ainda bem que vocês só sabem dizer mal da vida dos outros e não se juntam todas para fazer uma liga contra nós, gajos missionários, e fazer-nos frente, porque até mesmo o grande remate do Juízo Final será feito por um homem. Con-tinuem assim preciosas beatas que estão bem. O senhor esteja convosco. Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.

António AlmeidaHistoriador

As Preciosas Beatas

“ Serão estes os pontos que os homens temem? Ou serão outros em que elas respon-deriam aos pro-blemas com uma maior eficácia?

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O naufrágio da Nuestra Señora del Rosario Portugal, os Açores e a

Madeira funcionaram no perí-odo das Descobertas como uma autêntica placa giratória mundial para as embarcações que faziam a torna-viagem do Oriente e das Américas.

Lugar de abrigo e de pas-sagem obrigatória de navios e f r o t a s d e comércio e de guerra, os nos-sos mares foram cenário habi-tual de naufrá-gios de navios, o que explica bem o facto da Carta Nacional Arqueológica Subaquática conter cerca de 6000 registos de embarcações naufragadas em águas portuguesas.

Um destes registos corres-ponde ao de uma nau espa-nhola da frota das Índias Oci-dentais que “depois de cortar os mastros, deu à costa rija-mente em Setúbal, onde se partiu em bocados, com alguns homens a salvarem-se a nado e a darem a notícia de que o resto se teria afogado.”

Para saber que nau era esta teremos que retroceder até 12 de Setembro de 1589, dia em que zarparam de Cuba cerca de 90 naus e galeões. Entre tempestades, ventos contrá-rios e os corsários ingleses de Lorde Cumberland que os esperavam nos Açores,

dois destes navios conseguiram che-gar sãos e salvos ao porto de Angra, na ilha Terceira.

J a n H u y g e n van Linschoten, um holandês que naufragara tam-bém ele nos Aço-

res conta-nos como anco-raram “a capitana e a vice-almiranta da frota, carrega-das com 5 milhões em prata, tudo em grandes lingotes de 4 e 6 quilos de peso, que dis-puseram no cais, que ficou coberto de tabuleiros e arcas de prata, cheias de moedas de 8 reais, uma coisa mara-vilhosa de se contemplar, para além do ouro, pérolas e outras pedras preciosas, que não vinham registadas.”

Estes dois navios - o galeão Santissima Trinidad e a nau Nuestra Señora del Rosario - saíram de Angra a 26 de Novembro de 1589. Três dias depois, uma tempestade fez abrir a calafetagem da Trini-dad. Perante a iminência do naufrágio, o almirante Juan de Goyaz transferiu toda a prata que tinha a bordo, bem como a sua tripulação e pas-sageiros para a Rosario.

Correndo com os ventos ainda ciclónicos, avistaram terra, provavelmente Lara-che, em Marrocos. Ao ama-nhecer do dia 7 de Dezembro, acha-ram-se “vara-dos quasi en tierra a sota-vento de Setubal”.

“Pegados a la costa”, querendo entrar no porto, não o puderam fazer por haver “grande mar y viento oest-noroest muy forçosso” pelo que foram

obrigados a “dar fondo en la costa y ensenada de troya”.

Perante o deteriorar das condições meteoroló-gicas , resolve-ram cortar as amarras e dar com a nau em terra “donde en 2 horas se hizo muy pequeños pedazos la nao obra de dos leguas de Setubal”.

Da tripulação de 240 pessoas, cerca

d e me t a d e afogou-se nas areias da foz do Sado. Per-deram-se igualmente cerca de 23

toneladas de ouro e prata.

Nos meses que se seguiram, pescadores e

oficiais da Coroa acharam por entre documentos, ins-

trumentos de navegação e bens pessoais dos naufra-gados, grande quantidade

de prata e ouro lavrado ou amoedado. Ape-

sar de terem sido contratados

vários recu-peradores de salvados, quase nada da carga de

dois navios que esta nau

trazia a bordo foi recuperado.

Se o local do nau-frágio não foi ainda locali-zado até agora, esta situação poderá contudo vir a mudar brevemente: este ano, um projecto de prospecção irá ser levado a cabo pelo Minis-tério da Cultura. Talvez então se possam trazer à superfí-cie as evidências materiais de uma tragédia que não foi menos do que a maior lás-tima do mundo para quem a ela sobreviveu.

Alexandre MonteiroArqueólogo

“ Da tripulação de 240 pessoas, cerca de metade afogou-se nas areias da foz do Sado.

A barra do Sado, de Pedro Teixeira (1634), in “El atlas del Rey Planeta: la descripción de España y de las costas y puertos de sus reinos”

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Desigualdade de género, As mulheres “pela sua natu-

reza” foram deixadas para trás pela igualdade de direitos da Revolução Francesa. E o modelo que a sociedade do séc. XIX desenvolveu a partir deste acto discriminatório, tradu-ziu-se no estereótipo da famí-lia burguesa, onde as mulheres eram “mães dedicadas e espo-sas amantíssimas”, estando-lhes vedada a actividade de carácter público.

Contudo a realidade do ope-rariado pobre era diferente. As mulheres do povo, por necessidade, eram parte da força produtiva do capitalismo emergente, mas fruto dos mes-mos valores dis-criminatórios, a sua mão-de-obra tinha menor valor.

Hoje, apesar das conquistas feitas pelas mulhe-res ao longo do séc. XX, a discri-minação no mundo do trabalho continua a ser uma realidade estrutural e persistente.

A OIT, em 1951 aprovou a Convenção nº100, que institui salário igual para trabalho igual. Esta Convenção foi adoptada pela Lei Portuguesa em 1969. Na Europa, segundo o EUROS-TAT, a média da diferença sala-rial entre homens e mulheres é de 18%, sendo Portugal o País da UE27 com a 4ª menor dife-rença (8%) influenciada pela elevada participação feminina no mercado de trabalho, pelo número elevado de trabalhado-res/as na administração pública e por níveis salariais médios pouco elevados.

Mas se analisarmos os dados dos Quadros de Pessoal do Minis-tério do Trabalho que se debru-çam apenas sobre o sector pri-vado nacional, concluímos que a diferença nas profissões menos qualificadas é de 8%, mas nas profissões mais qualificadas a diferença é de cerca de 30%.

Ainda com base na mesma fonte, tendo em conta todo o universo de trabalhadores/as do sector privado, as mulheres são mais qualificadas que os homens mas encontram-se maioritaria-mente na base da pirâmide das categorias profissionais.

A formação/qualificação, cru-zada com o diferença salarial existente nas categorias profis-sionais mais elevadas, demons-tra que o acesso à educação e à formação das mulheres, não veio resolver, per si, as desigual-dades e a precariedade feminina no mercado de trabalho. Poderia ter feito a análise a partir dou-tros factores como o acesso a lugares de decisão ou os víncu-los laborais que obteria idênti-cos resultados.

Esta realidade persistente durante a era moderna e que se perpétua na pós-modernidade conti-nua a ter como pano de fundo a “natu-reza” feminina, ou seja, o papel repro-dutor das mulheres que se confunde com a função de cuidar construída socialmente numa base, rígida e con-

servadora, com consequências nefastas ao longo do ciclo de vida, destacando-se a forma-ção do valor das pensões.

Estou convicta que a desi-gualdade de género no mer-cado de trabalho, que se traduz em precariedade laboral para as mulheres e que tem pro-fundas implicações no desen-volvimento dos países, quer ao nível da economia, quer ao nível da pobreza, ou ainda ao nível da natalidade, se ganha, fundamentalmente, por duas vias: pela conquista mascu-lina da esfera doméstica, que passa por uma atitude pró-activa dos homens reflectirem sobre a sua identidade mascu-lina num novo paradigma de organização social, mas tam-bém pela necessidade de ser assumido através dos parcei-ros sociais em sede de concer-tação social, que a luta contra a desigualdade de género no mercado de trabalho é uma prioridade nacional que trará resultados positivos no com-bate à precariedade, no com-bate à desigualdade, na pro-moção duma sociedade com elevados padrões de justiça e desenvolvimento, uma socie-dade digna do séc.XXI.

Catarina Marcelino Deputada do Partido Socialista

“ Hoje, apesar das conquistas feitas pelas mulheres ao longo do séc. XX, a discriminação no mundo do trabalho continua a ser uma realidade estrutural e persistente.

factor de precariedade laboral

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MayDay: uma resposta urgente do precariadoO avanço brutal da precarie-

dade, que se instalou nas nossas vidas como se fosse inevitável, há muito tempo saiu do anoni-mato. Existe hoje uma resposta que cresce e recusa os anúncios dum presente e dum futuro sem perspectivas, feito do massacre diário das milhares de pessoas que sustentam lucros crescen-tes e crises sucessivas.

O MayDay é uma dessas res-postas. Uma experiência interna-cional, que surgiu em Milão em 2001 e que se vem generalizando a várias cidades europeias e não só. No 1º de Maio, Dia do Trabalhador, milhares de precá-rios e precárias saem à rua em vários can-tos do mundo para afirmar a recusa dos trabalhos temporá-rios e das vidas sus-pensas, das chanta-gens e das perseguições no traba-lho, dos salários que não dão para viver e da ofensiva sobre os servi-ços públicos. É um chamamento urgente, numa parada combativa que responde com imaginação ao cinzentismo que querem impor às nossas vidas, onde desfila a alegria da luta dos explorados que conhe-cem a sua condição, mas recusam aceitá-la.

Em Portugal, o MayDay reali-za-se em Lisboa desde 2007 e no ano passado chegou também ao Porto, acompanhando o cresci-mento do movimento e da sua capacidade de mobilização. As

primeiras edições foram, acima de tudo, os primeiros momen-tos de visibilidade do precariado em Portugal, a afirmação da sua condição e da urgência de con-tarem na luta dos trabalhadores. Não foi um acto arrogante nem hostil, mas uma expressão que tardava tendo em conta a enorme recomposição que se vem esta-belecendo nas relações laborais – estima-se que existam hoje 2 milhões de pessoas com víncu-los precários em Portugal. Seria grave ignorar que a precariedade não é um fenómeno dependente

duma qualquer circunstância particular ou da emergência de crises mais ou menos violen-tas: é a forma como governos e patrões, por essa Europa e

mundo fora, imaginam a orga-nização do trabalho e da vida de milhões de pessoas.

O MayDay continua a ser hoje o que foi sempre: um ponto de encontro, onde se juntam as várias vítimas da renovada agressividade da exploração, mobilizando-se a partir da convicção de que é possí-vel tomar a vida nas mãos e apos-tar num contra-ataque ao isola-mento para que são empurrados sectores cada vez mais vastos da classe trabalhadora. É aqui que se centra o desafio decisivo: contra-riar a pulverização forçada dos tra-balhadores e trabalhadoras, reno-

vando a sua capacidade de orga-nização para permitir enfrentar as velhas e novas formas de opressão nas relações laborais.

Tem sido este o percurso e a contribuição do MayDay para o combate fundamental de quem

trabalha para viver. Três anos após o seu arranque, o saldo desta organização é da maior impor-tância. Com esta mobilização, em grande medida, começou a ultra-passar-se o medo que encobria uma realidade que tardava em

encontrar um lugar central no conflito social e no debate polí-tico. Foi também a partir da expe-riência do MayDay que surgiram e se afirmaram os primeiros colec-tivos de trabalhadores precários com intervenção permanente. E, o que é mais importante, o com-bate à precariedade conta já hoje com experiências concretas de trabalhadores que se organizam para a denúncia e superação da sua situação específica.

No próximo dia 1 de Maio, a mobilização de todos os tra-balhadores é fundamental e faz-se num contexto de ataque ao conjunto da população, em que a sangria da crise revela toda a ganância e agressividade. Nunca foi tão urgente uma res-posta decidida, uma mobilização contra os congelamentos vários – nos salários, nos direitos, nas prestações sociais, na vida –, recusando a forma trágica como alastra o desemprego e, no seu lastro, se amplifica a vulgariza-ção da precariedade. Os precá-rios lá estarão, em Lisboa e no Porto, com todos os trabalhado-res, num protesto que tem que reclamar uma resposta à degra-dação de todas as condições para trabalhar e viver. Até lá, continu-amos este percurso de mobili-zação, na qual todas as pessoas são necessárias. Já soa o alarme: MayDay!! MayDay!!

Tiago Gillot Activista do MayDay Lisboa

e do Mov. Precários Inflexíveis

“ Tem sido este o percurso e a contri-buição do MayDay para o combate fun-damental de quem trabalha para viver.

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A cidade do Barreiro, com cerca de 50 000 habitantes (82 000 em todo o Conce-lho), é emblemática da Mar-gem Sul. Apre-senta das mais acutilantes rea-lidades urba-nas do Distrito. Palco privile-giado de algu-mas das duras lutas sociais do Século XX apresenta-se, actualmente, ainda presa a esse património genético do século que nos antece-deu. Contida face ao enorme

potencial que apresenta, adiou as suas capacidades intrínsecas frente ao brilho da cidade que se lhe opõe

na outra mar-gem do Tejo; dei-xou-se adorme-cer na suave can-ção de embalar da suburbanidade, do facilitismo em se converter em cidade-dormi-

tório. Com uma mobilidade pendular diária absoluta-mente reveladora, um pas-sado industrial insatisfatoria-mente ultrapassado, conflitos

sociais latentes, é dos locais onde o estigma da pobreza e da miséria é auditivamente visível. Face ao que parece ser uma inevitabilidade, onde o pragmatismo racio-nalista aconselha aceitação a um mundo que não é per-feito, erguem-se doze jovens, que opõem ao calculismo frio dos números, a obstinação do calor terno das suas convic-ções e da sua fé.

São 21 horas quando me encontro na igreja de Santa Maria, a paroquial mais cen-tral da cidade do Barreiro. Apesar do vasto largo que

antecede o templo, ladeado por prédios altos, não deixa de ser claro que o mesmo é de uma dimensão desme-surada. Permite receber até 1200 fiéis, o que faz com que este seja o maior edifício religioso de toda a Diocese de Setúbal. A arquitectura não esconde a sua inspiração primitiva. Grosso modo é um gigantesco pavilhão despor-tivo, somente difere, e muito, no que cobre este esqueleto de betão, tornando-o digno e útil para a função a que se destina, por vezes até inti-mista. Por detrás da igreja existe um vasto pátio, parte ajardinado, outra parte des-tinado a um grande telheiro e a um volumoso armazém. A porta do armazém estava aberta, permitindo ver um corredor que liga várias salas. Numa delas encontra-vam-se dois jovens, prepa-rando umas etiquetas colo-ridas. Agregado famil iar com 1 pessoa corres-ponde à cor azul, agregado de 2 pessoas cabe-lhe a cor laranja, à de 3 pessoas a cor verde e assim sucessivamente, seguindo o arco-íris das possibili-dades humanas. A estas etiquetas coloridas plasti-ficadas, junta-se um ou vários autocolan-tes com figuras de bonecos estandardizados, com a fres-cura de uma “Hello Kitty”. Pergunto para que servem aqueles desenhos, ao que Ana, psicóloga de 25 anos apenas, interrompe o tra-balho e diz-me: “As figuras com laçarotes rosa repre-sentam uma filha, as figuras com a jardineira azul repre-sentam um filho. Colamos tantas figuras quantas forem as crianças de um agregado familiar. É assim que sabe-mos a comida necessária para essa família, ao longo de um mês.” Dito isto retorna às fitas coloridas de embru-lho, que prende a cada eti-queta. Vi que me introdu-zia no meio de uma vasta cadeia operatória de solida-

riedade, que em muito pre-cedia aquele procedimento, bem como muito tinha ainda a percorrer até alcançar o seu fim último.

O processo tem início numa sessão pedida junto do secretariado da paró-quia, solicitando apenas um encontro com alguém do grupo social. Marcado o mesmo, segue-se uma con-versa intimista com apenas um dos membros, de modo a não expor quem pre-cisa deste apoio. Após, uma ficha é feita, é informati-zada a informação modelo, salvaguardando-se o sigilo entre a pessoa que pede e a que dá despacho ao pedido. É confirmada a informação e criado um cartão nominal que é entregue ao utente. A partir daqui, segue-se a soli-citação de aumento da distri-buição alimentar, por parte do grupo social ao Banco

A l i m e n t a r e à Segurança Social. Casos excepcionais, como aqueles que necessitam de maior apoio, para além de alimentação e vestuário, são encaminhados para o Prior. As famílias ou os indivíduos que possuem o cartão passam

a ser acompanhados regu-larmente pelo grupo, que se vai inteirando das maiores ou menores necessidades, pois a realidade é dinâmica.

Mensalmente chega o apoio do Banco Alimentar e, trimes-tralmente, o da Segurança Social (Programa Comunitário de Apoio Alimentar a Carencia-dos – PCAAC), ao qual se junta o angariado pelos paroquia-nos, principalmente consubs-tanciado em vestuário, que é o que as instituições supra-men-cionadas não fornecem. Tudo o que chega é inventariado e verificado, mercê da sua natu-reza e das datas de validade, de modo a optimizar a distri-buição. Com base nos fundos alimentares e no número de utentes, para além da percep-ção das necessidades de uma

Não há maçãs podres no fundo do cesto

“ Colamostantas figuras quantas forem as crianças de um agregado fami-liar. É assim que sabemos a comida necessária para essa família, ao longo de um mês. “

“ O Barreiro (...) é dos locais onde o estigma da pobreza e da miséria é au-ditivamente visível.

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Não há maçãs podres no fundo do cestopessoa, se elabora o cabaz mensal individual. Após todo este trabalho, há que fazer a repartição da distribuição, colocando as etiquetas colo-ridas com os res-pectivos sacos cor-respondentes, onde estarão já os pro-dutos alimentares. Esta foi a fase do processo em que encontrei os dois jovens já referidos.

Pouco depois, mais dez outros jovens se lhes jun-tavam. Após o jan-tar, ao invés de outras opções à sexta-feira à noite, optam por ir para ali, onde lhes espera longas horas de labor. Sempre em conversa animada, trocando impres-sões sobre tudo e sobre nada, com gargalhadas intercala-das, iniciaram a realização dos cabazes alimentares para 540 pessoas. Sublinhe-se que este trabalho constante, per-

sistente e necessário, é feito em regime de voluntariado. As motivações pessoais que levam a que doze pessoas ali se juntem com vista a uma

noitada de tra-balho regular foi um dos pon-tos que mais me impressio-nou ao longo daquela noite. São pessoas com percur-sos bem distin-tos, vidas dife-r e n t e s , m a s que o conse-guem ultrapas-sar em prol de causa comum.

Para Ana, por exemplo, tra-ta-se de um processo de des-coberta, também ela volun-tária de missionação em São Tomé. Procura um lugar actu-ante numa igreja que não oferece muitas soluções às mulheres de espiritualidade viva, que aos claustros pre-fira um apostalado militante.

Para David a motivação é bem distinta, pois encara o volun-tariado de forma neo-cruza-dística. Para ele “a igreja está a ser perseguida pelo sistema” e “não é uma boa acção ajudar os outros só por si” despro-vido de um enquadramento mais vasto, o que colide com o artigo 39.º do título III da “Doutrina Social da Igreja”, mas que se compreende à luz de uma típica sã juven-tude, que se bate por causas. Já para Maria João, a razão de ali estar prende-se com a fina ironia de “para poder criti-car, como gosto de fazer, pre-cisava de fazer alguma coisa que me desse essa legitimidade”. “Afi-nal podia estar no cinema, não numa discoteca porque não gosto muito, mas também posso ir ao cinema num outro dia qual-quer”, confessa entre uma gargalhada. O ligante de toda esta diversidade humana, tão comum a tantos outros luga-

res, que dispensa a perfei-ção dos modelos gregos ou hollywoodescos, é essa obsti-nação comungada que estava bem explícita nuns papéis dispersos pelo armazém – “Famílias de 2: 3 kg de arroz, 1 kg de leite em pó, 4 litros de leite líquido, queijo – 3 caixas de triângulos e 2 fatiados, 6 pacotes de manteiga, 1 pacote de cereais (papa láctea), 1 kg de farinha, 3 embalagens de sobremesas de morango, 2 embalagens de esparguete, 1 kg de açúcar, 3 pacotes de bolachas, 4 pacotes de leite de chocolate, 3 litros de leite-creme, 2 embalagens de massa

cotove los , 2 embalagens de massa pevide e 2 embalagens de macarrão.”

Os números, todavia, não escondem um cenário aterrador. Segundo os números avançados por fonte da Segurança Social de Setú-bal, no Barreiro existem 1050 famílias ou, se preferirmos,

2750 pessoas a serem assis-tidas através dos programas de auxílio na sua alimentação diária. 5,5% da sua popula-ção vive em extrema pobreza, sendo que 1,1% dos habitan-tes é alimentada pelo esforço das 14 a 18 horas mensais que aqueles 12 jovens decidiram doar. Este triste panorama assume maiores proporções quando pensado à escala dis-trital, onde, 12,5% da popula-ção está oficialmente desem-pregada (CGTP/IN segundo dados do IEFP para Janeiro de 2010), o que significa que, na realidade, pelo menos 15% da população activa está sem trabalho, o que inevitavel-mente irá engrossar, e muito, as já 36 078 que não con-seguem fazer face ao mais básico da sua existência – dis-porem dos meios para sim-plesmente comerem. Não nos enganemos, estamos perante uma calamidade social.

José Luís [email protected]

“ (...) no Barreiro existem 1050 famílias ou, se preferirmos, 2750 pessoas a serem assistidas através dos progra-mas de auxílio na sua alimentação diária.

“ (...) a igreja está a ser persegui-da pelo sistema”

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Quero o meu “c” mudo, se faz favor

A lusofonia, tal como a burocracia a entende, não passa de uma triste ilu-são. Verdade que, de tem-pos a tempos, os países da dita comunidade lusófona se reúnem para discutir um conjunto denso de inani-dades. É pouco. É nada. Em grande medida, e fora a ilu-minada sonsice habitual, Por-tugal não quer saber do resto do mundo lusófono. E o mundo lusó-fono não quer saber de Portu-gal. E não sem alguma razão.

A realidade, no entanto, nunca foi impeditiva de fantasias avulsas por parte de mentes superiores. A última pérola? O Acordo Ortográ-fico da Língua Portuguesa de 1990, que, perdido na gaveta durante alguns anos, e de onde nunca deveria ter saído,

voltou a ser colocado recen-temente na agenda pública. Segundo os seus relatores e defensores, este Acordo visa constituir-se como «um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional». Nada mais falso. Nada mais

i d i o t a . P r i -meiro, porque a língua por-tuguesa não se constitui como u m a « u n i -dade», e muito m e n o s s e r á esta «essen-cial» para o s e u u s o ; a

língua inglesa, por exem-plo, entre outras, apresenta variantes nos diversos paí-ses que a tomam como lín-gua oficial, sem nunca ter sido objecto de regulação estatal – o que nunca foi impeditivo do sucesso da mesma. Segundo,

porque o «prestígio interna-cional» de uma língua, a con-seguir-se, consegue-se atra-vés da sua real leitura e uso, muito por intermédio dos seus «clássicos» literários, e não por decretos legais e, por isso, artificiais, em maté-ria cultural, os quais, aliás, nunca foram pródigos em gerar grandes resultados.

O Dr. Carlos Reis, no entanto, discorda. E com um argumento de peso. Este emi-nente especialista, que fundou uma distinta carreira alimen-tando-se da pobre carcaça de Eça de Queiroz, munido de ininteligíveis poderes sobre-naturais, afirma, convicto, que o próprio Eça subscreveria este extraordinário Acordo. Ele lá deve saber. Para este, e para Eça, aparentemente, a eliminação das consoantes mudas ou semi-mudas c e p, sem regra ou sentido, e contra todo um testemunho etimo-lógico, a supressão do hífen,

do incompreensível emprego e supressão dos acentos, etc., etc., não poderia ser mais lógico e defensável. E tudo em prol de uma «defesa da uni-dade essencial da língua por-tuguesa». O que é facto é que, de forma sinoní-mica, os brasilei-ros continuarão a andar de óni-bus e os portu-gueses de auto-carro. Pormeno-res, sem dúvida.

Verdade que esta não é a primeira reforma ortográfica da língua portu-guesa. Em 1911 procurou-se, com a dita reforma ortográ-fica, acima de tudo, dar uma unidade à grafia de Portugal, que então vivia numa pro-funda irregularidade. Este não é de todo, no entanto, o caso presente.

Porque é preciso ter em atenção que a língua, qual-quer língua, é um sistema orgânico (porque usada por

um conjunto de seres falan-tes) que natu-ra lmente se desenvolve, quer na fala quer na gra-fia, através do tempo, e que a c a r r e t a n o seu aspecto gráfico e dic-cional , todo um porte cul-tural e identi-

tário. Esquecer isto é esque-cer tudo. O que, infelizmente, com este Acordo Ortográfico, foi o que aconteceu.

Pessoalmente, como tantas coisas na vida, quero o meu c mudo, se faz favor.

Tiago Apolinário BaltazarEstudante

“ Verdade que esta não é a primeira reforma ortográfica da língua portugue-sa. Em 1911 procu-rou-se, com a dita reforma ortográfica, acima de tudo, dar uma unidade à gra-fia de Portugal (...)

“ Portugal não quer saber do resto do mundo lusófono. E o mundo lusófono não quer saber de Portugal. E não sem alguma razão.

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Agostinho da Silva, cujo centenário do nascimento se comemorou no ano de 2006, é, por muita gente, tido como um filósofo “bem intencio-nado”, “generoso”, mas, por isso mesmo, demasiado opti-mista, demasiado ingénuo…

Essa “impressão geral” não resiste, contudo, ao confronto com alguns textos do próprio Agostinho da Silva. Eis, em particular, o que veremos na sua obra Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, obra redigida em 1957, já no Bra-sil, para onde Agostinho par-tira em 1944 e donde só vol-tou em 1969, vinte cinco anos depois, para, de novo em Por-tugal, viver os últimos vinte e cinco anos da sua vida.

Na sua obra Reflexão à Margem da Literatura Por-tuguesa faz, Agostinho da Silva, uma retrospec-tiva da História de Portugal, desde a genesíaca cisão com Castela,

passando por toda a Gesta dos Descobrimentos, até à situa-ção portuguesa de então.

Sendo esse o enfoque, a perspectiva agostiniana extra-vasa em muito esse horizonte. De tal forma que, em particular no seu último capítulo, desen-volve, Agostinho da Silva, uma reflexão sobre as sociedades de hoje – entendamo-nos: sobre as sociedades de hoje no pri-meiro mundo, as chamadas “sociedades da abundância” –, reflexão essa de tonalida-des bem sombrias…

Com efeito, se nesse último capítulo, prefigura Agostinho a possibilidade de se “varrer de vez da face do universo a miséria material da Humani-dade” – prefiguração não tão ingénua quanto parece, dada a

exponencial evolução da téc-nica –, pergunta-se o mesmo Agostinho que tipo de socie-dades resultariam dessa plena erradicação da miséria.

Ouçamos as suas palavras: “Que vão fazer os homens bem alimentados, bem vestidos e bem alojados e bem trans-portados que a técnica nos poderia apre-sentar desde já? Nenhuma experiência foi jamais feita em grande escala e, portanto, nada se pode afirmar de um modo que seja mais ou menos científico; mas há todas as razões para temer, pelo exem-plo de certos países em que

se atingiu já um nível de vida razoavelmente ele-

vado, que a Huma-nidade caísse na mais deplorável

das decadên-cias (…).”.

Eis, a nosso ver, o que já hoje se pode verifi-car em “grande escala”. Se é verdade que a grande maioria da humanidade se debate ainda pela satisfação das suas neces-sidades mate-riais básicas

– alimentação, vestuário e aloja-

mento –, a imensa minoria que já as

supriu não parece saber hoje, na sua

grande parte, “para que viver”. Como se,

satisfeitas as necessi-dades materiais bási-

cas, a humanidade não tivesse mais nada à sua

frente senão o vazio.Face a esse vazio, a essa

“vida vazia”, exorta-nos, Agostinho da Silva, à “vida plena”. Mas o que será – perguntar-se-á – essa “vida plena”? Para começar, ela

será, decerto, a antítese da “vida vazia” ,

aquela que não encontra, de

forma alguma, ou só de forma insuficiente, resposta à ques-tão “para que viver?”. A par-tir daqui, não há, obviamente, uma única resposta. É cada um de nós, na sua irredutível

singularidade, que sabe como pode fazer ver-dadeiramente da sua vida uma “vida plena”.

Ainda assim, Agostinho da S i l v a d á - n o s algumas pistas – daí, desde logo, toda a importân-cia da noção de

cultura no seu pensamento enquanto fundamental ins-tância mediadora no processo de plenificação humana. Ini-ciando-se esse processo na satisfação das necessida-des materiais básicas – ali-mentação, vestuário e aloja-mento –, facto por Agostinho em nenhum instante escamo-teado – e daí toda a dimensão sócio-política do seu pensamento –, ele só se cum-pre verdadeira-mente no sobre-sequente plano cultural.

À l u z d e s t a perspectiva, com-preende-se pois bem o sentido da valorização agostiniana da “cultura portuguesa”. Ela não é valorizada para se impor, de forma mais menos “imperia-lística”, a qualquer outra. Ela é valorizada para que nós, por-tugueses, nos possamos elevar através dela. Quanto muito, é esse o exemplo que Agosti-nho da Silva pretendia dar ao mundo: a de um povo que se eleva através da plena assun-ção da sua cultura. Não para que os outros povos assumam a nossa cultura, mas, ao con-trário, a sua própria. É disso, tão-só, que se trata: que cada um, por extensão, cada comu-nidade, assuma, plenamente, a sua cultura.

A nosso ver, o tão vilipen-diado “Quinto Império” de que fala Agostinho da Silva não é senão isso: o espa-ço-tempo em que todas as comunidades, todos os povos, possam, de forma

inteiramente livre, assumir, de modo pleno, a sua cultura. Não, longe disso, um impé-rio apenas português – tam-bém português, na medida em que nele a cultura por-tuguesa deve também poder afirmar-se, mas não apenas, ou sequer hegemonicamente, por mais que de forma dissi-mulada, português. Eis o que, na nossa perspectiva, nunca será demais salientar, dado o facto da valorização agos-tiniana da “cultura portu-guesa” ter sido muitas vezes entendida de forma igual-mente errónea.

De resto, a valorização da cultura tem também virtu-alidades materiais ou, mais especificamente, sociais. Só ela pode ser o elo que sus-tenta uma sociedade. Se uma sociedade se baseia apenas num elo económico, cedo se desagregará, como se torna cada vez mais evidente... Por muito que isso repugne a alguns, é também através

dela, da cul-tura , que se cimentam as solidariedades internacionais. Se, em geral, os portugueses foram – e con-tinuam a ser – tão solidários com a causa

timorense, foi, em grande medida, porque havia, por-que há, um elo entre Portu-gal e Timor: um elo cultural, precisamente. Dir-se-á que o nosso móbil deveria ser sempre o amor pela huma-nidade em geral e não por nenhuma cultura em parti-cular. É defensável, mas não é isso que, na nossa perspec-tiva, acontece. Daí que deva-mos agir em consequência.

Daí, em suma, a “via lusó-fona” que tem sido defen-dida pelo MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO. Em todas as nossas propostas e iniciativas (www.movimen-tolusofono.org), o que temos visado é a criação de uma ver-dadeira comunidade lusófona, assim cumprindo o sonho de Agostinho da Silva.

Renato EpifânioAssociação Agostinho da Silva

Agostinho da Silva: a via lusófona

“ Que vão fazer os homens bem ali-mentados, bem ves-tidos e bem alojados e bem transportados que a técnica nos poderia apresentar desde já? ”

“ (...) a valo-rização da cultura tem também virtu-alidades materiais ou, mais especifica-mente, sociais.

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A contrastar com as notí-cias diárias sobre a crise nos diversos sectores, falências de empresas, aumento de desemprego, e outras agru-ras do género, surgem as notí-cias sobre o impacto das acti-vidades culturais na economia do no nosso país.

O sector cultural e criativo representa 2,8% da riqueza gerada em Portugal (num estudo de 2006) e prevê-se que, apesar da crise, o sector continue em expansão.

No entanto, por detrás des-tes números está ocultada a precariedade em que muitos dos profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual se encontram (e infelizmente também de outras áreas como a arquitectura, o design, etc).

Parte dessa riqueza é obtida através de contratação precá-ria, com uma utilização gene-ralizada de recibos verdes, que não conferem o acesso a direi-tos básicos como o subsídio de doença, de desemprego, ou

direito a férias, obrigando os trabalhadores a pagar seguros contra acidentes de trabalho e valores de prestações sociais muitas vezes totalmente des-proporcionadas face aos seus rendimentos.

Desde há muito que este sector necessita de um regime laboral específico, de forma a que este trabalho com características especí-ficas, de carácter irregular, descontínuo - intermitente - esteja previsto e protegido pela Lei. A criação de cultura, de bens culturais, faz-se por ciclos, por vezes de curta, ou de muito curta duração, o que implica uma enorme mobilidade dos trabalhado-res deste sector, trabalhando, ou acumulando vínculos, para vários empregadores. A Lei que defendemos deveria obrigar a que estes vínculos sejam contratos de trabalho por conta de outrem, comba-tendo eficazmente os recibos verdes no sector.

Essa necessidade da cria-ção de um regime específico fez nascer a Plataforma dos Intermitentes, composta por vários sindicatos e associa-ções ligados ao teatro, à dança, ao cinema, à música, ao novo circo, etc. Procurando uma voz única, transversal a todos os sectores do espectáculo e do audiovisual, unindo profissões técnicas e artísticas, a Plata-forma dos Intermitentes, desde 2006, tem-se empenhado na defesa dos direitos destes tra-balhadores.

A Plataforma acompanhou a criação da primeira lei sobre o regime laboral dos profis-sionais do espectáculo e do audiovisual, a Lei 4/2008 do Partido Socialista.

Esperávamos que, após tan-tos anos de abusos de recibos verdes e degradação das con-dições de trabalho, esta ten-dência se invertesse e direitos básicos fossem reconhecidos. Mas esta lei, apesar de reco-nhecer o direito a contratos

de trabalho, não criou ferra-mentas para que os mesmos sejam efectivamente cele-brados, nem criou nenhum regime de segurança social para proteger os intermiten-tes. Ou seja, nada mudou.

Surgiram agora novas pro-postas legislativas. O Partido Socialista, pela mão da depu-tada, actriz e realizadora Inês de Medeiros, propõe altera-ções à lei 4/2008, introdu-zindo mecanismos para que sejam celebrados contratos de trabalho nas produções cul-turais apoiadas pelo estado e uma certa flexibilização do acesso ao subsídio de desem-prego. O Bloco de Esquerda, através de duas propostas de leis da deputada, actriz e ence-nadora Catarina Martins, pro-põe um novo enquadramento, que generaliza o acesso aos direi-tos na segurança social e regula-menta os contra-tos de trabalho.

Esperamos que este novo passo reúna consensos na Assembleia da República para que a nova lei seja muito mais do que uma lei 4/2008 melhorada e que venha finalmente trazer o reconhecimento destas acti-vidades profissionais, com a garantia de direitos básicos aos profissionais do espectáculo e do audiovisual.

O investimento nas artes e na cultura tem de passar pela valorização das condições de trabalho dos seus profissio-nais. Reconhecer a intermi-tência, conferindo-lhe um pouco mais de segurança, combatendo a precariedade, é a melhor forma de investir

na produção cultural.A Plataforma dos Intermi-

tentes desenvolveu propos-tas e fomentou a existência deste debate entre os profis-sionais das várias áreas e o poder politico. Estamos agora com um novo projecto para organizar e defender os tra-balhadores do espectáculo e da cultura: a criação de um sindicato transversal às várias áreas. Esta nova estrutura, a ser fundada em Junho, per-mitirá responder na continui-dade às necessidades indivi-duais e colectivas dos profis-sionais, com a definição das condições de trabalho, tabe-las salariais de referência, apoio jurídico aos profissio-nais, pressões aos emprega-dores (por exemplo nos casos de não pagamentos salariais),

mas também na criação de cur-sos de valoriza-ção ou recon-versão profis-sional, promo-ção de debates e eventos, etc.

Entretanto, a aprovação e discussão das n o v a s p r o -postas de lei recentemente apresentadas

na Assembleia da República, irão ditar um avanço, ou um recuo, nesta longa jornada pelo reconhecimento dos direitos dos profissionais do espectáculo e do audio-visual.

Esperamos que seja um avanço.

Para receber, seguir as nossas iniciativas, mande um mail para [email protected].

Carla Bolito, Actriz e Bruno Cabral, Realizador

Os intermitentes do espectáculo e do audiovisual

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O Direito a ter Direitos

“ A Lei que defendemos deveria obrigar a que estes vínculos sejam contratos de trabalho por conta de outrem, comba-tendo eficazmente os recibos verdes no sector.

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O SUL - Como defines o Pro-jecto Marco Alonso?

Marco Alonso - O Projecto Marco Alonso é o meu mundo transposto em notas musicais. O Flamenco foi o veículo de criação

de um estilo muito próprio, que reflecte a minha visão musical e da vida. É um misto de criação instintiva e técnica através de todo o conhecimento musical vivido e experienciado.

S - Como aparece o Projecto Marco Alonso?

M. A. - O Projecto Marco Alonso surge logo após o curso em Córdoba, quando senti a tran-sição de um espírito de aprendiz

para alguém que já tem algo a partilhar. Quis tornar realidade o desejo de criar um projecto a solo e comecei a construí-lo de uma forma séria. Nunca imagi-nei um projecto enquanto pas-satempo mas, como base duma carreira, com cabeça, tronco e membros. Comecei a compôr pequenas peças para funcio-narem como repertório de um álbum. Seleccionei então 10 temas com consciência, sem-pre com o intuito de mostrar o meu trabalho a nível nacional e internacional. Ao longo deste processo tive a necessidade de encontrar músicos à altura des-tas metas, que interpretassem as composições por mim cria-das, tarefa que não foi fácil. De momento, os músicos que me acompanham nos espectácu-los são o Helder Pereira (Gui-tarra Electro-acústica, Alaúde, Harmónica e Percussão) e João Branco (Percussão). Seleccio-nei estes músicos devido às suas capacidades musicais e interpretativas que favorecem as performances ao vivo. Ape-sar de estarmos a falar de um projecto a solo e com base em composições muito pessoais, é justo referir a sua contribuição no enriquecimento e heteroge-neidade do projecto.

S - Em Julho de 2009 lan-

çaste o teu primeiro álbum. Como está a correr a aceitação por parte do público?

M. A. - Lancei o meu primeiro álbum, edição de autor, inti-tulado “Tu Aroma, Tu Sabor”. No que respeita à aceitação por parte do público, creio que este ainda não está habituado a música contemporânea. A popu-lação, em geral, não tem hábi-tos de consumo cultural. Esta-mos numa fase em que as pes-soas privilegiam o consumo de música desprovida de critérios

que eu considero fundamentais na música de qualidade. A acei-tação é boa, mas o mercado que gosta e aceita da minha música é muito específico.

S - De que forma foi feita a

promoção e distribuição do álbum?

M. A. - Toda a promoção, divul-gação e distribuição do álbum foi realizada pelo grupo e por amigos. O álbum está á venda nas Fnac’s em Portugal Con-tinental e em alguns espaços musicais e culturais de Setú-bal. Também fomos convida-dos recentemente a participar no programa “Quarto Crescente” da RTP com o Júlio Isidro, onde interpretámos o tema "Maestre Lucia" ao vivo.

S - Perante a intermitência de

trabalho na vida de um músico, sentes-te lesado nos teus direi-tos enquanto trabalhador?

M. A. - Sinto-me lesado e acho que todas as pessoas, indepen-dentemente da etnia, naciona-lidade ou profissão devem ser abrangidas por todos os direitos elementares inscritos na Cons-tituição. Gostaria de sentir uma maior preocupação das entidades responsáveis, uma maior oferta e investimento sério na cultura e, em especial, na música.

S - Este ano vão participar

no Festival de Flamenco de Lis-boa. Quais são as tuas expec-tativas?

M. A. - A grande preocupação é oferecer ao público, em Setem-bro, para além de um espectá-culo de virtuosismo técnico, uma cumplicidade poética através da música. Essa é a identidade do espectáculo. Quero-o único, intimista e inovador.

Patrícia Trindade [email protected]

“A descoberta do disco despertou-me a vontade de aprender guitarra, iniciando o estudo com um professor particular. Ainda insatisfeito, inscrevi-me no Conservatório de Setúbal, onde permaneci 3 anos. O Conservatório era a forma de aprendizagem mais próxima da Guitarra Flamenca, através do estudo na Guitarra Clássica. Na procura de material didáctico sobre Flamenco, conheci o Professor Jorge Chainho, director da Escola Moderna de Jazz de Almada/Seixal. Leccionou-me durante 5 anos. Desta forma, consolidei o meu caminho no Flamenco, e pude ter contacto com outras perspectivas que me deram um conhecimento mais alargado do mundo da música. Mais tarde surgiu a oportunidade de ir para Córdoba, no âmbito do Festival Internacional de Guitarra de Córdoba. Queria certificar-me que os meus conhecimentos do Flamenco eram válidos, e só com o grande Maestro Manolo San-lúcar e outros grandes guitarristas como José António Rodriguez, Paco Serrano e Manolo Franco, podia ter a noção real dos meus conhecimentos. Foi um curso intensivo de técnica e composição intitulado “Naturaleza y forma de la Guitarra Flamenca”. Enquanto músico, amadureci, melhorando essencialmente o domínio da Guitarra Flamenca.”

“A guitarra é a minha vida” diz Marco Alonso

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Marco Alonso é um jovem músico talentoso natural de Setúbal. Como nos disse, parece destinado à música e a nada mais: “O meu gosto pela música nasceu por volta dos meus 12 anos, quando encontrei um disco do grande Paco de Lucía entre os discos da minha mãe. Ouvi e fiquei completamente maravilhado…”

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Sebastião da Gama: 60 anos sobre o DiárioEm 11 de Janeiro de 1949,

Sebastião da Gama tinha 24 anos, a licenciatura, a experiên-cia lectiva de professor provi-sório na Escola João Vaz, vários textos publicados, entre os quais dois livros, e iniciava o estágio de professor na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, desse dia datando a primeira página do seu Diário (apenas publicado em 1958), a registar as obser-vações do metodólogo, Virgílio Couto: “Para começar, o meto-dólogo falou connosco durante uma hora. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E, dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser: porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé.”

Este texto iniciador do Diário apresenta-se como uma decla-ração de intenções, como um programa próprio, como um perfil do que deve ser o pro-fessor, como deveria ser ele, Sebastião da Gama, enquanto professor, haja em vista o cru-zamento das intenções do pro-fessor orientador do estágio e da visão que o novo profes-sor perfilhava quanto à sua função – “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”.

Sebastião da Gama tinha bem a noção da razão de ser de um diário. Mas torna-se evidente que este professor redigia um diário para ser o seu espaço e tempo de reflexão sobre a sua prática peda-gógica durante o tempo de estágio, sobretudo numa área tão sensí-vel como era a do ensino do Portu-guês, misto entre o estudo do fun-cionamento da língua e o conhecimento da literatura e da cultura portu-guesas, não omitindo algu-mas confidências que bem integrariam uma espécie de

diário “íntimo”.Um dos aspectos mais inte-

ressantes neste Diário é a forma como é dada voz aos alunos, não por aquilo que terá acontecido nas aulas, mas pela maneira como essa entrada das vozes dos outros – os alunos – se exerce e se vê no Diário, na vida do “eu” que se escreve também com os outros: mencionando os seus nomes próprios (com absoluta recusa do tratamento dos alu-nos pelo número de ordem e dando a ideia da constância da presença do outro no espaço e tempo do diário), reprodu-zindo em discurso indirecto, aludindo a conversas, abrindo o espaço para o discurso directo, registando os textos escritos dos alunos (de cartas ou de composições). A importância desta entrada dos alunos no Diário é tanto mais interessante quanto ela não se deve a crité-rios estéticos, antes tem lugar porque o diarista a valoriza, princípio que está de acordo com a necessária capacidade de aceitação do outro – dos “rapazes” – expressa no iní-cio do diário, no registo de 11 de Janeiro de 1949.

As regras para essa entrada do outro na aula, na vida e no diário são logo estabelecidas no registo de 12 de Janeiro de 1949, ao relatar que pedira lealdade aos alunos, princípio a exigir reversibilidade. Ao mencionar esse acordo no diário, Sebastião da Gama está também a fazer uma profissão de fé na lealdade e a estabelecer os seus próprios limites para a escrita da vida, do diário. Mas o seu testemu-nho perante os alunos vai mais longe, insistindo no direito à palavra, à voz – “Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já me esqueci.

(…) A todos cabe o direito de falar, desde que fale um de cada vez e não corte a palavra ao que está com ela.”

Assim estabe-lecidos, entendi-dos e aceites os

princípios, são frequentes as vezes em que os rapazes têm a palavra neste Diário pelos mais diversos motivos, muitas vezes acontecendo que a voz

do professor se mistura com a voz dos jovens, num trajecto em que o mais importante deste diário parece ser, como refe-riu Clara Rocha, a “comunhão do professor com os alunos”, através da palavra.

O leitor pode ainda assistir à consistência da cultura que este jovem professor detinha. Pelo Diário perpassam os nomes e as referências às obras de escri-tores portugueses e estrangei-ros, seus contemporâneos uns (e até alguns do seu círculo de amizades) e clássicos outros, a rondar as seis dezenas de indi-cações, sempre chamados para ilustração de situações de aula ou para aprofundamento da preparação das lições ou da reflexão sobre as mesmas, cita-ções que não constam apenas da indicação dos nomes, mas

que demonstram um conhe-cimento das obras a que estes autores estão ligados.

O estudo do Diário de Sebas-tião da Gama como repositório pedagógico de novas práticas no domínio da educação esco-lar foi já encetado por auto-res vários, considerando a sua modernidade, ideia para que contribuíram práticas como a não utilização da tinta vermelha para correcção, a capacidade de improviso na realização de cada aula, as aulas ao ar livre, a utilização de recursos inova-dores para a época (cartazes, festas escolares, biblioteca de turma, dramatização de tex-tos dos alunos, reformulação do estudo e do ensino da gra-mática, consulta de aponta-mentos durante os exercícios, interacção professor-aluno,

redacção dos sumários a cargo dos alunos, etc.). Outra linha de pensamento é a existência de uma pedagogia da felici-dade no Diário de Sebastião da Gama, onde se fundem o educador e o poeta, ambos tri-lhando a rota da sensibilidade para que os alunos encontras-sem a felicidade.

E o Diário de Sebastião da Gama aí está, acentuando os fragmentos do registo da vida do professor e dos alunos na luta contra o silêncio, contra o aca-nhamento imposto, em favor da liberdade e da criatividade, na conquista do direito aos afectos, do direito à expressão, do direito à palavra, do direito à voz, do direito à poesia da vida.

João Reis Ribeiro,Professor

“ Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já me esqueci. “

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“O Homem pode encontrar sentido na vida, curta e peri-gosa como é, apenas dedicando-se à sociedade”, entrevista ficcionada a Albert Einstein (1879 – 1955), a partir de texto em Monthy Review, Maio de 1949.

O SUL - Senhor Professor, o que pensa sobre a situa-ção económica que actual-mente vivemos?

Albert Einstein - Inúme-ras vozes afirmam desde há algum tempo que a socie-dade humana está a pas-sar por uma crise, que a sua estabilidade foi gravemente abalada.

S - E o que causou, do seu ponto de vista, a crise?

A. E. - A anarquia econó-mica da sociedade capitalista como existe actualmente é, na minha opinião, a verda-deira origem do mal. Vemos perante nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros lutam inces-santemente para despo-jar os outros dos frutos do seu trabalho colectivo – não pela força, mas, em geral, em conformidade com as regras legalmente estabelecidas.

S - Poderia aclarar a sua leitura?

A. E. - Os desenvolvimen-tos tecnológicos e demo-gráficos dos últimos sécu-los criaram condições que vieram para ficar. Em popu-lações com fixação relati-vamente densa e com bens indispensáveis à sua existên-cia continuada, é absoluta-mente necessário haver uma extrema divisão do trabalho e um aparelho produtivo alta-mente centralizado. Já lá vai o tempo – que, olhando para trás, parece ser idílico – em que os indivíduos ou gru-pos relativamente peque-nos pareciam ser comple-tamente auto-suficientes. É apenas um pequeno exa-gero dizer-se que a humani-dade constitui, mesmo actu-almente, uma comunidade planetária de produção e consumo.

S - Depreende-se, por-tanto, uma inevitabilidade?

A. E. - É fácil levantar estas questões, mas é difícil res-ponder-lhes com um certo grau de segurança. O pro-

gresso tecnológico resulta frequentemente em mais desemprego e não no alívio do fardo da carga de traba-lho para todos. A produção é feita para o lucro e não para o uso. Não há nenhuma dis-posição em que todos os que possam e queiram trabalhar estejam sempre em posição de encontrar emprego; existe quase sempre um “exército de desempregados”. O traba-lhador está constantemente com medo de perder o seu emprego. A questão essen-cial deste processo é a rela-ção entre o que o trabalha-dor produz e o que recebe, ambos medidos em valor real. Na medida em que o con-trato de trabalho é “livre”, o que determinado trabalha-dor recebe é determinado não pelo valor dos bens que pro-duz, mas pelas suas necessi-dades mínimas e pelas exi-

gências dos capitalistas para a mão-de-obra em relação ao número de trabalhadores que concorrem aos empre-gos. É importante compre-ender que, mesmo em teoria, o pagamento do trabalhador não é determinado pelo valor do seu produto.

S - Nesse sentido, como interpreta as recentes mani-festações de tensão e violên-cia que têm eclodido aqui, na Margem Sul?

A. E. - É característico desta situação que os indiví-duos se sintam indiferentes ou mesmo hostis em relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem.

S - Julga então que se trata de uma manifestação de um mesmo processo?

A. E. - O resultado des-tes desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente controlado mesmo por uma sociedade política democraticamente

organizada. Isto é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são esco-lhidos pelos partidos políti-cos, largamente financiados ou influenciados pelos capita-listas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os repre-sentantes do povo não prote-gem suficientemente os inte-resses das secções sub-privi-legiadas da população.

S - Será que a Comu-nicação Social serve de mediadora?

A . E . - A concorrên-cia sem limi-tes conduz a um enorme desperdício do trabalho e a esse enfraquecimento da consciência social dos indiví-duos. Nas condições existen-tes, os capitalistas privados controlam inevitavelmente, directa ou indirectamente, as principais fontes de informa-ção. É assim extremamente difícil e mesmo, na maior parte dos casos, comple-tamente impossível, para o cidadão individual, chegar a conclusões objectivas e utili-zar inteligentemente os seus direitos políticos.

S - O que lhe parece, como homem da ciência, a co-in-cineração numa cimen-teira, localizada num Par-que Natural, proposto que vai ser a Património Natural e que concorre às Maravilhas Naturais de Portugal?

A. E. - Em lado nenhum ultrapassámos de facto o que Thorsein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvol-vimento humano. Os factos económicos observáveis per-tencem a essa fase e mesmo as leis que podemos deduzir a partir deles não são aplicá-veis a outras fases.

S - Está em causa a coe-são social?

A. E. - O indivíduo tor-nou-se mais consciente do que nunca da sua dependên-cia relativamente à socie-dade. Mas ele não sente esta dependência como um bem

positivo, como um laço orgâ-nico, como uma força pro-tectora, mas sim como uma ameaça aos seus direitos naturais, ou até à sua exis-tência económica. Além disso, a sua posição na socie-dade é tal que os impulsos egotistas da sua composi-ção estão constantemente a ser acentuados, enquanto os seus impulsos sociais, que são por natureza mais fracos, se deterioram progressiva-mente. Todos os seres huma-nos, seja qual for a sua posi-ção na sociedade, sofrem este processo de deterioração.

S - Como vê o e n s i n o e m Portugal?

A. E. - É incu-tida uma atitude exageradamente

competitiva no aluno, que é formado para venerar o sucesso de aquisição como preparação para a sua futura carreira. Todo o nosso sistema educativo sofre deste mal.

S - Como melhorá-la?A. E. - A educação do indi-

víduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas, tentaria desenvolver nele um sentido de responsa-bilidade pelo seu semelhante em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa actual sociedade.

S - Será Portugal um país viável?

A. E. - O Homem pode encontrar sentido na vida, curta e perigosa como é, apenas dedicando-se à sociedade.

S - Em nome deste jornal quero agradecer ao Senhor Professor Albert Einstein a ambilidade que connosco teve e também o privilégio de nos ter concedido esta entrevista. Muito obrigado.

A. E. - Visto que, nas actuais circunstâncias, a discussão livre e sem entraves destes problemas surge sob um tabu poderoso, considero a fun-dação desta revista como um serviço público importante.

José Luís [email protected]

Albert Einstein partilha a O SUL

A produção é feita para o lucro e não para o uso.

Foto tirada por arthur sasse em 1951 na comemoração do seu72º aniversário

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