número 33 - jan - jul - 2010

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EDUCAÇÃO INDÍGENA

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Page 1: Número 33 - Jan - jul - 2010

EDUCAÇÃOINDÍGENA

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa MarauxDEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretor: Antônio AmorimPrograma de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenador: Elizeu Clementino de Souza

CONSELHO EDITORIALConselheiros nacionaisAdélia Luiza PortelaUniversidade Federal da BahiaAntônio AmorimUniversidade do Estado da BahiaCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da BahiaEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da BahiaElizeu Clementino de SouzaUniversidade do Estado da BahiaJaci Maria Ferraz de MenezesUniversidade do Estado da BahiaJacques Jules SonnevilleUniversidade do Estado da BahiaJoão Wanderley GeraldiUniversidade de CampinasJonas de Araújo RomualdoUniversidade de CampinasJosé Carlos Sebe Bom MeihyUniversidade de São PauloJosé Crisóstomo de SouzaUniversidade Federal da BahiaKátia Siqueira de FreitasUniversidade Católica de SalvadorMarcos Silva PaláciosUniversidade Federal da BahiaMaria José PalmeiraUniversidade do Estado da Bahia eUniversidade Católica de SalvadorMaria Luiza MarcílioUniversidade de São PauloNadia Hage FialhoUniversidade do Estado da Bahia

Paulo Batista MachadoUniversidade do Estado da BahiaRaquel Salek FiadUniversidade de CampinasRobert Evan VerhineUniversidade Federal da BahiaWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia Educacional /Instituto Paulo FreireYara Dulce Bandeira de AtaídeUniversidade do Estado da Bahia

Conselheiros internacionaisAdeline BeckerBrown University, Providence, USAAntônio Gomes FerreiraUniversidade de Coimbra, PortugalEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba, ArgentinaEllen BiglerRhode Island College, USAFrancisco Antonio LoiolaUniversité Laval, Québec, CanadaGiuseppe MilanUniversitá di Padova – ItáliaJulio César Díaz ArguetaUniversidad de San Carlos de GuatemalaLuís Reis TorgalUniversidade de Coimbra, PortugalMarcel LavalléeUniversité du Québec à Montréal, CanadaMercedes VillanovaUniversidade de Barcelona, EspañaPaolo OreficeUniversitá di Firenze - Italia

GRUPO GESTOREditora Geral: Yara Dulce Bandeira de AtaídeEditor Executivo: Jacques Jules SonnevilleCoordenadora Administrativa e Financeira: Jumara Novaes Sotto Maior.Antônio Amorim (DEDC I), Elizeu Clementino de Souza (PPGEduC), Nadia Hage Fialho, Raphael Rodrigues Vieira Filho,Tânia Regina Dantas, Sueli Ribeiro Mota Souza.

REVISTA FINANCIADA COM RECURSOS DA PETROBRAS S.A.

Coordenadores do n. 33: Marcos Luciano Lopes Messeder (UNEB); José Augusto Laranjeiras Sampaio (UNEB); CecíliaMcCallum (UFBA).Os/as pareceristas ad hoc do número 33 serão divulgados junto com a lista na publicação do n. 34 da revista.Revisão: Regina Helena Araújo Soares; Bibliotecária (referências): Jacira Almeida Mendes; Tradução/revisão: Eric Maheu;Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh ("A Luz", de Carybé - Escola Parque, Salva-dor/BA); Secretaria: MariaLúcia de Matos Monteiro Freire.

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Revista da FAEEBA

Educaçãoe Contemporaneidade

Departamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus I

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, jan./jun. 2010

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Tiragem: 1.000 exemplares

Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade / Universidade doEstado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,1992) - Salvador: UNEB, 1992-

Periodicidade semestral

ISSN 0104-7043

1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5 CDU: 37(05)

Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADERevista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural.Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc.deve ser dirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPERua Silveira Martins, 2555 - Cabula 41150-000 SALVADOR – BAHIA - BRASILTel. (071)3117.2316E-mail: [email protected]

Normas para publicação: vide últimas páginas.E-mail para o envio dos artigos: [email protected] da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br

Indexada em / Indexed in:- REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação -Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html- CLASE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da HemerotecaLatinoamericana - Universidade Nacional Autônoma do México:E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx- INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la RechercheScientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr- IRESIE - Índice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Instituto deInvestigaciones sobre la Universidad y la Educación - México)

Pede-se permuta / We ask for exchange.

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 1-254, jan./jun. 2010

S U M Á R I O

9 Editorial

10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e Contempo-raneidade

EDUCAÇÃO INDÍGENA

15 Apresentação: educação indígena na contemporaneidade - novos desafios para o diálogointerculturalJosé Augusto Laranjeiras Sampaio; Marcos Luciano Lopes Messeder; Cecília McCallum

23 A educação escolar indígena nos sistemas de ensino do BrasilEliene Amorim de Almeida

35 Educação escolar indígena: Estado e movimentos sociaisGersem Baniwa

51 Gerenciamento da educação escolar indígena, poder público e a relação com o movimentoindígena: experiência e reflexãoRosilene Cruz de Araújo Tuxá

61 Educação e povos indígenas: legislação e experiência com produção de material didático deautoria indígena na BahiaFrancisco Alfredo Morais Guimarães

77 História e culturas indígenas na escola: museu e ação culturalSidélia Santos Teixeira; Daiane Silva Carvalho; Joseane Macedo da Silva

87 Escrito no corpo: gênero, educação e socialidade na Amazônia numa perspectiva KaxinawáCecília McCallum

105 ¿Podía leer Sangama?: sistemas gráficos, lenguaje y shamanismo entre los Piro (Perú oriental)Peter Gow

119 Deseos encontrados: escuelas, profesionales y plantas en la Amazonía peruanaLuisa Elvira Belaunde

135 Processos de etnogênese dos Pataxó em Cumuruxatiba no Município do Prado-BAMaria Geovanda Batista

147 O desejo de retorno da língua (quase) perdida: professores indígenas e identidade linguísticaTerezinha de Jesus Machado Maher

159 Los procesos comunicacionales y sus desafíos en la educación aborigenBeatriz Bixio; Luis Heredia

173 Performance e transformação na escola indígena BakairiCelia Letícia Gouvêa Collet

185 Educação escolar entre os Tupinambá da Serra do Padeiro: reflexões sobre a prática docentee o projeto comunitárioMarcos Luciano Lopes Messeder; Sonja Mara Mota Ferreira

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 1-254, jan./jun. 2010

243 PEREIRA, Áurea da Silva. Percursos da Oralidade e Letramento na comunidade rural deSaquinho, município de Inhambupe, BA. Dissertação – PPGEduC/UNEB, Salvador, 2008.

244 CARVALHO, Carla Meira Pires de. O Teatro na Educação de Jovens e Adultos:contribuições para o processo de letramento e a formação da cidadania. Dissertação –PPGEduC/UNEB, Salvador, 2009.

245 FIGUERÊDO, Michal Siviero. Coral Canto que Encanta: um estudo do processo deeducação musical com idosos em Madre de Deus, região metropolitana de Salvador,Bahia. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Música, UFBA, Salvador, 2009.

246 ARAÚJO, Viviam Carvalho de. A brincadeira na instituição de Educação Infantil emtempo integral: o que dizem as crianças? Dissertação – Programa de Pós-Graduação emEducação, UFJF, Juiz de Fora/MG, 2008.

RESUMOS DE DISSERTAÇÕES

201 A sedução despedaçada: representações e práticas de leitura de alunos do ensino médiode uma escola pública cariocaLucelena Ferreira

215 Práticas culturais juvenis: máscaras contemporâneasAna Carolina Pereira da Silva Rosa; Helenice Mirabelli Cassino Ferreira; MariaLuiza Magalhães Bastos Oswald

229 A pesquisa sobre trabalho e saber docente no Brasil: perspectivas metodológicasWanderson Ferreira Alves

ESTUDOS

247 Normas para publicação

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 1-254, jan./jun. 2010

C O N T E N T S

11 Editorial

12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da FAEEBA– Education and Contemporaneity

INDIGENOUS EDUCATION

15 Introduction: indigenous education in the contemporary world - new challenges for atranscultural dialogueJosé Augusto Laranjeiras Sampaio; Marcos Luciano Lopes Messeder; Cecília McCallum

23 Indigenous Education in the Brazilian Educational SystemsEliene Amorim de Almeida

35 Indigenous Formal Education: the state and social movementsGersem Baniwa

51 Managing Indigenous School, the State and its Relation with the Indigenous Movement:experience and reflectionRosilene Cruz de Araújo Tuxá

61 Education and Indigenous Peoples: laws and experience with the production of didacticmaterial from indigenous authorship in Bahia, BrazilFrancisco Alfredo Morais Guimarães

77 History and Indigenous cultures in Schools: museums and cultural actionSidélia Santos Teixeira; Daiane Silva Carvalho; Joseane Macedo da Silva

87 Written in the Body: gender, education, and sociality in Amazonia from the Cashninahua perspectiveCecília McCallum

105 Could Sangama read?: Graphic systems, language and shamanism among the Piro (Eastern Peru)Peter Gow

119 Conflicting Desires: schools, professionals and plants in amazonian PeruLuisa Elvira Belaunde

135 The Process of Ethnogenesis between Pataxó of Cumuruxatiba in the City of Prado, Bahia, BrazilMaria Geovanda Batista

147 Wishing for the Return of the (Almost) Lost Language: indigenous teachers and linguistic identityTerezinha de Jesus Machado Maher

159 Challenges of Communicational Processes in Indigenous EducationBeatriz Bixio; Luis Heredia

173 Performance and Transformation in Bakairi Indigenous SchoolCelia Letícia Gouvêa Collet

185 School Education between Tupinambá from Serra do Padeiro: reflections about teachingand community projectMarcos Luciano Lopes Messeder; Sonja Mara Mota Ferreira

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 1-254, jan./jun. 2010

THESIS ABSTRACTS

243 PEREIRA, Áurea da Silva. Pathways of Orality and Literacy in the Rural Community ofSaquinho, in Inhambupe, Bahia, Brazil. Master thesis – PPGEduC/UNEB, Salvador, 2008.

244 CARVALHO, Carla Meira Pires de. Theater in Youth and Adult Education: contributionsfor the process of literacy and the construction of citizenship. Master thesis – PPGEduC/UNEB, Salvador, 2009.

245 FIGUERÊDO, Michal Siviero. The Enchantment of the Chorus: a study of the process ofmusical education with elders in Madre de Deus (metropolitan area of Salvador, Bahia,Brazil). Master thesis – Programa de Pós-Graduação em Música, UFBA, Salvador, 2009.

246 ARAÚJO, Viviam Carvalho de. Playing at the Full-time Kindergarden: what do thechildren say? Master thesis – Programa de Pós-Graduação em Educação, UFJF, Juiz deFora/MG, 2008.

STUDIES

201 Torned Seduction: reading representations and practices in public high school studentsfrom Rio de JaneiroLucelena Ferreira

215 Youthful Cultural Practices: contemporary masksAna Carolina Pereira da Silva Rosa; Helenice Mirabelli Cassino Ferreira; MariaLuiza Magalhães Bastos Oswald

229 Research upon Teacher’s Knowledge and Work in Brazil: methodological perspectivesWanderson Ferreira Alves

251 Instructions for publication

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, jan./jun. 2010 9

EDITORIALEDUCAÇÃO INDÍGENA é o tema do número 33 da Revista da FAEEBA:

Educação e Contemporaneidade. Para a elaboração do número, recebemos avaliosa colaboração do professor Marcos Luciano Lopes Messeder, doutor emAntropologia e professor de Antropologia do Departamento de Educação e doPrograma de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universi-dade do Estado da Bahia. Com amplo conhecimento das pesquisas e dos pesqui-sadores acerca do assunto, foi convidado para ser o coordenador deste número.Junto com os antropólogos José Augusto Laranjeiras Sampaio (UNEB) e CecíliaMcCallum (UFBA), ele formou uma equipe coordenadora, que fez uma ampladivulgação da temática, dentro e fora do país, convidou diversos especialistaspara escrever um artigo sobre Educação Indígena, especialmente para este nú-mero da Revista da FAEEBA, além de reunir uma equipe de pareceristas adhoc, a fim de avaliar os textos recebidos para fins de publicação. O resultado foiuma seleção de treze artigos, um número expressivo, considerando o caráterespecífico da temática. No início da seção sobre a temática deste número, en-contra-se a apresentação do seu conteúdo, que tem como propósito socializaruma nova dimensão do Campo Educacional Indígena.

Em seu artigo, Rosilene Cruz de Araújo Tuxá afirma que, diante da atualconjuntura em que vivem as sociedades contemporâneas, se torna necessáriaa reafirmação da identidade étnico-cultural indígena, através de um modeloespecífico de educação, mostrando que são possíveis outros modos de enten-der e valorizar a existência humana e, nessa perspectiva, contextualizar a lutado movimento indígena pela efetivação das políticas públicas da Educação Es-colar Indígena.

Atualmente, em comunidades indígenas no Brasil podemos perceber váriasiniciativas que visam ao fortalecimento do campo da economia para a manu-tenção, valorização e preservação dos territórios tradicionais indígenas. Essasiniciativas, em sua maioria, surgem no âmbito da escola, a partir do seu conjun-to de agentes, que buscam contribuir para um desenvolvimento com a manu-tenção de suas culturas e a qualidade de vida das gerações atuais. Essa é anova concepção de Educação Intercultural Indígena.

Completam este número três artigos na seção Estudos e quatro resumos dedissertações de mestrado, a fim de divulgar os autores e suas pesquisas noâmbito nacional.

O Grupo Gestor

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, jan./jun. 201010

Temas e prazos dos próximos númerosda Revista da FAEEBA:

Educação e Contemporaneidade

Enviar textos para [email protected]

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, jan./jun. 2010 11

INDIGENOUS EDUCATION is the theme of the volume 33 of the Revis-ta da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. This volume benefited fromthe valorous collaboration of Marcos Luciano Lopes Messeder, PH.D. in an-thropology and professor of the UNEB graduate programs in Education, whowas invited to be coordinator of this volume in reason of his large knowledgeof the fields and its researchers. Along with the anthropologists José AugustoLaranjeiras Sampaio (UNEB) and Cecília McCallum (UFBA), he created acoordinating team which had made an ample publicity within and outside Bra-zil, invited various specialists to write a paper for this volume and has succee-ded in joining a team of text evaluators to analyze the papers received forpublication, which resulted in the selection of 13 papers approved to be publi-shed, an expressive number considering the theme’s specificity. At the begin-ning of the thematic section, one can encounter this content which aims tosocialize a new dimension of the field of Indigenous Education.

In her paper, Rosilene Cruz de Araújo Tuxá states that in the actual conjec-ture, it becomes necessary to reaffirm a indigenous cultural identity, through aspecific educational model, showing other possibilities of understanding andvaluating human existence. In this perspective, one should contextualize thefight of the indigenous movement through the implementation of public policiesof indigenous education.

We can presently see various initiatives within indigenous communities inBrazil. They aim to strengthen the economy by the revival and preservation oftraditional indigenous territories. Most of these initiatives emerges in school,from its actors, looking for to contribute in the sustainable development ofthese cultures and in the present quality of life. This is the new concept ofintercultural indigenous education.

Completing this volume, three papers in the Studies section and four master’sthesis abstract, will contribute to publicize the author and their research.

The editors

EDITORIAL

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, jan./jun. 201012

Themes and terms for the next journalsof Revista da FAEEBA:

Educação e Contemporaneidade

Email papers to [email protected]

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EDUCAÇÃOINDÍGENA

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15Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 15-22, jan./jun. 2010

José Augusto Laranjeiras Sampaio; Marcos Luciano Lopes Messeder; Cecília McCallum

APRESENTAÇÃO: EDUCAÇÃO INDÍGENANA CONTEMPORANEIDADE – NOVOS DESAFIOS PARA O

DIÁLOGO INTERCULTURAL

José Augusto Laranjeiras Sampaio *Marcos Luciano Lopes Messeder **

Cecília McCallum ***

* Antropólogo. Professor do Departamento de Educação do Campus I da UNEB e Coordenador Técnico da AssociaçãoNacional de Ação Indigenista - Anaí. Endereço para correspondência: UNEB – DEDC I, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula –41.195.001 Salvador-BA. E-mail: [email protected]** Doutor em Antropologia pela Universidade Lumière Lyon 2 – França. Professor Adjunto de Antropologia do Depar-tamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado daBahia. Endereço para correspondência: Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41.195.001 Salvador-BA. E-mail:[email protected]*** PhD. Doctorate in Social Anthropology, LSE, Univ. of London. Professor Adjunto na Universidade Federal da Bahia.Endereço: UFBA, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Antropologia. Estrada de São Lázaro s/n,Federação – 40000-000 Salvador, BA. E-mail: [email protected]

Tomando a Educação Indígena como tema, o presente número da Revistada FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vem a público no exato mo-mento em que nossa Universidade implanta o seu Curso de Licenciatura emEducação Escolar Indígena (Liceei/Uneb). Já em 2006, grupos dos mais deseiscentos professores indígenas no estado da Bahia demandaram, junto a di-versas das unidades da Uneb mais próximas às suas comunidades, a implanta-ção de um curso de formação para professores indígenas, que fizesse chegara esses docentes, espalhados por uma rede escolar que atende a mais de umacentena de comunidades indígenas no estado, a oportunidade de formaçãoespecífica e diferenciada em nível superior, exigência legal e iniciativa já entãopioneiramente em curso em outras unidades da federação.

Sendo a Uneb a universidade pública na Bahia de maior abrangência regi-onal e, portanto, com mais possibilidades de oferta de curso específico paraprofessores indígenas em unidades próximas às suas comunidades, além deser uma instituição de ensino superior marcadamente vocacionada para aslicenciaturas, foi inequivocamente percebida por aqueles grupos de docentescomo foco preferencial para a sua demanda.

A oportunidade de elaboração de projeto para uma licenciatura interculturalindígena na Bahia foi propiciada pelo Programa de Apoio às LicenciaturasIndígenas (Prolind) do Ministério da Educação (MEC) e veio a ser conduzida,como não poderia deixar de ser, face à própria iniciativa da demanda, de modoparticipativo e colegiado, envolvendo professores e líderes indígenas das di-versas etnias no estado, e os docentes da Uneb com experiências de pesquisajunto a esses povos indígenas e já com atuação, inclusive, na formação de

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Apresentação: educação indígena na contemporaneidade – novos desafios para o diálogo intercultural

professores indígenas em cursos específicos, a nível médio ou a nível superiorjunto a instituições em outros estados. Vale sublinhar que a iniciativa contousempre com o apoio, não raro entusiasmado, dos quadros e organismos direti-vos e colegiados superiores da Uneb, bem como da Secretaria de Educação doEstado.

Desse modo, uma vez aprovada pelo MEC a destinação de recursos queviabilizariam parcela significativa das despesas do curso, adotou a Uneb a ini-ciativa de realizar, já com recursos próprios, no primeiro semestre de 2009, oexame vestibular para a sua Liceei, no qual se inscreveram, para as suas 108vagas iniciais, mais de trezentos candidatos indígenas.

A primeira turma do Liceei/Uneb reúne alunos indígenas de onze etnias noestado, cem dos quais são professores indígenas que fazem sua formação su-perior em paralelo e de modo articulado às suas atividades docentes. O cursoteve a sua primeira etapa letiva realizada – também com recursos próprios dauniversidade e do estado – já ao final de 2009, e se desdobrará modularmenteao longo de quatro anos, ministrado em dois polos de ensino com 54 cursistascada, sediados nos departamentos de Paulo Afonso e Teixeira de Freitas. Éesse pois o marco institucional em que se inscreve o presente número da Re-vista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, que vem consolidar, aolado do Liceei, a presença de nossa Universidade no instigante e desafiadorcampo da Educação Escolar Indígena.

O número está estruturado em três eixos temáticos que tiveram o sentidode organizar a demanda e a produção dos artigos, bem como de dar conta, demodo abrangente, de diferentes aspectos do tema. No primeiro desses eixostemáticos, Políticas de Educação Indígena: Estado e Movimentos Soci-ais, tomou-se em conta que o movimento pela educação indígena específica ediferenciada é, no Brasil, anterior mesmo à própria legislação constitucional einfraconstitucional que a autoriza e assegura. Organizações não-governamen-tais e organizações indígenas foram pioneiras na implantação, em diversas ini-ciativas locais bem sucedidas, de modelos de educação intercultural e bilingue,inclusive na formação de professores, que constituem, ainda hoje, as basespara as muitas experiências multiplicadas a partir da década de 1990.

Com o ingresso dos organismos estatais no campo da educação escolarindígena em seguida à Carta de 1988, constituiu-se esse em um complexo cam-po interinstitucional, envolvendo os três níveis federativos, organizações dasociedade civil, universidades públicas e organizações indígenas; estas tambémem franca expansão a partir de então, incluindo instituições específicas de edu-cação como as associações de professores. Multiplicaram-se também os es-paços formais ou semi-formais de articulação desse campo, em fóruns, redes,conselhos e comissões.

Passados cerca de vinte anos do início desse processo, qual o balanço dodesempenho dos espaços interinstitucionais de interlocução, de formulação esupervisão de políticas públicas em educação escolar indígena? Qual o acúmu-lo de experiências dos movimentos indígenas e indigenistas na formulação e noencaminhamento de demandas no campo? Como estão se havendo as organi-zações indígenas na gestão de suas escolas? Na sistematização de experiênci-as e na produção de material didático específico? Que avaliações se podem

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José Augusto Laranjeiras Sampaio; Marcos Luciano Lopes Messeder; Cecília McCallum

formular quanto ao desempenho de organismos estatais na assunção e na con-secução dos seus compromissos? E como as instituições escolares no paísrespondem às demandas por produção de informação e de diálogo com oscampos da educação e das culturas indígenas?

Em A educação escolar indígena nos sistemas de ensino do Brasil,Eliene Amorim de Almeida aborda um dos principais debates da educaçãoescolar indígena nos dias atuais, que se dá em torno de qual ente federativodeve se responsabilizar por essa política e como deve-se organizar a adminis-tração pública brasileira para dar conta dessa responsabilidade, respeitando aespecificidade dos povos indígenas no país. O artigo demonstra como essedebate vem-se dando desde 1991 até o presente, com a publicação do Decreto6861/09 e a proposta de um novo Estatuto dos Povos Indígenas pela ComissãoNacional de Política Indigenista.

De modo inédito, este número traz a contribuição de dois indígenas comexperiências de direção na gestão oficial da educação escolar indígena, res-pectivamente a nível nacional e a nível estadual na Bahia. O depoimento deGersem Baniwa, em Educação escolar indígena: Estado e movimentossociais, produz reflexões políticas e teóricas sobre o alcance prático dos direi-tos indígenas no campo das políticas de educação escolar, a partir das mudan-ças provocadas pela Constituição de 1988 e recorre à história recente deprocessos de escolarização dos povos indígenas no país, para sugerir a neces-sidade de aperfeiçoamentos nas estratégias de médio e longo prazo dos movi-mentos indígena e indigenista brasileiros tendo em vista a ampliação e efetivaçãodos direitos indígenas a uma educação efetivamente intercultural específica ediferenciada, que considera ameaçados por uma nova onda de igualitarismo euniversalismo. Como a educação escolar dos povos indígenas teve como fun-damento e fim, antes de 1988, garantir e facilitar o processo de integração dosíndios à chamada comunhão nacional – quando não a sua eliminação físicapara abrir caminho aos projetos de expansão territorial e econômica do estadoColonial –, considera que os principais desafios enfrentados na atualidade pas-sam ainda pela necessidade de superação das práticas seculares de tutela ousemi-tutela, para apostar nos verdadeiros protagonismo e autonomia indígenasna construção e gestão de seus processos de educação, associados aos seusprojetos societários do presente e do futuro.

Em Gerenciamento da educação escolar indígena, poder público e arelação com o movimento indígena: experiência e reflexão, Rosilene Cruzde Araújo Tuxá tem como propósito socializar o que considera uma nova di-mensão do Campo Educacional Indígena, uma vez que, diante da conjunturaem que vivem as sociedades contemporâneas, torna-se necessária, através deum modelo específico de educação, a reafirmação das identidades étnico-cul-turais indígenas, mostrando que são possíveis outros modos de entendimento evalorização da existência humana. Nessa perspectiva, contextualiza a luta domovimento indígena pela efetivação de políticas públicas para a sua educaçãoescolar.

Francisco Alfredo Morais Guimarães, um dos docentes responsáveis pelaconcepção e pela coordenação do Liceei/Uneb, em Educação e povos indí-genas: legislação e experiência com produção de material didático de

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18 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 15-22, jan./jun. 2010

Apresentação: educação indígena na contemporaneidade – novos desafios para o diálogo intercultural

autoria indígena na Bahia, reflete sobre as mudanças ocorridas a partir domarco histórico e legal da Constituição de 1988, que assegura, também nocampo educacional, o direito às especificidades étnico-culturais indígenas, paradestacar uma experiência de pesquisa, produção e adoção de livros didáticosde autoria indígena, no âmbito do curso de Magistério Indígena na Bahia, quecontemplou uma proposta colaborativa cujos objetivos e métodos de investiga-ção foram discutidos e negociados com os professores pesquisadores indíge-nas, visando ao desenvolvimento de práticas de pesquisa comprometidas comsuas próprias perspectivas cognitivas e intelectuais. A experiência teve, dentreos seus resultados, a publicação de quatro livros elaborados por professoresindígenas de três etnias na Bahia, e que estão sendo adotados pelas escolasindígenas dessas etnias.

Tendo em vista que as interfaces políticas escolares entre as sociedadesindígenas e a sociedade nacional vão além do âmbito das escolas indígenas, emHistória e culturas indígenas na escola: museu e ação cultural, SidéliaSantos Teixeira, Daiane Silva Carvalho e Joseane Macedo da Silva relatamuma experiência de pesquisa etnográfica em instituição escolar e em museuetnológico, que aborda as dificuldades de aplicação da Lei 11645/08, que incluio estudo de história e culturas indígenas no ensino fundamental e médio. Asconclusões apontam, a partir de posições dos professores e de conhecimentosdos alunos sobre os povos indígenas, tanto para a prevalência de informaçõesgenéricas e superficiais sobre esses povos, como para o impacto do trabalho deação cultural sobre esse conhecimento, podendo os museus etnográficos de-sempenhar importante papel nesse processo se utilizados como recursos paraabordagem eficaz da temática. Para tanto, recomendam a construção de açõesarticuladas entre as instituições museológicas e escolares, as quais deveriamser objeto de políticas públicas nas áreas de educação e cultura.

Desde as primeiras críticas sistemáticas às praticas hegemônicas relacio-nadas à educação escolar para as populações indígenas nas Américas, até aincorporação oficial, no Brasil, do conceito de “educação escolar diferencia-da” como base das políticas educacionais nacionais destinadas a esses povos,tem crescido sensivelmente a produção acadêmica sobre o tema da “educaçãoindígena”. No entanto, poucos estudos têm focado o impacto das novas políti-cas – e as formas com que essas políticas têm sido implementadas – sobre aspróprias sociedades e culturas indígenas.

O segundo eixo temático deste número da Revista, Sociedades e Cultu-ras Indígenas sob o Marco da Educação Escolar Diferenciada, reúneartigos que tratam desse impacto, ou melhor, examinam as formas em que essanova versão da instituição escolar e as suas práticas e discursos têm sido abor-dados, processados, absorvidos ou transformados por grupos indígenas especí-ficos, de modo a influenciar ou transformar aspectos chave dos processos sociais,econômicos, políticos e religiosos das comunidades em foco. Qual a influenciadessas novas escolas e dos professores nas relações de poder e nas configura-ções sociopolíticas internas às comunidades? De que forma o surgimento des-sas novas escolas indígenas tem afetado as relações de gênero? Como temalterado a relação entre as gerações? Quais desenvolvimentos têm ocorridonas ontologias e cosmologias indígenas e nas práticas xamânicas? Que impac-

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to tem tido sobre processos identitários e nas lutas políticas e demandas dessespovos por direitos territoriais e outros?

Em Escrito no corpo: gênero, educação e socialidade na Amazônianuma perspectiva Kaxinawá, Cecilia McCallum, focando as escolas dessaetnia da Amazônia Ocidental, apresenta uma discussão etnográfica dos pri-meiros anos de uma das iniciativas pioneiras em educação indígena no Bra-sil, o projeto desenvolvido nos anos 1980 pela Comissão Pró-Índio do Acre(CPI-Acre), que visava treinar professores indígenas, apoiá-los na alfabeti-zação de seus parentes e criar escolas verdadeiramente indígenas, com oobjetivo último de empoderar os índios e pôr um fim às relações de escravi-dão, baseadas no endividamento permanente para com seus patrões e co-merciantes brasileiros, aos quais haviam sido submetidos historicamente.Nessa iniciativa, com poucas exceções, todos os professores escolhidos pe-los Kaxinawá e todos os alunos eram do sexo masculino. O artigo discute arelação entre os conceitos de gênero, pessoa, socialidade e educação esco-lar entre os Kaxinawá, focalizando a questão da ausência das mulheres nassalas de aula àquela época; e levantando a questão do risco de desempode-ramento das mulheres no dinâmico contexto social, político e econômico emque estavam inseridas. A discussão etnográfica mostra que a educação es-colar feminina não era entendida como empoderamento e que, pelo contrá-rio, as mulheres se preocupavam em fortalecer a sua participação na produçãode socialidade, procurando aumentar o seu acesso à arte de tecer o desenhográfico. O artigo sugere que a grande predominância de homens entre osprofessores indígenas no Brasil pode ser explicada como resultado de lógi-cas semelhantes no que diz respeito a gênero, epistemologia e socialidadeentre outros povos indígenas.

Etnografia da alfabetização e sistemas gráficos na Amazônia é tambémtema de ¿Podía leer Sangama?: sistemas gráficos, lenguaje y shamanis-mo entre los Piro (Perú oriental), de Peter Gow, artigo já clássico mas aindainédito no Brasil, que contribui para o conhecimento da também pouco estuda-da historiografía dos povos indígenas amazônicos. O artigo analisa um textorecolhido por uma missionária em meados dos anos 1950, cujo informante foraum dos primeiros professores bilingues piro, e que narra a historia de Sanga-ma, que, nas primeiras décadas daquele século, quando os Piro ainda viviamsubmetidos aos brancos sob o sistema de escravidão por dívidas, afirmavaconhecer a arte da leitura. A partir de uma análise da relação histórica entre osPiro e a escritura alfabética ocidental, o autor mostra como os sistemas gráfi-cos indígenas influíram na interpretação da escritura européia, e argumentaque o relato que oferece Sangama acerca da escritura reflete a relação entreo desenho gráfico e a linguagem na prática xamânica dos Piro.

Com base em dados coletados nos últimos dois anos junto a comunidadesde diversos grupos étnicos, o artigo Deseos encontrados: escuelas, profesi-onales y plantas en la Amazonía peruana, de Luisa Elvira Belaunde, fechaessa verdadeira trilogia sobre sociedades indígenas da Amazônia Ocidental,com uma análise que examina as transformações que a escolaridade e o dese-jo de profissionalização estão gerando, na transição da oralidade à escritura, asmudanças residenciais, o surgimento de novas elites políticas e a monetariza-

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ção da economia indígena. Apresenta também a proposta de alguns pensado-res indígenas de usar plantas com o propósito de encontrar um caminho parasair das contradições e dos revezes gerados em torno da escolarização.

Os Processos de etnogênese dos Pataxó em Cumuruxatiba no Municí-pio do Prado-BA é o tema do artigo em que Maria Geovanda Batista procurarefletir sobre o processo de luta desse povo indígena por seu território e por serreconhecido por seus vizinhos não indígenas. Na última década, um grupo deaproximadamente trezentas famílias dessa etnia, até então identificadas como“caboclos” nessa antiga “vila índia”, decidiu retomar uma Fazenda situada emseu território tradicional, ao mesmo tempo em que retomava para si a afirma-ção de sua identidade. Invisíveis para os outros e, ao mesmo tempo, situados àfronteira da exclusão social, os Pataxó vêm, nesse processo de autodetermina-ção, alterando o curso da sua história e subvertendo o destino social que lhesfora imposto, não sem contradições e reação de parte da sociedade local enacional. A autora procura refletir em torno de processos através dos quais,diante do outro, do diferente, somos testados em nossos conceitos e preconcei-tos científicos. Intenciona ainda contribuir para a superação do que consideraum estado hegemônico de injustiça e de cegueira no país no que diz respeitoaos direitos, à territorialidade e às culturas indígenas.

Não se poderia porém tratar das sociedades e culturas indígenas sob omarco da educação escolar diferenciada sem se considerar também as articu-lações dessa temática com abordagens mais clássicas acerca da Escola Indí-gena e suas Práticas, terceiro e último eixo temático desta edição da Revista.Se a noção de educação diferenciada deve orientar a prática pedagógica e aprópria organização da educação escolar indígena, à medida que se consoli-dam a organização das escolas indígenas e a inclusão de professores indígenasna estrutura das escolas, os desafios aumentam. A estrutura institucional naqual se inserem as escolas indígenas são ainda marcadas por um alto grau deformalismo, seja na orientação curricular, seja no plano administrativo, querepercutem fortemente nas condições de possibilidade de práticas educacio-nais diferenciadas. O respeito às especificidades dos diversos contextos soci-oculturais onde se inserem as escolas indígenas é uma das orientações presentesnos Referenciais Curriculares para a Educação Escolar Indígena (RCNEEI),para a organização do trabalho pedagógico, em cujo âmbito as práticas escola-res devem ser o reflexo de um projeto comunitário.

Um conjunto de questões se colocam então para a construção desses prin-cípios básicos de autonomia e articulação entre projeto educacional e sócio-cultural. De que maneira as escolas indígenas têm incorporado a discussãosobre a organização territorial e a sustentabilidade nas práticas educacionais,para além do mero formalismo da proposição de conteúdos disciplinares ecurriculares? De que maneira a precariedade institucional do trabalho docente,dado não haver ainda uma legislação nos diversos âmbitos do poder públicodefinindo e aparando a carreira de professor indígena, tem influenciado naelaboração e concretização de projetos pedagógicos comunitários e minima-mente autônomos? Qual o significado real dos projetos pedagógicos nos con-textos educacionais indígenas? Que modalidades de diálogo intercultural temmarcado as práticas pedagógicas dos professores indígenas?

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José Augusto Laranjeiras Sampaio; Marcos Luciano Lopes Messeder; Cecília McCallum

Exemplo de articulação entre os dois últimos eixos temáticos aqui propos-tos é o artigo O desejo de retorno da língua (quase) perdida: professoresindígenas e identidade linguística, de Terezinha de Jesus Machado Maher,que descreve e discute o impacto de uma política de revitalização de línguasindígenas nos processos de (re)construção da identidade linguística de um gru-po de professores indígenas do Acre e sudoeste do Amazonas. Esses profes-sores, cujos níveis de proficiência nas línguas tradicionais de suas comunidadesde fala são limitados, vêm empregando um conjunto de estratégias para lidarcom as demandas da nova ordem sociolinguística na qual estão imersos. Par-tindo do pressuposto de que a identidade não é algo dado, mas é um processosob constante (re)definição social e histórica, a autora analisa discursos refe-rentes às identidades linguísticas dos professores em questão, enfatizando, nessepercurso, as interpretações culturais de suas relações com as línguas tradicio-nais de seus povos. Com as práticas discursivas analisadas, chama atençãopara o fato de que nenhum programa de educação indígena que envolva oestabelecimento de políticas de revitalização linguística poderá ser realista-mente implementado sem que se examine e interprete as tensões com as quaisprofessores indígenas imersos em conflitos sociolinguísticos têm que lidar.

Em Los procesos comunicacionales y sus desafíos en la educaciónaborigen, Beatriz Bixio e Luis Heredia discutem o fracasso escolar de crian-ças e jovens aborígenes a partir de aspectos pontuais relativos aos estilos edu-cativos em sua articulação com os estilos de comunicação. Argumentam que adistância entre as formas de comunicação dos nativos e as que propõe a esco-la constitui um aspecto sutil mas de forte incidência no fracasso e na deserçãoescolares, pois afeta a interpretação dos enunciados. As regras da comunica-ção se estendem às relações entre significados e condutas, o que se constituiem um outro eixo que aponta para a distância entre os estilos educativos esco-lares e os desenvolvidos no interior da cultura nativa. Em terceiro lugar, inter-pretam essas distâncias em termos das diferenças de poder e assimetria queregem as relações interétnicas, as quais definem como relações de fricção econflito, para, sob esse marco, reconhecerem a importância e a necessidadede que as comunidades participem ativamente no desenho de seus própriosprojetos educativos.

Por outro lado, em Performance e transformação na escola indígenaBakairi, Celia Letícia Gouvêa Collet percebe, através de uma etnografia daescola dessa etnia indígena de Mato Grosso, que essa instituição foi apropria-da por eles a partir de referenciais culturais bastante próprios. A escola foiidentificada aos rituais “tradicionais” não apenas por ser um espaço de socia-lização e performance, mas também por ser um local de “transformação” e degarantia da perpetuação de seu povo e suas famílias.

Por fim, em Educação escolar entre os Tupinambá da Serra do Padei-ro: reflexões sobre a prática docente e o projeto comunitário, MarcosLuciano Lopes Messeder e Sonja Mara Mota Ferreira situam a construção daidentidade étnica dessa comunidade no âmbito de um amplo processo de orga-nização dos povos indígenas no Nordeste, destacando o componente religiosodesta trama identitária, numa breve caracterização que permite compreendero significado atribuído à educação escolar nesse processo e como essa in-

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Apresentação: educação indígena na contemporaneidade – novos desafios para o diálogo intercultural

corpora, por seu turno, as orientações mais amplas do projeto comunitário. Acontextualização da escola permite, em seguida, descrever e analisar práticas ediscursos dos professores sobre o que consideram como educação diferenciadae, ao final, buscam compreender os dilemas e as possibilidades colocadas pelaexperiência escolar indígena desenvolvida por essa comunidade específica, ana-lisando uma modulação possível de construção da educação diferenciada.

O conjunto de artigos aqui reunidos aborda, pois, uma diversidade de con-textos temáticos da educação escolar indígena e dos âmbitos societários epolítico-administrativos em que essa se inscreve, abrangendo, ademais, de as-pectos de sua gestão pelo estado nacional brasileiro e dos desafios que essaimpõe aos movimentos sociais que a protagonizam, até realidades etnográficaslocais e regionais que vão do Nordeste indígena a áreas transfronteiriças naAmazônia.

Restaria considerar, ainda sob o marco da implantação do curso de Licen-ciatura em Educação Escolar Indígena da Uneb, o desafio representado pelanecessidade de reflexões, em abordagens próximas, acerca das experiênciaspioneiras em formação superior de professores indígenas; experiências quetem florescido, nos últimos dez anos, em algumas iniciativas promissoras masainda isoladas.

Presentemente, porém, se tem oportunidade de massificar este processo ede formar um número cada vez maior de licenciados indígenas, aptos não ape-nas a formar indígenas em nível médio, mas a formar os próprios professoresindígenas, o que significa um grande avanço no sentido da autonomização daeducação escolar indígena.

Além disto, a multiplicação dessas iniciativas de formação já tem demanda-do a constituição de redes de discussão e articulação a níveis continental, na-cional e regional, capazes de ensejar a formação de “massas críticas” orientadaspara as especificidades e interesses dos povos indígenas nesses diferentesníveis. Se a autonomia implica na construção de processos de formação base-ados no compromisso dos próprios índios com seus projetos de sociedade;como as licenciaturas indígenas, enquanto consolidações de certa autonomiaformativa, poderão ensejar a construção de sistemas de educação escolar indí-gena que venham, fechando o ciclo, a se consolidar com formação em pós-graduação e produção de pesquisa? E também a subsidiar os projetos deauto-sustentação econômica e social; a pensar os territórios e sua articulaçãointerna com os projetos socioculturais indígenas e também com a sociedadeinclusiva?

São questões que ficam para um possível próximo número da Revista sobreo tema da Educação Indígena e para as quais a experiência dos próximos anosdo curso de Licenciatura em Educação Escolar Indígena da Uneb decertocontribuirá.

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Eliene Amorim de Almeida

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENANOS SISTEMAS DE ENSINO DO BRASIL

Eliene Amorim de Almeida *

RESUMONeste texto a autora faz uma análise acerca de uma das principais discussões daeducação escolar indígena nos dias atuais, que é o debate em torno de qual entefederativo deve se responsabilizar por essa política e como deve se organizar aadministração pública brasileira para dar conta dessa responsabilidade, respeitando aespecificidade dos povos indígenas no país. O texto foi produzido a partir dos dadoscoletados em entrevistas e em pesquisa documental durante uma pesquisa que aautora fez para o Conselho Nacional de Educação em 1997. No texto, mostra-secomo esse debate sobre quem deve-se responsabilizar pela educação escolar indígenavem desde 1991 até os dias atuais com a publicação do Decreto 6.861/09 e propostado Estatuto dos Povos Indígenas da Comissão Nacional de Política Indigenista.

Palavras-chaves: Educação escolar indígena - Gestão da política educacional -Sistema educacional

ABSTRACTINDIGENOUS EDUCATION IN THE BRAZILIAN EDUCATIONALSYSTEMS

In this paper the author analyses one of the main topic of discussion in indigenouseducation these days which is the debate about whether the central government shouldbe responsible for this policy and how to organize the Brazilian public administrationto assume that responsibility respecting the specificity of indigenous peoples in thecountry. The text was produced from data collected from interviews and documentaryresearch by the author who did research for the National Council of Education. Thetext shows how this debate over who should take responsibility for indigenouseducation has been around from 1991 until today with the publication of the Decree6.861/09 and proposal of the Statute of Indigenous Peoples of the National Commissionon Indigenous Politics.

Keywords: Indigenous education - Management of educational politics - Educationalsystem

* Mestra em Educação pela UFPE. Coordenadora da Equipe de Educação e Etnia do Centro de Cultura Luiz Freire/CCLF.Integrante da equipe de coordenação do Curso de Licenciatura Intercultural para professores/as indígenas em Pernambuco,Universidade Federal de Pernambuco - Campus do Agreste, Caruaru. Endereço para correspondência: Rua 27 de Janeiro 181,Carmo - 53.020.020 Olinda/PE. E-mail: [email protected]

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A educação escolar indígena nos sistemas de ensino do Brasil

IntroduçãoEntre os diversos debates sobre a Educação

Escolar Indígena no Brasil, um dos mais importan-tes e atuais trata sobre qual ente federativo deve-se responsabilizar pela gestão da política deEducação Escolar Indígena no país.

No texto, é feita uma análise de como essa dis-cussão vem ocorrendo desde o período do Decre-to Presidencial de nº. 26 de 04/02/91, que retirou aresponsabilidade do desenvolvimento da educaçãoescolar indígena da Fundação Nacional do Índio –Funai e transferiu para o Ministério da Educação– MEC1, passando pela publicação da Resoluçãonº. 03 de 1999 da Câmara de Educação Básica doConselho Nacional de Educação, até os dias atu-ais, quando se realizam as Conferências de Edu-cação Escolar Indígena, se criam os TerritóriosEtnoeducacionais e se discute a criação de um sis-tema próprio de Educação Escolar Indígena.

Para realizar essa análise recorreu-se aos da-dos coletados na pesquisa realizada no ano de 2007para o Conselho Nacional de Educação, no con-texto do Projeto 914 - BRA 1119 (BRASIL, 2007),“Fortalecimento Institucional do CNE como Cole-giado Superior de Política Educacional Brasileira”,que teve como objetivo:

... elaborar estudos e análises para subsidiar as dis-cussões do Conselho Nacional de Educação sobrea questão do tratamento da Educação Escolar Indí-gena no Sistema Educacional Brasileiro, conside-rando os direitos territoriais, políticos e culturais dospovos indígenas, a legislação educacional e as Di-retrizes Curriculares Nacionais da Educação EscolarIndígena (BRASIL, CEB-CNE/1999).

1. Da Funai para o MEC: razões para atransferência de responsabilidade

Em 1991, com o Decreto Presidencial nº 26, ogoverno brasileiro transferiu a responsabilidadeoficial da Educação Escolar Indígena da Funai parao Ministério da Educação. Essa mudança aconte-ceu em contexto de transformações na estruturado Estado brasileiro, que vinham ocorrendo no Bra-sil desde o final da década de 1970, tanto para apopulação brasileira em geral quanto para os po-

vos indígenas, que podem ser caracterizadas emdois processos. De um lado, a redemocratizaçãodo Brasil, e do outro, a Reforma do Estado, desen-volvida pelos governos que se instalaram no país apartir da década de 1990.

A redemocratização do país reivindicada pelosmovimentos sociais desse período enfatizou a des-centralização nos processos de tomada de deci-são, a liberdade de opinião e expressão, a partici-pação dos cidadãos na formulação e implementaçãode políticas públicas, criticando a centralização eexclusão, como estratégias fundamentais à demo-cratização e à justiça social, reivindicando políticaspúblicas que garantissem a participação democrá-tica e a redução das desigualdades sociais.

Na temática indígena, questionaram-se os pres-supostos filosóficos e políticos do regime militar, aDoutrina da Segurança Nacional, o desenvolvimen-tismo, como sinônimo de progresso, a prática doautoritarismo, da repressão e da tutela desenvolvi-da pelo Estado brasileiro nas décadas de 1960 e1970 (HECK, 1996). Essa crítica à concepção e àprática do indigenismo oficial foi expressa em di-versos encontros e em assembléias de indígenas eindigenistas, que ocorreram durante as décadas1970 e 1980 e desencadearam a criação de váriasorganizações2 que irão protagonizar mudançassubstanciais na concepção e na legislação indige-nista do período, especialmente a Constituição Fe-deral de 1988.

1 O decreto tem dois artigos com a seguinte redação: "Art. 1º -Fica atribuída ao Ministério da Educação a competência paracoordenar as ações referentes à Educação Indígena, em todos osníveis e modalidades de ensino, ouvida a FUNAI", e o "Art. 2º -As ações previstas no Art. 1º serão desenvolvidas pelas Secreta-rias de Educação dos Estados e Municípios, em consonânciacom o Ministério da Educação". 2 Para os indígenas destacam-se: as criações da União das Na-ções Indígenas - UNI; o Conselho Geral da Tribo Ticuna; aFederação das Organizações Indígenas do Rio Negro; o Conse-lho Indígena de Roraima; a Organização dos Povos Indígenas doRio Envira; a Coordenação das Organizações Indígenas da Ama-zônia Brasileira - COIAB; a União das Nações Indígenas doNordeste - UNI/NE, que mais tarde vai-se chamar Articulaçãode Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais eEspírito Santo- APOINME; a Organização Geral dos Professo-res Ticuna Bilíngues, do Alto Solimões; a Comissão de Profes-sores Indígenas da Amazônia e Roraima - COPIAR. No campoindigenista surgiu a Comissão Pró-índio de São Paulo - CPI/SP;a CPI/Acre; o Centro Ecumênico de Documentação e Informa-ção - CEDI; a Associação Nacional de Apoio ao Índio- ANAI; oCentro de Trabalho Indigenista - CTI e, também no âmbito daIgreja Católica Romana, especificamente o Conselho IndigenistaMissionário - CIMI e a Operação Anchieta - OPAN.

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Eliene Amorim de Almeida

Para Monserrat (1989, p. 246), a partir dos tra-balhos desenvolvidos por essas organizações emvários setores – terra, saúde, educação, políticaindigenista –, “foi-se delineando uma prática indi-genista paralela à oficial e quase sempre em con-flito com esta”. Nos documentos produzidos nosencontros, assembléias e reuniões realizados nasdécadas de 1970 e 1980, promovidos pelo indige-nismo não oficial pode-se destacar, em primeirolugar, duas críticas básicas.

A primeira refere-se à política de ensino inte-gracionista da Funai, com o entendimento de que aeducação oficial oferecida aos índios, tanto a esta-tal, quanto a missionária, tinha favorecido relaçõesde desigualdades já existentes entre os segmentosindígenas e a sociedade nacional. Por outro lado,concebia-se a escola como prática social e cultu-ral e acreditava-se que ela se tornaria um instru-mento a serviço dos povos indígenas. Para isso, aescola deve ser autônoma, entendida como umaresposta aos problemas historicamente acumula-dos pelos povos indígenas (SILVA, 1997).

A segunda diz respeito à compreensão de queos povos indígenas têm seus próprios projetos desociedades e que a finalidade da escola indígena écontribuir efetivamente na construção desses pro-jetos e, sendo assim, a escola indígena está associ-ada à noção de educação como processo educativomais amplo (ALMEIDA, 2002)

Assim, nos documentos produzidos nesses en-contros, a sociedade civil organizada e o movimentoindígena reivindicaram do Estado brasileiro umaescola autônoma, específica, diferenciada e inter-cultural, bilíngue e que fosse regida pelas leis dassociedades onde elas estão inseridas.

Nesse momento, concentraram-se esforços emduas perspectivas: a primeira, na articulação paraque a educação escolar dos indígenas fosse res-ponsabilidade do órgão que trata da educação noBrasil, ou seja, o MEC; e a segunda, na mudançada legislação3, visando uma nova relação entre oEstado brasileiro e os povos indígenas, como podeser observado no Relatório do II Encontro do gru-po de estudos sobre Educação Indígena, realizadono período entre 03 e 05 de maio de 19864, quandoos participantes reivindicam que: a) seja formula-da uma política nacional de educação escolar indí-gena; b) a formulação dessa política seja feita com

a participação ampla de todos os setores da socie-dade envolvidos na questão, sobretudo com a par-ticipação do movimento indígena, c) e que aimplantação dessa política esteja, de direito ede fato, sob jurisdição federal. (grifamos).

Por isso, a promulgação do Decreto Presiden-cial nº 26/91 desencadeou reações contrárias porparte de organizações indígenas e indigenistas, de-vido às relações complicadas existentes entre osindígenas e os poderes políticos e econômicos lo-cais (municípios e estados), principalmente por contada luta pela terra. Como alertou Silva e Grizzi(1981, p.19):

As recentes medidas de descentralização adminis-trativa da Funai, tendem a agravar a problemática doíndio, e a tornar a política indigenista oficial aindamais contrária aos seus interesses, porque a passa-gem dos assuntos indígenas para os estados só iriafavorecer os grupos econômicos interessados emexplorar as suas terras e diluir as pressões que fa-zem brancos e índios em defesa do índio. Se a ques-tão educacional for atribuída aos governosestaduais, fatalmente serão reduzidas as possibili-dades de que educação se leve em conta a especifi-cidade das culturas indígenas, porque o que prevê éa integração dos índios nos sistemas escolares es-taduais.

Entretanto, o descaso histórico da Funai com aquestão da Educação Escolar Indígena, associadoa uma esperança de poder influenciar na políticado MEC, para garantir uma educação escolar deacordo com suas especificidades étnicas, contri-buíram para que não houvesse uma manifestaçãocontundente do movimento indígena e das institui-ções de apoio à causa, contra o Decreto.

Em âmbito internacional, também se desenhavaoutro cenário em relação aos indígenas. As decla-rações e os instrumentos internacionais deixavamde falar no “direito à igualdade” e passaram a reco-nhecer o direito à diferença, o valor da diversidadecultural, igualdade de direitos, povos indígenas e au-todeterminação. Nesse contexto, aconteceu a revi-são da Convenção 107, que culminou, em 1989, com

3 Na ocasião estavam sendo discutidas as duas grandes leis nonosso país: a Constituição Federal e, posteriormente, a Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB/96.4 Documento do Bonde: "Exigências de uma nova ordem educa-cional indígena", 1987.

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A educação escolar indígena nos sistemas de ensino do Brasil

a adoção da Convenção nº. 169, durante a 76ª Con-ferência Internacional do Trabalho, que reconheceo princípio da autodeterminação dos povos, ratifica-da pelo Brasil em 2002.

No que diz respeito à Reforma do Estado, de-senvolvida, mais precisamente, nos anos de 1990,de orientação neoliberal, foi determinante na trans-ferência de responsabilidade da Educação EscolarIndígenas da Funai para o MEC. Nesse período,foram adotadas medidas que visaram reorganizara economia nacional e reestruturar a máquina es-tatal com o objetivo de reduzir o papel do Estado,desenvolvendo-se uma concepção de Estado Mí-nimo. Para isso, foram tomadas medidas de enxu-gamento da máquina estatal, como a demissão defuncionários públicos e a extinção de autarquias,fundações e empresas públicas. Dessa forma, fo-ram extintos vários órgãos públicos.

Nesse período, a Funai sofrerá um processo deesvaziamento de suas funções que foram direcio-nadas para outros órgãos governamentais. As en-tidades da sociedade civil, a partir dos anos 1990,intensificaram suas iniciativas de intervenção naspolíticas públicas, de modo que suas experiênciasinfluenciaram a elaboração de políticas respalda-das nas demandas dos povos indígenas.

Para Craveiro (2004), essas novas formas depensar a “coisa pública” levaram ao reforço da ten-dência de transferir funções da administração cen-tral para os níveis locais de governo, como meio deobtenção de maior eficiência no uso dos recursos.

Outra característica desse período é que espe-cialistas de organizações indigenistas e indígenascomeçam a participar e intervir no conteúdo e nosprocedimentos de elaboração dos documentos ofi-ciais e na legislação da Educação Escolar Indíge-na no país. Dessa forma, a “agenda histórica”desses movimentos foi incorporada às diretrizes,aos objetivos e princípios da política e legislaçãoeducacional para os povos indígenas no país (SIL-VA, 2001).

É, portanto, nesse contexto de redemocratiza-ção do país e Reforma do Estado, que ocorreu atransferência de responsabilidade da EducaçãoEscolar Indígena da Funai para o MEC, e gerouexpectativas de que a educação escolar indígenapudesse ser desenvolvida a partir dos referenci-ais teóricos e metodológicos elaborados no con-

texto de práticas indigenistas e indígenas que vi-nham ocorrendo no Brasil. Isso possibilitou inter-pretações diferenciadas sobre qual ente federativodeveria se responsabilizar pela oferta da educa-ção escolar para os indígenas, mas também am-pliou e situou a discussão no campo da políticaeducacional, antes entendida como política deassistência e limitada ao órgão indigenista oficial,às missões religiosas e entidades não-governa-mentais de apoio aos índios.

Entretanto, o que continuou acontecendo, na prá-tica, é que os Municípios, os Estados, a Funai, asentidades de apoio e as missões religiosas, depen-dendo da região do país, continuaram a desenvolverações no sentido de ofertar a educação escolar paraos povos indígenas. Essa situação só veio a ser ex-plicitada para ser encaminhada em 1999, com aResolução nº 03 da Câmara de Educação Básicado Conselho Nacional de Educação – CEB/CNE,que “estadualizou” a oferta da educação escolarindígena, sem excluir os municípios, desde que aten-dam às condições postas pelo CNE5. Desde então,a Educação Escolar Indígena vem sendo desenvol-vida dentro dos sistemas de ensino previsto na or-ganização da Educação brasileira6, o que trouxeoutros problemas ou reforçou os já existentes, comopassaremos a tratar a seguir.

2. Os princípios e as diretrizes da edu-cação escolar indígena e a prática dossistemas de ensino

Para que a Educação Escolar Indígena funcio-ne dentro dos sistemas de ensino existentes e deacordo com os princípios de diferenciação, especi-ficidade, interculturalidade e plurilinguismo, defini-do nas diretrizes da política nacional, o CNE,através da Resolução nº. 03, estabeleceu pelo me-nos três requisitos, a saber: (i) que a escola indíge-na deve ter “normas e ordenamentos jurídicospróprios”; (ii) que as secretarias devem criar no-vas estruturas políticas, administrativas, pedagógi-cas para o desenvolvimento dessa política; (iii) que

5 Resolução nº. 03/99, Art. 9º, § 1º.6 Segundo a LDB nº. 9.394 de 1996, os artigos nº IV 16, 17 e 18definem que a organização da educação brasileira é compostapor: Sistema Federal; Sistemas dos Estados e do Distrito Fede-ral; Sistemas Municipais.

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Eliene Amorim de Almeida

cada ente federativo deve funcionar em Regimede Colaboração.

Esses requisitos são considerados essenciaispara que a educação escolar atenda às expec-tativas dos povos indígenas com relação à fun-ção social da escola nas suas sociedades e paraque as secretarias de educação possam realizare conduzir ações coordenadas e articuladas. Porisso, essas “novas condições políticas, adminis-trativas e pedagógicas” vêm sendo reiteradas emdiversos documentos oficiais que tratam do temae nas várias reivindicações dos/as educadores/as indígenas.

Porém, segundo a avaliação do MEC7, até 2002,poucos Estados criaram, nas suas estruturas, ascategorias de escola ou de professor/a indígena,mesmo que o CNE alerte:

As escolas situadas nas Terras Indígenas só terãodireito ao pleno acesso aos diversos programas quevisam o benefício da educação básica se forem con-sideradas na sua especificidade. Isto só se concreti-zará por meio da criação da categoria “EscolaIndígena” nos respectivos sistemas de ensino8.

Como essas categorias jurídicas não foram cri-adas, a escola e o professor indígena ficam sub-metidos às normas comuns existentes nosmunicípios ou nos estados, como foi denunciadopelo Conselheiro Gersem Baniwá, em audiênciapública do CNE9, quando afirmou: “Os atuais mar-cos legais da Educação Escolar Indígena não tive-ram como conseqüência que Estados e Municípioselaborassem novas leis e atos normativos para fa-vorecer a diversidade sociocultural”

A situação profissional do indígena que assumeo papel de professor/a em sua comunidade tam-bém merece destaque. Trata-se da melhor formade regularizar a situação profissional desses/aseducadores/as, de forma que se possa garantir osseus direitos trabalhistas, mas sem ameaçar o po-der da comunidade de fazer suas indicações, omonitoramento e também a punição, quando for ocaso, já que o concurso lhes daria o estatuto defuncionário público. No Brasil, há entendimentospolíticos e jurídicos diferentes acerca dessas ques-tões; urge, então, que o Estado brasileiro encontreuma solução para que a carreira de professor indí-gena seja concretizada, pois é condição essencial

para a efetivação do direito a educação escolarintercultural.

Além disso, devem ocorrer mudanças na es-trutura e na gestão das secretarias de educação,para conduzir a política de educação escolar indí-gena. Nos diversos documentos oficias, anuncia-se a necessidade da criação de uma instânciaorganizativa para coordenar e executar as açõesnecessárias à implantação do atendimento escolaràs comunidades indígenas. Sobre esse assunto, naavaliação realizada pelo MEC10, os/as pesquisa-dores/as concluíram: “Muitos estados mantêm hojeno âmbito do ensino fundamental ou básico, umaequipe específica para trabalhar com povos indí-genas, mas ainda a maior parte não tem infra-es-trutura e orçamento para executar as açõesrelacionadas com educação indígena.”

O que se observa é que as equipes funcionamem departamentos pré-existentes, sem autonomiapolítica, administrativa e financeira, ocasionando quea Educação Escolar Indígena tenha que se ade-quar às normas estaduais/municipais comuns àsescolas dos não indígenas.

A ausência de novas normas impede que essapolítica seja desenvolvida a partir dos princípios daespecificidade e diferenciação. Exemplo disso é aquestão da gestão e do calendário escolar. No casoda gestão, a legislação e os documentos oficiaisafirmam que deve ser considerada a participaçãoda comunidade na definição do modelo de organi-zação e gestão da escola indígena. Entretanto, nãoé bem isso que vem sendo verificado pelo Conse-lheiro Gersem Baniwá, no acompanhamento quevem fazendo nos Estados, quando identificou:

Em um Estado, professores indígenas não podemassumir a direção de suas escolas, pois se trata decargo atribuído somente a profissionais do quadroefetivo do Estado ou do Município. Em outro, exige-

7 Tocantins, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amazonas, Ce-ará, Minas Gerais, Pará, Roraima, Pernambuco haviam criado acategoria de escola indígena.8 CNE/CEB - Parecer 14, p.11 - Diretrizes Curriculares Nacio-nais para escolas indígenas.9 Realizada em São Gabriel da Cachoeira, em março de 2007,quando a autora foi convidada para participar em virtude dapesquisa que estava sendo realizada para o CNE.10 Apreciação das políticas públicas em educação indígena noperíodo 1995-2002: MEC, p. 57

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se que os professores tenham especialização emadministração escolar, quando a maioria dos profes-sores daquele Estado não tem nem o magistério.Outro Estado impôs a organização da escola comdiretor, sem contemplar o disposto na ResoluçãoCNE/CEB nº. 3/9911.

A gestão é um dos elementos fundamentais quecaracterizam um determinado tipo de escola e seuprojeto político pedagógico. Para que a escolaindígena possa assegurar a sua função social énecessário que o modelo de gestão dessas escolasesteja estruturado de acordo com a organizaçãosocial, política e territorial de cada grupo étnico.

Cada povo tem um modelo próprio de organi-zação social e política, suas próprias formas decoordenar, planejar, zelar, organizar, dirigir, decidire avaliar seus processos educativos e suas institui-ções que foram construídas no contexto das suasrelações sociais, históricas, culturais e religiosas quesão vivenciadas nos dias atuais. Por isso, a escola,para ser indígena, precisa que o modelo de gestãoseja estruturado tendo como base a organizaçãosocial e política do grupo.

Ponto importante, também, é o calendário dasescolas indígenas. Sabe-se que a garantia do ca-lendário próprio é fundamental na caracterizaçãoe definição da escola indígena. A LDB 9394/96 e oParecer 14/99 reconhecem essa condição flexibi-lizando o previsto de oitocentos horas/aulas e osduzentos dias letivos, quando diz:

No caso das escolas indígenas, o importante nãoestá no cumprimento rígido da temporalidade daescola, mas na garantia da observância e do respei-to às qualidades sócio-culturais das diversas comu-nidades indígenas (...) em atenção ao disposto noartigo 79, da LDB, garantida a flexibilização e a con-textualização adequada às condições dos respecti-vos povos indígenas12.

O tempo é uma criação cultural, sua concep-ção e utilização são feitas de acordo com a culturados grupos humanos. Assim, para que a escola sejaindígena, a utilização do tempo e suas definiçõesna escola devem acontecer no contexto das vivên-cias culturais das sociedades em que ela está inse-rida (BRASIL, 1988). Portanto, a duração dajornada escolar será feita a partir da função socialque a escola assume naquele tipo de sociedade.

Parece, então, que foi com esse entendimento queo CNE tratou da flexibilidade do calendário esco-lar indígena, inclusive para o número de dias leti-vos e horas/aulas previstas.

Entretanto, na prática, Estados e municípios to-leram a norma e a flexibilizam desde que o previs-to, 800 horas e 200 dias, seja cumprido, impedindo,pois, que o projeto político pedagógico se desen-volva respeitando as vivências culturais dos povosindígenas. O que se percebe é que a garantia dodireito à especificidade e diferenciação fica per-manentemente ameaçada, quando essas são colo-cadas na relação com a legislação educacionalnacional mais ampla e as normas políticas/admi-nistrativas das secretarias de educação.

Outro problema crucial é o não funcionamentodo regime de colaboração no país. Como a Lei9394/96 não consagrou a criação de um sistemanacional de ensino e a legislação garante a autono-mia política, administrativa e legislativa entre osentes federados13, sugeriu-se a criação de siste-mas próprios nos estados e municípios. Essa des-centralização da organização do sistema educaci-onal brasileiro favorece a fragmentação e adesarticulação dos diversos níveis e modalidadesde ensino.

A conseqüência dessa descentralização é ocumprimento ou não, por parte dos estados e/oumunicípios, das diretrizes nacionais formuladas pelaUnião. Por outro lado, o Regime de Colaboraçãoque poderia favorecer ações coordenadas entre assecretarias dos estados e municípios e a União,garantindo as diretrizes nacionais, também não temfuncionado, como afirmou o Conselheiro do CNE,Gersem Baniwá:14

A não regulamentação do regime de colaboraçãogera inúmeros impasses na gestão da Educação Es-colar Indígena, e lideranças, professores indígenase a Comissão Nacional de Educação Escolar Indíge-

11 BRASIL. CNE/CEB - Indicação nº 1/200712 CNE/CEB - Parecer 14/99, p. 2413 Na LDB, nº. 9.394 de 1996, o artigo 8, e na C.F., o artigo 211afirma: "A União, os Estados o Distrito Federal e os Municípiosorganizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemasde ensino, os quais terão liberdade de organização na forma dalei."14 BRASIL. CNE/CEB - Indicação nº. 1/2007.

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na (CNEEI) têm interpelado o MEC para assumir seupapel regulatório e coordenador das políticas.

Assim, como não há um sistema nacional deeducação e o regime de colaboração não tem fun-cionado, os estados e/ou municípios cumprem ounão com as diretrizes nacionais de Educação Es-colar Indígena, dependendo das interpretações, davontade política do gestor, do movimento indígenae da correlação de forças que se estabelecem emâmbito estadual e municipal.

Assim, pode-se afirmar que, mesmo havendono Brasil um corpus documental que rompe como modelo integracionista de fazer educação esco-lar para os povos indígenas, no gerenciamento dessapolítica há vários impedimentos para a efetivaçãodo direito desse povos a uma educação escolar in-tercultural. Por isso, são várias as reivindicaçõesdo movimento indígena no Brasil, para que hajamudanças no aparato legal, de forma que se possacriar um sistema próprio para tratar do tema noBrasil.

3. Territórios etnoeducacionais ou sis-tema próprio: os desafios atuais dagestão da educação escolar indígenano Brasil

Além dos motivos acima elencados, há váriasoutras limitações apontadas pelo movimento indí-gena e indigenista para que a Política de EducaçãoEscolar Indígena seja desenvolvida no contexto dossistemas de ensino existentes.

Uma dessas limitações é o fato de que os po-deres locais, municipais ou estaduais, sempre tive-ram interesses com a questão política e territorialdos povos indígenas. Caso recente e emblemáticodessa situação é o da Terra Indígena Raposa Ser-ra do Sol, em que o Governo do Estado de Rorai-ma, por represália à demarcação do território deacordo com as reivindicações dos povos naquelaregião, municipalizou as escolas indígenas, semconsultar as comunidades como previsto na Reso-lução 03/99 e na Convenção 169 da OrganizaçãoInternacional do Trabalho – OIT.

Aliás, as entidades de apoio e o movimento in-dígena analisavam na época da publicação do De-creto Presidencial nº. 26, que a descentralização

dos assuntos indígenas para os Estados iria favo-recer os grupos econômicos interessados em ex-plorar as suas terras e que, se a questão educacionalfosse para os governos estaduais, fatalmente seri-am reduzidas as possibilidades de que a políticaeducacional levasse em conta as especificidadesdas culturas indígenas.

Não é estranho a ninguém que as disputas lo-cais pelas terras indígenas e suas riquezas impe-dem o desenvolvimento de políticas que respeitema diversidade étnica, tendo em vista que os municí-pios foram criados a partir da invasão dos territóri-os indígenas, da expulsão das aldeias e daeliminação das diferenças culturais. As relaçõesque se estabelecem, nesse espaço, pela disputa dosterritórios dos povos indígenas, são de muita ten-são. Essa disputa territorial se estende para os cam-pos da política partidária, das relações sociais,econômicas e afetivas. Assim, as populações lo-cais e regionais tratam os indígenas com discrimi-nação e preconceitos, criando-se uma situação deverdadeiro antagonismo com esses povos.

É claro que a esfera federal não fica completa-mente isenta de influências políticas e econômicaslocais. Entretanto, o fato da gestão da política con-centrar-se em um único ente da federação podefavorecer um maior controle social dos povos indí-genas sobre suas políticas, inclusive porque suasorganizações são macro-regionais e até nacionais,enfrentando, de forma mais eficaz, as disputas eos interesses locais.

Outra limitação importante é que a organiza-ção do ensino no Brasil atende à lógica espacialonde vive a população brasileira, ou seja, nos limi-tes territoriais do Município ou do Estado. Com ospovos indígenas não acontece da mesma forma,porque um mesmo povo pode encontrar-se emvários estados e municípios, haja vista seus limitesterritoriais transcenderem a divisão político-geográ-fica brasileira. O próprio CNE, através do Parecer14/99, encontrou explicação para optar pela esfe-ra estadual para ofertar e executar a política deEducação Escolar Indígena, no fato de muitos ter-ritórios indígenas se localizarem em mais de ummunicípio.

Assim, o mesmo argumento é possível de serusado para os povos cujos territórios estão em mais

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de um estado da federação, ou mesmo aquelesgrupos indígenas que moram nas periferias das ci-dades.

Sabe-se que o respeito à situação territorial dospovos indígenas é condição fundamental para queos demais direitos sejam assegurados, porque, comodiz Ramos (1994, p. 20-21): “No território estãoinscritas as mais básicas noções de autodetermi-nação, de articulação sociopolítica, de vivência ecrenças religiosas, para não falar na própria exis-tência física do grupo”.

Como a organização da educação brasileira édescentralizada, não há um único órgão normati-zador e/ou fiscalizador da política, ou com poderpunitivo para aqueles que não cumpram as deter-minações em âmbito nacional. Os estados e/oumunicípios não são obrigados a atender às diretri-zes nacionais, e as escolas de um mesmo povo in-dígena ficam sob a condução política de gestõesadministrativas diferentes, trazendo toda sorte decomplicações, à mercê das vontades políticas dequem conduz a gestão educacional.

O fato é que a estrutura da administração pú-blica brasileira foi criada numa perspectiva de na-ção única e universalista e para desenvolverpolíticas através de mecanismos e práticas homo-genizadoras15. Por isso, no desenvolvimento depolíticas específicas, tem-se mostrado como exi-gência a necessidade de se criarem estruturas ad-ministrativas alternativas às já existentes, dentroda gestão pública brasileira, tendo em vista que, naprática, ao desenvolver as políticas públicas espe-cíficas, se encontram vários entraves para garan-tir a especificidade.

Aspecto importante é a compreensão da Esco-la como um bem indígena, compreendendo bensindígenas todos os elementos de ordem material eimaterial que garantem a identidade étnica do gru-po e o seu direito à vida. Assim, podem-se consi-derar bens indígenas a própria vida, a saúde, aliberdade, a posse das suas terras, o uso exclusivodas suas riquezas, sua organização social, as cren-ças, as tradições, a língua etc.

Nas últimas décadas, professores/as, lideran-ças e comunidades indígenas têm desenvolvidovárias experiências de escolas, cujo papel tem sidofundamental na reafirmação da identidade étnicae na concretização de seus projetos de futuro, ou

seja, a educação escolar tem-se tornado uma ver-dadeira aliada na proteção de seus bens, como podeser observado na fala de uma professora indígenade Pernambuco:

A escola indígena tem de ser parte do sistema deeducação de cada povo, no qual se assegura efortalece a tradição indígena, a partir daí teremoselementos suficientes para uma relação positivacom os outros.16

A LDB nº. 9394/96 também trata a escola indí-gena como um bem quando afirma que ela servepara reafirmação de suas identidades étnicas, re-cuperação de suas memórias históricas, valoriza-ção de suas línguas e ciências, além de possibilitaro acesso às informações e conhecimentos valori-zados pela sociedade nacional.17

O CNE compreendeu tal significado quandoentendeu a escola como meio para garantir acessoa conhecimentos gerais, sem precisar negar asespecificidades culturais e a identidade daquelesgrupos18. Assim, tanto nos documentos oficiais,quanto na concepção e na prática dos indígenas,todos concordam quanto à importância da institui-ção escolar autônoma, para proteção dos bens in-dígenas, tornando-se também ela própria um bemque deve ser protegido pela União, como quer aCF/8819.

Nessa mesma direção da discussão, encontra-se a polêmica entre a relação dos artigos vinte edois e vinte e quatro da Constituição Federal de1988. No Artigo 24 da Carta Magna, é afirmadoque “a educação, cultura, ensino e desporto” sãoas atividades legislativas “concorrentes” dentre ostrês entes federativos, podendo a esfera estadualtambém legislar nessa área, desde que não contra-rie a Carta Magna/88 e a LDB 9394/96.

15 Deborah Duprat, Subprocuradora-Geral da República, Coorde-nadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MinistérioPúblico Federal - Índios e outras Minorias Étnicas. Palestrarealizada no Seminário Bases para uma política indigenista, pro-movido pelo Laced/Museu Nacional, em agosto de 2004.16 Jucineide Simplício Freire, professora Xukuru/PE (BRASIL,1988. p. 58).17 Lei 9.394 de 1996, artigo 78.18 Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica -NE/CEB - Parecer 14/99, p. 4.19 Conforme os Artigos nº. 22, inciso XIV, e o 231 da Constitui-ção brasileira de 1988, compete à União privativamente legis-lar sobre as populações indígenas e proteger todos os seus bens.

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Como a Constituição não pode ser lida a partirde um único artigo, tendo em vista que ela se cons-titui num conjunto de diretrizes e princípios que deveser interpretado e compreendido dentro de um todo,então, quando o constituinte construiu esse artigonão estava se referindo à Educação Escolar Indí-gena. A Carta Magna diz no seu Artigo 22, no Tí-tulo III da Organização do Estado, que “competeprivativamente à União legislar sobre as popula-ções indígenas”, portanto, não atribuiu à esferaestadual a competência para legislar sobre o temada Educação Escolar Indígena, senão estaria emcontradição, conforme nos explica a Dra. RosaneLacerda20.

O constituinte entendeu que não caberia aos esta-dos nem aos municípios a adoção de medidas queviessem interferir na vida dos povos indígenas. Re-servou essa interferência na área federal, seja nonível legislativo, executivo, judiciário e também deproteção relativo à situação do Ministério Púbico.O que podemos perceber é que há um sistema, háuma lógica, posta pela Constituição Federal, quecoloca o tratamento legal a ser pensado para os po-vos indígenas dentro de um sistema, que é um siste-ma federal, em vários níveis, em várias dimensõestemáticas.

Portanto, ao colocar a Educação Escolar Indí-gena para ser executada pelos estados ou municí-pios rompe-se com esse sistema de proteção criadopela CF/88. Há uma quebra no princípio constitu-cional da federalização da questão indígena, fican-do assim ameaçado o direito à educação específica,diferenciada e intercultural.

O que se tem visto na prática é que não bastaconstruir diretrizes, princípios e ações de uma polí-tica educacional intercultural; faz-se necessário,também, a criação de estruturas de gestão flexí-veis, que possam garantir o direito dos povos indí-genas a ter suas escolas baseadas nas suasorganizações sociais e que contribuam com os seusprojetos de futuro.

Esta discussão encontra-se em pleno vigor, esem consensos, na proposta da Comissão Nacio-nal de Política Indigenista – CNPI, que cria o Es-tatuto dos Povos Indígenas, enviada ao CongressoNacional em junho de 2009, e na criação dos Ter-ritórios Etnoeducacionais, pelo Decreto 6.861 de27 de maio de 2009, como iniciativa da Coordena-

ção Geral de Educação Escolar Indígena – CGEEI/SECAD/MEC.

Com a criação dos etnoterritórios, parece queo MEC quer tratar dois problemas da gestão dapolítica de educação indígena: o primeiro refere-seao respeito à situação territorial dos povos indíge-nas, e o segundo, ao não cumprimento do Regimede Colaboração. E faz isto sem alterar a formacomo está organizada a Educação no país.

Com o Decreto nº 6.861/09, o MEC propõe quese faça uma articulação entre os entes federativosa partir de uma pactuação que deve ser efetivadaem um Plano de Ação. Para o MEC, os governosestaduais/municipais devem elaborar um plano deação articulado com vários sujeitos sociais, indíge-nas, universidades e entidades de apoio, para ofer-tar a Educação Escolar Indígena, “observada a suaterritorialidade e respeitando suas necessidades eespecificidades”. Não há nenhuma menção quan-to à criação de uma nova estrutura organizacionalpara dar conta da desejada especificidade, até por-que isso não poderia ser feito através de um de-creto.

O Decreto repete os princípios, as diretrizes, osreferenciais teóricos que já estão explícitos emvários documentos oficiais, não traz nenhuma no-vidade quanto ao que já existe hoje no Brasil, só aproposta de pactuação, enquanto os entes federa-tivos continuarão com as atribuições já definidasem documentos anteriores.

Não há também nenhuma exigência para queos estados e municípios atuem seguindo as diretri-zes nacionais de educação escolar indígena, exi-gindo-se apenas aquelas ações em que o MEC iráapoiar, como afirma o inciso 2º do Artigo 5º: “Asações apoiadas pelo Ministério da Educação de-verão estar em conformidade com as diretrizescurriculares nacionais da educação escolar indíge-na, estabelecidas pelo Conselho Nacional de Edu-cação”.

Isso nos faz questionar se isso quer dizer queos estados e municípios podem desenvolver açõespara educação escolar indígena, sem estar em con-formidade com as diretrizes nacionais da educa-ção escolar indígena.

20 Entrevista dada à autora durante a pesquisa para o CNE/UNESCO, já citada.

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Assim, mesmo que o MEC queira, com essedecreto, que se desenvolva uma política de educa-ção escolar indígena que leve em conta a situaçãoterritorial dos povos indígenas, a forma como seorganizam, articulam e estabelecem as relaçõesintersocietárias, históricas, políticas, econômicas,filiações lingüísticas e práticas culturais, não há nadano documento que garanta isso. Ou seja, a educa-ção escolar indígena ficará à mercê das vontadesdos gestores públicos elaborarem, participarem ounão do Plano de Ação do território etnoeducacio-nal. A publicação desse Decreto confirma a com-preensão de Almeida (2006, p. 27), quando afirmou:“Inexistindo uma reforma do Estado, coadunadacom as novas disposições constitucionais, a solu-ção burocrática foi pensada sempre com o propó-sito de articulá-las com as estruturas administrativaspreexistentes, acrescentando à sua capacidadeoperacional atributos étnicos.”

A educação escolar indígena, desenvolvida nocontexto dos sistemas de ensino existentes, apre-senta vários problemas, impedindo que os princípi-os e as diretrizes nacionais sejam colocados naprática como procuramos mostrar anteriormenteneste texto. Nos encontros sobre a temática, osdiversos sujeitos que tratam do tema no país têmcompartilhado da compreensão com relação à im-possibilidade da educação escolar indígena ser de-senvolvida dentro dos sistemas de ensino existentes,reivindicando a criação de uma nova estrutura paradesenvolver essa política educacional, tendo emvista que as atuais estruturas administrativas “nãosão capazes nem permitem uma verdadeira edu-cação escolar indígena, porque não contemplamas demandas, os princípios e as metodologias dosdiversos povos indígenas do Brasil.”21.

A Comissão Nacional de Política Indigenista –CNPI, ouvindo as diversas reivindicações postula-das pelos movimentos indígenas, propõe, no textodo projeto de Lei que cria o Estatuto dos PovosIndígenas, a criação de um sistema nacional deeducação para tratar da educação escolar indíge-na, como pode ser identificado no Capítulo IV, Ar-tigo 199, na proposta encaminhada ao CongressoNacional “a educação escolar indígena será im-plementada por um sistema nacional de educaçãoescolar indígena, nos termos desta lei”. Mais doque isso, atribui essa responsabilidade diretamente

ao sistema federal, conforme o Art. 201, que afir-ma: “o Sistema Nacional de Educação escolar in-dígena compõe o Sistema Federal de Ensino daUnião, respeitando-se as suas especificidades, eserá mantido com recursos ordinários”.

Assim, como pode ser observado, a CNPI,mesmo propondo a criação de um sistema nacio-nal de educação escolar indígena, submete-o a umdos sistemas já existentes no contexto da organi-zação da educação brasileira. Sabe-se que no Brasilnão há um sistema nacional de Educação, como setem na área de Saúde Pública, mas vários siste-mas, e o Federal é um desses sistemas que temsob a sua responsabilidade a rede de escolas fede-rais e as universidades. Portanto, não é um siste-ma novo que está se propondo, mas um subsistemadentro do Sistema Federal de Ensino. Este fato si-naliza, caso seja aprovada a proposta de Estatutodos Povos Indígenas da forma como se encontra,que não será criada uma nova estrutura organiza-tiva para o desenvolvimento da educação escolarindígena. Desse modo, ela continuará sendo de-senvolvida dentro das estruturas atuais, inclusivecom as mazelas próprias desse sistema. Essa con-tradição, no projeto, é provavelmente fruto das dis-putas que têm sido travadas na construção daspropostas para o Estatuto dos Povos Indígenas.

Quanto aos territórios etnoeducacionais, a pro-posta da CNPI aparece como uma forma de orga-nizar o Sistema, conforme Artigo 200, Inciso IV,que trata dos princípios, portanto o que se propõe éa constituição de uma estrutura nova, independen-te da divisão político-administrativa do País paraadministrar a educação escolar indígena. Parece,portanto, que, além dos embates políticos enfren-tados na CNPI, houve também uma confusão acer-ca do entendimento de como se organiza aEducação brasileira. Ao atribuir a responsabilida-de ao “Sistema Federal”, o que a CNPI desejavaera que a oferta e execução da educação escolarindígena ficassem sob responsabilidade do entefederativo União Federal, e não dentro das estru-turas existentes.

21 Fala de Gersem Baniwá, em entrevista realizada pela pesquisa-dora Judite Gonçalves de Albuquerque, por ocasião do Diagnós-tico da Escolarização em Nível Médio dos Povos Indígenas noAlto e Médio Rio Negro-Amazonas - Projeto 914bra1086 doPrograma Diversidade a Universidade - Produto IV "É PossívelConstruir Uma Educação Escolar Indígena?", agosto de 2004.

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Eliene Amorim de Almeida

Considerações finaisGarantir as condições para que a educação

escolar indígena seja desenvolvida dentro de umsistema próprio com responsabilidade direta daUnião Federal é fazer cumprir os princípios cons-titucionais.

Trata-se da construção de um modelo de ges-tão da política educacional que leve em conside-ração a diversidade sócio-lingüística, as dinâmicasculturais, experiências históricas, a situação ter-ritorial dos povos indígenas, potencializando a suaparticipação efetiva e ativa e garantindo a suaautonomia, sem excluir os outros entes federati-vos, possibilitando que os povos indígenas tenham,na teoria e na prática, uma educação escolar in-tercultural.

Alguns sinais de que a especificidade da edu-cação escolar indígena exige novas estruturas,dentro do Estado Nacional, são apresentados sis-tematicamente, e nos parece que o MEC insisteem não reconhecê-los. Isto pode ser identifica-do quando o CNE atribuiu à esfera estadual, em1999, pela Resolução nº 03, a responsabilidadepela oferta e execução de todas as etapas daeducação básica para os povos indígenas. Atra-vés disso, cria uma regra intermediária ao esta-belecido pela LDB, o que se constitui em umatendimento diferenciado da escolaridade ofe-recida aos não-índios mas que ainda não é sufi-ciente diante das demandas efetivas. A própriadocumentação oficial insiste que é preciso quese tenham “normas e ordenamentos jurídicospróprios”, criando-se “setores específicos” paratratar da temática no Brasil.

Outro sinal é que, considerando a pluralidadeétnica do país, e reconhecendo a necessidade deum atendimento específico, foi criada a Secretariade Educação Continuada, Alfabetização e Diver-sidade – SECAD e, dentro dessa estrutura a Co-ordenação de Apoio as Escolas Indígenas, comassessoria da Comissão Nacional de Educaçãoescolar indígena. Isso denota que o próprio MEC

“percebe” a exigência de uma gestão específicapara a educação escolar indígena.

A criação de um sistema próprio de educaçãoescolar indígena poderia favorecer uma ação con-tundente e eficaz nos problemas educacionais dospovos indígenas. Para tanto, isso exige uma açãodeliberada, uma definição de intencionalidade, arealização de diagnósticos da situação e necessi-dades de cada povo indígena, clareza de organiza-ção e funcionamento das diversas partes queconstituem o sistema, com a definição de normascomuns. (SAVIANI, 1999).

Em um sistema de educação próprio, a Comis-são Nacional de Educação escolar indígena pode-rá vir a se tornar um Conselho de Educação escolarindígena, representativo da diversidade, com auto-nomia política e financeira. Atuará, portanto, deforma articulada e sinérgica com o Conselho Na-cional de Educação, para criar as normas para ofuncionamento do Sistema, coordenar e articularas Conferências Nacionais de Educação escolarindígena, como instância deliberativa da política deeducação escolar indígena no país.

Na estruturação e organização, para garantirum funcionamento que respeite a diversidade so-ciocultural dos povos indígenas, toma-se como re-ferência os etnoterritórios, com os princípios jáconsiderados e com o gestor público, que garantaa participação efetiva dos indígenas nas delibera-ções da política. Um dos desafios, neste contexto,é não excluir os estados e municípios, diante desuas responsabilidades em aplicar os recursos pú-blicos que arrecadam com os impostos na educa-ção escolar indígena.

Portanto, um sistema próprio para tratar da edu-cação escolar indígena no país tem como intençãofazer com que os princípios de autonomia, especi-ficidade, diferenciação, plurilinguismos, intercultu-ralidade, sejam efetivamente colocados na práticae que os saberes, modos de organização social eos sistemas educativos dos povos indígenas sejamrespeitados, garantindo a sua participação na efe-tivação da política.

REFERÊNCIASALMEIDA, Eliene Amorim de. A política de educação escolar indígena: limites e possibilidades da escola indígena.2002. 192f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educação, Recife, 2002.

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Recebido em 14.09.09Aprovado em 08.10.09

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Gersem Baniwa

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA:ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS

Gersem Baniwa *

* Mestre em Antropologia Social. Doutorando em Antropologia pela Universidade de Brasília. Atual Diretor-Presidente doCentro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP), Conselheiro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Coordenador-Geralde Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação. Endereço para correspondência: Universidade de Brasília, CampusUniversitário Darcy Ribeiro, Departamento de Antropologia, Asa Norte, Brasília/DF. E-mail: [email protected] /[email protected]

RESUMOO depoimento objetiva produzir reflexões políticas e teóricas sobre o alcance práticodos direitos indígenas no Brasil, no campo das políticas de educação escolar indígena,a partir das mudanças provocadas pela Constituição Federal de 1988. Recorrer àhistória recente de processos de escolarização dos povos indígenas possibilitará sugerira necessidade de um aperfeiçoamento nas estratégias desenhadas no âmbito dosplanos de médio e longo prazo do movimento indígena e indigenista brasileiro para aampliação e efetivação dos direitos a uma educação intercultural específica ediferenciada, ameaçados pela nova onda de igualitarismo e universalismo. Os direitosà educação escolar dos povos indígenas, antes de 1988, no Brasil, tiveram comofundamento e fim garantir e facilitar o processo de integração dos índios à chamadacomunhão nacional ou mesmo a uma eliminação física, para abrir caminho aos projetosde expansão territorial e econômica do Poder Colonial. A escola foi considerada etratada como um poderoso instrumento para isso. Em razão disso, os principais desafiosenfrentados na atualidade passam pela necessidade de superação das práticasseculares de tutela ou semi-tutela para apostar no verdadeiro protagonismo eautonomia indígena na construção e gestão de seus processos de educação associadosaos seus projetos societários do presente e do futuro.

Palavras-chave: Educação escolar indígena – Movimento indígena – Tutela e semi-tutela – Autonomia indígena

ABSTRACTINDIGENOUS FORMAL EDUCATION: THE STATE AND SOCIALMOVEMENTS

This account aims to produce political and theoretical reflections upon the practicallimit of indigenous rights in Brazil in the field of indigenous school policies, especiallyon the base on the novelties introduces by the federal constitution of 1988. Comingback to the recent history of the process of indigenous integration within the officialschooling system will turn possible to suggest the need of an improvement in theindigenous strategies drawned in short and long term which are threatened by thenew wave of egalitarianism and universalism. Indigenous right to education before1988 in Brazil was based on the project of integration indigenous people within the

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Educação escolar indígena: estado e movimentos sociais

national community when it did not aim at the simple physical elimination to open theway to economic and territorial expansion. School was considered a powerful tool inthis sense. For this reason, the major present challenge is to go beyond the secularpractices of custody or half-custody, so as to invest in real protagonism and indigenousautonomy in the construction and management of the educational process which arekey to their future.

Keywords: Indigenous school – Indigenous movement – Custody and half-custody –Indigenous autonomy

IntroduçãoEste breve depoimento objetiva produzir re-

flexões políticas e teóricas sobre o alcance práti-co dos direitos indígenas no Brasil a partir dasmudanças provocadas pela Constituição Federalde 1988, no campo das políticas indigenistas e in-dígenas do país, da perspectiva do processo deescolarização dos povos indígenas. Recorrer àhistória recente possibilitará sugerir a necessida-de de um aperfeiçoamento nas estratégias dese-nhadas no âmbito dos planos de médio e longoprazo do movimento indígena brasileiro, para amanutenção e garantia dos direitos indígenas auma educação escolar própria, ameaçados pelanova onda de igualitarismo e universalismo a par-tir das quais são interpretados e aplicados. Osdireitos indígenas antes de 1988, no Brasil, tive-ram como fundamento e fim garantir e facilitar oprocesso de integração dos índios à chamada co-munhão nacional ou mesmo a uma eliminação fí-sica, para abrir caminho aos projetos de expansãoterritorial e econômica do Poder Colonial. A es-cola foi considerada e tratada como um poderosoinstrumento para isso.

Foi a Constituição Federal de 1988 que trouxeuma nova base legal e conceitual de mudança davisão e relação colonial, trazendo a perspectiva dacidadania indígena (sujeitos coletivos de direitosuniversais e específicos), do protagonismo indíge-na (reconhecimento da capacidade civil) e da au-tonomia indígena (capacidade de pensamento e deauto-representação), possibilitando pensar um novoespaço e uma nova função social para a escola,agora com potencial instrumento de valorização efortalecimento das identidades étnicas dos povosindígenas, de suas tradições, culturas, línguas evalores próprios.

Essas mudanças normativas, no âmbito do Es-tado brasileiro, produziram resultados parciais sig-nificativos na história dos povos indígenas, seja nocampo do direito e das políticas governamentais,seja na esfera da vida cotidiana de aldeia. No âm-bito concreto da vida cotidiana, a recuperação daauto-estima em função das possibilidades de con-tinuidade étnica e de acesso aos benefícios mate-riais e tecnológicos do mundo moderno estápossibilitando a reafirmação das identidades repri-midas e a (re)elaboração / (re)construção de no-vos projetos societários para o futuro. Neste sentido,o processo de escolarização ganha força e novaperspectiva, o de uma educação escolar específi-ca, diferenciada, intercultural e multilíngue.

A criação e implementação de políticas públi-cas dirigidas aos povos indígenas no Brasil têm sidoo resultado de intensas e longas lutas de liderançasindígenas apoiadas por seus aliados não-indígenas,geralmente denominados de assessores, parceirose apoiadores. Mas há grandes diferenças entre asformas de instauração dessas políticas ao longo dahistória do Brasil. O que interessa aqui, para o nossoobjetivo, é caracterizar as tendências atuais nosmodos de relacionamento do Estado com os povosindígenas, por meio da política educacional e aspossibilidades de ações voltadas para atender osdireitos indígenas a uma educação própria garanti-dos pela atual Constituição Federal. Compreenderesse cenário sociopolítico pode ajudar na compre-ensão dos atuais níveis de discussões em torno daspolíticas de educação escolar indígena, os desafiosa serem enfrentados e as possibilidades e oportu-nidades que se apresentam. Farei este breve pa-norama histórico, tratando de dois aspectos queconsidero relevante e substantivo na construçãodo atual desenho de “estado da arte” da políticaeducacional brasileiro.

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O primeiro aspecto diz respeito à notória dife-rença entre a forma de relacionamento do Estadobrasileiro com os povos indígenas, no período pos-terior à Constituição Federal de 1988, e as queperduraram durante os séculos anteriores. Os lon-gos períodos colonial e imperial e os primeiros sé-culos da República foram marcados por políticaseducacionais autoritárias, arbitrárias, isoladas eimpostas verticalmente aos povos indígenas, semque estes pudessem sequer se manifestar sobretais políticas. A característica central dessas políti-cas foi tratar os povos indígenas e as políticas vol-tadas a eles, de forma isolada e à parte da sociedadebrasileira, reforçando o caráter discriminatório ehierarquizando por baixo a questão indígena. Ouseja, as políticas destinadas aos povos indígenasdeveriam ser pensadas e executadas de forma se-gregada das políticas nacionais e sempre com me-nor relevância na vida nacional.

Após a Constituição de 1988, quando as res-ponsabilidades pela oferta da educação escolar aospovos indígenas foram tiradas do monopólio do ór-gão indigenista e transferidas e distribuídas aos di-ferentes sistemas de ensino, se não passaram aser pensadas ou dirigidas pelos povos indígenas,ao menos, são objeto de debates e, em alguns ca-sos, começam a ser elaboradas, executadas e ava-liadas com a participação deles. O mais importanteé que as políticas são pensadas e construídas arti-culadas ou mesmo integradas às políticas nacio-nais, tratando o índio como cidadão pleno, semdesconhecer os direitos específicos, que lhe ga-rantem políticas e ações específicas e diferencia-das. É claro que essa participação ainda é muitoincipiente, frágil e muitas vezes contraditória, tantopelo despreparo e ineficiência do Estado quantopelas limitações dos próprios povos indígenas, pe-las dificuldades de domínio da complexidade domundo político-administrativo do Estado. Isso sedá tanto pela determinação constitucional, refor-çada pela Convenção 169 da Organização Inter-nacional do Trabalho homologada em 2003, queinstitui o estatuto da consulta prévia e informadaaos povos indígenas sobre tudo o que lhes dizemrespeito, quanto pela crescente pressão qualifica-da e organizada do movimento indígena e de seusvelhos e novos aliados e parceiros.

A política educacional brasileira, mais conser-vadora por sua própria história, tem seguido umritmo mais lento na inclusão dos povos indígenasnos processos de discussão, formulação e execu-ção de políticas e ações dirigidas às aldeias. Dife-rentemente da saúde indígena, a educação escolarindígena não se constitui como um subsistema dosuposto “Sistema” Nacional de Educação1, mas emuma política setorial executada pelos três sistemasde ensino do país: União, Estados e Municípios.Assim, o ensino superior para os índios é oferecidopelo Sistema Federal de Educação, por meio dasUniversidades Públicas Federais ou Privadas oupelos sistemas estaduais de educação por meio dasuniversidades públicas estaduais. O Ensino Médioé oferecido, preferencialmente, pelos sistemas es-taduais de educação, por meio das escolas estadu-ais. A educação infantil e o Ensino Fundamentalsão oferecidos pelos sistemas estaduais ou muni-cipais, por meio de suas respectivas secretarias deeducação e redes de escolas. É bom lembrar queos sistemas de ensino (federal, estadual e munici-pal) são sistemas autônomos, mas que deveriamatuar de forma articulada por meio de um “Regi-me de Colaboração” preconizado pela Lei de Di-retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), masque, na prática, não funciona assim, na medida emque os estados e municípios atuam de forma de-sarticulada, concorrentes e tratam o tema segundosuas convicções e interesses políticos.

A educação escolar indígena não tem nenhumatradição em controle social efetivo. É importantedestacar que isso ocorre não apenas com a educa-ção escolar indígena, mas com toda a educação bra-sileira. Não se tem informação, na história brasilei-ra, de experiências com instrumentos de controlesocial amplos, representativos e deliberativos no seusentido pleno. Na educação brasileira, o que existesão os conselhos normativos, cuja função é norma-tizar, dirimir dúvidas e conflitos de interpretação dasleis existentes, sem o caráter formulativo e avaliati-vo, com pouca autonomia de funcionamento e de

1 Educadores e estudiosos divergem quanto à existência implíci-ta ou explícita de um Sistema Nacional de Educação. Os queacreditam na existência utilizam, como argumentos principaisa favor da idéia, o fato de que o Brasil é uma república federadae não confederada e pela existência de um Conselho Nacionalde Educação.

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decisão. Este é o caso do Conselho Nacional deEducação (CNE) e dos Conselhos Estaduais e Mu-nicipais de Educação, todos órgãos normativos dostrês sistemas de ensino. No caso do CNE, suas de-liberações só se transformam em resoluções váli-das após homologação do Ministro. Tanto o Conse-lho Nacional, quanto os conselhos estaduais emunicipais de educação não têm a função de plane-jar, acompanhar, avaliar, fiscalizar, manifestar seuposicionamento político, sugerir políticas.

Desse modo, se por um lado, já não existe umacoordenação político-administrativa, que ordene,regule, avalie e execute a política nacional de edu-cação, por outro lado, tampouco existem instrumen-tos efetivos de participação e controle social,formulando políticas, acompanhando ações, fisca-lizando aplicação de recursos, avaliando a qualida-de dos serviços e resultados. Apenas paraexemplificar, enquanto, no âmbito da política desaúde, já foram realizadas sete conferências naci-onais de saúde nos últimos vinte anos e quatro con-ferências nacionais de saúde indígena, a educaçãobrasileira só realizou uma conferência nacional, em1992, e uma conferência nacional de educaçãoescolar indígena, realizada em novembro de 2009.Hoje existe uma Comissão Nacional de EducaçãoEscolar Indígena, apenas com função consultiva,assim mesmo reduzida na sua função e poder detomada de decisões, além de ser composta apenaspor indígenas, sem os órgãos gestores das políticasde educação escolar indígena. O conservadorismoda educação escolar indígena brasileira que segueo conservadorismo da educação brasileira no to-cante à participação e ao controle social dos povosindígenas é histórico.

A partir dessa realidade histórica, se poderiaperguntar quais as razões que levaram à diferenci-ação tão contundente dos processos e ritmos. Donosso ponto de vista, no caso da educação escolarindígena, as razões devem ser diversas, mas umamerece destaque. Diz respeito ao fato de que aeducação escolar sempre esteve no domínio e in-teresse restrito das elites dominantes do país, quesempre resistem às mudanças políticas e proces-suais, que podem significar redução ou perda deseus privilégios sociais, econômicos, acadêmicos epolíticos, como se verifica hoje no campo do deba-te sobre as políticas de ações afirmativas. As eli-

tes resistem e lutam contra as políticas de cotassob o argumento de que isso é privilégio e fere oprincípio universal do direito de acesso ao ensinosuperior, mas esquecem, propositadamente, de que,no Brasil, sempre houve privilégios e reservas devagas nas universidades públicas para as classesdominantes, para os filhos dos militares, dos no-bres, dos dirigentes eclesiásticos. Mas como ago-ra se trata de beneficiar os setores populares,historicamente excluídos, se dizem contra qualquerprivilégio ou benefício subsidiado pelo Estado. Des-sa forma, pensar, formular e executar políticas eações educativas sempre foi tarefa “delegada” aosintelectuais e dirigentes políticos de alta patente,restando aos cidadãos comuns enviar os filhos àsescolas oferecidas como instituições prontas, fe-chadas, dogmáticas e voltadas para formar tiposde cidadãos idealizados pelas elites que atendamseus interesses.

O segundo aspecto desta abordagem históricaestá relacionado exatamente aos atores sociais in-dispensáveis no âmbito da discussão, da formula-ção e execução de políticas educacionais para ospovos indígenas sob determinadas orientações po-lítico-pedagógicas e ideológicas. Como já foi ob-servado acima, essa oferta de políticas, imposta oureivindicada pelos povos indígenas, esteve, ao lon-go da história brasileira, sob a responsabilidade dediferentes atores, instituições e orientações políti-cas e ideológicas: governos locais, empresas, mis-sões, órgão indigenista, organizações não-gover-namentais e governo federal. Nos últimos anos,podemos dizer que os segmentos determinantes nadiscussão e na condução das políticas indígenistasno Brasil são os Estados, os Municípios, a União eas ONG’s não-indígenas. Com o passar do tempo,a Igreja foi perdendo terreno e hoje sua influênciaé muito pequena, reduzida ao campo da crítica, mascom pouco envolvimento prático. Grosso modo,poder-se-ia afirmar que, no centro do debate, duasforças se confrontam: por um lado, o governo epor outro, as ONG’s. Isto porque algumas lideran-ças indígenas, envolvidas no debate, geralmenteestão alinhados à agenda e demanda das ONG’s,principalmente no âmbito do debate nacional, umavez que localmente ou regionalmente isso não acon-tece, porque as demandas são mais específicas econduzidas por movimentos indígenas locais.

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Essa constatação tem me incentivado, nos últi-mos anos, a desenvolver reflexões e debates den-tro do movimento indígena sobre o papel históricodas ONG’s e das chamadas assessorias ou espe-cialistas, levando em conta não somente o legadoindiscutível da contribuição fundamental que de-ram à luta dos povos indígenas, nos seus primórdi-os dos anos 1970 em diante, mas também o tipo derelações que foram se constituindo e os seus im-pactos para as lutas atuais e futuras dos povos eorganizações indígenas. Minha análise, portanto, nãodeve ser entendida como crítica política ou ideoló-gica, mas como uma análise histórica e instrumen-tal para a compreensão do atual quadro políticodas lutas indígenas no Brasil, no campo da educa-ção, em seus avanços, desafios, impasses, possibi-lidades e oportunidades. Nesse sentido, o caminhoescolhido para esta análise é pensar essa relaçãocomo terceira etapa da tutela indígena no Brasil,que denomino de semi-tutela.

Trato aqui tutela não tanto como prática políti-ca que considera os índios como incapacitados detomar suas próprias decisões e que tem justificadoo papel paternalista, tutor, dominador e procuradordo Estado, com o poder arbitrário de tomar deci-sões em nome deles, mas enquanto forma de pen-sar e agir dos colonizadores que se baseia na idéiade que os índios pertencem a culturas inferiores e,por isso, não são suficientemente capazes de com-preender a complexidade do mundo branco e to-mar decisões sábias e certas ou, ainda, porque sãopovos vencidos na guerra, portanto, precisam sesubmeter à vontade dos vencedores e dominado-res. Mas, antes de prosseguir este raciocínio, éimportante ponderar que essas qualificações alusi-vas levam em conta a forma da relação e atuaçãoestabelecida e não os propósitos e compromissospolítico-ideológicos dos atores e das instituições.Por enquanto, o que interessa mesmo é tratar darelação construída e de seus impactos e resultadosna vida dos povos e das organizações indígenas.

Do nosso ponto de vista, a prática da tutela noBrasil teve diferentes momentos, espaços e moda-lidades, que impactaram por demais a relação dospovos indígenas com a sociedade nacional e com oEstado. O princípio legal que gerou a prática datutela teve início com a criação do Serviço de Prote-

ção ao Índio (SPI), em 1910, e com a aprovaçãoda Lei 6001, de 1976, conhecida como o Estatutodo Índio, que submete os índios à condição de re-lativamente incapazes, razão pela qual o Estado,por meio do SPI e, depois, pela Fundação Nacio-nal do Índio (FUNAI), deveria exercer o papel detutor e protetor. Ação de tutoria e proteção na prá-tica significava decidir pelos índios, integrando-osforçosamente à comunhão nacional e, dessa for-ma, apropriar-se de suas terras. Ou seja, se antesdo SPI e do Estatuto do Índio, o Estado trabalhavana perspectiva de extinção dos povos indígenas pormeio da guerra e da violência física, agora, por meiodo SPI e, posteriormente, por meio da FUNAI, essaextinção deveria se dar por meio da integraçãocompulsória. Nesse sentido, proteger significavaintegrar e tutelar significava submeter e dominar.Há quem acredite que o Estado, ao tutelar, tam-bém protegia, o que pode em parte ser verdade, seconsiderarmos casos e fatos isolados de sertanis-tas e indigenistas que agiam dentro da instituiçãoindigenista em defesa intransigente dos povos indí-genas, movidos por compaixão, piedade e humani-dade diante das atrocidades e barbáries a que eramsubmetidos. Mas se considerarmos a prática insti-tucionalizada e seus resultados práticos, não se podeafirmar que o Estado também protegia. Senão,como se explicaria, nesse período, a vertiginosaqueda populacional?

Esse primeiro momento corresponde aos mo-dos de atuação dos anos 1970 e 1980, quando amarca principal é a atuação tutelar convencional,no sentido de que os tutores não-indígenas servi-am de porta-vozes, representantes e procuradorasdos povos indígenas junto à sociedade e ao Esta-do. Para defender os direitos dos povos indígenas,elas falavam em nome dos índios, representavamos índios e tomavam decisões em nome dos povosindígenas. Certamente, foi um período rico da his-tória do indigenismo brasileiro, uma vez que muitasconquistas foram alcançadas, graças a essa forteatuação dos aliados dos índios, em grande parteantropólogos e indigenistas, articulados no interiordas entidades de apoio que produziram mudançashistóricas na vida dos povos indígenas, mas criouuma relação de forte dependência e subserviênciaaos “assessores” dos índios.

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Educação escolar indígena: estado e movimentos sociais

O segundo momento da tutela foi implementa-do pela prática missionária. Esta atuação estevecentrada à prática escolar transferida pelo Estadoà Igreja. Como as ações do SPI e da FUNAI nãoforam suficientes para a consumação da integra-ção compulsória, o Estado transferiu também essatarefa à Igreja, principalmente por meio da cate-quese e da escola. A catequese e o ensino escolarpassaram a ser os principais instrumentos de per-seguição e negação das culturas indígenas. Poder-se-ia supor que, de certo modo, era uma estratégiabem pensada e articulada, uma vez que a Igrejafaria o primeiro trabalho de amansar os índios, en-fraquecendo-os culturalmente, para que depois oSPI e a FUNAI completassem o processo de inte-gração, adaptando os índios já aldeados à lógica davida não-indígena, tornando-os dependentes com-pulsivos da cadeia econômica do mercado, por meiodos chamados projetos agrícolas que também vi-savam à geração de renda, inclusive para a manu-tenção da política indigenista oficial.

Nesse momento, a Igreja também ganha o di-reito de ser o tutor dos povos indígenas, com o po-der de representá-los em suas vontades e interessese tomar decisões por eles. O que aqui mereceriaum estudo e aprofundamento maior é quanto à in-tencionalidade da Igreja e dos missionários nosimpactos e nas conseqüências resultantes das prá-ticas adotadas, na media em que, se por um lado, épossível identificar o papel bem intencionado dosmissionários na proteção dos índios contra a vio-lência dos colonos, dos comerciantes, dos militarese das tropas de resgates, por outro lado, a práticade perseguição e negação das culturas, principal-mente das línguas e das cerimônias religiosas tra-dicionais, resultava igualmente na violência eintegração forçada dos povos indígenas, que porsua vez, resultavam na negação dos seus direitos,cujo instrumento principal foi a escola.

Esse segundo momento teve início com a emer-gência do movimento indígena impulsionado pormeio de organizações e lideranças indígenas politi-zadas que, na verdade, foram resultantes do pró-prio trabalho das primeiras ONGs e de setoresprogressistas da Igreja e da Academia que investi-ram na formação e capacitação dessas novas lide-ranças. Esse momento é marcado pelo discurso e

esforço dos antropólogos, dirigentes das ONGs, emfavor do protagonismo e da autonomia de pensa-mento e de prática política dos povos indígenas.Mas, na prática, este discurso nunca foi efetiva-mente seguido por eles. Ou seja, muda o discurso,tenta-se mudar a prática, investindo na formaçãoe capacitação dos indígenas, mas não foram sufi-cientes para o pleno exercício do protagonismo eda autonomia de voz, de pensamento e de deci-sões. As razões podem ser diversas, desde proble-mas dos instrumentos metodológicos adotados, atéestratégias para garantir espaço institucional e deempregos para os assessores e aliados dos povosindígenas.

O terceiro momento da prática tutelar é o dasorganizações não-governamentais pró-indígenasdirigidas principalmente por antropólogos e educa-dores não indígenas. O que diferencia essa novaprática tutelar é o seu propósito, mas não a forma.Os antropólogos indigenistas, dirigentes das ONG’s,mais conhecidos pelos povos indígenas como par-ceiros ou assessores, mudaram substantivamenteo modo de relacionamento dos povos indígenas comos não-índios, inclusive com as instituições gover-namentais. Como afirmei no início deste trabalho,essa atuação dos antropólogos pró-indígenas podeser analisada de diversos ângulos e, certamente,com múltiplas percepções, como aqui procuro fa-zer, a partir de alguns aspectos observados.

O primeiro aspecto diz respeito ao fato de queos agentes das ONGs não conseguem superar opapel tutelar que exerceram ao longo de, pelo me-nos, duas décadas, razão pela qual continuam exer-cendo o papel de porta-vozes dos povos indígenase reivindicando legitimidade desse papel. Obvia-mente, esse papel é hoje assumido com novos per-fis, como por exemplo, o de incorporarem junto desi alguns setores ou segmentos do movimento indí-gena, sugerindo uma nova prática da tutela, que eudenomino de semi-tutela, no sentido de que se ad-mite a capacidade de protagonismo e de autono-mia indígena, mas não se cria condições efetivaspara o exercício pleno dessa autonomia por partedos povos indígenas, seja por incapacidade instru-mental, seja por uma intenção político-estratégica.

O segundo aspecto é o fato de não terem con-seguido transferir suas experiências e seus conhe-

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cimentos acumulados, impedindo ou inviabilizandoas possibilidades efetivas de protagonismo e auto-nomia dos povos indígenas, na medida em que elesnão ficam de forma permanente nas regiões, massomente nos períodos de suas pesquisas de campopara conclusão de seus mestrados e doutorados.Disto resulta um processo curioso hoje no seio doindigenismo nacional, em vários campos setoriaisda política indigenista, qual seja, a existência dedois grupos heterogêneos de interlocutores: por umlado, as organizações indígenas e, por outro, as or-ganizações indigenistas. Esses grupos de interlo-cutores ou porta-vozes não só apresentamdemandas e pautas políticas diversificadas, quan-to, muitas vezes, apresentam demandas, interes-ses e pautas políticas antagônicas e conflituosas.Essa concorrência, entre o movimento indígena eo movimento indigenista (pró-indígena) das ONG’s,tem dificultado a articulação de uma agenda indí-gena nacional, na medida em que, na concorrên-cia, as ONG’s ainda levam vantagem, porinfluências que exercem junto ao governo, à aca-demia e à sociedade em geral.

São elas que em muitas ocasiões ainda dão aúltima palavra, pois apresentam e dão maior visibi-lidade à temática indígena no cenário nacional, por-tanto, dominam quase que exclusivamente a opiniãopública nacional e internacional quanto ao temaindígena no Brasil. Ou seja, permanece no movi-mento indígena real, como eu já afirmara, ainda nadécada de 1990, a superioridade do assessor nãoindígena, frente às próprias lideranças indígenas(FERREIRA, 2001). Pude confirmar essa situa-ção por ocasião da realização da I ConferênciaNacional de Educação Escolar Indígena realizadaem Luziânia/GO, em novembro de 2009, quandotemas complexos, como as propostas de “SistemaPróprio de Educação Indígena” e dos TerritóriosEtnoeducacionais, simplesmente não foram discu-tidas de modo aprofundado, pois as delegações jávinham com posicionamentos fechados, com do-cumentos prontos, orientados e determinados porassessorias não indígenas.

Da relação tutelar construída ao longo do últi-mo século, sob a orientação colonizadora ora doEstado, ora da Igreja, ora das ONGs, resultaramos principais desafios enfrentados pelas lideranças

e acadêmicos indígenas, cada um no seu campode atuação, distantes ou divergentes entre si, masenfrentando a mesma causa e o mesmo efeito, semque se deem conta disso, pela própria forma comoa nova tutela opera de modo consciente ou incons-ciente pelos seus praticantes. Não é tão difícil per-ceber tal situação. Basta analisar o fato de que ointeresse dos povos indígenas pelo ensino superiorestá relacionado à aspiração coletiva de enfrentaras condições de vida e a marginalização, na medi-da em que veem a educação como uma ferramen-ta para promover suas próprias propostas dedesenvolvimento, por meio do fortalecimento deseus saberes originários e de suas instituições, eincrementar suas capacidades de negociação, pres-são e intervenção dentro e fora de suas comunida-des.

Mas por que, então, mesmo com os primeirosindígenas egressos das universidades, com diferen-tes especialidades, estimados em pelo menos 500indígenas, ainda não há sinais claros de produçãode mudanças concretas nas realidades de suascomunidades, de seus povos e organizações indí-genas, pelo menos no campo da interlocução? Noinício da instalação da Comissão Nacional de Polí-tica Indigenista (CNPI) presenciei um cenário pre-ocupante, quando 13 advogados indígenaspleitearam ao colegiado da Comissão preferênciapara prestar assessoria aos representantes indíge-nas dentro do colegiado, e foram simplesmentenegados, tendo sido dada preferência aos assesso-res não indígenas. Podemos até discutir e discor-dar da forma como foi pleiteada mas não do méritoda proposta.

As experiências e as realidades vivenciadasindicam que não basta apenas formar indígenaspara garantir o protagonismo e a autonomia indí-gena, sem romper as diferentes formas de tutela ecolonização. Não é uma tarefa fácil, na medidaem que, na atualidade, isso também depende dospróprios índios, uma vez que muitos grupos se tor-naram resistentes a isso pela relação de depen-dência e cumplicidade que foram induzidos a adotarna relação com o Estado, com as Igrejas e com asONGs.

Por conta disso, hoje, os acadêmicos e profissi-onais indígenas sofrem dupla exclusão ou discri-

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minação. São percebidos como ameaças aos pos-tos de lideranças indígenas e ameaças aos postosde assessorias e consultorias para questões indí-genas entre os dirigentes e equipes técnicas dasONGs. Em função disso, são excluídos dos pro-cessos de discussões, de espaços de tomadas dedecisões e dos espaços de execução das ações edas políticas. Quando a ameaça é mais eminentee real, a justificativa para garantir o trabalho e osalário dos assessores não-índios é a concorrên-cia pela qualidade técnico-científico, além, é cla-ro, do tempo de experiência, sabendo-se que osindígenas egressos das universidades ainda nãodispõem desses requisitos e não lhes foram da-das oportunidades, o que poderia ser com a legíti-ma justificativa de domínio do notório saber. Dessemodo, tão cedo não terão condições de concorrerde forma igualitária com os não-índios, uma vezque ainda levarão tempo para ter seus primeirosespecialistas reconhecidos nacional ou internaci-onalmente, mestres e doutores.

Mesmo com um número significativo de profis-sionais indígenas habilitados, as oportunidades e osespaços estratégicos, no âmbito interno do movi-mento indígena e no âmbito das políticas públicas,continuam sendo ocupadas por profissionais nãoindígenas, especialmente ligados às ONGs indige-nistas, na maioria das vezes com apoio das própri-as organizações indígenas. A justificativa é sempreque os indígenas não estão suficientemente prepa-rados e qualificados ou ainda não possuem experi-ências para exercer tais tarefas, pois os cursosuniversitários não dão conta disso, o que pode serverdade, mas que poderia ser complementado comcursos específicos, aliás, como as ONGs fazempara suas equipes técnicas não indígenas, que tam-bém saem das universidades com as mesmas defi-ciências na formação. Mas, se as universidadesnão dão conta da formação adequada e desejadapelas comunidades desses jovens e se eles não têmoportunidades para adquirirem experiências, quandoe de que forma poderão atender aos requisitos exi-gidos pelas agências do mercado de trabalho eaceitos ou ignorados pelas organizações indígenas?

Este depoimento pode parecer radical, mas vi-vendo duas décadas em meio ao fogo cruzado,sabemos bem como as coisas de fato acontecem.

Cada um defende o seu espaço institucional, o seuinteresse, a sua ideologia, o seu emprego, o seustatus quo e ninguém quer criar cobras, muitomenos incorporar cobras em sua casa, como di-zem os políticos. É natural que os indígenas egres-sos das universidades adotem posturas mais críticasa práticas tutelares viciadas nas comunidades, nasorganizações indígenas, nas organizações indige-nistas, nas academias e no governo e busquem pro-vocar mudanças e é isso que incomoda e ameaçaas lideranças indígenas, dirigentes e equipes nãoindígenas das ONGs, acostumados às relações epráticas assimétricas que, muitas vezes, beiram umautoritarismo ou imperialismo na condução das dis-cussões e definições estratégicas das organizaçõesindígenas e indigenistas.

Por conta disso, não basta apenas inovar os dis-cursos e aprofundar as críticas. Para que os estu-dantes indígenas não se distanciem dos processossocietários dos seus povos, é necessário superarvelhas práticas tutelares enraizadas nas instituições,nas pessoas, inclusive nas organizações indígenase indigenistas que alimentam e reproduzem per-cepções e práticas políticas limitadas, contraditóri-as e equivocadas, no que tange a liderançasindígenas capacitadas, engajadas, ativas, críticas,competentes e, sobretudo, comprometidas com osprocessos de lutas dos seus povos. Mas como fa-zer isso sem romper com os parceiros, aliados eassessores de longas datas ou como reduzir a de-pendência ou mesmo prescindir, em alguns casos,de especialistas exigidos ou impostos pelas políti-cas governamentais e privadas, considerando queessas assessorias e alianças continuam sendo fun-damentais para a manutenção e ampliação dos di-reitos indígenas no Brasil.

Talvez essa seja a razão da cumplicidade entreas lideranças das organizações indígenas e dos di-rigentes das ONGs, em detrimento dos estudantesuniversitários indígenas, que clamam por um espa-ço pelo menos em suas próprias comunidades eorganizações. Não se trata, portanto, de abrir mãode nada, de prescindir de assessorias, alianças eparcerias, mas de romper os círculos viciosos dasrelações historicamente construídas com base emuma realidade em que os povos indígenas não dis-punham de técnicos, profissionais e especialistas

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e, em função disso, se consolidou a idéia de que oassessor tem que ser branco, pois só o branco“sabe”, “pode” e “merece” a confiança da comu-nidade ou da organização, para incorporar, somare ampliar o leque de possibilidades de assessoriascom os próprios indígenas que estão se formando.Do contrário, o movimento indígena estaria reivin-dicando formação superior para quê? Para asses-sorar os brancos, os governos, os empresários?

Pluralismo e Diversidade CulturalIndígena na Educação EscolarIndígena

A questão da diversidade cultural é de extremarelevância para o mundo de hoje e, muito particu-larmente, para o Brasil que vive nos últimos anosum intenso debate, sobretudo no campo da Educa-ção a partir da discussão sobre as políticas de açõesafirmativas. São políticas voltadas, de certa ma-neira, para minorias, não só étnicas, mas tambémsociais. No âmbito dessas discussões, o primeiroaspecto importante é a própria formulação do con-ceito de diversidade cultural. Tem-se a impressãode que se fala muito facilmente da diversidade, mascom pouca responsabilidade sobre as conseqüên-cias, quando valoramos essa idéia da diversidadecultural, mesmo no âmbito da escola indígena. Amaioria das pessoas defende a diversidade cultu-ral, mas pouco se faz para que essa diversidadeefetivamente faça parte do exercício diário da nossavida no mundo, que tem a ver com nosso compor-tamento, normas, práticas de vida, atitudes e for-mas de relacionamento dentro e fora da escola.

É perceptível o dilema brasileiro no campo dadiversidade cultural, especificamente em relaçãoaos povos indígenas, quando se faz muita propa-ganda e pouca ação. Basta acompanhar as decla-rações dos nossos representantes de Governo láfora, para se perceber a propaganda de que o Bra-sil é um país democrático, um país pluriétnico querespeita os direitos humanos e os direitos das mi-norias, porque existem vários instrumentos legaisnormativos que garantem isso, mas, na prática,pouca coisa tem mudado para dar efetividade aoreconhecimento e à garantia desses direitos. Nocaso específico dos povos indígenas, o que pesa é

a prática histórica de insistência pela invisibilidadedessas coletividades. É como se, no imagináriocoletivo das pessoas, os povos indígenas existis-sem, mas não enquanto sujeitos e atores políticosdessa diversidade.

De fato, os povos indígenas gozam de direitosespecíficos que lhes permitem organizar seus mo-dos de vida segundo suas tradições, costumes, cul-turas, valores e conhecimentos acumulados aolongo de milhares de anos. Eles vivem de formasdiferentes, inclusive quanto aos seus sistemas jurí-dicos. Dentro das terras indígenas, não é a lei poli-cial que vigora, mas as leis tradicionais. Quandoalguém viola normas, regras, a comunidade se res-ponsabiliza pelas medidas corretivas e punitivas,aplicando procedimentos administrativos milenares.Desse modo, não necessitam de intervenção poli-cial do Estado para resolver seus problemas, aindaque possam, espontaneamente e de acordo comsituações específicas recorrer à autoridade polici-al. Existe um entendimento predominante entre ospovos indígenas de que, dentro das terras indíge-nas, se aplicam preferencialmente as leis e nor-mas internas tradicionais. Além disso, mesmoquando os índios violam leis e normas tradicionaisindígenas ou da sociedade nacional fora das terrasindígenas, é necessário considerar o entendimentoe a visão cultural que está relacionada àquele even-to não aceitável. E a escola precisa incorporar es-sas visões e práticas e os modos de vida no âmbitode seus instrumentos político-pedagógicos, princí-pios epistemológicos e metodologias de trabalho.

O Brasil, diferentemente de outros países docontinente americano, tem avançado muito poucono debate e no exercício de uma sociedade ou Es-tado multicultural. A estrutura e a prática pedagó-gica nas escolas não indígenas e, mesmo na maioriadas escolas indígenas do país, é um exemplo clás-sico desse conservadorismo, que ainda insiste emorientar sua visão e suas práticas a partir de umacomunidade imaginada de um Brasil monocultu-ral e monolíngue. Falar de autonomia, autodeter-minação ou autogoverno indígena no Brasil, aindasoa nos ouvidos dos militares, juízes, políticos, inte-lectuais e educadores como ameaça à soberaniaterritorial do Estado-nação, enquanto no Canadá,nos Estados Unidos, no México, no Panamá, no

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Equador, no Peru, na Bolívia e em outros paísesvizinhos, tais conceitos fazem parte do vocabuláriopolítico cotidiano e das práticas concretas em polí-ticas públicas.

Ao contrário do que se prega de forma levianano Brasil, tais conceitos e práticas não resultaramde nenhuma forma em desintegração da soberaniados estados nacionais, mas em arranjos e modelosadministrativos e jurídicos mais democráticos emulticulturais. Algumas experiências, como noPanamá, resultaram na formação de unidades fe-derativas multiculturais muito prósperas, social eeconomicamente, que têm contribuído para a pró-pria consolidação do estado Panamá democráticoe pacífico e do seu pleno desenvolvimento econô-mico e social. Em muitos países, as estruturas judi-ciárias há tempo criaram varas e tribunaisespecializadas em direitos indígenas, que incluemos direitos consuetudinários, abrindo procedimen-tos administrativos e iniciativas na área de forma-ção jurídica em direitos indígenas.

É necessário, pois, avançar, no Brasil, no deba-te do multiculturalismo e pluriculturalismo e nosideais de um pluralismo jurídico efetivo e isso podee deve começar pela escola. Um país continental,com uma enorme diversidade cultural e étnica, nãopode prescindir desse exercício social, na medidaem que há a necessidade de garantir espaço pluralde convivência e de estabelecimento de direitos edeveres equitativos, como formas eficientes parase evitar futuros conflitos e tensões étnicas e raci-ais, como vemos nos últimos anos no sul da Ásia ena África subsariana. O aprofundamento e a con-solidação de estados-nações democráticos pres-supõe, fundamentalmente, o exercício pleno dosdireitos individuais e coletivos. Ora, os direitos co-letivos, principalmente étnico-raciais, exigem es-paços políticos (poder) e administrativos (sistemasjurídicos, econômicos e sociais) multiculturais ade-quados, em que se sintam integrantes plenos dasociedade, mas aos seus modos.

Para isso é necessário que as universidadespúblicas brasileira abram cursos e disciplinas queabordem, estudem, pesquisem e sistematizem osdiversos sistemas jurídicos dos povos indígenas,para que sejam conhecidos e reconhecidos pelasinstituições públicas e produzam novas jurisprudên-

cias que levem em conta os direitos específicosdos povos indígenas e criem novos instrumentosadministrativos para isso, tais como varas judiciá-rias, tribunais, delegacias, juízes, procuradores eprofissionais especializados em direitos indígenas.

Outro aspecto que deve ser enfrentado pelaescola indígena intercultural é o imaginário muitorestritivo a alguns aspectos do fenótipo indígenaexotizado, que expressa determinado segmentoétnico cultural, mas que é apresentado como umacaracterística distintiva de uma identidade univer-sal indígena. É assim que vemos a grande mídia,como a televisão, considerar e apresentar, comopadrão cultural indígena, as características físicasde indivíduos ou grupos indígenas do Parque Indí-gena do Xingu, quando se ignora que, mesmo en-tre os diversos grupos indígenas do Parque, asdiferenças físicas e culturais são tão grandes. Sese reconhece os povos indígenas como diversos, éimportante atentar sempre para o que isso signifi-ca, pois implica em vários aspectos da vida, não sóno campo da filosofia ou da forma de pensar eviver, mas também das formas de conceber a so-ciedade, a cosmologia, os valores, o que é conside-rado como valor e o que é considerado como nãovalor. Isso é absolutamente variante.

É importante enfatizar que existem hoje, noBrasil, 223 povos indígenas, sendo que cada povoé diferente dos outros. Por que é diferente? Por-que cada povo tem sua língua própria, tem suastradições próprias, sua mitologia própria, sua cos-mologia própria que se distingue das demais. Masisso é muito pouco considerado na forma, por exem-plo, das instituições escolares lidarem com essaspopulações. As atividades educacionais são pen-sadas como se todo cidadão brasileiro falasse amesma língua, comesse a mesma comida e damesma maneira, como se tivesse a mesma origem,a mesma mitologia, a mesma religião, os mesmosvalores, as mesmas tradições e costumes, a mes-ma forma de organização do trabalho, a mesmaforma de organização social, econômica e políticae assim por diante.

A segunda questão é trabalhar socialmente essadiversidade. Passamos mais de quatro séculos emque a política oficial da escola distinguia negativa-mente as pessoas e os grupos, física e cultural-

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mente. Passamos de uma fase hostil a essa diver-sidade cultural brasileira em relação aos povos in-dígenas, que era considerada um entrave para aformação do Estado Brasileiro e até mesmo parao chamado desenvolvimento, para uma sociedadede maior tolerância, na qual se tolera essa diversi-dade mas ainda sem uma devida valorização. Nestesentido, é necessário que seja dado o próximo pas-so, que é sair dessa situação de tolerância parauma convivência mais compartilhada da diversida-de. Porque uma coisa é tolerar alguém, outra coisaé compartilhar espaços sociais, espaços de podere modos de pensar, de viver, valores e conheci-mentos. E tudo isso deve começar pela escola.

O terceiro aspecto é que, quando aceitamosafirmativamente a diversidade no ambiente da es-cola como valor, é necessário que ela seja consi-derada base orientadora das práticas pedagógicasque resultam nas formas de relações sociais do diaa dia das crianças e dos jovens. Os povos indíge-nas enfrentam uma educação escolar que, de cer-ta maneira, impõe padrões de vida, que vão daalimentação à língua. Somos obrigados a aprendere a falar uma outra língua, muitas vezes abdicandode nossas línguas maternas, de nossas tradições,de nossos valores. A sociedade dominante impõeinclusive padrões de avaliação dos modos e quali-dades de vida como são os índices de desenvolvi-mento humano e os índices de qualidade do ensino.Mas que qualidade ou qualidade para quem? O queé desenvolvimento humano para um Yanomâmi?O que é qualidade de ensino ou de educação paraum Baniwa? O que é um ideal de vida para umjovem Guarani?

Existem algumas possibilidades que merecemser pensadas e construídas. O Brasil está vivendoum momento importante na atualidade, na medidaem que percebemos novas possibilidades, comavanços das políticas trazidas a partir da Constitui-ção de 1988. Se hoje pensamos na perspectiva daglobalização, sobretudo com relação aos meios decomunicação e à tecnologia da informação, é umaoportunidade para construir modelos de socieda-des pluriculturais interessantes, se houver vontadecoletiva, mas que não se resolve por meio de de-creto ou de lei.

Desse modo, a escola pode ser o principal ins-trumento para isso. Se a diversidade é considera-

da como um valor no mundo de hoje, temos queutilizar todos os recursos de que o processo de for-mação escolar dispõe, para fazer com que essadiversidade seja reconhecida, conhecida e valori-zada, não apenas na sua generalidade. É muito fá-cil dizer que no Brasil existem 223 etnias, semconhecer quem são essas 223 etnias.

Mas quando se fala de Escola está se falandode uma nova forma de poder ou, melhor, de umpoderoso instrumento de poder. Está se falando deuma coisa que no Ocidente é muito mais instru-mentalizada que é o conhecimento ou saber. O pro-blema é que para os povos do Ocidente o sabercientífico é absoluto e corresponde à verdade ab-soluta que substituiu Deus. O saber jurídico, porexemplo, se autodeclara como poder acima do beme do mal, ou seja, acima do homem e da natureza.Se queremos uma sociedade multicultural, é ne-cessário um processo de desconstrução do abso-lutismo acadêmico, para que o saber volte a seruma obra-prima do homem, como algo que é rela-tivo, porque produto do próprio homem e da natu-reza. O que foi a colonização para os indígenas?De repente chegou um saber que se consideravamelhor do que os saberes indígenas – a verdadeem si mesma, absoluta – e que tinha que dominar,domesticar os outros saberes, os outros conheci-mentos, gerando a enorme dificuldade de diálogointercultural de fato.

De todo modo, o diálogo sobre a diversidadesó será possível quando os diferentes saberes eas ciências humanas forem equivalentes, produ-zindo harmonia e sinergia entre elas. O que paraa academia ocidental pode ser uma heresia total,pode ser uma base epistemológica, religiosa emoral fundamental para garantir o bem viver daspessoas dos grupos ou de outras ciências huma-nas. Nesse sentido, o diálogo deve começar fun-damentalmente entre os saberes, entre as ciênciase não entre as disciplinas que foram personaliza-das e endeusadas pelo ocidente europeu. Tudoisso deve ser objeto de discussão junto à escola eàs universidades.

Outra questão que merece ser destacada é aquestão das línguas indígenas. Eu sou do Municí-pio de São Gabriel da Cachoeira, no Estado doAmazonas, que é o único município no Brasil onde,do ponto de vista oficial, são reconhecidas três lín-

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guas co-oficiais. Além do português, temos maistrês línguas co-oficiais: o nheengatu, o baniwa e otukano. Quando falo oficial, é porque vigora nabase da lei aprovada pela Câmara Municipal e ho-mologada pelo prefeito e até hoje não contestadaem outras instâncias. Essa conquista dos povosindígenas daquele município, onde mais de 90% dapopulação é indígena, traz à tona profundas con-tradições no campo da base legal do Estado Brasi-leiro, na medida em que define o Estado Brasileirocomo monolíngue, tendo a Língua Portuguesa comoa Língua Oficial, mas, ao mesmo tempo, reconhe-ce aos índios o direito de continuarem falando suaslínguas próprias.

Existem várias experiências de trabalho com adiversidade linguística, como são os programas derádios comunitárias que trabalham com as três lín-guas. No começo, havia uma dificuldade porquehavia conflito de uma língua ser mais valorizada doque a outra, ter mais tempo e assim por diante.Também é preciso capacitar comunicadores indí-genas para atuarem a partir de suas línguas e issoterá impactos e repercussões positivas nas aldei-as, na medida em que as informações serão traba-lhadas de forma diferente. Acho que essavisibilidade das línguas é fundamental. Aliás, o prin-cipal sonho dos povos indígenas, em termos depolíticas públicas, é de se pensar um canal de TVe de rádio público, que simbolizaria como primeirosinal de reconhecimento dessa diversidade linguís-tica. Vale lembrar que, dos 700 mil indígenas queainda existem no Brasil, quase a metade pouco falae entende a língua portuguesa. Então, como é queeles vão exercer uma cidadania, se têm dificulda-des para ouvir e falar o português, que é atravésdo qual se explicam os direitos políticos e assimpor diante?

Primeiro, é preciso construir e implementar umprograma de capacitação de lideranças indígenasem instrumentos nacionais e internacionais de di-reitos humanos e dos direitos específicos dos po-vos indígenas, principalmente ao nível de aldeias eorganizações indígenas locais e regionais, a exem-plo do que aconteceu nos anos 80 e 90 por meiodos conhecidos e bem sucedidos encontros e as-sembléias indígenas patrocinados pelo CIMI. É bomdestacar que, atualmente, há uma nova geração

de lideranças indígenas no comando das comuni-dades e organizações indígenas que não passarampor nenhum processo de capacitação sobre os di-reitos indígenas. Curiosamente, as lideranças indí-genas atuais são mais escolarizadas, maisarticuladas, porém com menor domínio sobre osdireitos indígenas e seus mecanismos de operacio-nalização, talvez por conta de que estão sempreocupados e engajados com aspectos burocráticosde projetos, uma vez que as organizações indíge-nas foram sendo transformadas em agências im-plementadoras de projetos.

A segunda medida seria constituir assessoriasjurídicas específicas, aproveitando os primeirosadvogados indígenas, sem prejuízo de aproveita-mento de advogados não indígenas especializadosem direitos indígenas. Hoje em dia, já existem maisde 20 indígenas formados em direito. É notório ofato de que os direitos indígenas garantidos naConstituição são permanentemente violados e des-respeitados pelo próprio Estado brasileiro e porsegmentos majoritários ou elites minoritárias dopaís. Nesses casos não basta apenas cobrar politi-camente do governo o respeito e a garantia dosdireitos. É necessário também exigir a garantia dosdireitos por meio de ações judiciais nas diferentesinstâncias judiciárias, inclusive internacionais.

Por último, no caso brasileiro, os povos indíge-nas precisam se habilitar de forma qualificada eautônoma para lidarem com o universo complexodas políticas públicas, que passa necessariamentepor um processo próprio de formação escolar etécnica, mas principalmente por uma formaçãopolítica adequada e qualificada. O movimento indí-gena precisa criar seus instrumentos próprios deformação política, que há décadas denomino “es-cola indígena autônoma”, uma vez que a escola ea universidade, por serem instrumentos do Estadoe geridos pelo Estado, jamais poderão gerir ou as-sumir essa função. É errado pensar que é a escolaou a universidade que precisa assumir e exerceressa função. O Estado até pode ou deve apoiar ainiciativa de uma escola de formação política, masnão é coerente, nem estratégico, do ponto de vistada perspectiva de autonomia dos povos indígenas.Urge no Brasil a formação de uma inteligentsiaindígena, um corpo orgânico pensante para ajudar

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as comunidades, os povos, as organizações e aslideranças indígenas a encontrarem estratégiassábias, certas e coerentes, para trilharem no difícilcaminho da luta por direitos, por cidadania, por dig-nidade, frente a um Estado que, muitas vezes, con-tinua sendo insensível e hostil.

Na atualidade, existem dois modos de conce-ber e se relacionar com as políticas públicas. Umque concebe a possibilidade de um dia tornar aspolíticas públicas governamentais como praticáveissegundo as lógicas e racionalidades socioculturaisdos povos indígenas; ou seja, que os povos indíge-nas devem fazer, a seu modo, o papel do estado,inclusive a gestão de recursos e programas. Outroé aquele que concebe as políticas públicas comoresponsabilidade do Estado e dos governos e ca-beriam aos índios o controle social e a participaçãoem todas as fases, o espaço de tomada de deci-sões e de execução, para que os direitos indígenassejam respeitados e garantidos. As experiênciasacumuladas demonstram a inviabilidade do primei-ro, pois fragiliza os processos de autonomia dospovos indígenas, além de viciar as lideranças indí-genas nos problemas de gestão administrativa efinanceira dos projetos que tentam executar e im-plementar, com as melhores intenções possíveis,como foram os casos dos convênios de saúde. Nãoresta, portanto, outra alternativa, a não ser habili-tar as lideranças e as organizações indígenas noseu papel de protagonistas na luta pela defesa pri-mordial dos direitos dos povos indígenas, a partirdos instrumentos e mecanismos existentes de di-reitos indígenas e humanos, além da luta pelo aper-feiçoamento e pela ampliação desses direitos e deseus mecanismos de efetividade.

Considerações finaisO cenário em que os agentes indígenas de diá-

logo e de direito atuam na atualidade tem uma baselegal e conceitual positiva, fundamentada nos prin-cípios de cidadania, protagonismo e autonomia in-dígena. No entanto, a base político-administrativaé ainda extremamente conservadora, discrimina-tória e monolítica, o que torna as práticas políticasainda fortemente excludentes e injustas. O univer-salismo e igualitarismo das políticas públicas afron-

tam e atentam contra os direitos específicos dospovos indígenas e a escola, espaço de reproduçãodesse sistema, precisa tornar-se um instrumentode mudança. Mas não basta querer que a escolaautomaticamente mude seu perfil, sua função e suaforma. É necessário que gestores, administrado-res, educadores e lideranças indígenas e não indí-genas se capacitem para fazer essas mudanças.Não basta apenas transferir a gestão das escolasaos índios para se esperar mudanças, sem antesinvestir fortemente na formação técnica e políticadeles.

Em outra dimensão, a sociedade nacional e oEstado moderno se configuram e se sustentam àbase de uma democracia da maioria sobre ou con-tras as minorias, neutralizando e negando os direi-tos legais conquistados e constituídos. Essa situaçãosugere a hipótese de que a garantia dos direitos degrupos sociais depende das co-relações de forçaspolíticas, o que vai contra a noção do Estado dedireito e de instituições judiciárias imparciais. Écomum ouvir dos operadores de direito, por exem-plo, que a eficácia dos direitos indígenas dependede contextos políticos específicos, uma vez que elessão resultado de pactos políticos entre a maioria,cuja vontade tem precedência sobre outras. Destemodo, a aplicabilidade do discurso do multicultura-lismo, pluriculturalismo e da interculturalidade de-monstram limites determinados, exatamente deacordo com os contextos e interesses da maioria.

Isso pode ser exemplificado pela ausência derepresentação indígena nos poderes constituídos dopaís, Executivo, Legislativo e Judiciário, mesmodiante de um discurso e de uma base legal pautadapor ideais de multiculturalismo, pluriculturalismo einterculturalidade. Os dois primeiros casos depen-dem de coeficientes demográficos eleitorais e oterceiro caso depende da formação escolar e inte-lectual dos povos indígenas. O mesmo ocorre como não reconhecimento prático, por parte do Esta-do, dos sistemas sociais de vida dos povos indíge-nas – sistemas jurídicos, sistemas sociais e políticosetc... Essa realidade revela a sociedade modernacom uma sociedade de tolerância limitada, masmuito longe de uma sociedade da diversidade e damultietnicidade.

Os desafios se concentram em duas dimensões.

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A primeira dimensão diz respeito ao campo das po-líticas públicas quanto ao problema de compatibili-dade entre as diferentes bases racionais quefundamentam e orientam as práticas políticas e so-ciais do Estado, como a Escola, por exemplo, umadas que fundamentam e orientam a vida das comu-nidades indígenas. Disso resultam práticas exclu-dentes e discriminatórias da administração que é oprincipal instrumento de limitação e negação dosdireitos indígenas. Diferenças conceituais e práti-cas de chefia, hierarquia, autoridade, burocracia,solidariedade, lealdades, conhecimento, ampliam adistância entre as perspectivas indígenas e as doEstado. A organização social e política, por meio desindicatos, organizações profissionais (categorias) epartidos políticos vão contra a lógica de vida social epolítica indígena holística, comunitária, orgânica etc.

Em outra perspectiva, encontram-se as orga-nizações e lideranças indígenas que enfrentammuitas contradições, ambiguidades, conflitos. Taisdesafios resultam principalmente da dificuldade decompreensão da complexidade do mundo da esco-la ou de visões equivocadas acerca dela e de seusinstrumentos de poder. Disto resulta a necessida-de de uma formação política adequada para criarcompetências que os empoderem com habilidadessuficientes para lidarem com as artimanhas, sedu-ções e tentações dos instrumentos de dominaçãodo Estado. Participação, controle social e ocupa-ção de espaços podem ser transformados em ins-trumentos de luta dos povos indígenas, na medidaem que podem participar ou contribuir para as to-madas de decisões em favor dos povos indígenas,mas até hoje são muito mais instrumentos de do-

minação e legitimação das políticas de interessesdo Estado, diante da fragilidade e fragmentaçãoda luta indígena. Uma das questões fundamentaisé trabalhar para que as lideranças, que assumemfunções ou responsabilidades públicas na escolaou nos sistemas de ensino, não se afastem de suasrealidades locais e de algum modo continuem co-nectadas e envolvidas direta e concretamente, afim de evitar o distanciamento, o isolamento e acooptação.

A estratégia fundamental seria a capacidade deassumir concretamente o protagonismo e autono-mia de pensamento, de tomadas de decisões es-tratégicas e recuperação do autogoverno social eterritorial. Para isso, o passo mais importante ésuperar toda e qualquer tutela, de Estado, Igreja,ONGs, Governos, que ainda resiste no meio indí-gena e indigenista, e investir prioritariamente naformação integral, principalmente dos educadorese das lideranças indígenas, tanto na dimensão teó-rica e técnica, quanto na dimensão política.

Enfim, é fundamental lutar para que os indíge-nas deixem de ser vistos e considerados como meio-brasileiros, súditos de segunda categoria, subcida-dãos, para serem cidadãos de fato. Nesse sentido,as organizações indígenas e lideranças indígenascomo agentes de diálogo, mesmo com todos osproblemas, são relevantes e vitais para a garantiae o avanço dos direitos indígenas no Brasil, para osquais o escola é um poderoso potencial de trans-formação e empoderamento técnico e político develhas e novas gerações de lideranças e cidadãosindígenas.

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Recebido em 01.12.09Aprovado em 05.12.09

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GERENCIAMENTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, PODERPÚBLICO E A RELAÇÃO COM O MOVIMENTO INDÍGENA:

EXPERIÊNCIA E REFLEXÃO

Rosilene Cruz de Araújo Tuxá *

* Especialista em História do Brasil pelo CESVASF (Centro de Ensino Superior do Vale do São Francisco). Mestranda emEducação e Contemporaneidade pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia. Coordenadora de Educação Escolar Indígena- Secretaria da Educação do Estado da Bahia. Endereço para correspondência: Rua Ministro Amarílio Benjamin, Conjunto SantaMadalena, Bloco 57, Apto. 402, Vasco da Gama – 40220.050 Salvador/BA. E-mail: india_edai@hotmail

RESUMOEste artigo tem como propósito socializar uma nova dimensão do Campo EducacionalIndígena. Nova, porque, diante da atual conjuntura em que vivem as sociedadescontemporâneas, torna-se necessária a reafirmação da identidade étnico-culturalindígena através de um modelo específico de educação, mostrando que são possíveisoutros modos de entender e valorizar a existência humana. E, nessa perspectiva,contextualizar a luta do movimento indígena pela efetivação das políticas públicas daEducação Escolar Indígena.

Palavras-chave: Educação intercultural – Políticas públicas de educação escolarindígena – Desenvolvimento sustentável

ABSTRACTMANAGING INDIGENOUS SCHOOL, THE STATE AND ITS RELATIONWITH THE INDIGENOUS MOVEMENT: EXPERIENCE AND REFLECTION

This article aims to socialize a new dimension in the Indigenous Educational Field. Itmay be considered “new” because based on the current living conditions ofcontemporary societies, it is necessary to reaffirm the indigenous ethnic and culturalidentity through a specific educational model showing that there are other possibleways to understand and value human existence and, from this point of view,conceptualize the struggle of the indigenous movement in order to make effective thepublic policies related to indigenous school education.

Keywords: Transcultural Education – Public policies to indigenous school education– Sustainable development

Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, certo sentido.Este se percebe não na promessa da sua história, mas no

conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituemnum largo período de tempo. (Caio Prado Junior, 1979, p. 19)

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IntroduçãoAs considerações que aqui se fazem, ainda que

trazendo pontos de reflexão, têm como referênciaimediata a experiência vivenciada em gestão de Edu-cação Escolar Indígena à frente da Coordenaçãodessa modalidade de educação na Secretaria de Edu-cação do Estado da Bahia, caracterizada como umespaço de interlocução entre comunidades, escolas,DIRECs (Diretorias Regionais de Educação) e Se-cretaria (SEC), em diálogo permanente visando aomelhoramento do atendimento às políticas públicasde estado para a Educação Escolar Indígena, e quefaz, sob a forma de dilema, a discussão sobre Educa-ção Intercultural Indígena no âmbito dessa Secreta-ria, com vista ao desenvolvimento dos projetossocietários dos povos indígenas e, no interior dessadiscussão, o papel da política pública e o que dela seespera nas comunidades indígenas.

A análise do ideário de uma educação indígenaque atenda à concepção de uma educação inter-cultural, específica e diferenciada, pensada a par-tir da visão indígena, permite constatar asemergências no atendimento dessas políticas e agarantia da preservação cultural, reafirmação, re-conhecimento e valorização da identidade que es-ses povos possuem enquanto povos diferenciados,com modos de vida próprios.

Os direitos educacionais indígenas definidos naconstituição de 1988 consolidam os avanços alcan-çados junto ao Estado pelo movimento indígena,que há cerca de cinquenta anos se organiza e lutana busca de uma educação intercultural.

Vale referir que as políticas desse modelo deeducação se consolidam a partir do movimento in-dígena com o seguinte marco normativo e institu-cional: a Constituição de 1988 assegura aos índios,no Brasil, o direito de permanecerem índios, isto é,de permanecerem eles mesmos, com suas línguas,culturas e tradições próprias, superando, assim, omodelo assimilacionista e tutelar vigente desde operíodo colonial. A Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (Lei 10.172) aborda o direitodos povos indígenas a uma educação diferenciada,pautada pelo uso das línguas indígenas, valoriza-ção dos conhecimentos e saberes tradicionais e pelaformação dos próprios índios para atuarem comodocentes em suas comunidades.

O Plano Nacional de Educação (PNE) apre-senta um capítulo sobre a educação escolar indí-gena dividido em três partes: na primeira parte,faz-se um rápido diagnóstico de como tem ocorri-do a oferta da educação escolar aos povos indíge-nas; na segunda, apresentam-se as diretrizes paraa educação escolar indígena; e na terceira, estãoos objetivos e as metas que deverão ser atingidos,a curto e em longo prazo.

O Parecer 14/99 da Câmara Básica do Conse-lho Nacional de Educação (CNE) apresenta a fun-damentação da educação indígena, determina aestrutura e o funcionamento das escolas indígenase propõe ações concretas em prol da educaçãoescolar indígena. A Resolução 03/99 do mesmoCNE normatiza e institui diretrizes para a catego-ria escola indígena, define competências para aoferta da educação escolar indígena, para a for-mação do professor indígena, o currículo da escolae sua flexibilização.

A LEI 11.645 de 10 de março de 2008 estabe-lece diretrizes e bases da educação nacional paraincluir no currículo oficial da rede de ensino a obri-gatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

No Estado da Bahia, o Decreto 8471/03 cria acategoria Escola Indígena no âmbito do SistemaEstadual de Ensino; a Resolução 106/2004, doConselho Estadual de Educação (CEE) estabele-ce diretrizes e procedimentos para a organizaçãoe oferta da Educação Escolar Indígena nesse Sis-tema; o Plano Estadual de Educação estabelecediretrizes, metas e objetivos que subsidiem políti-cas de Educação; e o Fórum de Educação EscolarIndígena na Bahia, criado em 2000 como instânciade interlocução entre os povos indígenas e o poderpúblico, constitui-se num espaço aberto de discus-são, acompanhamento e avaliação coletiva da ope-racionalização de Políticas Públicas de Educaçãopara as populações indígenas.

Essas mudanças representam avanços impor-tantes que, sem dúvida, buscam proporcionar aimplementação dessa política. Porém, sua amplia-ção, execução e efetividade por parte do Regimede colaboração entre os entes federados não fun-ciona de forma satisfatória, gerando grandes im-passes e obstáculos na organização do Sistema deEnsino.

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Para que essa situação seja superada, é neces-sário maior apoio no fortalecimento das discussõessobre a Educação Intercultural Indígena; é precisoque se proponham espaços de discussão entre re-presentantes indígenas e gestores públicos paraplanejamento coletivo e participativo na constru-ção dessa educação; e que os protocolos de inten-ções assumidos pelos entes federados sejam defato colocados em prática, sendo acompanhados eavaliados continuamente pelo movimento indígenae pelo poder público.

Sobre as iniciativas das comunidadesindígenas

Atualmente, em comunidades indígenas naBahia e no Brasil, podemos perceber várias inicia-tivas que visam ao fortalecimento do campo daeconomia para a manutenção, valorização e pre-servação dos territórios tradicionais indígenas. E omais interessante é que essas iniciativas em suamaioria surgem no âmbito da escola, enfim, a par-tir do seu conjunto de agentes, que buscam contri-buir para um desenvolvimento que subsidie namanutenção de suas culturas e na qualidade de vidadas gerações atuais. Essa é a mais nova concep-ção de Educação Intercultural Indígena.

No entanto, os esforços em curso correm o ris-co de não alcançarem os resultados pretendidosse esses atores não considerarem, em suas estra-tégias, a dimensão da formação dos envolvidos noprocesso de construção e manutenção das ativida-des que visem ao Desenvolvimento Local Susten-tável, tendo como horizonte a conformação de umacultura autogestionária, para que esses estejam emcondições de dominar a atividade de gestão emsuas múltiplas determinações. Trata-se de empre-ender uma luta permanente de desconstrução deprincípios tidos como universais para que sejamconstruídas novas referências, compatíveis com osideais de um projeto de Desenvolvimento LocalSustentável.

Gadotti (2007, p. 73-74) afirma:

Para nós, ‘sustentável’ é mais do que um qualificati-vo do desenvolvimento econômico. Ele vai além dapreservação dos recursos naturais e da viabilidadede um desenvolvimento sem agressão ao meio am-biente. Ele implica num equilíbrio do ser humano

consigo mesmo e com o planeta, e, mais ainda, como próprio universo. A sustentabilidade que defen-demos refere-se ao próprio sentido do que somos,de onde viemos e para onde vamos, como seres dosentido de tudo o que nos cerca.

Esse conceito já é bem visto pelos povos indí-genas, isto é, estes já possuem uma visão da Terraatravés de um novo paradigma que a concebe comopatrimônio conquistado através do seu usufruto deforma ecologicamente sustentável, refletido na pre-servação territorial, na valorização cultural, na or-ganização social e no modo de vida próprio. “Umaperspectiva enfatizada pelos representantes indí-genas diz respeito a um Ensino Médio que ofereçaformação profissional e técnica para que os jovenspossam contribuir com a formulação e execuçãodos projetos de sustentabilidade socioambiental desuas comunidades.” (CADERNOS SECAD 3,2007, p. 78).

Esse modelo está sendo pensado e implantadode forma a aproveitar o potencial econômico queos territórios indígenas oferecem como: o reflores-tamento ecológico de mudas e sementes que ve-nham subsidiar a confecção do artesanato, aagricultura orgânica, a apicultura e o turismo eco-lógico. Dentre outras, essas são algumas das op-ções que vêm sendo pensadas e desenvolvidas nasescolas/comunidades com perspectivas de aprimo-ramento através da implantação de um EnsinoMédio Tecnológico que atenda as especificidadesde cada povo indígena.

Para que a implantação do Ensino Médio nas esco-las indígenas ocorra a partir das concepções e obje-tivo educacional pretendidos pelas comunidadesindígenas é imprescindível que sejam formados pro-fessores indígenas em cursos de licenciaturas inter-culturais que habilitam para a docência nos anosfinais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.(CADERNOS SECAD 3, 2007, p. 78).

Assim, os professores indígenas, através de seusfóruns de discussão, têm buscado efetivar essapolítica junto aos governos federal, estadual e mu-nicipal. Em função disso, o Ministério da Educa-ção priorizou a formulação de políticas para aformação superior de professores indígenas, lan-çando o PROLIND (Programa de Apoio à Implan-tação e Desenvolvimento de Cursos de Licenciaturapara Formação de Professores Indígenas). Nesse

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contexto, o Estado da Bahia, através da UNEB(Universidade do Estado da Bahia), lançou no anode 2009 o Curso de Licenciatura Intercultural In-dígena para professores indígenas.

Assim, refletimos sobre o conceito de educa-ção para o desenvolvimento sustentável colocadopor Gadotti, em que “a educação para o desenvol-vimento sustentável é mais do que uma base deconhecimentos relacionados ao meio ambiente, àeconomia e à sociedade. Ela deve ocupar-se daaprendizagem de atitudes, perspectivas e valoresque orientam e impulsionam as pessoas a viveremsuas vidas mais sustentavelmente” (2007, p. 79), echegamos à conclusão de que as comunidades in-dígenas, desde os seus primórdios, pensam numaeducação ecologicamente sustentável. O que lhesfaltou foi autonomia em um contexto de disputaterritorial para pôr em prática a tão pensada edu-cação ou, talvez, foi posta em prática, mas passoudespercebida diante da “grandiosa” globalizaçãocontemporânea em que sempre estiveram inseri-dos os povos indígenas, sempre lutando contra osmalefícios dessa globalização.

Educação intercultural x sustentabi-lidade territorial

Nos dias atuais, observamos na Bahia e no Bra-sil, por parte dos povos indígenas, uma crescentebusca por uma educação que venha a garantir asustentabilidade de suas aldeias e a manutençãode suas culturas. Um indicador frequentementenotado é a procura pelo ensino médio profissiona-lizante, que, por sua vez, é o foco para implemen-tar uma educação que contemple os anseios dascomunidades indígenas no sentido de aproveitar opotencial que estas possuem para garantir a sus-tentabilidade territorial. No bojo da contempora-neidade, identificamos a emergência de respostascriativas formuladas pelos professores indígenasno sentido da alternativa de uma educação susten-tável, tendo por base a interculturalidade e os seusmodos próprios de ensino aprendizagem.

É a partir dos questionamentos, das inquieta-ções e reivindicações dos indígenas que surge aidéia de uma educação intercultural específica.Estando os índios da Bahia inseridos nesse con-texto, intensifica-se, então, a mudança de para-

digmas. É na contemporaneidade que se dá o pro-cesso de transição entre a escola posta para índi-os na visão externa e a nova escola pensada econstruída a partir do pensamento indígena. “Des-se modo, a produção das diferenças sociais seconcretiza na formulação de diferentes projetossocietários, definidos por cada povo a partir deseus valores simbólicos, de sua história, de suasperspectivas políticas de autonomia e de conti-nuidade cultural, bem como de suas estratégiasde interação com a sociedade majoritária.” (CA-DERNOS SECAD 3, 2007, p. 17).

Assim, na construção desse processo de for-mação, partimos do princípio de que a sustentabili-dade se apresenta como elemento fundamentalpara que possamos compreender e fortalecer asexperiências no campo da educação sustentável egarantir a manutenção das culturas e o aproveita-mento sábio dos territórios. Ao refletirmos sobre osignificado das experiências de sustentabilidade,verificamos as possibilidades que se abrem paraque os povos indígenas possam pavimentar cami-nhos alternativos em relação aos projetos societá-rios de cada comunidade, alternativas essascapazes de restaurar o controle sobre a manuten-ção dessas comunidades a partir da reafirmaçãodas relações sociais de produção, fundadas na au-tonomia, na solidariedade e na partilha, em novoscritérios de eficiência econômica.

Essa construção, entretanto, pressupõe a mo-bilização dos sujeitos de modo que sejam capazesde compartilhar a responsabilidade pela gestão sus-tentável dos empreendimentos educacionais, o que,historicamente, se conformara com um campo desaber de acesso limitado aos espaços coletivos in-ternos de suas aldeias/comunidades, numa formade organização construída sobre princípios de auto-sustentabilidade familiar. Nesse sentido, o trabalhodesenvolvido pelos professores indígenas, centra-do na sustentabilidade territorial, nos convida a re-fletir em como implementar uma política educaci-onal que venha a fortalecer e contemplar adiversidade indígena.

Vale salientar que essa já é uma política doMinistério da Educação e que os estados, por suavez, em parceria com os municípios, devem imple-mentar essa política; um desafio que considera-mos possível mas que não é fácil, já que temos um

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país multilíngue, com mais de duzentos e trinta po-vos indígenas. Mesmo na Bahia, onde há quatorzepovos indígenas, apesar de todos possuírem a lín-gua portuguesa como língua materna, cada umpossui suas especificidades culturais e modos devida próprios.

Para enfrentar os desafios postos para a im-plementação de uma nova educação escolar indí-gena com qualidade e respeito à autodeterminaçãodesses povos, com a garantia da sustentabilidadeterritorial, o Ministério da Educação vem direcio-nando seu esforço institucional para ações queproporcionem mudanças impactantes na condu-ção das políticas públicas para a educação esco-lar indígena, nas esferas de governo Federal,Estadual e Municipal.

As dificuldades ainda hoje enfrentadas pelos in-dígenas para que sejam reconhecidas suas formasde organização social, econômica e política; comseus modos de vida próprios, evidenciam o caráterpouco democrático das culturas brasileiras.

As relações que os indígenas buscam estabele-cer com os saberes milenares, com o saber educa-cional e com a atividade da gestão sustentável devemser analisadas considerando-se alguns elementos.Com base na experiência da economia sustentávele em suas organizações sociais e políticas, os povosindígenas, em permanente interação, manifestam acompreensão das dimensões da economia, da políti-ca e das relações sociais. No polo da economia vi-sam alcançar a viabilidade do desenvolvimentosustentável num ambiente marcado pela acirradaconcorrência e pela disputa territorial em que a glo-balização vai espremendo as sociedades tradicio-nais. No polo das relações sociais expressam aconstrução de formas de sociabilidades coerentescom os princípios históricos da sustentabilidade ter-ritorial, capazes de dar sustentação às novas rela-ções sociais de produção e, principalmente, àmanutenção de suas culturas e à continuidade demodos de vida próprios. Por fim, no polo da política,buscam a construção de relações de intercâmbio,cooperação e negociação com outros atores comos quais esse desenvolvimento educacional susten-tável interage em seu cotidiano.

Com base nesses entendimentos sobre desen-volvimento sustentável e refletindo sobre os mes-mos, perguntamo-nos: Que mecanismos são ou

devem ser desenvolvidos pelos indígenas visandoà constituição de novos saberes sobre desenvolvi-mento local sustentável? Como esses conhecimen-tos são produzidos e coletivizados? Qual acontribuição da escola nesse processo? Até ondevai essa contribuição? Em que medida essas pes-soas conseguem vincular os conhecimentos práti-cos, produzidos no cotidiano dos processos detrabalho/educação, com os conhecimentos cientí-ficos necessários para a viabilidade desse desen-volvimento de modo a atender aos anseios dacomunidade sem ferir os seus princípios?

Capra (2002) traz a sustentabilidade ecológicacomo elemento essencial dos valores básicos quefundamentam a mudança da globalização e a cria-ção de comunidades sustentáveis como o maiordesafio dos nossos tempos. Os povos indígenas,inseridos nesse contexto e ameaçados pelas mu-danças radicais da contemporaneidade, buscamalternativas de sustentabilidade local, usufruindo dopotencial que suas comunidades possuem, sem fe-rir o meio ambiente em seu entorno. A inseguran-ça individual quanto às possibilidades de sobrevi-vência diante de uma situação que ameaça ainserção produtiva dos sujeitos criou as condiçõessubjetivas para a organização educacional susten-tável indígena. As ameaças culturais, sociais, eco-nômicas e políticas às comunidades apresentam ascondições objetivas de alternativas para que se dêinício à superação dessa crise, o que podemos de-finir como quebras de paradigmas.

Com base nas experiências vividas pelos povosindígenas, nas questões que dizem respeito ao de-senvolvimento local sustentável, é possível desen-volver uma concepção que revele que essedesenvolvimento, no plano educacional, pode serentendido como uma permanente articulação en-tre as dimensões da economia, da política e dasrelações sociais, comprometidas com os valoresculturais e da sustentabilidade territorial. Assim,procuramos identificar os mecanismos de consti-tuição e socialização de saberes relacionados acada uma das dimensões acima descritas, partindodo princípio de que os educadores indígenas mobi-lizam em suas experiências de convivência comu-nitária, aprendendo com os anciãos; da educaçãoformal, de trabalho e em outras relações sociaiscom o mundo, um conjunto de saberes que vão ser

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convocados no cotidiano para enfrentar os desafi-os postos pelo desenvolvimento local sustentável.

Mutim (2007) afirma que, para analisar o temaEducação Ambiental, na perspectiva da gestão desociedades sustentáveis, é preciso assumir, de an-temão, que é possível definir e realizar os objetivoscomuns, considerar os valores culturais relaciona-dos aos diferentes modos de ver o mundo e noconvívio com os ecossistemas naturais, garantindoo bem-estar da população, alcançar padrões ele-vados de produção que ressaltem a sustentabilida-de socioambiental e realizar a plena participaçãodo indivíduo na gestão da sociedade e do desen-volvimento local e territorial. Essa consciência éclara entre os povos indígenas.

Organismos estatais e a execução dapolítica de Educação Escolar Indígena

Em relação à execução da política de Educa-ção Escolar Indígena, as diretrizes indicam a dire-ção a seguir: uma política estabelecida e que deveser cumprida. Porém, para tratar diretrizes é pre-ciso ter clareza sobre o caminho que se quer tri-lhar. A escola é um espaço de relações queenvolvem tensões, interesses, contradições e pos-sibilidades; exige diálogo de saberes e lógicas. Énas relações políticas cotidianas dos povos indíge-nas com os órgãos públicos, com as cidades, como mercado, que a escola acaba adquirindo outrossentidos e passa a integrar as pautas de reivindica-ções de muitas comunidades/aldeias indígenas.

A inoperância dos agentes governamentais paracom a Educação Escolar Indígena, marcada pelodespreparo técnico, pelo pouco reconhecimento daespecificidade indígena, pela ineficiência e pelaausência de vontade política, exige que providên-cias sejam tomadas para superar os entraves e osbloqueios nessa inoperância do gerenciamento daspolíticas públicas de Educação Escolar Indígena,fazendo valer as conquistas postas na legislação.

A autonomia administrativa, pedagógica, curri-cular e organizacional das escolas indígenas aindanão está efetivada, mesmo estando garantida nostextos legais, mesmo sendo cobrada dia a dia pelosmovimentos de professores indígenas, numa lutaincansável.

Sabemos, porém que há uma distância grandeentre os preceitos legais e a realidade da maioriadas escolas. Não negando os avanços, porém, gran-de parte deles representa mais os resultados doprotagonismo dos próprios índios, suas comunida-des, lideranças e organizações; e menos a respon-sabilidade e a atuação do estado.

Entendendo-se assim a importância da Coor-denação de Educação Escolar Indígena, inseridana Superintendência da Educação Básica da Se-cretaria da Educação do Estado da Bahia, no ge-renciamento da execução das ações da EducaçãoEscolar Indígena e reconhecendo-se os avanços eentraves para fazer as críticas necessárias e pro-por novas políticas, exige-se um protagonismo com-partilhado entre povos indígenas, estado esociedade civil e, para tanto, exige-se também umainterlocução qualificada de modo a se entender,cada vez mais, os direitos, as leis, os mecanismosda sociedade envolvente; e esta também entenderas lógicas e as organizações sociais indígenas.

A escola indígena tem o direito de ser pública eplural, oficializada, reconhecida com todos os di-reitos assegurados na legislação, em que a inclu-são no sistema exige mudanças no próprio sistema.

Nos embates atuais, os povos indígenas reivin-dicam reconhecimento e respeito às diferenças,reivindicam também o direito de definir qual a es-cola que querem, quais os currículos, quais as prá-ticas, quais conhecimentos respondem aos seusinteresses e necessidades. É preciso ter sempremaior clareza sobre a função social da escola.

A escola indígena deve ser pensada de forma aatender aos anseios de cada povo indígena e, parase pensar hoje as diretrizes escolares indígenas,são necessárias articulações entre escola e proje-tos societários indígenas; escola e território, nagestão territorial e sustentabilidade local; escola eafirmação identitária, na valorização cultural e po-lítica; escola, autonomia e cidadania enquanto exer-cícios de possibilidades reais.

Essa nova perspectiva de escola se configuranos últimos trinta anos como escola indígena. Umaescola de luta e de diplomacia em que essa que-bra de paradigmas continua sendo um desafio con-tinuo. A defesa de que a escola pode e devecontribuir na manutenção e valorização das iden-

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tidades, práticas culturais e modos de vida pró-prios configuram-se no perfil de uma escola quevaloriza a educação intercultural, tendo os pro-fessores indígenas como autores, produtores e re-produtores da sua própria história, estabelecendorelações de autonomia e de equilíbrio com a soci-edade brasileira.

A nova concepção de escola indígena autô-noma trás a comunidade para o seu interior, ten-do esta um papel fundamental na construção edefinição da nova política de Educação EscolarIndígena; e essa construção coletiva contribui,por sua vez, para uma gestão democrática e par-ticipativa nas definições dos objetivos e na ges-tão da escola.

Os movimentos indígenas, em especial as as-sociações de professores e o Fórum de EducaçãoIndígena vêm buscando fazer com que se cumpraa legislação. Essa mobilização por uma nova Edu-cação Escolar Indígena enfrenta diversos impas-ses e constrangimentos, indo ao embate eenfrentamento com determinação e conhecimentodo que está posto em lei.

A Educação Escolar Indígena, na sua respon-sabilidade maior, tem sido conduzida pelos profes-sores indígenas que, apesar de serem contratadospelo estado e ou municípios, têm tido enfrentamen-tos e embates com os entes federados, de quembuscam e cobram melhoria no atendimento à Edu-cação Escolar Indígena. Essa situação paradoxalgera certo desconforto.

Estes, por sua vez, ainda têm muito que fazerpara o cumprimento dos dispositivos legais exis-tentes para o atendimento das demandas educaci-onais indígenas. Esse por fazer representa umgrande passivo no cenário educacional indígena.Inúmeras são as dificuldades enfrentadas, ainda aserem superadas. Tais dificuldades seriam aindamaiores se não tivéssemos um amparo legal fa-vorável e um movimento indígena fortalecido paraacompanhar, avaliar e propor um modelo própriode educação a ser incorporado pelas políticas pú-blicas. O desafio está em efetivar essas políticas,mas o movimento indígena tem se fortalecido econquistado novos paradigmas e continuará con-quistando-os até que o modelo de educação dese-jada pelos índios chegue a sua plenitude.

Pensando a criação de um novo sis-tema de Educação Escolar Indígena,de uma nova forma de organização

Hoje, mesmo reconhecendo-se os avanços naimplementação da Educação Escolar Indígena,ainda não é possível afirmar-se que há um siste-ma estruturado para a execução dessa educação.No âmbito do Ministério da Educação e com aparticipação dos movimentos indígenas, discute-se, no momento, a criação dos TerritóriosEtnoeducacionais.

Esses territórios propõem uma gestão compartilha-da entre os sistemas de Ensino, Universidades, RedeFederal e Estadual das Escolas de Formação Técni-ca e tecnológica, Organizações Indígenas e Indige-nistas e outros órgãos com interface com a educaçãoescolar, como os setores da saúde, proteção e ges-tão ambiental, desenvolvimento sustentável e cul-tura. (Documentos referenciais I ConferênciaNacional de Educação Escolar Indígena, 2009, p. 19).

Contudo, ainda há resistências por parte dascomunidades indígenas no país em relação à acei-tação das divisões dos territórios. Existe até mes-mo uma não compreensão do funcionamento dosTerritórios.

O movimento indígena e indigenista e as orga-nizações de professores indígenas ainda refletemsobre a nova proposta, questionando, por exemplo,até que ponto essa organização garantirá a execu-ção das ações da Educação Escolar Indígena; ouo que garantirá o compromisso e a responsabilida-de das autoridades no sentido de implementar eimplantar a política educacional indígena pensadapelos povos indígenas. Pensa-se ainda na criaçãode um novo sistema: o Sistema Nacional de Edu-cação Escolar Indígena. Sobre esse há, por partedos movimentos indígena e indigenista, uma cren-ça de que possa vir a dar melhor atendimento eefetivação das políticas de Educação Escolar Indí-gena tal qual pensada pelos povos indígenas.

Os Territórios Etnoeducacionais supõem a criaçãode novos marcos legais e normativos para efetivar aautonomia pedagógica das escolas indígenas naformulação, desenvolvimento e avaliação dos pro-jetos pedagógicos interculturais, contemplando to-das as dimensões das práticas escolares, desde as

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propostas curriculares, a organização e gestão dasescolas, a avaliação institucional e da aprendiza-gem, a definição dos calendários escolares com nor-mas e procedimentos jurídicos próprios. (Documen-tos referenciais I Conferência Nacional de EducaçãoEscolar Indígena, 2009, p.19).

Inúmeros são os desejos, inúmeras são as pro-posições; porém, inúmeras são também as dificul-dades ainda a serem superadas para que essemodelo de escola indígena possa alcançar a suaculminância.

Experiências dos movimentos indíge-nas e indigenistas no campo da Edu-cação Escolar Indígena: controlesocial

A participação e o controle social por parte dosmovimentos indígena e indigenista na implementa-ção das políticas de Educação Escolar Indígenasão de fundamental importância para formulação,implementação, acompanhamento e avaliação des-sas políticas.

Nas esferas estaduais, incentivou-se a cria-ção de organizações de professores indígenas,fóruns e núcleos de educação indígena com am-pla representação dos vários atores institucionaislocais, amparados pela Portaria interministerial559/91 que definiu as composições e os objetivosdesses núcleos.

Ainda nessa linha, tem-se hoje a ComissãoNacional de Educação Escolar Indígena, compos-ta por professores e outros representantes indíge-nas titulares e suplentes, de diferentes regiões doBrasil. “Empossada em 2001 no MEC, tem funçãoassessora e propositiva em relação à política deEducação Escolar Indígena. Considerada uma con-quista pelo movimento indígena, esta comissão é aúnica instância totalmente indígena a executar ocontrole social de uma política implementada peloEstado Brasileiro.” (GRUPIONI, 2003, p.151).

Na Bahia, o Fórum de Educação Indígena é ainstância de articulação entre os povos indígenas ea Secretaria Estadual de Educação, na construçãocoletiva da política pública de educação para asquatorze etnias indígenas no estado. É também umespaço de discussão, acompanhamento e avalia-ção coletiva. O objetivo dessa instância é deliberar

sobre a política, os programas, projetos e as açõesda Educação Escolar Indígena no Estado da Bahia.

A criação dessa instância de participação soci-al possibilita o necessário diálogo permanente, in-tercultural, com as instituições governamentais,para promover o conhecimento, a reflexão, a sen-sibilização e a atuação do poder público como prin-cípio na construção da política pública, partindo doreconhecimento por parte do poder público e daaprovação por parte dos povos indígenas. Esse di-álogo busca a compreensão das proposições edu-cacionais, nas perspectivas culturais e nos projetossocietários de cada povo, postas pelos professorese pelas lideranças indígenas.

Nos últimos trinta anos, experiências positivasno campo da Educação Escolar Indígena vêm acon-tecendo a partir do movimento indígena em todo opaís. Essas experiências tem tido seu amparo legalna constituição, proporcionando novas oportunida-des educativas para as populações indígenas quealmejam a manutenção e a valorização cultural,para o que a escola tem muito a contribuir.

Esse é o novo cenário em que vivemos. Noentanto, apesar de estar no plano do discurso e dalegislação, ainda é frustrante no da implementaçãodas políticas públicas. É perceptível a generaliza-ção de um discurso sobre uma educação intercul-tural, especifica e diferenciada para os povosindígenas, sem que se dê, porém, respaldo signifi-cativo para as escolas indígenas. A árvore da edu-cação intercultural tão almejada pelos povosindígenas ainda não criou raízes profundas parasuperar a hegemonia do discurso político.

Os professores indígenas vêm tentando a du-ras penas implementar essa educação, mas se de-param com os entraves burocráticos e a falta dematerial de apoio. Embora reconhecendo o avan-ço no investimento da Educação escolar Indígena,verificamos que os estados brasileiros precisamassumir metas e prazos para que os preceitos le-gais possam ganhar vazão.

É evidente a necessidade de continuidade daluta incessante dos movimentos e segmentos so-ciais na defesa e construção coletiva de uma po-lítica pública que atenda aos diferentes segmentos,seus saberes, suas especificidades, particularida-des e seus projetos societários, pela efetivaçãode direitos já assegurados nas legislações, mas

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que necessitam, diuturnamente, da participação edo controle social desses grupos para que as ini-ciativas e experiências já realizadas nessa pers-pectiva revertam efetivamente em políticaspúblicas consolidadas.

ConclusãoPor fim, a busca de soluções para os impas-

ses no campo educacional indígena cabe não so-mente aos entes federados, mas, principalmente,a nós, professores e lideranças indígenas que co-nhecem de perto a realidade indígena. Devemosprocurar respostas através dos aportes ofereci-dos pelos diversos estudos e, mais do que isso,buscar respostas aos impasses nas tomadas de

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decisões e nos impasses burocráticos de dentrodo próprio poder público, para acabar com o cam-po das contradições.

É preciso partir para uma prática intencional nosentido de uma superação qualitativa; uma tarefaque se deve dar de forma orgânica, sábia e susten-tável. Razão disto está no fato de que podemoscontinuar desejando e construindo a liberdade, aigualdade e a fraternidade, através de uma educa-ção pública, gratuita e de qualidade para todos. Éessa a educação tão desejada pelos povos indíge-nas, uma educação que respeite as suas tradições,as suas culturas, os seus modos de vida e que ga-ranta a sustentabilidade das sociedades indígenassem comprometer seus territórios tradicionais e asgerações futuras.

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Gerenciamento da educação escolar indígena, poder público e a relação com o movimento indígena: experiência e reflexão

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Recebido em 27.11.09Aprovado em 30.11.09

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EDUCAÇÃO E POVOS INDÍGENAS:LEGISLAÇÃO E EXPERIÊNCIA COM PRODUÇÃO DE MATERIAL

DIDÁTICO DE AUTORIA INDÍGENA NA BAHIA

Francisco Alfredo Morais Guimarães *

* Mestre em Educação. Professore assistente da Universidade do Estado da Bahia UNEB - Campus II - Alagoinhas. Professore membro da equipe de coordenação do Curso de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena - LICEEI-UNEB.Endereço para correspondência: Rua Mocambo, 553, Trobogi – 41350.300 Salvador/BA. E-mail: [email protected].

RESUMOEste artigo consiste numa reflexão sobre a educação escolar indígena no Brasil,considerando aspectos históricos e legais, destacando as mudanças ocorridas com oadvento da constituição de 1988, que assegura, no campo educacional, o direito àsespecificidades étnico-culturais indígenas. Nesse sentido, destaca uma experiênciacom pesquisa, produção e adoção com livros didáticos de autoria indígena no âmbitodo curso de Magistério Indígena na Bahia, que contempla uma proposta de pesquisacolaborativa na área de educação, cujo objetivo de investigação e os métodospreviamente indicados foram discutidos e negociados com os professores pesquisadoresindígenas, visando ao desenvolvimento de uma prática de pesquisa comprometidacom uma perspectiva cognitiva e intelectual indígena. Entre os resultados desse trabalhotemos a publicação dos livros Vida e Cultura do Povo Tuxá de Ibotirama; NossoPovo: Leituras Kiriri - Educação Diferenciada na Visão do Povo Kiriri e LeiturasPataxó: Raízes e Vivências do Povo Pataxó, que estão sendo adotados pelas escolasindígenas dessas etnias.

Palavras-chave: Educação escolar indígena – Formação de professores indígenas –Professor pesquisador indígena

ABSTRACTEDUCATION AND INDIGENOUS PEOPLES: LAWS AND EXPERIENCEWITH THE PRODUCTION OF DIDACTIC MATERIAL FROMINDIGENOUS AUTHORSHIP IN BAHIA, BRAZIL

This paper is a reflection on indigenous education in Brazil, considering historical andlegal aspects, highlighting the changes with the advent of the 1988 constitution, whichguarantees the educational field the right to specific ethnic and indigenous cultural. Inthis sense, an experience with research, production and adoption of textbooks writtenby Indian in the course of Indian teachings in Bahia, which includes a proposal forcollaborative research in education, which aims to research and methods previouslyindicated, were discussed and negotiated with teachers indigenous researchers, todevelop a practical research committed to a cognitive and intellectual indigenous.Among the results of this work we have published books Life and Culture of the

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People Tuxá Ibotirama; Our People: Readings Kiriri – Differentiated Educationin the vision of people Kiriri and Pataxó Reading: Roots and Life of Pataxó,which are being adopted by indigenous schools from these ethnic groups.

Keywords: Indigenous school education – Training of indigenous teachers – Indigenousteacher researcher

Considerações iniciaisA educação escolar indígena, no Brasil, tem uma

história que remonta ao processo inicial de invasãoe conquista de territórios indígenas pelos portugue-ses e o desenvolvimento da catequese junto aos ín-dios por parte de agentes missionários católicos que,dentre outras iniciativas, estudaram suas línguas,preparando catecismos, vocabulários e gramáticas.

No caso dos catecismos, podemos conside-rá-los como os primeiros materiais didáticos

bilíngües utilizados em escolas ou seminários in-dígenas e não indígenas no Brasil, podendo sertomados como referências mais expressivas emrelação a povos indígenas na Bahia o Catecis-mo da Língua Brasílica, escrito em Tupi anti-go pelos padres José de Anchieta e Antônio deAraújo, e o Catecismo da Doutrina Christãana Língua Brasílica da Nação Kiriri, escritopelo padre Luiz Vicencio Mamiani, ambos im-pressos no século XVII, cujas capas apresen-tamos abaixo:

Gravura do catecismo Tupi

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Contudo, como assinalam Ribeiro (2005) e Daher(2009) esses catecismos foram escritos pelo colo-nizador e pensando no colonizador, pois buscavamatender prioritariamente ao propósito de facilitaraos novos missionários o aprendizado das línguasindígenas para a sua conversão. Em relação aoaprendizado do Tupi, por exemplo, Barros (2009,p. 8) assinala que, no Colégio dos Jesuítas, naBahia,

... se institucionalizaram aulas de tupi em 1572, trans-formando o colégio em local de aprendizado da lín-gua. Ali, a língua brasílica se incorporou ao programaescolar, teve um professor para essas funções e agramática se tornou seu modelo de ensino, tantopara os padres da metrópole como para os própriosíndios.

No que diz respeito aos índios, a educação es-colar estará articulada ao processo de conquistade seus territórios e, nesse sentido, os princípios eas práticas pedagógicas escolares terão como pro-

pósito mais efetivo a aniquilação da diversidade edas identidades étnicas indígenas pois, como assi-nala Freire (2004, p. 23),

... quando a escola foi implantada em área indígena,as línguas, a tradição oral, o saber e a arte dos po-vos indígenas foram discriminados e excluídos dasala de aula. A função da escola era fazer com queestudantes indígenas desaprendessem suas cultu-ras e deixassem de ser indivíduos indígenas. Histo-ricamente, a escola pode ter sido o instrumento deexecução de uma política que contribuiu para a ex-tinção de mais de mil línguas.

Respaldado numa política indigenista que so-fre poucas alterações em relação à perspectivade integração e homogeinização dos povos indí-genas (SILVA, 1999), esse princípio aniquiladorse manteve praticamente inalterado até o adven-to da constituição de 1988, que, em função dasreivindicações e lutas do movimento indígena edos seus aliados, estabelecerá um redirecionamen-

Gravura do catecismo Kiriri

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to na orientação ideológica do Estado, imprimin-do novos conceitos e novas práticas no seu rela-cionamento com as sociedades indígenas,assegurando e garantido o direito à diferença edefinindo como papel da União proteger as espe-cificidades étnico-culturais indígenas.

Essa questão da permanência de um padrão co-lonizador em relação às escolas indígenas no país podeser constatada através de documentos fotográficosrelativamente recentes como o registro de uma aulaem 1950, no Internato Salesiano de Taracuá, no AltoRio Negro/AM, que apresentamos a seguir:

Foto Arquivo da Diocese de São Gabriel da Cachoeira

Apesar dos inegáveis avanços proporcionadospela nova constituição na legislação indigenista ofi-cial, é importante frisar que a situação de vulnera-bilidade dos povos indígenas pouco mudou em re-lação à prevalência do projeto e lógica capitalista,que, dentre outros problemas, continua a avançarsuas fronteiras através de atividades econômicas,como o agronegócio, articulados a planos gover-namentais estratégicos como a transposição do rioSão Francisco e a construção de mega hidrelétri-cas, principalmente nos rios da Amazônia, pondoem risco as vidas, terras e sustento de muitos po-vos indígenas (HECK et al., 2005).

Diante desse quadro, conforme Silva (1999), oque se pode afirmar é que mais do que qualqueroutra coisa, a nova legislação se constitui numapossibilidade dos povos indígenas utilizarem as ga-rantias jurídicas em suas lutas, o que tem sido mui-to profícuo, sobretudo no campo educacional.

Mudanças na legislação e avanços emrelação à escola indígena

A perspectiva atual assumida pela educaçãoescolar indígena está referendada em uma sériede referenciais legais estabelecidos a partir daConstituição de 1988, dentre os quais podemosdestacar o Art.79 da Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (BRASIL, 1996), que confereà União a responsabilidade pelo “provimento daeducação intercultural às comunidades indígenas,desenvolvendo programas integrados de ensino epesquisa para oferta de educação escolar bilíngüee intercultural”. São destacados como objetivosdesses programas “desenvolver currículos e pro-gramas específicos, neles incluindo os conteúdosculturais correspondentes às respectivas comuni-dades” e “elaborar e publicar sistematicamentematerial didático específico e diferenciado.”

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Complementando essa perspectiva, em 2002, oMEC publicou os Referenciais para a Formaçãode Professores Indígenas (MEC/SEF, 2002), ela-borado com a contribuição de professores indíge-nas, consultores, professores universitários,pareceristas e técnicos de secretarias de educa-ção, com o propósito de constituir-se em um guiapara construir e disseminar novas formas de ver epensar um sistema para as escolas indígenas, defi-nindo caminhos inovadores (MIDILIN, 2003). Oque se pretende com essas mudanças na legisla-ção? Proporcionar condições adequadas para quese promova, no âmbito educacional, a reafirmaçãodas identidades étnicas e a recuperação das me-mórias históricas dos povos indígenas, contribuin-do para que se efetive um processo de autonomia(CESAR, 2002), a partir de seus projetos históri-cos e suas estratégias de sobrevivência física, lin-güística e cultural.

Para se atingir esse propósito, um dos objeti-vos explicitados na legislação vigente é de quesejam desenvolvidos programas de formação deprofessores indígenas, para que possam assumir,de forma autônoma, a condução do processo edu-cacional nas suas aldeias. Mas, o que caracterizaum programa de formação de professores indí-genas? O que se espera dele e quais são as suasespecificidades? O que caracteriza efetivamentea diferença de um programa desses em relação aoutros programas de formação dirigidos a pro-fessores não-índios?

A formação de índios como professores egestores das escolas localizadas em terras indíge-nas caracteriza-se, fundamentalmente, pelo desa-fio. Há muito a ser desfeito e re-feito, pois a escolaé uma instituição não-indígena e a sua (re)criaçãoem contextos indígenas requer um processo inten-so de descolonização dos conteúdos e das práticasescolares e, como afirma Grupioni (2006, p. 51),“essa é uma tarefa complexa (...) para a qual nãohá um único modelo a ser adotado, vista a comple-xa heterogeneidade e diversidade de situações so-ciolingüísticas, culturais, históricas e de formaçãoe escolarização vividas pelos professores índios epor suas comunidades”.

O problema do estabelecimento de novas práti-cas didáticas, pedagógicas e administrativas noâmbito das escolas indígenas, no contexto dos no-

vos referenciais curriculares e dos princípios le-gais para a educação escolar indígena no Brasil, éuma preocupação transdisciplinar que tem motiva-do pesquisadores em diversas áreas do conheci-mento a desenvolver projetos contemplando oprotagonismo político indígena e a refletir sobre suasexperiências.

Dentre os estudos que dão conta dessa novaexperiência pedagógica no Brasil, podemos des-tacar os de Silva e Grupioni (1995), Silva e Fer-reira (2001a, 2001b), Grupioni (2006). Além deterem a experiência de muitos anos de pesquisajunto a povos indígenas, esses pesquisadores ar-ticulam de forma interdisciplinar contribuiçõesteóricas de diversas áreas, como a antropologia,história e educação.

No campo da formação de professores indí-genas e do universo das relações sociais e comu-nitárias na Bahia, é importante sublinhar ostrabalhos pioneiros de Cortes (2001), ao estudara educação diferenciada e formação de profes-sores indígenas, levando em conta a (co)autoriaindígena, principalmente no estabelecimento deprojetos político-pedagógicos para suas escolas;e de César (2002), que estuda as relações entreíndios e não-índios no contexto das comemora-ções oficiais dos 500 anos do Brasil e o papel doprofessor e da escola indígena nesse contexto,através de uma reflexão pautada no conceito de“construções de autoria”, entendido enquanto prá-ticas sociais, coletivas, capazes de deslocar posi-ções de subalternidade.

Considerando a longa história da presença daescola em contextos indígenas e da mudança nocenário político nacional, Silva (2001) aponta paraa necessidade de se entender a nova configuraçãoda escola indígena, considerando que as mesmaspodem ser consideradas hoje tanto “nativas” quanto“exógenas”.

Seguindo essa perspectiva delineada por Silva,podemos destacar ainda os estudos de Ferreira(1992), Franchetto (1997) e Tassinari (1999), en-tre outros, que reconhecem que as escolas indíge-nas vêm passando por profundas transformaçõese assumido um novo significado e um novo sentidopara os povos indígenas, depois de, por muitos anos,terem sido utilizadas como um recurso voltado paraa supressão da identidade e da diversidade étnica.

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Como assinala Silva (2001, p. 22), “uma vezconstruídos solidamente em sua especificidade osdiscursos científicos, pedagógicos e políticos, maisproveitosa deverá mostrar-se a interlocução entreseus representantes”

O que professores indígenas em todo país es-tão vivenciando é uma profunda mudança para-digmática, principalmente no modo como a pesquisase caracteriza enquanto elemento central em cur-sos de formação, propiciando o desenvolvimentode uma série de projetos centrados em estudos decampo em suas aldeias. Conforme assinala Gui-marães (2009, p. 48), com o desenvolvimento dosseus trabalhos de campo, os professores indígenasassumem uma condição privilegiada enquanto pes-quisadores,

... por serem partes integrantes de suas comunida-des e por se constituírem em importantes agentesde mobilização cultural. Essa condição favorável parao desenvolvimento de suas pesquisas acaba conta-giando suas comunidades em torno de um ideal co-mum: fazer da escola um centro irradiador domovimento de afirmação e resistência étnica, alémde promover também o acesso a conhecimentosoutros, necessários igualmente para a consecuçãodos seus projetos.

Ao apontar as especificidades da formação deprofessores indígenas, Grupioni (2006, p.53) desta-ca que a mesma deve contemplar modelos de pes-quisa que os levem a “compreender os conhecimen-tos reunidos no currículo escolar à luz de seuspróprios conhecimentos”. Esse direcionamento dadoà formação de professores indígenas tem possibili-tado um intercâmbio entre saberes, possibilitando,assim, outro significado e um valor mais abrangenteà qualificação do trabalho de formação dos profes-sores indígenas. Do mesmo modo, confere à pes-quisa uma condição emancipatória, superando, as-sim, o mito da neutralidade científica.

É nessa perspectiva crítica da prática de pes-quisa que se situam os trabalhos de formação ini-cial e continuada de professores indígenas naBahia, que têm contemplado em seus programas odesenvolvimento de oficinas de pesquisa e produ-ção de livros didáticos, o que tem resultado na pu-blicação de livros que começam a ser adotadosem suas escolas.

Pesquisa, produção e adoção de livrosdidáticos de autoria indígena na Bahia

A pesquisa com a tradição oral e a produção delivros didáticos de autoria indígena é um trabalhoiniciado no Magistério Indígena da Bahia, curso queresultou de um processo de reivindicação e de ar-ticulação dos professores indígenas e pesquisado-res de universidades baianas e teve início em 1997,através de uma parceria interinstitucional entre aUniversidade do Estado da Bahia – UNEB, a Uni-versidade Federal da Bahia – UFBA, a Associa-ção Nacional de Ação Indigenista – ANAÍ-BA e aFundação Nacional do Índio – FUNAI, com apoiofinanceiro do Ministério da Educação – MEC edepois assumido pela Secretaria de Educação doEstado da Bahia – SEC/BA. A primeira turma docurso teve início em dezembro de 1997 e sua con-clusão em dezembro de 2003, quando se forma-ram 79 professores indígenas. A proposta curriculardesse curso está lastreada em:

... estudos sócio-antropológicos e pedagógicos, ebaseada nos dispositivos legais construídos após aConstituição brasileira de 1988, com ênfase na LDBde 1996 e seus desdobramentos. Em conformidadecom estes dispositivos, adota a perspectiva da edu-cação escolar específica, diferenciada, interculturale comunitária, tão bem detalhada no ReferencialCurricular Nacional para as Escolas Indígenas - RC-NEI/MEC. (BAHIA/SEC, 2006, p. 6).

Dentre os trabalhos voltados para a produçãode livros didáticos de autoria indígena, desenvolvi-dos no Curso de Magistério Indígena, destacamosaqui o Projeto Publicação de Livros Didáticos paraEscolas Indígenas na Bahia, desenvolvido pelaCoorde-nação de Educação Indígena da Secreta-ria da Educação-SEC, em parceria com a Universi-dade do Estado da Bahia – UNEB, através doDepartamento de Educação do Campus I, em Ala-goinhas, sob a coordenação do autor deste artigo eque resultou de uma articulação pedagógica entreas atividades de pesquisas desenvolvidas nas dis-ciplinas de História, Geografia e Música, vincula-das à área de estudo Sociedade/Natureza/Cultura.

Esse projeto já resultou na publicação peloMEC, através da CAPEMA – Comissão Nacional

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de Apoio à Produção de Material Didático Indíge-na, dos livros Vida e Cultura do Povo Tuxá deIbotirama; Nosso Povo: Leituras Kiriri - Edu-cação Diferenciada na visão do Povo Kiriri e

Leituras Pataxó: Raízes e Vivências do PovoPataxó, que estão sendo adotados pelas escolasindígenas dessas etnias. Vide a seguir as capas dostrês livros:

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O trabalho desenvolvido com os professoresindígenas para a produção desses livros é fruto deuma proposta de pesquisa colaborativa na área deeducação (DESGAGNÉ, 1998), pois tanto os pro-fessores indígenas como nós, professores/pesqui-sadores universitários nos colocamos na perspec-tiva de co-autores do processo de reflexão e osprofessores indígenas como autores dos livros emcolaboração com outros membros de suas comu-nidades.

Desde os primeiros passos desse trabalho, nos-sos objetivos de investigação e os métodos previa-mente indicados foram discutidos e negociados comos professores pesquisadores indígenas, visando aodesenvolvimento de uma prática de pesquisa com-prometida com a transparência e o respeito aosprincípios delineados na legislação que subsidiapolíticas de formação de professores indígenas noBrasil.

Ao apontar as especificidades da formação deprofessores indígenas, Grupioni (2006), afirma:

O professor indígena deve ser formado também comopesquisador, não só de aspectos relevantes da his-tória e da cultura do seu povo, mas também dosconhecimentos significativos nas diversas áreas doconhecimento. Tal como estabelecido em documen-to do MEC, os professores indígenas têm a difícilresponsabilidade de serem os principais incentiva-dores à pesquisa dos conhecimentos tradicionaisjunto aos membros mais velhos de suas comunida-des e da difusão entre as novas gerações, visando àsua continuidade e reprodução cultural: assim comoestudarem, pesquisarem e compreenderem os co-nhecimentos reunidos no currículo escolar à luz deseus próprios conhecimentos (MEC, 2002) (GRUPI-ONI, 2006, p.53)

Definida como um método para pesquisa socialque tem como pressuposto o vínculos entre o(s)pesquisador(es) da universidade e professores deum determinado contexto escolar, a pesquisa cola-borativa, como destaca Pimenta (2005, p.223), ca-racteriza-se por reconhecer esses professores,“como sujeitos que podem construir conhecimentosobre o ensinar na reflexão crítica sobre sua ativi-dade, na dimensão coletiva e contextualizada insti-tucional e historicamente”

Dessa forma, os sujeitos implicados nesse tipode pesquisa postam-se na perspectiva da consti-

tuição de um grupo de pesquisa com objetivos emetas comuns, comprometidos com um determi-nado problema que emerge no próprio contexto deatuação desses professores, no nosso caso, as es-colas indígenas.

Vale destacar que nesta proposta de trabalhocom os professores indígenas, a pesquisa colabo-rativa assumiu uma perspectiva etnográfica, levandoem conta o princípio antropológico, segundo o qual,conforme Macedo,

os membros de um grupo social conhecem melhorsua realidade que os especialistas que vêm de fora daconvivialidade grupal da comunidade ou da institui-ção, o que não significa fechamento num basismoingênuo e equivocado, mas abertura a uma dialogici-dade interessada, com vistas a uma intervenção ma-jorante e intercrítica (MACEDO, 2006, p 160).

Para Bortoni-Ricardo e Pereira (2006), esseprincípio assumido pela pesquisa etnográfica cola-borativa, além de caracterizar-se pela descriçãode uma determinada realidade, como na etnogra-fia convencional, tem por objetivo:

... promover mudanças para melhor no ambiente pes-quisado. Dessa forma ela é ao mesmo tempo herme-nêutica e emancipatória. Nesse tipo de pesquisa, opesquisador não é um observador passivo que pro-cura entender o outro, que também, por sua vez, nãotem um papel passivo. Ambos são co-participantesativos no ato da construção e de transformação doconhecimento. Para tal, a agenda da pesquisa é ne-gociada de modo a atender a necessidades do gru-po que vai ser pesquisado (BORTONI-RICARDO;PEREIRA, 2006, p. 159).

Além dessa perspectiva proporcionada pelapesquisa colaborativa, os professores indígenas, emprojetos de pesquisa como o aqui descrito, assu-mem uma condição privilegiada enquanto pesqui-sadores, por serem partes integrantes de suascomunidades e por se constituírem em importan-tes agentes de mobilização cultural. Essa condiçãofavorável para o desenvolvimento da pesquisa aca-ba contagiando não só os alunos, mas suas respec-tivas comunidades, em torno de um ideal comum:fazer da escola um centro irradiador do movimen-to de afirmação e resistência étnica.

Ao refletir sobre essa experiência com pesqui-sa e produção de livros didáticos de autoria indíge-

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na, Guimarães (2009, p. 49) destaca a perspectivade comprometimento com as especificidades e di-ferenças culturais assumida pelo trabalho, demons-trando como o mesmo tem ajudado a diminuir adistância até então existente entre a escola e acomunidade, “ao trazer a história para perto, aorelacionar o mundo da sala de aula e do livro didá-tico com o mundo social direto e diário da comuni-dade em que vive o estudante indígena” .

Em um depoimento prestado à TV UNEB em2008, num encontro de avaliação do livro NossoPovo: Leituras Kiriri - Educação Diferenciadana visão do Povo Kiriri, realizado na aldeia deMirandela, em Banzaê, região Norte do estado, aprofessora Marlinda de Jesus Andrade, umas dasautoras do livro, aponta com muita clareza essaquestão da afirmação da identidade indígena comoum dos resultados mais significativos alcançadospor essa publicação, pois, segundo ela, os alunos etambém o povo Kiriri:

... se mostraram com mais coragem e vontade dedizer que são índios ao produzirmos um material di-dático como esse, pois antes eles achavam que nãofossemos capazes. O livro é assim um exemplo deque somos capazes de produzir nosso próprio mate-rial didático.

Com o uso do livro em sala de aula, os alunos sesentem vivendo a vida de maneira mais segura, poiseles sabem que o que está no livro existe, por queeles veem o professor e os pais falando de um con-teúdo que está na nossa comunidade, em nossomeio.

Temos ainda o benefício de os alunos se sentiremalegres e contentes de poderem, agora, produzirpesquisas, porque ao identificar que o livro está in-completo em relação a algum assunto, para conse-guir uma resposta eles sabem podem fazer novaspesquisas.

Quando temos dúvidas das histórias dos nossosantepassados e que foram contadas pelos mais ve-lhos da nossa comunidade, temos que trazer essaspessoas para sala de aula para vivenciar junto comos próprios alunos para eles poderem tirar suas dú-vidas e assim ficarem satisfeitos em relação ao quenão sabiam, mas que os velhos da comunidade po-dem ensinar.

Dessa forma, os livros de autoria indígena re-velam, para seus alunos, a existência de memóri-

as e recordações com um valor histórico inesti-mável, demonstrando como a história oral é ca-paz de ampliar os limites do conhecimentohistórico, ao registrar a história presente em suascasas, nas casas de seus parentes, enfim, em suaspróprias comunidades, conferindo o significado eo valor da cultura e da tradição oral para odesenvol-vimento de trabalhos pedagógicoscompro-metidos com a identidade e a auto-esti-ma dos estudantes indígenas.

É importante ressaltar que essa perspectiva al-cançada no trabalho pedagógico desenvolvido pe-los professores indígena resulta do estabelecimentode determinadas estratégias metodológicas no tra-balho de pesquisa com a tradição oral, cujos depo-imentos gravados e transcritos e as fontesbibliográficas e documentais escritas constituem-se em matéria prima para (re)criações textuaismultimodais, contemplando em suas composiçõestextos alfabéticos e visuais, compostos de duas oumais modalidades semióticas.

Esse caráter multimodal, presente nos livros,confere ao trabalho pedagógico nas escolas indí-genas dinâmicas interculturais próprias, demarcan-do o encontro da tradição oral de cada um dos povoscom a escrita alfabética.

Vistos enquanto traços culturais extraídos dastradições, os grafismos e desenhos assumem umpapel importante na afirmação da diferença, pois,como diria a antropóloga Manuela Carneiro daCunha (1986), apesar de residuais, eles possuemum caráter irredutível em relação à questão da afir-mação da identidade étnica, sobretudo se conside-rarmos o papel assumido por essas publicações nocontexto atual da educação escolar indígena naBahia.

Ao refletir sobre o processo de construção daidentidade étnica, Carneiro da Cunha (1986, p. 101-102) observa que a extração de elementos cultu-rais da chamada tradição, do todo em que foramcriados, para um novo contexto, no nosso caso, aescrita multimodal, seu sentido se altera, pois, se-gundo a autora,

a etnicidade faz da tradição ideologia, ao fazer pas-sar o outro pelo mesmo; e faz da tradição um mitona medida em que os elementos culturais que setornaram “outros”, pelo rearranjo e simplificação aque foram submetidos, precisamente para se tor-

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narem diacríticos, se encontram por isso mesmosobrecarregados de sentido. Extraídos de seu con-texto original, eles adquirem significados que trans-bordam das primitivas.

Na ilustração abaixo, um etnomapa de autoriada professora Adenilza dos Santos Macedo, ex-traído do livro Kiriri (aqui citado), temos um exem-plo bem específico desse fenômeno de transposi-ção de elementos da tradição cultural, ao

considerarmos a condição assumida pela árvoreenquanto signo retirado de um contexto de repre-sentações tradicionais em que determinada plan-tas assumem um papel central na cosmologia Ki-rirí, como no caso da Jurema, planta de ondeextraem o sumo das raízes para o preparo de umabebida, considerada sagrada, a qual, que em fun-ção de suas propriedades, é conceituada enquan-to um eteógeno1.

1 Termo proposto por Wasson, Hofmann e Ruck (1980) e atualmente utilizado pelos pesquisadores, para caracterizar as substânciasnaturais que estimulam a percepção do sagrado. Este termo vem do grego e significa aproximadamente “deus dentro de si”.

Gravura do livro Kiriri

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O reconhecimento da escrita multimodal, comouma característica das publicações de autoria indí-gena, tem sido alvo de estudos reveladores e críti-cos que apontam para questões como o grafocen-trismo, presente nos processos de formação deprofessores indígenas, o qual é caracterizado porSouza (2001) através do conceito de habitus deBourdieu (1990). O grafocentrismo tem a ver comdisposições que levam, de forma inconsciente, aque formadores acadêmicos, que vêm de uma cul-tura escrita, a verem a escrita como elemento cul-tural básico e indispensável, evidenciando um ha-bitus grafocêntrico, por meio do qual eles veemnas culturas consideradas ágrafas apenas aquiloque as lentes de uma cultura letrada permite ver.

Ao discutir sobre o caráter multimodal comouma característica fundamental dos textos produ-zidos pelos professores indígenas Kaxinawá noAcre, Souza (2001) reconhece, nos desenhos egrafismos, um fator de resistência indígena às limi-tações da escrita alfabética e chama atenção paraum problema que é de muitos de nós que trabalha-mos com a produção de livros de autoria indígena,que é o fato do não reconhecimento de conexõesentre desenhos e grafismos presentes nesses tex-tos e a cultura indígena.

Em relação aos Kaxinawá, nas palavras deSouza (2001, p. 177):

... os professores não índios dos Kaxinawá não pa-recem ter um entendimento claro da interação entreesses desenhos e a escrita; além do mais, pareceque prevalece a visão que a cultura dominante não-indígena tem do desenho como algo complementar,secundário, que apenas ilustra ou complementa umtexto escrito. O desenho enquanto texto visual pa-rece ser visto como algo que meramente parafraseiaou apóia o texto escrito

Considerando essa perspectiva apontada porSouza, vemos que além de projetos voltados paraa produção de livros, os professores indígenas pre-cisam refletir sobre suas experiências de autoria esuas implicações sobre o novo cenário que se deli-neia no campo da educação escolar indígena. Nessesentido, para darmos continuidade ao nosso proje-to de produção de livros didáticos de autoria indí-gena, ampliando e aprofundando as pesquisas coma tradição oral, contamos agora com outra impor-

tante conquista dos professores indígenas na Bahia:o Curso de Licenciatura Intercultural emEduca-ção Escolar Indígena - LICEEI, da Univer-sidade do Estado da Bahia - UNEB, que visa for-mar profissionais indígenas habilitados para o exer-cício da docência e da prática educativa nos níveisfundamental e médio da educação básica, bemcomo para atuarem no campo da pesquisa, da pro-dução e gestão do conhecimento para a educaçãocomunitária em suas aldeias.

Conforme exposto no projeto do curso, o seuobjetivo é o desenvolvimento de uma formação di-ferenciada pautada em competências profissionaisreferendadas pelo conhecimento acadêmico-cien-tífico em diálogo permanente com os saberes epráticas tradicionais, valores, atitudes e habilida-des relevantes para as comunidades de origem dosprofessores indígenas (UNEB, 2008, p. 86).

O LICEEI está vinculado aos departamentosde Educação (DEDC) do Campus VIII (PauloAfonso) e do Campus X (Teixeira de Freitas) daUNEB, de modo que possa agregar as etnias regi-onalmente. A graduação ocorrerá em regime mo-dular, ao longo de quatro anos. A universidadedisponibilizou 54 vagas para cada departamento.O objetivo do curso é implantar e fortalecer o ensi-no médio e fundamental de nível dois, o que bene-ficiará, diretamente, mais de seis mil estudantesindígenas das 14 etnias no estado.

Com o propósito de potencializar o trabalho depesquisa no LICEEI-UNEB, a equipe de coordena-ção do curso, juntamente com os representantes in-dígenas, definiu sua articulação com o ProjetoObservatório da Educação Escolar Indígena -Núcleo Local do Território Etnoeducacional Nor-deste I, vinculado ao Programa Multidisciplinar deEstudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro), da Uni-versidade Federal da Bahia – UFBA, em parceriacom o Programa de Pós-Graduação em Antropolo-gia da mesma universidade, e que atende ao edital001/2009 Observatório da Educação Escolar Indí-gena/CAPES/INEP/SECAD, que visa estimular aprodução acadêmica e a formação de recursos pós-graduados (mestrado e doutorado) e fortalecer aformação de profissionais da educação básica in-tercultural indígena, professores e gestores para osTerritórios Etnoeducacionais. (CÉSAR, 2009).

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Como assinala a coordenadora do referido pro-jeto, o que se propõe é a criação de:

... um núcleo de pesquisa na área da linguagem eeducação intercultural indígena, com vistas a esti-mular a produção acadêmica e fornecer subsídiospara a elaboração de diretrizes para a educação lin-güística de povos indígenas no Nordeste. O proje-to associa-se à LICEEI/UNEB, articulando ensinoe pesquisa com foco na formação de professoresindígenas e produção de materiais didáticos espe-cíficos na área de linguagens (CÉSAR. 2009, p. 11)

Para concluir, podemos dizer que o propósitomais significativo deste trabalho, com a pesquisa ea produção de livros didáticos de autoria indígena,tem sido o de afirmar o valor das tradições oraispara o ensino escolar nas comunidades indígenas,destacando a importân-cia das músicas, dos mitose ritos como recursos que proporcionam ao traba-lho pedagógico uma particularidade, um significa-do humano precioso e uma abertura para umaperspectiva cognitiva e intelectual comprometidacom as epistemologias indígenas.

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Recebido em 11.12.09Aprovado em 15.12.09

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* Mestre. Professora Assistente do Departamento de Museologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-dade Federal da Bahia. Endereço para correspondência: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Rua Professor AristidesNovis, nº 197, Federação - 40210-630 Salvador-BA. E-mail: [email protected]** Graduanda em Museologia. Universidade Federal da Bahia. Endereço para correspondência: Rua Fonte da Caixa, nº 07, Res.Sol Nascente, Cs. 02, Vila de Abrantes - 42840-000 Camaçari-BA. E-mail: [email protected]*** Graduanda em Museologia. Universidade Federal da Bahia. Endereço para correspondência: Rua Nova de São Bento, nº 87,Edf. Jules Rimet, apto. 604, Centro - 40040-010 Salvador-BA. E-mail: [email protected]

RESUMOEste texto tem por objetivo relatar uma experiência desenvolvida na disciplina EstágioSupervisionado do curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia, na área deAção Cultural e Educativa dos Museus. Este trabalho foi realizado em um ColégioEstadual da cidade do Salvador e baseou-se na coleta de dados referentes à dificuldadede aplicação da Lei 11.645/08, que inclui o estudo da história e cultura indígena noensino fundamental e médio, e sobre o papel dos museus nesse processo. Os dadoscoletados permitiram analisar a posição dos professores, o conhecimento dos alunossobre os povos indígenas e o impacto do trabalho de ação cultural sobre este conheci-mento. Para isto, utilizou-se a observação etnográfica, aplicou-se um questionário aosestudantes e realizou-se trabalho específico no Museu de Arqueologia e Etnologia daUFBA. As conclusões apontam para a existência de informações genéricas e superfi-ciais sobre os povos indígenas e que os museus etnográficos podem ser utilizados comorecursos eficazes para abordar tal temática. Para tanto, é recomendável a construçãode ações articuladas entre as instituições museológicas e as escolas que deveriam serfruto de políticas públicas nas áreas de educação e cultura.

Palavras-chave: Educação – Cultura – Indígena – Ação Cultural – Museus

ABSTRACTHISTORY AND INDIGENOUS CULTURES IN SCHOOLS: museums andcultural action

This article aims to describe an experience carried out as part of the course “Supervisedtraineeship” in the Museology program of the Federal University of Bahia, in the field ofCultural and Educational Action of Museums. This research was carried out in a Public Highschool in the city of Salvador (Bahia, Brazil) and was based on the collection of data referringto the difficulties that arise in applying the Law 11.645/08, which includes the study ofindigenous history and culture in primary and secondary education, as well as the role museums

HISTÓRIA E CULTURAS INDÍGENAS NA ESCOLA:Museu e ação cultural

Sidélia Santos Teixeira *Daiane Silva Carvalho **

Joseane Macedo da Silva ***

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may play in this process. The data collected made it possible to analyze the position ofteachers, the knowledge that students have about Indian peoples and the impact of culturalaction on this knowledge. In order to accomplish this, the author resorted to ethnographicobservation, applied a questionnaire to the students and carried out specific work at theArcheology and Ethnography Museum of the Federal University of Bahia. The conclusionpoints to the existence of generic and superficial information about Indigenous peoples, andsuggests that the ethnographic museums may be used efficiently to cover such themes. Thusit suggests that articulated actions should be set up between museological institutions andschools, as the result of public policies in the fields of education and culture.

Keywords: Education – Culture – Indian – Cultural Action – Museum

IntroduçãoO Curso de Museologia da Universidade Fede-

ral da Bahia possui em seu quadro curricular obri-gatório a disciplina FCH 262 – Estágio Supervisio-nado, cujo objetivo principal é proporcionar aosalunos uma experiência em seu campo de atuaçãoprofissional, partindo, na maioria das vezes, de te-mas motivados pelos interesses dos estudantes. Esteartigo pretende descrever e analisar a experiênciarealizada na referida disciplina.

No primeiro semestre do corrente ano, tivemosa oportunidade de desenvolver um projeto na áreade ação cultural e educativa, cujo tema versavasobre o processo de aplicação da Lei 11.645/08(JUS BRASIL, 2009), que trata da obrigatorieda-de do ensino da história e das culturas indígenasnas escolas do ensino fundamental, tendo comopalco de nossas observações um colégio estaduallocalizado no centro da cidade do Salvador. Traba-lhamos com duas turmas da quinta série do ensinofundamental, do turno matutino, procurando explo-rar conteúdos referentes à diversidade dos gruposindígenas presentes, principalmente, no Estado daBahia e o patrimônio arqueológico do Museu deArqueologia e Etnologia, que registra a presençaindígena em território brasileiro.

Nossa motivação para atuar na área de AçãoCultural e Educativa dos Museus reflete um grandeinteresse em associar ensino, museus e patrimôniocultural enquanto instrumentos pedagógicos. A pro-pósito dessa questão, afirma Santos (1993, p. 99):

A relação entre museu e educação é intrínseca, umavez que a instituição museu não tem como fim últi-mo apenas o armazenamento e a conservação, mas,sobretudo, o entendimento e o uso do acervo pre-

servado, pela sociedade, para que, através da me-mória preservada, seja entendida e modificada a re-alidade do presente.

De fato, estudiosos na área da Museologia, aexemplo de Cabral e Rangel (2008) e Santos(1996), vêm trabalhando sobre a necessidade dedesenvolver práticas museológicas mais contextu-alizadas, que procurem articular educação e cultu-ra, visando ao exercício da cidadania. Foi com essepropósito que tivemos a intenção de inserir as dis-cussões referentes à história e às culturas indíge-nas na escola, utilizando um espaço museal voltadopara esta temática como instrumento pedagógico.

Nossa preocupação volta-se para o fato de queo ensino dos conteúdos referentes às culturas indí-genas é obrigatório nas escolas e faz parte de nos-sa história; entretanto, é necessário que essesconteúdos sejam explorados de forma mais crítica,analítica e contextualizada na educação escolar.Desta forma, estaremos contribuindo para umacompreensão mais ampla e crítica de nossa for-mação social e dos problemas enfrentados con-temporaneamente.

Tornam-se importantes ações dessa natureza,tendo em vista que, de um lado, temos museus comacervos representativos de nossa história e cultu-ra; de outro, as escolas que, por meio de seus pro-fessores, ministram conteúdos, muitas vezes,distantes da realidade dos alunos, não explorandopossibilidades em relação ao uso de recursos didá-ticos que poderiam auxiliar no processo de apren-dizagem, como é o caso dos museus, por exemplo.

Muitas vezes, as práticas de ensino também nãosão desenvolvidas pelos museus, pois suas equipesde profissionais justificam que isso é da responsa-bilidade da escola. Por outro lado, os docentes do

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ensino fundamental não se sentem preparados emotivados para investir numa ação desta nature-za. Nesse jogo de indefinições com relação a seupapel no campo educacional, os alunos perdem, osprofessores perdem, a escola perde, o museu per-de, enfim, a educação deixa de cumprir seu realpapel na sociedade.

Recentemente sancionada, a Lei 11.645/08(JUS BRASIL, 2009) inclui, no currículo das es-colas públicas e particulares de nível fundamentale médio, o ensino de história e culturas indígenasbrasileira. Assim, pela primeira vez na história daeducação de nosso país, a cultura indígena é inse-rida numa política educacional que tem como prin-cípio o respeito à diversidade étnica e culturaldesses grupos e o reconhecimento de seus sabe-res tradicionais, transmitidos ao longo de muitasgerações. Nesse sentido:

A reflexão sobre os povos indígenas e sobre aslições que sua história e suas concepções de mun-do e de vida podem nos trazer, aliada ao examedos modos de relacionamento que a sociedade eo Estado nacionais oferecem aos povos indíge-nas constituem um campo fértil para pensarmos opaís e o futuro que queremos. (SILVA; GRUPIO-NI, 1995, p. 16).

No quadro da sociedade brasileira, considera-mos que a promulgação da Lei 11.645/08 (JUSBRASIL, 2009) seja da máxima importância e cons-titui-se em um avanço para a construção de umacompreensão sobre a história dos povos indígenase o respeito em relação à diversidade étnica e cul-tural por meio da educação. Nesse sentido, a lei éde grande auxílio e, para que se cumpra seu obje-tivo, é preciso que os professores conheçam a re-alidade dos povos indígenas, sem a visão estereoti-pada tão amplamente difundida, como nos mostraÂngelo (2006, p. 208):

A educação escolar foi utilizada como uma ferra-menta de catequização, como aliada na discrimina-ção e na visão ideológica do ‘índio’, que influencioua formação do povo brasileiro. São construções ide-ológicas de desvalorização da imagem do outro, fei-tas pelo branco europeu, que foram inseridas noscurrículos escolares, e se perpetuaram por muitosséculos. Contribuindo para o massacre cultural dospovos indígenas.

Assim, os objetivos do projeto de ação culturale educativa foram elaborados tendo como fococentral a identificação de problemas e avanços noprocesso de aplicação do conteúdo da Lei Nº 11.645/08, por meio da identificação e análise de carênci-as relativas aos conteúdos da história e culturasindígenas, junto aos alunos das 5as séries do ensi-no fundamental de uma escola da rede estadual deensino da cidade do Salvador, conforme registradoanteriormente.

Trabalhamos, ainda, com o propósito de desen-volver uma ação integrada com o Museu de Ar-queologia e Etnologia da Universidade Federal daBahia, objetivando a utilização do seu patrimônio,preservado como instrumento de reflexão acercada realidade dos povos indígenas.

Metodologicamente, recorremos a um questio-nário e aos princípios da observação etnográficapara a coleta de dados relativos à realidade dosalunos e do cotidiano da escola.

Assim, iniciamos a exposição do conteúdo desteartigo com uma rápida reflexão acerca do posiciona-mento e comportamento dos professores da escolaem relação ao projeto, em seguida, faremos um rela-to e uma análise dos dados coletados e das atividadesdesenvolvidas. O relato referente ao histórico do pro-jeto e, portanto, a posição dos professores nos pareceinteressante, na medida em que pode fornecer subsí-dios para o planejamento e a execução de ações fu-turas relativas a essa temática.

Professores e a Lei Nº 11.645/08:considerações sobre a proposta ini-cial do projeto

O projeto inicial tinha por objetivo desenvol-ver uma ação articulada com os professores dasdiversas disciplinas. Em síntese, procuraríamosconstruir meios e recursos para facilitar o apren-dizado do conteúdo sobre a história e as culturasindígenas.

Considerando que a educação escolar funcio-nou como mecanismo de discriminação dos povosindígenas, preocupa-nos o fato de que a Lei 11.645/08 (JUS BRASIL, 2009) não contemple a capaci-tação dos professores, podendo ter sua eficáciacomprometida na medida em que os docentes são

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transmissores diretos e permanentes desse conhe-cimento. Esse fato conduziu-nos a pensar que oEstado supõe que os professores já estejam quali-ficados para abordar tal temática, possuindo ins-trumentos teóricos e metodológicos paradesconstruir seus próprios preconceitos e estereó-tipos em relação aos povos indígenas e para anali-sar a formação histórica da sociedade brasileiraquanto a sua diversidade étnica e cultural.

Também poderíamos imaginar que os profes-sores são considerados pessoas com uma forma-ção “plena” e que não necessitam de capacitaçãoe atualização de conteúdos, sendo “abandonados”para lidar com uma questão complexa que envolvea reconstrução ou a inserção de uma memória eidentidade que, ao longo da história, foi sendo des-construída pelos grupos sociais dominantes.

Nesse sentido, nossa preocupação inicial volta-va-se para a construção de uma ação referente àsnecessidades e às dificuldades práticas apontadaspelos professores no cotidiano da sala de aula, en-volvendo a questão indígena, procurando construirpropostas de atividades conjuntas, utilizando comorecurso didático o Museu de Arqueologia e Etno-logia (MAE), da Universidade Federal da Bahia,conforme explicitado anteriormente.

Consideramos ainda que seria interessante tra-balhar com os professores, pois esses são agentesmultiplicadores do conhecimento e poderiam, nodecorrer de suas programações, investir mais nodesenvolvimento de atividades dessa natureza.

Contudo, no decorrer das ações desenvolvi-das, constatamos uma posição ambígua por partedos professores, que se mostravam motivados einteressados, mas, ao mesmo tempo, distantes ereticentes em relação à proposta. Em um primei-ro momento, ao reconhecerem suas dificuldadesem relação à aplicação do conteúdo determinadopela lei, consideraram que seria interessante de-senvolver o projeto conosco. Contudo, em outrasoportunidades, expressaram um forte desejo deque fosse executado com os alunos, como se fos-sem estes os únicos carentes de conhecimentossobre a temática.

Nas primeiras reuniões, os professores acata-ram a proposta de participar da atividade e senti-ram-se motivados a desenvolver o projeto com umaequipe de uma universidade pública. Percebemos

que isso “soava” como certa valorização e umaoportunidade de adquirir conhecimentos. Pouco apouco, entretanto, fomos constatando algumas di-ficuldades práticas, como, por exemplo: pouca par-ticipação nas reuniões; impedimentos paraagendarmos atividades; pouco retorno em relaçãoàs solicitações feitas, a exemplo dos programas dasdisciplinas, para tentarmos associar os conteúdosprogramáticos com a exposição do Museu de Ar-queologia e Etnologia, dentre outros. Atribuímosalgumas dessas dificuldades, em primeiro lugar, aoreceio dos professores em ter que assumir maisuma atividade; em segundo lugar, a uma certa des-confiança em relação à própria interlocução coma Universidade; e, finalmente, a uma descrença noque diz respeito à concretização das ações estabe-lecidas.

Durante a etapa de conclusão da programaçãodas atividades, os professores acabaram, finalmen-te, conduzindo a proposta para uma ação com osalunos, como se fosse mais importante trabalharos conteúdos propostos com eles.

De qualquer maneira, durante todo o trabalho,contamos com a participação mais ativa de doisprofessores, um da disciplina História, prestes a seaposentar, e o outro da disciplina Geografia. Asatividades desenvolvidas com os alunos foram pro-gramadas e discutidas com a participação dessesdois docentes e constituem objeto da narrativa quefazemos a seguir.

Trabalhando com os alunos: dadoscoletados e ação cultural

Uma das etapas significativas dessa experiên-cia foi nossa inserção no grupo, tanto dos docentesquanto dos discentes. Semanalmente, nos encon-trávamos com os professores para debater nossasintenções e os objetivos do projeto. Apoiadas emBrandão (1982, p. 27), consideramos que “... estaaproximação, que sempre exige paciência e ho-nestidade, é a condição inicial necessária para queo percurso de pesquisa possa, de fato, ser realiza-do de dentro do grupo, com a participação de seusmembros enquanto protagonistas e não simplesobjetos.”

Assim, todas as ações foram formuladas combase na análise de dados quantitativos e qualitati-

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vos coletados junto aos alunos e professores.1 Aaplicação do questionário teve importância ímparna elaboração das atividades, pois nos permitiu iden-tificar o nível de conhecimento que os estudantestinham em relação à questão indígena e, ao mes-mo tempo, proporcionou a oportunidade de conhe-cer quais aspectos os alunos desejavam estudarsobre a cultura indígena.

Achamos que a aplicação de um questionárioseria oportuna para auxiliar-nos a atingir os obje-tivos propostos. Assim, seu roteiro foi pensadopara obter dados relativos à faixa etária dos alu-nos e o nível de conhecimento em relação aospovos indígenas, bem como sobre os interessesdos alunos em trabalhar com essa temática, de-sejo de conhecer um museu e, finalmente, identi-ficar atividades que gostariam de desenvolver noconjunto do projeto.

Cinquenta e seis estudantes participaram dapesquisa, sendo 32 da 5ªA e 24 da 5ªB. Foi utili-zado um questionário com oito questões objetivase quatro subjetivas. Esse instrumento também foiutilizado com o objetivo de traçarmos um perfildo grupo com o qual iríamos trabalhar. Esses da-dos foram confrontados com as observações re-alizadas nos períodos em que estávamos na escolae no museu.

Nesse sentido, concebemos a ação culturalnão como um “pacote” pronto a ser ofertado paraum grupo de indivíduos, mas como um processoque é construído em função das necessidades edas características do grupo com o qual estamostrabalhando. Assim, consoante Coelho (1997), aação cultural é um “[...] processo de criação ouorganização das condições necessárias para queas pessoas e grupos inventem seus próprios finsno universo da cultura”. Dessa forma, é oportunoexpor o entendimento de R. Oliveira e D. Olivei-ra (1988, p. 19) sobre a ação educativa: “Pensa-mos que a finalidade de qualquer ação educativadeva ser a produção de novos conhecimentos queaumentem a consciência e a capacidade de inici-ativa transformadora dos grupos com quem tra-balhamos.”

A análise dos dados coletados permitiu-nosconstatar que a faixa etária desses alunos situa-se entre nove e dezesseis anos. Com relação aofato de já ter estudado sobre os índios, 84% con-

firmaram que sim e 16% responderam que não.No que diz respeito à presença de índios no Bra-sil antes da chegada dos portugueses, 96% res-ponderam afirmativamente e 4% que não existiamíndios no Brasil.

Sobre a existência de povos indígenas naBahia, 82% responderam que sim e 18% que es-tes não existem na Bahia. Questionados sobre oconhecimento que tinham sobre o nome de algumpovo indígena, 73% responderam que não e 27%que sim. Solicitados a apresentar os nomes dosgrupos indígenas que conheciam, citaram os se-guintes: Tupi Guarani, Tupinambá, Pataxó, “Da-las”, “Guarará”, “Kuara”. Ao serem indagadosse conheciam algum índio, 75% responderam quenão e 25% que sim.

Em relação ao que gostariam de conhecer, amaioria dos alunos mostrou-se interessada em dis-cutir aspectos relacionados ao cotidiano dos gru-pos indígenas, a exemplo de como estudam, seuscostumes, como se vestem, onde dormem, o quecomem, os remédios que usam, dentre outros as-suntos.

Do mesmo modo, pedimos aos estudantes quefizessem um registro sobre o que achavam a res-peito dos índios. Uma série de qualidades foi utili-zada para defini-los: guerreiros, criativos, espertos,inteligentes, legais, cuidam da natureza, maravilho-sos, esforçados.

Também achamos importante verificar a rela-ção que o grupo possuía com os museus. Assim,indagamos se já haviam visitado algum museu, aoque 71% responderam que sim e 29% que não.Sobre o desejo de visitar um museu com objetosde povos indígenas, 98% disseram que gostariamde conhecer e apenas 2% responderam que não.Por fim, solicitamos que os alunos definissem umMuseu.

Dentre as respostas apresentadas, um grandepercentual define a instituição museal como umlocal para a guarda de objetos antigos, como sepode observar em algumas definições apresenta-das pelos estudantes:

1 Não conseguimos aplicar o questionário junto aos professores,devido a suas dificuldades para participar do projeto, conformeanalisado anteriormente. Contudo, a observação de suas falas eações, durante o desenvolvimento do projeto, permitiu-nos acoleta de dados.

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Um museu é um lugar com culturas antigas da Bahia.

Lugares onde tem passados das pessoas de antiga-mente.

É um lugar onde tem coisas antigas que fica expos-to para a gente ver e aprender.

Vale registrar que o questionário aplicado ge-rou uma expectativa nos alunos em relação à visi-ta ao Museu. Eles se mostraram entusiasmados ealegres. Aproveitamos também a oportunidade paraentregar aos alunos um formulário que deveria serassinado pelos pais, com uma autorização paraparticiparem da atividade de visita ao museu.

Refletindo sobre os dados e as ativi-dades desenvolvidas

Os dados coletados demonstram a inserção dosconteúdos referentes à história e culturas dos po-vos indígenas, principalmente no que se refere àpresença indígena antes da chegada dos portugue-ses no território brasileiro, auxiliando, portanto, àconstatação de que esses eram os habitantes ori-ginários do que veio a se constituir como a naçãobrasileira.

Contudo, a questão se complica um pouco maisem relação às informações referentes à existênciade povos indígenas no estado da Bahia, ou seja,percebemos que os alunos têm conhecimento vagoda existência de povos indígenas no território baia-no, demonstrando também que são vistos como umarealidade distante, abstrata e até mesmo idealiza-da. Além disso, percebemos que os nomes de po-vos indígenas mencionados revelam ou sugeremcerto exotismo e distância. De certo modo, acredi-tamos que a escola ajuda a construir uma visãoafastada e generalizante dos índios, pois, na maio-ria das vezes, sua existência é lembrada de formafolclorizante, no dia 19 de abril. A propósito destaquestão, trazemos o entendimento de Sampaio(2009, p. 1):

A escola é muito culpada por essa idéia de que nãohá mais índios perto de nós, porque retrata os índi-os no passado. Pegue um livro de História do Brasile vai estar escrito que os índios viviam em tal aldeia,com tais costumes, tudo no passado. A razão dainvisibilidade é essa cultura escolar defeituosa quetemos.

Com base na análise dos dados apresentados,desenvolvemos nosso plano de ação, obedecendoaos interesses dos estudantes e tendo como base aproblemática identificada sobre o ensino indígena.Nesse sentido, as ações foram estruturadas, to-mando-se como base os seguintes eixos: discutir ahistória indígena, suas origens, processos de des-truição, conquistas e avanços na atualidade; traba-lhar o distanciamento que as crianças têm dosíndios; desmistificar a generalidade atribuída àssociedades indígenas e discutir as especificidadesdos grupos indígenas na Bahia.

A primeira ação desenvolvida com os estudan-tes teve como foco a Arqueologia. Procuramosevidenciar a importância dessa ciência para a re-cuperação da história de nossos antepassados.Dividimos essa atividade em duas partes: uma teó-rica, na qual foram apresentados o conceito, o ob-jetivo e os termos relacionados ao campo da ciênciaarqueológica; e a parte prática, simulando um sítioarqueológico.2

Durante a atividade prática, a atitude dos alu-nos foi diferente. Ao contrário do que foi percebi-do durante a explanação teórica do assunto, verifi-camos que eles estavam calmos e mais atentos àsexplicações. Todos participaram ativamente daação, mostrando-se bastante motivados e interes-sados. Pudemos perceber a importância de criar-mos novas estratégias metodológicas educacionaisna tentativa de despertar a atenção dos alunos.

Nossa segunda atividade foi uma visita ao Mu-seu de Arqueologia e Etnologia da UniversidadeFederal da Bahia,3 que teve por objetivo trabalharcom os alunos a diversidade dos povos indígenasna Bahia e também a ideia de museu. Para tanto,utilizamos a exposição permanente do MAE/UFBA, buscando refletir sobre seu acervo. Valeregistrar que foram dois grupos em dias diferen-tes. Nosso objetivo era trabalhar com um grupode, no máximo, 30 alunos para darmos mais aten-ção a suas necessidades.

2 Para esta atividade, contamos com a colaboração da museólogaRafaela Caroline Noronha Almeida.3 O Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federalda Bahia é o único da cidade do Salvador que contempla a pre-servação, o estudo e a divulgação de objetos arqueológicos eetnológicos de origem indígena. Situa-se no centro histórico dacidade do Salvador, mais precisamente, no Terreiro de Jesus.

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No primeiro momento, a visita foi organizadade maneira a deixar os alunos livres para percor-rerem todo o espaço da exposição, procurando, comisso, evitar ansiedade com relação à visita e esti-mular a curiosidade em relação ao acervo expos-to. Os alunos foram orientados a escolher módulosda exposição, de acordo com suas preferências,para, em seguida, constituirmos grupos que seriammonitorados por nossa equipe de trabalho.4

Durante a visita, discutimos a visão apresenta-da pelos alunos no questionário, acerca do museue do índio relacionado com o passado. Com basenesses conceitos, informamos que ali eles iriamencontrar tanto objetos de povos indígenas que vi-vem atualmente no Brasil, quanto objetos arqueo-lógicos pertencentes a grupos indígenas que nãomais existem.

Consideramos, apoiadas em Penna (2009), quea visita consiste num processo de mediação, per-mitindo a formação do olhar do aluno enquantoespectador, para o exercício do ver e saber inter-pretar os bens culturais. Para reforçar esse pro-cesso, utilizamos duas atividades: manuseio com obarro e construção de um painel com pinturas.Escolhemos essas práticas, pois elas se relacio-nam diretamente com a coleção do museu, a cerâ-mica, bastante utilizada pelos indígenas do Brasil,e com o painel que faz referência à pintura rupes-tre. Assim, objetivamos uma participação dos alu-nos sob uma dimensão cognitiva, permitindo-lhesque, durante a execução das atividades, se apro-priassem da exposição.

No momento dessas atividades com o primei-ro grupo de alunos, o museu recebeu a visita deoutra escola. Verificamos que esses estudantes,ao se depararem com os grupos realizando as ati-vidades de cerâmica e pinturas esboçaram niti-damente interesse pela tarefa. Seus olharescuriosos e aguçados esperavam pelo convite, paratambém poder colocar a mão no barro e na tinta.A monitora, percebendo o interesse desse grupo,perguntou se gostariam de participar e a respostafoi afirmativa. Disponibilizamos os materiais ne-cessários e os estudantes também participaramdessa atividade prática.

Os alunos, por sua vez, mostraram-se extre-mamente motivados, confeccionando objetos rela-cionados aos índios, como, por exemplo, cachimbos,

vasos, panelas, dentre outros. O grupo de estudan-tes que trabalhou com pintura, envolveu-se de talmaneira na confecção do painel que, em seguida,várias alunas começaram a fazer pintura nos ros-tos, simulando pinturas corporais indígenas. Emrelação ao segundo grupo, destacamos a partici-pação de uma aluna considerada extremamentetímida e com dificuldades de expressão oral. Elaparticipou de forma ativa e dinâmica, elaborandodesenhos com cores escuras e sombrias. Um dosprofessores registrou que ela enfrenta problemasfamiliares, nutrindo um forte sentimento de aban-dono e solidão. Ao término da visita, o professorda disciplina de Geografia registrou que uma ativi-dade dessa natureza jamais seria esquecida pelosalunos.

Com a colaboração dos professores, solicita-mos, após as visitas, que os alunos elaborassemredações sobre os índios e o museu. A ideia eraavaliar se os objetivos haviam sido atingidos. Re-gistramos a seguir, alguns trechos desses depoi-mentos5:

Eu vi lá muito divertida no museu, como os dese-nhos nas pedras [fala das pinturas rupestres repre-sentadas em painéis no MAE] nós vimos que tambémonde enterrava os índios como bebê, adulto e ve-lho; eu mexi em argila e os outros escolheram pin-tar. Foi muito bom, a gente aprendeu as origens,porque cada tribo tem sua maneira de fazer o cai-xão [refere-se à urna funerária]. Lá tinha uns qua-dros muito bonitos, o que eu mais gostei foi o quadrodo homem cobra, se eu pudesse posaria. (J.S., 5ª A).

Na visita ao museu Etnológico eu vi muitas coisassobre os povos indígenas que gostei muito de sa-ber, objetos que eles fazem com as próprias mãos,eles podem viver em lugares diferentes dos nossos,mas [eles] são gente como nós, tem um que até usaóculos de grau. Assim eles vivem sua vida não im-porta os costumes diferentes dos nossos, mas coi-sas que todos precisam observar ... (M.S.R., 5ª A).

Durante o desenrolar das atividades com os alu-nos, nossa relação com os professores foi se in-

4 A nossa equipe de trabalho constituiu-se da seguinte forma:professora orientadora; as duas estagiárias da disciplina FCH262 - Estágio Supervisionado, e um monitor do Museu de Ar-queologia e Etnologia, estudante de graduação em Museologia,Alberto Magno.5 Preservamos a transcrição literal.

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tensificando cada vez mais. À medida que elesconstatavam a motivação dos discentes e nossapersistência com o trabalho, começaram a se mos-trar mais presentes, mais curiosos. Nesse pro-cesso, refletimos sobre a possibilidade de, nessemomento, realizar uma atividade com eles. Os pro-fessores envolvidos sugeriram a realização de umapalestra, que foi devidamente planejada. Convi-damos um antropólogo indigenista, para realizar apalestra intitulada História e Cultura Indígenas:Subsídios Sócio-Antropológicos para Profes-sores. Além da participação do corpo diretor e deuma quantidade expressiva de educadores, con-tamos com a presença da turma do 3° ano doensino médio.

Após analisar a questão da diversidade culturalhumana de maneira geral, o palestrante discutiu oconjunto dos preconceitos e estereótipos construí-dos historicamente a respeito dos povos indígenas,salientando a imensa variedade de povos e cultu-ras ainda existentes no Brasil. Enfatizou os proble-mas de invisibilidade sociopolítica e cultural queafetam particularmente os índios habitantes doNordeste brasileiro. Para ilustrar essa questão, opalestrante exibiu um documentário de 23 minutos,intitulado As Caravelas Passam. Logo após, soli-citou que o público relatasse suas impressões.Nesse momento, o grupo demonstrou bastante in-teresse em discutir a questão indígena. Percebe-mos que um dos pontos que mais chamou a atençãodo grupo, no filme, foi a enquete feita na cidade deFortaleza, que mostrou uma visão preconceituosae estereotipada sobre o índio.

Como última etapa da programação, foi plane-jada a realização de uma exposição temporária nopátio da escola com os trabalhos elaborados pelosalunos e a documentação fotográfica produzidadurante o projeto. Infelizmente, em função das fé-rias escolares e do término do semestre letivo naUFBA, essa atividade não pôde ser realizada.

Mesmo assim, os professores mostraram-sebastante envolvidos, tendo até mesmo divulgado aexperiência para docentes de outras escolas doensino fundamental e médio que chegaram a nossolicitar a reprodução das atividades em suas uni-dades. Além disso, fomos convidadas pelos pro-fessores a participar da elaboração do projetopolítico pedagógico da escola.

Considerações finaisCom base neste trabalho, apresentamos algu-

mas conclusões e recomendações. Com relação àrecusa dos professores em participar de forma di-reta do projeto, isso nos faz pensar que os traba-lhos no âmbito da escola também necessitam deprocessos mais intensos e contínuos de pesquisa,envolvendo observações criteriosas e cuidadosas.Somente desta maneira conseguiremos nos apro-ximar da realidade e do cotidiano dos professores,envolvidos numa dinâmica às vezes perversa queos deixa sozinhos e desamparados para lidar coma complexidade da experiência existencial dos alu-nos e de si mesmos. Ampliar estudos dessa natu-reza também poderá contribuir para a reflexãosobre essas questões e para a consequente ampli-ação do conhecimento sobre a temática.

Conforme apresentado neste artigo, é possívelperceber que os alunos ainda têm informaçõesgeneralizadas e superficiais com relação aos po-vos indígenas no Brasil. A análise demonstra queos índios ainda são vistos no passado, de formadistante e bastante idealizada. Isso demonstra anecessidade de continuarmos investindo em pro-gramas de ensino permanentes que possam des-mistificar essa realidade. Nesse sentido, projetoscomo este podem auxiliar no sentido de pensar al-guns caminhos a serem seguidos.

Percebemos, com base nas atividades realiza-das com os alunos, que estes se sentem motivadospara o processo de aprendizagem, se este for pen-sado de forma a propiciar o desenvolvimento desua criatividade. É assim que concebemos o tra-balho de ação cultural.

O presente estudo reafirma que uma visita gui-ada não é suficiente para se compor ações educa-tivas da instituição. É preciso pensar também numapolítica educacional mais participativa e inclusiva.Recomenda-se também que as exposições sejamanalisadas de maneira crítica, procurando apresen-tar versões diversificadas de nossa história por meiodos processos de mediação atualizados.

O MAE/UFBA, enquanto única instituição nacidade de Salvador que trata da temática indígena,exerce um papel importante diante dos novos de-safios implicados na Lei 11.645/08, pois a educa-ção deve ser uma das funções centrais dos museus.

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Seria oportuno, talvez, investir no desenvolvimentode atividades permanentes mediante convênios comas Secretarias de Educação e Cultura, abordandoa problemática aqui enfocada.

De maneira geral, consideramos que as experi-ências de integração no campo da educação e cul-tura precisam ser mais ilustradas com dadosempíricos que auxiliem os professores a refletirsobre suas práticas. Nesse sentido, os estudos decaso podem fornecer subsídios para um processode reflexão mais amplo sobre a temática em suareal complexidade.

Com a narrativa desta experiência pretende-mos contribuir com as reflexões acerca do pro-cesso de aplicação dos conteúdos referentes àhistória e culturas indígenas nas escolas públicas eparticulares dos níveis fundamental e médio, reco-

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Recebido em 25.10.09Aprovado em 28.10.09

nhecendo também que é necessário ampliarmosestudos dessa natureza. Desta forma teremos con-dições, ou melhor, conseguiremos mais dados parainvestirmos na construção de políticas públicaseducacionais e culturais que possam contribuir paraos processos de reflexão acerca da nossa históriae diversidade sociocultural.

Com este projeto, passamos a visualizar novoscaminhos no campo da Museologia e hoje acredi-tamos que muito pode ser feito no âmbito social eda educação. Crescemos pessoal e profissional-mente. Nossas leituras, nossa vivência com os alu-nos e com os professores permitiram-nos descobrirum mundo novo. Na execução das atividades,aprendemos o valor da troca, do incentivo e dapersistência, aspectos que sintetizam o fazer nocampo da ação cultural.

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Cecília McCallum

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ESCRITO NO CORPO: GÊNERO, EDUCAÇÃO E SOCIALIDADENA AMAZÔNIA NUMA PERSPECTIVA KAXINAWÁ

Cecília McCallum *

RESUMO 1

Nos anos 1980, a Comissão Pro-Índio do Acre (CPI-Acre) desenvolveu um projetoeducacional que visava treinar professores indígenas, apoiá-los na alfabetização deseus parentes e criar escolas verdadeiramente indígenas. O seu objetivo eraempoderar2 os índios e pôr um fim às relações de escravidão, baseadas noendividamento permanente para com seus patrões e comerciantes brasileiros aosquais haviam sido submetidos historicamente. Este artigo apresenta uma discussãoetnográfica dos primeiros anos do projeto do CPI-Acre, focando as escolas Kaxinawá.Com poucas exceções, todos os professores escolhidos pelos Kaxinawá e todos osalunos eram do sexo masculino. Este artigo discute a relação entre os conceitos degênero, pessoa, socialidade3 e educação escolar, entre os Kaxinawá, focalizando aquestão da ausência das mulheres nas salas de aula, naquela época. Levanta a questãodo risco de desempoderamento das mulheres no dinâmico contexto social, político eeconômico em que estavam inseridas. A discussão etnográfica mostra que a educaçãoescolar feminina não era entendida como empoderamento. Pelo contrário, as mulheresse preocupavam em fortalecer a sua participação na produção de socialidade,procurando aumentar o seu acesso à arte de tecer o desenho gráfico. O artigo sugereque a grande predominância de homens entre os professores indígenas no Brasilpode ser explicada como o resultado de lógicas semelhantes, no que diz respeito agênero, epistemologia e socialidade entre outros povos indígenas.

Palavras-chave: Educação Indígena – Gênero – Kaxinawá – Escrita – DesenhoGráfico

* PhD. Doctorate in Social Anthropology, LSE, Univ. of London. Professor Adjunto na Universidade Federal da Bahia.Endereço: UFBA, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Antropologia. Estrada de São Lázaro s/n,Federação – 40000-000 Salvador, BA. E-mail: [email protected] Versão reescrita do artigo apresentado no IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (APA), Painel Convidado III,‘Escalas Etnográficas no Estudo de Gênero’, tendo como coordenadoras Sally Cole e Cecília McCallum, em Lisboa, Portugal, de 9e 11 de setembro, 2009; assim como da palestra proferida no seminário ‘Bodies, Ethnographic Perspectives from South America’,no Centre for Amerindian, Latin American and Caribbean Studies (CAS), Postgraduate Workshop, University of St Andrews, de 14a 15 de setembro, 2009. Quero agradecer, profundamente, aos coordenadores e participantes desses eventos; aos meus colegas naUNEB, onde, como Professora Visitante no Mestrado de Educação e Contemporaneidade, me inspirei em escrever esse artigo; aMarcos Luciano Messeder e José Augusto Laranjeiras Sampaio, coordenadores desse número 33 da Revista da FAEEBA: educação econtemporaneidade; a Luisa Elvira Belaunde; a Jacques Jules Sonneville, o editor executivo da Revista da FAEEBA; e, sobretudo, aosmeus mestres e mestras Kaxinawá, que me ensinaram a antropologia verdadeira.2 Empoderar = dar poder a, emancipar, incluir. Verbo derivado de “empoderamento”, tradução do termo inglês empowerment.3 ‘Socialidade’ é um conceito antropológico referente às formas em que se vive socialmente e se concebe a vida social, que se põeem contra-distinção com a noção durkheimiana de ‘sociedade’. McCallum (2001; 1998) desenvolve a noção de socialidade emrelação à etnografia Kaxinawá e de outros povos indígenas das terras baixas da América do sul..

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ABSTRACTWRITTEN IN THE BODY: GENDER, EDUCATION AND SOCIALITY INAMAZONIA FROM THE CASHINAHUA PERSPECTIVE

In the 1980s, the Pro-Indian Commission of the state of Acre developed an educationalproject aimed at training indigenous teachers, enabling them to teach literacy skills totheir relatives and to create indigenous schools. The object was to empower indigenousto escape debt slavery relations with Brazilian bosses and trades. The article presentsan ethnographic discussion of the first years of this project, focusing on the Cashinahuaschools. With few exceptions, all the teachers chosen by the Cashinahua were maleand so were their pupils. This paper discusses the relationship between gender,personhood, sociality and school education among the Cashinahua, focusing on thequestion of women’s absence from the classroom in that period. It asks whetherwomen thereby ran the risk of disempowerment in the context of the social, politicaland economic developments to which they were subject. The ethnographic discussionshows that from an indigenous perspective, female school education was not seen asempowerment. Rather, women were preoccupied in strengthening female participationin the production of sociality, seeking to widen their access to the art of weavinggraphic design. The paper suggests that the overwhelming predominance of menamong indigenous schoolteachers in Brazil may be explained as the result of theoperation of similar logics with respect to gender, epistemology and sociality amongother indigenous peoples.

Keywords: Indigenous Education – Gender – Cashinahua – Writing – Graphic Design

No verão acreano de 1985, eu me encontrei noleste deste estado amazônico, caminhando nas prai-as e dentro das águas rasas e cristalinas do rioJordão, durante uma viagem que me levou a trêsseringais e a três escolas recém-criadas no territó-rio indígena dos Kaxinawá. Eu tinha dois motivospor estar lá: como antropóloga, na fase final depesquisa de campo para um doutoramento sobregênero e organização social entre os Kaxinawá (umpovo que fala uma língua Pano)4; e como assesso-ra voluntária para a Comissão Pró-Índio do Acre,encarregada de visitar e ‘animar’ as escolas.

Rapidamente constatei que só havia homens ejovens rapazes entre os alunos e professores Ka-xinawá do Jordão – com exceção de uma alunaadolescente, filha de um chefe indígena. Curiosasobre os motivos da ausência feminina das escolase preocupada com as suas possíveis consequênci-as para o futuro das mulheres indígenas, as quais(me parecia) corriam o risco de sofrer um pro-gressivo ‘desempoderamento’, chamei uma reu-nião de mulheres para discutir a sua relação com anova instituição escolar.

A reunião aconteceu durante um fim de sema-na de festividades e encontros políticos organiza-dos pelas lideranças de um dos seringais. Não erapouca a minha surpresa quando, naquele domingoensolarado na sede do Seringal Alto do Bode, mu-lher após mulher se levantou para afirmar que nãotinha interesse em aprender a ‘escrita dos estran-geiros’ – nawan kene – mas que queria muito es-tudar ‘nossa escrita’ – nukun kene – tambémreferida como ‘escrita verdadeira’ – kene kuin –expressões que se referem aos desenhos pintadossobre os corpos das pessoas e alguns artefatos, outecidos nas redes e outros objetos de algodão cria-dos pelas mulheres5.

Como explicar a postura das mulheres do rioJordão frente às novas escolas? Que explicaçãodar aos termos em que elas expressaram seu de-sinteresse pela nawan kene? Neste artigo, explo-

4 Tese defendida no London School of Economics and PoliticalScience, University of London, em 1989 (MCCALLUM, 1989).5 A língua utilizada durante a reunião era Kaxinawá.

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ro o contexto mais amplo em que as mulheres semanifestaram, bem como os significados imedia-tos por trás das respostas dadas às minhas indaga-ções durante a reunião. Através desta discussão,

abordo a relação entre gênero, socialidade e edu-cação nessa sociedade indígena, com o intuito deabrir um diálogo sobre o tema em relação a outrospovos amazônicos e sul-americanos.

Rede Kaxinawá.- Foto © Peter Gow

Kaxinawá do Rio Purus, 1984. - Foto © Cecília McCallum

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Na literatura etnográfica sobre os povos indí-genas das terras baixas da América do Sul, o gê-nero se destaca como fator estruturante central davida social, econômica e política. Embora qualqueretnografia evidencie a sua centralidade, só algunsestudos se debruçam especificamente sobre asformas culturais através das quais o gênero é con-cebido e vivido, no intuito de explorar as implica-ções estruturais e processuais da categoria6. Noentanto, na literatura sobre educação indígena, quetem crescido de um modo impressionante nas últi-mas duas décadas, gênero continua ignorado comoquestão. Este artigo faz uma exploração prelimi-nar do tema, focando o caso Kaxinawá, atravésde uma discussão histórica e etnográfica da situa-ção que encontrei no rio Jordão, afluente do rioTarauacá, em 1985.

***

Na epistemologia Kaxinawá, o saber é adquiri-do de um modo processual e gradual, sendo inscri-to no corpo como resultado do trabalho conscientedos parentes de uma criança e, também, das suasexperiências corporais no mundo (MCCALLUM,1996, 1999, 2001; KENSINGER, 1995). A apren-dizagem acontece como resultado do encontro en-tre ações humanas, tanto das pessoas e dos espíritosque criam o ‘corpo que sabe’, quanto da ação dopróprio aprendiz, que se engaja no mundo de for-ma direcionada7. Quando passa a primeira infân-cia, e a criança troca os dentes, o direcionamentoda aprendizagem se dá a partir da distinção de gê-nero e os corpos são moldados através do engaja-mento dos aprendizes em atividades econômicasdistintas. Desse modo, o gênero é criado como umaspecto central da pessoa, tomando a forma desaberes encorporados que possibilitem a participa-ção ativa do neófito nos processos de produção ereprodução (MCCALLUM, 1999; BELAÚNDE,2005). Homens e mulheres dotados de ação hu-mana generizada interagem na produção da vidasocial. O resultado das atividades complementa-res masculinas e femininas é a produção da socia-lidade, que emerge na busca diária para ‘viverbem’, ideal de vida coletiva de tantos povos ama-zônicos (OVERING, 1991). Desse modo, a episte-mologia Kaxinawá, como a de outros povosindígenas das Terras Baixas, é também uma teoria

social, pois o corpo generizado – ou seja, o ‘corpoque sabe’ masculino ou feminino (portanto dotadode ação humana) – fundamenta a constituição dasocialidade. A forma com que homens e mulheresse engajam em relações sociais deve-se a sua ca-pacitação como ‘Gente Verdadeira’ ou Huni Kuin– a auto-denominação Kaxinawá – ou melhor,como ainbu kuin (mulheres verdadeiras) e hunikuin (homens verdadeiros).

Desde a chegada dos exploradores e dos colo-nos brasileiros e peruanos no século XIX, as práti-cas sociais que levam à formação de pessoasdotadas de saberes e capacidades articulam-se ouconfrontam-se com os processos sociais que en-volvem os Kaxinawá com os estados-nações bra-sileiros e peruanos e seus agentes. Apesar dasprevisões pessimistas sobre etnocídio e acultura-ção, este artigo argumenta que o mundo social in-dígena tem mantido sua autonomia no que dizrespeito às formas de transmissão de saber e, demodo integrado, no que diz respeito à criação depessoas verdadeiras e à reprodução de uma socia-lidade própria. Mesmo assim, o mundo indígena estáem evidente transformação, frente às pressõesexternas e às inovações trazidas de fora, a exem-plo da educação escolar. Ao focar o tema da edu-cação, é necessário explorar a interface entre aspráticas geridas, segundo a lógica da epistemolo-gia e da ontologia indígenas, e aquelas práticas einstituições que surgem nos espaços de interaçãocom esses outros mundos sociais. Nesse sentido,este artigo procura localizar a chegada da escolano Jordão, com suas distintas implicações e senti-dos para as mulheres e os homens Kaxinawá, fren-te ao contexto político e econômico em que ocorreu.

Realizei a pesquisa de campo entre 1983 e 1985,morando durante esse período de quase dois anoscom os Kaxinawá no Acre, sobretudo, na aldeiade Cano Recreio, na área indígena do alto Purus.Em 1985, estimava-se a população Kaxinawá, noBrasil, em 2.090 e no lado peruano da fronteira em

6 Por exemplo, ver Overing (1986, 1988), Gow (1991),McCallum (2001), Belaunde (2005). Na literatura etnológicabrasileira, ver Lasmar (2005),

Dossiê Mulheres Indígenas (1999), McCallum (1999), Lea (1986,1994).7 Ver Gow (2009) e Belaunde (2009), sobre o papel das plantase dos espíritos da floresta e do rio na epistemologia indígena naAmazônia.

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850 (MCCALLUM, 1989). Desses, em torno de400 moravam na área do Purus. Havia poucosKaxinawá letrados no Brasil naquela época, en-quanto no Peru a política nacional de educaçãohavia levado à formação de uma geração de jo-vens indígenas letrados (BELAUNDE, 2009). NoBrasil, a situação escolar dos Kaxinawá era se-melhante àquela encontrada entre a grande maio-ria dos outros povos indígenas. As poucas escolaspara índios ensinavam um currículo desenhado, deacordo com um projeto civilizatório missionário e/ou nacionalista (SILVA; FERREIRA, 2000). A pro-posta era aculturar os índios, transformá-los em‘cidadãos nacionais’, segundo um modelo fortemen-te marcado por uma ideologia de gênero e classe,no qual os rapazes se tornariam agricultores sim-ples e as moças donas de casa humildes, mas ca-pacitadas como zeladoras da higiene, dentre outrashabilidades (TAUKANE, 1999). Os professoresdessas escolas, que eram ‘para os índios’ e não‘dos índios’, eram não-indígenas.

Desde então, a situação tem-se transformadoradicalmente (GRUPIONI, 2006). Os povos indí-genas apropriam-se cada vez mais da escola indí-gena, transformando-a em instituições próprias, emmaior ou menor grau. Um discurso que concebe aeducação como ferramenta de ‘resgate cultural’ etrata a escola como meio de afirmação de umaidentidade específica espalha-se8. A política naci-onal adotada pelo MEC reconhece a necessidadede adaptar o ano curricular aos calendários rituaise de trabalho, de modificar os currículos para in-corporar elementos culturais específicos, e de in-centivar a educação bilíngue. Adicionalmente,conforme constatado no censo escolar de 2003, amaioria dos professores são índios. O censo indi-cou que 85% dos 7.000 professores, que ensina-vam para 147.000 alunos em 2.079 escolasindígenas no Brasil, eram indígenas (MATOS;MONTE 2006, p. 76-77). Um novo censo, em2005, documentou um crescimento nessas taxas eainda mostrou que a maioria dos professores indí-genas eram homens, em nítido contraste com opadrão nacional, no qual a maioria desses profissi-onais são mulheres (MEC/INEP 2007).

Como explicar essa diferença? Para entendera predominância de homens entre os professoresindígenas, o primeiro passo é investigar etnografi-

camente os conceitos e as práticas relacionados agênero, nas suas formas particulares, ou seja, con-textualizados histórica e geograficamente. Comojá mencionei, quando cheguei à área indígena dorio Jordão, estava concluindo uma pesquisa sobreesses temas. Já havia constatado o padrão básicodas formas em que o gênero é construído entre osKaxinawá do rio Purus e havia entendido a suacentralidade para o ‘viver bem’. Isso tornou possí-vel procurar as diferenças e as continuidades en-tre o Purus e o Jordão, no que diz respeito ao gênero.

No meu doutorado, explorei os aspectos pro-cessuais e estruturais da relação entre parentesco,casamento e gênero. Kensinger realizou estudospioneiros sobre parentesco nos anos 1960, consta-tando que os Kaxinawá do alto Purus, no Peru,usam uma terminologia de parentesco de tipo kari-era, que é compatível com o sistema onomásticode gerações alternadas (KENSINGER, 1984). Asociedade é organizada em metades exogâmicas,divididas em quatro seções ou grupos de nomea-ção (KENSINGER, 1995). Com a divisão de gê-nero, são oito sub-seções ou classes matrimonias(D’ANS, 1983). Ao receber um ‘nome verdadei-ro’ ou kena kuin, a pessoa ingressa em uma des-sas sub-seções, determinadas pelo sistemaonomástico. Há uma preferência para casamentoentre primos bilateralmente cruzados, que favore-ce a endogamia residencial.

Kensinger constatou que a residência após o ca-samento é uxorilocal9, o que leva a uma maior mobi-lidade masculina entre aldeias. Os jovens que, ao secasarem, mudam de casa, começam a vida matrimo-nial trabalhando para os sogros e, eventualmente,poderão se tornar líderes, quando as suas filhas secasam. Cada assentamento ou aldeia depende dasatividades de um líder principal masculino. O seu cu-nhado ou txai (primo cruzado), em muitos casos, é oco-líder da aldeia (KENSINGER, 1995).

8 A noção de ‘resgate cultural’ tem instigado duras críticas

– ver Sampaio (2006). No entanto, o uso por grupos e organi-zações indígenas dessa expressão, bem com a adoção da noçãode ‘cultura’ e da identidade atribuída ao ‘índio brasileiro’ temsido notada entre diversos grupos, passando a se tornar centralnas suas estratégias para captar recursos e desenvolver e refor-çar a autonomia. Ver Collet (2006), Weber (2006), sobre cultu-ra, e McCallum (1997), sobre a apropriação da identidade do‘índio’ entre os Kaxinawá.9 O esposo reside junto com a esposa e a sua família.

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No meu trabalho no alto Purus brasileiro, cons-tatei essas mesmas formas e práticas culturais esociais. No entanto, aplicando uma perspectiva degênero na pesquisa, pude acrescentar novos da-dos e modificar os termos analíticos utilizados, paradar maior ênfase aos aspectos processuais consti-tutivos da socialidade, inclusive o papel da distin-ção de gênero nesses processos. Na minha análise,em vez de dar prioridade à relação entre cunhadoscomo eixo da vida política aldeã, mostrei que a re-lação entre irmãos de sexos cruzados (irmãos eirmãs) pode ser vista como a relação axial que es-trutura a vida social das aldeias Kaxinawá. Docu-mentei a instituição de liderança feminina, que operaem complementaridade com a liderança masculi-na, na organização da vida cotidiana da aldeia edas relações com o exterior10. Procurei entenderas relações entre homens e mulheres à luz da et-nografia do gênero e da vida social, para respon-der às inquietações expressas na antropologiafeminista da época sobre poder masculino, bemcomo aos debates na etnologia indígena sobre so-ciedades igualitárias11.

No Jordão, encontrei as mesmas formas cultu-rais e práticas sociais documentadas no Purus, oque não surpreende, dadas as origens históricasem comum da população Kaxinawá. Ao mesmotempo, pude notar algumas diferenças, sobretudoestruturais. Aqui vou analisar essas diferenças, dis-cutindo a sua implicação para as relações entrehomens e mulheres, através da exposição da etno-grafia do Jordão, realizada durante a primeira fasedo estabelecimento da educação escolar Kaxina-wá. Recorro ao trabalho de outros etnógrafos daárea, que versam sobre o contexto econômico epolítico em que as primeiras escolas, dirigidas porprofessores Huni Kuin, começaram a funcionar.

Além de chamar atenção para a ausência de umadiscussão sobre gênero na literatura emergente so-bre educação indígena no Brasil, à luz da etnografiatratada aqui, defendo a necessidade de considerar ocontexto social, político e econômico da emergên-cia de padrões de gênero dentro das escolas e doprocesso de escolarização dos povos indígenas. Aetnografia mostra que o processo político em rela-ção aos direitos indígenas à terra configurou as re-lações de gênero inter-étnicas e, ao mesmo tempo,influenciou as relações entre homens e mulheres

Kaxinawá. A ocupação da terra e a organizaçãodos processos produtivos, junto às mudanças histó-ricas em curso, ou seja, frente à economia regionale nacional, contribuíram para moldar os padrões degênero na educação indígena. O meu estudo tece oargumento de que a ausência relativa das mulheresdo programa de educação escolar, nos primeirosanos, emergiu no contexto desses processos históri-cos e se deve parcialmente a esses. No entanto,mostra também que as formas indígenas de viver ede produzir socialidade, centrada na fabricação doscorpos como sujeitos generizados12 e impregnadosde saber e de capacidades – ou seja – como ‘GenteVerdadeira’ – exerceu um papel fundamental nestahistória.

O estabelecimento da educação es-colar Kaxinawá nos anos 1980

No começo de 1984, não havia uma escola emRecreio, aldeia cuja população cresceu de cerca100 pessoas para 150 naquele ano. Os moradoreseram descendentes do grupo que migrou do rioEnvira para o Peru, no começo do século XX, fu-gindo das invasões promovidas pelos seringalistase seus empregados. A maioria dos habitantes deRecreio havia chegada do Peru, durante a décadaanterior à minha pesquisa de campo e, por isso,alguns jovens eram letrados em espanhol e emhantxa huni kuin (Kaxinawá).

O governo brasileiro promulgava, na época, umprograma nacional para a redução do analfabetis-mo, o MOBRAL, e, em abril de 2004, o prefeito daVila Manuel Urbano, a mais próxima à aldeia (uns2 ou 3 dias de viagem por canoa motorizada), en-viou um ‘batelão’ com uma equipe encarregada delocalizar e contratar ‘professores’ entre os ribeiri-nhos e os seringueiros da zona rural do município.A expedição era chefiada pela irmã do prefeito. Obarco motorizado, carregando merenda escolar ealguns livros-textos do MOBRAL, navegava nas

10 Desde então, outros etnólogos documentaram a instituição deliderança feminina entre outros povos amazônicos.11 Sobre relações de poder e gênero nas sociedades amazônicas,ver Overing (1986). Para os debates sobre sociedades igualitári-as, vide Overing (1989).12 Do inglês ‘gendered’, ou seja, atribuído um gênero masculinoou feminino.

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águas turvas e cheias de troncos de árvore do rioPurus, no trecho entre Recreio e Fronteira, quan-do eu e alguns companheiros descíamos o rio decanoa, voltando de uma visita a outra aldeia Kaxi-nawá. Entre os meus companheiros, encontrava-se o Paulo Lopes, jovem sobrinho do líder deRecreio, natural do Brasil (nascido no Acre, numseringal do rio Envira), e que, ainda bebê, haviamigrado para a aldeia Kaxinawá de Balta no Peru.Ali estudou na escola bilíngue criada pelo “ILV”sob a aprovação do Ministerio de Educación de

Peru13. Quando a irmã do prefeito nos chamou,subi no batelão onde ela contou os motivos da ex-pedição, me perguntando se eu conhecia alguémque fosse alfabetizado e pudesse ser professorentre os índios. Respondi que conheci várias pes-soas e apontei para Paulo como um exemplo. Ojovem foi contratado na hora, recebeu 18.000 cru-zeiros, uma cartilha do MOBRAL e um breve trei-namento. O batelão prosseguiu até Recreio, ondenos deixou junto com algumas caixas de merendaescolar.

Jovens Kaxinawá estudando na casa da antropóloga, Recreio, Alto Purus, 1984 14

Nos meses seguintes, Paulo chegou a dar au-las, principalmente para homens adultos e algunsrapazes. O seu tio, Pancho Lopes, o líder, insistiuque eu ensinasse a quatro meninas adolescentes aler e escrever. Quando sugeri que poderiam estu-dar com Paulo, o professor oficial da aldeia, Pan-cho me explicou que seria inadequado, já quedespertaria um interesse sexual entre os jovens.Nessa idade, o importante era canalizar e dirigir asexualidade para se expressar em relações apro-priadas (entre primos cruzados, por exemplo). Umadas minhas alunas, por exemplo, a sobrinha de

Pancho (filha da sua irmã consangüínea ZD) esta-va recém-casada com o seu filho. Uma outra alu-na era filha do próprio Pancho. Ela veio a se casarno final do ano com o filho do chefe de uma aldeiaKaxinawá no Peru. O genro mudou para Recreioe para a casa do sogro. A sexualidade dessas jo-vens foi protegida da tentação de namorar um jo-

13 O ILV, sigla para o Instituto Lingüístico de Verão, é umaorganização missionária protestante de origem norteamericana,cuja missão principal é a tradução da Bíblia.14 Foto © Cecília McCallum

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vem professor (mais atrativo ainda, porque rece-bia um salário). Obedecendo ao Pancho, comeceia dar aulas para as meninas, mas sem grandes re-sultados.

Nos anos seguintes, Paulo Lopes se estabele-ceu como professor, viajando repetidamente à ca-pital do estado, Rio Branco, para os cursos detreinamento oferecidos pela Comissão Pró-Índiodo Acre, uma ONG fundada em 197915. Entre osfundadores da CPI/Acre, se destacaram o antro-pólogo acreano Terri Aquino e dois líderes – Kaxi-nawá – Sueiro Sales, do território indígena do Jordão,e Vicente Sabóia do Humaitá (AQUINO, 2006).A nova ONG se empenhou em criar um projeto deeducação indígena batizado ‘Uma experiência deautoria’, para treinar professores selecionadosentre os dez povos indígenas da região, montarescolas nas aldeias e, então, administrar as suasatividades. O primeiro curso aconteceu em RioBranco, em 1983, e, depois, o treinamento prosse-guiu em cursos anuais.

Os objetivos políticos e a ideologia do projetoda CPI-Acre eram radicalmente diferentes dos quehaviam inspirado a educação indígena até entãono Brasil. O objetivo imediato era treinar os pro-fessores e então apoiar os seus esforços em alfa-betizar e ensinar matemática básica para os seusparentes nas aldeias. O objetivo maior era empo-derar os alunos, dando-lhes a capacidade de en-tender as contas e de administrar o comércio dosseus produtos, a fim de acabar com a escravidãodas dívidas, às quais haviam sido submetidos, des-de a chegada dos seringalistas no Acre e no Terri-tório Kaxinawá, no final do Século XIX. Asambições políticas dos fundadores do CPI incluí-am a de assegurar os direitos à terra: as escolasindígenas eram um dos meios para alcançar essefim. A independência econômica seria alcançadae, então, mantida através do estabelecimento decooperativas indígenas para a venda dos seus pro-dutos e a compra de mercadorias essenciais, parao transporte e a redistribuição nas áreas indígenas.O trabalho acadêmico de Aquino (1977) forneceua base analítica para o projeto do CPI-Acre. Tra-ta-se de um estudo de inserção Kaxinawá na eco-nomia regional, da produção e do comércio daborracha do Tarauacá e do Jordão.

Essa produção estava estruturada segundo osistema de aviamento, em que grandes casas co-merciais rio abaixo, em Manaus e Belém, adianta-vam mercadorias aos comerciantes intermediáriosnos centros urbanos mais próximos aos seringais.Esses, por sua vez, as passavam aos seringalistasque distribuíam as mercadorias aos seringueiros queviviam na floresta e produziam a borracha. O sis-tema cria uma cadeia de dívidas e resulta, na mai-oria dos casos, no permanente endividamento dosseringueiros, que raramente conseguem pagar ospreços inflacionados, cobrados pelos gerentes dosbarracões dos seringais.

Aquino descreve o contexto da criação do CPI-Acre assim:

Minhas pesquisas de campo entre os Kaxinawá doJordão, índios seringueiros do Acre, haviam me en-sinado que quem controla a esfera da comercializa-ção nos seringais também domina a floresta e aspopulações locais. O trabalho, então, foi o de criaruma alternativa econômica aos ‘patrões’, rompendocom o monopólio do ‘barracão’, permitindo, assim,que os próprios Kaxinawá comercializassem livre-mente suas produções de borracha na cidade e, so-bretudo, se mobilizassem politicamente na luta pelademarcação de suas terras (AQUINO, 2006, p. 18).

Em 1978, Aquino organizou a ida de duas pro-fessoras não-indígenas para o Jordão e o Humaitá“para criar uma escola..., com a finalidade de en-sinar aos índios como organiza a contabilidade desua Cooperativa e como se relacionar com os co-merciantes da cidade de Tarauacá” (AQUINO,2006, p. 18). O antropólogo agia como assessor domovimento cooperativista incipiente dos Kaxina-wá. Junto com Sueiro, tornou-se uma figura cen-tral na luta desse povo para assegurar os seusdireitos à terra. Os dois amigos visitaram as famí-lias dos Kaxinawá brasileiras que, naquela época,viviam espalhadas nos seringais, porque os homenstrabalhavam para patrões Cariús (como são cha-mados os não-indígenas no Acre) na produção deborracha. Durante as suas viagens, encorajaramos Kaxinawá a retornar ao Jordão, onde ainda ha-via uma concentração de Kaxinawá nos seringaisvizinhos ao seringal de Sueiro, que o havia herdado

15 Paulo Lopes foi contratado por um órgão governamental, oque possibilitou o recebimento regular de um salário.

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de uma viúva Cariú. Como empregado da FUNAInos anos 1970, Aquino fez o levantamento do terri-tório e da população indígena do estado, necessá-rio para então proceder ao processo legal dedemarcação. Demitido em 1980 por motivos políti-cos, continuou a lutar para a independência econô-mica e também cultural desses povos através daCPI, obtendo recursos para as cooperativas e oprojeto escolar e focando a questão da terra, porentender que tudo dependia da legalização de suaposse.

O impacto dessas atividades sobre os Kaxina-wá da área do Tarauacá e do Jordão foi profundo.Muitas famílias que haviam se espalhado nessagrande região, nos finais da década de 1920, retor-naram ao Jordão. A população indígena do rio pu-lou de 383, em 1975, para 774, em 1983 (AQUINO;IGLESIAS, 1994, p. 32). Os comerciantes e pa-trões reagiram contra o movimento para a inde-pendência econômica. Em 1979, Sueiro levou umacarga de borracha, financiada por uma ONG in-ternacional (Pão para o Mundo), para sua comer-cialização na cidade de Tarauacá. Os comerciantesinstigaram a polícia a apreender a borracha e man-dar uma delegação atrás de Aquino, que, no entan-to, já estava em outra área, nas cabeceiras do Juruá,quando os policiais chegaram ao Jordão (AQUI-NO, 2006. p. 19).

Quando cheguei no Jordão, em 1985, seis anosmais tarde, a maior parte da população Kaxinawáda região do rio Tarauacá e suas cabeceiras haviase estabelecido em seis seringais ao longo do rioJordão. A cooperativa lutava para sobreviver fi-nanceiramente. Ainda dependia de recursos exter-nos. As hostilidades com os comerciantes tinhamdiminuído, mas entre os Cariús permanecia um fun-do de preconceitos e um antagonismo latente con-tra os ‘caboclos‘, como chamavam os indígenas.Durante a viagem de dez dias de Tarauacá até oJordão, eu e a minha colega, na missão de asses-sorar as escolas indígenas, passávamos cada noitena casa de um seringueiro ou um patrão Cariú.Todas as noites, ouvíamos discursos críticos con-tra os ‘caboclos’, repletos dos estereótipos e pre-conceitos reportados em Aquino (1977). Nossasanfitriãs expressaram nojo da comida dos índios,falaram do seu medo de serem assassinadas poreles (mencionando uma história recente de um ata-

que contra uma família Cariú, residente numa áreareivindicada pelos Kaxinawá); acusaram os índiosde serem preguiçosos e incapazes de alcançar umaboa produtividade de borracha, sem se submete-rem à autoridade de um patrão branco16. Os pre-conceitos moldavam as suas reações à luta políticados Kaxinawá. No entanto, nossas anfitriãs expres-saram admiração e até simpatia pelos indivíduosque mais conheciam entre os ‘caboclos’, Sueiro eo seu filho Getúlio, novo líder da área do Jordão.Esses, sim, eram ‘civilizados’ e ‘amansados’ e, noscontaram, verdadeiras exceções à regra.

Seis professores do rio Jordão participaram de12 cursos providenciados pela CPI-Acre, para oprojeto ‘Uma experiência de autoria’ entre 1983 e1994 (AQUINO; IGLESIAS, 1994, p. 39). Parachegar ao Rio Branco, os professores tiveram quepassar por esse ambiente de hostilidade e precon-ceito. As emoções e os conceitos que formam suasidentidades são forjados através dessas experiên-cias de estereotipagem negativa, mesmo havendoinfluências mais positivas, entre as quais as atitu-des e ações dos assessores, antropólogos e outros‘amigos dos índios’.

No Jordão, entre agosto e outubro 1985, teste-munhei o início de um renascimento cultural e lin-güístico, que cresceu e floresceu nas subseqüentesdécadas (WEBER, 2006; AQUINO; IGLESIAS,1994). As pessoas se comunicavam em hantxakuin e não em português e se empenhavam emorganizar atividades rituais e festivas. Conheciamos detentores de saberes e capacidades tradicio-nais e se preocupavam com a transmissão desses.Enquanto a minha companheira, Bárbara, subiu orio para visitar as escolas nos últimos três serin-gais, eu visitava os três primeiros, Boa Esperança,Alto do Bode e Três Fazendas. Nesses lugares,passei um tempo com as mulheres, como eu haviafeito no Purus, mas também conversei intensamentecom informantes masculinos, entre os quais líde-res de canto, professores, gerentes das cantinasda cooperativa e lideranças. Gravei mitos, obser-vei e participei de rituais e de atividades cotidia-nas, além de observar as escolas.

16 Aquino e Iglesias (1994, p. 33) afirmam que, após a re-colo-nização do Jordão, houve um progressivo aumento na produçãode borracha, chegando a 32 toneladas em 1991.

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A preocupação principal dos meus informantesmasculinos era a luta pela terra e para assegurar acontinuidade e viabilidade da cooperativa. Meuscadernos de campo estão repletos de notas sobreproblemas no movimento cooperativista, ligados adisputas entre os seringueiros e os gerentes dascantinas. Presenciei várias reuniões políticas or-ganizadas para lidar com essas disputas e essesproblemas, no intuito de melhorar o funcionamentoda cooperativa. Na minha interpretação, os Kaxi-nawá enfrentavam a contradição entre dois mode-los de organização de produção e comercialização,um baseado no antigo sistema de aviamento com ainerente exploração de cliente pelo patrão, e o ou-tro, um novo modelo da cooperação, visto com umamistura de entusiasmo e suspeita. No primeiromodelo, o barracão do patrão, com seu estoque demercadorias com preços inflacionados, era o cen-tro do seringal. Os seringueiros pagavam aluguelpelas estradas das seringueiras, que percorriamdiariamente na luta para pagarem as suas dívidas.No segundo, a cantina substituía o barracão, ofe-recendo objetos com preços razoáveis. O alugueldas estradas foi abolido. Na prática, havia disputassobre os preços nas cantinas; alguns seringueirosprocuravam vender fora e havia dificuldades emobter recursos para comprar novas mercadorias.Muitos seringueiros – e até os próprios gerentesdas cantinas – sentiam impulsos contraditórios, orano sentido de apoiar as idéias do movimento, orade lucrar pessoalmente através da comercializa-ção da borracha. Por exemplo, um gerente de umacantina me contou ‘Tenho 25 freguês [seringuei-ros] produzindo para mim’. Por causa disso, conti-nuou, ele esperou poder visitar Brasília e São Paulo,um dia, como havia feito o líder Sueiro.

A despeito desse tipo de comentário, os líderese gerentes, frequentemente, lançaram mão de umdiscurso enaltecendo o valor do compartilhamentoe da igualdade. Defendiam a cooperativa como ummeio de alcançar independência e de se livrarem,coletiva e individualmente, da exploração branca.Nesse contexto, a escola indígena era vista comoum meio de empoderar os homens. Uma vez ca-paz de ler, escrever e fazer contas, dificilmente umseringueiro seria enganado como acontecia regu-larmente no passado. Os seringueiros, no entanto,ouviam com um certo ceticismo essas falas. Se-

gundo um gerente de cantina, alguns pensavam quenão era necessário pagar as dívidas à cooperativa,já que os recursos foram obtidos como ‘presente’(de uma ONG internacional); outro criticou as li-deranças do Jordão por ‘agir como patrões Cari-ús’. No entanto, esse informante nutria umaanimosidade pessoal para com as lideranças. Emgeral, no Jordão, adotavam um estilo claramenteamazônico, liderando através de exemplo e por per-suasão, se opondo aos estilos mais autoritários que,em alguns casos, os seus colegas e primos no Pu-rus tentavam adotar, mais ao modo Cariú (MC-CALLUM, 1990, 1996b). Perguntei a um líder, ZéPerreira, se fazia trabalhar os seus ‘freguês’ – Minhatu dayamaikaii? Ele respondeu que não – Ya-maki! Em vez de mandar, ele lhes perguntava oque seria possível fazer – En hatu yukaikaii, hawanun watidumenkain?

Desse modo, observei o nascimento de um novosistema econômico e político no Jordão, notandoevidências de tensões, de discursos conflitantes ouambivalentes e práticas contraditórias. Paralela-mente, ficou claro que as ambições das liderançasde alcançar um grau de independência estavamobtendo sucesso. Os meus dados são limitados e aminha exploração da área superficial, no sentidode que não me fixei por muito tempo em uma co-munidade. No entanto, foi marcante a continuida-de social, cultural e lingüística na comunidade queconhecia melhor – Recreio, no Purus.

Mesmo assim, a partir de um olhar comparati-vo, cheguei à compreensão de que, por baixo dassemelhanças, havia diferenças significantes na or-ganização social, econômica e política local, o quelevava a uma distinta base estrutural para as rela-ções sociais, inclusive, de gênero. Isso se relacio-nava com a forma em que a produção e a residênciase organizavam.

Quando, durante a minha estada no Jordão, re-visei as minhas notas sobre o seringal Alto do Bode,comecei a suspeitar de que estava diante de umsistema patriarcal em formação. Um informanteacusou o líder do seringal de explorar os seus 15fregueses, ao cobrar preços altos na cantina. Eume perguntei se isso era evidência da formação deum sistema baseado em relações desiguais. Já queos 15 fregueses eram os filhos e genros do líder,Romão Sales (o irmão de Sueiro), a alegada explo-

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ração poderia ser evidência de um sistema patriar-cal incipiente. Mas, nas semanas seguintes, pudeobservar mecanismos para a redistribuição de re-cursos, ao modo Kaxinawá, em acelerada ativida-de. A vida social, no seringal e ao longo do rio, emnada parecia com aquela dos seringais Cariús,marcada pela distinção hierárquica entre patrão efreguês. Os parentes e afins circulavam entre osassentamentos ou ‘colocações’, visitando e parti-cipando de festividades, rituais e competições defutebol. Trocavam comida, hospitalidade e traba-lho, num ritmo propiciado pela sazão – alto verão –época em que se preparam os roçados para o plan-tio, frequentemente em mutirões.

Uma diferença observada entre o Purus e oJordão dizia respeito ao papel estruturante do eloentre irmãos de sexo oposto e, em seguida, entrecunhados ou txais. A preferência para casamen-tos entre primos cruzados resulta em assentamen-tos, que unem parentes e afins, e ordena não só ocotidiano de cooperação e trocas restritas entreesses, mas também possibilita a co-residência alongo prazo. No Jordão, onde havia uma ênfasediscursiva forte na relação entre txais, como noPurus, na prática, nem a afinidade masculina, nemos elos entre irmãos de sexo cruzado pareciamestruturar o padrão de residência da mesma for-ma. Muitas famílias moravam separadas dos seusafins e irmãos. No entanto, havia exceções, comoentre os txais que conviviam da mesma forma queobservei em Recreio e Kensinger, em Balta. Suei-ro, por exemplo, morava com o seu txai MiguelMacário, conhecida autoridade em mitologia e ri-tual. Getúlio planejava mudar para uma nova colo-cação em Seringal Três Fazendas com o seu txai,Salve Barbosa.

Alguns fatores pareciam determinar a diferen-ça regional. Em primeiro lugar, a importância doselos agnáticos, em detrimento dos elos afins, resul-tou parcialmente de fatores demográficos aleató-rios: havia uma predominância de grupos de irmãoshomens e poucas irmãs. Sueiro e Romão Sales ti-nham quatro irmãos – Nicolau, Urbão, Aldilas eVitorinho Sales – que tiveram filhos. Romão Salesteve dez filhos homens com uma esposa, e a mai-oria desses homens morava em colocações espa-lhadas no seringal Alto do Bode. Sem dúvida, essapredominância de irmãos na família Sales afetou a

estruturação das relações sociais na área. Em se-gundo lugar, o sistema de produção de borrachaleva a um padrão de assentamento que isola osseringueiros um do outro. Não é compatível com aformação de aldeias maiores, baseadas em gruposde irmãos de sexo cruzado, casando entre si e tro-cando esposos. Um homem precisa morar na‘boca’ das estradas de seringueiras, geralmente,com a sua esposa e filhos. Quando os filhos ho-mens crescem, ajudam o pai a cortar seringa. Essaconseqüência residencial do sistema não favorecenem à uxorilocalidade, nem à convivência de doistxais, a não ser que uma colocação dê acesso aum número suficiente de estradas para dois ou maishomens. O fato da prática nem sempre correspon-der ao ideal Kaxinawá não é uma indicação deque a forma de residência observada no Purus nãoseja uma opção ainda viva no Jordão. De fato,Aquino e Iglesias (1994) notam que a residênciapós-marital uxorilocal é comum no Jordão, quandoas condições de trabalho permitem.

Nos meses de verão, o povo do Jordão organi-za atividades coletivas e costuma visitar, intensa-mente, seus vizinhos em outros assentamentos.Esses deslocamentos diminuem a fragmentaçãoimposta pelo sistema de produção. Segundo Aqui-no e Iglesias (1994), não é raro os homens cami-nharem até as colocações vizinhas, que, muitasvezes, são as moradias dos seus cunhados ou dosseus irmãos, para colaborar em atividades de tra-balho masculinas. Os antropólogos citados não fa-lam de atividades de trabalho coletivas femininas,do tipo que documentei no Purus (MCCALLUM,2001).

No Purus, as visitas entre casas e o comparti-lhamento de comida ocorriam quase diariamente.As lideranças feminina e masculina da aldeia exer-ceriam um papel axial em estimular o compartilha-mento e o trabalho coletivo, o que leva, junto comas trocas em nível menor, à criação e ao fortaleci-mento da socialidade17. No Jordão, a distância ge-ográfica entre as casas age como impedimento aodesenvolvimento de elos de cooperação e compar-tilhamento mais próximos. Tais elos emergem ape-

17 Sobre a instituição de liderança feminina entre os Kaxinawá,ver McCallum (1990, 1996b, 2001).

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nas nas épocas em que viajar é mais factível. So-bre a organização de trabalho e de residência noJordão, Aquino e Iglesias escrevem:

Em cada colocação, os grupos familiares extensosconstituem unidades de produção e consumo, nasquais seus membros trabalham tanto para atenderàs necessidades de subsistência, quanto para ob-tenção de produtos comercializáveis.

Em 1992, as 84 colocações ocupadas nos seringaisdo Jordão eram exploradas por cerca de 140 gruposfamiliares Kaxinawá, que habitavam 132 casas. (...)Cada unidade doméstica fica sob o controle de umchefe da casa, que é também quem possui uma con-ta nas cantinas (...) da Cooperativa (...) e decide so-bre a produção e o consumo dos demais integrantesdo seu grupo doméstico. (AQUINO; IGLESIAS,1994, p. 135-136)

Katxanawa feminina no alto Purus, 1985. Foto © Cecília McCallum

Os autores não mencionam as mulheres nessadescrição. No entanto, em outro trecho do relató-rio tratam, de um modo breve, do tema de relaçõesde gênero: “A divisão social do trabalho entre oshomens e as mulheres é complementar e não con-flitiva na sociedade Kaxinawá”. (AQUINO; IGLE-SIAS, 1994, p. 56). Não elaboram sobre esse ponto,o que vai de encontro à situação no Purus, onde,ainda, a complementaridade entre os sexos se es-tende às diversas esferas de ação e permeia o diaa dia. Eu observei que o estilo de interação entrehomens e mulheres no Jordão parecia muito com aamabilidade e a jocosidade, às vezes picante, ca-racterística dos Kaxinawá do Purus. Mesmo as-sim, havia evidências de diferenças, as quais se

relacionavam às particularidades estruturais e re-sidências ora detalhadas.

Enquanto a maioria das mulheres em Recreioeram keneya – com desenho – e, portanto, podi-am tecer capangas e redes para venda para acooperativa, no Jordão, só uma minoria de mu-lheres detinham os conhecimentos das técnicasde tecelagem de desenhos. Desse modo, não dis-punham de uma fonte de renda independente, vin-do a depender dos homens da família para teracesso a mercadorias. Mesmo aquelas mulheres,que eram mestras de desenho, dependiam, emambos os casos, dos homens que agiam como in-termediários na venda e na compra das encomen-das na cidade.

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No Jordão, não encontrei referências à catego-ria ainbu xanen ibu18. Adquiri a impressão de queas mulheres tinham pouco costume de se expres-sarem em atividades públicas. Os meus informan-tes me contaram que algumas mulheres mais velhassabiam os cantos femininos do katxanawa femini-no, celebrações cerimoniais que funcionam comoum ritual para provocar o crescimento e a abun-dância (increase ritual) dos legumes, animais decaça e pessoas (MCCALLUM, 2001). Não sereferiram a essas mulheres com a expressão txa-na xanen ibu – líder dos cantos rituais – e fiqueicom a impressão de que o papel estava sendo pou-co desempenhado na área, embora não tivesse in-vestigado mais. Há outras indicações de que aminha impressão estava correta. Quando Aquino& Iglesias pediram a Agostinho (outro líder do Jor-

dão) uma lista de todos os txana xanen ibu doJordão, ele mencionou uma dezena de homens, masnenhuma mulher (AQUINO; IGLESIAS, 1994, p.96-7). A partir da minha participação em três pe-quenos katxanawa masculinos, no Jordão, notei agrande semelhança nos cantos e nas etapas doprocesso ritual, que é tanto um palco para umaconfrontação jocosa entre os sexos, quanto parauma celebração e reafirmação da complementari-dade e cooperação entre homens e mulheres nosprocessos de produção e reprodução.

Também constatei uma presença fraca dasmulheres nos eventos realizados. Anotei nos meuscadernos de campo que poucas mulheres partici-param das brincadeiras e das danças. A maioriaolhava dos bastidores ou entrava no círculo dosdançarinos com um ar de timidez.

Fica evidente que, em 1985, as mulheres Kaxi-nawá do Jordão tinham menor conhecimento queas suas primas e tias do alto Purus de certos sabe-res e capacidades tidos como icônicos e constituti-vos da ‘gente verdadeira’. A diferença se devia

aos contatos distintos nas histórias de cada grupo.No caso dos Huni Kuin do Jordão, a sua incor-

Filha segurando cartilha de alfabetização e observando mãe tecendo, Recreio, 1984.Foto © Cecília McCallum

18 ‘Mulher liderança’. Parece-me que não perguntei diretamentea respeito do tema, pois não há anotações sobre isso no cadernode campo.

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poração na ‘frente de extração’ criou condiçõesestruturais adversas à transmissão inter-geracio-nal desses saberes femininos, com a dispersão dapopulação nos seringais dos Cariús e, após o re-torno à área indígena, com a continuada disper-são em colocações, embora em grau muito menor.É provável que a dependência das mulheres di-ante dos homens, para o acesso ao mercado regi-onal, e a reduzida oportunidade delas departiciparem em eventos coletivos ou em inter-câmbios cotidianos de comida e serviços tenhamlevado a um maior desempoderamento feminino.Não era pouca a influência negativa da convi-vência com não-indígenas no processo de desem-poderar as mulheres indígenas. A desvalorizaçãoda cultura indígena pelos seus vizinhos Cariús,sem dúvida, contribuiu enormemente. Ademais,um outro fator, ligado à história demográfica des-sa população, parece ter contribuído para as difi-culdades de transmissão dos saberes femininostradicionais. Algumas das mulheres mais velhas,no Jordão, não eram filhas de mulheres Kaxina-wá. As suas mães eram Yaminawá, capturadasnos anos 1910 e 1920, no período violento de co-lonização das cabeceiras dos rios regionais19. Atransmissão do conhecimento especializado femi-nino passa pela linha de filiação materna. Por isso,essas mulheres não podiam ensinar as suas filhase netas, como as suas cunhadas com ascendên-cia feminina Kaxinawá faziam. Assim, as jovenscom mães Yaminawá ficavam sem instrução e osseus descendentes também.

Essas observações sobre gênero, saber e po-der no Jordão carecem de um maior grau de co-nhecimento sobre a área; não posso dizer que omeu argumento está baseado em evidências pro-fundas e conclusivas, pois permaneci apenas trêsmeses na área. É evidente que há necessidade denovas pesquisas sobre gênero entre os Kaxinawá,bem como entre outros grupos indígenas. Mas, apartir dos dados disponíveis, pode-se afirmar quevários fatores levaram a uma escassez de profes-soras de conhecimentos femininos, sobretudo, mes-tras de desenho, no Jordão, em 1985. Asconseqüências são tratadas na seguinte seção, queretorna ao tema da educação escolar na perspec-tiva indígena.

Conclusão: O ‘Viver Bem’ e o Empo-deramento das Mulheres no Jordão

A ausência das mulheres nas aulas dos novosprofessores Kaxinawá não se devia a uma proibi-ção masculina. Era voluntária. A atitude dos pro-fessores com os quais eu conversei em 1985 erade que os alunos têm que querer estudar, que nãose pode obrigá-los a frequentar as aulas20. Duran-te a reunião de mulheres do Seringal Alto do Bode,gravei as respostas das mulheres às minhas inda-gações, sentada no meio de um círculo de 20 mu-lheres. Para começar, perguntei o porquê delas nãofrequentarem as aulas, sugerindo que talvez en-frentassem alguma dificuldade que impedia o aten-dimento. ‘Tem algum problema?’ indaguei.Perguntei também se elas queriam aprender a lere escrever português (a língua utilizada para ensi-no nas escolas criadas pelo CPI-Acre naquela épo-ca). Haska min kene estudakatsiskaii? Aindaperguntei o que era que elas queriam estudar. Minhawa aprenderkatsiskaii? Após minha breve fala,responderam individualmente, uma por uma.

A maioria das mulheres expressava desinteresseem educação escolar. ‘Eu não quero estudar nemportuguês nem nawan kene’, diziam. Muitas co-meçaram as suas falas afirmando que queriammesmo ‘ajudar melhor o seu marido’. Ao reler asminhas notas de campo e comparar o resumo dadiscussão na reunião com o conteúdo das respos-tas gravadas, fica claro que eu dei pouca impor-tância ou até ignorei essas repetidas afirmaçõesdo desejo das mulheres de cooperar melhor comos seus maridos. O viés poderia ser explicado comoo efeito da redundância: depois de 18 meses mo-rando com Kaxinawá, o discurso era tão óbvio quenão me parecia merecer destaque. Eu já sabia queos Kaxinawá pensam no casamento como umaparceria em que se ajudam e se dependem mutua-mente. Já que a minha maior preocupação era o

19 Os Kaxinawá pertencem a diversos grupos falantes de línguaspano como ‘Yaminawá’, incluindo dentre esta rubrica Yaunawá,Poyanawá, Xadanawá e outros. Nenhum desses outros grupospraticam a tecelagem com desenho, como os Kaxinawá, nemusam os mesmos desenhos corporais.20 Atitude semelhante, reportada por Weber (2006), entre pro-fessores Kaxinawá do Humaitá, cujos alunos, na sua maioriacrianças, eram de ambos os sexos.

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futuro das mulheres, frente ao potencial desempo-deramento, em decorrência da ausência do projetoescolar, prestei mais atenção aos outros aspectosdas suas respostas, sobretudo, à clara declaraçãoque muitas fizeram do tipo de intervenção educa-cional que desejavam.

A maioria das mulheres queria aprender a te-cer kene kuin nos artefatos fabricados de algo-dão e nas cestas do tipo txitxan. Queriam seafirmar como ainbu keneya – mulheres com de-senho. Apenas uma minoria falava que gostaria deaprender nawan kene, mas não deram uma expli-cação sobre os motivos que levaram a sua ausên-cia das salas de aula. Isso poderia ter acontecidopelos mesmos motivos que me levaram a ser de-signada professora de meninas adolescentes noRecreio: o receio de que houvesse tentações se-xuais demais para os jovens. Houve discussão,durante a reunião, sobre qual mulher poderia serprofessora de português das mulheres. Francisca,esposa do professor Isaias, filho de Romão Sales,se propôs como candidata a professora de portu-guês e de desenho, alegando já ter algum conheci-mento. No entanto, a maior ênfase foi sobre anecessidade de se criar uma escola de tecelagem,para capacitar as mulheres para desenhar nos te-cidos. Para professora, propuseram Helena, a es-posa mais velha de Sueiro, ou, então, uma outramestra que era viúva com filhos adultos e semmarido para cuidar. O entusiasmo gerado pela dis-cussão era tanto que dois dias depois duas mulhe-res viajaram para a Colocação Natal, o povoadode Sueiro e Helena, dizendo que iam estudar juntocom ela21. Elas levaram os seus estoques de algo-dão fiado nas suas cestas.

Pode-se entender o entusiasmo das mulheres ea sua insistência na importância de ‘ajudar’ os seusmaridos, como sendo uma resposta à necessidadede ampliar o leque de produtos oferecidos paravenda no mercado regional e nacional, a fim deaumentar a renda familiar, até este momento tãodependente das atividades extrativistas dos homens.Entretanto, à luz da etnografia sobre aprendizagem,ação humana e a produção de socialidade entre osHuni Kuin, detalhada no começo deste artigo, pode-se chegar a uma interpretação mais profunda dapostura das mulheres. Ao exercerem a sua açãofeminina, as mulheres dependem de relações com-

plementares com os homens, e vice-versa. Estacomplementaridade é fundada sobre uma divisãode responsabilidades frente aos espaços de produ-ção, reprodução e troca. Os homens lidam com oexterior e os entes que o habitam, enquanto asmulheres circulam e produzem no interior. Assim,as mulheres trabalham no roçado, buscam comidana floresta perto da aldeia, plantam e tratam o al-godão, transformam alimento cru em cozido, flui-dos corporais em bebês, e servem comida paraparentes, afins e visitantes, e, desse modo, os apro-ximam da esfera de socialidade. Os homens, porsua vez, derrubam a floresta para fazer roçados,caçam, pescam, viajam para fins comerciais e po-líticos e defendem os parentes contra inimigos, to-das as atividades que tornam possível o trabalhodas mulheres.

Kene, expressão que se refere tanto a dese-nho quanto a escrita, é emblemático da distinçãoentre o ‘interior’ e ‘exterior’. As mulheres sãomestras de kene. Em tempos míticos, ganharamessa capacidade da jibóia, cuja pele reúne todosos desenhos possíveis (LAGROU, 2007). Kenekuin é uma forma gráfica de saber e de poderexternos, originada no passado mítico e nos ou-tros níveis do cosmos contemporâneo. SegundoMaria Sampaio, a sogra de Pancho Lopes, o líderde Recreio, kene é ‘a linguagem dos espíritos’(yuxin). Maria explicou kene assim a Els Lagrou,antropóloga que fez um estudo detalhado do tópi-co. Ao aplicar kene sobre a superfície dos cor-pos e de alguns objetos, como certos tipos depanela de cerâmica, ou ao tecê-lo nas redes e emoutros tecidos, as mulheres tornam essas coisase pessoas kuin (verdadeiras). Segundo Lagrou,essa prática – o aplicar da linguagem dos yuxinsobre objetos e pessoas, inserindo-a nos tecidos– se inscreve como ‘um tipo de código escrito’(LAGROU, 2007, p. 126-127). A autora ressalta

21 Helena ensinou para essas duas mulheres, mas em outra oca-sião deixou claro que não pretendia se tornar professora semremuneração. Segundo me contou Osair-Sian, filho de Sueiro,seria necessário remunerar as professoras. Afirmou que ele mes-mo pagou uma mestra no Seringal Bondoso, usando o seu pró-prio dinheiro. Justificou o fato enfatizando a importância dossaberes femininos na manutenção da cultura e da identidadeHuni Kuin. Essas idéias vieram a florescer nas décadas seguintes,no movimento pró-cultura dos professores indígenas no Acre(WEBER, 2006).

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que a inscrição é realizada segundo regras estri-tas de composição e execução. Ela discute a na-tureza desse código, que não é um código, nosentido saussuriano, pois a relação entre signifi-cado e significante não é arbitrária, mas indexicale metonímica22. Como código gráfico, kene ope-ra sobre e por dentro do corpo ou objeto paracolocá-lo em um relacionamento material com alinguagem e com o poder transformador das for-ças externas. As forças externas ajudam a refa-zer o corpo ou objeto, porque produzem a absorção

do conhecimento verdadeiro e, desse modo, faci-litam a produção de ação humana.

Nawan kene, a escrita ensinada na escola, tam-bém se caracteriza como um saber externo, umcódigo inscrito no corpo do papel, que confere po-der sobre quem sabe lê-lo, como entre os Piro(GOW, 2010). Sendo os homens que tratam dire-tamente com os Nawa, não é de surpreender que,no momento do primeiro contato com a escrita,foram eles, e não as mulheres, os designados comoos mediadores na relação com esse novo saber.

22 Lagrou (2007, p. 108-137) desenvolve esse argumento emdetalhe.

Professores indígenas estudando num curso de formação organizado pelo CPI-Acre emagosto 1991. Paulo Lopes do Purus está de camisa listrada. Foto © Cecília McCallum

Na etnografia apresentada neste artigo, ficouclaro que, na perspectiva dos moradores do Jor-dão, em 1985, ambos os tipos de kene tinham umpapel vital no projeto de ‘viver bem’. Ambos po-diam contribuir para a criação de um estado deser onde os parentes são saudáveis, a comida éabundante, o clima da convivência é de alegria, eo conflito relativamente ausente. Era esse o pro-jeto que dava impulso à vida cotidiana. Quandoas mulheres falaram, num estilo formal, do seupapel conjugal, estavam se posicionando dentro

de uma tradição de retórica política homilética queenaltece o ‘viver bem’ e contribui para constituí-lo (MCCALLUM, 1990, 1996). Na visão delas,não havia motivo para elas ingressarem na esco-la, tarefa delegada aos homens, dentro do quadroda divisão de trabalho, segundo a lógica das açõeshumanas complementares. Tornar-se alfabetiza-do se adicionou à lista de capacidades masculi-

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Cecília McCallum

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nas necessárias, no contexto do novo mundo so-cial, possibilitado pela retirada dos Kaxinawá dasujeição diante dos Cariús e pela retomada doterritório do Jordão. Naquele momento histórico,as mulheres não se sentiram desempoderadas em

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Escrito no corpo: gênero, educação e socialidade na amazônia numa perspectiva kaxinawá

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Recebido em 24.10.09Aprovado em 02.11.09

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Peter Gow

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* Versión revisada y ampliada por el autor del artículo “Could Sangama read? Graphic systems, language and shamanism amongthe Piro (Eastern Peru)”, aparecido en History and Anthropology, 5: 87-103 (1990); publicado con autorización del autor.** PhD do LSE, Universidade de Londres. Professor Titular, Department of Social Anthropology, University of St.Andrews,71 North Street, St Andrews, Fife KY16 9AL, Scotland. Uma importante publicação: GOW, Peter. 2001. An Amazonian Mythand its History. Oxford: Oxford University Press. 338 p. (Oxford Studies in Social and Cultural Anthropology). [email protected] A Revista da Faeeba agradece a Peter Gow, assim como à Editorial Aby-Ayala, Quito/EC, a permissão para republicar seuartigo “¿Podía leer Sangama?: sistemas gráficos, lenguaje y shamanismo entre los Piro (Perú Oriental)”, publicado no livro“Globalización y cambio en la Amazonía indígena. Volumen I” (Biblioteca Abya-Yala, 37), editado pela Abya-Yala -Facultad latinoamericana de ciencias sociales, Quito: FLACSO, 1996. Paginación p. 261-287: bibliogr. p. 285-287. O textoaqui publicado manteve as normas bibliográficas com que foi publicado pela Editorial Aby-Ayala.

Este artículo1 pretende contribuir al conocimiento de dos áreas poco estudiadas: laetnografía de la alfabetización y los sistemas gráficos en la amazonía y la historiogra-fía de los pueblos indígenas amazónicos. En el mismo se analiza un texto recogido amediados de los años ’50 por una misionera del Instituto Lingüístico de Verano (ILV),cuyo informante fuera uno de los primeros maestros bilingües piro. El texto narra lahistoria de Sangama, quien en las primeras décadas de este siglo, cuando los Piro aúnvivían sometidos a los blancos bajo el sistema de esclavitud por deudas, afirmabaconocer el arte de la lectura. A partir de un análisis de la relación histórica entre losPiro y la escritura alfabética occidental, muestro como los sistemas gráficos indíge-nas influyeron en la interpretación de la escritura europea. A continuación argumentoque el relato que ofrece Sangama acerca de la escritura refleja la relación entre eldiseño gráfico y el lenguaje en la práctica shamánica de los Piro.

A pesar de la actual importancia que las instituciones educativas y la alfabetizaci-ón tienen para muchos pueblos indígenas amazónicos, especialmente como resultadode la labor del ILV/Traductores de la Biblia Wycliffe y sus programas de educaciónbilingüe, los antropólogos raramente han abordado el tema de la alfabetización enestas culturas. En general, la alfabetización ha sido considerada simplemente comoun otro elemento del contacto entre los pueblos tribales amazónicos y las sociedadesnacionales. Algunos autores (Godoy 1977; Ong 1982) han asegurado que la lecto-escritura tiene la capacidad de transformar radicalmente a una cultura, pero los an-tropólogos han producido poca información con respecto a la manera en que lospueblos indígenas amazónicos que cuentan con extensas literaturas en su propia len-

¿PODIA LEER SANGAMA?: SISTEMAS GRAFICOS, LENGUAJE YSHAMANISMO ENTRE LOS PIRO (PERÚ ORIENTAL)*

Peter Gow **

Nunca fui a la escuela. Aprendí sólocon drogas. Todo lo que sé viene del Datura.

Anciano shamán, bajo Urubamba

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¿Podia leer sangama?: sistemas graficos, lenguaje y shamanismo entre los piro (perú oriental)

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gua – tales como los Shuar, los Aguaruna y losQuichua del Napo – han reaccionado ante estecambio. De igual manera, con unas pocas y nota-bles excepciones – tales como Gebhart-Sayer(1985) y Casevitz (1980-81) – los antropólogos hanprestado poca atención a lo que piensan los pue-blos indígenas amazónicos respecto de la escrituraalfabética occidental, pese a la importancia que éstatiene para la labor misionera y gubernamental y, dehecho, para la labor de los propios antropólogos.Es como si los etnógrafos de las culturas amazóni-cas estuvieran de acuerdo con Lévi-Strauss (1955)en que la escritura constituye un gran mal del cualse han salvado estos pueblos, al tiempo que afir-man que la alfabetización constituye una gran ben-dición para ellos a partir del momento en que entranen contacto permanente con la sociedad nacional.

En este artículo quisiera abordar un aspecto deeste tema. Los Piro del bajo Urubamba, entre qui-enes realicé trabajo de campo entre 1980 y 1982,son notables por sus altas tasas de alfabetización,y el proporcionar educación escolar para sus hijosconstituye un elemento central en la organizaciónde sus comunidades.2 Esto se remonta a la respu-esta que éstos dieron a los programas educativosdel ILV, el cual comenzó a trabajar entre los Piroen la década del ’40. La misionera del ILV quetrabajaba con los Piro informaba acerca de la situ-ación a principios de la década del ’50 de la sigui-ente manera:

“La capacidad que algunos tienen para leer el es-pañol... indica un profundo deseo de aprender y pro-gresar, puesto que dicho conocimiento fue obtenidoen escuelas hispano-hablantes donde los Piro pare-cían torpes y eran ridiculizados y reprendidos. Es-tos perseveraron hasta que muchos de ellospudieron articular las palabras de manera bastantefluida, pero en la mayoría de los casos sin muchacomprensión de su contenido... En 1947 con el aus-picio del Instituto Lingüístico de Verano, se elaboróuna ortografía de la lengua piro y se obsequió a lagente cartillas y libros. Estos fueron recibidos conentusiasmo. Más de ciento cincuenta personas hancomenzado a aprender a leer y de éstas unas cua-renta leen bien al momento” (1954: 65).

El mero entusiasmo de esta respuesta planteaun importante problema histórico. Para aquellos denosotros que podemos leer y escribir en una escri-

tura alfabética, las ventajas de este conocimientoparecen evidentes, pero no existe razón alguna paraimputar una actitud semejante a quienes no deten-tan dicho conocimiento. ¿Cuál fue el origen de esteentusiasmo, dado que los Piro, al igual que los de-más pueblos indígenas de la amazonía, no compar-ten la teorías europeas del conocimiento, el lenguajey la escritura, y que los intentos de algunos poraprender a leer fueron a la vez humillantes e in-fructuosos? Si bien las altas tasas de alfabetizaci-ón de los Piro pueden ser atribuidas parcialmenteal tipo de lingüística estructural favorecida por elILV, así como a sus técnicas pedagógicas, la otracara de la explicación debe radicar en el deseo delos Piro por aprender a leer y escribir. ¿En suma,qué fue lo que ‘pre-adaptó’ a los Piro para queaprovecharan la oportunidad brindada por el ILV?Afortunadamente, tenemos cierta evidencia comopara ofrecer una respuesta a esta pregunta: la his-toria de Sangama, el “primer Piro que pudo leer”.

La Historia de Sangama es un texto recogidoen lengua piro por Esther Matteson, misionera delILV, a fines de la década del ’40. Su informantefue Morán Zumaeta, un jefe y maestro bilingüe pirode la comunidad de Bufeo Pozo localizada en elbajo Urubamba.3 El texto contiene el relato de Zu-maeta sobre Sangama, el primer hombre piro en“intentar” leer. El narrador habla de Sangama, suprimo mayor, de sus lecturas de la literatura de losblancos, y de los intentos de Sangama por enseñarlea leer. La información proporcionada por Matte-son y algunas claves al interior del propio textosugieren que el período al que éste hace referen-

2 Véase Gow (1988, 1991) para una discusión sobre la importanciaque tienen la alfabetización y la educación escolar para los na-tivos del bajo Urubamba.3 El texto completo se encuentra en Matteson (1965: 216-233). Las citas de este texto se basan en la traducción alcastellano realizada por Matteson. Los números que acompañana todas las citas del texto se refieren a los números de las líneasutilizados en el original de Matteson. Sólo he hecho un cambio:he utilizado la ortografía española estándar del nombre Sangama(apellido común en la amazonía), en vez de la versión inglesa(Sankama) del nombre piro (Sagkama) utilizada por Matteson.El texto de Historia de Sangama ha sido reproducido en elmanual de lectura en lengua piro elaborado por el InstitutoLingüístico de Verano y titulado Gwacha Ginkakle (Ministeriode Educación 1974). Nunca he visto que se use este libro en unaaldea piro, y al parecer el Ministerio de Educación tenía fuertesobjeciones respecto del sesgo sectario religioso de su contenido.

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cia es la segunda década del presente siglo.4 An-tes de analizar dicho texto es necesario presentaralgunas consideraciones preliminares con respec-to al contexto histórico de la narración y a su par-ticular estilo.

De lo que Matteson ha escrito en su monogra-fía sobre la lengua piro (1965), se desprende que lahistoria de Zumaeta sobre Sangama es en esenciauna narración oral piro. Como tal, la misma se ati-ene a las convenciones narrativas del discurso piro.En la medida que en la misma se relata la experi-encia personal del narrador, la autoridad del textono está marcada por referencia a un narrador an-terior ni se utilizan las citas que son obligatorias ennarraciones de segunda mano.5 Sin embargo, lanarración sí tiene algunos rasgos característicos dedicho tipo de discurso, tales como el recurso a lasrelaciones de parentesco en tanto fuente de cono-cimiento y el constante cuestionamiento de si San-gama podía o no leer. Volveré a tocar estos puntosmás adelante cuando sugiera que esta narracióntiene algunas importantes implicancias para la re-lación entre los Piro y el ILV.

Como ya se he dicho con anterioridad, el textofue recogido por la misionera del ILV Esther Mat-teson. La labor de Matteson entre los Piro comen-zó en 1947 y fue uno de los primeros proyectos delILV en el Perú. Los Piro del bajo Urubamba estu-vieron entre los primeros pueblos indígenas en re-cibir un programa de educación bilingüe. Tal comolo indica la cita de Matteson presentada anterior-mente, los Piro habían estado en contacto con laeducación escolar antes de esa fecha, pero conpoco éxito: los Adventistas del Séptimo Día habíanproporcionado educación monolingüe en españoldesde 1937 en los asentamientos de Unini y Huau;mientras que los misioneros dominicos hicieron lopropio en Sepahua a partir de 1948. Sin embargo,fue el ILV quien tuvo el impacto más profundo entrelos Piro, y su influencia – por lo menos en lo querespecta a la alfabetización – ha sido persistente.De los Piro que conocí en 1981, todos los menoresde cuarenta años eran completamente letrados, amenudo tanto en español como en piro; la alfabeti-zación era altamente valorada y las escuelas cons-tituían un rasgo esencial de toda aldea “verdadera”.Más aún, los Piro, letrados o no, se refieren al perí-odo en que el ILV llegó al bajo Urubamba como el

tiempo en que “nos liberamos de la esclavitud”, y alas oportunidades educativas ofrecidas por el ILVcomo la principal razón para asentarse en aquellascomunidades que guardaban vínculos con dichainstitución. Cabe señalar que la importancia quelos Piro atribuyen al ILV es históricamente especí-fica a este período: la mayor parte de los Piro con-temporáneos son críticos de la educación bilingüey del ILV, y no tienen deseo alguno de volver a lasituación de los años ’40 y ’50.

El ILV comenzó su trabajo con los Piro en unaépoca en que el bajo Urubamba, y la amazoníaperuana en general, atravesaba un período de rá-pidos cambios socio-económicos. La SegundaGuerra Mundial había proporcionado el ímpetu parauna rápida transformación de la región, la cual pasóde ser una zona económica marginal a constituiruna fuente de recursos estratégicos para el mer-cado mundial. En particular, la culminación de lacarretera Lima-Pucallpa en 1943 permitió que seexportasen maderas duras tropicales directamen-te desde la región del bajo Urubamba hacia el mer-cado mundial. La población nativa de la región pasórápidamente de mantener relaciones de esclavitudpor deudas en las haciendas de sus patrones blan-cos a dedicarse a la explotación maderera estacio-nal combinada con una producción autónoma desubsistencia. Los indígenas no quedaron libres dedeudas, las cuales continuaron estructurando lasrelaciones comerciales en la explotación madere-ra, pero sí se liberaron de la esclavitud de la resi-dencia continua junto a sus patrones. Como

4 Matteson reporta que trabajó con Morán Zumaeta en 1948(1965: 2) y que éste tenía un hijo de aproximadamente treintaaños (ibid: 137). Esto sugiere que Zumaeta se hallaba tenía unoscuarenta y cinco años o más cuando el texto fue grabado. Dadoque afirma que fue en su niñez que conoció a Sangama, losacontecimientos a los que hace referencia no pueden haberocurrido después de 1920. Sin embargo, es improbable que eltexto se refiera a un tiempo anterior a 1912, año del colapso dela industria del caucho, por cuanto las circunstancias de la historiaindican una situación más tranquila que la situación de caos ymigraciones que caracterizó a los últimos años de la produccióncauchera. Más aún, a pesar de que yo no lo conocí, Zumaeta aúnestaba vivo en 1982, y mi comadre Lilí Torres Zumaeta, que essu nieta, me lo describió como una persona anciana pero todavíaactiva, lo cual sugiere que no superaba los 75 u 80 años. Toma-dos en su conjunto estos fragmentos de evidencia sugieren que elperíodo en que tuvieron lugar los acontecimientos que se narranen la historia va de 1912 a 1920.5 Véase Gow (1988, 1991) para una discusión sobre lasconvenciones narrativas piro.

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resultado de esto, los indígenas crearon aldeas in-dependientes que giraban cada vez más en tornode las escuelas bilingües establecidas por el ILV.

Si la alfabetización y la educación representanpara los Piro la liberación de la relación de esclavi-tud por deudas, entonces el analfabetismo y la ig-norancia constituyen los marcadores de su condiciónen las haciendas. Desde la década de 1880, cuan-do los primeros patrones caucheros involucraron alos Piro en relaciones comerciales directas, hastainicios de la década de 1940, cuando la economíalocal experimentó importantes transformaciones, lapoblación nativa del bajo Urubamba mantuvo rela-ciones de esclavitud por deudas, residiendo demanera permanente junto a sus patrones blancos.En la segunda década de este siglo, la industria delcaucho se derrumbó y fue reemplazada por un sis-tema de agricultura comercial de hacienda, perolas relaciones entre la población nativa y sus pa-trones permanecieron notablemente constantes.Este era el mundo de Sangama, y la narración deZumaeta se refiere constantemente a la pobreza,la ignorancia y la dependencia que por ese enton-ces los Piro tenían en relación a sus patrones. Lahacienda era una institución rigurosamente jerár-quica en la cual el patrón blanco tenía completocontrol sobre la vida social y económica de susesclavos. El poder de estos patrones radicaba ensu control exclusivo sobre las mercancías importa-das de las que la cultura piro había comenzado adepender. Sólo estos patrones blancos tenían lacapacidad para llamar a las embarcaciones fluvia-les que desde Iquitos surcaban el Amazonas y elucayali cargadas de mercancías. Muchos de losblancos del bajo Urubamba sienten hoy en día ci-erta nostalgia por aquel período de absoluto con-trol sobre sus trabajadores nativos. Como afirmabael ex-alcalde de la municipalidad local en relaciónal dinero gubernamental que se destinaba a las es-cuelas de las comunidades nativas: “¿Para quégastar dinero educando a estos indios? ¿Acaso nonacieron para ser nuestros esclavos?”

El relato de Zumaeta sobre Sangama es, porconsiguiente, el relato de un hombre piro que pose-ía el conocimiento de la lectura cuando los Piro engeneral vivían en una situación de esclavitud pordeudas, la cual se basaba en su exclusión respectodel conocimiento con el que se controlaban las re-

laciones comerciales de la economía. Tal como elpropio Zumaeta constantemente subraya, la mis-ma es también una historia contada por un hombre“que se liberó de la esclavitud” aprendiendo a leery a escribir gracias al ILV acerca de un parientemayor que aseguraba tener dicho conocimiento sinhaber gozado del beneficio de dicha enseñanza.Este es un elemento central de la historia: Zumae-ta es letrado gracias a la llegada del ILV, mientrasque Sangama era aparentemente letrado sin haberpasado por esta enseñanza manifiesta. La fuentede conocimiento de Sangama era oculta, por cuan-to no se trataba de un conocimiento que por eseentonces estuviera disponible para los Piro.

Según la narración de Zumaeta, Sangama re-cogía y leía los periódicos y libros que sus patronesbotaban. Zumaeta describe la forma en que San-gama abría un libro y lo leía, sus ojos siguiendo lasletras y su boca moviéndose (líneas 9-11). La gen-te le llevaba a Sangama los periódicos que sus pa-trones botaban y le preguntaba qué era lo que decíael papel (lín. 24-37). Entonces Sangama los leía. Elsiguiente es un ejemplo de sus lecturas.

“Geeegege. Mi Europa. Mi Pará, Mi Manaos. ¡Ah!Sí, sí – dijo. Sí. Estoy aquí. Todo está bien. Aquí estátu abuela y está sana. Aquí vivo siempre. ¡Ah! ¡Asíes! Eso es lo que sucedió. El río grande. ¡Ah! Vieneun vapor. ¡Ah! Viene mercadería” (lín. 47-67).

Sangama explicaba que el mensaje había sido escri-to por sus hijos:

“Son ellos los que le escribieron -le explicó. Una demis hijas que vive en Manaos a orillas del río lo haescrito. Ella dice que va a llegar un vapor trayendomercadería y muchas otras cosas de las cuales nun-ca se ha oído aquí. Dice que el vapor va a llegar aquítrayendo esas cosas” (lín. 78-83).

Zumaeta prosigue relatando como Sangama leíaen voz alta otros mensajes acerca de aeroplanosque traían mercancías para la gente del bajo Uru-bamba, pero que no podían llegar porque a lo largode su ruta había personas que les disparaban. Cu-ando el aeroplano llegue, decía, los Piro tendránabundantes mercancías y dejarán de vivir en lamiseria y la esclavitud respecto de los blancos.Describía el aeroplano con bastante detalle, asícomo las ciudades de “Manaos” y “Pará”, con susmultitudes de gente blanca y sus casas con techos

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de metal, y un lugar llamado Europa con su granciudad de milagros.

La narración de Zumaeta sobre la forma enque Sangama leía es lo suficientemente ortodoxadesde una perspectiva occidental: reconocemosinstantáneamente los movimientos oculares y la-biales de nuestra propia práctica. Más difícil decreer es el hecho de que los periódicos que leíanlos patrones blancos del bajo Urubamba hubieransido escritos por la hija de Sangama, o que sufunción era la de enviar a los Piro mensajes acer-ca de su inminente liberación de la esclavitud. Elconstante refrán en la lectura de Sangama – “MiManaos. Mi Pará. Mi Europa” – constituye unresumen sucinto de la geografía económica de laindustria cauchera de la cuenca amazónica, cu-ando el caucho producido en el bajo Urubambaera llevado río abajo pasando por las ciudades deManaos y Belem do Pará sobre el Amazonas bra-silero y luego a Europa, a fin de cancelar las deu-das contraídas por la importación masiva de bienesde consumo de ese lugar de “poder milagroso”.Muy poco de esa gran masa de importaciones llegóa manos de los Piro durante el período de la pro-ducción cauchera, y mucho menos cuando éstase derrumbó. Tal vez podamos ver aquí los ele-mentos de un clásico ‘culto de carga’ (“cargocult”): Sangama, único por su capacidad de leerlos periódicos de los blancos, podía re-transmitirlos mensajes enviados por los verdaderos produc-tores de esta riqueza, los hijos de los propios Piro.6

También es posible que el relato que ofrece San-gama acerca de los hombres que le disparaban aun aeroplano sea una vaga referencia a la Prime-ra Guerra Mundial, la cual tuvo lugar inmediata-mente después del colapso de los precios delcaucho.

Zumaeta asegura que gran parte de la informa-ción proporcionada por Sangama era exacta y pro-fética, incluyendo su descripción de los aeroplanos,los cuales por entonces nadie del bajo Urubambahabía visto. Podemos entonces suponer que San-gama podía en efecto leer y que su único error fuepensar cándidamente que los periódicos le habla-ban directamente a él y a sus parientes. Sin em-bargo, esta simple solución es controvertida por elpropio relato de Sangama acerca de como leía. Asíle explicó a Zumaeta cómo era la lectura:

“Ustedes me escuchan, pero otros me desprecian,diciendo: “Sangama, el ignorante, el mentiroso, hacesus mentiras por leer papel sucio del excusado”. Seríen de mí y siempre dicen mentiras acerca de mispalabras. ¿Por qué serían mis ojos como los suyos?Mis ojos no son como los suyos. Yo sé leer. El papelme habla a mí.

“Mira éste que tengo aquí – me dijo, mientras quevolteaba las hojas del periódico – habla conmigo. Elpapel tiene cuerpo de mujer. Siempre miro a ella, pri-mo. Siempre miro a este papel, que tiene los labiosrojos, con los cuales habla. Tiene cuerpo y labiosrojos, pintados. Tiene la boca pintada” (lín. 275-294).

Zumaeta dice que él miraba fijamente el papel,pero que no veía en él a ninguna mujer. Sin embar-go, Sangama insistió y le dijo que el papel le pre-guntaba si Zumaeta quería conocerla (lín. 307-313).Zumaeta le pregunta si esto es verdad y Sangamale contesta:

“Sí. Así dice el papel y por eso el blanco conversacon ella todos los días. ¿No lo has visto? Míralo anuestro patrón, cómo hace. Cuando él mira un pa-pel, siempre lo agarra y luego ella le habla a él. Ellaconversa con él todo el día. Todos los días hace esoel blanco.

“Sí – seguía diciéndome. Antes, hace mucho tiem-po, siempre iba río abajo a Pará y allí me enseñaronun tiempecito. Asistí a una... ¿cómo se llama?, ah, auna escuela. Fui matriculado. Un maestro me esco-gió para asistir a la escuela y por eso sé leer, primo”(lín. 316-328).7

La afirmación de Sangama de que recibió edu-cación en una escuela de Pará parecería resolverel misterio, aún cuando sea poco probable que al-guien en el Belem del siglo XIX hubiera perdido sutiempo enseñándole a leer a un indio peruano. Perosi Sangama aprendió a leer en una escuela ¿porqué describe el papel como si tuviera un cuerpo yuna boca con labios rojos? Las teorías folklóricasoccidentales acerca de la escritura alfabética pue-

6 La fascinación con la escritura es un elemento clásico de loscultos de carga melanesios (Lawrence 1964). Los cultosmesiánicos de diversos tipos constituyen un rasgo común de lahistoria cultural de la amazonía sudoccidental (Varese 1973),pero no he escuchado de ningún otro en que la escritura hayacumplido un papel tan importante.7 Los términos utilizados en la narración para “escuela”,“matricularse” y “maestro” son todos construcciones piro y nopréstamos del español.

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den afirmar que esta escritura en realidad repre-senta el habla, pero nunca van tan lejos como paraconferirle al texto una boca y un cuerpo. ¿De qué,entonces, está hablando Sangama?

Uno de los rasgos más notables del relato deSangama sobre la lectura – al menos para un oc-cidental- es que éste no trata a los componentesgráficos de la escritura como “representaciones”o “símbolos” de palabras. De hecho, en el relatode Zumaeta virtualmente no se hace mención al-guna a la escritura. En la teoría folklórica occi-dental, la escritura – especialmente el alfabeto –constituye una representación visual del lenguajey cualquier texto en particular constituye una re-presentación visual de un discurso específico queemana de un autor específico. El relato de San-gama es extraño precisamente porque éste expe-rimenta el texto directamente como una personaque habla, como “una mujer con la boca pinta-da”. Existen, en mi opinión, dos importantes ra-zones por las cuales esto es así. La primera tieneque ver con un rasgo general de la cultura piro: laimportancia de los diseños gráficos en la experi-encia visual y en el arte de los Piro. La segundaes que Sangama interpretaba la lecto-escrituramediante un conjunto consistente de metáforasextraidas de la práctica shamánica, una interpre-tación aparentemente propia de él.

En Piro la escritura se llama yona. Yona tam-bién se refiere a aquellos diseños pintados, tejidoso tallados que son centrales al arte de los Piro.8 Laasimilación de la escritura europea a un términoindígena que designa a los ‘diseños’ no es exclusi-va de los Piro. Lo misma ecuación es realizada enlas lenguas pano habladas por los Shipibo y losConibo – asentados a lo largo del río Ucayali, alnorte de los Piro – para quienes quene significasimultáneamente “diseño” y “escritura” (Gebhart-Sayer 1985), y en otras partes de la amazonía. Tantoen la cultura piro como en la shipibo-conibo, loscomplejos diseños yona/quene son extremada-mente importantes y sirven para diferenciarlos desus vecinos como una indicación de su “bella cul-tura”. La investigación arqueológica demuestra queestos sistemas de diseño son antiguos, y sugiereque el diseño ha sido por mucho tiempo parte im-portante de los pueblos del Ucayali (Lathrap, Ge-bhart-Sayer y Mester 1985).

A pesar del considerable esfuerzo invertido endescubrir las dimensiones semánticas o represen-tacionales del elaborado arte gráfico de los Piro yde los estilos cognados de los Shipibo y Conibo delnorte, estos estudios han tenido poco éxito.9 Losdiseños tienen nombre, pero existe escasa eviden-cia de que los mismos ‘signifiquen’ el nombre quese les atribuye o que los nombres tengan un signi-ficado más allá de lo meramente descriptivo. Mipostura ante este tema es que este arte gráfico noestá interesado en la manera en que diseños espe-cíficos transmiten contenidos representacionales osemánticos, sino en el control visual de las superfi-cies. Las mujeres piro con las que discutí estosdiseños tuvieron poco que decir respecto de lasclases específicas de diseño, pero fueron muchomás explícitas en relación a la manera en que undeterminado diseño era adaptado a la superficiedurante la ejecución de la tarea. La rigurosa lógicade una determinada clase de diseños es mantenidaen toda la superficie, sin importar cuan complejasea su forma. La exitosa adaptación de un diseñoa una superficie compleja constituye la fuente desu belleza, mientras que el fracaso en el intento deintegrar el diseño es condenado como “feo”.

El poder estético de estos diseños radica enlos principios que Lévi-Strauss identificó en el artecaduveo en su análisis de “la representación divi-dida”:

“los componentes plásticos y gráficos...tienen unarelación ambivalente, la cual es simultáneamente unarelación de oposición y una relación funcional. Esuna relación de oposición por cuanto los requerimi-entos de la decoración son impuestos a la estructu-ra y la cambian, de allí la división y la dislocación;pero también es una relación funcional por cuantoel objeto es siempre concebido tanto en sus compo-nentes plásticos como gráficos” (1963: 260).

En esta cita Lévi-Strauss captura los podero-sos efectos visuales del arte del Ucayali: la cons-tante tensión entre el diseño pintado y la superficie

8 Esto no incluye dibujos figurativos, los cuales son agrupadosjunto con las fotografías bajo la categoría de yaglu. [En sentidoestricto, los términos yona y yaglu no son formas gramaticalescorrectas en piro, pero prefiero utilizarlas en vez de aquellasformas que especifican la posesión o del Absoluto (Matteson1965).9 Véase Roe (1982) y Gebhart-Sayer (1984, 1985).

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a la cual es aplicado, sea ésta una olla, una prendade vestir, o un cuerpo humano.

La importancia de los diseños gráficos en lacultura piro, así como en otras culturas del Ucaya-li, no radica en la manera en que los diseños trans-miten un contenido semántico o representacionalpara el cual la superficie constituye un mero sus-trato. Los diseños no son aplicados al azar en cual-quier superficie, sino solamente en las superficiesde ciertas cosas que han sido recientemente pro-ducidas y que están íntimamente relacionadas conla gente: alfarería usada para servir alimentos omasato, prendas de vestir, remos, brazaletes y lapiel humana. Al cubrir estas cosas con diseños, lasmismas son embellecidas a través del dominio quetienen las mujeres sobre el conocimiento del “di-seño verdadero”, a la par que son marcadas comocosas “verdaderamente piro”. El ‘diseño’ y su pro-ducción son conocimientos femeninos especializa-dos y constituyen los medios a través de los cualeslas mujeres controlan las transformaciones físicasde las formas materiales. Esto es lo opuesto a lapráctica shamánica, la cual en gran medida, aun-que no de manera exclusiva, constituye un ámbitomasculino. La práctica shamánica tiene que verprecisamente con las transformaciones de la for-ma material y con la ruptura de las superficies.Estas transformaciones son controladas a travésdel lenguaje oral de las canciones curativas, talcomo lo discutiré más adelante.10

Si esto es lo que yona significa para los Piro, espreciso investigar cómo es que este término ha sidoextendido para hacer referencia a la escritura oc-cidental. Los Piro y sus vecinos pano del norte es-tuvieron en contacto con los misioneros españoles,y por ende con la escritura europea, desde por lomenos mediados del siglo XVII. Los misioneroscatólicos residieron activamente con grupos piropor períodos limitados desde 1799 en adelante. Sibien probablemente estos misioneros no intentaronenseñar a los Piro o a los Shipibo-Conibo a leer yescribir, estos últimos deben haber tenido una con-siderable experiencia acerca de la importancia quela literatura tenía para los europeos.

En este contexto es interesante anotar que sibien por un lado los Piro extendieron el uso de sutérmino para “diseño” a fin de abarcar la escrituraeuropea, por otro, tomaron prestado el término para

designar a los textos escritos. Así, en lengua pirotodos los textos escritos son denominados kiruka.Esta palabra proviene en último término de un dia-lecto del quechua, más probablemente del quechuade San Martín, la lengua franca de las misionesfranciscanas del siglo XIX. En este dialecto killkasignifica “letra” y killkay, “escribir” (Park, Webery Cenepo S. 1976). Al ser tomado en préstamo porlos Piro, este término perdió su connotación de “es-cribir” (connotación asimilada en el término yona)y se centró en el material del propio texto. Kirukatambién significa “papel en general”.11 Gebhart-Sayer (1985) ha demostrado que en el siglo XIXlos Shipibo-Conibo estaban fascinados con los li-bros de los misioneros y que se resentían con lossacerdotes porque éstos se negaban a darles li-bros. Parece incluso que los Shipibo-Conibo llega-ron a producir sus propios libros, cada una de suspáginas cubiertas con complejos diseños. Algunosshamanes shipibo-conibo contemporáneos utilizanlibros invisibles de “medicina de diseños”. Al res-pecto, Gebhart-Sayer señala que:

“Existen indicios de que los shamanes pueden leerlos diseños de sus visiones analíticamente en unabúsqueda lineal de la configuración individual, peroen general la visiones de diseño son descritas comoimpresiones generales, no analíticas de “páginas” u“hojas” completas cubiertas de diseños, las cualespasan rápidamente ante el ojo interior del shamán yse desvanecen cuando éste intenta verlas más decerca” (1985: 161).

Volveré a discutir las experiencias visuales delos shamanes más adelante.

Mi argumento es, por lo tanto, que los Piro asi-milaron históricamente el componente gráfico dela escritura europea con su propia categoría de

10 Véase Gow (s.f.), donde discuto este tema en mayor detalle.Tal como lo ha demostrado Gebhart-Sayer (1984, 1985), elshamanismo shipibo-conibo utiliza el diseño de modo extensi-vo, pero precisamente en el establecimiento de la cura, cuandose le restaura al cuerpo del paciente su saludable integridad.11 Parece improbable que el término killka haya sido directamentetomado en préstamo por los Piro bajo la forma de kiruka, ymucho menos que la fuente haya sido el Quechua cuzqueño, talcomo sugiere Matteson (1965: 288); siguiendo la fonologíapiro (Matteson 1965), en niguno de los dos casos el préstamospodría haber producido el término kiruka. Es más probable quela palabra sea un préstamo secundario tomado de otra lengua. Eltérmino shipibo-conibo quirica (Gebhart-Sayer 1985), podríahaber producido el término piro kiruka.

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“diseño”. En tanto tal éste no tenía un interés par-ticular para los Piro: es decir, no presentaba másinterés que el que actualmente tienen para los Pirolos diseños gráficos de pueblos vecinos que tienen“diseños feos”, tales como los Campa, los Machi-guenga y los Amahuaca. La falta de importanciasemántica en los sistemas de diseño indígenas ha-bría predispuesto a los Piro a ignorar las letras comopotenciales portadoras de significado. Como con-traparte, y en la medida que el arte gráfico deUcayali enfatiza el estatus de la superficie del ob-jeto material que porta los diseños, los Piro y losShipibo-Conibo habrían estado predispuestos a lo-calizar el poder de la escritura europea en el objetomaterial que la sustentaba: el kiruka, el propio li-bro o papel. Así, mientras que los occidentales hananalizado el componente gráfico del arte del Ucayalien una vana búsqueda de una clave semántica, lagente del Ucayali eligió el otro polo de la relacióndescrita por Lévi-Strauss, analizando el componen-te plástico de la escritura europea para encontraruna explicación del poder que ésta tenía para losintrusos blancos.

Esto contribuye a explicar la falta de énfasisque Sangama pone en la escritura como tal y suconstante insistencia en el propio papel. Al igualque otros muchos nativos del Ucayali que le ante-cedieron, Sangama reconocía la importancia quetenía la escritura para los blancos que los oprimíany explotaban a él y a su gente, pero no localizaba lafuente de dicho poder en el componente gráfico dela escritura europea. Sangama concebía al propiopapel, el kiruka, como la fuente de dicho poder.¿Pero por qué decía que el papel tenía cuerpo y laboca pintada de rojo? ¿Por qué apelaba a imáge-nes tan poderosamente corpóreas, especialmentesi, como lo sugiere la narración de Zumaeta, enverdad podía leer? En mi opinión la fuente de lainterpretación de Sangama sobre la lectura radicaen el uso shamánico del alucinógeno ayahuasca.

El ayahuasca (kamalampi, natga, o totsga enpiro) es la principal droga curativa empleada actu-almente por los shamanes del bajo Urubamba y laevidencia sugiere que esto ha sido así desde hacemucho tiempo atrás. Esta droga, Banisteriopsissp., es ingerida por los shamanes a fin de revelarinformación oculta a la visión normal, tal como lasfuentes de enfermedad y la presencia de objetos

de brujería (“virotes” o “dardos”) en el cuerpo deun paciente. Se dice que en su estado natural elayahuasca es el cuerpo de un espíritu, ayahuas-camama, la “madre ayahuasca”. Cuando se ingie-re una infusión de este alucinógeno durante unasesión curativa, dicho espíritu se manifiesta prime-ramente bajo la aterradora forma de una anacon-da gigante que se enrosca en torno del estómagode quien ingiere la droga y que introduce su colapor la fuerza en la boca de la persona. Esta es unafase de intensa experiencia visual que está acom-pañada de náuseas violentas: diseños en coloresbrillantes y formas serpenteantes cubren todo elcampo visual. Estos diseños de culebra marcan lallegada de la ayahuascamama en su horrendamanifestación. Luego el shamán comienza a can-tar sus “ícaros” o “canciones curativas”, los cua-les persuaden al espíritu del alucinógeno a revelarseen su forma verdadera: la de una hermosa mujer.Así domesticado, el espíritu comienza a ayudar enla cura, revelando las fuentes de enfermedad ycantando sus poderosas canciones curativas. Sedice que la propia ayahuascamama es la fuentedel conocimiento curativo bajo la forma de dichascanciones: si uno se limpia el cuerpo observandolas prohibiciones y bebe ayahuasca con frecuen-cia, dicho espíritu le enseñará los ícaros, la mani-festación del poder curativo.

El poder del ayahuasca radica en su capacidadde transformar la visión de los shamanes de modoque vean las fuentes espirituales de la enfermedady la curación como si éstas fueran seres humanos.Estos espíritus son invisibles o tienen una aparien-cia física no-humana, tales como árboles o comootros fenómenos naturales. Revelados bajo su for-ma física de humanos, los shamanes los tratan so-cialmente, recurriendo a ellos para obtener ayudaen sus actividades curativas. Esto se hace a travésdel ícaro o canción curativa. La palabras de la can-ción curativa obligan a los espíritus, así como losdiscursos respetuosos recaban la ayuda y el amorde los parientes.12 Pero a diferencia de los discur-sos entre parientes, las canciones curativas sonincomprensibles para quienes no son shamanes.Estas canciones están fraseadas en idiomas queno se hablan en el bajo Urubamba, tales como el

12 Véase Gow (1988) para una discusión más profunda al respecto.

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quechua, o en variantes arcaicas del piro y del cam-pa. Todos mis informantes han subrayado la inin-teligibilidad de las canciones curativas, aún cuandosimultáneamente me proporcionasen interpretaci-ones plausibles acerca de su contenido.13 Se po-dría decir que los verdaderos significados de lascanciones curativas no radican en este mundo nor-mal, sino en la experiencia visual de los shamanescuando ven el mundo a través de los ojos del ayahu-asca.

“¿Por qué serían mis ojos como los suyos?”,dice Sangama (lín. 281). La descripción que haceSangama de la lectura constituye una analogía so-bre el uso shamánico del ayahuasca. El papel tieneotra identidad visual que no es la del simple papel:es una mujer con la boca pintada de rojo.14 Sanga-ma repite insistentemente que el papel tiene cuer-po: en piro, kamanro, “ella está caracterizada oposee un forma corpórea”. Esto refleja la progre-sión de visiones que se da a lo largo de las curaci-ones con ayahuasca, la cual va desde lasmanifestaciones aterrorizantes del espíritu delayahuasca hasta su revelación como una hermosamujer. A través de la ingestión de esta droga, losespíritus se revelan a sí mismos como personas,bajo la forma corpórea de seres humanos, más quecomo los vagos síntomas de la enfermedad en elcuerpo del paciente. En la cura con ayahuasca laaparición de yona, “diseños”, bajo la forma de ater-radoras anacondas es seguida por la aparición delos espíritus en sus verdaderas formas. De mane-ra semejante, para Sangama la lectura constituyeuna transformación del papel, el cual pasa de seruna superficie cubierta con “diseños” a ser unamujer corpórea que le habla y le revela informaci-ón sobre ámbitos distantes y sobre las actividadese intenciones de los habitantes de dichos ámbitos.Mientras que para el shamán contemporáneo, es-tos habitantes son los moradores del río y del bos-que, para Sangama, eran sus hijos de Manaos,Belem y Europa.

Sean cuales sean sus otras implicaciones, el usode ayahuasca constituye una técnica de transfor-mación visual. El ayahuasca se toma siempre porla noche, y a medida que la droga hace efecto, laoscuridad se llena con densas figuras geométricasde luz de colores, que serpentean y cambian hastaque son reemplazadas con imágenes de seres hu-

manos, plantas, animales y lugares. Estas trans-formaciones visuales están aparejadas con trans-formaciones auditivas, en la medida que los sonidosnormales de la noche son reemplazados por el zum-bido de la ebriedad producida por la droga, el cuala su vez da lugar a las potentes palabras y melodí-as de los ícaros. La experiencia visual del torrentede imágenes constituye la contraparte esencial delas canciones curativas. Cuando le preguntaba alos shamanes acerca del significado de estas can-ciones, invariablemente respondían: “Bebe ayahu-asca. Tomando la droga aprenderás y entenderás”.

Me parece altamente probable que las denota-ciones de las canciones curativas residan en estetorrente de imágenes, así como las palabras dellenguaje cotidiano denotan al mundo cotidiano. Siesto es así, entonces la práctica shamánica pro-porciona un excelente conjunto de metáforas parapensar la escritura, donde el mensaje hablado delhablante oculto existe, para los ignorantes, sólo enforma visual.

Se necesita realizar más investigaciones paraconfirmar esta hipótesis, pero por lo menos resultaclaro que Sangama coincide con las concepcionesoccidentales de la escritura alfabética al tratar a laescritura como la manifestación material de unavoz. Sin embargo, Sangama se aleja de estas con-cepciones cuando se trata de establecer el estatusde dicha voz. Mientras que para los occidentalesla escritura codifica el habla, y cualquiera que estéfamiliarizado con el código puede leer el mensajeaún cuando no comprenda su significado, para San-gama el papel es la manifestación de una mujerportadora de mensajes. Aquellos que saben leer –

13 Tengo la fuerte impresión de que la gente del bajo Urubambaexagera la ininteligibilidad de las canciones curativas. Me percatéde que mi limitada comprensión del Quechua me permitió en-tender al menos algunas de las palabras de las canciones curati-vas en dicha lengua, y estoy seguro que la mayoría de la gentedel bajo Urubamba podría haber entendido mucho más: puedeque el Quechua no esté tan difundido allí, pero muchas palabrasquechua son utilizadas en el dialecto local del español. De manerasemejante, las canciones curativas en Piro contienen muchoselementos léxicos piro identificables, aunque en extrañascombinaciones, y sospecho que lo mismo se puede decir de lascanciones curativas en Campa. Yo sugeriría que las cancionescurativas derivan su eficacia (Lévi-Strauss 1963) precisamentede este delicado equilibrio entre lo inteligible y lo oscuro.14 El achiote (gapijru), un tinte rojo, es asociado al ayahuasca,así como el huito (gmu/nso), un tinte negro, es asociado alalucinógeno toé o gayapa (Datura sp.).

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tales como Sangama y los patrones blancos – tie-nen los “ojos” que les permiten ver la página im-presa como si fuera dicha mujer y por ende hablarcon ella. Tal como ocurre con la práctica shamáni-ca, este contacto con un lenguaje solamente cono-cido por unos pocos implica una transformaciónradical de la identidad visual. Cuando los shama-nes toman ayahuasca ven revelarse a la invisibleayahuascamama como una hermosa mujer y en-tienden sus canciones curativas. Lo mismo ocurrecon Sangama: para el que sabe, la página impresase transforma en una mujer y uno puede entoncescomprender los mensajes que han sido enviadosdesde lejos y que de otra manera serían inaudibles.

Los emisores de los mensajes de Sangama tam-bién tienen un análogo en la práctica shamánica.Los shamanes del bajo Urubamba tienen piedrasmágicas llamadas incantos, a quienes se dirigencomo si fueran sus “hijos”. Cuando el shamán tomaayahuasca, estas piedras se manifiestan como se-res humanos que lo protegen de sus enemigos altiempo que lo ayudan en su actividad curativa. Así,tanto para Sangama como para los shamanes con-temporáneos, los “hijos” cumplen un papel crucialde mediadores en los contactos con seres de otrosmundos. De hecho, no es imposible que Sangamatuviera hijos en Manaos y Europa tal como afirma-ba: por aquel entonces la gente blanca se llevaba amuchos niños nativos para venderlos como escla-vos domésticos en las ciudades de la amazonía ymás allá.15 Lo que es improbable es que alguno deestos niños se haya enriquecido al hacerse adultoy mucho menos probable que alguno de ellos hayaaprendido a leer y a escribir.

La confirmación más explícita de la analogíashamánica de Sangama se da cuando éste intentaenseñar a leer a Zumaeta. Este último describe asílo sucedido:

“Parecía que [Sangama] estaba un poco borracho yaprovechando, le rogué: Primo enséñame a leer. Muybien, si quieres. Si quieres, puedes recibir el papel.Luego me dijo: Ven aquí. Voy a enseñarte. Fui a sulado y me dijo: Bueno, primo. Ahora agáchate. Pre-para la corona de tu cabeza. Sopló en sus manosacopadas y luego traspasó el aliento a la corona demi cabeza. Otra vez traspasó su aliento a la coronade mi cabeza y luego a toda mi espalda. Jjjac. Mira.Ahora ya vas a saber leer -me dijo con una voz seria.

Yo esperaba que me enseñara a leer por medio de losojos, pero al contrario, sacó su aliento y lo traspasóa la corona de mi cabeza, a mi cuello y a mi espalda.Me hizo girar mientras que soplaba: jjjjac, jajjac. ...Desde ahora tienes que seguir la dieta. No debestomar masato a cada momento -me mandó” (lín. 427-449, 457-458).

Sangama transfiere el conocimiento de la lec-tura a Zumaeta a través de su aliento. No “sopla”simplemente en sus manos: sopla de una maneraespecíficamente shamánica. Los sonidos que pro-duce provienen del acto de aclararse la garganta,el cual hace referencia a lo que actualmente seconoce en la región del bajo Urubamba como ya-chay, la “flema mágica” de los shamanes, la cualse encuentra albergada en el estómago, pero queéstos hacen elevar a la garganta a fin de realizarsus soplos shamánicos. Esta flema es descrita comouna sustancia luminiscente en la que radica el po-der y el conocimiento shamánicos. El sonido “jjjjacjajjac” que aparece en el texto es específico deeste tipo de soplo producido cuando el shamán pasacon fuerza su aliento sobre el yachay, haciendoque la flema suene como un cascabel y adquiera lapotencia de “el que sabe”. El soplo shamánico estáimbuido con el conocimiento del shamán y transfi-ere una parte de este potente conocimiento a qui-en ha sido soplado.

Ahora se puede ver que la descripción que haceSangama sobre la lectura se basa en una analogíacon el conocimiento shamánico. En este sentido lapregunta acerca de si Sangama podía o no leer sehace casi irrelevante. La analogía shamánica seríaigualmente apropiada para explicar sus poderes asus paisanos piro haya o no podido en realidad de-codificar la escritura de los periódicos. Su com-prensión de los escritos de los blancos, por la cualera único entre los Piro, sólo puede ser entendidadentro de los paradigmas del conocimiento shamá-nico. Tal como dice Zumaeta: “¿Cómo aprendió?Nunca se vio que alguien le enseñara” (lín. 555).De esta manera, Zumaeta descarta lo que paranosotros es la explicación más obvia acerca de la

15 Como de hecho continúan siendo enviados lejos, por cuantomuchos niños indígenas de esta zona terminan como sirvientesdomésticos en Lima. Las sensibilidades han cambiado y ahora selos denomina “empleados”; sin embargo, las condiciones detrabajo permanecen iguales.

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capacidad de leer y escribir de Sangama: que, talcomo él mismo lo afirmaba, había ido a la escuela.Pero esta explicación está totalmente oculta paralos Piro, por cuanto nadie vio que le enseñaran aleer y escribir. Para los Piro, sólo el conocimientoshamánico tiene la cualidad de tener un origen ocul-to, y por ello cualquier conocimiento oculto de estetipo necesariamente tiene que tener algo de cono-cimiento shamánico.

De esta manera, para su análisis de la escrituray la lectura Sangama tomó prestado el paradigmadel conocimiento shamánico a fin de explicar lamecánica de este extraño pero poderoso medio decomunicación. Esto plantea la pregunta acerca delos efectos que tuvieron los programas de alfabeti-zación y las actividades evangelizadoras del ILVen las prácticas shamánicas del bajo Urubamba.¿Cómo le fue al análisis de Sangama, y por exten-sión al conocimiento shamánico en general, ante laexpansión generalizada de la alfabetización entrelos Piro a partir de la década de los ’40? En ladécada del ’80 la mayoría de los Piro eran cristia-nos, ya sea bautistas o católicos, y tenían diversosgrados de devoción. A pesar de ello, y casi de ma-nera unánime, los Piro tienen fé en la curación sha-mánica y especialmente en el uso de ayahuasca.Así como toda aldea debe tener una escuela, todaaldea tiene uno o más shamanes practicantes. Laalfabetización y el shamanismo son dos formasigualmente importantes de conocimiento que per-miten controlar el hostil mundo exterior: mientrasque la alfabetización permite a los nativos lidiar consus patrones blancos y con el Estado, los shama-nes lidian con las fuentes de enfermedad en el ríoy en el bosque.

La interpretación que hace Sangama de la es-critura parece haber desaparecido sin dejar rastroen la cultura piro contemporánea: nadie me descri-bió la escritura en términos shamánicos.16 Sin em-bargo, el paradigma shamánico que subyace alrelato de Sangama ha sobrevivido a los programasde alfabetización del ILV. De hecho, esto pareceser una de las motivaciones que están detrás de lanarración de Zumaeta. Al hablar con la misioneradel ILV, Zumaeta se preguntaba constantementesi Sangama podía o no leer. ¿Cómo podía leer sinunca había tenido el beneficio de la instrucciónproporcionada por el ILV, de la cual todos los Piro

eran concientes por aquel entonces? Zumaeta, unode los primeros piro letrados y a la vez uno de losprimeros maestros escolares bilingües, vuelve unay otra vez a este problema. La solución que da aeste problema es la siguiente:

“Tal vez sólo estaba mintiendo o tal vez no. ¿Quiénsabe? Se dice que era mellizo. Tal vez esa era la ra-zón para que pensara tales cosas. Tal vez las cosasque nos contaba se originaban en su propia mente.Así era Sangama, el primer lector entre nosotros”(lín. 556-563).

Para los Piro, las personas que han nacido conun mellizo tienen una cualidad especial: son sha-manes natos.17 A diferencia de los demás, no re-quieren de entrenamiento para devenir shamanes.De esta manera, Zumaeta sugiere que Sangamapodía leer porque era un shamán nato y su extra-ordinario conocimiento de la lectura se originabaen su interior. Más aún, Zumaeta supone que supropio éxito en el aprendizaje de la lectura confir-ma el cumplimiento de la profecía de Sangama, asícomo la transmisión de su conocimiento (lín. 523-545). Ahora se puede observar una dimensión adi-cional de la narración de Zumaeta. Más que unrelato acerca de una época pasada, el mismo cons-tituía una sutil lección acerca de la eficacia delpoder shamánico que Morán Zumaeta, el pupilo, ledaba a la misionera Matteson, su maestra.

ConclusionesPara concluir, quisiera hacer dos breves suge-

rencias -surgidas del análisis realizado en este artí-culo- para posteriores investigaciones. La primerade ellas tiene que ver con el impacto de la alfabe-tización entre los pueblos indígenas de la amazo-nía. En este artículo he sostenido que un análisis

16 Cuando conversaban conmigo, los nativos solían contrastarel conocimiento de la escritura adquirido en la escuela con for-mas de conocimiento tales como el dominio del poder shamánicoy del poder del diseño. Aún cuando ya no conciban laalfabetización en términos directamente shamánicos, continúanutilizándola como una metáfora a través de la cual discutir otrasformas de transmisión de conocimiento.17 Mis informantes me aseguraron que en el caso del nacimientode mellizos siempre sobrevive uno solo de ellos y negaron queesto se deba a prácticas infanticidas. La lógica pareciera ser queel mellizo muerto sirve como “compañero espiritual” del que losobrevive.

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¿Podia leer sangama?: sistemas graficos, lenguaje y shamanismo entre los piro (perú oriental)

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de la interpretación de un hombre piro acerca de laescritura occidental nos conduce a temas suma-mente apreciados por los etnógrafos de los pue-blos de las tierras bajas de Sudamérica, tales comolos paradigmas del conocimiento shamánico y lasteorías del lenguaje y del poder. Tal vez he tenidomás suerte que la mayoría de los etnógrafos porhaber podido trabajar en una situación en donde laalfabetización no constituía ninguna novedad, y enun tiempo posterior a la intensa labor evangeliza-dora y educativa del ILV. Esto me ha dejado máscon un gran respeto por la complejidad y adaptabi-lidad histórica de estas culturas, que con una sen-sación de pesar por su supuesta fragilidad. Perome parece desafortunado que aquellos etnógrafosque trabajan en áreas donde los pueblos indígenasamazónicos están entrando en contacto con la al-fabetización por vez primera hayan mostrado tanpoco interés en la forma en que dichos pueblosestán experimentando este medio de comunicaci-ón. Mientras reflexionaba sobre el material que heanalizado en el presente artículo, a menudo desea-ba haber podido hablar con Sangama para así po-der aclarar algunos puntos que permanecenoscuros. También tenía la sensación de que mu-chos etnógrafos de la amazonía han hablado congente como Sangama, pero que, o no profundiza-ron la conversación o no la encontraron lo sufici-entemente interesante como para describirla. Lasetnografías de los pueblos indígenas amazónicosson ricas en condenas a la iniquidades cometidaspor las sociedades nacionales, los misioneros y la“civilización occidental” en general, pero son nota-blemente pobres en términos de su análisis de lafascinación que los pueblos indígenas han sentidopor estos intrusos (véase Viveiros de Castro, 1986,y Hugh-Jones, 1992).

Mi segunda sugerencia tiene que ver con lacuestión del diseño gráfico. Recientemente se ha

argumentado de manera convincente que no sepuede entender la escritura ni como un sustitutodel habla ni como una representación visual de lamisma. La escritura debe ser comprendida comoun modo autónomo de comunicación, que no sólotiene su fuente en el arte gráfico, sino que es partede este arte (Harris, 1986). Desde esta perspectiva,es doblemente sorprendente que se haya prestadotan poca atención al tema de la alfabetización en elcontexto de las culturas indígenas amazónicas, mu-chas de las cuales tienen tradiciones de diseño grá-fico de cierta complejidad (véase Tastevin 1925;Lévi-Strauss 1955; Reichel-Dolmatoff 1978, 1986;Vidal 1981; Vidal y Müller 1986; Turner 1980; Ge-bhart-Sayer 1984, 1985; Casevitz 1980/1981; y Gre-gor 1977). De hecho, estos sistemas gráficos hanalcanzado una cierta notoriedad intelectual graciasal trabajo de Jaques Derrida (1976), quien afirmaen su re-análisis del artículo de Lévi-Strauss “Wri-ting lesson” (1955) que los Nambikuara tienen unsistema de escritura. Donde sea que nos encontre-mos en este oscuro debate, no podemos pretendersaber mucho acerca de lo que significaba aquellafamosa lección para el jefe nambikuara o acerca dela importancia de esas páginas de “líneas ondulan-tes” que él produjo (Lévi-Strauss 1970: 325).

AgradecimientosMe gustaría agradecer a Andrew Jones, Ceci-

lia McCallum y Christina Toren por la ayuda queme brindaron para aclarar algunos de los temas deeste artículo. También quisiera rendir tributo al tra-bajo lingüístico de Esther Matteson, cuyos exce-lentes estudios de la lengua piro han sido deinconmensurable valor para mi investigación, yquien reconoció la importancia de la Historia deSangama y la preservó en forma impresa para unaaudiencia académica más amplia.

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Recebido em 25.09.09Aprovado em 13.10.09

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DESEOS ENCONTRADOS:ESCUELAS, PROFESIONALES Y PLANTAS

EN LA AMAZONÍA PERUANA

Luisa Elvira Belaunde *

RESUMENEste artículo examina las transformaciones que la escolaridad y el deseo deprofesionalización están generando en la transición de la oralidad a la escritura, loscambios residenciales, el surgimiento de nuevas élites políticas y la monetarización dela economía indígena. También presenta la propuesta de algunos pensadores indígenasde usar plantas con el propósito de encontrar un camino para salir de las contradiccionesy los reveses generados en torno a la escolarización. El análisis se basa sobre datosrecogidos durante varios viajes de campo realizados en 2008 y 2009, recorriendocomunidades de diversos grupos étnicos del Perú, especialmente shipibo-konibo, achuar,kichwa y ashaninka.1

Palabras clave: Educación indígena – Profesionalización indígena – Plantas maestras– Shipibo-konibo – Amazonía peruana

ABSTRACTCONFLICTING DESIRES: SCHOOLS, PROFESSIONALS AND PLANTSIN AMAZONIAN PERU

The paper examines some transformations brought about by schooling and the desireof professionalization in the transition from orality to writing, such as residential changes,emergence of new political elites and monetarization of the indigenous economy. Italso discusses the suggestion put forward by indigenous thinkers to use plants as away out from the contradictions and backlashes springing from schooling. The analysisdraws upon data gathered during various field trips in 2008 and 2009, journeyingthrough various indigenous communities of Amazonian Peru, especially amongst theShipibo-konibo, the Achuar, the Kichwa and the Ashaninka people.

Keywords: Indigenous education – Indigenous professionals – Teaching plants –Shipibo-konibo – Peruvian Amazon

* PHD em Antropologia Social. Pesquisadora associada. Programa de Estudos em Gênero e Saúde (MUSA). Instituto de SaúdeColetiva (ISC). Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n – Campus Universitário Canela – 40110.040 Salvador/BA. E-mail: [email protected] Agradezco al Field Museum de Chicago (USA) y a las ONGs Cima Cordillera Azul, Shinai y Solsticio del Perú, porpermitirme realizar el trabajo de campo para este estudio.

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Comienzo este artículo relatando un hecho quesucedió hace unos meses en la ciudad de Conta-mana, en el río Ucayali, durante un taller con algu-nos representantes de la federación shipibo-konibodel río Pisqui. Los organizadores del taller estába-mos intentando presentar el concepto de “prioriza-ción de deseos”. Pensábamos que esta nociónpodría servirnos como un instrumento de planifica-ción y queríamos asegurarnos que estábamos to-dos de acuerdo sobre su significado. Sentados encírculo alrededor de unas mesas, habíamos inten-tado definir la idea verbalmente y escrito algunaspalabras en un papelógrafo pegado en la pared.Pero sentíamos que, a pesar de nuestros esfuer-zos, no lográbamos transmitir la idea. De pronto,Roberto Velasco, líder de la comunidad shipibo-konibo de Santa Rosa de Pisqui, tomó la palabra.“Es como una historia que una vez escuché”, nosdijo y comenzó a contar lo siguiente:

Dicen que había una vez un señor llamado Xawam-pico y su mujer se llamaba Rona. Un día, él le hadicho a su querida esposa:

– “Vamos a buscar paiche (pirarucú, Arapaima gi-gas) en la cocha, en la laguna”.

Su mujercita le ha aceptado:

– “Si, vamos”.

Se han ido a una cocha muy grande donde habíabastante paiche. En canoa se han ido buscando pai-che. Ella iba remando atrás y el iba buscando senta-do en la punta de la canoa, buscando paiche en elagua. Por fin, en una orilla, el hombre ha visto unpaiche muy grande durmiendo. Su lomo salía fueradel agua. Al verlo, Xawampico se ha alegrado bas-tante y le ha dicho a su mujer:

– “Por acá, rema”, para acercarse al paiche despaci-to y poder picarlo.

Pero ella no ha remado nada. Entonces, Xawampicoha mirado hacia atrás y ha visto que su esposa esta-ba durmiendo. Estaba echada en la canoa y el vientole había abierto su pampanilla, su falda. En ese tiem-po, la gente no usaba calzón. Entonces, el viejo le havisto toda la paloma descubierta a su esposa. Ahí seha puesto a pensar:

– “¿A cuál le doy primero, al paiche o a mi mujer?Pucha..” .

Le mira al paiche y le mira a su doña… y su doñaestaba más rico:

– “¡Primero a mi doña!”, dice.

Y dale …”sho sho sho” … ha hecho mover la canoay esa oleada le ha hecho despertar al paiche. Cuan-do ha terminado de tener su relación, el hombre habuscado al paiche para picarlo, pero el paiche ya sehabía ido lejos.

– “¡Pucha! ¡Primero era el paiche”!, ha dicho el hom-bre.

Y así, pues, los dos se han vuelto a casa con hambrey sin paiche.

Todos reímos. Sus palabras nos tomaron des-prevenidos. La fluidez irreverente de su relato noscolocó ante la evidencia de que los estilos de lapedagogía indígena suelen ser más humorísticos yencarnados que los que solemos utilizar en los tal-leres de las ONGs. Nos demostró no solamenteque él había entendido perfectamente lo que signi-ficaba priorizar deseos, sino que también compren-día que, a pesar de tener las mejores intenciones yproyecciones a futuro, las personas somos faliblesy podemos terminar priorizando mal porque nues-tros apetitos pueden fácilmente desviarnos de nu-estras planificaciones. Sin mayores explicaciones,nos mostró que intentar comunicar una idea demanera abstracta, ajena a las vivencias, emocio-nes e imperfecciones humanas, es algo árido y pococonvincente. En cambio, narrar situaciones queejemplifican escenas vividas y toman en conside-ración las fallas humanas con ironía y simpatía, esuna técnica que permite eficazmente transmitir ide-as de manera clara y entretenida.

Una de las principales críticas que los pensado-res indígenas hacen de la escuela y del estilo decomunicación que las personas escolarizadas so-lemos usar es que, en ambos casos, se trata de unacercamiento “teórico” al conocimiento (TRAP-NELL, 2008, p. 99; MAHECHA, 2004, p. 205;ARHEM et al., 2004, p. 430; GASCHÉ, 2008;BELAUNDE, 2005, p. 251). La situación prototí-pica en las clases de escuela es la de un grupo dealumnos sentados con lápiz y papel en la mano,escuchando a un profesor hablar sobre algo queestá escrito en los libros y la pizarra, pero que noestá situado en la experiencia, corporal, interper-sonal y emocional, vivida en el momento de la en-señanza. A pesar de los intentos de cambiar elcontenido curricular y la metodología de enseñan-

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za, este modelo de interacción en clase continúadominante, y es constantemente reproducido en lasreuniones trabajo de las diversas instituciones quetrabajan con los pueblos indígenas de la Amazoníaperuana.

En la escuela, la enseñanza se da a base deindicaciones verbales, la lectura y la escritura. Hayuna voluntad explícita de transmisión de informa-ción de los profesores hacia los alumnos. En la fa-milia, en cambio, el énfasis está puesto en elaprendizaje amplio de los niños. Este se da porobservación, escucha, imitación y participación vi-vencial en la acción emprendida con las personasque nos rodean. Los aspectos intersubjetivos delcontexto del aprendizaje, es decir, la escena física,social y emocional, son tan importantes como elcontenido de información aprendido. Con quién, enqué momento y en qué circunstancias se aprendealgo, son aspectos inherentes a lo aprendido y a lorecordado a lo largo de los años. Por ejemplo, ha-blando sobre la diferencia entre una clase en laescuela sobre plantas medicinales y la manera comolos niños aprenden a usar las plantas en familia, laprofesora ashaninka Balbina Calderón explica losiguiente:

Los niños aprenden de eso [las plantas medicina-les] cuando ven curar a alguien. Creo que el niño ve,no creo que le digan: “esto, esto”. A veces, en elmonte le avisan, le hacen ver. No aprende porque leestoy hablando. No, lo ha visto. Aquí [en la escuela]estamos hablando teoría; no es igual que ir al montey le haces ver. Acá en la escuela dibujarán [las plan-tas medicinales], pero no le van a reconocer en elmonte. En la escuela aprenden más que nada a escri-birlo ...

No se aprende a preparar [plantas medicinales] porpreparar, tiene que haber la necesidad. Por ejemplo,cuando te pica la víbora, allí recién vas a aprenderqué vas a curar. (TRAPNELL et al., 2008, p. 99).

El contraste entre los conocimientos “teóricos”de la escuela y los conocimientos adquiridos enfamilia, que a menudo son llamados de “prácticos”,es una percepción bastante expandida entre lospadres y los profesores indígenas de diferentesgrupos étnicos. Está claro que estos términos per-tenecen al vocabulario introducido por las escue-las, pero su significado se refiere a una diferenciaidentificada desde la visión indígena. Lo “teórico”

no hace referencia, como podríamos suponer, alvalor de universalidad científica del conocimientotransmitido en las escuelas, sino al hecho que, enla escuela, el conocimiento es transmitido a travésde explicaciones que tienen por objetivo enseñar aleer y escribir esa información. Un principio subya-cente a la pedagogía escolar es que los alumnosrecuerdan lo que escriben y leen. En cambio, en lafamilia los niños se acuerdan de lo que viven. Esdecir, lo “teórico” del conocimiento escolar resideen el hecho de que se trata de aprender a escribir-lo, no de aprender a vivirlo. Lo “práctico” del co-nocimiento indígena, en cambio, como afirma elpensador indígena colombiano Roberto Macuna,reside en el hecho que se trata de un conocimientoque se aprende “viendo, viviendo y practicando”.(ARHEM et al. 2004, p. 432)

En este artículo examino las transformacionesque la escolaridad y el deseo de profesionalizaciónestán generando en la transición de la oralidad a laescritura, los cambios residenciales, el surgimientode nuevas élites políticas y la monetarización de laeconomía indígena. También presento la propues-ta de algunos pensadores indígenas de usar plan-tas con el propósito de encontrar un nuevo rumbopara salir de las contradicciones y los reveses ge-nerados en torno a la escolarización. El análisis sebasa sobre datos y reflexiones recogidas durantevarios viajes de campo realizados en 2008 y 2009,recorriendo comunidades de diversos grupos étni-cos del Perú, especialmente shipibo-konibo, achuar,kichwa y ashaninka, como parte mis actividadesde consultoría e investigación.

Escuela y cambio políticoLa escolarización de los pueblos indígenas de

la Amazonía peruana se inició a principios del sigloXX a cargo de los misioneros católicos, principal-mente dominicos y Jesuitas. Pero la expansiónmasiva de las escuelas comenzó en la década de1950 con la firma de un convenio entre la instituci-ón evangélica norteamericana Instituto Lingüísticode Verano y el Ministerio de Educación del Perú(ILV). El ILV creo escuelas primarias entre unadiversidad de grupos étnicos, muchos de ellos enlugares remotos con poco contacto con la socie-dad nacional, y montó un programa de formación

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de profesores indígenas bilingües localizado enYarinacocha, cerca a Pucallpa. Posteriormente, laUniversidad Nacional de la Amazonía Peruana enIquitos abrió una Escuela de Profesores Bilingües;y en la década de 1980 se creo el Programa deFormación de Maestros Bilingües de la AmazoníaPeruana (FORMABIAP) como una alternativalaica sustentada por la Asociación Interétnica deDesarrollo de la Selva Peruana (AIDESEP).

FORMABIAP surgió de la necesidad de fo-mentar la descolonización de la enseñanza, deve-lando los mecanismos que legitimaban y reproducíanlas formas hegemónicas de poder, y promoviendoprocesos de reafirmación étnica y cultural alrede-dor de la escuela (TRAPNELL, 1984; WALSH,2002; MIGNOLO, 2000). En la década de 2000, laincorporación de la interculturalidad condujo a unareformulación de los contenidos y las metodologí-as curriculares dentro del nuevo marco oficial dela Educación gratuita Interculatural Bilingüe, pri-maria y secundaria, establecida por el Ministeriode Educación. Sin embargo, a pesar de los logrosobtenidos en los últimos años, actualmente el por-centaje de población beneficiada por la nueva pe-dagogía bilingüe e intercultural es baja, cubriendosolo 9% de las escuelas y 5% del alumnado(TRAPNELL, 2008, p. 15; TUBINO; ZARIQUI-EY, 2007; FULLER, 2002).

Tan importante como los cambios pedagógicosimplementados por los diferentes programas edu-cativos, religiosos y laicos, que han trabajado enconvenio con el Estado peruano, son los cambiossocio-políticos generados por medio de la escolari-zación. Estos procesos han transformado radical-mente la distribución residencial indígena. Enmuchos lugares, la introducción de las escuelasprimarias dio lugar a procesos locales de pacifica-ción, agrupación y asentamiento de la poblaciónindígena. Las guerras intra-étnicas e inter-étnicascesaron, y las poblaciones que solían vivir disper-sas, siguiendo patrones de alta movilidad, forma-ron núcleos poblados con mayor permanencia parapoder construir una escuela. Poblaciones que ha-bitaban zonas remotas en las cabeceras se despla-zaron hacia lugares más cercanos a los grandesríos para reducir el tiempo de viaje a los centrosurbanos y facilitar la llegada del profesor. Todas

estas transformaciones resultaron de la adhesión,en gran medida voluntaria, de las poblaciones indí-genas a la propuesta de escolarización de sus hijostraída por los agentes de la colonización. Aunqueestos complejos procesos de cambio son conoci-dos en líneas gruesas, y hay algunos estudios etno-gráficos específicos (GOW, 1991; AMES, 2002;AIKMAN, 2003; DE LA CADENA, 2000), faltadocumentar los recorridos de los distintos gruposétnicos para tener un mapa del papel preponde-rante de la escuela en la constitución del actualpanorama político indígena en la Amazonía perua-na (TRAPNELL, 2008, p. 13).

Antes vivíamos regados. Solamente cuando hanvenido los profesores han salido, ya nos hemos ci-vilizado para poder educar a nuestros hijos en laescuela. Entre familiares se han pasado la voz paravivir juntos y así se han creado las comunidades.(Pascual Mucushua, líder kichwa del Pastaza).

Los cambios residenciales ocasionados por lacreación de las escuelas también tuvieron un im-pacto sobre el proceso de titulación de las comuni-dades nativas. En la década de 1970, con ladeclaración de la Ley de Comunidades Nativas,algunos núcleos poblacionales nacidos alrededor delas escuelas fueron oficialmente reconocidos porel Estado peruano y otorgados títulos de propiedadcomunales (CHIRIF, 2007). Desde entonces, con-tinúa el proceso de transformación poblacional al-rededor de las escuelas. Hasta el día de hoy, cuandose forma una nueva comunidad debido, por ejem-plo, a la separación o traslado de un grupo de po-bladores de otra comunidad, la primera gestiónrealizada por las autoridades indígenas es solicitaral gobierno local el envío de profesores y la cons-trucción de una escuela primaria.

Desde el inicio, la interdependencia entre laescuela y el establecimiento de las comunidadesnativas se vio reforzada por la burocracia comunalimpuesta por el Estado peruano. Para mantener suestatus legal, las comunidades nativas debían re-girse por un reglamento interno escrito, hacer asam-bleas comunales regularmente, mantener un Librode Actas legalizado por un notario, y llevar a caboelecciones periódicas donde elegir las autoridadescomunales encargadas de viajar a los centros ur-banos y realizar trámites en representación de la

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asamblea de comuneros. Estos mecanismos degestión comunal y de representatividad política erantotalmente ajenos a las prácticas indígenas exis-tentes hasta entonces. Quienes pasaron a ocupa-ron la mayoría de los cargos claves fueron,inevitablemente, los alumnos alfabetizados. Laspersonas mayores analfabetas, a pesar de sus co-nocimientos e influencia sobre la parentela, fueronpuestas de lado por desconocer como redactar, osimplemente firmar, documentos.

De este modo, nacieron las nuevas élites polí-ticas indígenas alfabetizadas, las cuales, a su vez,consolidaron la importancia de la escuela. El des-tacado papel político de los profesores bilingüesindígenas, con educación superior pedagógica,marcó nuevas expectativas para la población in-dígena y dibujó nuevos caminos de negociacióncon la sociedad nacional. Estos líderes forjaronun espacio propio de actuación a partir de la cre-ación de las federaciones indígenas locales, regi-onales y nacionales (CHIRIF, 2006). La escuelay el magisterio se volvieron instrumentos de lide-razgo en las organizaciones para la defensa delos derechos indígenas y la participación de can-didatos indígenas en las elecciones distritales yregionales. Aunque, actualmente la mayoría delíderes indígenas son varones, las mujeres tambi-én han ganado acceso a algunos espacios políti-cos. Los grandes perdedores de estos cambiosfueron las personas mayores analfabetas de am-bos géneros. Sin embargo, fueron ellos quienesdesearon, y continúan deseando, que sus hijos ynietos fuesen escolarizados.

Tener hijos profesionalesUno de los aspectos más notables de la esco-

larización de la Amazonía peruana es el intensodeseo expresado por los propios pobladores deque sus hijos y nietos reciban educación escolar.Como Gow (1991) sustenta en su estudio sobrelos yine del Bajo Urubamba, desde el punto devista indígena la escuela no establece una ruptu-ra en el parentesco sino, al contrario, es percibidacomo una continuación de los procesos de pro-ducción de la memoria vivida del parentesco.Hombres y mujeres de los más diversos grupos

lingüísticos y culturales, con variadas historias decontacto y lugares de ubicación, suelen concor-dar sobre este punto: quieren que sus hijos vayana la escuela. En la actualidad, también desean ví-vidamente que sus hijos cursen estudios superio-res en la ciudad, y lleguen a ser los profesionalesdel futuro en sus comunidades.

Completar los estudios, sin embargo, es costo-so. Aunque la mayoría de comunidades nativascuenta con una escuela primaria gratuita, las fami-lias incurren gastos periódicos para comprar ropae útiles escolares, y la calidad de la enseñanza esmuy dispar debido a las prolongadas ausencias yseveras limitaciones pedagógicas de algunos pro-fesores. A menudo, los profesores no completantodo el contenido de la currícula y los alumnos pi-erden el año. Además, solamente algunas comuni-dades con importante concentración de poblacióntienen un colegio secundario. Para muchos, cursarla secundaria implica altos costos de desplazami-ento y mantenimiento en una comunidad vecina oen una ciudad cercana. Los gastos para cubrir losestudios superiores de los hijos son aún más altospuesto que no solo hay que pagar los viajes y elmantenimiento en la ciudad, sino la matrícula enlos centros de educación superior, institutos peda-gógicos, escuelas técnicas y universidades estata-les y privadas. Hay algunas becas de estudioprovenientes de diversas instituciones, pero estasno cubren la demanda. A pesar de su limitado pre-supuesto, muchos padres están dispuestos a hacersacrificios asombrosos para lograr que sus hijoscompleten sus estudios fuera de la comunidad.Cuando no pueden conseguir becas, dedican granparte de sus entradas monetarias a costear la edu-cación secundaria y superior de sus hijos en lasciudades. Lograr que sus hijos sean profesionaleses el aliciente sobresaliente de los padres y lasmadres de familia.

Qué significa ser un profesional para los pobla-dores indígenas amazónicos es un tema que tienemúltiples significaciones políticas, económicas ysociales, que solamente puede esbozar en este ar-tículo. El profesional es una figura compleja delimaginario cultural indígena y nacional actual. Unprofesional es alguien que ha terminado la escuelaprimaria, el colegio secundario y algún curso de

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educación superior, como el magisterio, un cursode formación técnica o una carrera universitaria.Pero, tener un título de educación superior no essuficiente. Lo que caracteriza a un profesional esque tiene empleo, recibe un sueldo y su trabajo norequiere un desgaste físico a diario en la chacra oel bosque. Un profesional trabaja principalmentecon documentos: La escritura es un aspecto fun-damental de sus responsabilidades y da legitimidada su posición de autoridad en la sociedad nacional.

Muchas veces, cuando llego a una comunidadpor primera vez los pobladores me preguntan cu-ánto tiempo he estudiado en la universidad paratener el empleo que me lleva a conocerlos. Cuan-do les digo que he pasado más de 10 años estudi-ando, suelen mirarme algo impresionados. “¡Peropor lo menos ya eres profesional!”, exclaman.Después, suelen preguntarme cuánto es mi sueldoy entablan una conversación contándome cuántoellos también desearían ser profesionales y recibirun sueldo. Los jóvenes hablan de sus experienciasen los centros educativos superiores; los mayoreshablan de sus propios estudios, muchas veces in-terrumpidos en la escuela primaria, y de los es-fuerzos que están haciendo para “hacer estudiar alos hijos”. Cuentan cómo se las tienen que arreglarpara sustentarlos en la ciudad, las dificultades deencontrarles alojamiento y cómo, a pesar de suslimitados ingresos y las dificultades de transporte,les logran mandar algo de dinero, o plátanos y yucade la chacra para su alimentación. También cuen-tan cómo algunos jóvenes tuvieron que interrumpirsus estudios por falta de recursos, o porque encon-traron pareja, o porque sufrieron alguna enferme-dad, o porque se dedicaron a beber alcohol en lugarde concentrarse en su carrera. “¿Crees que cuan-do mi hijo termine sus estudios de computación vaa encontrar trabajo?”. “¿Cuánto le pagan ahora alas enfermeras?”. “¿Dónde puede presentarse mihijo que está terminando sus estudios de técnicoagropecuario?”. Este tipo de preguntas revelan laansiedad que los padres sienten sobre los resulta-dos de la inversión que están realizando al mandara sus hijos a cursar estudios secundarios y superi-ores en la ciudad. Es para ellos un terreno total-mente nuevo y lleno de riesgos. Sin embargo,permanecen firmes en su convicción de que la pro-fesionalización de los hijos es una necesidad y una

responsabilidad que los padres deben de asumir.“De donde sea, pero tenemos que encontrar algode dinerito para hacer estudiar a nuestros hijos, parasu comida, para su viaje. Si no les hacemos estudi-ar, van a quedar igual a nosotros. Acabándose enla chacra”.

El deseo de escolarización y profesionalizaciónes un deseo de acceso a ingresos monetarios y aun trabajo menos agotador y con mayor prestigio,pero también es un deseo de reivindicación ciuda-dana. “Necesitamos tener hijos profesionales paraque salgan a defender a la comunidad, para quepuedan escribir los documentos y hacer las gestio-nes ante las autoridades regionales”. He escucha-do este tipo de afirmaciones entre diversos gruposétnicos y lugares del país, en las zonas cercanas alos centros urbanos que interactúan diariamente conlos profesionales de las ciudades, y en los ríos re-motos, donde las visitas de profesionales son másraras. Es necesario tener hijos profesionales paraque “defiendan” a los suyos. La escritura es unarma contra la agresión de la sociedad nacional(AMES, 2002; AIKMAN, 2003).

Ahora, qué significa defenderse depende delcontexto socio-cultural y político de cada lugar.Pueblos vecinos pueden tener percepciones dife-rentes. Por ejemplo, entre los achuar de los ríosinternos de la cuenca del Pastaza, que desde hacecasi una década se oponen colectivamente a laentrada de compañías extractivas en su territorio,la profesionalización es necesaria para lograr pro-tegerse legalmente contra la implantación de con-cesiones por el Estado y la entrada de madereras,petroleras y mineras en sus tierras.

Antes, no hemos tenido la oportunidad de aprendera leer y escribir. Nuestros abuelos no sabían ni unaletra, nada. Pero cuando se formó la primera comuni-dad, con el apoyo de los misioneros hemos hecholas gestiones para tener un profesor para enseñar anuestros hijos, y a partir de eso, nos hemos dadocuenta que nosotros también podíamos ser profesi-onales. Ahora, estamos siempre en relación con elmundo de los que hablan castellano. Para poderconversar con ellos, para poder competir y reclamarnuestros derechos, para que no nos engañen, tene-mos que aprender las cosas de la sociedad occiden-tal. Por eso nosotros siempre solicitamos a nuestrogobierno local para que nos haga una infraestructu-ra, así como en la ciudad tienen una escuela buena.

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Nuestros hijos tienen los mismos derechos que loshermanos mestizos. Ellos también necesitan educa-ción, una educación mejor. Estamos con la idea deeducar a nuestros hijos, para que con el tiempo ellossean defensores de nosotros. (Kamiju, líder achuardel Pastaza).

Entre sus vecinos, los kichwa ribereños de laregión de Andoas, en el alto Pastaza, donde lascompañías petroleras operan desde hace 40 años,la escolarización y la profesionalización son vistascomo necesarias para “poder hacer gestiones conla compañía”, es decir, negociar acuerdos colecti-vos e individuales con la empresa, y lograr mejorescondiciones de trabajo y de venta de sus productosagrícolas. Tal es su temor de no estar aptos paranegociar con las empresas, que algunos padres defamilia se oponen a que las escuelas den una en-señanza bilingüe. Temen que sus hijos no conoz-can suficientemente el castellano para poderdesenvolverse ante las compañías y las institucio-nes del Estado. Este temor también se encuentraentre otros grupos involucrados en la economíaextractiva nacional desde hace décadas.

El significado de la ciudadanía toma maticesdiferentes en cada grupo cultural y lugar, pero hayalgunos puntos que parecen ocupar un espaciocentral en el imaginario político indígena actual. Porejemplo, a pesar de sus diferentes posturas hacialas empresas extractivas, para ambos pueblos,achuar y kichwa, la escolarización y la profesiona-lización son instrumentos de ciudadanía, y ambosreiteran su deseo de que sean sus hijos los queocupen los puestos de profesor, médico, enferme-ra, abogado, ingeniero y técnico en sus comunida-des en un futuro cercano. En un estudio que condujecon miembros de algunas comunidades shipibo-konibo, ashaninka y awajún (BELAUNDE et al.2005), salió a relucir que existe una relación implí-cita entre ser plenamente ciudadano y ser profesi-onal. Una imagen que aparece de manerarecurrente en las conversaciones de los adultos yen los dibujos de los niños, retrata el Perú comouna gran ciudad poblada de profesionales que po-seen documentos en regla. Ser profesional es, hastacierto punto, sinónimo de ser plenamente peruano.

La escolarización y la profesionalización sonconcebidas como pasos fundamental para lograrla autonomía política y económica, e instituir la equi-

dad de derechos y estatus en un Perú inclusivo ypluriétnico, y asegurar la permanencia de los pue-blos indígenas en sus territorios ancestrales. Comotuve la oportunidad de observar repetidas veces,cuando los pobladores hablan de hacer gestionesante la alcaldía para obtener fondos de construcci-ón y refacción de la escuela comunal, está claroque para ellos, de la buena escolarización de sushijos dependen sus posibilidades de profesionaliza-ción para que puedan trabajar en sus comunidadesen el futuro. “Queremos buenas escuelas para quenuestros hijos lleguen a ser profesionales y que enel futuro cuando haya un taller, sean nuestros hijoslos que vengan a conducirlo”. “Así como tu vienesahora a trabajar con nosotros, queremos que nues-tros hijos sean los médicos, los ingenieros, los in-vestigadores de nosotros”. Expresiones como estasmanifiestan su determinación de llegar a ocuparlos puestos remunerados que actualmente son ocu-pados por personas de fuera, pero que correspon-den a sus propios hijos para que ellos tomen lasriendas de sus territorios y su ciudadanía.

El edificio de la escuela, preferiblemente dematerial noble, muros de cemento, techo de cala-mina, pizarra y pupitres de madera, es un símbolode ciudadanía tan intensamente deseado como lapresencia de buenos profesores. La construcciónde la escuela es unas de las principales razones desedentarización de los asentamientos comunales;y el orgullo de los pobladores es embellecer y lucirel local durante las fiestas patronales y los torneosde futbol que congregan a los vecinos de una loca-lidad. El crecimiento de la escuela también es si-nónimo de crecimiento poblacional y adquisiciónde obras de infraestructura comunal, veredas, luzeléctrica, tanque de agua, etc. Por ejemplo, cuan-do los pobladores solicitan obras de electrificacióna la alcaldía suelen argumentar que los escolaresnecesitan luz para poder estudiar en las noches.

Muchos de los poblados en crecimiento urbanoen la actualidad florecieron de la semilla de unaescuela, y poco a poco se fueron tornando en pe-queños polos de empleo donde se concentran pro-fesores, enfermeros, médicos, ingenieros ytécnicos. En cambio, cuando por alguna razón dejade funcionar la escuela, la comunidad rápidamentese despuebla. Los habitantes abandonan sus cha-cras temporalmente en busca de un lugar donde

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educar a sus hijos. Desde el punto de los poblado-res indígenas, es fundamental que el crecimientode sus comunidades sea generado juntamente conla escolarización y profesionalización de sus propi-os hijos, no con la imposición de profesionales defuera. Sin embargo, en la práctica, las posibilida-des de que los jóvenes indígenas que logran com-pletar sus educados secundarios o profesionalesen las ciudades consigan un empleo que les permi-ta trabajar en sus comunidades son muy pocas. Aparte de los puestos de profesor en las escuelasbilingües de las comunidades, casi todos los pues-tos remunerados, profesionales y técnicos los obli-gan a quedarse en las ciudades. El mercado deempleo se concentra en las ciudades.

Algunos riesgosLa escolarización y la profesionalización son,

sin lugar a duda, instrumentos para lograr una so-ciedad más equitativa en la Amazonía peruana, perotambién tienen muchos reveses y contradicciones.Al entrar en el sistema de educación nacional sehan puesto en marcha algunos mecanismos de je-rarquización y competición interna en las poblacio-nes indígenas, y se ha consolidado la subordinaciónde las comunidades a las ciudades. En particular,la formación de las nuevas élites educadas en laciudad ha reproducido dentro de la población indí-gena algunos mecanismos de exclusión y cliente-lismo provenientes de la sociedad nacional. A veces,los líderes indígenas que deberían representar elinterés colectivo de sus comunidades y federacio-nes son acusados por los pobladores de actuar eninterés propio, vivir en las ciudades lejos de susfamiliares y malversar fondos. Al mismo tiempo,por tratarse de miembros de la familia, muchosprefieren no hacer denuncias formales y dejar pa-sar sus abusos sin sancionarlos. Estos son temasdelicados, sobre los que hay pocas publicaciones apesar de que preocupan muchísimo a los comune-ros (SANTOS GRANERO, 1996; CHIRIF, 2006).

Una de las quejas más frecuentes es que lasnuevas élites alfabetizadas monopolizan el accesoa las becas de estudio secundario y profesionaldentro de sus comunidades y federaciones. Esteproceso se inició desde la creación de las escuelasbilingües, cuando las organizaciones religiosas y

laicas que manejaban la educación indígena enconvenio con el Estado peruano financiaron la for-mación de profesores bilingüe. Los primeros pro-fesores indígenas pasaron a tener gran influenciasobre sus comunidades y federaciones, a vecesfavoreciendo a sus hijos y familiares cuando se tra-taba de identificar a nuevos becarios. De estamanera, se crearon familias de influencia enfren-tadas en luchas de poder. Actualmente, las famili-as que cuentan con varios jóvenes con educaciónescolar completa y superior suelen ocupar una po-sición dominante tanto en las comunidades comoen las federaciones y la política local. Hay queaclarar, sin embargo, que a pesar de su importan-cia estratégica, las becas de estudio no cubren sinouna porción pequeña de los estudiantes indígenasen la actualidad. En muchos casos, los hijos le de-ben sus estudios al financiamiento de sus padres oa su propio trabajo en la ciudad.

Otro tema que preocupa a los padres de familiaes que los jóvenes que logran completar sus estu-dios o que pasaron un tiempo estudiando en la ciu-dad, no vuelven a sus comunidades de origen.Muchos se quedan definitivamente en la ciudad,puesto que solo ahí logran conseguir un trabajocorrespondiente a su formación. Otros, regresan asus casas pero su experiencia los lleva a diferenci-arse del estilo de vida local. Algunos padres se quejanque los jóvenes se avergüenzan de los suyos. Has-ta parecen olvidarse cómo comer la comida con laque fueron criados y sólo desean comer comidascomerciales de las ciudades. Es indudable que laescolarización ha acelerado la monetarización dela economía indígena y establecido nuevos cáno-nes de prestigio. En algunos lugares, también hacontribuido al abandono por parte de los jóvenesde las mingas y los otros mecanismos de ayudamutua que permitían alcanzar una buena calidadde vida con relativamente poco dinero.

Los jóvenes escolarizados quieren recibir y gas-tar dinero. Tienen nuevos hábitos de consumo, ro-pas y tecnologías. Aparte de los motores de luz,que cumplen una función utilitaria, la tecnología quehace furor en las comunidades en la actualidad sonlos videos y radios con alto parlantes de gran al-cance. Los jóvenes escolarizados son los principa-les diseminadores de las películas y la música demoda en las ciudades, y las muestran de noches a

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sus vecinos, contribuyendo a divertir a la poblacióne introducirla al consumo mediático urbano. Algu-nos pasan a ocupar la posición de los patrones lo-cales, se hacen comerciantes y abren una bodegapara la venta de comestibles, cerveza y aguardien-te. El despliegue de estas mercancías refuerza suprestigio pero también aumenta las tensiones en lacomunidad, genera inequidades, celos, envidias ycompetencia. Además, fomenta el divisionismo yel alcoholismo con bebidas comerciales. Para lasmujeres, el matrimonio con un hombre escolariza-do es una estrategia de ascensión social. En el pa-sado, el esposo ideal era buen cazador, pescador ytrabajador en la chacra. Hoy en día, es un hombrecon dinero capaz de comprar cosas para satisfa-cer las demandas de su esposa, y si posible, man-tenerla en la ciudad a ella y a sus hijos hasta queestos puedan completar, a su vez, sus estudios es-colares y profesionales.

Cuando los muchachos regresan de la ciudad, yabuscan sus esposas. Algunos beben más trago. Esporque a los jóvenes les gusta más rápido emborra-charse o a veces más rápido les gusta la fiesta. Be-ben más que los mayores. (Pascua Mucushua, líderkichwa del Pastaza).

La necesidad de conseguir dinero para educara los hijos también fomenta la monetarización de laeconomía indígena. Un tema que siempre causagran animación en las conversaciones entre pobla-dores es saber cuánto dinero se necesita. “Es infi-nito”, parecen concordar los pobladores dediferentes lugares. “Para cada hijo hay que com-prarle su uniforme, sus cuadernos. Los zapatos soncarísimos. Y la ropa solo dura unos meses. Rapidi-to se rompe y hay que comprar nuevo. Eso mien-tras está en la primaria. ¿Y cuando se va a lasecundaria? ¿Y para pagarle sus estudios en la ciu-dad? Y eso es para un hijo, pero nosotros tenemoscuatro, cinco. No tiene fin”. El financiamiento delos estudios de los hijos es un proyecto de desem-bolso de fondos de por vida que los amarra a laeconomía monetaria y los obliga a aceptar las con-diciones del mercado. Por ejemplo, encontrar di-nero para los estudios es una de las principalesrazones expuestas por pobladores para aceptar laentrada de empresas extractivas en sus territorios.“Con el dinero de la empresa voy a hacer que mis

hijos sean profesionales”, es una afirmación común-mente colocada por los pobladores que están con-siderando aceptar las propuestas de las madereras,mineras y petroleras, sin saber si es que sus hijoslograrán llenar sus expectativas de profesionaliza-ción ni si el impacto ambiental de las actividadesextractivas perjudicará de manera irreversible suentorno y su economía.

Son múltiples los reveses acarreados por el de-seo de escolarización y profesionalización, pero loque más preocupa a los padres es que sus hijos co-miencen a estudiar en la ciudad, ya sea en un cole-gio secundario o en un centro de educación superior,y “fracasen”, como suelen decir, que no puedan ter-minar. Los estudios de los hijos son la principal in-versión de las familias indígenas a mediano plazo,pero su éxito es inseguro porque depende, en granparte, del comportamiento emocional y reproducti-vo de los jóvenes. Una de las mayores contradicci-ones internas de todo el proceso de cambio socialgenerado alrededor de la educación es que la esco-larización, tan deseada por los padres, es uno de losprincipales factores de erosión de su autoridad so-bre sus hijos, y esto es, a su vez, es un elemento queactúa directamente en detrimento de que los jóve-nes logren completar sus estudios. Es un círculo dedeseos encontrados, entrelazados y enfrentados.

Frecuentemente, los padres se quejan de quesus hijos no les hacen caso, que no estudian quedebieran y, especialmente, que en la escuela seenamoran y se emparejan fuera de tiempo o conpersonas inadecuadas. Desde el punto de visto in-dígena, la enseñanza mixta es uno de los mayoresobstáculos en el camino de sus hijos. Tradicional-mente, entre muchos grupos étnicos de la Amazo-nía peruana, la enseñanza era diferenciada parahombres y mujeres, y los matrimonios eran, por logeneral, organizados por los padres de los mucha-chos. Pero con la implantación de la escuela, losjóvenes de ambos géneros se educan juntos y co-mienzan relaciones sin la autorización de sus mayo-res y, a menudo, en contra de sus recomendacionesy advertencias. En un estudio sobre el trabajo in-fantil entre los Shipibo-Konibo, Ashaninka y Awa-jún del Perú (BELAUNDE et al., 2004),observamos que aunque la asistencia a la escuelaprimaria por ambos géneros es general, existe unamarcada diferencia en la carga laboral impuesta

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por la escuela para los niños y las niñas. Ambosgéneros contribuyen al mantenimiento de la casa,pero las niñas comienzan a realizar labores domés-ticas más pequeñas, como cuidar a sus hermanosmenores, y pasan un tercio más del tiempo traba-jando fuera de la escuela que los niños. La tasa deabandono de los estudios escolares, también es másalta para las niñas que para los niños, debido a queel matrimonio y el embarazo en la adolescencia eshabitual. Las niñas suelen quedar embarazadas al-rededor de los 15 o 16 años, o antes, e interrumpirsus estudios para dedicarse a sus hijos. Los mu-chachos también abandonan las clases para traba-jar y conseguir dinero, pero suelen completar susestudios secundarios con mayor frecuencia que lasmujeres. Para las muchachas, la escuela presentaun peligro adicional. Algunos profesores inescru-pulosos abusan de su posición de autoridad paraseducir o violentar a las alumnas. Actualmente, loscasos de seducción de menores por profesores sonusualmente llevados a la justicia por violación, peroes probable que muchos se mantengan en silencio,por lo que es difícil estimar las dimensiones del pro-blema (PAREDES, 2004, p. 69-78).

Para los estudiantes de ambos géneros, el de-seo de continuar los estudios secundarios y profe-sionales es la mayor motivación a salir de suscomunidades hacia las ciudades, con o sin becas.Sus padres suelen enviarles dinero y alimentos, peropor falta de recursos, muchos jóvenes se ven for-zados a aceptar trabajos de alto riesgo social y físi-co (TEJADA, 2005; ESPINOZA, 2006; RUIZ,2008). El trabajo doméstico, el empleo en bares, elalcoholismo y la prostitución colocan a los estudi-antes indígenas en una situación de marginalizaci-ón. A menudo, los jóvenes se ven forzados aabandonar sus estudios debido a la incompatibili-dad con el trabajo, o distraídos por otros deseos, odebido a un embarazo. Desde el punto de vista dela población local, la alta incidencia de madres sol-teras entre las estudiantes indígenas se relaciona adiversos elementos fomentados por la escuela mixta,como la erosión de la autoridad paterna y maternasobre las decisiones matrimoniales, el abandono delos rituales reproductivos que establecían el invo-lucramiento del padre en el embarazo y parto desus hijos, la preferencia de las muchachas indíge-nas por casarse con hombres que disponen de di-

nero, y la alta incidencia de alcoholismo entre losvarones indígenas.

Como el pescador de la historia con la que co-mencé este artículo, muchos jóvenes se dejan dis-traer de sus estudios y nunca llegan a la meta tandeseada por sus padres. El gran problema con losque fracasan en los estudios, es que cuando regre-san a sus comunidades, tampoco tienen las habili-dades necesarias para valerse por si mismos paraproducir comida y satisfacer todas sus necesida-des. Como pasaron la mayor parte del tiempo de lainfancia estudiando en la escuela, no fueron a lachacra, a cazar ni pescar con los mayores, y noaprendieron de manera vivencial los conocimien-tos incorporados y las habilidades necesarias paraderivar su subsistencia completa. Toda su existen-cia fue planificada priorizando el deseo de lograrser profesionales y tener dinero. Cuando regresanfracasados a sus casas, no les queda sino depen-der de sus padres hasta adaptarse o embarcarseen algún trabajo riesgoso y mal remunerado conlas compañías madereras, las mineras o los patro-nes del lugar, a menudo enfrentando soledad, po-breza, marginalización y abuso físico o sexual. Enlugar de constituir una continuación del proceso deproducción de parientes conocedores y capacesde defenderse, los estudios pueden conducir a for-mas contemporáneas de incapacidad y esclavitud.

AlternativasEs necesario comprender la mezcla entre lo in-

dígena y lo “otro”, lo híbrido, y al mismo tiempovisualizar los procesos de transformación y resili-encia cultural para evitar limitarse a una descripci-ón penosa de los procesos de pérdida y los riesgosgenerados por la escuela. Teorizar la mezcla no-vedosa en la Amazonía es una prioridad para cap-tar el movimiento de apertura de las realidadesindígenas y sus múltiples y muchas veces contra-dictorias y fluctuantes identidades. Estas dinámi-cas de cambio deben ser abordadas desde unaperspectiva de género que otorgue tanto a los hom-bres como a las mujeres la posición de sujeto deagencia social e integren las concepciones cosmo-lógicas amazónicas (MCALLUM, 2001; PELU-SO, 2003; MAHECHA, 2004; NIETO, 2007;BUITRAGO, 2007; ROSAS, 2007).

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Como me explicó el líder shipibo-konibo Segun-do Renfijo durante el taller de trabajo que mencio-né al principio de este artículo, los padres de familiahan observado las consecuencias del abandono delas prácticas de crianza familiar. Cuando se crea-ron las primeras escuelas, ellos no tenían ningunaexperiencia, no sabían cuales serían las consecu-encias de la escolarización. Los padres confiaronen que los profesores darían a sus hijos una forma-ción completa.

Los padres nos hemos desentendido de la educaciónde nuestros hijos. Hemos confiado demasiado en elprofesor. Ahora, estamos viendo que no podemosconfiar así. Tenemos que hacer valer cómo nos cria-ron nuestros padres, como nos aconsejaron, para quenuestros hijos no fracasen. Yo quiero que mis hijoslleguen a graduarse profesionales, pero no podemosdesentendernos de lo que pasa en la escuela. (Se-gundo Renfijo, líder shipibo-konibo del río Pisqui).

Con el pasar de los años, al contemplar sus pro-pias frustraciones y las frustraciones de los jóve-nes, los padres han visto la necesidad de involucrarsenuevamente en la enseñanza de sus hijos y crítica-mente replantear algunos criterios de la pedagogíaescolar. Además de la observación, la imitación yla práctica, plantean que los métodos de aprendi-zaje familiar incluían palabras de consejo y el usode plantas con propósitos pedagógicos.

Anteriormente nos aconsejaban nuestros abuelos,nuestros tíos, nuestros padres, ellos aconsejaban asus hijos. A mí me aconsejaba mi papa para no serocioso. Para ayudar a donde trabajar a nuestros tíos,para no estar mirando no más, para ayudar a dondeellos trabajan. También nos sacaban de la cama a las3 de la mañana y nos hacían bañar, y después no nosdejaban volver a la cama ya. Decían que era para quenos pueda lamer el tigre. Nos hacía bucear y beberagua del fondo del río, agua fría, para hacernos fuer-tes y nos curaban con plantas para ser trabajadores.Con piripiri, con chuchuahuasi, nos curaban paraaprender bien. Así nos aconsejaban, a hacer canoa,hacer uno mismo. Cuando ya tengamos mujer, parahacer canasta, hacer flecha, para no pedir prestado,para tener uno mismo sus propias cosas.Todos esos consejos hemos venido perdiendo.Ahora actualmente no hay consejo de los abuelos.Pero así mismo, yo con la edad que tengo puedo darconsejo a mis hijos, y a veces yo aconsejo a misnietos. Y a veces no hacen caso, no quieren saber,

no quieren saber nada. “Eso es de los antiguos”,dicen. “Ahora todo es moda”, dicen, “moderno”.Por eso ahora la juventud de ahora no sabe hacer nicanoa, ni canasta ni remo, ni flecha, no tiene anzue-lo. Ahora la juventud tiene nada más tarrafa y tape-ra, con eso cazan ahorita. Ya no hay flecha ya nohay anzuelo. Algunos balean con escopeta, peromayormente ya la juventud no sabe ni balear. Y cu-ando regresan de la escuela quieren que se les de lacomida servida con refresco. (Segundo Renfijo, lí-der shipbo-konibo del río Pisqui).

Según la pedagogía indígena, los consejos ver-bales y aquellos directamente impartidos por lasplantas eran esenciales para darles a los jóvenesun sentido de voluntad, propósito y determinación.Los métodos de crianza fomentaban la autonomíapersonal, la capacidad productiva y la sociabilidadentre ambos géneros, estableciendo una clara ycomplementaria repartición de las responsabilida-des del matrimonio entre hombres y mujeres. Unode los grandes problemas de la escuela y la educa-ción superior en la ciudad, es que no cumple elpapel de guiar a los jóvenes y fortalecer su volun-tad. Son tantos los cambios sucedidos a raíz de laescolarización que los jóvenes se encuentran so-brepasados, no saben para donde ir. Es como cu-ando después de una fuerte lluvia, se rebalsan losríos y las corrientes forman remolinos por doquier(TUBINO; ZARIQUIEY, 2007).

Antes la ley de nosotros, la ley de nosotros era muyfuerte con los consejos que nos daban los abuelospara vivir bien con nuestra esposa. Y para pelear,para pelear con nuestros enemigos, para que a no-sotros no nos peguen, nos curaban. Habían plantasdel monte, plantas medicinales chuchuhuasi nosdaban de tomar, sanango y todo. Con esas plantasnos curaban para que tengamos fuerza, para ser tra-bajador, bizarro. Había piripiri para ser trabajador. Lagente trabajadora nunca así no más era trabajadora.Era porque le curaban con plantas que se volvíatrabajadora y generosa. Todo eso se ha ido perdien-do. Ahora la juventud nada de esas plantas sabe.Nosotros mismos no le enseñamos a los hijos. Y aveces, cuando queremos enseñarles ya no nos ha-cen caso. No se puede hacer nada. Solo nos dedica-mos a mandarles a estudiar.Pero, para mandarlos a estudiar nos falta el recursoeconómico. Esa es la dificultad para hacer educar anuestros hijos. Pero así mismo, hacemos todo lo

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posible para mandar a educar a nuestros hijos. Aveces por gusto también, por gusto porque no qui-eren estudiar. En medio camino se relacionan conuna mujer y ya quieren tener una mujer, ya no quie-ren estudiar. Todos esos consejos, ¿para qué? Yaestán queriendo hacer hijos ahora. Cuando ya tienesu esposa no puede seguir estudiando, a medio ca-mino no más se queda. Obligatoriamente tiene quetrabajar para mantener a su hijo. Sus padres no sevan a responsabilizar. Por eso, antes ese consejodábamos… antes era con plantas. (Segundo Renfi-jo, líder shipibo-konibo del río Pisqui).

Conclusión: lo que le falta a la escue-la es el uso de plantas

Según algunos pensadores indígenas, un caminopara intentar sanear la confusión generada por loscambios asociados a escuela sería integrar la prác-tica de las palabras de consejo y el uso plantas confines pedagógicos en la escuela. Gow (1991) y otrosautores han mostrado que, según las cosmologíaschamánicas amazónicas, algunas plantas dan acce-so a un tipo de conocimiento visual que tiene seme-janzas con la escritura. A menudo la palabra indígenapara designar la escritura occidental y las visioneschamánicas provocadas por la ingestión de plantases la misma. Por ejemplo, en shipibo-konibo, la pa-labra kené es utilizada para designar los diseños pin-tados y bordados por las mujeres, las visiones deayahuasca (Banisteropsis caapi) y la escritura oc-cidental, que suele ser llamada más específicamen-te jaxo joni kené, es decir, “diseño de los blancos”.El deseo de escolarización sería, entonces, una ma-nifestación del deseo de domesticación de los di-seños de los poderosos “otros” que gobiernan lasociedad nacional, diseños que, por cierto, estánmarcados en las monedas y billetes de dinero y queson necesarios para defenderse con documentos yobtener mercancías y prestigio.

Un aspecto del uso de las plantas en las cos-mologías chamánicas que ha sido poco enfatizadoen las etnografías, es que éstas no solamente ha-cen ver diseños sino también dan consejo (BE-LAUNDE; ECHEVERRI, 2008). Es esta virtudde las plantas que algunos pensadores indígenasen la actualidad están haciendo valer para redirec-cionar la escuela. Entre algunos grupos étnicos, el

uso de plantas para aconsejar permanece vigente.Por ejemplo, entre los achuar de la cuenca delPastaza, las familias toman regularmente de ma-drugada un brebaje de huayusa (Ilex wayus) mi-entras cuentan sus sueños, planifican su día yaconsejan a sus hijos. Cuando llegan a la pubertadlos muchachos y las muchachas suelen embarcarseen una búsqueda de visión, dietando y tomando ta-baco en un lugar alejado, cercano a un curso deagua. La visión que reciben de los espíritus del bos-que y los antepasados les sirve de guía durante todala vida. Según los propios achuar, su fortaleza per-sonal, familiar y étnica deriva en gran parte de lasvisiones y los consejos que reciben de los espíritusgracias a las plantas tomadas desde la infancia.

Entre otros grupos étnicos, sin embargo, el usode plantas ha sido generalmente dejado de lado porcausa de la escolarización y es necesario revertiresta situación. Por ejemplo, cuando le pregunté aNoé Silva, pintor y curandero ashaninka, qué haríapara mejorar el sistema de educación bilingüe, pen-só un rato y me respondió: “lo que le falta a lasescuelas es el uso de las plantas”.

Yo colocaría como parte de la currícula que los pro-fesores deberían usar plantas para enseñar a loschicos. Hay muchas cosas que sólo las plantas pu-eden enseñar. En la escuela todo el conocimientosale de los libros y de la boca de los profesores. Esoestá bien por una parte, pero los libros no son sufi-cientes para la formación de los niños. Muchos delos problemas que vemos ahora entre los mucha-chos se deben a que no han tomado plantas. Hanido a la escuela para aprender a leer y escribir perosus cuerpos no se han fortalecido. Ven una cosa,ven otra, ven una chica que les gusta y todo lo qui-eren. Están confundidos, por eso muchos fracasan.(Noe Silva, curandero ashaninka de Atalaya).

La práctica de dar consejo no pasa solamen-te por la palabra y la escucha sino por la incor-poración de los efectos benéficos de las plantasque “aconsejan” directamente a las personas quelas consumen al entrar en contacto con alimen-tos y sus espíritus. Todo tipo de plantas dan con-sejos, incluyendo las plantas alimenticias, comola yuca, que tiene una acción energizante, peda-gógica y protectora. Por eso beber masato, he-cho de yuca fermentada con la saliva de lasmujeres, es muy diferente de beber alcohol o

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refresco comercial. El masato contiene múltiplesenseñanzas sociales.

El masato da fuerza. Por eso es una bebida que dafuerza a un trabajador. Pero en cambio, el refresco quetu tomas no tiene carbohidrato como el masato. Cu-ando ya orinas ya se vacía todo el líquido. En cambioel masato te mantiene, te da fuerza, tienes valor detrabajar, no sientes hambre. Te sientes como almorza-do, no tienes hambre. El masato da alegría. El masatoprepara para el trabajo, también para una fiesta. Esemasato ya es más fuerte, fermentado. El masato paratrabajar ya es otro tipo de fermento. Uno es fuerte y elotro medio no más, porque si te dan muy fuerte ya novas a poder trabajar porque ya te mareaste, te puedescortar. Entonces hay que hacer masato para trabajarpara invitar a los trabajadores, entonces trabajas tran-quilo. Pero el masato para una fiesta tiene que serfuerte. Cuando bebes aguardiente rapidito estás ma-reado, ¡qué vas a poder trabajar! Ese trago que secompra es solo para emborracharse. (Roberto Velas-co, líder shipibo-konibo del río Pisqui).

Tomar masato da energía y valor para trabajaralegremente en compañía. En cambio, cuando setoma refresco comprado en la bodega no se lograincorporar ningún conocimiento y el líquido simple-mente se va con La orina. El alcohol comercial,por otro lado, emborracha sin más. Actualmente,en algunas comunidades shipibo-konibo se estáperdiendo la costumbre de beber masato, justamen-te porque ya no se hacen mingas debido a que losjóvenes escolarizados no quieren participar en loscírculos de ayuda mutua. Junto con la fragmenta-ción de la comunidad y la pérdida de la reciproci-dad que era la fortaleza del grupo residencial,también se está perdiendo la aptitud sociable y ale-gre que el masato infundía en la parentela.

Usar plantas en la escuela no es una cuestiónde hacer cambios en metodología pedagógica nien los contenidos curriculares. No se trata de ha-cer clase de botánica sobre las diferentes plantasmedicinales, ni de memorizar sus usos, formas ycomponentes. Lo que se trata es de encontrar nue-vos espacios donde los profesores y los alumnospuedan recibir el consejo de los mayores y de lasplantas en un contexto situado, incorporado, viven-cial. Visto desde la perspectiva indígena, las plan-tas son buenas consejeras porque también son, ofueron, humanas, y sus espíritus comunican en-señanzas que forjan la voluntad de los jóvenes. Losconsejos de las plantas se inscriben en el cuerpode las personas, volviéndolas aptas para realizartareas productivas en colaboración con los demás,tomar decisiones de manera autónoma y guiar susvidas en un mundo falible, donde los deseos en-contrados a menudo nos hacen fracasar.

En la escuela, los niños no aprenden esas cosas. Delas plantas ven sus partes: hojas, flor, fruto, raicillay polen. De las aves les hablan de sus partes inter-nas y externas, pero no les dicen que han sido per-sonas. Ahora en las organizaciones indígenas vemosque es interesante lo que hemos olvidado y quere-mos inculcarles otra vez a nuestros hijos. Hemosvisto que ese conocimiento tiene su valor. No escomo antes, que nos despreciaban todo.Antes, nos han querido hacer olvidar, pero no hanpodido. Yo veo que está reviviendo el conocimientode nuestros abuelos. Así como nosotros hemos imi-tado el conocimiento occidental, queremos que otraspersonas del Perú aprendan nuestros conocimien-tos y se den cuenta que tienen su valor. (EusebioLaos, maestro curandero y pintor ashaninka citadoen TRAPNELL 2005, p. 3)

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Recebido em 12.09.09Aprovado em 15.09.09

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PROCESSOS DE ETNOGÊNESE DOS PATAXÓEM CUMURUXATIBA NO MUNICÍPIO DO PRADO-BA

Maria Geovanda Batista *

* Mestre em Educação pela U.Quebec/Ca). Professora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB/Campus X. Endereço paracorrespondência: UNEB/Campus X, Av. Kaikan, s/n; Bairro Jardim Caraípe – 45.997-018 Teixeira de Freitas-BA. E-mail:[email protected] Comunicação apresentada no III Seminário Povos Indígenas e Sustentabilidade: saberes locais, educação e autonomia.Campo Grande/MS, setembro de 2009. A Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade agradece à Rede de Saberes:permanência de indígenas no ensino superior (vide site: http://www.rededesaberes.neppi.org/), pela autorização de publicar otexto da comunicação.

RESUMONo presente trabalho1, procuramos refletir sobre o processo de luta dos Pataxó porseu território imemorial e por serem reconhecidos por seus vizinhos não-indígenasem Cumuruxatiba, no município do Prado/BA. Na última década, um grupo deaproximadamente trezentas famílias e mil e quinhentos membros da etnia Pataxó,identificados como “caboclos” nessa antiga “vila índia”, decidiram retomar a FazendaBoa Vista, seu território imemorial na Barra do Rio Kaí, ao mesmo tempo em queretomavam para si a afirmação de suas identidades. Invisíveis para os outros e, aomesmo tempo, situados à fronteira da exclusão social, os Pataxó, nesse processo deautodeterminação, vêm alterando o curso da sua história e subvertendo o destinosocial que lhes fora imposto. Obviamente, não sem reação ou contradições de parteda sociedade local e nacional. Nossas reflexões são, igualmente, resultado de maisde dez anos de estudos e acompanhamentos dessa realidade posta em foco. Umareflexão importante em torno dos processos através dos quais, diante do outro, dodiferente, somos testados em nossos conceitos e preconceitos científicos. Deste mesmomodo, intenciona contribuir para a superação do atual estado de injustiça e de cegueirahegemônica em nosso país quando se trata dos direitos, da territorialidade e dasculturas indígenas.

Palavras-chave: Etnogênese – Identidade – Aculturação – Interculturalidade –Sincretismo

ABSTRACTTHE PROCESS OF ETHNOGENESIS BETWEEN PATAXÓ OFCUMURUXATIBA IN THE CITY OF PRADO, BAHIA, BRAZIL

We try in this paper to reflect upon the fight of the Pataxó for the recognizability oftheir traditional territory by their non-indigenous neighbors in Cumuruxatiba in the cityof Prado, Bahia, Brazil. In the last decade, a group of approximatively three hundredsfamilies and one thousand and five hundreds persons from the Pataxó ethnic group,

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identified as caboclos in this old indigenous village, has decided to return to theFazenda Boa Vista, in their traditional territory of Barra do Rio Kaí, as they took backat the same time the affirmation of their identity. Invisible for others and situated atthe frontier of social exclusion, the Pataxó are in the process of subverting the courseof their history and the destiny that was imposed to them. Obviously this has provokedreactions in the local and national society. Our reflections are based upon a ten yearsperiod of fieldwork studies. We include a reflection about the way our scientificconception or pre-conceptions are tested in front of the other. We pretend this way tocontribute to surpass the present state of injustice and blindness which reign in Brazilwhen one speaks about indigenous rights, territories, and cultures.

Keywords: Ethnogenesis – Identity – Acculturation – Interculturality – Syncretism

Introdução

Havia um povo nesta terra. Antes, era muita gente.Agora somos poucos. Com o passar do tempo vieram

outras pessoas. No início eram poucos, depois setornaram muitos. E então, o que era muito foi

desaparecendo aos poucos e o que era pouco foificando com tudo.2

(Jovem Pataxó, de Cumuruxatiba, em abril de 2000).

A afirmativa de que “antes, era muita gente” ede que “agora somos poucos”, revela a consciên-cia da perda de hegemonia, que não é exatamentepopulacional, mas que se revelou: territorial, socio-cultural e política. Afinal, o povo permanecia e per-manece lá, no mesmo território, onde sãohistoricamente e insistentemente desterritorializa-dos, numa posição politicamente minoritária, proi-bidos de Ser e de expressar sua identidade, nafronteira da exclusão. A questão, aqui, é a de re-fletirmos, de forma circunstanciada e contextuali-zada, tentando pensar toda problemática: como éque muita gente se reduz a poucos? Como é quepoucos vão se tornando muitos, ficando com tudo,invertendo realidades, transformando posições, sta-tus e o próprio curso da história?

Segundo Bartolomé (2006, p. 45): “...pode-sepresumir que a atual visibilidade étnica provém tam-bém de uma mudança ideológica por parte daspopulações indígenas e cuja conseqüência foi areformulação da ‘cegueira ontológica’ construídapelas ideologias nacionalistas estatais.”

Na frase também é revelado um contexto mul-ticultural. O termo “multiculturalismo” tem sua ori-gem na sociologia, como categoria analítica usadapara indicar a coexistência de diferentes gruposculturais num mesmo contexto sociocultural, in-dependente de conviverem ou de praticarem hos-tilidades entre si, de se reconhecerem ou agiremcom “indiferença”. Um terreno fértil para a emer-gência da interculturalidade. Mas, para falar deinterculturalidade entre diferentes, de relações quese estabelecem entre desiguais, é preciso escla-recer de que interculturalidade se trata. Quandohá relações entre diferentes, quando há relaçõesde convivência entre a diversidade presente nummesmo território ou comunidade, é porque já en-tramos no contexto da práxis e do conceito deinterculturalidade, entendida como referencial quepermite compreender as relações entre a unida-de e diversidade, entre universos mais amplos eoutros menores.

Segundo Fleury (2001d, p. 60), muito mais doque um processo de conhecimento objetivo de ou-tras culturas, a pesquisa antropológica e o concei-to de interculturalidade “têm servido à elaboraçãode novos contextos relacionais entre contextos so-ciais e culturais diferentes”. Como contraponto di-ante do histórico das relações interculturais, hámuito descrito e conhecido, concluiremos que ainterculturalidade pode ser posta a serviço de mui-

2 Caderno de Itinerância, durante aplicação de dispositivo depesquisa e da realização do Culto Ecumênico realizado em soli-dariedade ao povo Pataxó que fora tocaiado por pistoleiros naAldeia Kaí. Vide Batista (2004).

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tos interesses: o de fortalecer, revitalizar as cultu-ras e identidades, como também, de destruí-las,enfraquecê-las ou transforma-las à revelia do con-sentimento social ou grupal.

No processo de produção dos conhecimentos co-municados, a interculturalidade experimentada foiepistemológica e metodologicamente orientada pararespeitar o protagonismo e a autodeterminação dospesquisandos, sem prejudicar a autonomia, a ética dapesquisa e a reflexão dos conhecimentos produzidos.É o resultado das experiências, dos estudos e dosaprendizados colhidos na última década com as famí-lias Pataxó em Cumuruxatiba, cuja população total éde 1200 membros e quase 300 famílias aldeadas nointerior do Parque Nacional do Descobrimento.

A problemática de que trataremos na presentecomunicação situa-se no campo das ‘etnogêneses’.Refere-se aos processos oriundos das dinâmicassocioculturais e políticas das sociedades anterio-res ou exteriores ao desenvolvimento dos Estadosnacionais da atualidade. Por ser inerente a tais di-nâmicas socioculturais, trata-se de um “processobásico de configuração e estruturação da diversi-dade cultural humana” (BARTOLOMÉ, 2006, p.40). Ao contrário do que se pensa, é mais comumdo que se imagina, embora sua existência e mani-festação, só muito recentemente, tenham sido iden-tificadas e reconhecidas pela antropologia. A teseque desejamos afirmar aqui é a de negar o “inedi-tismo” da questão, de refletir sobre a historicidadede seus inúmeros processos, o atual estado de umaquestão e de uma situação recorrente no cenáriobrasileiro, particularmente no Nordeste, lugar ondeo Brasil (re)começou, cujos moradores mais anti-gos, supostamente “desaparecidos”, “aculturados”,lutam para permanecer, continuar sendo, preser-vando seus territórios, suas identidades e tradiçõesetnoculturais, que dependem de que nossas repre-sentações sobre eles sejam desconstruídas e trans-formadas para que possa haver verdadeiramenteum processo de justiça e de diálogo entre nós eeles, povos indígenas, considerando:

Há alguns anos, antropólogos, parcela da opiniãopública e classes políticas envolvidas na questãovêm reagindo com certa surpresa em face dos atuaisprocessos de etnogênese, como se esses fossemum elemento inédito (...). No entanto, os povos nati-

vos sempre estiveram ali, não como fósseis viven-tes do passado, mas sim como sujeitos participan-tes da história, como sociedades dotadas dedinâmicas próprias que transcendem as percepçõesestáticas. (BARTOLOMÉ, 2006, p. 44.)

O contexto e suas problemáticas in-terculturais

No contexto das reações, das resistências, dosconflitos e das estratégias produzidas e manifestasno conjunto das relações interculturais, que os Pa-taxó passaram a experimentar no cotidiano multi-cultural do povoado de Cumuruxatiba, ondepassaram a morar após serem expulsos de sua ter-ra, encontra-se um fato que ganhou destaque na mídianacional e internacional: a retomada da Fazenda BoaVista, de propriedade da família Machado, expulsaem 1956, território imemorial da Barra do Kaí, emabril de 2000. Decisiva foi a conjuntura política, naexistência de uma atmosfera que os convocava ase unirem para a luta. Lembre-se que, em abril de2000, os Pataxó de toda região estavam em estadode mobilização e alerta, tirando proveito da oportu-nidade da data que provocava as articulações emcurso que unificaram os movimentos indígenas, in-digenistas, negro e popular, intitulado Brasil “Outros500”, com o objetivo de contrapor às comemora-ções oficiais dos Governos Federal, Estadual e Mu-nicipal. Por isso, cantavam em seus ritornelos, oscantos, as chulas cantadas infinitas vezes nas rodasde awê: “tava lá na mata fraquejando, índioguerreiro passou me chamando”.

Frustrada a retomada do Kaí, após serem ex-pulsos por pistoleiros contratados pelo proprietárioe outros fazendeiros associados, três anos depois(re)fundaram cinco aldeias Pataxó: Kaí, Tibá, Pe-qui, Alegria Nova e Matwrembá, situadas em ter-ras sobrepostas pelo Parque Nacional do Desco-brimento (PND), criado em 1999 e declarado pelaUNESCO Patrimônio Mundial da Humanidade, em2000. Unidade de Conservação, que a rigor dosfatos, das fontes e da legislação, foi criado em so-breposição às suas terras, invadidas e griladas pelaempresa BRALANDA, sendo expulsos seus ha-bitantes imemoriais, com muitas formas de violên-cia, mortes, chacinas e práticas etnocidas, segun-do consta na petição que contesta o Relatório

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Circunstanciado de Identificação da DenominadaTerra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal (Pro-cesso Administrativo nº 082620002556/82-FUNAI),protocolada em Brasília pelas lideranças Pataxó,junto ao presidente da FUNAI, Márcio AugustoFreitas de Meira, em 02 de junho de 2008.

Parece no mínimo curioso que esse Parque(PND) foi criado no exato momento em que seushabitantes tradicionais e os descendentes das fa-mílias vitimadas pela violência começavam a ex-pressar a percepção de si mesmos, como parte deum corpus coletivo, de uma identidade que extra-polava a comunidade local envolvida, que reuniatoda uma identidade nativa, dando relevo à identi-dade que os fazia pertencentes à etnia Pataxó; queos fazia sentir membros de uma grande comunida-de, atualmente distribuída nas vinte e nove aldeiasespalhadas na região e em Minas Gerais e outrostantos desaldeados nas periferias das cidades naregião. São, na sua maioria, filhos e parentes detodos aqueles e aquelas que têm suas raízes nachamada “Aldeia-Mãe” ou Aldeia Barra Velha,situada no município de Porto Seguro. No momen-to, aguardam os resultados dos estudos antropoló-gicos realizados por GT nomeado pela FUNAI3,desde 2000, e o pronunciamento final em torno dodocumento de Contestação do Relatório Circuns-tanciado de Identificação da Denominada TerraIndígena Barra Velha, cujas fontes estão incluídasno conjunto das análises produzidas. Não restadúvida de que houve avanços no que se refere àinclusão dessa população nos estudos para deci-são da demarcação e homologação de seus terri-tórios, como também não há dúvidas de que oprocesso de espera já se alonga e completa umadécada em 2010. Essa demora só reforça as ten-sões e os conflitos no nível local e com o próprioEstado, no caso da sobreposição de Parques, oInstituto Chico Mendes e o IBAMA.

A abordagem teórico-metodológicaPartindo do princípio de que todo e qualquer

processo dessa natureza é uma singularizaçãodo desejo, do devir-índio, das linhas de fuga con-sideradas fracas, postas em diálogo interdisci-plinar, dialogamos com a rizomática de Deleuze

e Guattari (1997), a concepção antropológica deetnogênese de Barnabé (1996), a abordagemepistemologico-metodologica da Sociopoética(GUATHIER, 2001) e da Pesquisa-ação (BAR-BIER, 1996). A Rizomática, Esquizoanálise ouFilosofia do Devir, concebida por Gilles Deleuzee Félix Guattari, pareceu-nos apropriada por atu-ar na economia do desejo e da micropolítica nosprocessos de formação e funcionamento das re-des do desejo, influenciado por Michael Foucault,que desenvolveu toda uma teoria da formação edo funcionamento das redes de poder. É umaabordagem, certamente, interdisciplinar, comple-xa (MORIN) ou multirreferenciada, porque re-úne e é auxiliada por diferentes áreas e dimen-sões do conhecimento prático-teórico eteórico-prático. Foi essa qualidade que fez a Fi-losofia do Devir, igualmente conhecida pormuito(a)s pesquisadore(a)s como Pragmática.

Se, de acordo com Bartolomé (2006), o termoetnogênese tem servido para designar diferentesprocessos sociais protagonizados pelos grupos ét-nicos, descrevendo o desenvolvimento das coleti-vidades humanas, dos grupos étnicos, percebidospor si mesmos e pelos outros como formações dis-tintas em relação às outras coletividades sociais,por seu patrimônio lingüístico, social ou cultural, éporque há uma pragmática social em curso quesustenta ou altera tais configurações culturais. Issonos leva a indagar ao fenômeno em questão: Quepragmática é essa que nutre e é nutrida no terrenoda cultura? Como é engendrada? Que alteraçõespromove? ́

Porque o termo etnogênese também é empre-gado na análise dos recorrentes processos de emer-gência social e política dos grupos tradicionalmen-te submetidos às relações de dominação, como bemdefiniu Hill (1996, p. 1), fez-se necessário o em-prego da Sociopoética como abordagem teórico-metodológica por oferecer instrumentos, ferramen-tas e dispositivos metodológicos que privilegiam oprotagonismo e a autonomia do(a)s pesquisando(a)sno itinerário da pesquisa. Seus princípios e disposi-

3 “Estudos de Fundamentação Antropológica necessários à iden-tificação e delimitação da TERRA INDÍGENA COMEXATIBA(Cahy/Pequi)”, da antropóloga Leila Silvia Burger Sotto-Maior,apresentados à FUNAI em 13 de março de 2006.

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tivos metodológicos, concebidos a partir do que foiapreendido e herdado da Educação Popular, doTeatro do Oprimido de Augusto Boal, dos GruposOperativos de Pichón Rivière e dos Círculos deCultura de Paulo Freire, possibilitam que memóri-as dormentes, oprimidas e saberes latentes, dor-mentes ou silenciados possam entrar em estado deemergência. A partir do emprego de técnicas queatuam na subjetividade coletiva do grupo-pesqui-sador, conduz à superfície informações e mensa-gens não-conscientes.

Por isso, orienta-se pelos cinco princípios epis-temológico-metodológicos. O primeiro princípio dizrespeito à dimensão social do conhecimento. Pro-põe a instituição do grupo-pesquisador, do pesqui-sador-coletivo, como concebe a pesquisa-açãoproposta por René Barbier ou do círculo de culturaconcebido pela pedagogia de Paulo Freire. O gru-po-pesquisador é o coração da Sociopoética. Suainstituição depende do contrato claro e da expres-sa adesão entre os participantes da pesquisa e opesquisador em questão. O segundo princípio re-flete a crença na equivalência das culturas de seussaberes e suas práticas. Por isso, valoriza e assu-me, como ponto de partida, a valorização dos con-ceitos e das noções dos grupos e das culturassupostamente dominadas e de resistência. O ter-ceiro inclui o corpo no processo de produção doconhecimento, com sua dança, seus ritmos, ges-tos, movimentos e marcas da memória oral quetambém é invariavelmente, ‘corpo’ oral. O quartoprincípio dialoga com a arte e sua expressividadecriativa, transcultural e transgressora. O quintoprincípio cuida da dimensão política, ética e espiri-tual das relações interculturais que se produzemno processo de geração e difusão do conhecimen-to. Uma dimensão que se justifica além da neces-sária responsabilidade ética da ciência com quetrabalhamos, também pelo fato dessa dimensãoestar muito presente nos meios populares e entreos povos e comunidades de culturas tradicionais

O grupo-pesquisador: os Pataxó eseus interlocutores interculturais

Vemos, então, o que já observou Bartolomé(2006, p. 43), quando afirma:

... o mito da existência na América Latina, no passa-do e no presente, de sociedades “puras”, dotadascada uma de uma cultura específica e singular, é umtanto enganoso e tem sido criticado com base emdistintos pontos de vista, assim como o fez Boccara(2000) ao insistir na flexibilidade e na adaptabilidadedos grupos indígenas, cuja lógica política e socialincluía uma abertura às relações interculturais.

Abaixo toda ilusão de “pureza”, ainda que sejapor pura ilusão! Os Pataxó não são um povo soci-oculturalmente “puro”, como nenhum outro povopoderá vir a pretende-lo. Sem troca, sem intercâm-bio, sem a existência de um “eu”, de um “outro”ou de um “nós” e sem haver entre estes qualquerrelação, não é possível haver humanidade ou cul-tura. Segundo Pierre Bourdieu, a formação da cul-tura pressupõe a diferença, visto que se caracterizacomo espaço-tempo de produção de diferenças,quando afirma que ela “se refere aos processosatravés dos quais se produz distinções”. De umoutro ponto de vista, Judith Butler diz que “a cultu-ra é concebida como “horizonte de inteligibilidade”no qual são travadas lutas interpretativas e práti-cas mais ou menos institucionalizadas para esta-belecer hegemonia” (YÚDICE, 2006, p.12).

Pataxó é uma espécie de “pan-etnia” ou “pan-tribo”, como bem qualificou a historiadora daUFBA, Maria Hilda Paraíso (1998): “Os Pataxóintegravam uma pan-tribo vivendo entre os riosJequitinhonha e Doce, a qual se opunha aos Boto-cudos. Essa pan-tribo seria composta, além dosPataxó, por Monoxó, Kutatoi, Maxakali, Maconi,Kopoxó e Panhame” (apud SOTTO-MAIOR,2008, p. 2). Desse modo, os Pataxó são a síntesedo que resistiu e restou das mais de duas dezenasde etnias com as quais precisou reaprender a con-viver e se relacionar, após terem sido “reduzidasna Aldeia de Belo Jardim”, no século XIX, duranteo Império, e, posteriormente, na segunda metadedo século XX, em 1961, com a implementação doDecreto de Criação do Parque Nacional de MontePascoal (Decreto nº 242, de 29/11/61) e os suces-sivos processos de desterritorialização e vivênciasinterculturais entre os Pataxó, os regionais, outrospovos e etnias, como na diáspora que se sucedeu ena redução frustrada implementada pelo Governobrasileiro no intento de transportá-los para MinasGerais, para o atual município de Carmésia, junto a

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outras etnias, dentre elas, algumas oponentes en-tre si, a exemplo deles próprios, os Krenak ou Ay-moré e os Maxakali.

Consta, na literatura disponível, que Maximilia-no, príncipe de Wied-Neuwied, em viagem ao Bra-sil, nos anos de 1815 a 1817, registrou a presençade subgrupos Pataxó meridionais recém-pacifica-dos entre 1807 e 1813, “embora em 1851 aindaexistissem hordas de Pataxó arredios nas redon-dezas da Vila do Prado”, como afirma Carvalho(1977, p. 76). A antropóloga esclarece ainda que,“sob a aparente homogeneidade do etnônimo Pa-taxó, documentos oficiais e relatos de viajantesdemonstram que, no século XIX, havia diversossubgrupos Pataxó, em situação variável de conta-to com regionais”.

Diante do exposto, não se pode esquecer que,nos dias atuais, essa mesma etnia Pataxó repre-senta a resistência viva, há meio século vivida de-baixo da imposição de uma “diáspora”, efeito dosconflitos ‘orquestrados’ pelas elites a partir doDecreto de criação do Parque Nacional de MontePascoal em 1943 (Decreto-lei nº 12.729, de 19 deabril de 1943). Uma sobreposição exatamente noterritório da antiga Aldeia de Belo Jardim, hoje,Aldeia Barra Velha, em Porto Seguro.

Mas, o desenrolar dos fatos vem ratificando, otempo todo, a flexibilidade e a resiliência que carac-teriza, referencia e constitui a identidade Pataxó. Éa confirmação do mito fundador de sua etnia, “Txo-pai Itohâ”, publicado por Kanatyo Pataxó (MG),recontado na versão dos Pataxó da Bahia, cuja nar-rativa sofre uma sutil modificação sem prejudicar oprincipal. Para ambos os grupos, em Minas Geraise na Bahia, seu ancestral, o elemento que os identi-fica, é a água, segundo relata a narrativa do mito:“Pataxó é água da chuva batendo nas pedras do rioque corre para o mar”. Quando essa narrativa míti-ca foi analisada pelo grupo-pesquisador, ficou claroque expressava a consciência de si, afirmando que,como água, os Pataxó aprenderam a contornar osobstáculos, a encontrar sempre uma saída para nãoficar represada ou parada. Sendo água de chuva,corre menos risco de ter sua fonte contaminada, poisvem do alto, do infinito.

O apreço desse povo pela água pode ser perce-bido nos usos, costumes e na reverência ritualísticadirigida às suas fontes e seus “encantados”. O curi-

oso é que, muito ao contrário da fama de bárbaros,selvagens, arredios ou preguiçosos, difamados porseus oponentes do século XX e pelos viajantes doséculo XIX , o mito de fundação Pataxó não possuinada bélico, somente sabedoria, pois narra a históriado primeiro índio Pataxó vindo de uma gota da chu-va enviada pelo criador. Desse modo, o primeiro ín-dio, o pai dos Pataxó foi também o fundador dacultura, das artes, do trabalho, e não guerreava, so-mente orientou seu povo a conviver pacificamentecom os outros seres da natureza, ensinando a pre-servá-la como essência da Vida.

Os Pataxó na visão dos viajantes e areprodução do preconceito

Os Pataxó, presentes no Extremo Sul baiano,são identificados na literatura como Pataxó meri-dionais. São descritos nos relatos dos viajantes entre1815 e 1820: Wied-Neuwied, Spix e Martius, eFeldner, Saint-Hilaire, Moniz Barreto, Pohl, Seider.

No século XIX, foram encontrados entre os riosCricaré ou São Mateus e o Rio Jequitinhonha, in-cluindo Santa Cruz Cabrália, posicionamento geo-gráfico que os diferenciava em relação aos PataxóHã-Hã-Hãe, ocupantes identificados entre os riosde Contas e Pardo, situados no Sul da Bahia (maisao Norte).

O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied(1970, p. 170), em viagem pelo Brasil, em 1815,descreve a presença dos Pataxó e de outros povosque encontrou da margem norte do rio São Ma-teus até Porto Seguro. Destaca os Pataxó que en-controu entre Prado e Porto Seguro, como “osselvagens mais desconfiados e reservados, entretodos”. Ao comentar essa passagem, a relatoraLeila Silvia Burger Sotto-Maior (2008, p. 2) supõeter sido possivelmente este, “um dos motivos por-que não existem descrições detalhadas sobre aorganização social ou política desse grupo até oséculo XIX. Também por serem arredios e des-confiados é que sobreviveram nas florestas da re-gião, resistindo à colonização e aos aldeamentoscriados pelos governos das províncias.”

Pode ser, mas não dá para ignorar a habilidade,a flexibilidade e a abertura dessa “pan-tribo” paraestabelecer relações interculturais com os outrospovos e comunidades étnicas, com os nacionais e

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estrangeiros, quando necessário. Não fosse essamaestria, já teriam sido eliminados, reduzidos ouincorporados por outras etnias.

Os Pataxó em Cumuruxatiba e seuprocesso de reetnização

Há mais de dez anos, em 1998, véspera da pas-sagem dos 500 anos de invasão portuguesa, a rea-lidade era totalmente outra. A maioria desses Pataxóencontrava-se dispersa no povoado, no auge daopressão vivida, humilhados, silenciados em rela-ção a sua identidade coletiva, desconfiados em re-lação a quase tudo que vinha de fora como formade resistência. A questão é: Quem os silenciava?Desde quando? Como, pouco a pouco, foram setornando silenciados? Que métodos foram utiliza-dos por seus algozes para conseguir êxito. De queforma foram silenciados?

A resposta é simples, todo mundo sabe: pelosvelhos métodos empregados há cinco séculos, desdeo início da colonização, há muito já denunciadospela literatura antropológica disponível. Inicialmen-te, pelo emprego da força e da violência sobre aque-las famílias cujos territórios ocupados eram maisdisputados. Seguido pela sucessão de atos violen-tos de extermínio, de atos etnocidas contra algunsnúcleos familiares. Também pela ameaça constantedo retorno da mesma violência sobre aqueles quedenunciassem ou se recusassem a deixar suas ca-sas e suas terras em prol dos interesses estranhosaos hábitos do lugar. Um processo que ganhou fô-lego durante a ditadura militar, após a construçãoda BR 101, em meados dos anos 70, em épocamuito recente. Foi quando uma leva de não-índios,nacionais e alguns estrangeiros, começaram a che-gar com incentivos do estado brasileiro, atraídospor políticos e empresários, que cobiçavam suasterras para extraírem dela a madeira da Mata Atlân-tica, expandirem suas fazendas e explorarem o tu-rismo e multiplicaram seus negócios.

Foi nesse contexto de grilagens de terra e im-punidades que, há mais de 30 anos, empresas deextração madeireira prosperaram em seus negóci-os regionais, a exemplo das empresas Flonibra,Brasil Holanda Indústria S.A (Bralanda) e Vale doRio Doce (Plantar). No rastro dessas grandes

empresas vieram novas serrarias com seus traba-lhadores mineiros e capixabas, mais experientesno negócio de desmatar, extrair e beneficiar a ma-deira, e exportar, enfim. Assim, aquela antiga “VilaÍndia” em muito se transformou, se comparada àCumuruxatiba de hoje. A densidade populacionalconcentrada na beira da praia é um fenômeno re-cente, como resultado do processo de povoamentopor outros povos, comunidades, núcleos familiares,indivíduos e culturas de várias regiões do país e domundo. Vieram todos atraídos pelas belezas e le-veza do lugar. A sua população atual contraria oque foi descrito pelo príncipe Maximiliano, em 1815,citação em que registra a presença Pataxó no dis-trito e a presença Tupinikin, os “índios praieiros”.

A cavalo acompanhado de dois homens de minhatropa, dirigi-me à ponta de terra denominada Curri-bichatiba. A lua cheia refletia-se, magnífica, no oce-ano, e iluminava as choças solitárias de alguns índiospraianos, a quem os nossos burros de carga, queiam adiante, arrancam ao sono. A curta distância daschoças ficava a fazenda Caledônia, fundada seteanos atrás pelo inglês Charles Fraser. Este cavalhei-ro que viajava por grande parte do globo, compraracerca de trinta fortes negros para o cultivo da fazen-da, Os índios das cercanias trabalharam para eledurante uns anos, derrubando a mata dos lindosmorros que acompanham a costa e cultivando-astodos (WIED-NEUWIED, 1970, p. 217).

Presença indígena e imagem de “uma vila degente pacata” são confirmadas pela filha do pri-meiro madereiro que se estabeleceu no lugar, su-cessor do patrimônio adquirido dos “estrangeiros”,do primeiro explorador da areia monazítica, o mi-nerador John Gordon. O terceiro na linha sucessó-ria, Júlio Rodrigues, ‘comprou’ a antiga FazendaCaledônia, sesmaria doada ao inglês Charles Fra-ser, identificada no texto acima. Em Cumuruxati-ba, no ano de 1928, J. Rodrigues montou serraria epassou a administrar a empresa mineradora deextração e comercialização da areia monazítica,implantada desde o final do século XIX. Soube ti-rar proveito da boa relação estabelecida com osnativos e soube se beneficiar da sua mão de obra,assim como todos seus familiares que tinham pe-quenos negócios no distrito, incluindo fazendas im-produtivas na Ponta do Moreira, Imbassuaba eBarra do Kaí.

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Conforme descrito na citação abaixo, as carac-terísticas da vila parecem coincidir com o cenárioencontrado pelo príncipe Maximiliano em 1815. Apresença Pataxó novamente é registrada, curiosa-mente, suas casas, roças e território parecem terfeito parte dos bens adquiridos na Fazenda Cumu-ruxatiba (nome retomado, pelo visto, pelos‘Pataxóe praieiros, para substituir o nome da antiga Fa-zenda Caledônia). Vejamos o que descreve MariaJosé Rodrigues Moreira, filha do empreendedorJúlio Rodrigues, a respeito da chegada de sua fa-mília, em 1931, quando conheceram Cumuruxati-ba pela primeira vez.

Papai continuou sozinho em Teófilo Otoni. Quandoas férias chegaram, ele resolveu passá-las conoscoem Cumuruxatiba. (...). A viagem foi difícil, mas láchegamos ficando na gerência, (casa antiga) feitapelos estrangeiros que beneficiavam a areia mona-zítica. Adoramos o lugar, os córregos, o coqueiral, oluar, o céu estrelado, sem luz elétrica para diminuir abeleza e a casa ampla com uma varanda gostosa efresca. A gerência ficava juntinha da barra do córre-go e em dias de maré cheia era lindíssimo o panora-ma. Na fazenda existia um povoado de índios pataxós,gente boa e pacata, mas sem estímulo para o traba-lho. (...) Eu estive bem mal. No dia 20 de janeiro nasubida do mastro em honra de São Sebastião, ma-mãe pediu a ele que restituísse a minha saúde (MO-REIRA, 1980, apud BATISTA, 2000, p. 272 – Grifosnossos).

O texto não escapa de difundir o estereótipo de“índio preguiçoso”, em lugar dos adjetivos usadospelos viajantes do século XIX: “bárbaro e selva-gem”. Ressalta o difícil acesso à Cumuruxatiba porvia terrestre, sua localização isolada e a existênciade um contexto multicultural. O que possibilitou areprodução etnocultural foi o fato da presença es-trangeira, não-indígena, ter-se limitado à explora-ção extrativista e econômica, sem se importaremcom “a conversão dos gentios”; sem desejaremintervir nos seus saberes e práticas tradicionais,seus rituais, modos de organização e de vida; semse tornarem numericamente seguros para o confli-to. Também pelo fato de nunca terem tido um pá-roco ou um padre residindo no lugar, a conduçãodos ritos na igreja de São Sebastião (atualmente,Santo Antônio), durante muitas décadas, foi dirigi-da por Pataxó leigos, sem interferências, na au-

sência de seus líderes cristãos. Assim puderamprofessar, adaptar, ressignificar e maquiar tudo queconsideravam pertinente. Não havia o controle doolhar da instituição religiosa.

Não se trata de sincretismo, mas de transcultu-ralidade o que acontece no dia 20 de janeiro naFesta da Puxada do Mastro de São Sebastião. Nela,São Sebastião, Caboclo da Mata e Oxóssi reúnem,em sua materialidade e significado, as mesmasenergias vindas da floresta, da mata, o mesmo con-junto de intensidades afetivas e espirituais, queconferem potência, força, saúde e vida aos guer-reiros, caçadores, àqueles e àquelas que enfren-tam situações desafiadoras, difíceis. Além deocuparem a liderança da religião, os Pataxó tam-bém ocupavam cargos na municipalidade, na áreade segurança e da educação, igualmente por vári-as décadas, até serem definitivamente invadidosno final do século XX, começando pelas ressonân-cias do “conflito armado” e violento que envolveue vitimou seus parentes mais próximos, conhecidocomo “Fogo de 1951”, deflagrado em Barra Ve-lha, por ocasião da criação, delimitação e demar-cação do Parque Nacional de Monte Pascoal(1943). Esse processo que só se acelerou na se-gunda metade dos anos 70.

Cumuruxatiba para ser feliz!Hino os Pataxó de CumuruxatibaDe Corina Medeiros da Silva 4

Brasil que vive alegre e valoroso.Brasil que vive alegre para enfrentar.Com nossas armas já estás seguro e no mo-mento mande me chamar!CUMURUXATIBA PARA SER FELIZ!Porque nós somos donos desta terra.Oh Pátria amada quando canta o seu hino.Os Pataxó compreendem seu destino.(BATISTA, 2004).

Esse hino revela o desejo dos Pataxó e a inten-ção de espantarem toda e qualquer ameaça sobresuas terras, como afirma o primeiro verso da últi-

4 Este hino foi escrito por Corina Medeiros, conhecida Pataxó,negríndia, afroindígena letrada, primeira professora e dona doprimeiro cartório em Cumuruxatiba, filha de pai Pataxó e mãeex-escrava.

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ma estrofe, “Porque nós somos donos desta ter-ra”. Suficiente para justificar seu projeto de povo,de comunidade. Cumuruxatiba para ser feliz! Foiescrito há mais de meio século, no momento emque o Brasil ingressava na II Guerra Mundial, trans-formando “índios, nativos e ou caboclos” em luta-dores nas frentes de batalha. Há registro de Pataxórecrutados para lutarem na Itália, no mesmo perío-do em que seu território estava sendo sobreposto erevistas suas marcações em 1943, conforme cita-do por Carvalho (2008).

Existe uma memória ainda viva entre os nati-vos, com mais de cinqüenta anos, que se refere àdemarcação da chamada “Terra do patrimônio”,de cujo processo demarcatório o empresário JúlioRodrigues participou ativamente. Consultando da-tas e fatos regionais convergentes, implicados naterritorialidade Pataxó, nos induz a pensar que setrata da ação demarcatória do território Pataxó,um ano depois da criação do Parque Nacional deMonte Pascoal. Segundo a antropóloga Maria doRosário Carvalho (2008), em 1943, foram realiza-dos os primeiros estudos demarcatórios desse ter-ritório, cujos limites foram oficialmente reconheci-dos e demarcados. Foi nessa mesma época ademarcação da “Terra do Patrimônio”, segundoreivindicam, o atual “Território Comexatiba”. E foimarcado com piquete, mas também por ordem deRodrigues, com plantações de coqueiros no seucontorno praieiro. Uma oportunidade igual pararegularização das fazendas que passaram a sobre-por seu antigo território: em Cumuruxatiba, na Pontado Imbassuaba, no Moreira e na Barra do Kaí. Nointerior das terras griladas pela BRALANDA, nointerior do atual Parque Nacional do Descobrimen-to, há marcos ou marcações feitas com piquetes,além de vestígios da presença indígena, ainda mui-to viva e recente, materializada por fruteiras plan-tadas por seus antigos moradores, vestígios de fo-gueiras, fogões, construções etc.

Desterritorialização e reterritorializa-ção: a expulsão do Paraíso!

Com o fim da era “Júlio Rodrigues”, as famíliasPataxó ficaram mais vulneráveis às sucessivasentradas de não-índios em seus territórios. A pri-

meira manifestação dessa vulnerabilidade pode serpercebida no caso da expulsão da família Macha-do da Barra do Kaí, no ano de 1956.

O fato é que, nos anos 70, começou um pro-cesso de expropriação e desterritorialização dosPataxó que veio culminar na luta pela terra e quese fez vitoriosa em 1986. Foi quando o Estado bra-sileiro respondeu com a Reforma Agrária, com oparcelamento e a demarcação dos lotes de refor-ma agrária, transformando em assentada cada fa-mília Pataxó que participou do movimento de luta.Sua identidade Pataxó foi simplesmente ignoradano contexto e, em lugar dela, veio uma cara nova,uma identidade ‘nacional’. Para o grupo-pesquisa-dor, o que os Pataxó queriam era retomar o queperderam e suas vidas, como era antes. Ainda quetivessem que dividir seu território com os que osdeixassem viver suas vidas em paz, como apren-deram com seus pais e antepassados: praticandoseus rituais, suas festas, colhendo, coletando, ca-çando e pescando o alimento dos campos, da res-tinga, do mar, dos rios, da terra, da Mata Atlânticaetc. Mas o Estado e o INCRA não viram nada,não ouviram nada. Se viram ou ouviram, não com-preenderam. Se compreenderam, não demonstra-ram. Souberam como tirar proveito da informaçãoe do conhecimento e o fizeram como mais umaestratégia para integrá-los, tirar-lhes a cultura paraimpor-lhes uma outra no lugar.

Nesta sucessão de “equívocos oficiais e de hor-rores inter-culturais velados”, não poderia ficar delado a tentativa de governar o território de produ-ção e reprodução da cultura pelo controle do po-der religioso e da educação escolar, com seusdispositivos alienígenas, sufocando qualquer inici-ativa de contextualização de sua pragmática, porum ou outro educador que se atrevesse em fazê-lo. Como afirma Foucault, trata-se da tentativa desubstituição de uma rede de poder local por umaoutra rede de poder, no contexto de disputas dehegemonias socioculturais, socioeconômicas, soci-oambientais etc. E para que? Para melhor domi-narem seus territórios, seus espaços externos,passaram igualmente a investir esforços para do-minar os ‘espaços de dentro’, sua subjetividade eidentidade. Pelo que tudo indica, fracassaram nes-se intento.

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E como fizeram isso? Diabolizando e proibindosocialmente as expressões etnoculturais indígenasmuito vivas naquela ‘antiga vila índia’: seus símbo-los, suas pinturas corporais, sua espiritualidade comseus encantos e encantados, a prática da pajelan-ça e de seus rituais sagrados, a exemplo das práti-cas do Awê e do Cordão Pataxó na Festa daPuxada do Mastro de São Sebastião. Problema depoder-disciplinar. De acordo com Varela (1995,p.45), o poder disciplinar atua na subjetividade doSer, no campo da identidade e, na definição do tipode conhecimento produzir, pois “... joga, portanto,e complementarmente em dois terrenos, o da pro-dução dos sujeitos e o da produção de saberes,(...) saberes que por sua vez ao serem devolvidosao sujeito, o constituem como indivíduo, constroemo seu eu.”

Paradoxalmente, tudo acabou funcionandocomo estratégia de flexibilidade e resistência Pa-taxó de permanecer no seu natal, alternando-se emmúltiplos papéis, aprendendo o mundo do brancono velho território imemorial onde estão enterra-dos seus antepassados e “viviam livres”. O pri-meiro papel que tiveram de assumir foi o deassalariados, trabalhadores das fazendas, da indús-tria do turismo nascente, das pousadas, hotéis erestaurantes emergentes. Por muitos anos, esfor-çaram-se para parecer mais um ‘nacional’, um‘caboclo’ supostamente ‘integrado’, pois o opostodisso poderia custar-lhes, além do emprego, emalguns casos, a própria sobrevivência e a vida. Porfim, restou-lhes o dispositivo de “Brincar-de-Ín-

dio”, entendido como uma apresentação que serepetia anualmente na Festa da Puxada do Mastrode São Sebastião, até 1990, ano em que passarama ser excluídos da Festa pelos católicos recém-chegados, que viam na ‘apresentação’ um rito deprofanação do sagrado. Essa exclusão estendeu-se até o ano de 2001, quando retomaram esse ritu-al ou esse “brincar” para revitalização de suaspráticas e saberes etnoculturais.

Na verdade, essa tal apresentação revelou-seem nossos estudos de mestrado como um rito ime-morial que foi por eles herdado e muito bem de-fendido, confirmando, em seu processo, o quedescreve Bartolomé (2006, p. 58) em relação atais processos de etnogênese, à medida que foramdinamizando e atualizando “suas antigas filiaçõesétnicas às quais seus portadores tinham sido indu-zidos ou obrigados a renunciar, mas que se recu-peram combatentes, porque delas se podem esperarpotenciais benefícios coletivos”. O termo “brincar-de-Índio” revelou-se como uma espécie de licen-ça poética, para que pudessem retomar suaidentidade coletiva, sua subjetividade. Ao conce-ber a subjetividade, o filósofo Félix Guattari a li-berta, outorgando-lhe espaços de autodeterminaçãoe autonomia individual e coletiva, à medida que adefine como “... conjunto das condições que tornapossível que instâncias individuais e ou coletivas,estejam em posição de emergir como territórioexistencial auto-referencial, em adjacência, ou emrelação de delimitação com uma alteridade elamesma subjetiva.” (GUATTARI, 2000, p. 18).

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Recebido em 01.12.09Aprovado em 08.12.09

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O DESEJO DE RETORNO DA LÍNGUA (QUASE) PERDIDA:PROFESSORES INDÍGENAS E IDENTIDADE LINGUÍSTICA

Terezinha de Jesus Machado Maher *

* Linguista Aplicada, Mestre em Linguística Aplicada e Doutora em Linguística. Docente do Departamento de LinguísticaAplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Endereço para corres-pondência: UNICAMP, IEL, Rua Sérgio Buarque de Hollanda, 571, Cidade Universitária, Barão Geraldo – 13.084-970 Cam-pinas, SP. E-mail: [email protected]

RESUMOEste trabalho objetiva descrever e discutir o impacto de uma política de revitalizaçãode línguas indígenas nos processos de (re)construção da identidade linguística de umgrupo de professores indígenas do Acre e sudoeste do Amazonas. Membros dospovos Kaxinawa, Shawãdawa/Arara e Apurinã, esses professores, cujos níveis deproficiência nas línguas tradicionais de suas comunidades de fala são limitados, vêmempregando um conjunto de estratégias para lidar com as demandas da nova ordemsociolinguística na qual estão imersos. Partindo do pressuposto de que a identidadenão é algo dado, mas é um processo sob constante (re)definição social e histórica,pretende-se analisar, com informações fornecidas por dados etnográficos, discursosreferentes às identidades linguísticas dos professores em questão, enfatizando, nessepercurso, as interpretações culturais de suas relações com as línguas tradicionais deseus povos. Com as práticas discursivas aqui analisadas, espera-se chamar atençãopara o fato de que nenhum programa de educação indígena que envolva oestabelecimento de políticas de revitalização linguística poderá ser realistamenteimplementado sem que se examinem e interpretem as tensões com as quaisprofessores indígenas imersos em conflitos sociolinguísticos têm que lidar.

Palavras-chave: Professores indígenas – Políticas de revitalização linguística – Conflitoe identidade linguística

ABSTRACTWISHING FOR THE RETURN OF THE (ALMOST) LOST LANGUAGE:INDIGENOUS TEACHERS AND LINGUISTIC IDENTITY

The present paper aims at describing and discussing the impact of an indigenouslanguage revitalization policy in the linguistic identity (re)construction processes of agroup of indigenous teachers from Acre and southeast Amazonas. Members of theKaxinawa, Shawãdawa/Arara and Apurinã peoples, these teachers, whose level ofproficiency in their heritage languages is limited, have been employing a number tostrategies to cope with the demands of the new sociolinguistic order in which theyfind now themselves in. Starting with the presupposition that identity, rather thanbeing given, is a process under constant social and historical (re)definitions, this paper,

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informed by ethnographic data, will analyze discourses related to the construction ofthese teachers linguistic identity, highlighting local cultural interpretations of their relationto the traditional language of their communities. Discursive practices that reveal suchstrategies will be examined in order to call attention to the fact that no realistic bilingualeducation program involving linguistic revitalization policies can be devised unless weare able to adequately interpret the tensions faced by indigenous teachers immersedin sociolinguistic conflict.

Keywords: Indigenous teachers – Linguistic revitalization policy – Conflict andlinguistic identity

IntroduçãoO Brasil – ainda que essa não seja a “imagem

que o país faz de e para si mesmo” (OLIVEIRA,2003, p.7) – é um país plurilíngüe. Contribuiu, deforma decisiva, para instaurar a ideologia do mo-nolinguismo no imaginário dos brasileiros o fato deque as políticas linguísticas aqui implementadas vi-saram, desde sempre, ajudar a consolidar a idéiade “identidade nacional brasileira” através da in-venção de uma língua nacional, o português. Épreciso enfatizar, no entanto:

... que esse sentimento de identidade através da lín-gua, associado à idéia de nacionalidade que hojenos parece tão “natural”, é produto da combinaçãode diversos processos históricos originados namodernidade. É a partir da constituição dos EstadosNacionais que se torna necessária a unificação lin-guística planejada e, com ela, a imposição de umalíngua oficial – ou variedade de língua – processoque destitui as outras línguas ou variedades e astorna dialetos ou línguas não oficiais, marginais.(BEREMBLUM, 2003, p.22).

A marginalização das línguas indígenas brasi-leiras decorrente de tais políticas foi em grandeparte responsável pelo desaparecimento de um semnúmero delas e pelo estado atual de vulnerabilida-de em que se encontram as que conseguiram so-breviver (RODRIGUES, 2000; MONSERRAT,2006).1 Importa ressaltar, porém, que, como modode fazer frente a essa situação, vimos presencian-do, nas últimas duas décadas e em diferentes regi-ões do país, uma forte mobilização social no quetange ao fortalecimento e à sobrevivência dessaslínguas. O Estado do Acre não representa umaexceção nesse quadro, muito pelo contrário: ga-

rantir a continuidade da existência das línguas indí-genas acreanas é uma das bandeiras políticas maisimportantes dos programas de educação indígenalocais. Exemplares nesse sentido, como já afirmeianteriormente (MAHER, 1996, 2006 e 2008), sãoos esforços despendidos pelos professores indíge-nas ligados ao setor de educação da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Ac), uma organização nãogovernamental e laica. Informados pelos resulta-dos de uma pesquisa sociolinguística que denun-ciou o estado de risco em que se encontravam aslínguas indígenas no estado (MONTE, 1993), osprofessores desse grupo, que são fluentes nas lín-guas tradicionais de seus povos, decidiram capita-near um movimento voltado para o fortalecimentodessas línguas. O ponto de partida desse movimentofoi tentar resgatar o seu prestígio na consciênciados próprios falantes, tarefa essa que logo come-çou a render frutos:

... as pessoas que tinham vergonha de falar a pró-pria sua língua estão começando a chegar maisperto do que era antes... Porque antes tinha aque-la GRANDE discriminação do índio falar pertod’um branco e o branco começar a xingar ele, sabe?Xingar, não... mangar dele: “Ei, por que tu numfala direito? Por que que tu num fala como a gentefala? Deixa de ‘tá cortando gíria aí!”2 Então, comaquilo, o índio ficava muito assim... sem graça. Eleachava que... que num tinha o direito de falar sua

1 Segundo o Instituto Socioambiental, cerca de 85% das línguasindígenas brasileiras foram extintas ao longo dos últimos 500anos (http://www.institutosocioambiental.org, acessado em 21/05/2009).2 “Cortar gíria” é uma expressão local utilizada por não-índiospara, pejorativamente, significar “falar uma língua indígena”.

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língua, só tinha o direito de falar na língua portu-guesa (Prof. Joaquim Paulo Mana Kaxinawa).3

Mas, para que esse projeto de fortalecimentodas línguas indígenas acreanas pudesse “vingar”,era preciso, da perspectiva de seus idealizadores,mais do que apenas aumentar a auto-estima lingu-ística de seus falantes. Era preciso que elas pas-sassem a ocupar um lugar de destaque no currículo,isto é, passassem a ser, além de objetos de estudo,também línguas de instrução no ambiente escolar.E aí os líderes do movimento se viram diante deum problema: alguns dos professores indígenas li-gados à CPI-Ac não eram fluentes nas línguas tra-dicionais de seus povos e, portanto, não seriamcapazes de ministrar suas aulas em uma língua in-dígena (doravante LI). Era fundamental, portanto,promover o aumento dessa capacidade.

O objetivo deste texto é, justamente, focalizaros discursos dos professores indígenas acreanosque, embora inseridos nesse movimento pró-línguasindígenas, têm, eles mesmos, uma competênciacomunicativa limitada nessas línguas. Tendo quelidar com uma pressão para aumentar suas com-petências, orais e escritas, nas línguas tradicionaisde seus povos, esses docentes tem tido, em últimainstância, que se ajustar a uma nova ordem soci-olinguística: enquanto que, na infância, eles tinhamsido desestimulados ou até proibidos de falar suaslínguas tradicionais, espera-se, agora, que eles setornem capazes de falá-las fluentemente. Lidarcom essa nova ordem não é, em hipótese alguma,uma tarefa banal e tem implicações para a cons-trução das identidades linguísticas desses sujeitos,como pretendo evidenciar com os dados aqui ana-lisados.

Antes de me voltar para a análise desses da-dos, é preciso, no entanto, deixar claro para o lei-tor, ainda que muito resumidamente, os conceitosque a ela servem de aparador teórico, bem comoesclarecer alguns dos procedimentos metodológi-cos adotados na geração e na análise dos registrosem questão.

Algumas considerações teóricas emetodológicas

Na base das considerações feitas na próximaseção deste texto está a crença de que existe uma

relação visceral entre políticas linguísticas e po-líticas de identidades (MAHER, 1996; ZIMMER-MAN, 1997; SICHRA, 2003). Isso porque políticaslinguísticas, implícitas ou explícitas, são sempre ins-trumentos e não metas: as políticas linguísticas des-tinadas a conduzir os povos indígenas a deixaremde falar suas línguas nunca tiveram como objetivoprincipal a manipulação da situação linguística perse, e sim da identidade étnica desses povos.

Pensar o conceito de identidade, da perspecti-va dos Estudos Culturais – uma das principaismatrizes teóricas da qual me alimento –, implicaem considerar o conceito de representação, comoentendido por Hall (1997a). Para o autor, a repre-sentação é a produção do significado através dalinguagem. Considerando que a linguagem se utili-za de signos e que esses são arbitrários, essa defi-nição abriga, no seu interior “a premissa de que ascoisas – objetos, pessoas, eventos do mundo – nãotêm em si qualquer significado estabelecido, finalou verdadeiro. Somos nós – na sociedade, nas cul-turas humanas – que fazemos as coisas significa-rem, que significamos.” (HALL, 1997a, p. 61).

É, portanto, no uso da linguagem que as pesso-as constroem e projetam suas identidades. Assim,ao me referir à identidade indígena, estarei semprefalando de uma representação, já que ela não im-plica em essência alguma: trata-se, antes, de umaconstrução discursiva permanentemente (re)feitaa depender da natureza das relações sociais quese estabelecem, ao longo do tempo, entre os sujei-tos sociais e étnicos (HALL, 1997b; SILVA, 2000).Sabemos que utilizamos a linguagem para transmi-tir informações, emoções etc. Mas estas acabamsendo funções menores: no mais das vezes, o quefalamos ou deixamos de falar, como falamos, quan-do falamos, serve, mesmo, para tornar visível parao outro as múltiplas facetas que nos compõem, paramostrar quem somos - ou o que queremos que ooutro acredite que sejamos. E o nosso discurso,por sua vez, serve de farol pelo qual nosso interlo-cutor se guia em sua tarefa de, também discursi-

3 Para a transcrição dos dados incluídos neste texto, observei asseguintes convenções: (...) – trecho suprimido; [ ] – comentárioou esclarecimento do transcritor; MAIÚSCULAS – ênfase; / –corte sintático; [INC] – trecho incompreensível; P.I.? – pro-fessor indígena não identificado na gravação; citação em itálico– depoimento.

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vamente, revelar-se a nós. Assim, é nesse jogo deimagens espelhadas, próprio da prática comunica-tiva (PÊCHEUX, 1969), que vamos não só nosrevelando, mas nos constituindo mesmo como su-jeitos sociais, políticos, étnicos... Ou para dizer omesmo utilizando, dessa feita, as palavras de Car-doso de Oliveira (1976, p.20): “o conjunto dos mo-dos de identificação são da ordem do discurso (eparticularmente de um discurso ideológico)”.

As práticas discursivas eleitas como recortepara as reflexões feitas neste texto foram aquelasque diziam respeito às identidades linguísticasdos professores indígenas em questão, isto é, àsinterpretações culturais de suas relações com aslínguas que compõem seu repertório verbal(RAMPTON, 1995:340). Importa aqui focalizar asidentidades linguísticas dos sujeitos pesquisadosporque elas têm implicações importantes no quediz respeito ao planejamento e à consecução depolíticas linguísticas pró-línguas minoritárias.4

Segundo Tollefson (1991), é fundamental pro-curarmos localizar esse tipo de políticas linguísti-cas no interior de uma teoria social ampla. A partirdessa observação, o autor estabelece uma distin-ção entre duas abordagens de pesquisa nesse cam-po do conhecimento: a abordagem neo-clássicae a abordagem histórico-estrutural. Na primei-ra delas, a ênfase recai nas decisões linguísticasindividuais. Ou seja, busca-se encontrar variáveiscausais para o abandono ou a manutenção de umadada língua no interior de cada indivíduo (sua ida-de, grau de motivação, de lealdade étnica, etc...).Na abordagem histórico-estrutural, no entanto, oque se pretende enfatizar são os cerceamentos aoprocesso de decisão dos indivíduos. Ela busca in-vestigar as origens de tudo o que impede a imple-mentação de uma política lingüística pró-línguaminoritária, como, por exemplo, o nível de desen-volvimento sócio-econômico da comunidade, a suainserção no mercado de trabalho, a sua organiza-ção política, o tipo de sustentação ideológica paraa manutenção/revitalização lingüística etc.

A rejeição à noção de que a descoberta do “cál-culo racional do indivíduo” deva ser o objetivo deinvestigações no campo das políticas linguísticasencontra eco na noção de conflito diglóssico.Boyer (1985) nos lembra que, em existindo umasituação diglóssica, i. e., uma situação em que haja

a dominação de uma língua sobre outra(s), as açõese os discursos aí encontrados refletirão, forçosa-mente, o conflito sociolinguístico, já que este trans-forma atitudes, comportamentos, atividades einstituições sociais. No âmbito da questão indíge-na, esse conflito se traduz no dilema entre apren-der a língua portuguesa, língua essa associada apoder, a prestígio e a vantagens sociais e econômi-cas e assegurar uma alteridade linguística, fazen-do o uso da língua indígena. Como insistem Ozolins(1996) e Zimmerman (1997), as decisões sobrepolíticas e planificações linguísticas em uma situa-ção de conflito linguístico se inserem em relaçõesde poder e de forças simbólicas e só através delaspodem ser interpretadas.

Parte do corpus de uma pesquisa de base et-nográfica,5 os dados analisados neste trabalho fo-ram gerados em entrevistas realizadas com os pro-fessores indígenas em questão e em interaçõesespontâneas, gravadas em áudio e/ou vídeo, du-rante seus cursos de formação. Tais dados rece-beram o tratamento qualitativo prescrito pela Soci-olinguística Interacional (RIBEIRO; GARCEZ,2002). É importante esclarecer que se tornaremvisíveis para a sociedade nacional enquanto cida-dãos brasileiros etnicamente diferenciados é parteimportante da agenda política desses professores.As inúmeras horas despendidas comigo ao longode vários meses e a permissão para o uso da câ-mera e do gravador se devem-se ao fato de queeles, como afirmaram, têm interesse que se docu-mente e divulgue sua peleja, ou seja, seus esfor-ços de resistência cultural. Tal fato teve conse-

4 É relevante esclarecer que, como já apontei por diversas ve-zes, não observo a distinção feita na literatura especializada,entre, por um lado, política linguística e, por outro, planeja-mento linguístico. Política linguística (language policy) é geral-mente entendida como um conjunto de metas, de objetivos(governamentais ou locais) referentes à(s) língua(s) existente(s)em um dado contexto específico, enquanto que planejamentolinguístico (language planning) refere-se aos modos deoperacionalização, de implementação de uma dada políticalinguística. Por entender que a determinação de planos para semodificar usos e/ou estruturas linguísticas não pode se constituirapenas em meras cartas de intenção, mas tem que, necessaria-mente, também contemplar, já no seu bojo, modos factíveis depromover as mudanças desejadas, venho utilizando apenas otermo política linguística para referir, tanto ao estabelecimen-to de objetivos (sócio)linguísticos, quanto aos modos deconcretização dos mesmos.5 Esse corpus constituiu a base de minha pesquisa de doutorado(MAHER, 1996).

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quências diretas na definição das convenções uti-lizadas na análise dos dados aqui feita. Expliquei-lhes, mais de uma vez, que é praxe na academiasubstituir os nomes verdadeiros dos sujeitos depesquisa por codinomes ou siglas a fim de garan-tir o seu anonimato. Por motivos que me pare-cem óbvios, os professores indígenas em questãoforam veementemente contrários à adoção de talprocedimento nesse caso. Mesmo quando expli-quei que eles poderiam aparecer em situações nãoelogiosas, ainda assim, porque também insatisfei-tos com as idéias românticas e equivocadas queexistem a seu respeito, eles insistiram em que seusnomes verdadeiros fossem colocados no traba-lho: o branco da cidade tem que conhecer oíndio como a gente é... não como eles pensamque ‘tá lá escola.

Tudo isso posto, passo, então, a análise dos da-dos que me interessa aqui focalizar.

A “perda” da língua: algumas repre-sentações locais

O grupo de docentes indígenas aqui focalizadoé composto por professores Kaxinawa, Apurinã eShawãdawa/Arara. O seu nível de proficiência emLI é muito variável. Alguns deles conhecem ape-nas palavras isoladas ou entendem alguns poucoscomandos rotineiros nas línguas tradicionais de seuspovos. Outros, embora compreendam muito do queé dito, não são capazes de se expressarem nessaslínguas ou conseguem fazê-lo apenas parcialmen-te, com dificuldade. Nos depoimentos que se se-guem, alguns destes professores explicam, do pontode vista de suas histórias pessoais, porque não são,hoje, fluentes em línguas indígenas:

(...) mas também o culpado de tudo foi meu pai eminha mãe... que nós começamos a morar no meiodos branco, aí eles acharam que a língua indígenanum servia, achavam... Aí eles acharam que a lín-gua do branco era bonita. Aí num quiseram falarna nossa língua... Não ensinaram nós e foi por cau-sa disso que eu não aprendi... (Prof. Jesus DasuKaxinawa).

Eu posso dar assim mais ou menos um exemploporque foi que [os Shawãdawa/Arara] deixaram defalar [a língua Shawãdawa]... É porque na ÉPOCAque nós já íamos embora... nós morávamos lá no

seringal [INC] na cabeceira do Rio Juruá. E aí vi-emos embora pro Rio Cruzeiro do Vale... Aí entãolá só tinha branco, né? Aí os patrões que eramarrendatários do seringal não deixavam os índiofazer maloca, né? Então nós se espalhava... O pa-trão botava um pr’um canto, outro pro outro ladodo rio, outro do OUTRO lado... Então, ali todos osíndios só tinham contato com os brancos, né? Diade domingo ia tudo pro depósito, chegava lá sófalava em português, né?... com o patrão, com osseringueiro, com os fregueses indígenas... Aí foramperdendo, né?... a tradição. Já está com muitosanos atrás que foi feito isso... Porque desde quan-do eu nasci, que eu comecei me entender mesmocriança, meu pai já/só falava em português comigotambém... Ele ENTENDE a Língua,6 FALA tambémum pouco, mas comigo ele não falava, não falou naLíngua. Aí ficou nessa situação... (Prof. AntonioArara Eutxani Shawãdawa).

(...) eu nasci em Tarauacá, né?, em Tarauacá.... Aíos meus pais foram embora prá Feijó, aí eu moreimais 5 anos em Feijó. Eu morei 5 anos junto com osShanenawa, sabe, que tinha lá em Feijó. Aí depoiseu voltei prá Tarauacá, morei mais 5 anos em Ta-rauacá... Aí eu fui prá aldeia do Nani, lá com osYawanawa. Eu entendo alguma coisa de Yawana-wa. Shanenawa também eu entendo... Eu acho quese eu vivesse lá, eu apren/eu acho que a línguadeles é MAIS fácil do que a dos Kaxinawa... É por-que... bem dizer, eu fiquei mais com eles, né? (...)porque a minha avó, quando nós fomos emboraprá Feijó, ela começou a falar a língua dos Shane-nawa. Minha avó, meu avô também... Porque oShanenawa fala a Língua, eles falam JUNTO [demodo parecido] com os Kaxinawa, mas é diferen-te... (Prof. Assis Mashã Kaxinawa).7

Olha, realmente, eu FALAVA a língua indígena quan-do eu era criança... Aí foi o tempo que eu vim promeio dos brancos [para estudar] e eu perdi a minhalíngua... (Prof. Josimar Tui Kaxinawa).

Eu... no primeiro, eu num tinha interesse de apren-der Apurinã... Quer dizer, nossa língua eu não ti-

6 É importante esclarecer que, no contexto em questão, a línguaindígena é frequentemente reificada e referida simplesmentecomo “a Língua”, o que atesta a sua nova importância simbóli-ca para os falantes.7 A ecologia linguística da Amazônia foi, inicialmente, alteradapor uma língua indígena, o Nheengatu, no século XIX (FREIRE,1983) e é interessante observar no relato de Assis MashãKaxinawa como, ainda neste século, temos línguas indígenasajudando a deslocar outras línguas indígenas.

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nha interesse de aprender. Quando eu ouvia meupai falar, eu dizia “Ah... eu não vou aprender isso”.Ele falava comigo, mas eu não... não queria apren-der. (Prof. Antonio Olavo Eukutxy Apurinã).

Esses depoimentos foram trazidos para estetexto por serem típicos. O não domínio oral da LIé, frequentemente, atribuído à migração individu-al ou familiar (conforme Tui e Assis) ou à desmo-tivação pessoal ou dos pais (conforme AntonioOlavo e Dasu).8 Em alguns casos é possível no-tar, como no depoimento de Antonio Arara, a per-cepção de que a explicação para essa condiçãoadvém, na verdade, de fatores sociais mais am-plos que terminaram por provocar um desloca-mento linguístico no interior do grupo étnico aoqual o professor pertence.

E de onde vem, nas representações desses pro-fessores, o desejo de aprender a língua indígena,de nela se tornarem fluentes?

(...) da próxima vez que eu vier prá Rio Branco[para o curso de formação] eu tenho que tentar fa-lar só Kaxinawa... prá quando eu voltar [no anoseguinte] eu num ficar com vergonha de falar sóportuguês... (Prof. Jesus Dasu Kaxinawa).

Na base de vários dos depoimentos coletados, aexpressão do desejo de aprender a falar língua indí-gena está intimamente associada a um sentimentode vergonha. Mas, note-se que não se trata da ver-gonha, referida por Joaquim Maná Kaxinawa, ad-vinda do fato de que o “branco” desdenha o falantede LI. A vergonha desses professores indígenas,agora, é porque, ao contrário de muitos de seus com-panheiros de curso, não falam a língua tradicionalde seus povos. Quando comecei a gravar as entre-vistas realizadas, esses professores ficavam sem-pre observando os depoimentos dados por outrosdocentes indígenas. Essas ocasiões se constituíamem mais uma oportunidade para que eles se compa-rassem com seus colegas quando estes explicita-vam o orgulho de dominarem suas línguas:

(1) Itsairu:... porque em português, éh... ler e escre-ver o que eu ‘tou pensando eu pode, mas falar as-sim, falar na hora, dizer, ãh, qualquer coisa eu/éDIFÍCIL...

Tereza: ‘cê fala bem Kaxinawa?

Itsairu: [rindo] Kaxinawa eu falo bem porque eusou Kaxi, né?

(2) Tereza: ‘cê fala bem Kaxinawa?

Tene:Eu falo sim... [sorrindo] Na minha língua eusou DOUTOR.

(3) Tereza: Difícil?

Isudawa:É porque português eu não sei bem falar.Eu falo bem é a MINHA língua... Eu falo bem é nalíngua do meu povo Jaminawa.

É fácil imaginar como se sentiam os professo-res indígenas do projeto da CPI-Ac que não domi-nam suas línguas indígenas ao ouvir essesdepoimentos. Envergonhados, como todos afirma-ram, mas, além disto, também muito provavelmen-te, lesados. Assim como os companheiros fluentesem LI, estes professores também têm problemascom a língua portuguesa, já que, por serem falan-tes de uma variedade considerada subpadrão, nemsempre compreendem o que é falado ou escrito nanorma “culta” desta língua. Ou seja, eles sofrem oestigma de “não falarem bem” o português e aindaperderam o benefício de poderem, como Tene, “serdoutor em língua indígena”. Claro que essa últimacondição passa, então, a ser objeto de desejo.

A expressão do desejo de retorno à língua indí-gena revela, muitas vezes, sofrimento, angústia:

(...) porque a primeira vez que eu vim prá cá práRio Branco, TODOS os companheiros indígenasfaziam seu nome na Língua, né? Escreviam, faziamproblemas [de matemática] no quadro de giz, fa-lando na própria língua mesmo... Aí eu não sa-bia... Aí eu fiquei tão TRISTE com aquilo, numsabe? Eu digo, “Agora onde eu aprendo?”... (Prof.Antonio Arara Eutxani Shawãdawa).

Manifestações semelhantes foram encontradas,com frequência, no corpus analisado, como, porexemplo, na entrevista com Assis Mashã Kashi-nawa. Após ter me contado que havia morado comos Shanenawa e com os Yawanawa, motivos pe-los quais não aprendera a falar a língua tradicionalde seu povo, ele afirmou:

(...) que eu acho que... eu... quero SER mesmo umíndio Kaxinawa e... também eu tenho... eu fico/tem

8 Na análise dos dados aqui feita, alguns dos professores indíge-nas serão referidos por seus nomes indígenas e outros por seusnomes em língua portuguesa, em consonância com o modocomo são comumente referenciados nos curso de formação dosquais participam.

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vez que eu penso e dá u’a vontade de ENDOIDAR,né? Porque eu... gostaria MAIS é de falar na minhalíngua mesmo, na língua da minha mãe, dos meusavós... [INC] Eu sou Kaxinawa, é [rindo um risonervoso], mas eu não... Eu sou é Kaxinawa, mas...éh...

O discurso tenso, abortado, hesitante de Assis– característico, segundo Gardés-Madray e Brés(1989), do discurso do sujeito imerso em conflitodiglóssico – revela um processo de identificaçãolinguística doloroso causado pela ausência da lín-gua indígena. Recorrendo a uma imagem, talveznão muito feliz, mas quem sabe útil, eu diria que oíndio que perdeu sua língua se assemelha a umhomem que perdeu um braço, um membro. Estenão deixa de ser um homem por isto, mas a perdae a sua lembrança trazem, sem dúvida, sofrimen-to.9 É a Língua amputada que, para o índio, perma-nece, e dói, em sua potencialidade.

É importante apontar que a vontade de apren-der a falar a LI brota espontaneamente, como vi-mos nos depoimentos até agora, mas também é,em parte, “imposta” de fora para dentro, comoexplicita o professor Apurinã, Antonio Olavo Eu-kutxy:

Eukutxy: Quando eu ouvia meu pai falar eu dizia“Ah ... eu não vou aprender isso”. Ele falava comi-go, mas eu não... não queria aprender. Aí depoisque eu vim aqui prá esse curso aqui... em Rio Bran-co, aí eu me interessei mais em aprender porque euvi todos os parente falando e eu não, não... nãofalava nada. Então é por isso que eu estou interes-sando em falar. É porque eu ficava com vergonha...todo mundo falando a Língua e eu ali, tipo assimum branco, né? Não era mais índio... Então o pes-soal dizia que eu não era mais índio...

Tereza: O pessoal dizia isso?

Eukutxi: DIZIA... “cê não é mais índio, ‘cê não falaa sua língua”... Então por isso que eu me dediqueia aprender mais um pouco.

Os professores indígenas do projeto da CPI-Ac fizeram da língua indígena sua palavra de or-dem. Para fazer parte deste grupo é preciso que oindivíduo se proponha a nela investir. E, se ele nãoé fluente, espera-se que ele comece a aprender anela se expressar melhor oralmente. A pressão

para que os professores assumam esta causa, queé política, é grande e, quando isto não acontece, ogrupo os rejeita:

(...) e eu achei também que esse nosso esforço... foicomo se fosse uma campanha, sabe? Que quando agente começou a fazer isso muitos índios Kaxina-wa mesmo chegaram prá dizer prá gente que prefe-ria falar só na língua portuguesa do que falar nanossa língua... Eles achavam até estranho quandotinha alguns brancos por perto e a gente [os líde-res do movimento] falava na nossa língua... Mas agente ‘tava consciente que nós éramos índio... ELEera índio, mas ele tinha uma consciência que... éh...muito tempo no meio do branco, né? Se sentia malquando a gente falava na Língua perto dos bran-cos... saía meio envergonhado. Chegou o momentode um deles dizer “Eu prefiro falar português doque falar minha língua” (...) Era um dos professo-res que veio do Caucho... E ele falou isso prá nós,né? Agora ele não faz mais curso na CPI porquequando a gente começou a fazer esse trabalho, agente começou... a fazer um modo de crítica, sabe?Dizer: “Ah... por quê? Você é branco? Tem cabeloduro, todo jeito de índio e dizer que não sabe falarsua língua, que já perdeu... O que que é? Você é umprofessor indígena ou o que que é?” Aí parece queele se sentiu mal e deixou de participar do curso(Prof. Joaquim Paulo Maná Kaxinawa).

Assim, temos redefinições da identidade lingu-ística dos professores indígenas da CPI-Ac dita-das por esta nova relação com as línguas indígenas.Se Antonio Olavo, como ele mesmo afirmou, nãotinha interesse em aprender Apurinã antes de virpara os cursos de formação pedagógica, agora, elequer fazê-lo para poder se identificar com o orgu-lho de ser, como os outros, falante de LI e, tam-bém, para ver legitimado seu pertencimento a estegrupo de professores, um processo identificatórioque emerge da necessidade e do desejo de se es-tar em consonância, não apenas com indivíduos desua etnia, mas também com os de outras.

9 É importante esclarecer que, da minha perspectiva, nenhumamaterialidade linguística pode ser considerada depositórioontológico de identidade. A indianidade, assim, não tem que,necessariamente, ser enunciada, revelada em uma língua indíge-na; ela pode ser, e frequentemente o é, construída e veiculadatambém na/pela língua portuguesa. Uma elaboração maisaprofundada desse argumento pode ser encontrada em Maher1996, 1998 e 2005.

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Algumas estratégias compensatóriasEsse desejo e essa necessidade de saber a Lín-

gua, coloca os professores indígenas cujo repertó-rio lexical em língua indígena é limitado emsituações, algumas vezes, delicadas, como as quedescrevo a seguir.

Em 1995, durante o XV Curso de Formação deProfessores indígenas da CPI-Ac, a entidade re-cebeu a visita de três professores Wajãpi do Ama-pá. Estávamos numa aula de língua portuguesaquando estes chegaram. A aula foi interrompidapara que todos pudessem se apresentar. Os pro-fessores Wajãpi, vestidos com suas roupas tradici-onais, falaram, em um português hesitante – porquetinham pouco tempo de contato – sobre seu povo esua experiência com a educação formal. Curiosos,os professores da CPI-Ac pediram que um dosWajãpi falasse um pouco em sua língua tradicionalno que foram atendidos por um deles. Ao terminarsua fala, o professor visitante foi ao quadro-negroe, em um gesto encantador, escreveu Ejimorypadizendo que esta palavra significava “amigo” emsua língua materna. À medida que os professoresacreanos foram se apresentando, eles, em retri-buição, também foram escrevendo a mesma pala-vra em suas línguas. Vejamos o que aconteceu apósAntonio Arara, um sujeito cuja competência lingu-ística em LI é incipiente, ter se apresentado:

Antonio: É, bom... amigo... amigo que a gente tem nopeito, é aquela pessoa que a gente muito gosta, né?

PI?: muito gosta... ‘tá certo...

Antonio: Então, eu gosto aqui dos meus amigo domesmo jeito que fosse uma pessoa minha, né? En-tão... mas como amigo meu, de verdade, eu tenhocerteza que é o meu pai, né? Então eu perguntei...e é a mesma palavra. Amigo é uma pessoa da gente,né? Pessoas que a gente não... não quer ter dife-rença de nada são amigos. São umas pessoas igual/que nem a gente é... Então o melhor amigo da gen-te é... o PAI da gente, né? Então eu perguntei promeu avô “Como é que chama amigo?” Ele disse“Tanto faz ser amigo como pai, tudo é uma coisasó, né?” Então eu perguntei como é que chamava,ele disse: “Epa”...

Tereza: “Epa”?

Antonio: “Epa”.

Tereza: Vamo escrever?

Antonio: Vamo lá.

O professor Antonio Arara não sabia, como elemesmo me disse mais tarde, como falar “amigo”em Shawãdawa, mas, para evitar o constrangimentode ter que admiti-lo na frente dos colegas e dasvisitas, utilizou, muito estrategicamente, sua criati-vidade. Pouco tempo depois, chegou a vez do pro-fessor Geraldo Aiwa Apurinã se apresentar.Geraldo explicou aos Waiãpi que, em decorrênciada violência do contato do “branco” com o seupovo, ele e muitos outros Apurinã não falavam maisa sua língua tradicional e que, por isso, ele não sa-bia como era a palavra “amigo” na língua Apurinã.O professor Jorge Avelino, seu companheiro deetnia, saindo em seu socorro, tomou a palavra edisse:

Jorge: ô Geraldo... acho que lá prá gente “amigo”é o mesmo que “parente”.10

Geraldo: É... pode ser... “parente”.

Jorge: É, porque nós somos “parente”, todo mun-do é... “Parente” é todo índio em Apurinã. Por exem-plo, se for no... nosso, no nosso... na nossa tradição,a gente pode chamar... de “pupugane” porque todomundo é amigo, todo mundo é parente, todo mun-do é... a mesma coisa nos seringais.

P.I.?: “Pupugane”?

Jorge: “Pupugane”.

Tereza: Vamo lá escrever? Pu-pu-ga-ne... Vai lá,Geraldo, escreve... ou, ou o Jorge...

Geraldo: ‘cê vai, Jorge?

Jorge: Vou tentar, né? [Jorge se dirige ao quadro-negro e escreve a palavra enquanto vai negociandoa grafia do termo com Geraldo]

São várias as ocasiões em que os professoresindígenas aqui focalizados se viram em situaçõescomunicativas que exigiam um desempenho em lín-gua indígena acima de sua real competência. A in-teração reproduzida a seguir, além de corroborartal fato, atesta um dos papéis exercidos pelos agen-tes não-índios da Comissão Pró-Índio no processo

10 “Parente” é o termo utilizado localmente para se referir aalguém da mesma etnia ou de outra etnia indígena.

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de (re)constituição da identidade linguística dessesprofessores indígenas.

Tal interação aconteceu durante uma das fes-tas de encerramento do curso de Geografia Cultu-ral em 1992. Era proposta desse módulo dos cursosde formação da CPI-Ac discutir as especificida-des de cada uma das etnias presentes nos cursos eincentivar trocas culturais entre os professores. Asfestas de encerramento desse módulo eram espe-radas com ansiedade por todos, pois eram vistascomo oportunidades agradáveis e importantes deconfraternização, já que cada grupo étnico prepa-rava e compartilhava com os demais suas músi-cas, jogos e narrativas culturais. Na festa aquifocalizada, o professor Antonio Arara Eutxani Sha-wãdawa fez as vezes de Mestre de Cerimônias doevento junto à professora de Geografia:

Professora de Geografia: Bom... agora que nós jáouvimos o canto dos Jaminawa, nós vamos ouvir...uma apresen/uma BONITA estória [aponta paraAntonio, sorrindo] SHAWÃDAWA... Agora é VOCÊ...SHAWÃDAWA.

Antonio: É... então eu vou cantar uma música aquida minha tradição, é pequenininha... falando so-bre a dor no/dor de dente, né? Quando os paren-tes/eu FALEI antes que eu ia contar uma estória,mas não... É muito complicado prá mim, né?... Euvou cantar uma música quando os parentes ‘tavamcom dor no dente e que quando/se cantava práconseguir tirar aquela dor no dente... Bom, então éassim... [a música cantada por Antonio na línguaShawãdawa dura 16 segundos. Ao término dessaapresentação ouve-se aplausos entusiasmados dosdemais professores indígenas]

Professora de Geografia: E aí... [rindo]? E a ESTÓ-RIA [em Shawãdawa]?

Antonio: Aí?... A estória eu não vou contar porqueé MUITO complicado... [rindo, Antonio olha seurelógio] e também porque tá tarde... Vai demorar,não dá mais tempo, né?... [gargalhadas] [Antoniocontinua, agora com o semblante sério] Agora, né?que nós ouvimos o canto da dor de dente, prá dorsumir, né? [repete o refrão da música que acabarade cantar em Shawãdawa. Os demais professoresindígenas presentes voltam a aplaudi-lo vigorosa-mente] (...) Então agora... [olhando a ordem de apre-sentações em sua lista] agora vamos ouvir... ver aapresentação... Ashaninka, um canto Ashaninka.

Antonio Arara não tinha o domínio suficientede Shawãdawa para contar uma estória nessa lín-gua, mas ele se deu ao trabalho de aprender umamúsica tradicional para a ocasião e isto o deixa tãoorgulhoso que ele repete o seu refrão. A ovaçãodos outros professores indígenas é o reconheci-mento de seu esforço.

A “cobrança”, em tom de brincadeira, feita pelaprofessora de geografia descrita no excerto ante-rior é típica, no corpus analisado, de um compor-tamento que acaba funcionando como fatorcontributivo para o desejo e o empenho desses pro-fessores indígenas em recuperarem o uso de suaslínguas indígenas. Uma outra evidência desse com-portamento pôde, por exemplo, ser verificada emuma aula de matemática. Nessa aula, o professorda disciplina, após ter trabalhado com os professo-res indígenas o conceito de “problema matemáti-co”, lançou mão da tradução como recurso paraverificar se tal conceito havia sido realmente en-tendido. Pediu, assim, que um professor de cadagrupo étnico fosse ao quadro-negro e escrevessecomo seria possível dizer o equivalente a “proble-ma matemático” em suas línguas. Os professoresindígenas discutiram entre si e as traduções foram,então, escritas na lousa. Em seguida, o professor,brincando, disse: O Geraldo e o Antonio Araravão ficar devendo... O ano que vem eles tra-zem prá gente... [rindo] vão ficar devendo.... Aesta sua fala, uma linguista, que na época assesso-rava a CPI-Ac na descrição das línguas Shawã-dawa e Apurinã, olhou para os dois professoresindígenas e, fingindo fazer anotações em seu ca-derno, falou: ó que eu ‘tou anotando, heim?

É importante ressaltar que esses formadores“brancos” são pessoas muito respeitadas pelos pro-fessores indígenas, sujeitos da pesquisa aqui refe-renciada. Além de sua notória competência profis-sional, há, ainda, o fato de eles terem abraçado acausa indígena com muita convicção e de mante-rem um estreito relacionamento pessoal com es-ses professores, relacionamento este construídodurante os cursos, e também em suas visitas àsaldeias, quando ouviam e discutiam as necessida-des dos professores e de suas comunidades. Es-ses professores “brancos” são, portanto, conside-rados, por todos, cúmplices, aliados: pessoas cujasexpectativas não podem ser ignoradas... Suas fa-

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las, apesar do tom jocoso, podem projetar a expec-tativa de que, em seu entendimento, todo profes-sor indígena teria que falar bem uma língua indíge-na, expectativa esta que estaria sendo contrariadajá que os professores Geraldo Apurinã e AntonioArara estão “devendo” competência nesse senti-do. No entanto, tal expectativa projetada não pro-cede: também para esses professores não indíge-nas, a indianidade não está intrinsecamente ligadaà proficiência em língua indígena, como expuse-ram, com clareza, nas entrevistas com eles reali-zadas. Isto não altera o fato, no entanto, de que oseu discurso e o de outros professores-formado-res da CPI-Ac contribuem para que alguns pro-fessores indígenas se sintam ainda mais pressio-nados a ter que aumentar suas competências oraisem línguas indígenas, já que, muito provavelmente,não desejam decepcioná-los.

É importante considerar, ainda, que os discur-sos dos agentes formadores da CPI-Ac reproduzi-dos anteriormente refletem a própria política deatuação educacional da entidade que tem, por prin-cípio, a valorização de todos os aspectos culturaisindígenas, Língua inclusive. Isto também não sig-nifica que para a entidade haja uma relação diretaentre “ser professor indígena” e “ser capaz de fa-lar uma língua indígena”. Tanto é que constam deseu quadro vários professores cuja língua maternaé o português. Mas, como, sobretudo em situaçõesde conflito diglóssico, não é a realidade, mas re-presentações acerca da realidade que influenciamo comportamento dos falantes, os professores in-dígenas aqui referidos provavelmente se sentiammais coagidos ainda a terem que aumentar suascompetências orais em LI devido também ao quepercebiam como sendo uma pressão gerada pelasações da entidade e pelos discursos de seus asses-sores e consultores.

Não é índio aquele que desiste dascoisas e vai embora...

Concluo este texto trazendo uma fala do Prof.Joaquim Maná Kaxinawá, porque ela esclarece alógica por detrás das práticas discursivas aqui dis-cutidas.

Maná: (...) Aí parece que ele se sentiu mal e deixoude participar do curso...

Tereza: ‘cê acha bom ele ter deixado [de participardo curso], Maná?

Maná: Não, eu não achei bom... Foi bom prá ele,mas foi bom prá / foi RUIM prá comunidade deleporque ele não TEVE interesse... Foi uma pessoaque eu achei que foi muito desinteressado... AGORAos outros, como o Chiquinho, o Dasu e outros pro-fessores que não falam a sua língua, mas eles ‘tãoentendendo... (...) Eles ‘tão COMEÇANDO a enten-der que a nossa língua é igualzinha como as outraslínguas... Isso também tem uma grande importân-cia, né? E eles ‘tão já começando a escrever... al-guns já lêem, escrevem... Não sabem falar de...NORMAL como a gente fala, mas eles entendem

Tereza: eles não falam?

Maná: NÃO, FALAM... um pouquinho, né? Eles têmum sotaque diferente, mas falam e entendem... pelomenos. O Assis, ele não fala, mas ele escreve direi-tinho e algumas palavras soltas ele já fala tranqui-lo... Você dá uma tarefa pro Assis, mesmo que elenum fale... ‘cê dá uma tarefa pro, pro Dasu, éh, proValdir... eles fazem. Tem algum errinho, mas elesfazem...

Tereza: E você acha que eles são índios, não sãoíndios... Como é que fica? Por exemplo, o AntonioArara, vamos supor o Antonio Arara...

Maná: éh... o Antonio Arara... Eu VEJO ele comoíndio, eu não tenho dúvida que ele é índio... Elecanta, mesmo que ele não cante bem, mas ele temum interesse de cantar... Ele já fez coisas que talvezquando ele veio no primeiro curso ele não pensa-va [que poderia fazer]... Então, ele ‘tá se sentindoassim mais seguro, sabe? E isso é bom porque...quando ele voltar prá aldeia... no próximo cursoque ele vier, ele ‘TÁ sabendo que vai aconteceruma festa dessa, né? Então ele vai querer tentargravar ou escreVER alguma música que eles têmna sua aldeia... Então o que eu vejo é isso, mas...ele É índio, na minha cabeça é índio... AGORA,NÃO é índio aquele que desiste das coisas e vaiembora... Agora se ele ficar, mesmo que ele tenhadificuldade...

A fala deste professor Kaxinawá me fez en-tender que, da perspectiva dos líderes do movi-mento pró-língua indígena em questão, para queo indivíduo seja considerado um “professor indí-gena legítimo”, o essencial não é que ele tenhaplena competência, oral e/ou escrita, em LI e, sim,que ele assuma um compromisso político e ideo-

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lógico com a causa do grupo. Tal causa, matrizde toda uma mobilização social em torno da “re-cuperação” de línguas indígenas, propicia, comoprocurei demonstrar neste texto, a emergência deprocessos de identificação que – embora confliti-vos e dolorosos em momentos – fazem parte deum processo de (re)construção de uma identida-de linguística indígena mais positiva. Porque nãohá que se ter ilusões: não se passa incólume pelapassagem de uma representação de falante de“gíria” para a condição, ainda que não em uma

dimensão comunicava plena, mas em uma dimen-são mais simbólica, referencial, de “falante” deuma língua com “L” maiúsculo. Não estamos aquidiante de um empreendimento banal – trata-se,antes, de uma necessidade de se promover e re-alizar um deslocamento ideológico de grande mon-ta, deslocamento esse que pode implicar em umônus em nada desprezível para muitos professo-res indígenas, como Dasu, Assis, Antonio Ararae, provavelmente, vários outros por esse BrasilIndígena afora.

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Recebido em 11.09.09Aprovado em 15.09.09

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LOS PROCESOS COMUNICACIONALESY SUS DESAFÍOS EN LA EDUCACIÓN ABORIGEN

Beatriz Bixio *Luis Heredia * *

* Dra. en Letras. Profesora titular. Investigadora Adjunta. Universidad Nacional de Córdoba. Consejo Nacional de InvestigacionesCientíficas y Técnicas (CONICET). Dirección institucional: Ciudad Universitaria, Pabellón Francia, Córdoba. Argentina. E-mail: [email protected]

** Licenciado en Historia. Profesor titular. Investigador del Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanida-des (JUBILADO). Universidad Nacional de Córdoba. Facultad de Filosofía y Humanidades. Dirección institucional: CiudadUniversitaria. Pabellón Francia, Córdoba, Argentina

RESUMENEn el artículo se discuten algunos anclajes del fracaso escolar de niños y jóvenesaborígenes a partir de aspectos puntuales relativos a los estilos educativos en suarticulación con los estilos de comunicación. Se plantea que la distancia entre lasformas que adquiere la comunicación de los nativos y las que propone la escuelaconstituye un aspecto sutil pero con fuerte incidencia en el fracaso y la deserciónescolares pues afecta a la interpretación de los enunciados. Las reglas de lacomunicación se extienden a las relaciones entre significados y conductas, lo cualconstituye otro eje que advierte sobre la distancia entre los estilos educativos escolaresy los desarrollados en el interior de la cultura nativa. En tercer lugar, se interpretanestas distancias en términos de las diferencias de poder y asimetría que rigen lasrelaciones interétnicas, a las que se define como relaciones de fricción y conflicto. Eneste marco, se reconoce la importancia de que las comunidades participen activamenteen el diseño de sus propios proyectos educativos.

Palabras clave: Estilos educativos – Estilos comunicacionales – Distancia cultural ylingüística

ABSTRACTCHALLENGES OF COMMUNICATIONAL PROCESSES ININDIGENOUS EDUCATIONIn this paper, we discuss some anchorings of school failure in indigenous children andyoungsters with regard to determined aspects related to the articulation betweeneducational styles and communication styles. We state that the distance between theforms acquired by the communication of natives and those proposed by the schoolconstitute a subtle aspect but with strong incidence in school failure and desertionsince it affects statement interpretation. The communication rules spread to therelationships between meanings and behaviors, which make up another axis that warns

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about the distance between the school educational styles and those developed withinindigenous culture. Also those distances are interpreted in terms of the differences ofpower and asymmetry that rule inter-ethnic relationships, which are defined as relationsof friction and conflict. Within this framework, we recognize the importance for thecommunities to participate actively in designing their own educational projects.

Keywords: Educational styles – Communicational styles – Cultural and linguisticdistance

IntroducciónInvestigadores y docentes del nivel primario

conocen de la crisis del sistema educativo que semanifiesta en particular en el medio pobre y, den-tro de éste, en el ámbito de las etnias originarias.El analfabetismo, el desgranamiento y la deserciónescolares, así como la inadecuación de la educaci-ón a las necesidades básicas del nativo son los fe-nómenos más preocupantes, desde el punto de vis-ta educativo, existentes en las comunidadesaborígenes. En orden a estos reconocimientos, enesta oportunidad buscamos identificar algunos an-clajes explicativos del fracaso escolar de los edu-candos aborígenes, atendiendo en especial a lasnormas de interacción comunicativas que puedenser reconocidas desde una mirada etnográfica. Nosreferiremos en particular a la situación de comuni-dades toba y wichí de Argentina, a partir de nues-tras propias investigaciones en terreno1.

La distancia cultural y lingüística (HEREDIA;BIXIO, 1992) en el caso de los pueblos originarioses de tal profundidad que obstaculiza la experien-cia de aprendizaje y pone en crisis los procesos deconstrucción de las categorías con las que se pien-sa el mundo social y natural. En pocas situacionesse percibe tan claramente como en ésta que no esla estructura ontológica de los objetos lo que deter-mina la realidad sino el sentido de nuestras experi-encias. El ingreso a la escuela representa para eleducando nativo una experiencia traumática, todavez que debe incorporar un universo de valores,significados y normas reñido con el universo ver-náculo, lo que explica el fracaso. En este sentido,se trataría del efecto bloqueante y desidentificadorpor la falta de continuidad entre los universos nati-vos y los escolares.

Este aspecto ha sido comprendido por los pla-nificadores de la educación en diferentes países y,

desde hace ya más de tres décadas, se cuenta conlegislación específica2 y con múltiples experienci-as más o menos exitosas en Latinoamérica de edu-cación bilingüe, bicultural, intercultural e, incluso,dicultural. Sin embargo, ello no ha producido cam-bios significativos en las estadísticas, que siguenacusando una desigual distribución del éxito edu-cativo y en las que la población aborigen exhibe losíndices más preocupantes. El escaso impacto deestos programas amerita preguntarse, una vez más,por sus motivos, ampliamente debatidos en los últi-mos años. La educación bilingüe e intercultural conmaestros nativos es el horizonte al cual apunta lamayoría de las políticas diseñadas. Sin embargo,entre la planificación educativa y su práctica hayun hiato que, la mayoría de las veces, se relaciona,con la falta de fondos apropiados, la ausencia deinvestigaciones sobre lenguas y socioculturas nati-vas que ofrezcan las bases de la planificación y,

1 Los tobas (o qom) se localizan principalmente en las provinciasde Chaco y Formosa del Norte argentino y un grupo importantese encuentra asentado en ciudades de la provincia de Santa Fe.Actualmente en Argentina se computan 66.000 indígenaspertenecientes a esta etnia. Su lengua forma parte de la familiaGuaycurú. Los wichí (mataco), de la familia matato-mataguayo,conforman un grupo étnico de aproximadamente 60.000personas asentados en las provincias de Formosa, Chaco y Salta2 Para el caso de Argentina, está actualmente en vigencia la ley23.302, sancionada en 1984 y reglamentada en 1989 que disponeque en áreas de asentamiento de comunidades indígenas laeducación se realizará, en los tres primeros años, en lenguaindígena materna y en los restantes la enseñanza será bilingüe.Se especifica también que los planes que se implementen deberánresguardar y revalorizar la identidad histórico-cultural de lascomunidades, “asegurando al mismo tiempo su integraciónigualitaria en la sociedad nacional” (Art. 14). Luego deladvenimiento de la democracia, diferentes provincias conpoblación indígena en Argentina han generado sus propiaslegislaciones al respecto (Formosa en 1984, Chaco, Salta yMisiones en 1987, Río Negro en 1988, etc). La reforma cons-titucional de 1994 garantiza la educación bilingüe e interculturaljunto a otros derechos. La ley provincial del Chaco Nº 3258 de1987 reconoce el derecho de los aborígenes toba, wichí y mocobía estudiar en su propia lengua en las instituciones de enseñanzaprimaria y secundaria –educación bilingüe y bicultural- y crea lafigura del auxiliar docente aborigen.

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básicamente, con la ausencia de personal docentede la propia comunidad, de modo que estas experi-encias alcanzan a un porcentaje reducido de lapoblación aborigen.

En este contexto, en algunas experiencias ar-gentinas se integró a la práctica escolar nativa lafigura de los auxiliares docentes, tomados de lapropia comunidad, que tienen por función apoyarla tarea del educador en el aula, oficiando comoacompañamiento en el proceso de enseñanza-aprendizaje. Sin embargo, en las comunidades enlas que ha sido implementada esta figura, tampocoha redundado en una modificación de los índicessobre la distribución desigual a nivel étnico del éxi-to escolar debido a que sus funciones no son cla-ras, ni los maestros están dispuestos a perder elcontrol que les proporciona la posesión de la totali-dad del saber a impartir3. En este contexto, el au-xiliar docente se transforma en un traductor de laspalabras que los niños no comprenden y en unacontención afectiva para los niños que sufren elextrañamiento de la cultura ajena.

Otros aspectos problemáticos relativos a la pu-esta en práctica de los programas de educaciónbilingüe e intercultural se relacionan con la falta dematerial didáctico apropiado y, en conexión con ello,con la falta de sistemas gráficos de representaciónde las lenguas nativas orales que requieren de com-plejas y especializadas investigaciones previas so-bre sus sistemas fonético-fonológicos. E incluso,cuando estas investigaciones existen, se presentatambién el problema de decidir qué sistema se usa,pues el alfabeto occidental ha sido denunciado decolonialista – como otra forma velada de penetra-ción cultural – por parte de comunidades con unafuerte conciencia étnica. Pero las decisiones noterminan aquí pues hay que definir la variedad dela lengua que se toma como estándar para la alfa-betización, situación problemática que no sólo atañeal caso de lenguas que incluyen variedades socio-dialectales marcadas, como el quechua, el mapu-che o el guaraní, por ejemplo4. También las lenguasnativas con menos hablantes acusan una profundadialectalización y la opción por cuál de ellas se es-cribe es una decisión que erige a los hablantes deuna comunidad en hablantes legítimos de la varie-dad legítima de la lengua.

Reglas de la comunicación escolarNos interesa, principalmente, una cuestión que

está en la base del problema y que, si bien ha sidodestacada por abundante bibliografía, aún no hasido atendida suficientemente en los programasalternativos de educación aborigen propuestos. Nosreferimos a las interacciones lengua/cultura/socie-dad que se ponen en juego en todo proceso de co-municación y mucho más ostensiblemente en elcaso de las comunicaciones escolares pues en lasinstituciones educativas las interacciones son decarácter comunicativo, esto es, lingüístico. En estemarco, si bien el problema educativo –en generalpara los grupos pertenecientes a culturas margina-lizadas en el contexto de las macrorrelaciones depoder- es un problema lingüístico, por sobre todoes un problema social en cuanto la sociedad nacio-nal se acerca a las comunidades y lenguas nativascon representaciones estereotipadas y uniformesque niegan aquello que constituye su mayor rique-za: la diversidad.

El aspecto central de esta interfase al que nosreferiremos es el relativo a los estilos educativosque se internalizan en el proceso de socializaciónprimaria que, como se ha advertido también ampli-amente, entran en colisión con los que propone lainstitución escolar (GERVILLA, 2003). A algunosaspectos de este problema nos referiremos princi-palmente, tomándolos como centro para el desar-rollo de otros, tales como competencia comuni-cativa – pues los estilos educativos no se puedenconsiderar con independencia de los estilos comu-nicativos – y potencial de significado, en filiaci-ón con la postura de Basil Bernstein, cuya teoríasociológica de la educación, si bien estuvo pensa-da para sociedades complejas de clase, puede serextendida a sociedades que atraviesan la clase y la

3 Son abundantes los reconocimientos de estas dificultades. Así,por ejemplo, un joven wichí expresa que los maestros blancosno se acostumbraban a compartir las clases con los auxiliares, “

decían que no sabían el rol del auxiliar y así como que lesdespreciaban, como que les molestaba estar al lado, trabajar conun aborigen” (Filippi, 2005: 118).4 Para el caso del toba, véase, entre otros, Messineo (1995) yBigot (2007).

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etnia5. Postulamos, entonces, que la complejidaddel problema educativo en relación con las comu-nidades nativas no se resuelve completamentemediante la implementación de programas de edu-cación bilingüe y que la sociocultura nativa deberíaingresar al espacio escolar no sólo como contenidosino atendiendo a las específicas modalidades co-munales de significar y hacer uso de la palabra. Entérminos de Bernstein (1993, p. 100), “el proble-ma educativo radica en la discrepancia entre lasformas de práctica comunicativa que requiere laescuela y las formas de comunicación hacia lasque se inclinan los alumnos de forma espontánea.”

Fundamos nuestras observaciones en el reco-nocimiento de que las interacciones lingüísticas sebasan no sólo en lo que ha sido denominado porChomsky competencia lingüística, esto es, cono-cimiento de las reglas sintácticas y semánticas pro-pias de una lengua, sino básicamente en lo queHymes (2002) denominó competencia comunica-tiva, definida tanto a partir de parámetros lingüísti-cos como socioculturales. En este marco, todo usocontextuado de una lengua requiere del hablanteun conocimiento que excede el saber sobre su len-gua: se trata de saber cuándo hablar y cuándo callar,cómo dirigirse al interlocutor, qué se puede decir yqué no, qué palabras, construcciones, sentidos dis-cursivos son pasibles de ser actualizados y cuálesquedan interdictos en los diferentes contextos dehabla que reconoce la comunidad. Se trata de lahabilidad que todo hablante tiene de su lengua paraemplear las reglas de la gramática y el léxico demanera adecuada social y culturalmente, se tratade un conocimiento que permite la inferencia, lainterpretación del sobreentendido, lo presupuesto,en suma, la interpretación de los enunciados. Estacompetencia comunicativa da las pautas de quéhablar (tema), ante quién (participantes), en quésituación (escenario), siguiendo qué fines, con quéclave (seria, metafórica, irónica, paródica, amisto-sa, íntima), con qué variedad de lengua (social, es-tilística), y cómo (estructura del enunciado, génerodiscursivo, etc.).

En lo relativo a los problemas educativos estalínea ha resultado especialmente fructífera al pro-porcionar los instrumentos para el análisis particu-larizado y riguroso de las interacciones en el aula.Además, ha puesto en evidencia que en este espa-

cio alumnos y docentes pueden poner en juego di-ferentes competencias comunicativas y que, porello, muchos alumnos provenientes de subculturaspueden tener dificultades en la interpretación delas instrucciones más elementales propias del ám-bito escolar (por ejemplo, la expresión “no veo nin-guna mano levantada” como un pedido decolaboración del docente – Gumperz, 1986). Parapresentar un ejemplo de nuestros propios registrosetnográficos, una docente toba nos comentaba quecuando en la escuela “se pelean dos niños nati-vos la maestra les grita para que no se peleen.Pero como los gritos no forman parte de nues-tra manera de enseñar, los chicos no entiendenlo que las maestras les quieren decir…” (O.M.).Esto es, la interpretación de los enunciados ya nodepende del mayor o menor conocimiento de lalengua (de la competencia lingüística) sino de es-tas sutiles diferencias que se relacionan con nor-mas sociales de uso del lenguaje (competenciacomunicativa). El contexto instructivo exige deter-minados usos del lenguaje y, por ejemplo, la vozexcesivamente alta del docente puede provocarinterferencias insospechadas: Un maestro wichíexpresa que “cuando el maestro hablaba muy fuer-te el chico pensaba que lo retaba” (FILIPPI, 2005,p. 116).

Estas distintas modalidades comunicativas seconectan con diferentes formas de transmisión del

5 Vale aclarar que el planteo de Bernstein se simplificó y fueubicado, especialmente por pensadores de filiaciónnorteamericana, como un representante de la teoría del déficit,en lo que interpretamos no fue sino una estrategia más de polí-ticas lingüísticas y educativas de corte liberal orientadas a negarlos conflictos escolar, social y lingüístico. En esta línea se ubicanaquellos que postulan que sólo hay “diferencias” entre las moda-lidades de hablar de distintos grupos, lo que niega la existenciadel conflicto que encamina a algunos niños – los de los grupossociales más favorecidos – al éxito y a los otros – hijos dedesocupados, trabajadores temporarios, trabajadores manuales– al fracaso. Los trabajos de Bernstein son polémicos por elsólo hecho de que trata de las diferencias de clases sociales y decómo éstas quedan inscriptas en el lenguaje. “La teoría de loscódigos mantiene que existe una distribución desigual, reguladapor la clase social, de los principios de comunicación .....y que laclase social, indirectamente, realiza la clasificación y la estructuradel código elaborado transmitido por la escuela, de manera quese facilita y perpetúa su desigual adquisición. Así, pues, la teoríade los códigos no acepta una postura ni de déficit ni de diferen-cia, sino que llama la atención sobre la conexión entre lasmacrorrelaciones de poder y las microprácticas de transmisión,adquisición y evaluación y el posicionamiento o la oposición aque estas prácticas dan origen” (1990, 118-119). El destacado

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conocimiento y cambian con el curso del tiempoen una misma comunidad. En nuestra propia soci-edad una de las pautas de la interacción comuni-cativa familiar, hasta hace relativamente pocoslustros, era la de que cuando los adultos dialoga-ban no intervenían los niños en la conversación.Les estaba vedado el uso de la palabra, salvo cu-ando eran autorizados por los mayores. La escue-la, como institución que en buena medida reproducelas pautas y prácticas de la sociedad mayor, semovía dentro del mismo esquema comunicacional.El alumno no podía hablar, salvo que fuera autori-zado por la maestra. Pero las formas de la interac-ción comunicativa cambiaron en el seno familiar, yel diálogo entre padres e hijos se hizo fluido y flexi-ble. Se produjo una suerte de democratización enla comunicación y la informalidad reemplazó unaestrategia discursiva asentada en el ejercicio delpoder y la autoridad paternos. Estos cambios seacompañaron, relativamente, de cambios en la co-municación escolar y la escuela, en especial en susmodelos progresistas, redefinió sus pautas de co-municación escolar (incluido el currículo) por cier-ta flexibilidad en el encuadre de las voces quepueden escucharse en los diferentes contextos es-colares. El ámbito de la dirección de la escuela ode las decisiones o planificaciones curricularespuede ser también el lugar de la voz de los estudi-antes organizados en centros de estudiantes conrepresentación en los consejos escolares, y los pa-dres pueden ingresar con su voz en instancias decomunicación escolar. Y así como cambiaron lasnormas de comunicación que rigen las interaccio-nes en el interior de la familia, también cambiaron–aunque en menor medida- las reglas de la comu-nicación escolar.

El discurso pedagógico de todos los niveles delsistema educativo argentino puede definirse de cla-sificación fuerte en el sentido de que los conteni-dos, temas, materias, sujetos, espacios, etc., estánclaramente delimitados y separados (clasificados)por materias, áreas, unidades, años, ciclos, lugaresde recreación, de actos, de realización de activida-des físicas, etc. Además, presenta sus mensajesescolares con una estructura o enmarcamiento fuer-te, lo que implica que el docente establece un clarocontrol sobre las reglas de comunicación, la formaque deberán adquirir los discursos que circulan al

interior de la escuela, cómo se organiza lo que sedice, a qué velocidad y ritmo se puede cambiar latópica, etc. Estas pautas de comunicación produ-cen un discurso altamente ritualizado que afectatanto a la actuación como a la interpretación de losenunciados y cuyo conocimiento varía de un gruposocial a otro. Estas reglas son implícitas, y por ellodependen del conocimiento previo y de la capaci-dad del alumno para reconocerlas, interpretarlas yactivarlas en el momento oportuno, más aun cuan-do, en estos rituales, quien define las reglas del juegoes el docente, pues la situación escolar es siempreasimétrica y el educador actúa, en todas las situa-ciones, incluso las aparentemente más espontáne-as, en representación de un conjunto de valoresescolares. El ritual de los mensajes escolares pue-de ser más familiar para algunos niños que paraotros, y ello se relaciona con la socialización pri-maria y la biografía social de las comunidades des-tinatarias de la educación.

Conjugando estas observaciones con las pro-venientes de la Etnografía de la Comunicación,las interpretaciones que los sujetos hagan de ci-ertos enunciados dependerán de su conocimientono del lenguaje, sino de lo que se está haciendo ycómo debe hacerse; ello permitirá realizar infe-rencias sobre qué se está significando y cómocontinuar el intercambio comunicacional. Clases,conversaciones en pasillos y patios, recreos, ac-tos escolares, actividades de laboratorio, activi-dades de gimnasia, etc., incluyen situaciones decomunicación específicas, con intercambios tam-bién particulares, que pueden estar en mayor omenor concordancia con las competencias comu-nicativas de los alumnos. De la interpretacióncorrecta de estas reglas de comunicación depen-de el éxito escolar y su conocimiento puede vari-ar en subculturas particulares.

A una persona formada en la tradición occi-dental le resulta particularmente complicado esta-blecer cuándo la expresión del otro es metafóricao no, dificultad que se acentúa cuando la expresióncorresponde a individuos pertenecientes a otrasculturas. Entre los aborígenes wichí es una creen-cia muy extendida – pero no una mera creenciaque pueda ser reemplazada por otra sino una ex-periencia investida de una realidad incuestionable– que “los animales fueron personas antes”, y

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ese “antes” se remonta a dos o tres generacioneshacia atrás. “Y lo hicieron porque se acobarda-ron, se acobardaron de ser personas”. El autorde este texto es un aborigen wichí. Conocemos eltexto, pero ¿lo comprendemos? ¿Debe ser com-prendido literal o metafóricamente? Para interpre-tarlo es necesario conocer qué tipo de metáforasusa la lengua, la mitología de esa cultura, la teoríacon que abordamos el tema, la intención del ha-blante, cómo justifica, si es que puede hacerlo, esaafirmación, entre otras cosas. Todo ello para pro-curar conocer si la expresión aludida es una metá-fora del tipo “María es un pedazo de pan”, o sisignifica que realmente “las avispas fueron per-sonas”. Sobre las indicaciones del emisor en cu-anto a cuáles sean sus intenciones respecto de loque quiere que el receptor interprete hay un sinnú-mero de presupuestos que son “culturales”, que sedan por sobreentendidos y que hacen que esas in-dicaciones sean insuficientes para quien no perte-nece a ese círculo cultural. Uno de esos presupu-estos es aquel que resumiríamos como “sabemosde qué estamos hablando”.

Respecto de esto último, el diálogo fue el sigui-ente:

P. - Pero ¿fueron personas, wichí, realmente?R. - Sí, fueron personas.P. - ¿Cuáles animales fueron personas?R. - Todos fueron personas.P. - Por ejemplo, ¿cuál?R. - La avispa, por ejemplo. Se sabe que fue perso-na porque todavía lleva flecha (aguijón).P. - ¿Y el arco?R. - Ese ya perdió hace mucho tiempo.

Como se advierte de la anterior lectura, no diceque las avispas hayan sido “como personas”, diceque “fueron” personas. ¿Cómo interpreta el lectoreste diálogo? Las opiniones aquí están divididas.Beattie (1980) probablemente sostendría que unainterpretación literal del diálogo anterior constitui-ría un despropósito si no se tuvieran en cuenta losestilos de pensamiento de los wichí, su visión delmundo, las formas como expresan estas ideas, sulengua, entre otras cosas. Olson (1995), por suparte, creo que estaría de acuerdo en que las ma-nifestaciones del referido diálogo pueden ser tantoliterales cuanto metafóricas, pues esa tajante dico-

tomía es un producto absolutamente cultural deOccidente. No obstante, la ausencia de la fuerzailocucionaria, o al menos su debilidad, torna siem-pre más o menos inseguros sus alcances semánti-cos. El poder interpretar un discurso, asignarlesignificado, significa, entre otras cosas, reconocerla clave (Key) en la que ha sido dicha: metafórica,irónica, satírica, ficcional, etc. (HYMES, 2002).

A continuación queremos referirnos a otros doscomponentes del discurso pedagógico que regulanlos mensajes que circulan en el marco de la escu-ela. Aludimos a los criterios de evaluación y al rit-mo de adquisición de los contenidos. Estos dosaspectos, menos directamente observables, mássutiles que los anteriores, juegan, sin embargo, unpapel central en el discurso pedagógico.

En cuanto al primer punto, en el caso de lascomunidades chaqueñas por nosotros estudiadas,por dar sólo un ejemplo, coincidente, por otra par-te, con los realizados para otras comunidades nati-vas (CEBOLLA BADIE, 2005), el estilo deaprendizaje basado en el individualismo y la com-petencia, esto es, la representación según la cualel buen alumno es el que tiene mejores notas apartir del esfuerzo personal, no se condice con losestilos de las comunidades wichí o qom, que mani-fiestan mucha mejor disposición para las tareasescolares cooperativas, en las que las actividadesexigen del acuerdo con sus pares y no de su oposi-ción a ellos, en las que se alientan logros grupalesen lugar de individuales. En este marco, el “rito depasaje” que es el ritual del examen, escrito u oral,en el que la soledad del educando es total, repre-senta una experiencia inédita para las prácticascomunicativas comunales.

Susan Phillips ha investigado el fenómeno de lainteracción comunicativa entre docentes y alum-nos desde lo que llama la “estructura participato-ria”, entendiendo por tal una “constelación denormas, derechos mutuos y obligaciones que danforma a las relaciones sociales, determinan la per-cepción de los participantes de qué es lo que estápasando en el intercambio comunicativo e influyeen el resultado de la comunicación y del aprendi-zaje”. La autora encontró que cuando la estructu-ra participatoria del salón de clase se correspondíacon la de la comunidad a la que los educandos per-

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tenecían, el rendimiento era bueno, y que cuandola estructura participatoria que imponía el maestrono se correspondía con la vernácula de los alum-nos – porque el maestro en este caso no era indí-gena y los educandos sí – el rendimiento caíaostensiblemente.

Otro aspecto central en esta consideración loconstituye el ritmo del aprendizaje, o sea, la tasade adquisición esperada, el ritmo de transmisión,que actúa selectivamente sobre quiénes puedenadquirir el código pedagógico dominante en la es-cuela y ello constituye un principio de selección declase social y de etnia. Esta regla afecta no sólo alas relaciones sociales de comunicación sino queregula la lógica interna de la comunicación, y unritmo fuerte tenderá a reducir el habla de los alum-nos, privilegiando el de los profesores. La distan-cia que existe en este aspecto entre la escuela ylos nativos wichí es profunda: el ritmo más deteni-do de los nativos wichí se acompaña, coherente-mente, con un mayor volumen de habla y una mássimétrica distribución de los turnos de la conversa-ción. El aprendizaje rápido e impartido sin diálogoqueda fuera de sus pautas primarias de comunica-ción pues éstas se relacionan más bien con domi-nación, imposición, esto es, lo opuesto a lo queconsideramos un proceso de enseñanza-aprendi-zaje productivo: “Muchos tienen miedo a la genteblanca: como siempre ellos son gente muy domi-nadores. Hablan fuerte y hablan mucho, y piensanmuy rápido. Nosotros como wichí tenemos culturaque es despacio. Cuando nosotros decidimos unacosa tenemos que tener tiempo para pensar bien ydespués contestar.” (FILIPPI, 2005, p. 149).

Un conocedor de esta misma cultura dice, des-de el exogrupo: “Los wichí hablan despacio. Pau-sado. Los tiempos que tienen son totalmentediferentes. Son gente muy para adentro. Un temaque entre blancos puede llevar diez minutos conellos tenés que estar hablando cinco horas.” (FI-LIPPI, 2005, p. 149).

Lenguaje, conducta y estilos deaprendizaje: heterogeneidades

En términos generales una lengua es un siste-ma de obligaciones que impone normas de actua-

ción. La lingüística estructural tomó estos principi-os en tanto asumió que lo fundamental en el len-guaje – y en especial en la gramática, como lodemostró Jakobson – es que obliga al uso de suscategorías. Obliga a decir, obliga a hacer. En es-pañol, la expresión de la acción verbal obliga a in-cluir indicaciones de tiempo, persona, número ymodo o, para usar el mismo ejemplo de Barthes(1986), el primer encuentro entre dos personasobliga a decidir, en el momento de dirigirse la pala-bra, qué tipo de relación mantendrán entre ellas: ladistancia respetuosa del “usted” o la cercanía afec-tiva del “tú”. La lengua obliga, no permite suspen-der la decisión sobre la modalidad que tomará larelación interpersonal.

Desde esta posición se entiende por qué Halli-day (1982) define al lenguaje como un potencial deconducta, como un regulador de los significadosque se actualizarán en diferentes contextos. El niño,cuando aprende a hablar aprende, conjuntamentecon el vocabulario y la gramática de su lengua, elmundo, con sus significados. Y ésta es una experi-encia irrepetible y única. Si vive en un mundo ro-deado de objetos tecnológicos, aprenderá el nombrede estos objetos y también los significados y funci-ones que les asignamos a esos objetos. Sabrá sison objetos de cuidar, de temer, de respetar, de to-car, etc.; si pertenecen al mundo de los adultos ode los niños, de las mujeres o de los varones, si esconsiderado por su grupo como algo religioso, mági-co, positivo, lindo, feo, apreciable, etc. Los cotidia-nos actos de habla con los que nos comunicamoscon el niño y frente al niño van construyendo en suconciencia un mundo repleto de significaciones;aprende a reconocer los contextos y a actuar enconsecuencia, según las normas que, conjuntamentecon la clasificación de los contextos, ha internali-zado. Incluso, la investigación etnográfica ha de-mostrado acabadamente que el lenguaje no se usade la misma manera para algo aparentemente tanuniversal como puede ser el enseñar al niño a ha-cer algún tipo de tarea manual. Hay familias – ycomunidades – que tienden a enseñarles a sus niñosa hacer determinadas cosas de manera bastantesilenciosa, mostrando simplemente cómo se pro-cede, de manera que el aprendizaje se resuelve, enbuena medida, mediante la imitación. Otras famili-

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as, especialmente las occidentales de clase media,tienden a hacer un uso casi excesivo de la palabra.Aprender una lengua no es sólo aprender una gra-mática y un vocabulario, es también aprender con-ductas. En tanto la lengua la aprendemos junto conun conjunto de sentidos sociales, estos sentidos nosimpulsan a actuar de determinada manera, a dese-ar, a odiar, a temer y respetar determinadas cosassobre otras. Los usos de la lengua, desde una teo-ría de la socialización, son virtuales instruccionesrespecto a los significados y a las conductas. Setrata de principios regulativos tácitamente adquiri-dos. La cultura forma nuestros patrones de com-portamiento y gran parte de nuestra conducta seve mediada por la lengua.

Hay que atender al hecho de que los estiloseducativos no constituyen una unidad, un bloquehomogéneo válido para la enseñanza de todos loscontenidos o conductas dignas de ser transmitidosen una comunidad. No sólo las sociedades occi-dentales, también las nativas manifiestan una sig-nificativa variedad de ingresos a nuevos conocimi-entos que van desde la imitación silenciosa, conparticipación privilegiada del sentido de la vista,hasta la narración y la explicación a partir de re-glas generales. Es una simplificación generalizar yubicar a las comunidades nativas en el campo dela “mostración” como única forma de acceder anuevos saberes.

Para poder aprender a rastrear una “avispabalita”, productora de miel silvestre, primero esnecesario conocer que es posible hallarla median-te ciertos procedimientos, que para extraerla hayque tomar tales o cuales recaudos. Un informantenos ilustra sobre el tema:

R. - Tenés que esperar las avispas junto al agua.Siempre caen al agua. Van a buscar agua paratomar. Después tenés que seguirlas cuando vanvolando.P.- ¿Y cómo se hace para seguirlas por el monte?Porque la avispa vuela. Además, apenas se levanta,la perdés de vista.R. - No, no se pierde de vista si te acostumbrás aesperarlas y a seguirlas primero con los ojos. Enseguida te acostumbrás a seguirla.P.- ¿Y el rumbo….?R. - Cuando se levantan del agua tenés que estaratento. Porque cuando se levanta mucho es que la

colmena está cerca. Se levanta y se larga rápidohacia la colmena. Ahora, cuando la colmena estálejos, la avispa se levanta poquito nomás, porquetiene que volar mucho. Entonces, vos la vas sigui-endo hasta que das con la colmena. Pero para ha-cer esto tenés que venir conmigo, tenés que ver.(R.C).

En la cita se observa hasta qué punto éste esun conocimiento adquirido mediante una observa-ción minuciosa del fenómeno que, como la del ci-entífico, ha permitido el reconocimiento derecurrencias y la formulación de ciertos enuncia-dos generales (cuando se levanta mucho es quela colmena está cerca), y en consecuencia, pre-ver su comportamiento futuro en función de la apli-cación de la regla. Sin embargo, este saber, que seexplica en sus relaciones causales (porque tieneque volar mucho), debe ser conjugado con la vis-ta (tenés que ver), de lo contrario, se trata de unsaber incompleto.

Si tomamos como criterio las propuestas deGardner (1997), las comunidades nativas por no-sotros estudiadas se aproximan a los conceptos apartir de modalidades que no son necesariamentecoincidentes con las habituales de la instituciónescolar. La explicación mítica proporciona a lossujetos un horizonte coherente respecto a la natu-raleza de las cosas que estructura en buena medi-da su vida cotidiana y su acción consecuente, demodo que escamotear la narración (como géneroen la explicación sobre cómo son las cosas) en elaprendizaje escolar, en favor de la enseñanza lógi-co-cuantitativa o deductiva, puede representar unobstáculo insalvable a pesar de que se haya opta-do por una política educativa que tome la lenguanativa como primera lengua de enseñanza. Nues-tra experiencia también nos advierte respecto delas diferencias que median entre diferentes comu-nidades indígenas en relación a este aspecto y lasdificultades que devienen de tomar el universo in-dígena como uniforme y pasible de ser conceptua-lizado con un conjunto categorial reducido ycerrado. Así, los ayoreos del oriente boliviano, sa-lidos hace apenas unas décadas de su hábitat eintegrados a las ciudades del oriente de Bolivia encalidad de mendigos o trabajadores manuales oca-sionales no especializados, pueden asegurar quelas piedras crecen o que la sustancia o el volumen

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no se conservan al cambiar su continente (HERE-DIA, 1997), los wichí o los qom del chaco argenti-no, por su parte, pueden conjugar e integrardiferentes modalidades narrativas, explicativas,propositivas, etc., en el ingreso al saber y los ma-puches del sur argentino y chileno, por el contrario,con una larga historia política de reivindicacionespor la autonomía étnica, y en constante y polémicocontacto con la sociedad occidental (HEREDIA,2000), han incorporado modalidades y operacio-nes cognitivas de la sociedad con la que confron-tan. Estas observaciones valen como enunciadosgenerales e hipotéticos que, en todo caso, deberíanser tomados como horizonte de futuras investiga-ciones.

La regulación de los significados encontextos de uso

El primer aporte que realizan pensadores comoM. A. K. Halliday (1982) o Basil Bernstein (1988,1993) radica en que ponen la atención, en su con-sideración de la naturaleza social del lenguaje, enel plano semántico. Ambos autores consideran queaquello que realmente hace diferencia en el usosocial de las lenguas es el conjunto de significadosque los distintos grupos creen posible actualizar endeterminadas situaciones de habla. Esto es, si re-almente deseamos conocer lo que pasa con el len-guaje en uso en las interacciones sociales, y enparticular en las escolares, habremos de concen-trar la mirada en el plano discursivo (no en las pa-labras aisladas) y buscar los sentidos que circulansocialmente. Por ello, las explicaciones que aleganel conocimiento parcial del español como causa delfracaso educativo en comunidades nativas deberí-an ser complejizadas: no se trata sólo de que elconocimiento del significado de los vocablos seainsuficiente, sino que, incluso cuando éste es sufi-ciente, pueden orientarse de modo diferente.

Las diferentes funciones que cumple el lengua-je (narrar, interactuar, pedir, exigir, aprender, ima-ginar, etc.) se correlacionan – de manera más omenos estrecha y variable, según las comunidades– con diferentes conjuntos de significados posibles.No todo se puede decir en todos los contextos por-que éstos favorecen o inhiben determinados po-

tenciales de significado. Se trata de patrones designificado que se asocian a contextos.

Esta teoría es especialmente productiva para lacomprensión de los problemas de educación indí-gena ya que no sólo establece un diagnóstico nodeterminista del papel del lenguaje y la escuela enla reproducción de las desigualdades, sino que tam-bién ofrece herramientas útiles en orden a la refle-xión y a la acción docentes, en particular aquellaque se desarrolla en espacios signados por la po-breza y en los que la división social del trabajo trans-versaliza a los sujetos que habitan diferentesculturas. Las formas del lenguaje hablado en elproceso de su aprendizaje inician, generalizan yrefuerzan tipos especiales de relaciones con el en-torno y, de este modo, crean dimensiones de signi-ficación particulares para el individuo.

Este proceso de semantización de la realidadsocial actúa directamente sobre la formación de laconciencia social. En el eje de estas consideracio-nes podemos reconocer los principios estructuran-tes de Berger y Luckmann, Bernstein, Halliday yotros muchos. La realidad social y la cultura sonuna construcción semiótica, un edificio de signifi-cados, una densa trama de significaciones, comodiría Weber, que quedan inscriptas en una lengua.En consecuencia, puede afirmarse que una lenguaes interpretante de la sociedad en tanto registra,designa y significa lo que es pertinente socialmen-te. Las estructuras sociales de relevancia encuen-tran su correlato en la lengua, por lo que ésta puedeinterpretarse como una guía simbólica de la cultu-ra; las lenguas se presentan como reificadoras,objetivadoras o cristalizadoras del mundo y, en con-secuencia, mediadoras del entendimiento humano,con lo cual estamos aludiendo a la hipótesis Sapir-Whorf. Pero los sentidos sociales se actualizan ycirculan en los discursos y es en el discurso endonde los signos, neutros en el sistema, adquierensentidos y valores sociales. Se trata de redefinir lahipótesis idealista y consensualista que, por otraparte, ya no puede sostenerse siquiera en su versi-ón moderada, pues las investigaciones intercultu-rales demuestran que una misma lengua permite laexpresión de modelos culturales muy diferentes.Es más, se ha destacado que las lenguas naturalesson “efables”, es decir cualquier proposición pue-de ser expresada en cualquier lengua. Se trata,

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entonces, de revisar la hipótesis Sapir-Whorf haci-endo intervenir la variable social, dialectal y dis-cursiva.

En principio, los distintos grupos sociales en lasmismas situaciones actualizan mundos diferentes:¿Cuál es el potencial de significado que se puedeactualizar en un velorio?, ¿cuál en una fiesta endiferentes ámbitos sociales? Parece más bien quelas relaciones entre significados posibles de apare-cer (potencial de significado) y las situaciones tie-nen una fuerte diferenciación social. También hayque atender al hecho de que los significados queactualizamos, o sea aquello de lo que hablamos,nunca conforman una unidad, no son unitarios sinoque, por lo general, un tema se encadena con otrosen la conversación espontánea, lo que también pa-rece ser una diferencia importante al momento dereconocer las variaciones de los significados. Másaun ¿qué papel asume el locutor y cuál le asigna asu interlocutor? ¿Cómo se presenta, cómo se con-figura la relación entre los enunciadores? ¿De quémodo creo que es posible hablar de ciertos temasy en relación a ciertos contextos? ¿Cuándo es po-sible la aparición de la leyenda, del chiste, de lahistoria? ¿Qué contextos autorizan a hablar de unomismo y qué contextos lo prohíben? En términosde Halliday, los contextos son construcciones se-mióticas construidas en las relaciones (familiares,vecinales, de trabajo) y, por ello, son variables so-cial y culturalmente. La discontinuidad entre elmundo de significaciones de un joven nativo y laescuela es tal que parece imposible que uno puedaencontrar algo interesante en el otro. Parece ex-plicable, entonces, la deserción o el fracaso de losniños en situación de exclusión, por un lado, y lasevaluaciones de los docentes, por otro, que, invari-ablemente expresan que no quieren ser prejuicio-sos pero que a estos niños “no les da” para estudiar.

Para el caso de los aborígenes chaquenses laagresividad y la violencia, manifestados a partir demedios simbólicos y de la intervención de quienesmonopolizan el poder preter y sobrenatural son tó-picas centrales en la vida cotidiana (HEREDIA,1995). El temor que genera el extrañamiento deestos discursos – que dan cuenta de una “otra”semiosis – los corre hasta la exclusión: exclusiónde los discursos y exclusión de los sujetos, todo enun mismo acto. ¿Por qué controlamos los signifi-

cados? El ordenamiento de los discursos respon-de, sin duda, a un ejercicio de poder y de control,pero también a un temor. Foucault (1987) ha ad-vertido cómo, en toda sociedad, la producción deldiscurso está controlada, seleccionada; el discursono es sólo un instrumento con el cual se lucha, estambién aquello por lo que se lucha; es un poderdel cual se quiere uno adueñar silenciando otrosdiscursos. En el interior del sistema educativo estaaversión hacia los significados “otros” puede con-vertirse en una verdadera batalla para acallarlos,generando profundas discontinuidades y oposiciónentre los órdenes simbólicos de la escuela y los delniño. Así, las actitudes de condena hacia el hablade niños nativos se debe a que la gente reaccionaante el hecho de que otros signifiquen de mododiferente al suyo y se sienten amenazados frente aello. No se trata de que se tenga aversión a ciertossonidos, sino hacia otras maneras de significar por-que éstas expresan un sistema de valores distinto.

Relaciones de poder y de desigual-dad: quién toma las decisiones

Las observaciones realizadas deben ser con-ceptualizadas con reflexiones sobre las relacionesde desigualdad y de poder, a fin de evitar caer enuna suerte de celebración de la diferencia y delmulticulturalismo, obturando la comprensión y ex-plicación de las razones históricas de las diferenci-as enunciadas y de sus consecuencias sincrónicasen lo que a marginación, desmantelamiento de lasidentidades y estigma de determinados grupos deuna sociedad se refiere. Es necesario insistir enque lenguas y discursos expresados en estas len-guas forman parte activa como componentes de lalucha social. El conflicto permanente para hacerlegítimos determinados sentidos, por imponer cier-tas interpretaciones de la realidad se expresa me-diante los discursos. Las relaciones interétnicaslocalizadas en la escuela no quedan exentas delconflicto que, en términos generales, absorbe todocontacto interétnico en el que la fricción se manifi-esta en términos de subordinación/dominación.

Los lingüistas catalanes, que lograron en dosdécadas revertir la profunda situación de diglosiaen que se encontraba su lengua – marginalizadade la educación, la cultura, la política y los medios

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de comunicación – y conjuntamente alcanzar im-portantes cambios sociales, políticos y subjetivos,demostraron que son los sujetos los que, medianteactos políticos construyen y transforman los he-chos sociales aparentemente más cristalizados. Losdiscursos son sus posibilitadores.

Debe advertirse sobre la trampa que encierrala educación bilingüe e intercultural, pues, tal comoestá diseñada en Argentina, no es sino un paso parala incorporación de la lengua nacional. El Estadoasegura el respeto a la lengua y a la cultura nativasen los primeros años de enseñanza primaria, luegode lo cual la escolarización continúa en la lengua yla cultura de la nación. Se sostiene que, por unasuerte de consenso general, éstas son aceptadascomo supradialectales y suprarregionales y que, enconsecuencia, su conocimiento asegura las inte-racciones y la intercomprensión en amplios secto-res geográficos. En este marco, las observacionesde Bourdieu (1985) sobre la homogeneización ne-cesaria para la dominación que está en la base dela existencia de los Estados nacionales no puededesatenderse. La dominación simbólica que conl-leva la homogeneización del Estado explica los in-gentes esfuerzos de los Estados nacionales porintervenir activamente en las configuraciones lin-güísticas y sociolingüísticas imponiendo una únicalengua, la oficial. La escuela, más allá de los pro-gramas especiales para nativos, sigue trabajandoen pos de la imposición de la lengua nacional, conlo cual se relega al lugar de lo ilegítimo a las len-guas nativas, que no son sino un instrumento de lacastellanización.

Hay una serie de razones históricas, económi-cas, políticas y culturales que han venido a desem-bocar en una situación según la cual unas lenguasaparecen como dominadas y otras como dominan-tes. Estas relaciones de poder y de dominación quese establecen entre los grupos y las lenguas provo-có históricamente, y lo hace actualmente, trastor-nos no menores de la identidad que dejan su marcaen este sentimiento de pertenencia o no pertenenciade la lengua, en esa afiliación a la lengua. Por esoDerrida (1997, p. 42) dice: “yo no hablo más queuna sola lengua (y, pero, ahora bien), no es la mía”Esta lengua que habla – el francés – es la imagenmisma de la colonialidad para un argelino que hasufrido la imposición de la lengua francesa como

lengua escolar, noción que deconstruye el idealismode la lengua materna como la “casa” del sujeto.

La situación de diglosia en la que se encuentrala mayoría de las lenguas nativas americanas – queno sólo puede definirse como diferenciación funci-onal entre las lenguas sino básicamente como con-flicto y fricción lingüísticos (BOYER, 1997) –,obliga a considerar las relaciones entre lenguas yculturas en términos de dominante/dominada. Parasuperar esta oposición no es suficiente idear pro-gramas educativos especiales bilingües e intercul-turales que absorban toda la escolarización, nitampoco imaginar soluciones técnicas. El Estadodebe revisar sus políticas paternalistas para conlas comunidades nativas y debatir con ellas políti-cas educativas, lingüísticas, planes escolares, etc.Nuestra experiencia nos indica que las diferentescomunidades tienen muy diferentes posiciones alrespecto, aunque la mayoría alega la necesidad deconocer la lengua dominante para defender losderechos personales y comunitarios. El compro-miso e involucramiento de la comunidad con losobjetivos de la escuela es una función de su parti-cipación en los programas de educación. La incor-poración de la voz de las comunidades significatambién apoyar el proceso de su autonomía en latoma de decisiones a futuro. En este punto, la es-cuela puede constituir el espacio de consolidacióny fortalecimiento de las identidades nativas (y nosu desmantelamiento), cualquiera sea la opción quetome la comunidad (educación en español, bilin-güe, en lengua nativa como base, etc.). En princi-pio, los sujetos nativos son claramente conscientesde las reglas del mercado lingüístico, social y labo-ral, de la circulación y evaluación de los bienes sim-bólicos y por ello saben que los productos que ellospueden ofrecer en este mercado están devalua-dos. Habrá que evaluar en qué medida las estrate-gias de posicionamiento en el mercado se conjugancon las estrategias de defensa identitaria.

Otras consideracionesLos temas tratados son numerosos y tan com-

plejos que pareciera imposible pensar en una con-clusión. No obstante ello, interesa acercar solamenteuna reflexión final. Muchos de los problemas queaquí no hemos sino esbozado deberían ser enseña-

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dos en las aulas de distintos niveles, y los alumnosde clase media de las ciudades, incluso sin poblaci-ón indígena, deberían ser participes de las discusi-ones y problematizaciones que significa el procesoeducativo en otras regiones y comunidades delmismo país. De esta manera, se apoyaría el proce-so de sensibilización de la población nacional sobre

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Recebido em 01.09.09Aprovado em 15.09.09

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PERFORMANCE E TRANSFORMAÇAONA ESCOLA INDIGENA BAKAIRI

Celia Letícia Gouvêa Collet *

* Doutora em Antropologia. Professora da Universidade Federal do Acre. Endereço para correspondência: UniversidadeFederal do Acre, Campus Universitário – Rodovia BR364, km 04, n. 6637 – Distrito Industrial – 69915-900 Rio Branco/Acre.E-mail: [email protected]

RESUMOTendemos a ver a escola indígena através de nossos (pré)conceitos sobre a instituição “escola”como somente um local de aprendizado de certos conteúdos e formação pessoal e profissional.Através de uma etnografia dos Bakairi (grupo indígena localizado em Mato Grosso) e, maisespecificamente, de sua escola, pude perceber que esta instituição foi apropriada por eles apartir de referenciais culturais bastante próprios. A escola foi identificada aos rituais´tradicionais´, não apenas por ser um espaço de socialização e performance, mas também porser um local de ‘transformação’ e de garantia da perpetuação de seu povo e suas famílias.

Palavras-chave: Educação Escolar Indígena – Bakairi – Transformação

ABSTRACTPERFORMANCE AND TRANSFORMATION IN BAKAIRI INDIGENOUSSCHOOL

We tend to see indigenous school through the prism of our prejudices about “school”as an institution where one acquire certain contents and personal and professionalformation. Through an ethnography of the Bakairi (indigenous group located in MatoGrosso - Brazil) and, more specifically, of their school, I could observe that this institutionwas re-appropriated by them on the base of the own cultural references. Theyassociated the school to their traditional rituals, not only for being a space of socializationand performance, but also for being a space of ‘transformation’ and warranty of theirpeople and families permanency

Keywords: Indigenous school education – Bakairi – Transformation

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Este artigo trata da apropriação da escola porparte dos Bakairi, grupo indígena de língua karib,localizado no Estado de Mato Grosso. A partir deuma etnografia1 que investigou sua historia, orga-nização social, cosmologia e modos de formaçãode pessoas procuro compreender o lugar destina-do à escola na vida social bakairi. Como vêem asua escola? A partir de que referenciais? Comofunciona a escola bakairi? Como explicar a suaposição de destaque na vida social bakairi e, aomesmo tempo, a pouca importância dada aos as-pectos diretamente relacionados à aprendizagemdos conteúdos escolares?

Estes questionamentos surgiram da forte im-pressão inicial de que a escola bakairi, mesmo apre-sentando uma exterioridade moldada completamen-te nos padrões oficiais de escola, é em si algoinstigante, complexo e original, a ser explorado. Aescola bakairi parece querer excluir tudo o que dizrespeito à vida ‘nativa’ extra-escolar, desejo ex-presso pelos próprios professores que vêem comodiscriminação qualquer tentativa de afastá-la dosmodelos urbanos. Entretanto, no decorrer da pes-quisa, percebi que essa contraposição (escola na-tiva x urbana) é falsa e que, na verdade, a buscapela domesticação do padrão de escola do ‘bran-co’ faz parte do modo próprio dos Bakairi lidar coma alteridade e se reproduzir enquanto um grupo dis-creto, enquanto famílias e enquanto pessoas. Ditoem outras palavras, a forma dos Bakairi serem‘eles mesmos’ passa pela sua ‘transformação’ (âtu-gudyly)2 em ‘outro’ e a escola representa esse‘outro’ (‘branco’), ao mesmo tempo em que é uminstrumento privilegiado de mediação.

Segundo os mitos bakairi, desde o inicio dostempos, o domínio de alteridade que importavadomesticar era representado pelos iamyra3, se-res surgidos com a separação entre o ‘céu’ e a‘terra’ e que vivem de forma simultânea no céu ena água dos rios. Surgiram, assim, as diversasespécies de kado, cerimônias coletivas pelas quaisa interação com os iamyra acontece através dasdanças, dos cantos, das ‘vestimentas’ (máscaras,pinturas corporais), e do oferecimento de comi-da. Chamar a si esses seres é a garantia da re-produção das famílias, valor maior para umBakairi. Essa interação é acompanhada semprepor um pajé, pessoa que tem conhecimento e po-

der sobre os iamyra e pode assegurar que a me-diação seja feita de forma segura.

Houve, contudo, na história bakairi, um novodesdobramento de seu cosmo, dessa vez não poruma divisão, mas por adição. Refiro-me à chega-da dos karaiwa (como os Bakairi chamam os‘brancos’), com suas roupas, armas, tecnologias,que, ao mesmo tempo em que fascinaram, subju-garam os Bakairi. Podemos dizer que a domesti-cação dos Bakairi por parte dos karaiwa foisimultaneamente uma domesticação dos karaiwapor parte dos Bakairi. Pois, se os Bakairi a partirde então passaram a depender cada vez mais dos‘brancos’, aquilo que lhes chegava a partir destes(hábitos, objetos, língua, dentre outras coisas) foisendo incorporado a partir de referências pré-exis-tentes. Foi o que aconteceu com a escola. É umaconstatação que, aparentemente óbvia, nos leva,contudo, ao que realmente nos interessa: não ape-nas dizer que a domesticação é mútua e que osBakairi não ficaram passivos no processo de inte-gração à sociedade brasileira, mas fundamental-mente, entender, como eles realizaram essaapropriação.

Foi a partir da ‘atração’ dos Bakairi pelo Servi-ço de Proteção aos Índios (SPI) no inicio do sécu-lo XX que começou a se instaurar esse novo eimportante domínio de alteridade, em que o ‘outro’é o karaiwa, ‘dono’ de recursos hoje intensamen-te desejados pelos Bakairi para a continuidade daprodução de suas famílias, como dinheiro, empre-go, bens. Se a mediação com os iamyra é feita pormeio de ritos coletivos (kado), a escola se tornoua instituição que centraliza a relação com os ka-raiwa. A escola, aos poucos, foi se consolidando apartir das formas como foi introduzida e se desen-volveu. A ênfase dada a ela no regime do SPI ocor-reu concomitantemente ao empenho deste mesmo

1 Etnografia feita para tese de doutorado “Ritos de Civilizaçãoe cultura: a escola bakairi”. PPGAS. Museu Nacional, UFRJ,2006.2 O termo âtugudyly é usado pelos Bakairi, para referir-se, porexemplo, à transformação de um pajé em ‘espírito-animal’ oude uma pessoa (kurâ) em espírito (kadopâ) depois que morre.Ele diz respeito a um ‘vir a ser’, que não pressupõe um tornar-se definitivo, nem substituição de ‘identidades’: ser Bakairi ekaraiwa.3 Iamyra são espíritos sub-aquáticos ‘donos’ dos recursos natu-rais de que dependem, sobretudo, a pesca e a agricultura.

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órgão em enfraquecer o kado; a conseqüência foifirmar a escola como importante espaço de ceri-mônias públicas, sobretudo ‘civilizadoras’.

Mais recentemente, sob a administração daFunai, a escola passou ao controle dos Bakairi.Conservou-se o modelo do SPI, fundamentalmen-te no que se refere aos ritos patrióticos4, à organi-zação e à disciplina, apesar desta última ter sidoamenizada para se adequar aos padrões interacio-nais bakairi, que não admitem nenhuma manifes-tação de agressividade. A mediação com os‘brancos’ deu-se pela experiência da civilização5.

Hoje, podemos dizer que a escola ocupa, na vidasocial bakairi, um espaço que anteriormente per-tencia tão somente ao kado, o das cerimônias co-letivas, nas quais pela escrita (iwenyly, nome queantes só designava ‘desenho’), pelas roupas (âtâ)e por ações performáticas, os Bakairi se ‘transfor-mam’ (âtugudyly) no ‘outro’ e, assim, conseguemcondições de reprodução de seus grupos familia-res.

A família – apesar de todas as mudanças ocor-ridas na vida social bakairi – continua sendo a cau-sa última de todos os esforços: cuidar, reproduzir,alimentar os seus. Se, no passado, a reproduçãofamiliar e social bakairi era propiciada pelas ceri-mônias coletivas (kado) que garantiam os recur-sos necessários a sua sobrevivência (controladospelos iamyra), hoje esta manutenção da famíliapassa também pela escola como lugar fundamen-tal do aprendizado da mediação com os brancos.Através da escola, dizem, “querem ser alguém navida”, referindo-se a ter um salário como funcio-nário, professor, agente de saúde.

A aparência da escola – suas edificações, asroupas, a escrita, os livros, a organização e a disci-plina – operaria como as máscaras que fazem par-te do kado. Estas últimas são constituídas por umavisibilidade-desenho que remete a um ‘mundo ou-tro’ (dos iamyra, no caso), sendo, ainda, animadaspor kurâ (pessoas) que, enquanto ‘vestem’ asmáscaras, devem ser chamadas apenas pelo nomedo iamyra que estão ‘ativando’ ou ‘vivendo’. Damesma forma, a escola, através de comportamen-tos, objetos e técnicas que remetem à civilizaçãoou ao ‘mundo dos karaiwa’, permite que os Bakai-ri se ‘transformem’ nos seres desse mundo estran-geiro, os civilizados6.

Há dois modos de associação entre escola ekado que sugeriram aos Bakairi que estes domíni-os coletivos poderiam conter os mesmos significa-dos: substituição, operação efetivada pelo SPI,quando funções e sentidos do kado passaram paraa escola; analogia, entre dois espaços públicosextremamente ritualizados, com atribuições demediação (interna e externa) e de captura de re-cursos. Outro modo de relação surgiu com a esco-la, em sua configuração enquanto Escola Indígena,entendida como locus da ‘cultura’, o que fez comque o kado pudesse ser usado como representa-ção da ‘cultura bakairi’, firmando, assim, uma novavia de interação com a sociedade brasileira. Ob-servamos este aspecto naquelas atividades esco-lares conhecidas como extra-classe, ou seja,‘apresentações’ e festas, quando os Bakairi utili-zam símbolos culturais e patrióticos para celebrare vivenciar seu ser índios-brasileiros.

Além do kado, existem ainda certas congruên-cias entre o modelo escolar, a educação domésticabakairi e o processo de reclusão dos iniciados (navida adulta, em pajé, etc). Assim como aconteceno interior do espaço doméstico, o aprendizadoescolar bakairi segue a metodologia da prática, darepetição e da participação; a escola é o lugar, tam-bém, de uma semi-reclusão, maneira eficiente deformar os jovens. Neste caso, as analogias com ocontexto extra-escolar são parciais e às vezes atécontraditórias, como atesta o fato de que a frequ-ência à escola impede aos alunos de acompanharos pais em outras atividades, como construção decasa, confecção de artesanato, trabalho na roça,prejudicando o aprendizado dessas atividades pe-los mais jovens. Além disso, se a reclusão pubertá-ria coletiva de ‘antigamente’ se restringia aos

4 Homenagens à bandeira e ao hino nacional, festejos do dia setede setembro.5 A partir do final da década de 1990, principalmente com osprojetos de formação de professores indígenas em nível de En-sino Médio (Projeto Tucum) e depois de 3o grau (UNEMAT), aescola passou a abrigar mais uma dimensão de mediação entre‘brancos’ e Bakairi: a cultura.6 ‘Civilizado’, neste caso, se definiria fundamentalmente emcontraposição ao modo de vida dos Bakairi antigos e xinguanos(protótipo dos índios primitivos). Ao se identificarem enquan-to ‘civilizados’ e buscarem a civilização, os Bakairi pretenderi-am sobretudo neutralizar a desigualdade com a sociedade que osdomina; a escola aparece como a instituição mediadora porexcelência entre os Bakairi e os civilizados/karaiwa.

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rapazes, a escola, hoje, abriga alunos de ambos ossexos.

A escola bakairi atual, portanto, é um híbrido deelementos variados, provenientes tanto das formasditas ‘tradicionais’ de formação do kurâ – apren-dizado doméstico, reclusão, e principalmente okado – quanto de uma vivência definitiva, de maisde 80 anos, com o Estado e seus agentes (SPI,Funai, MEC, governo de Mato Grosso). Neste sen-tido, a escola é para os Bakairi o local privilegiadoda mediação com os karaiwa, ‘donos’ de recur-sos que, a cada dia, se tornam mais necessáriosem termos de meios de subsistência, de troca e destatus. É na escola que os Bakairi, por mais tempoe com mais intensidade, vivem como civilizados e‘viram’ civilizados, conforme sua visão xamânicade ‘transformação’ (âtugudyly), no presente e nofuturo.

Em suma, ao pretender seguir o padrão oficial,a escola não se afasta do modelo bakairi de insti-tuição pública; muito pelo contrario, desta forma,ela se mostra como um típico espaço coletivo bakairi,caracterizado, este último, por dois níveis de inte-gração: entre as parentelas (kurâ [nós] junto comyagonron [outros] e entre Bakairi e não-Bakai-ri (onde kurâ tanto pode designar Bakairi em opo-sição a karaiwa, quanto ‘gente’ em oposição aiamyra). Ou seja, a escola foi apropriada pelosBakairi como um espaço de convivência pan-fa-miliar bem como de mediação com o universo doskaraiwa.

A escola é a instituição pública onde os Bakairipassam mais tempo. Durante a maior parte do ano(nove ou dez meses), crianças, jovens e adultosestão envolvidos em atividades escolares, sejamaulas ou atividades extra-classe7. É muito difícilalguém faltar à aula; mesmo as crianças peque-nas, ainda não matriculadas na escola, pedem aseus pais para frequentarem as classes. Nestecaso, certamente o que motiva sua ida à escolanão é a vontade de “tornar-se alguém na vida”(como costumam afirmar jovens e adultos); o imen-so interesse das crianças parece ser exatamentepelo espaço de interação com os demais, visto que,fora da escola, só convivem com seus parentespróximos. Igualmente os mais velhos, alunos docurso de “educação de jovens e adultos” (EJA),que passam o dia trabalhando, ficam na escola até

por volta de 21:30 h.; apesar do cansaço, sendomotivados pela oportunidade de se encontraremregularmente com aqueles com quem não convi-vem no espaço doméstico e conversarem sobre osacontecimentos recentes, brincar, fazer planos e,ao mesmo tempo, aprender novos hábitos e co-nhecimentos.

As cerimônias ocupam um importante lugar noprocesso de formação de um kurâ koendonron(bom bakairi, boa pessoa), bem como na reprodu-ção da família, objetivo final de todo aprendizado.Os atos ritualizados, desde os pequenos, como ofato da menina servir ao pai quando este lhe solici-ta algo, até a participação no kado, estão a servi-ço do parentesco. Desta forma, a pessoa deveaprender através da participação, repetição e ob-servação, em momentos formalizados ou informais,introjetando conhecimentos e comportamentos re-lativos a valores, crenças, postura corporal, orga-nização social etc., considerados imprescindíveisna constituição de um kurâ.

Com o tempo, através de várias evidências,comecei a perceber que o método característicoda escola bakairi não diferia muito do ‘não esco-lar’, sendo centrado na ritualização e na perfor-mance, bem como na pedagogia da repetição/prática. O que me levou a esta conclusão foi umaquestão que se apresentou desde o inicio da pes-quisa. Percebia que a escola era uma instituiçãoextremamente valorizada pelos Bakairi, o que erademonstrado pela baixíssima abstenção nas aulas,pela longa distância que os alunos de outras aldei-as percorriam diariamente para chegar à escola8,pela ansiedade que demonstravam à espera dohorário da aula, pela excitação por estar na escola,pelo tempo gasto em preparar seus corpos para irà aula, pelo lugar de destaque que ocupa o prédioescolar nas aldeias, pela preocupação dos pais di-ante do estudo dos filhos e pela valorização da po-sição de professor. Por outro lado, tambémobservava que os conteúdos escolares não eram

7 As atividades aqui chamadas de ‘extra-classe’ são principal-mente as festividades e sua preparação. São exemplos disso aformatura, o bingo para se arrecadar dinheiro para a formatura,a festa junina, a festa do dia do índio, a festa das mães e dos pais,a festa do dia das crianças e ainda outras descritas mais adiante.8 A aldeia mais distante fica a 30 km da aldeia central onde estálocalizada a escola de 5a a 8a serie.

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tratados com a mesma importância, seja por partedos alunos, seja pelos professores. A maioria dosalunos não tem o hábito de estudar em casa, abrin-do o caderno somente para fazer suas “tarefas”ou para “decorar” o conteúdo da prova e recla-mando muito por ter que ler ou estudar – dizendoque “a cabeça dói” – em decorrência do privilégioda oralidade e da observação na transmissão doconhecimento, o que faz com que o hábito de lerou estudar ainda seja um comportamento muitodistante das formas de aprendizado a que estãoacostumados.

Nas muitas reuniões de professores que fre-quentei, nunca testemunhei o tratamento de umassunto relativo a métodos pedagógicos, problemasde aprendizagem ou questões do gênero. Ao invésdisso, grande parte do tempo era dedicada ao pla-nejamento de festas como ‘Dia das Crianças’, ‘Diado Índio’, ‘Dia das Mães’, formatura etc. Tam-bém a verba que chegava à escola como unidade-executora, nos dois anos que permaneci na aldeiaou em contato com ela, foi alocada em setores re-lativos ao âmbito performático: em 2003, foi com-prado um aparelho de som com amplificador emicrofone e, em 2004, uma antena de celular. Oprimeiro foi visto como um importante instrumentoritual; e a segunda representa a materialização damodernidade através da incorporação à escoladaquilo que os Bakairi pensavam ser o maior sím-bolo de progresso naquela época: a comunicaçãopor telefone celular.

Resumindo, o problema a ser esclarecido é: sea escola é tão importante mas o aprendizado dosconteúdos escolares – a principio sua razão de ser– não é objeto de uma preocupação no mesmo ní-vel, de onde vem o interesse dos Bakairi por essainstituição? A resposta que encontrei é que, real-mente, ela é um importante centro de aprendizado,mas o que é chamado de “conteúdo escolar” (ler,escrever, contar etc.) importa mais como parte da‘performance de civilização’, que acontece noambiente escolar, do que enquanto conhecimentoapenas. O fato de saber ler, por exemplo, importamais como uma capacidade a ser adquirida, quecarrega extremo valor simbólico, do que enquantouma habilidade técnica. Aliás, é rara a utilizaçãoda escrita fora do contexto escolar, verificada prin-cipalmente em bilhetes trocados por amantes ou

namorados9. A leitura de textos extensos, comoprojetos, leis, livros, deve ser mediada geralmentepela leitura e explicação oral de um ‘branco’.

Minha hipótese é que, se a alfabetização fosseapenas vista como um conhecimento imprescindí-vel para a relação com os ‘brancos’, a escola nãoteria o lugar de destaque que ocupa na sociedadebakairi. O que faz com que essa instituição ganheenorme proporção dentro de seu meio social seria,fundamentalmente, o fato de que os conhecimen-tos por ela transmitidos são vistos para além deseu caráter técnico, a saber, pelo que representamenquanto sinal de civilização. Dessa forma, pode-se entender a disparidade entre a pouca preocupa-ção com o aprendizado dos chamados ‘conteúdosescolares’ e a grande importância da escola: ossaberes veiculados por essa instituição têm valormuito mais por representarem um ‘ideal de civili-zação’ – do qual o conhecimento escolar é parteintegrante – que pela aplicabilidade em suas ativi-dades cotidianas. Ainda, o contexto de ensino (dis-ciplina, pedagogia etc) é tão importante quanto os‘conteúdos escolares’ na ‘performance de civili-zação’ cotidiana. Quer dizer, o fato de estar senta-do em uma sala de aula, estabelecendo relação comlivros, professores, língua(gem) escrita, conteúdos‘ocidentais’ é pensado também como instrumentoindispensável de aprendizagem.

Além disso, esse aspecto tem conexões com oprocesso educativo (“tradicional”) propriamentebakairi, que faz do ‘estar em contexto’ o principalmétodo de aprendizado. De fato, segundo o mode-lo bakairi de formação de pessoas, o ambiente, a(con)vivência e a experiência são o fundamentodo aprendizado de habilidades e comportamentosadquiridos no domínio familiar e, recentemente,passou a ser a base do aprendizado dos conteúdos‘civilizados’ da escola.

Nota-se ainda que a avaliação do êxito escolarleva em conta mais os critérios quantitativos quequalitativos, como podemos verificar através das

9 É interessante perceber que este é mais um exemplo de comoa escola e seus conhecimentos são utilizados para a reproduçãodo parentesco. Esses bilhetes são, além dos ‘recados’ transmiti-dos oralmente por intermediários, os principais meios de comu-nicação entre os namorados, em uma sociedade onde não hárelacionamento amoroso público antes do casamento, e, por-tanto, deve-se proceder de forma discreta nesses assuntos.

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referências ouvidas sobre a melhora (crescimen-to) da escola explicada em termos da aquisição denovos aparelhos, aumento do numero de alunos eprofessores ou fatos do gênero. Lembro-me de umvídeo feito por alguns professores que pretendiamregistrar a situação da escola da aldeia central, emque se fazia a pergunta o que vocês acham daevolução da escola na aldeia?. Em todas as res-postas, os entrevistados se diziam felizes com aevolução, dando como exemplos a construção donovo prédio escolar, a ampliação das séries até oensino médio, a nova turma de “jovens e adultos”e também o fato da maioria dos professores estarcursando a faculdade indígena da UNEMAT. Comovemos, são todos exemplos de aumento, seja deturma, de série, de espaço ou de escolaridade dosprofessores. Não houve nenhuma pessoa que ci-tasse algo relativo ao aspecto qualitativo do apren-dizado.

Em suma, se olharmos pelo aspecto técnico, nãohá nenhuma relação entre ler, escrever e aprendernovos conhecimentos e, por exemplo, a presençade antena de celular ou aparelho de som, ou mes-mo, como veremos adiante, dos alunos e professo-res vestirem suas melhores roupas para frequen-tá-la. Mas, se percebermos que o significado daescola vai muito além da aquisição desses conhe-cimentos, poderemos buscar a ligação que haveriaentre uns e outros. A escola é o lugar onde, atra-vés de conhecimentos, comportamentos, hábitos edisciplinas, o aluno pode atuar como ‘civilizado’.Durante a participação contínua no ritual escolar,os alunos vivem a cada dia a performance de “sercomo o branco, civilizado”, o que inclui não apenasos trajes apropriados e objetos industrializados comocaderno, caneta, vídeo, computador, televisão e li-vros (que mostram mais uma infinidade de coisas,lugares e gentes), disciplina baseada em notas, pro-vas, horários, além de comportamentos, como tam-bém a cópia, a leitura e as posturas corporais ade-quadas.

De fato, os Bakairi pretendem, ao familiarizar-se com o modo de vida civilizado, ‘transformar-se’(âtugudyly) em civilizado, através da participaçãoem momentos diversos das atividades escolares: aaula, ou a performance cotidiana, e as performan-ces-cerimônias, que acontecem com menos fre-quência. Em ambas, podemos notar a influência

do método da educação doméstica bakairi, que pri-vilegia sobretudo a participação/repetição, e tam-bém da ação-ritual, característica mais presentenas cerimônias coletivas do kado.

Vejamos dois aspectos importantes da escolabakairi a partir dos quais fica claro a analogia en-tre os rituais coletivos tradicionais bakairi e a es-cola: a transformação e a reclusão.

‘Transformando-se’ em civilizado naescola

As performances escolares, cotidianas ou ex-tra-classe, propiciam a ‘transformação’ (âtugu-dyly) em civilizado, as primeiras caracterizadaspor um esforço em seguir o formato da ‘escolaoficial’ e assim familiarizar-se com os aparatos ecomportamentos do ‘outro’ – prédios, roupas, dis-ciplina e organização escolar – a fim de que acon-teça a ‘transformação’. Assim como a ‘transfor-mação’ em ‘espírito habitante das águas’ (iamyra)pressupõe o uso de roupas, máscaras, desenhos,instrumentos e comportamentos desses seres,como acontece no kado, a ‘transformação’ (âtu-gudyly) em civilizado se realiza através da apro-priação de suas roupas, desenhos, instrumentos ecomportamentos, que, utilizados ritualmente, sur-tirão como efeito a ‘transformação’ tanto presentequanto futura.

O modelo dessa ‘transformação’ (âtugudyly)cotidiana é o ‘ser’ e não o ‘imitar’. Os professoresindígenas não agem como os professores brancos,mas são professores tanto quanto estes. Seu diá-rio, ambiente de trabalho, rotina, conteúdos de en-sino, são exatamente os mesmos dos professoresda cidade. De tudo isso os Bakairi não abrem mão,o que me possibilita afirmar que, em seu cotidiano,os professores bakairi não estão imitando os ‘bran-cos’, mas ‘transformando-se’ (âtugudyly) neles.A diferenciação entre a ideia de ‘imitação’ e a de‘transformação’ fica clara na distinção que osbakairi fazem entre os conceitos de iwenyly e eku-dyly. Ambos se referem a grafismo, o primeiroentretanto diz respeito ao grafismo feito com umasuperfície e o segundo, ao grafismo que independeda superfície. Assim, a pintura dos rituais coletivosé uma espécie de iwenyly pois ela existe na sua

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interação com o corpo das pessoas, ‘transforman-do-as’ nos seres a que se referem (cobras, peixesetc). Já um desenho de um pé, por exemplo, seriaekudyly: uma imitação do pé. É interessante no-tar, em relação à escola, que a escrita é denomina-da iwenyly, sendo percebida portanto comografismo ‘transformador’.

‘Transformar-se’ a partir do uso ritual de rou-pas, máscaras ou pinturas, na visão dos Bakairi,diz respeito a assumir uma nova ‘identidade’, semque isso represente nem um estado irreversível nemo abandono de outras ‘identidades’. Na verdade, otermo ‘identidade’ é apenas uma aproximação,sendo por mim utilizado por falta de outro conceitoque consiga abarcar todo o sentido do processo de‘transformação’ a que estou me referindo10.

Ainda, quanto à possibilidade de coexistênciade mais de uma ‘identidade’, diria que entre osBakairi ocorre processo idêntico ao relatado porAparecida Vilaça sobre os Wari’, sobre os quais,diz ela:

... querem continuar a ser Wari’ sendo Brancos. Emprimeiro lugar porque desejam as duas coisas aomesmo tempo, os dois pontos de vista e tambémquerem preservar a diferença sem no entanto dei-xar de experimentá-la. Nesse sentido, vivem hojeuma experiência análoga à de seus xamãs: têm doiscorpos simultâneos, que muitas vezes se confun-dem. São Wari’ e Brancos, às vezes os dois ao mes-mo tempo, como no surto dos xamãs. (VILAÇA,2000, p. 69)

A título de ilustração desse fenômeno, a partirda realidade escolar bakairi, lembro-me, de certavez, quando eu estava ajudando um professor naelaboração de um projeto a ser encaminhado àFunai para solicitar bolsas escolares. Ele me dis-se: “neste momento sou um branco pois estoufazendo coisa de branco”. Com esse comentá-rio o professor quis dizer que ao adotar um com-portamento de ‘branco’ (‘fazer projeto’) eleestaria assumindo a ‘identidade’ de ‘branco’, masde forma alguma isto implicaria no abandono desua ‘identidade de índio’, muito menos numa trans-formação definitiva em ‘branco’. Estava tão so-mente adotando um comportamento que o fazia‘virar branco’, sem que isso acarretasse umamudança irreversível ou a perda de sua ‘identida-de’ bakairi.

É a partir dessa idéia de ‘transformação’ (âtu-gudyly) que abordo as práticas cotidianas, o com-portamento e a organização escolar, tratando-oscomo modos de familiarização (com) e ‘transfor-mação’ (em) ‘civilizado’, e especialmente no quese refere a sua escola, onde os professores e alu-nos bakairi ‘viram civilizados’ a partir do momen-to em que realmente vivenciam essa ‘identidade’,como também acontece com aquelas pessoas quevestem as máscaras do kado em relação aos es-píritos-animais que estas animam.

Âtâ-RoupaAo tratar da formação do kurâ, seja no espaço

doméstico, nos ritos de iniciação ou mesmo na par-ticipação no kado, e seus efeitos, o corpo é umdos principais focos do processo de aprendizagem,como superfície a ser ‘transformada’ (por pintu-ras, adereços ou roupas), ou como expressão desaúde ou bem-estar a ser desenvolvida e preser-vada. É importante ressaltar que a ‘pedagogiabakairi’ privilegia uma aprendizagem direta sobreo corpo, sem a necessidade da mediação da men-te, e também a predominância da prática sobre aexplicação.

O corpo é objeto de continua fabricação pelaeducação escolar, pois é principalmente por seuintermédio que os Bakairi pretendem capturar ocomportamento e o modo de ser civilizados. Amerenda que se ingere no cotidiano, assim como ochurrasco, o bolo e os refrigerante nas festivida-des, até hábitos como ficar sentado passivamentedurante horas, são todas formas de acostumar ocorpo a uma atitude civilizada. Há, entretanto, umaforma de tratamento do corpo que merece ênfasetanto por parte dos alunos quanto dos professores:o uso de roupas (âtâ) convenientes, isto é, em bomestado e, de preferência, consideradas bonitas. Oshomens vestem calças compridas e tênis e a mu-lheres se destacam pelos acessórios como bijuteri-as para o cabelo, pescoço, braços, cintura etc. bem

10 Sobre a inexatidão do conceito de identidade para tratar atransformação xamânica entre os Ameríndios, ver Fausto (inpress).

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como pela maquiagem11. É interessante perceberque o uso das roupas boas/bonitas tem relação coma transposição do espaço privado para o público,que corresponde ainda à transformação entre ‘vi-ver como Bakairi’, isto é, com a família, e ‘vivercomo civilizado’.

Esta fabricação cotidiana do corpo feita para a(e através da) performance escolar visaria, em úl-tima instância, favorecer a ‘transformação’ (âtu-gudyly) em civilizado, pois se pensa que, dessamaneira – através de alimentos, roupas, compor-tamentos – novas capacidades poderão ser apre-endidas.

Nesse sentido, chama a atenção a relação re-corrente entre âtâ e sodo, que corresponde no casoda escrita à interação entre grafismo e superfície.No caso dos espíritos-animais ‘donos’ (sodo) deuma determinada espécie, temos que a sua formaanimal é comparada pelos Bakairi a uma roupa queencobre o sodo-espírito.

No kado, quando as ‘roupas’/máscaras sãovestidas, as pessoas se ‘transformam’ (âtugudyly)nos seres ‘donos’ do domínio das águas. Um pro-cesso de ‘transformação’ (âtugudyly) ocorre, tam-bém, pela utilização das “roupas dos brancos”,quando, mais uma vez, âtâ e sodo (corpo) estãorelacionados. Disso se pode concluir que o parsodo/âtâ é a forma privilegiada da ‘transforma-ção’ para os Bakairi, vista quando um iamyra ‘en-tra’ em um animal, uma pessoa em um espírito-máscara (no kado) e, também, quando se colocauma “roupa de branco” em um corpo kurâ. E ain-da, em situação análoga, quando o sodo/suporteestá relacionado ao grafismo, como no caso daescrita.

Podemos dizer que essa transformação possi-bilita a tomada de uma nova perspectiva atravésda qual se viabiliza o acesso a recursos (ou seja,passa-se a atuar como sodo). Nesse sentido, re-cordo-me ainda das narrativas bakairi sobre como,‘no principio dos tempos’, os heróis Keri e Kameteriam capturado dos seus ‘donos’ originais impor-tantes recursos – tecnológicos, alimentares, fenô-menos da natureza, capacidades –, como, porexemplo, o próprio sol, o fogo, a mandioca, o sono,utensílios, o tabaco. Parece haver uma correlaçãoentre as estratégias encontradas pelos heróis eaquelas utilizadas hoje através da escola. Repro-

duzo resumidamente três dessas narrativas, res-saltando os pontos que, aqui e agora, me interes-sam12.

(1) A captura do solA tia dos heróis míticos Keri e Kame (Xixi e Nunâ e,respectivamente, sol e lua) pediu para eles captura-rem o sol (xixi), cujo dono (sodo) era o urubu. En-tão, o primeiro entrou em um tapir e o segundo emum passarinho, sendo que aquele como “presa” se-ria uma espécie de isca para atrair os urubus, e ooutro ficaria de fora avisando sobre a aproximaçãodos mesmos. Assim, quando os urubus avançaramsobre o tapir, Kame avisou e Keri soprou sobre osurubus, impedindo que estes conseguissem destro-çar o corpo do tapir, ao que tiveram que chamar ourubu-rei. Este conseguiu abrir o tapir mas, tão logoele o fez, Keri o agarrou e mandou ele lhe dar o sol.Foi assim que eles capturaram o sol, e o dia passoua existir.

(2) A captura do fogoA mesma tia pediu aos gêmeos Keri e Kame quepegassem o fogo de seu ‘dono’, que naquele tempoera a raposa, que o carregava dentro de seus olhos.Eles então entraram em um peixe e um caramujo queestavam na rede de pesca da raposa e esperaramque ela acendesse o fogo para cozinhar. Logo ela oscolocou no fogo e os gêmeos jogaram água apagan-do-o. A raposa foi embora com muita raiva e os doisirmãos aproveitaram para soprar a brasa do fogoquase apagado, conseguindo se apossar do recur-so e levá-lo para a sua tia.

11 Neste sentido, os jovens sofrem grande influência do seriadotelevisivo “Malhação” no qual aparecem adolescentes convi-vendo em um ambiente escolar. Eles tentam se adaptar, com osrecursos disponíveis, às “modas” ditadas pelo programa, princi-palmente no que concerne a vestimentas e enfeites para o cor-po. É muito comum, nos finais de tarde, encontrar os jovensfrente a um aparelho de televisão, observando e comentando oscomportamentos e as vestimentas das personagens do seriado.12 Somente tive acesso às narrativas de forma completa a partirde fontes escritas. As duas primeiras de Karl von den Steinen(1940: 480-482) e a terceira de uma cartilha do SIL (SummerInstitute of Linguistics intitulada Una egatuhobyry 7 – As His-tórias contadas 7 (Komaedâ, 1999), feita a partir de historiascontadas pela Bakairi Laurinda Komaedâ. Durante todo o perí-odo de minha pesquisa nunca presenciei narrativas antigas(unâpâ) contadas em ambiente doméstico ou em qualquer outrolugar. Dizem os Bakairi que atualmente apenas os ‘velhos’ sa-bem essas historias. De fato, quanto menor a idade da pessoamenor é seu conhecimento das narrativas antigas, chegando nasgerações mais novas ao total desconhecimento e nas geraçõesintermediárias ao conhecimento apenas parcial dessas narrati-vas referentes ao inicio dos tempos.

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(3) MomoHavia uma viúva que foi deixada pelos seus filhos.Quando ela se encontrava sozinha em casa, choran-do pelo marido morto, aparecia o “momo”, um ani-mal parecido a um boi cheio de objetos nas costasde modo que quando ele andava fazia grande baru-lho. Ele tentava abrir a casa para matá-la, mas nãoconseguia. Um dia, os filhos da mulher retornaram eela lhes contou o acontecido. Eles então lhe pedi-ram para fingir estar chorando para atrair o Momo elogo o animal estava tentando entrar na casa. Osrapazes conseguiram atirar, mas Momo fugiu. Nooutro dia, seguindo seu rastro de sangue, eles en-contraram o Momo morto, com vários objetos emsuas costas. Entretanto, só conseguiria ser dono deum objeto aquele que tivesse coragem de atirar nes-te. Os Bakairi atiraram nas cuias, esteiras de espre-mer mandioca, flecha, etc, mas não tiveram coragemde atirar nas armas de fogo, e estas ficaram para osbrancos.

As três narrativas são sobre a aquisição de re-cursos importantes para os Bakairi – sol, fogo, ob-jetos e armas. Suas estruturas também sãoparecidas: existe um dono (sodo) do recurso (uru-bu-rei, raposa, Momo) e dois irmãos que tentamcapturá-lo. Nas duas primeiras, Keri e Kame usam‘roupas’ de animais para se aproximarem do sodo,na última é o choro da mãe que tem esta função;entretanto, em todas elas, os captores agem como‘presa’ para atrair o ‘dono-predador’13. Dessa for-ma, conseguem se apropriar de recursos funda-mentais para a sua vida. Somente na últimanarrativa, a captura mostra-se incompleta, pois osBakairi não tiveram coragem de pegar as armasde fogo.

Se analisarmos atentamente, perceberemossemelhanças entre as narrativas sobre a capturade recursos e as performances escolares que es-tamos abordando. Assim, os conhecimentos civili-zados escolares têm os karaiwa como sodo14. Eo resultado do encontro entre o ‘dono’ de algo e‘aquele que deseja esse algo’ é sempre a capturade um importante recurso para sua reproduçãosocial, seja o sol, o fogo, os utensílios ou, no casoda escola, o saber-atitude civilizado.

Podemos dizer, então, que a performance es-colar atual seria uma atualização das estratégiasencontradas por Keri e Kame para a captura derecursos fundamentais. Se no ‘início dos tempos’

era imperativo que tivessem fogo, dia, flechas eoutros objetos para que pudessem sobreviver, atu-almente os Bakairi não concebem sua reproduçãofamiliar sem os recursos cujos ‘donos’ são os ka-raiwa (como certos alimentos, roupas, televisãoetc.). Portanto, assim como os heróis míticos, hoje,eles têm que encontrar formas de capturar o quedesejam e se tornarem também seus ‘donos’, sen-do a escola apontada por todos como o principalmeio de que dispõem para a apropriação dos re-cursos hoje necessários.

Devemos ainda notar na narrativa do Momoque, apesar dos irmãos terem sucesso na capturados utensílios e armas, naquele tempo os Bakairinão tiveram coragem para atirar nas armas de fogoe assim delas se apropriarem. Hoje, os tempos sãooutros e os Bakairi atuais não só são donos de es-pingardas (adquiridas dos brancos), como tambémestão dominando novas armas de ‘caça’ de recur-sos, sendo a escola considerada o meio principalpara esse fim.

Também a escrita diz respeito à captura de re-cursos, em outras palavras, pode ser consideradaum instrumento de ‘poder’. Segundo Peter Gow,para os Piro, ela simbolizaria a hierarquia entre “ín-dios selvagens” e “brancos civilizados”, da qual os“brancos” detêm total controle (GOW, 2001, p.215). Em tom similar, Lévi-Strauss relatou que osNambiquara “compreendiam confusamente que aescrita e a perfídia penetravam de mãos dadasentre eles. (...) O gênio do chefe, percebendo namesma hora a ajuda que a escrita podia dar a seupoder, e alcançando assim o fundamento da insti-tuição sem possuir seu uso, infundia admiração”.(LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 284). Da mesma for-ma, notei que a escola bakairi opera enquanto uminstrumento de captura dos recursos cujos ‘donos’são os ‘brancos civilizados’, e a escrita tem lugarde destaque nesse processo, o que pode ser per-

13 É interessante que nas duas primeiras observamos os irmãosutilizarem-se de “roupas” de animais para poderem atrair ospredadores. No caso da escola, como vimos, é o contrario, as“roupas” de que se servem são aquelas que permitem reconhecê-los como os próprios “donos” da “civilização”, os karaiwa.14 Disso eu pude ouvir varias referências, dentre elas o que umdia, em uma reunião preparatória para a cerimônia de inaugura-ção do novo prédio escolar, um professor me disse: “você podeajudar, pois isso tudo é da sua cultura”, referindo-se às formali-dades necessárias a uma “verdadeira inauguração”.

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cebido a partir dos próprios discursos dos Bakairi,que colocam o seu aprendizado como o principalobjetivo da escola. A escrita é outra maneira de seapropriar do grafismo como veículo de ‘transfor-mação’ e, portanto, de captura de recursos domi-nados pelos karaiwa. A forma “original”, como jáfoi dito, é a pintura corporal utilizada pelos Bakairino kado para se familiarizarem com os ‘donos’das espécies animais ‘donas’ de diversos recursos(cobras, peixes, insetos, morcego, pássaros etc.).

Reclusão (wanky) e formação escolarA reclusão (wanky) é um dos principais mo-

mentos de formação de um kurâ. Ela geralmenteacontece em períodos de mudança de status social– nascimento, nascimento de um filho, puberdade,morte, tornar-se um pajé – sendo um instrumentode ‘transformação’ dos corpos-sujeitos. Pretendodemonstrar aqui que a escola se assemelha a umadas formas de reclusão, aquela por que passam osrapazes púberes, principalmente nos moldes de“antigamente”. A reclusão masculina apresenta doisaspectos fundamentais para a escola: a reunião dosjovens e a etapa da vida à qual ela corresponde, apassagem da infância para a vida adulta. Não en-trarei no mérito de se houve “substituição” (ou uma“transformação” nos termos de Peter Gow (2001))de uma forma por outra, como pode indicar o “en-fraquecimento” de uma enquanto a outra ganhavaimportância. Entretanto, as semelhanças parecemreforçar a idéia de pensar a escola como um lugarde formação do qual se deve sair com os conheci-mentos e o status (materializado no diploma) ne-cessários, atualmente, para ser considerado umcompleto kurâ.

Tratemos das correlações. No antigo15 estadode wanky, os rapazes passavam muitos meses16

de sua juventude dentro do kadoety (casa dokado), convivendo apenas com a sua “turma”,com os seus pais e com o “instrutor”, podendosair apenas durante a madrugada para ir ao rio17

e evitando sempre o contato, sobretudo sexual,com as mulheres. Durante esse período, eles eramsubmetidos a aprendizados tanto em termos deformação de seus corpos – dieta, “remédios” ex-traídos de plantas, escarificação, eméticos ou vo-

mitórios – quanto de novas habilidades, necessá-rias a uma pessoa adulta, como confecção deutensílios, sem falar dos conselhos visando suaeducação moral. Antes da reclusão, havia (e ain-da há) uma importante cerimônia, o Sadyry, quan-do os jovens tinham (e têm) os lóbulos das orelhasperfurados, podendo, a partir de então, ostentar oywenry (pedaço de madeira colocado no orifíciodo lóbulo da orelha), símbolo da passagem paraoutra fase da vida18.

Atualmente, os jovens de ambos os sexos19

passam a maior parte de seu tempo (dez mesespor ano, cinco dias por semana) dentro da casa-escola, onde, através da mediação dos professo-res, aprendem vários conteúdos, valores e hábitosconsiderados fundamentais para a formação deuma pessoa que tenha condições de ‘sustentar’ umafamília, valor na formação do kurâ. Para isso tam-bém, seu corpo é acostumado e aprimorado en-quanto ‘civilizado’, através dos alimentos (meren-da) e das posturas corporais impostas (sentar-sepor horas em cadeiras, não gritar, aprender a ves-tir-se corretamente). Depois de anos, deixam aescola, tendo sido ‘transformados’ através dos ri-tos performáticos que lá se realizam, passando poruma cerimônia de formatura (onde ganham diplo-mas), sendo considerados, então, ‘formados’.

15 Atualmente a reclusão se limita a mais ou menos uma semana,sem que haja tempo para passar aos wanky os conhecimentosnecessários à formação de uma pessoa adulta.16 Nunca soube ao certo quanto tempo os jovens passavam re-clusos “antigamente”, pois quando perguntava sobre esse tema,a resposta sempre era ‘muito tempo’, sem entretanto, precisa-rem exatamente o numero de meses ou anos. Altenfelder Silva(1950, p. 229) menciona uma reclusão pubertária masculina,entre os Bakairi, de “alguns meses”.17 Ellen Basso (1973) e Thomas Gregor (1977) citam ainda“intervalos” dentro do período de reclusão, respectivamenteentre os Kalapalo e os Mehinaku do Alto Xingu, durante osquais o rapaz pode conviver (quase) normalmente com os de-mais, retornando depois, novamente, à reclusão.18 Apesar do Sadyry conferir já um estado de adulto, ele só serácompleto após o casamento e o nascimento do primeiro filho.19 E isso representa uma diferença fundamental entre a escola eo estado de reclusão no qual é imperativo manter separadoshomens e mulheres. Na verdade, há uma oposição neste sentidoentre o wanky propriamente dito e o aluno, pois somente naescola pude observar casais de namorados de mãos dadas, fatocompletamente reprovado em outras circunstâncias. Devo lem-brar, também, que quase todos os casamentos que aconteceramdurante o meu período de pesquisa de campo foram resultado degravidez adquirida através de “namoros” entre os alunos, prin-cipalmente aqueles que frequentam o período noturno.

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Notamos, portanto, correspondências significa-tivas, apesar das diferenças que as contingênciasimpõem (como a já mencionada presença de mu-lheres): a faixa etária, o aprendizado mediado porum instrutor, os anos passados em um espaço não-doméstico, e, ao final, a possibilidade de ostentaras insígnias de um novo status (ywenry ou diplo-ma), simbolizando que as pessoas são kurâ ‘for-mados’. Ainda, no rito de passagem realizado nokadoety, além do período de reclusão, acontece,também, uma importante cerimônia pública (mas-culina); da mesma forma, a escola entremeia ca-racterísticas da formação doméstica (como, porexemplo, o modelo pedagógico baseado na memo-rização-repetição-prática), em seu nível cotidiano,com a realização de cerimônias, desde as diáriasque constituem as aulas, como as extraordinárias,as chamadas “festas escolares”.

Podemos fazer também um paralelo entre aformação dos professores20 e a iniciação do pajé.Com efeito, da mesma forma que os alunos estãosendo “formados” fundamentalmente para a re-produção da família, pajés e professores se prepa-ram para operar como mediadores entre doismundos e, assim, poderem agir em “defesa do pa-rentesco” de uma forma mais ampla21.

Há, portanto, dois níveis de comparação possí-veis entre a formação dos atores escolares e a re-clusão bakairi ‘tradicional’: aquela entre o cotidianodos alunos e a iniciação pubertária; e esta entre ainternação dos professores na escola agrícola e ainiciação do pajé. A primeira similitude que nos saltaaos olhos é o fato de tanto aspirantes a pajé quantoaspirantes a professor saírem do convívio da al-deia – os primeiros indo para a mata e posterior-mente ao “céu”; os segundos para uma cidadedistante –, revelando, assim, uma situação ambí-gua, pois, para defender o parentesco, eles deveminicialmente negá-lo.

Essas duas ‘viagens’, ao “céu” e ao internatoreservam muitos paralelos: (i) o aprendizado de umanova língua, a dos “espíritos” no caso do pajé, ados karaiwa, no dos professores; (ii) a necessida-de de manterem-se afastados de mulheres (disci-plina rigorosamente observada também no convíviode meninos e meninas no internato); (iii) a obriga-ção de uma dieta especifica – pogu (mingau) nocaso do pajé, o mesmo alimento oferecido aos ia-

myra na época das cerimônias do kado, e “comi-da de branco” no internato; (iv) a idéia de sacrifí-cio vinculada a esses períodos, como afastamentoda família, passagem por rígidas disciplinas, medodo desconhecido; (v) ao final da viagem, ambossão considerados capazes de “ver” coisas invisí-veis aos olhos dos não-iniciados, ‘espíritos’, no casodo pajé, e aquilo que está “escondido” sob a escri-ta, no caso dos professores, ganhando, assim, umnovo status e uma nova função dentro da sua soci-edade.

A escola bakairi, a primeira vista, parece estarcompletamente alheia ao contexto ‘tradicional’ deaprendizagem, pois os Bakairi fazem questão deque ela seja ‘como a do branco’ e, para isso, seesforçam em copiar a disciplina, as maneiras, oconhecimento das “escolas da cidade”. No cotidi-ano, aparentemente tem-se uma escola não-dife-renciada, o oposto do que seria pensado comoescola indígena. Pretendi mostrar, entretanto, quea escola bakairi segue mais os referenciais de for-mação de um kurâ do que aparenta. É exatamen-te ao pretender ‘ser como o outro’, no ‘civilizar-se’pela escola, que os Bakairi visam se reproduzirenquanto um grupo diferenciado, tendo o paren-tesco como fundamento organizacional e valormaior. A escola, em vários sentidos e níveis, funci-ona como o kado: pelo seu destaque enquanto ins-tituição pública; por ser meio de captura de recursospertencentes a ‘mundos outros’, essenciais à re-produção das famílias; por seu funcionamento de-pender de especialistas com conhecimento doscódigos do ‘outro’, aprendido durante um períodode reclusão; por recorrer a performances coleti-vas que envolvem práticas que visam ‘transfor-mar’ o kurâ/Bakairi em ‘outro’.

20 A formação dos professores bakairi aconteceu primeiro atra-vés do envio dos jovens ao internato agrícola Tancredo Neveslocalizado na cidade de Alto Garças (MT) e posteriormenteatravés das idas a Cuiabá e Paranatinga para cursar o EnsinoMédio do Projeto Tucum oferecido pela Secretaria de Educaçãodo Estado de Mato Grosso. O terceiro grau foi realizado pelosprofessores bakairi na cidade Barra do Bugres pela Unemat.21 Peter Gow (1991) também observou entre os Piro uma iden-tificação entre a escola e o xamanismo, por ambos utilizaremconhecimentos potencialmente perigosos para defender o pa-rentesco.

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Recebido em 30.08.09Aprovado em 08.09.09

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A EDUCAÇÃO ESCOLARENTRE OS TUPINAMBÁ DA SERRA DO PADEIRO:

reflexões sobre a prática docente e o projeto comunitário

Marcos Luciano Lopes Messeder *Sonja Mara Mota Ferreira **

* Doutor em Antropologia pela Universidade Lumière Lyon 2 – França. Professor Adjunto de Antropologia do Departamentode Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia.Endereço para correspondência: Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41.195.001 Salvador-BA. E-mail:[email protected]

** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – UNEB, servidora pública estadual, lotadana Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia, Coordenação de Políticas para os Povos Indígenas.Endereço para correspondência: 4ª Avenida, nº 400, 1º andar, Centro Administrativo da Bahia – 41.745-002 Salvador-BA E-mail: [email protected]

RESUMOO presente artigo pretende apresentar uma parte dos dados etnográficos coletados para umapesquisa de mestrado sobre a educação escolar indígena na comunidade Tupinambá da Serrado Padeiro, localizada no município de Buerarema, sul do estado da Bahia. Inicialmente,trataremos de situar a construção da identidade étnica da comunidade no âmbito de um amploprocesso de organização dos povos indígenas no Nordeste e destacar o componente religiosodessa trama identitária. Esta breve caracterização, que remete a outras pesquisas centradassobre os processos propriamente políticos, sociais e simbólicos de elaboração da etnicidadeTupinambá, permite compreender o significado atribuído à educação escolar e como estaincorpora, por seu turno, as orientações mais amplas do projeto comunitário. A contextualizaçãoda escola permite-nos, em seguida, descrever e analisar práticas e discursos dos professoressobre o que consideram como educação diferenciada. Ao final, buscamos compreender osdilemas e as possibilidades colocadas pela experiência escolar indígena desenvolvida poressa comunidade específica, analisando uma modulação possível de construção da educaçãodiferenciada.

Palavras-chave: Educação diferenciada – Práticas escolares – Identidade étnica –Índios do Nordeste

ABSTRACTSCHOOL EDUCATION BETWEEN TUPINAMBÁ FROM SERRA DOPADEIRO: reflections about teaching and community project

The present article presents part of the ethnographic data collected during the research for amaster’s degree on indigenous school education in the Tupinambá community from the Serrado Padeiro, in the municipality of Buerarema, in South of the state of Bahia (Brazil). Initially weplace the construction of ethnic identity in the community within the scope of a wider processof organization of the indigenous peoples of the Northeast and point to the religious component

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of this identity web. This brief characterization, which draws on other research centered onthe political, social and symbolic processes of Tupinambá ethnic elaboration, allows us tounderstand the meaning attributed to school education and how it incorporates, the widerorientations of the communal project. Situating the school in its context allows us to describeand analyze practices and discourses of the teachers about what they consider to bedifferentiated education. Finally, we try to understand the dilemmas and possibilities placedby the indigenous school experience developed by this specific community, analyzing apossible modulation in the construction of a differentiated education.

Keywords: Differentiated education – School practices – Ethnic identity – Indiansof the Northeast

Os Tupinambá no contexto da etnici-dade dos índios no Nordeste

Como o conjunto dos povos indígenas habitan-tes do Nordeste brasileiro, os Tupinambá do sul daBahia passaram por um período de invisibilidadehistórica, política e cultural, marcadamente duran-te o século XX. Após as inúmeras investidas dosséculos anteriores, seus territórios se diluíram soba ocupação de não índios. O território atualmenteidentificado e em vias de demarcação, com umaárea total aproximada de 47.000 hectares, se defi-ne a partir das marcas históricas dos próprios co-lonizadores, como a sede da missão em Olivença,que reuniu os Tupinambá da região desde o séculoXVIII (COUTO, 2008, p. 62) e é também balizadapelas ocupações tradicionais nos atuais municípiosde Ilhéus, Una e Buerarema, resultantes de pro-cessos de dispersão e reaglutinação provocadospelas pressões regionais. A perseguição ao “cabo-clo Marcelino” é o exemplo mais ilustrativo dosconstrangimentos sofridos por esse grupo indíge-na1. Pretendemos assinalar aqui que, desde os fi-nais do século XIX e durante todo o século XX,essa população indígena viveu sob o estigma dadenominação de “caboclos”, ou seja, categoria deassignação mestiça, deslegitimadora de qualquerpretensão de reivindicar uma especificidade étni-ca e cultural.

Os índios do Nordeste do Brasil integram um con-junto de populações marcadas por séculos de con-tato com a sociedade colonial e nacional, do qualresultou uma situação de fraca distinção cultural eum trabalho intenso de reelaboração simbólica emtorno do passado e das tradições. O processo dereconhecimento destas populações indígenas foiconstruído, sobretudo, a partir de uma memória ét-

nica baseada sobre a história territorial, geralmenteligada à presença das missões religiosas e tambémreferida a uma reconstituição, senão mesmo, umaaprendizagem de um ritual.De fato a construção de um projeto coletivo exige odomínio de uma “tradição indígena”, condição in-dispensável ao reconhecimento. Uma expressão dosAtikum (cf. Rodrigo Grunewald, 1993), de Pernam-buco, resume este processo, o “regime dos índios”que é também o “regime de Deus”. Esta última ex-pressão é recorrente em cantos de Toré2, nos quaisse fala em união, exprimindo bem o sentido fundan-te da ligação ao sagrado para a construção da indi-anidade3. A constituição deste regime responde auma orientação política e simbólica. De um lado aorganização de um sistema de representação políti-ca comunitária, com a instituição dos cargos de ca-cique, de pajé e de conselheiro tribal e a retomada,aprendizagem ou reaprendizagem de uma tradiçãoritual. A instituição do ritual ultrapassa seu únicopapel de sinal distintivo e organiza em torno de siuma rica fonte de elaboração do sentido coletivo esubjetivo da etnicidade. (MESSEDER: 2009: 1-2)

A reconstrução da identidade étnica desse gru-po se faz como parte de um amplo processo dereemergência de povos indígenas no Nordeste bra-

1 Para uma análise sistemática do processo de ressurgimentoétnico dos Tupinambá sugerimos a consulta aos trabalhos deViegas (2008) e Couto (2003, 2008).2 O Toré é um ritual praticado por vários povos indígenas noNordeste e consiste, genericamente, em uma dança circular,acompanhada de cantos, marcados pelo uso do maracá. Há va-riações coreográficas nos cantos, nos passos da dança e na uti-lização de certos elementos como tabaco, vinho de jurema (mi-mosa bentis) entre os vários grupos indígenas que o praticam.3 A noção de indianidade, tal como a utilizamos aqui, evoca umaadesão sentimental, uma espécie de ethos, no sentido de Bateson(1958), a uma identidade pan-indígena difusa e associada a umacosmologia genérica de vínculo com a natureza e defesa detradições indígenas com conteúdos variados.

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sileiro, tributário de uma mobilização política e cul-tural viabilizada pela organização crescente domovimento indígena na região, com o apoio de as-sociações de caráter indigenista e da atuação demissionários católicos ligados ao Conselho Indige-nista Missionário (CIMI), órgão da ConferenciaNacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e tambémde pesquisadores, particularmente, antropólogos.Entre os Tupinambá, esse processo começa a ga-nhar força na década de 1990 e se adensa com aaproximação da comemoração dos quinhentos anosdo “descobrimento”, evento com fortes repercus-sões simbólicas em toda região sul do estado daBahia e, é claro, em todo o Brasil.

Para os nossos propósitos, é importante regis-trar que a comunidade Tupinambá da Serra doPadeiro recupera e elabora, para fins de sua afir-mação identitária, o fato do “caboclo Marcelino”ter usado a Serra como seu último refúgio e seucorpo não ter sido encontrado (COUTO, 2008). Asituação de relativo isolamento geográfico da áreae suas próprias condições ecológicas propiciarama elaboração de uma mística em torno do local.Além disto, a comunidade se serviu da sua própriaexperiência religiosa compósita, a partir de um cultode possessão de influência umbandista, para er-guer sobre ela a sua especificidade étnica no seioda comunidade mais ampla dos Tupinambá. En-quanto em Olivença o ritual Tupinambá é denomi-nado Poranci, na Serra ele foi denominado Toré,seguindo a tendência hegemônica entre os índiosno Nordeste. A necessidade dessa especificaçãose associa ao fato do ritual na Serra ser marcadopela incorporação de entidades denominadas “en-cantados”, antes definidas como “caboclos”, pre-sentes em outros cultos de origem afro-ameríndia.Os encantados distinguem-se de outros seres es-pirituais, particularmente, por não serem mortos e,sim, espíritos vivos que tem sua existência em rei-no propriamente indígena4.

Vemos, assim, que o trabalho de ressurgimentoétnico é uma trama simbólica e política, rica e com-plexa. As crenças e práticas associadas à presençade um forte líder espiritual, particulariza os Tupinam-bá da Serra, dado que nas outras comunidades evi-tam-se os estigmas dos cultos de possessão. NaSerra, os “encantados” são recebidos e suas orien-tações são seguidas no encaminhamento das ques-

tões coletivas, inclusive no âmbito da escola. Aspesquisas realizadas sobre os Tupinambá ressaltama centralidade das atividades espirituais para a vidacoletiva dessa comunidade. Portanto, a compreen-são da articulação entre práticas educativas escola-res e a construção do projeto étnico deve considerara importância desta dimensão na organização dosTupinambá da Serra do Padeiro.

A comunidade Tupinambá da Serra doPadeiro: breve contextualização

A Aldeia Indígena da Serra do Padeiro situa-seem uma região montanhosa, com relativa preserva-ção dos seus recursos naturais e, segundo a Funda-ção Nacional de Saúde (FUNASA, 2005), tem umapopulação aproximada de 650 pessoas – distribuí-das em 130 famílias, dispostas nas localidades: Bei-ra Rio, Craveiro, Retomada I, Retomada II, PauEscrito, Ipiranga, Maruim, Zé Soares e Rio Una. Aaldeia está situada no município de Buerarema, pe-quena cidade central do Sul da Bahia com cerca de19.956 habitantes (IBGE), distante cerca de 16 kmda Serra do Padeiro e 472 km de Salvador.

O centro da aldeia fica na base da Serra doPadeiro, cercada pela exuberante vegetação damata atlântica. É constituído por sete residênciasonde moram os membros da família Ferreira daSilva, uma escola e seu anexo, creche, secretariae um galpão de madeira chamado de “casa do san-to” ou “centro da cultura”, dispostos estrategica-mente para controlar a entrada e saída deestranhos. As demais residências distribuem-se pe-los arredores, junto às pequenas áreas de cultivo.

A comunidade vive da agricultura familiar cujabase é o cultivo da mandioca. Todos têm sua pró-pria roça onde, além da mandioca, plantam abaca-xi, banana, abóbora, feijão, milho, hortaliças, inhamee frutas diversas. O carro-chefe da produção é afarinha de mandioca, muito requisitada na região emaior fonte de renda local. Possuem grupos orga-nizados de jovens, de produção agrícola, de mulhe-res e uma associação comunitária atuante –Associação Indígena Tupinambá da Serra do Pa-

4 O trabalho de Nascimento (1994) é particularmente elucidativodas tramas simbólicas produzidas neste universo das crenças erituais dos índios no Nordeste.

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deiro (AITSP). O festejo em louvor a São Sebas-tião, em 19 de janeiro, é a principal manifestaçãopública da religiosidade desse povo indígena5.

O núcleo central da aldeia concentra as mora-dias dos principais líderes comunitários. Aí está lo-calizada a residência do Sr. Lírio, o pajé,intermediário entre os encantados e os homens,rezador muito requisitado na região; D. Maria daGlória, sua mulher, exímia contadora de “causos”e os filhos; o cacique Babau, Baiaco, Magnólia,Rosildo, Tete, Gil e Glicéria. Os outros filhos, Mag-neci, José Aelson e Vando moram fora da aldeia.Babau, apesar de jovem -– 34 anos –, é considera-do o porta-voz dos encantados; foram esses se-res que o indicaram para cacique e, segundo Babau,para que seja possível reconhecer uma liderança,“basta saber se o povo está feliz”. A sua indica-ção espiritual para o posto confere forte aceitaçãodo seu comando na comunidade, mas, para alémdeste fato, é uma liderança querida, respeitada esuas ações parecem estar em consonância com osprojetos de futuro do povo da Serra.

Eles são organizados e dinâmicos, como de-monstra a constituição da AITPS e a organizaçãode cultivos coletivos como a “roça da Associação”e a “roça das mulheres”. Em geral, os homens fa-zem os trabalhos mais pesados, como a “destoca”e a “capina” para a implantação dos roçados; en-quanto as mulheres plantam, fazem os cuidadosdiários e participam da colheita. Todos participame trabalham em todas as roças mencionadas, pra-ticando o auxílio recíproco no trabalho conjunto. Aprodução não tem em vista o acúmulo de bens etampouco o lucro financeiro, como acontece navisão capitalista da economia – busca-se assegu-rar o bem-estar coletivo.

A verba gerada com a produção da “roça daAssociação” é utilizada como um fundo de reser-va para aquisição de bens comunitários, equipa-mentos agrícolas, combustível, remédios, arealização do Seminário da Juventude IndígenaTupinambá, a festa de São Sebastião, viagens delideranças e professores, e manter os índios nasterras retomadas até que suas roças estejam pro-duzindo. Desde o início do plantio, eles já têm emmente onde vão aplicar a renda obtida com a ven-da de cada produção. Os recursos oriundos da pro-dução excedente das roças familiares são utilizados

na compra de produtos e objetos industrializados,como vestuário, calçados e outros. Os habitantesda Serra do Padeiro sabem que é vital a coesão naluta; e esse princípio é uma das orientações dosencantados para atingir os objetivos da comuni-dade. Para eles, a função da atividade econômicaé garantir o bem-estar das pessoas e da coletivida-de, exercitando a generosidade, a partilha, a hospi-talidade, o espírito comunitário e a reciprocidade.

Os encantados, segundo eles, garantem a re-solução de todos os seus problemas e deles depen-dem todas as decisões que são tomadas na aldeia,em diversas esferas. Sempre que precisam tomaralguma decisão em nome da coletividade é reali-zado um ritual – valendo-se da fé nos encantados– e crêem que, a partir dele, alcançam a força e osucesso no pleito. Esses rituais acontecem a cadaretomada6, nas reuniões de planejamento escolare em todas as outras decisões importantes na es-cola, nas viagens realizadas etc. Sem a orientaçãodos encantados não se toma nenhuma decisão nacomunidade.

A escola e seu lugar na comunidadeEm 1996, um pequeno grupo de professoras da

Aldeia Tupinambá de Sapucaeira, uma das 25 co-munidades que constituem o povo autodenomina-do Tupinambá de Olivença, liderados por NúbiaBatista da Silva,7 conhecida como Núbia Tupinam-

5 Para uma análise do significado deste festejo para a comunida-de deve-se consultar o trabalho de Couto (2008).6 A “retomada” é um tipo de ação comum entre os povos indíge-nas, particularmente no Nordeste, onde os territórios indígenasidentificados como tradicionais por estas populações estão ge-ralmente ocupados. Desta forma, para forçar a agilização doprocesso de extrusão pela FUNAI, mesmo quando o territórioainda não foi demarcado, realizam-se as “retomadas” que sãoocupações coletivas de áreas com a participação de várias famí-lias e implantação de roças e moradias, visando assegurar ocontrole permanente de parte do território. Esta ação exigeplanejamento, coordenação coletiva e uma estratégia bem mon-tada de apoio logístico e de sustentação jurídica, o que é assegu-rado por organizações indígenas e indigenistas que pressionam aFUNAI e o Ministério Público no sentido de garantir a legitimi-dade da ação.7 Núbia Tupinambá recebeu, em 2007, o Troféu Zeferina, daUniversidade do Estado da Bahia, através do Centro de Estudosdos Povos Afro e Indígenas Americanos / Cepaia – que contem-pla mulheres negras e indígenas que se destacaram na luta pordireitos coletivos em suas comunidades de origem – pela suaatuação no processo de etnogênese do povo Tupinambá.

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bá, começou a trabalhar voluntariamente para al-fabetizar as pessoas da aldeia. Estimulados por ela,esses professores participaram do Coletivo de Al-fabetizadores Populares da Região Cacaueira –Caporec8 que tinha proposta pedagógica fundamen-tada na obra de Paulo Freire. De acordo com Silva(2006),

... consistia dos seguintes passos: primeiro, a iden-tificação e motivação das famílias da comunidade,segundo, o levantamento das expectativas dos alfa-betizandos e terceiro, o trabalho partindo das histó-rias de vida. Assim, ao estudar e problematizar arealidade, as questões étnicas vieram à tona nas his-tórias de vida dos alfabetizandos e dos alfabetiza-dores. A partir daí o Caporec e a FASE adotaram noseu programa de formação, a questão étnica e a his-tória dos povos indígenas no Brasil. Se assumindoenquanto indígenas, muitos alfabetizadores integra-vam atividades de formação e de articulação políticaindígena que preparavam as atividades paralelas daComemoração dos 500 Anos do Descobrimento doBrasil. Essa participação proporcionou ao grupomaior experiência e conexão com os demais povosindígenas, evidenciando a necessidade da defini-ção étnica e da luta pela demarcação do território.(apud MARCIS, 2008, p. 8).

Sob a orientação de Núbia Tupinambá, a pri-meira pedagoga indígena do estado, graduada pelaUniversidade Estadual de Santa Cruz (UESC), fun-dadora e secretária do Caporec desde 1995, osprofessores Tupinambá de Olivença ensaiaram osprimeiros passos para a criação de uma escola naaldeia. Foram realizadas muitas reuniões itineran-tes na área e, desse modo, forjaram-se as condi-ções de mobilização da população para areafirmação étnica e sua organização enquantoíndios, destacando-se a sua percepção para a im-portância da educação diferenciada no processode reelaboração identitária e para o desenvolvimen-to da comunidade indígena Tupinambá. Esse mo-vimento, protagonizado por Núbia e alguns outrosprofessores, contribuiu sobremaneira na organiza-ção da comunidade para o reconhecimento étnicopela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em2002, e a identificação do território Tupinambá deOlivença, atualmente em processo, com a publica-ção do relatório preliminar de demarcação das ter-ras pela FUNAI, em 20 de abril de 2009, com área

proposta de 47.376 ha, abrangendo os municípiosde Ilhéus, Buerarema e Una.

Em 2000, Núbia fez um minucioso levantamen-to das demandas de alunos e professores que po-deriam atuar, apesar de alguns não terem formaçãoadequada, e organizou 19 núcleos escolares espa-lhados na região de Olivença. Estimulados por ela,todos trabalhavam de forma voluntária e atendiamcrianças desde a educação infantil até a quartasérie. Os espaços educativos eram improvisados,construídos pelos professores. Após o reconheci-mento oficial pela FUNAI e crescimento da de-manda, realizaram-se contatos com o Ministérioda Educação (MEC) e a Secretaria da Educaçãodo Estado da Bahia (SEC), pressionando essesórgãos a responder às necessidades de estrutura-ção física e de pessoal para o atendimento escolarnas aldeias. Em 2004, foi criada a Escola IndígenaTupinambá de Olivença – EITO e firmado o com-promisso da construção de sua sede, que só foiinaugurada em 2006.

Ainda em 2000, a cacique Maria ValdeliceAmaral9 fez uma visita à Serra do Padeiro – quetinha iniciado, nesse período, o seu “despertar paraa cultura que estava adormecida”, como diz ocacique Babau – e convidou a comunidade paraparticipar da luta para o reconhecimento étnico edas reuniões que estavam acontecendo em Oliven-ça, objetivando a organização da escola que esta-va nascendo. Foi formado, então, um anexo daEscola Tupinambá de Olivença na Serra do Padei-ro, e foram matriculados os alunos que estudavamem uma escola municipal que funcionava na Ser-ra. Cerca de cinco professoras da comunidadecomeçaram a ensinar nesse anexo e participar dasreuniões pedagógicas coordenadas, em Olivença,por Núbia, que, a essa altura, já tinha conquistadopara os professores a contratação pelo Estado, nosistema Regime Especial de Direito Administrati-

8 Projeto desenvolvido pela Federação para Assistência Social eEducacional – FASE, que atuava com grupos populares de alfa-betização e também com multiplicadores ou formadores daspráticas pedagógica e didática.9 Os Tupinambá possuem três líderes políticos reconhecidoscomo caciques: Valdelice lidera as comunidades da sede do distri-to de Olivença e outras localidades dessa área de influência;Roseval de Jesus Silva (Babau) é o cacique da Serra do Padeiro eadjacências e Alicio Francisco do Amaral é o líder político nascomunidades de Acuípe e Santana. (SILVA, 2006).

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vo (Reda). Essas reuniões foram o primeiro lumepara os professores da Serra do Padeiro, quando,nas permutas de experiências e estudos dos Refe-renciais Curriculares Nacionais para EducaçãoEscolar Indígena (RCNEI), atualizavam as suasaspirações. Em relatos, fica claro o encantamentodesses professores com a “descoberta” da cha-mada “educação diferenciada” que valorizava oscostumes, os mitos, a própria produção, o respeitoe o valor aos mais velhos, seus conhecimentos,conceitos e vivências que já tinham, segundo eles,mas não eram valorizados pela escola da “rua”(como comumente aludem às cidades de Buerare-ma, Ilhéus e Itabuna).

Vários fatores determinaram o desejo do povoda Serra em ter a sua própria escola indígena naaldeia, inspirados também no resultado obtido pe-los parentes e na luta pela reafirmação étnica apartir da educação. Aliado a isso, o número de alu-nos tinha aumentado, sobretudo devido a váriasretomadas realizadas, resultando em uma amplia-ção do território ocupado, atraindo mais famíliaspara morar lá e, consequentemente, a contínua ecrescente demanda de alunos.

Uma intensa articulação foi feita com a FU-NAI, a Diretoria Regional de Educação (DIREC)de Itabuna e especialmente a SEC. Após váriasviagens feitas por Babau, o cacique, e alguns pro-fessores a Salvador, reivindicando a criação daescola, pautada no mapeamento, levantamento ediagnóstico das suas necessidades, foi criada, ofi-cialmente, a Escola Indígena Tupinambá da Serrado Padeiro (EITSP) em 13 de outubro de 2005.

No início, as aulas aconteciam nos galpões enas casas de farinha das retomadas que ficavamno entorno da Serra. No núcleo da aldeia, funcio-nava, desde 1990, a Escola Rural Municipal BoaSorte, constituída de uma sala de aula, uma canti-na e dois banheiros, um masculino e um feminino.O pequeno prédio foi construído pela prefeituraem um terreno doado pelo Sr. Lírio e atendia 44alunos de 1ª a 4ª séries, organizados em classemultisseriada, cuja professora era Magnólia (fi-lha de D. Maria e Sr. Lírio e irmã do caciqueBabau). Com a criação da escola estadual, omunicípio cedeu o prédio para o estado e disponi-bilizou a professora. Os moradores da comunida-de construíram um anexo – um galpão de esteira

coberto de palha – com três salas de aula, sepa-radas por plásticos, para atender à demanda dosalunos, que tinham que se deslocar para Buera-rema para estudar o 2º segmento do Ensino Fun-damental (da 5ª à 8ª série). Hoje isso acontececom os alunos do Ensino Médio.

A escola possui 19 professores. Destes, 04 con-cluíram Formação Geral, 04 estão fazendo o Ma-gistério Indígena, tendo já concluído o Ensino Médio,e 12 estão cursando Ensino Superior: Licenciatu-ras em História, Biologia, Letras e Pedagogia, e oscursos de Administração e Serviço Social. Os pro-fessores que cursam Serviço Social e Biologia fo-ram aprovados e cursarão também a LicenciaturaIntercultural em Educação Escolar Indígena (LI-CEEI), programa oferecido pela Universidade doEstado da Bahia (UNEB) em parceria com o MEC.Desde a criação da escola, alguns professores par-ticiparam também de três cursos de formação con-tinuada oferecidos pela SEC.

A situação, hoje, é de superlotação, pois as sa-las de aula existentes já não comportam a quanti-dade de alunos. Em frente a esse anexo, foiconstruído, também com recursos da comunidade,um prédio constituído de um banheiro e três salas:uma da Direção, Vice-Direção e CoordenaçãoPedagógica, uma sala de informática com quatrocomputadores e outra sala que funciona como bi-blioteca, sala de estudos e de vídeo. A escola pos-sui também uma creche construída com recursosda comunidade e do estado, para os filhos das pro-fessoras, e realiza o atendimento educacional para300 alunos. Destes, cerca de 50 são não índios.

A escola funciona nos três turnos. Os turnosmatutino e vespertino oferecem desde a Educa-ção Infantil até a 5ª série e no noturno funciona da6ª até a 8ª série e a Educação de Jovens e Adultos,com uma sala de alfabetização. Nos três turnos,funciona uma sala de “reforço escolar”. A “salade reforço” é frequentada não só pelos alunos quetêm dificuldades, mas, também, pelos alunos quejá superaram esta necessidade, permanecendo naescola no turno oposto ao que estudam.

Em todos os turnos, é feito um intervalo de 15minutos para a merenda. O cardápio é variado,utilizando, na maior parte das vezes, os produtosagrícolas da própria comunidade, como aipim, ba-nana da prata e da terra, farinha, pipoca, usados

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também como ingredientes de mingaus, sopas, bei-jus e sucos de frutas variadas. Através da AI-TPS, a escola compra os produtos da comunidadee isto traz um movimento financeiro importantepara os moradores. Esse modo de gerenciar osrecursos financeiros da escola é ambicionado poroutras comunidades indígenas e citado na SEC eem outros órgãos como um exemplo de auto-sus-tentabilidade. Como eles têm uma boa produçãoagrícola, esta é uma oportunidade para escoar oque é produzido pelos vários grupos organizadosde produção.

A escola da aldeia contribui de forma efetivapara a melhoria da qualidade de vida dos morado-res da comunidade em vários aspectos. A comprado excedente de produção pelo programa da me-renda escolar possibilita a entrada de recursos re-gulares na comunidade e soluciona, em parte, osproblemas de escoamento da produção, dificulta-do pelos custos de transporte e também pelo pre-conceito dos comerciantes da cidade em relaçãoaos índios. Deve-se ainda considerar os saláriosdos professores e funcionários da escola no pro-cesso de capitalização comunitária, em um con-texto de circulação restrita de dinheiro. Além disso,a merenda elaborada com os produtos locais ga-rante melhor qualidade na alimentação dos alunos,evitando o consumo de produtos industrializados,como acontece em muitas outras localidades, res-peitando assim os costumes e os hábitos alimenta-res locais. Não é sem razão que D. Maria exclama:“a escola daqui, minha filha, é uma mãe!”.

Existe uma relação de respeito e preservaçãodos recursos naturais entre os habitantes da Serrado Padeiro, que é observada na atitude reflexiva ede amor a seu espaço geográfico. Em consonân-cia com essa característica, eles participaram comsingular interesse do projeto “Agroecologia em ter-ras indígenas Serra do Padeiro – Povo TupinambáBuerarema-Ba”10, que objetivou capacitar e difun-dir uma proposta de agricultura sob base agroeco-lógica, introduzindo e aperfeiçoando técnicassocialmente apropriadas, com ênfase nos sistemastradicionais, no manejo sustentável dos recursosnaturais e na valorização do trabalho das mulheresnas atividades agrícolas. Além do desenvolvimen-to de atividades que fortaleceram e incentivaramações produtivas e auto-sustentáveis na comuni-

dade, o projeto formou agentes multiplicadores paraatuarem nas demais comunidades Tupinambá, con-tribuindo na implementação e execução do projetoaprovado pela Carteira Indígena do Ministério doMeio Ambiente (MMA), que resultou na constru-ção de uma Casa de Farinha.

Inserida no bioma da Mata Atlântica, a Serrado Padeiro abriga parcela significativa da diversi-dade biológica do país e, graças à atuação organi-zada da comunidade, vem impedindo a presençade atividade agropecuária e extrativista ilegal quedegradou parte substancial da vegetação originaldeste bioma, devido ao uso agrícola intensivo e àextração indevida de madeira. A partir de 2005, acomunidade retomou o controle de áreas extensasdo território, reocupando fazendas abandonadas ousemi-abandonadas, provocando a antecipação denegociações entre a FUNAI e os ocupantes ante-riores dessas áreas, posto que o território Tupinambáestá em fase de regularização fundiária.

A atuação da AITSP e da escola se confundecom o ideal de preservação da Serra do Padeiro.Assim, na mata, não é permitida a retirada de ma-deira, a menos que seja para utilização doméstica,e a colocação de armadilhas de caça é feita só noentorno das roças. Muitas vezes, a retirada damadeira permitida e a coleta de certas plantas sãoprecedidas de rituais. A Associação teve comoações o encaminhamento de processos contra fa-zendeiros locais -– que praticavam o desmatamen-to, provocavam a poluição do rio Una – e aorganização das retomadas.

O processo de reconhecimento étnico produziutransformações significativas na vida dos morado-res da Serra. A mobilização coletiva exigida pelaluta por esse reconhecimento certamente fortale-ceu os laços comunitários. A organização da vidaescolar contribuiu para ampliar o horizonte econô-mico e político, proporcionando melhorias na vidadas famílias, ampliando as possibilidades de gan-

10 O projeto aconteceu de setembro de 2006 a junho de 2007,contando com a parceria do Ministério do DesenvolvimentoAgrário (MDA), Associação Nacional de Ação Indigenista(ANAÍ-Ba) e AITPS. Em uma das oficinas se confirmou o reco-nhecimento do saber tradicional e cultural sobre a influêncialunar nos cultivos dos índios da Aldeia Tupinambá da Serra doPadeiro, resultando na elaboração de um calendário lunar daspráticas agrícolas na Aldeia (Revista Brasileira de Agroecologia,v. 2. n. 2, out 2007).

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hos financeiros, representados, como dissemos,pelos recursos oriundos da merenda escolar e pe-los salários dos professores e funcionários. A es-cola assume um papel de instrumento de resistênciae revitalização cultural e, também, de provedorade recursos materiais. Uma fala de uma das pro-fessoras resume a articulação entre projeto étnico,reconhecimento e educação escolar.

Depois do reconhecimento a gente teve toda aousadia, né, de poder mostrar nossa cultura, depoder... aí... que a gente teve mais segurança dosnossos objetivos. Porque a luta, na verdade osencantados, chegou e avisou que a nossa luta ti-nha começado, que as nossas terra iam voltar pranossas mão. Aquela promessa que, sempre aquelahistória, o mito que o pessoal chama mito, quetodos falavam que a terra ia voltar pra nossasmãos e aqui que ia ter um estrondo na Serra, umestrondo no mar e que ia voar água aqui na Ser-ra. Aí, na verdade foi essa história, foi o reconhe-cimento dos povos Tupinambá, os encantados fa-lavam de uma forma, a gente ficava sem saber oque era, tinha que traduzir isso. Aí foi o nossoreconhecimento que veio aqui. E aí, Valdeliceconvidou a gente pra participar e nós fomos. Ba-bau ajuntou um monte de meninas, foram 12 me-ninas e aí a gente desceu pra Olivença e partici-pamos de algumas reuniões lá e lá tava iniciandoa luta, já tinha um trabalho da escola, né, queeles já tinham, que a verdade a luta de um povo,do reconhecimento da luta do povo Tupinambálá de Olivença a partir da educação.” (Entrevistaconcedida pela professora Célia Tupinambá, em16.09.2008 – grifos nossos)

Neste sentido, a escola indígena da Serrado Padeiro parece corresponder ao ideal preco-nizado pelo RCNEEI de articular-se com o proje-to comunitário. O que torna esta articulaçãoconsistente e vigorosa é o fato do conjunto dasatividades comunitárias em torno da organizaçãoétnica possibilitar a construção efetiva de uma co-munidade educacional. Revela-se uma espécie desimbiose entre esses processos que são simultâ-neos.

Veremos em seguida como as práticas pedagó-gicas são desenvolvidas e que conteúdos curricu-lares são ministrados, permitindo-nos analisar quemodalidades de diálogo intercultural (COLLET,2006) são estabelecidos no cotidiano da escola.

Educação diferenciada e práticas pe-dagógicas: recortes etnográficos

A descrição e o exame de algumas aulas e fa-las dos professores podem nos permitir uma visãode como se constroem as definições locais de edu-cação diferenciada. Embora careçam de uma mai-or densidade etnográfica, os fragmentos aquiapresentados de práticas e discursos evidenciam oprocesso de elaboração de uma práxis pedagógicaque procura destacar os aspectos considerados “in-dígenas” dos conteúdos curriculares. A relação comas crenças e práticas religiosas é elemento estru-turante dessa práxis. De certa maneira, a educa-ção escolar indígena retoma os temas primordiaisdos processos de afirmação étnica em curso nasúltimas décadas, particularmente entre os povosindígenas do Nordeste.

Os Tupinambá da Serra do Padeiro se desta-cam pela sua forte ligação espiritual, como assina-lamos acima. Assim, não é de estranhar que asaulas na escola sejam regularmente abertas comrezas e cantos. O discurso de uma das professo-ras enfatiza a dimensão espiritual, declarando ex-plicitamente que há uma orientação por parte dosencantados.

... acho que o diferenciado em nossa escola estábem presente, porque o diferenciado vem desde osencantados. Os encantados é que nos orientam oque tem que fazer na escola. Quando a escola tácom algum problema, a gente vai lá, pede pra opajé olhar como é que tá a situação da escola,tudo bem envolvido com os encantado, o que elesfalam, o que eles orientam a escola no dia a diacom os alunos. (Entrevista concedida pela profes-sora Magna Daiane em 16.09.2008)

O relato da situação que apresentaremos a se-guir ilustra o que estamos dizendo. Em um dosmomentos do trabalho de campo, observamos queas professoras chamaram as crianças antes dedarem inicio às aulas, para fazerem um Toré nocentro da aldeia, em volta da roda do fogo11. Algu-mas crianças estavam com a camisa da escola,

11 Essa roda é um símbolo religioso em forma de elipse, feitocom pedras, onde acendem uma fogueira em seu interior, emsituações ritualísticas específicas e, em sua volta, dançam oToré. Esta prática acontece todas as manhãs e à tarde antes dasaulas, não sendo acendida, neste caso, a fogueira.

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outras não. As professoras também usavam umacamisa da escola na qual se lê “Professor Indíge-na”. Uma delas usava a tanga de embiriba – ves-tuário geralmente utilizado em rituais. D. Maria,esposa do pajé, estava presente. Em círculo, e demãos dadas rezaram, 03 “Pai-Nosso” e 03 “Ave-Maria”, depois se abaixaram e cantaram:

Trabalha, trabalha oh trabalha guerreiro (Bis)Trabalha guerreiro, nesta aldeia real (Bis)O céu é altoO mar é fundo (Bis)Tem que chamar por DeusPra andar no mundo (Bis)

Depois se levantaram e cantaram:

Minha cama é de varaForrada de cansançãoEu me chamo é TupinambáE eu não nego minha nação (Bis)

A professora Magnólia então pergunta se algu-ma criança quer puxar algum outro canto e elesrespondem com a seguinte canção:

A maré encheuTornou vazarDe longe, muito longeEu avistei aráMinha palhoçaCoberta de sapéMeu arco e minha flechaMinha cabaça de mé [sic]

Ela pergunta, mais uma vez, se alguém quer“puxar mais algum canto”. Como não houve mani-festação alguma, ela convidou os alunos para suassalas de aula. Dirigimo-nos à sala da 4ª série, onde18 alunos estavam sentados em círculo, fazendo aleitura do livro “Índio na visão dos índios Tupinam-bá12”. Todos os alunos possuem esse livro que foidistribuído aos alunos para ser lido no final de se-mana. A professora estava lendo a página 63, naqual aparecia a palavra URUCUM, então ela per-guntou se alguém conhecia o urucum. Ela comen-ta que na Serra do Padeiro se usa mais o jenipapopara fazer as pinturas corporais. As crianças inte-ragem, comentam e, em seguida, a palavra CAI-TITU é citada no texto – ela pergunta o que é.Alguns fazem a leitura no livro da palavra. A pro-fessora pergunta se alguém já viu um caititu e al-

gumas crianças dizem que sim. A professora ex-plica que antigamente os Tupinambá tinham “mui-tas terras, muitas caças e caçavam muito. Elestiravam o dente do caititu para fazer colar”. A pro-fessora pergunta se todos têm um lápis e pede, emseguida, pra marcar um X na palavra caititu.

Depois, pede para passar para a página 64 dolivro. Ela então pergunta qual é a próxima palavraem destaque. Os alunos respondem: PATI e quan-do ela pergunta o que é, eles lêem no livro a res-posta. A seguir, a professora explica o significadoda palavra13. Em seguida, pede pra marcar um Xna palavra TUCANO e as crianças lêem a pala-vra a seu pedido. Pergunta se alguém já viu umtucano. Um aluno diz que só viu uma vez, quandotinha 7 anos. Ela explica que “o tucano é muitolindo, mas não se pode matá-lo, pois está em extin-ção”. Em cada palavra lida, ela enfatiza que temorigem tupi. Pede para marcar um X nas palavrasdestacadas. A professora solicita então um traba-lho e coloca no quadro: TRABALHO DE HIS-TÓRIA – para as crianças copiarem. Ela distribuiuma folha de papel, e pediu para os alunos coloca-rem o cabeçalho na folha e as palavras destaca-das do livro; pede para desenharem os seresreferentes às palavras e escreverem algo sobrecada uma delas. Este trabalho foi exposto posteri-ormente na parede da sala-de-aula.

Esta micro-cena do cotidiano da escola evi-dencia alguns elementos interessantes para análi-se. Temos aí um material didático contextualizado,que descreve fatos da história local e destaca ele-mentos emblemáticos de um modo de vida indíge-na: animais, sementes e frutos para pintura corporaletc. A prática pedagógica parece associar uma vi-são mecanicista de educação: repetição; assinalarcom um x; escrita de palavras; com um diálogoreflexivo a indicar uma orientação mais crítica.

12 Esse livro foi elaborado com a colaboração dos próprios pro-fessores, sob a coordenação de uma outra professora Tupinambáda aldeia de Olivença. O livro trata da história da comunidade ede sua cultura, destacando alguns personagens importantes, comoo “caboclo Marcelino”, líder de uma revolta indígena. Os textoscontidos no livro foram escritos a partir das narrativas orais dacomunidade, são curtos e em uma linguagem coloquial para faci-litar e estimular a leitura das crianças e dos jovens.13 O pati é um tipo de palmeira cuja madeira frequentemente éutilizada pelos índios da região para confeccionar lanças,bordunas, flechas e outros artefatos.

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Vemos que não é o conteúdo do texto lido que éanalisado e discutido pela professora, mas os vo-cábulos de origem Tupi que são enfatizados. Oscantos de Toré e as rezas no início das aulas for-mam uma composição cultural presente entre osíndios no Nordeste. A devoção católica se articulaa invocações típicas da Umbanda, mas especifica-das pela indianidade que emana das referências à“aldeia real”, ao “arco”, à “flecha”, do atributoguerreiro e, é claro, do próprio etnônimo tupinam-bá. No relato de campo, observou-se que essasatividades prendem a atenção das crianças.

Outras aulas ministradas por professoras queestão passando pela formação do magistério indí-gena se orientam pelo mesmo tipo de práxis peda-gógica, ressaltando aspectos do que se considerasejam elementos culturais específicos da comuni-dade. Em uma turma de 2ª série, com 16 alunosdispostos em filas nas carteiras, a professora colo-cou no quadro as palavras: maracá, sarabatana [sic],burduna [sic], semente, colar, pena, natureza, fle-cha, cocar, tanga, brinco, pintura, pulseira, cultura,toré. Estas palavras foram sugeridas pelas crian-ças. A professora explicou que as palavras escri-tas no quadro fazem parte da cultura. Ela escreveno quadro a palavra CULTURA. A seguir ela per-guntou aos alunos sobre a origem das palavras(maracá, pena etc.). Depois de algumas tentati-vas, os alunos respondem: da NATUREZA. A pro-fessora pediu então para formarem grupos de três,entregou o dicionário e pediu para os alunos pro-curarem no dicionário as palavras que estavam noquadro.

Uma classe da 1ª série foi também observada.A professora colocou algumas palavras no quadropara os alunos copiarem: flecha, faca, fofa, foca,fubá, fome e disse aos alunos: leiam as palavras ecirculem a letra f. A seguir ela saiu da sala, os alu-nos estavam muito dispersos, conversavam e nãodavam muita atenção. Copiaram do quadro e con-versavam muito. A professora voltou, mas os alu-nos estavam muito inquietos, levantavam esentavam nas cadeiras. Sem muito pulso, ela pedeconstantemente para os alunos se sentarem e fi-carem em silêncio. Alguns meninos conversam, nãoparam e cantam parte de cânticos: “pisa ligeiro,pisa devagar, quem tem medo de (...), não assanhamangangá”, “minha palhoça, coberta de sapé...”.

Os alunos quase que ignoram a professora, quetambém é um tanto alheia, indiferente a tudo. Elasolicita que eles soletrem devagar e separem assílabas. Os alunos continuam conversando e can-tando. A professora senta, não olha o trabalho dosalunos e também não é solicitada por eles. Quandoalgum aluno chega até sua carteira, ela manda sen-tar. A conversa não pára. Ela chama então um alu-no para responder o exercício no quadro: separara sílaba de todas as palavras.

Vemos, de um lado, uma aula que mobiliza umléxico indígena sugerido pelas crianças e que pa-rece manter a atenção e, aparentemente, motivaratividades tradicionais como consulta ao dicionárioe proporcionar um diálogo em torno do significadodas palavras. Por outro lado, a aula de portuguêscom exercícios de separação de sílabas e marca-ção de letras produz dispersão. Obviamente, nosegundo caso o estilo pessoal da professora e seudesinteresse têm um papel fundamental neste qua-dro. O trabalho com palavras sugeridas pelas cri-anças no primeiro caso, e o fato delas seremdestacadamente indígenas, apontam para umamaior mobilização pedagógica em torno das “coi-sas” da cultura.

Não estamos sequer discutindo o aparente pa-radoxo antropológico das crianças terem sugeridoque as palavras se originam da natureza e isto nãoter sido alvo de uma reflexão. Poderíamos pensarque a etapa de aprendizagem em que se encon-tram não permitiria este tipo de discussão, mas tam-bém é possível que a própria professora não se dêconta da questão. Ademais, levando-se em consi-deração a associação lógica entre os vocábulos ea natureza e uma articulação ideológica resultanteda idéia de que a cultura indígena é “essencial-mente natural”. A este propósito, as reflexões deSampaio (2006) sobre a noção de “resgate”, quetem orientado as idéias dos professores indígenas,particularmente no Nordeste, sobre a educaçãodiferenciada, parecem pertinentes para entenderesse tipo de perspectiva. Retomaremos esta ques-tão nas conclusões, mas podemos adiantar que háuma tendência a “naturalizar” a cultura como algoque se retoma de maneira substantiva para alémda sua dinâmica histórica, reflexo por seu turno daprópria ideologia dominante projetada sobre os ín-dios como seres sem história.

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Em outra disciplina, pode-se perceber essa ar-ticulação entre alguns elementos culturais indíge-nas, novamente as palavras, e os conteúdosuniversais. As aulas de informática ocorrem nostrês turnos, numa sala junto à Secretaria. Em umdos momentos de observação, as crianças esta-vam aprendendo a fazer uma tabela com um exem-plo que o professor desenhou no quadro. Aspalavras que ele deu para formar a tabela eramtodas indígenas e no computador estava tocandotambém, um CD com músicas indígenas.

Diferenciado é uma maneira que eles possam apren-der, que possam desenvolver a leitura e ao mesmotempo possam estar aprendendo os costumes queforam perdendo, as tradições da nossa aldeia. Esseé o nosso trabalho diferenciado, tentar mostrar umpouco os dois lados. (Entrevista concedida peloprofessor de informática em 16.09.2008)

Mais uma vez, aparece nos discursos o sentidoda educação diferenciada como associação entreferramentas universais e aprendizado de costumese tradições, apropriação cultural esta que se con-cretizaria pela simples utilização de palavras deorigem indígena. O esforço parece válido no senti-do de produzir um uso culturalmente especificadode um elemento de organização, no caso uma ta-bela de um programa de computador. Claro queobservações mais sistemáticas sobre essas aulaspoderiam fornecer um quadro mais denso paraanalisarmos a modalidade de diálogo que se de-senvolve em um campo de estudos como este, jáque se trata de articular novas tecnologias e co-nhecimentos tradicionais. Contudo, a fala do pro-fessor remete ao aprendizado no âmbito da escolade costumes que se perderam e aí temos a evoca-ção, novamente, da idéia de resgate, sugerindo tam-bém o “perigo” assinalado por D’Angelis (2006)de tornar a escola o instrumento fundamental parao ensino da cultura.

Eu trabalhava com educação diferenciada e aí euvi uma coisa muito interessante lá que era valori-zar o conhecimento dos mais velhos. Aí eu fiqueifeliz, fiquei assim encantada, porque eu falei: nos-sa... mainha, sempre a gente sentava na beirada dofogo, mainha sempre contava aquelas histórias,todo mundo sentava em volta, ficava aquilo ali esempre muitas coisas que a gente aprende assimna memória ou coisa assim, são os mais velhos que

falavam e quando a gente vai pra cidade estudar,chega lá é tudo o oposto daquilo. Que os mais ve-lhos, nossas mães, nossos pais, nossos tios, avós,ensinaram pra gente. Eles não valorizam essa ques-tão, a escola lá fora, não valorizam isso, só falammais da violência, da questão da sociedade lá fora,ensinam pra poder ir embora, que seus pais e suasmães não valorizam isso, que estão errados. Entãoquando eu ouvi aquela proposta de ter uma edu-cação diferenciada aonde iam valorizar os nossoscostumes, que o que nós produzimos, o que nossospais contam, nossas histórias, os mitos, que tudoisso tinha um valor pra gente, eu fiquei muito feliz.Então, eu falei: nossa, então vai ser maravilhoso,todo mundo lá, então meu pai e minha mãe é umgrande professor, é mais professor do que eu que tôestudando pra me formar uma professora.” (Entre-vista concedida pela professora Célia Tupinambá,em 16.09.2008)

O reconhecimento e a valorização dos conhe-cimentos da comunidade, particularmente, dos maisvelhos, é uma das especificidades marcantes nadefinição da educação diferenciada. Ela permite aincorporação de saberes acumulados na experiên-cia social de sujeitos que servem de referência navida coletiva, permite denominá-los de professo-res. A participação desses sujeitos nas ações cur-riculares se faz em espaços e tempos bemdemarcados do cotidiano escolar.

As atividades pedagógicas particularmentemobilizadoras são aquelas que levam os alunos parafora da sala de aula e os fazem trabalhar com co-nhecimentos sobre o meio ambiente e a agricultu-ra. Há um conjunto de projetos que proporcionamo desenvolvimento dessas atividades. Um delesiniciou-se a partir do Magistério Indígena em tornodo reflorestamento de áreas degradadas pelas ati-vidades agropecuárias nas terras retomadas. In-centivaram-se os alunos a recolherem, junto aosparentes, sementes e mudas de plantas nativas paraserem plantadas, preferencialmente, nas nascen-tes e margens do rio14. Certamente este curso pro-porciona um ambiente de formação que estimulaas atividades docentes, tendo em vista seus con-

14 Essas informações encontram-se no depoimento da professo-ra Gilcélia, conhecida como Miana, no âmbito do relato deexperiências do Fórum de Educação Escolar Indígena, ocorridoem Pau Brasil/Aldeia Caramuru Paraguaçu, no período de 15 a17.10.2009.

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teúdos específicos e a sua dimensão de encontro,possibilitando a discussão entre professores comdiferentes experiências. Outro projeto desenvolvi-do articula a aula de técnicas agrícolas com a roçacomunitária que fornece alimentos para a escola.Essa atividade pedagógica conta com a participa-ção de outras pessoas da comunidade.

Em uma das aulas de técnicas agrícolas obser-vadas, os adultos cavaram alguns buracos e as cri-anças colocaram um pouco de adubo orgânico emcada um deles e depois as sementes. Era D. Ma-ria quem comandava esta aula. Chamava as cri-anças, explicava como se faz as leiras, dizia a todos:“aqui é o lugar de perguntar, aqui é o lugar deter dúvida”. D. Maria assume aí o papel de edu-cadora, como conhecedora dos segredos da agri-cultura e líder comunitária. Sr. Evanilson, que ajudoua cortar paus e folhas de palmeira para cobrir asleiras, disse: “Ah! Eu gostei tanto de vocês, vimaqui; assim eu também aprendo e a gente temagora o que conversar hoje”.

É comum ouvir as crianças brincarem cantan-do os cânticos do Toré. Ouve-se a todo o tempo:

Óia a cobra cainanaÓia a volta que ela dá (bis)Ainé, ainéÓia a volta que ela dá (bis)

As evocações rituais e religiosas parecem cons-tantes na vida escolar dos alunos da Serra do Pa-deiro. Observamos que, na secretaria da escola,há uma gamelinha com sal grosso, alho e arruda.Célia informou que botou lá para “limpar o ambi-ente”, por que estava “muito pesado”. Na sala deMagnólia também tinha um grande jarro com flo-res e folhas verdes, em um canto no chão. Na por-ta da secretaria tinha também duas folhas de“espada de Ogum”, presas em forma de cruz. Se-gundo ela foi orientação dos encantados, pois es-tes procedimentos os livrariam das más energias.

Em alguns cadernos de alunos, registramos queos exercícios eram: ditado, pesquisar no dicionárioo significado das palavras, separação de sílabas.Em matemática, muita conta. Em história, o direitodos índios e as palavras união e força são recor-rentes.

Esses registros etnográficos esparsos impõemprudência a nossas interpretações. Há uma profu-

sa interpenetração entre projeto étnico e educa-ção escolar. O processo de formação dos própriosprofessores ainda está em curso e a luta políticada comunidade realiza-se em várias frentes. Emseguida, tentamos apontar algumas pistas para umentendimento, mesmo que provisório, desta expe-riência e suas possibilidades de contribuição parauma reflexão mais ampla sobre a educação esco-lar indígena.

Considerações finais: escola diferen-ciada e identidade étnica

Comecemos por evocar um fato básico, a idéiade interculturalidade aplicada à experiência edu-cacional dos Tupinambá e, provavelmente, aos ou-tros povos indígenas no Nordeste, incide sobreum terreno diferenciado de diálogo. Trata-se defazer dialogar conhecimentos escolares univer-sais com conteúdos e saberes culturais em pro-cesso de reconstrução, pelo menos no queconcerne àqueles elementos ou as dimensões re-putados ou definidos como genuinamente indíge-nas. Melhor dizendo, trata-se de lidar não comentidades culturais bem delimitadas com uma cos-mologia, organização social, língua etc., mas comcomunidades com séculos de contato e de “mes-tiçagem cultural” e também de invisibilidade his-tórica, que recobram seu protagonismo a partirdas idéias de cultura elaboradas e impostas pelopólo dominante da sociedade.

A ideologia dominante consagrou um modelode índio emoldurado pelo sentido da perda, amar-rando aí nesta teia a necessidade de resgate, comobem analisa Sampaio (2006). Entretanto, é preci-so considerar o diálogo intercultural forjado tam-bém com outros agentes, que mobilizam defini-ções de cultura relativizadoras, como é o casodos antropólogos. Paralelo a isto, há a apropria-ção política do conceito de cultura por agentesmissionários e militantes de organizações não go-vernamentais e pelo próprio movimento indígenano Nordeste. Vimos que o trabalho de militânciaem torno da alfabetização na zona rural da re-gião, onde estão inseridos os Tupinambá, foi res-ponsável pelo processo de organização étnica doconjunto deste povo.

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Marcos Luciano Lopes Messeder; Sonja Mara Mota Ferreira

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A simbiose entre construção identitária e a es-cola se apresenta neste contexto de forma insti-gante. A luta política presente no cotidiano dacomunidade, com frequentes mobilizações para re-tomadas, as atividades agrícolas comunitárias, osfestivais e rituais propiciam uma intensa pedago-gia da etnicidade como construção permanente. Omodelo de escola em elaboração produz um senti-do ambíguo e ambivalente, de reprodução de ensi-no tradicional e veículo de transmissão deconteúdos culturais próprios, que coloca a escolaem outro lugar e, ao mesmo tempo, a reforça comoespaço de reprodução cultural. Atentemos, contu-do, que ela não totaliza a cultura, ela obedece, aomesmo tempo, a um projeto comunitário, ela incor-pora encantos, danças, magia e ciência indígena eocidental. Mas o aprendizado/projeto de ser Tupi-nambá se realiza em espaço mais amplo da lutapolítica, das retomadas, dos rituais católicos, indí-genas e mistos, nas práticas dos conhecimentos

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agrícolas, botânicos, farmacológicos, espirituais, naextensa rede de relações de solidariedade econô-mica e política, nas diversas formas de sociabilida-de ou socialidade (VIEGAS, 2003).

Esta experiência não está concluída, ela é,como toda experiência sócio-cultural, um proces-so, um fazer histórico cada vez mais complexo,posto forjar-se em uma reflexividade crescente,fruto de um diálogo com a formação do magisté-rio indígena, os encontros interétnicos proporcio-nados pelas associações indígenas nacionais eregionais, o curso de licenciatura indígena que orase inicia, com as produções acadêmicas e práti-cas que se fazem sobre eles e das quais eles seapropriam, e da própria interlocução com antro-pólogos, outros pesquisadores e militantes da cau-sa indígena. Estamos certamente diante de umfenômeno novo, complexo e rico, a elaboraçãode uma educação indígena pelos índios em pro-cesso de reconstrução de si mesmos.

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A educação escolar entre os tupinambá da serra do padeiro: reflexões sobre a prática docente e o projeto comunitário

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Recebido em 22.11.09Aprovado em 29.11.09

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ESTUDOS

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A SEDUÇÃO DESPEDAÇADA:REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DE LEITURA DE ALUNOSDO ENSINO MÉDIO DE UMA ESCOLA PÚBLICA CARIOCA

Lucelena Ferreira *

* Doutora em Letras e doutora em Educação pela PUC-Rio. Pesquisadora do GEALE / PUC-Rio (Grupo de Estudos emAntropologia da Leitura e da Escrita). Professora Adjunta do Mestrado em Educação da UNESA (Universidade Estácio de Sá/ RJ). Endereço para correspondência: Av. Presidente Vargas, 642/22º andar, Centro – 20071-001 Rio de Janeiro/RJ. E-mail:[email protected].

RESUMOA pesquisa apresentada neste artigo tem como objetivo buscar indícios das representações epráticas de leitura de alunos de uma escola pública carioca, cursando o terceiro ano do ensinomédio. O foco da investigação é a influência do ensino de língua e literatura na relação dosalunos com a leitura. A abordagem de representações utilizada tomou por base os trabalhosde Roger Chartier, na perspectiva da História Cultural, que as identifica como esquemasconstruídos de classificação e julgamento que organizam a apreensão do mundo. Os fenômenoseducacionais foram observados com o apoio de conceitos e estratégias do campoantropológico. Para isto, foi realizado um trabalho de campo etnográfico. A análise dos dadosmostrou que, no que diz respeito à maioria dos alunos, a professora não consegue atingir suameta de contribuir para o letramento literário dos alunos.

Palavras-chave: Letramento – Representações – Práticas

ABSTRACTTORNED SEDUCTION: READING REPRESENTATIONS ANDPRACTICES IN PUBLIC HIGH SCHOOL STUDENTS FROM RIO DEJANEIRO

This paper aims to understand the representations and practices of reading of concludingstudents in a Rio de Janeiro public high school. The focus of research is how teaching oflanguage and literature influences the relationship of students with reading. The concept ofrepresentations used is based on Roger Charter’s ideas, who identified them as classificationand judgment schemes that organize world understanding. Data was collected throughfieldwork. Data analysis showed that, for most students, teacher do not achieve its goal ofcontributing to the literacy of students.

Keywords: Literacy – Representations – Practices

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A sedução despedaçada: representações e práticas de leitura de alunos do ensino médio de uma escola pública carioca

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Este artigo origina-se de uma pesquisa acercada relação de alunos do último ano do ensino mé-dio de uma escola pública carioca com a leitura,evidenciada em práticas e representações, tendocomo vetor o papel formador da escola neste cam-po. Considerando a visão do aluno, pretendeu-sedesvendar o que lê o universo discente pesquisadoe, além disso, compreender quando, como, para quee por que lê (ou não lê), com destaque para asinfluências do ensino de língua/literatura nesse pro-cesso. Na perspectiva adotada, a etnografia figuracomo opção teórico-metodológica. Os fenômenoseducacionais foram observados com o apoio deconceitos e estratégias do campo antropológico. Oque define a etnografia, para Geertz, é o esforçointelectual empreendido para a elaboração de uma“descrição densa” sobre a cultura estudada, com-preendida como texto ou “teias de significados”que devem ser interpretados. O autor propõe ummodelo de análise cultural hermenêutico. Assim,investiu-se em um olhar relativizador, tendo comometa o abandono dos preconceitos etnocêntricos,com vistas a um descentramento que permita per-ceber a ótica do outro.

Questões teórico-metodológicasA abordagem de representações utilizada to-

mou por base os trabalhos de Roger Chartier, queas identifica como esquemas construídos de clas-sificação e julgamento que organizam a apreensãodo mundo real, sendo sempre determinadas pelosinteresses dos grupos que as geram. As represen-tações se estabelecem como disposições estáveise partilhadas, sendo matrizes de discursos e práti-cas. Chartier pensa as representações sempre in-seridas em um campo concorrencial. O autorfrancês destaca que é necessário considerar aslutas de representação na sociedade. Para ele, “aslutas de representações têm tanta importância comoas lutas econômicas para compreender os meca-nismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta im-por, a sua concepção do mundo social, os valoresque são os seus, e o seu domínio” (1988, p.17).Para esta pesquisa, interessa perceber harmoniase contrastes das representações e práticas de lei-tura dos alunos em relação à cultura escolar.

Vale ressaltar que não se pode pensar em re-presentações e práticas de leitura hoje sem levarem conta a “revolução do texto eletrônico”, que,segundo Chartier, é mais importante do que a deGutemberg. Com o advento do texto eletrônico,modificam-se, além da técnica de reprodução, asestruturas e o suporte em que o texto é oferecido.Transformam-se os modos de organização, de es-trutura, de consulta ao texto. Surge o “leitor nave-gador”, que se arrisca na imaterialidade dos“arquipélagos textuais sem margens nem limites”(CHARTIER, 1999a, p.101). Ao estudar a leituracomo ato concreto, pelo prisma da História Cultu-ral da leitura, Chartier considera os leitores empíri-cos e as “redes de práticas que organizam, históricae socialmente, os modos diferenciados de acessoaos textos” (1988, p.122). O autor lança olhar so-bre os gestos, objetos, posturas em torno da leitu-ra, considerando que estes mudam com tempos elugares. Perceber de que forma o grupo estudadorepresenta e pratica a leitura no bojo dessas trans-formações historicamente tão recentes (e ainda emcurso), que promovem a convivência de suportese modos de ler tão distintos, é um desafio destapesquisa.

Para o historiador francês, leitura é prática cul-tural que envolve apropriação, invenção, produçãode significados a partir da interação entre leitor etexto. Além disso, há que se considerar o fato deque todo indivíduo está inserido em um contextosocial. Ele também é expressão do coletivo. A sin-gularidade do leitor é perpassada pela influênciada(s) comunidade(s) da(s) qual(is) faz parte, porseus modelos e normas. Para que se compreendao processo de construção de significados, torna-sefundamental considerar, além das competências epráticas do leitor, as formas discursivas e materi-ais do texto, o tipo de suporte e, ainda, os códigos econvenções que regem as práticas da(s)comunidade(s) de leitores à(s) qual(is) pertencecada leitor singular (CHARTIER, 1988). Ao inves-tigar esta comunidade escolar de leitores, importadesvendar os valores, as normas e regras que gui-am as práticas legitimadas no âmbito da relaçãocom a leitura. Quais os constrangimentos que im-põem à leitura? Quais são os textos e autores pa-radigmáticos? De que maneira são apropriados

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pelos alunos? Quais são as posturas, os gestos, ossuportes legitimados? Pretende-se, ainda, refletirsobre os efeitos que a participação nesta comuni-dade escolar de leitores tem para a auto-represen-tação que os alunos elaboram. Para Chartier, aidentidade social se constrói a partir de represen-tações e práticas.

O trabalho de campo, de viés etnográfico, in-cluiu contato direto e prolongado com os sujeitosestudados, em contexto específico (aulas de Lín-gua Portuguesa), em um processo de observaçãoparticipante. A observação deu-se em visitas re-gulares (acompanhando dois ou três tempos de aulapor semana), realizadas durante um semestre leti-vo em 2007 e meio semestre letivo em 2008. Fo-ram observadas duas turmas de terceiro ano doensino médio (uma em cada período de observa-ção), durante as aulas de Língua Portuguesa mi-nistradas pela professora Luana1. Para coleta dedados, o trabalho de campo incluiu, ainda, a reali-zação de entrevistas semi-estruturadas com os alu-nos e com a professora.

Segundo Geertz (1989, p. 75), a ideia mais im-portante da antropologia do tipo “do ponto de vistado nativo” (praticada nesta pesquisa) é a de que osentido é socialmente construído e cabe ao etnó-grafo interpretá-lo. Nesta perspectiva, opera-secom a desnaturalização dos fenômenos, compre-endendo-os como histórica e socialmente constru-ídos. Gilberto Velho (2004) afirma que os grupos(e os indivíduos dentro dos grupos), em interação,estão em constante processo de “negociação darealidade”, que se configura em possibilidade denegociação de interpretações.

Notícias do campoComo critério de seleção da escola para a pes-

quisa, priorizou-se uma instituição que, à primeiravista, não inviabilizasse, ao menos no que tange ainfra-estrutura e qualidade de formação docente,um trabalho pedagógico de formação de leitoresvoltado para o letramento, com condições de pro-porcionar uma escolarização adequada da literatu-ra (SOARES, 2006). De acordo com MagdaSoares, letramento seria “o estado ou condiçãode indivíduos ou de grupos sociais de sociedades

letradas que exercem efetivamente as práticassociais de leitura e de escrita” (2002, p.3), ou seja,que estão aptos a atender às demandas sociaisnesse campo, incluindo, obviamente, as demandasno âmbito profissional. Cabe ressaltar que há di-versos níveis de letramento - ou letramentos2. Oconceito de letrado deve considerar as competên-cias diferenciais relativas aos vários tipos de letra-mentos (digital, literário, funcional etc.). Para estapesquisa, interessa particularmente refletir sobre aproposta de letramento literário da professora. Anoção de letramento literário vem sendo desenvol-vida com ênfase pelo GPELL – Grupo de Pesqui-sa do Letramento Literário do CEALE/UFMG eestá ligada à formação do leitor de literatura e suaapropriação da tradição literária (CORRÊA; RI-BEIRO, 2004). Como explica Paiva:

Interessam ao Grupo as práticas sociais de leitura eescrita presentes em instâncias sociais de circula-ção de livros, no interior e entre as quais os sujeitosinteragem em situações de comunicação. Tal abran-gência justifica a escolha do termo letramento, con-siderado como expressão que sintetiza de forma maiscondizente o processo social e individual de apro-priação do mundo da escrita pelos leitores, inclusi-ve professores e alunos (2004, p.45).

A escola pública estadual em questão localiza-se em uma área nobre da zona sul carioca e ofere-ce o ensino médio regular. No exame do Enem de2008, essa instituição obteve resultados acima damédia das escolas do estado do Rio de Janeiro.Em termos de infra-estrutura, a escola conta comum prédio de três andares e dezenove salas de aulano total, além de possuir pátio externo, biblioteca,sala de computadores, sala de vídeo, laboratóriode química e física, refeitório.

De acordo com o Projeto Político Pedagógicoda escola pesquisada, a quase totalidade do corpodiscente é originária de comunidades de baixa ren-da. Nas entrevistas que realizei, confirma-se que

1 Os nomes dos sujeitos pesquisados serão aqui substituídos pornomes fictícios.2 “Propõe-se o uso do plural letramentos para enfatizar a ideiade que diferentes tecnologias de escrita geram diferentes estadosou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias, em suaspráticas de leitura e escrita: diferentes espaços de escrita e dife-rentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escritaresultam em diferentes letramentos” (SOARES, 2002, p.10).

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lá também moram suas famílias, pais, irmãos, na-morados. De acordo com o PPP, o perfil dos alu-nos é de jovens que sofrem cotidianamente com aviolência nas comunidades onde residem, têm cer-ta vulnerabilidade – gravidez precoce, drogas edoenças sexualmente transmissíveis –, muitas ve-zes relacionada a desajustes familiares (que inclu-em desemprego, alcoolismo, separação dos paisetc.). O perfil socioeconômico dominante entre osalunos foi percebido a partir de dados objetivoscolhidos nas entrevistas, tais como local de resi-dência (residem em favelas e comunidades de bai-xa renda), tipo de profissão e escolaridade dos pais(sempre reduzida, nenhum com curso superior),necessidade de trabalhar para complementar a ren-da familiar (relatada por alguns) etc. Em relação àcor, a quase totalidade dos alunos se definiu comtermos como: ‘pardo’, ‘típico brasileiro’, ‘entrebranco e negro’, ‘mestiço’. A média de idade dogrupo é dezoito anos. Dos dezenove alunos entre-vistados na turma de 2007, onze são homens (58%)e oito são mulheres (42%).

A professora pesquisada tem cinquenta anos,olhos e cabelos castanhos e pele branca, mora nazona sul do Rio de Janeiro (em bairro nobre), pertoda escola onde trabalha, possuiu carro e se auto-classifica como membro da ‘classe média-média’.É formada em Letras e possui mestrado na área.Luana vem de família leitora: pai, mãe e irmãosgostam de ler. Segundo ela, isto influenciou positi-vamente sua relação com a leitura. Além disso,estudou em um colégio de freiras que valorizava oestudo de línguas e literatura. Assim, escapa aoperfil do professor não-leitor.

Luana se auto-classifica como leitora. Ela des-creve seu perfil como o de uma leitora ‘eclética’,‘trilíngue’, sem preconceitos em relação a gêne-ros, títulos ou autores. Lê clássicos e best sellers.Mas, ao lado do apregoado ecletismo, a professora,no discurso e nas suas práticas escolares, valoriza,sobretudo, a cultura letrada. Os autores e livros clás-sicos da literatura, considerados por ela uma leitura‘mais sofisticada’, são uma meta assumida de leitu-ra a atingir com seus alunos. Ela afirma que procu-ra criar estratégias didáticas para despertar ointeresse dos alunos por esse tipo de texto.

Ao se buscar indícios de sua concepção de lei-tura, percebe-se que esta se vincula predominan-

temente a livros e literatura e parece centrar-se naideia de auto-descoberta:

... muito cedo a gente entendeu que aquilo ali [aleitura] era alguma coisa para você trocar, você vi-ajar, né? Não nesse sentido de ‘ah, você viaja...’,não é essa bobeira assim não, mas é uma viagem, àsvezes muito dentro de você mesmo, mas com a par-ceria de alguém… Eu acho que é isso.

Quando fala de suas metas como professorade língua e literatura, que têm como centro o estí-mulo à leitura, Luana ressalta a utilidade práticadesta última no mundo do trabalho, destacando suaimportância fundamental para ‘qualquer ocupa-ção profissional’. Uma preocupação central queela assume é contribuir com a inserção profissio-nal de seus alunos, sendo o desenvolvimento dacapacidade de leitura dos estudantes um dos ca-minhos para isto. Assim, sua representação de lei-tura, ao lado da idéia de ‘viagem dentro de vocêmesmo’, da dimensão de “descoberta de si”(DAUSTER; FERREIRA; TIBAU, 2009), incluiuma dimensão utilitária, ligada à contribuição prá-tica que a leitura poderá trazer para o exercício dacidadania, para a vida profissional dos seus alunose, portanto, para a melhoria de sua condição soci-oeconômica. Pode-se considerar que Luana per-segue dois objetivos básicos como professora delíngua e literatura: contribuir para o letramento lite-rário (CORRÊA; RIBEIRO, 2004) e para o letra-mento funcional (PAULINO, 2004) de seus alunos,este último ligado à leitura e compreensão de tex-tos básicos para a vida diária do cidadão.

De acordo com Luana, o ensino tradicional, quecomeça pelo Barroco (‘esse caminhar histórico’),‘afasta definitivamente da literatura os alunos’.Ela afirma: ‘há textos que seriam mais, é... to-cantes’. Assim, para o ensino da literatura, a pro-fessora defende o trabalho por ‘temas’, preferenci-almente ligados à realidade dos estudantes. Suameta é partir do conhecimento desses jovens, de‘centros de interesse’ deles, e oferecer ‘algonovo’. No caso pesquisado, este ‘novo’ está asso-ciado preferencialmente a textos e autores clássi-cos, legitimados pela cultura letrada.

A respeito dos alunos, a professora acredita quenão dão ‘nenhum significado’ ao curso de litera-tura, porque ‘a escola é um reduto de precon-

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ceitos’ e ‘eles acham que arte não é importan-te’. Na opinião dela, isto é reflexo da desvaloriza-ção da arte que ela percebe na sociedade atual. Arepresentação que tem dos seus alunos, partilhadacom os outros professores de LP, centra-se naimagem de não-leitores.

Em relação ao suporte valorizado e utilizado peladocente em aula, o livro de literatura (ou, na maiorparte das vezes, trechos digitados e xerocados) temimportância central – em coerência com as influ-ências de sua história familiar e com a sua forma-ção. Esses textos impressos ainda assumem totalpredominância em relação aos textos eletrônicosem sala de aula, contrariando as práticas maisconstantes de leitura extra-classe que fazem parteda cultura destes jovens.

Nesse contexto de formação de leitores, em queo discurso de autoridade (CHARTIER, 1999b, p.113)veicula, predominantemente, valores da cultura le-trada, vale questionar: como se dá o processo denegociação de significados em torno da leitura e daliteratura na comunidade de leitores observada?

Os alunos e a leituraAo realizar as entrevistas semi-estruturadas, em

tom de conversa informal com os alunos, busqueiconhecer suas representações de leitura e literatu-ra, as práticas cotidianas e os gestos efetivos deleitura (ou ausência destes), dentro e para além doque é legitimado pela comunidade escolar de leito-res. Procurei perceber como, do ponto de vistadeles, a escola influencia sua relação com a leitu-ra. As análises vão se centrar na turma de 2007.2,já que entrevistei todos os alunos. Por vezes, voume referir às entrevistas feitas na segunda turma(2008.1), mas apenas para complementar as refle-xões sobre o primeiro grupo.

Pude observar fortes recorrências nesse grupoem relação aos significados que atribuem à leiturae à literatura. Para os jovens entrevistados, a re-presentação de leitura ainda se apresenta forte-mente vinculada ao livro e à literatura clássica, oque sugere uma assimilação do que é valorizado/legitimado pela cultura escolar estudada, em espe-cial pela professora Luana, por meio de suas esco-lhas em sala de aula. Na representação de literatura

expressa pelo grupo, ressoa constantemente a as-sociação ao cânone.

Os alunos que afirmam não gostar de ler livrosde literatura tiveram dificuldade para citar um au-tor ou obra de sua preferência. Quando pergunta-dos a respeito, ou disseram não ter autor ou livrode preferência ou afirmaram não se lembrar denenhum. Quando perguntei que tipo de texto ouautor associam à literatura, Carlos Drummond deAndrade foi o único citado por esse sub-grupo (nomomento das entrevistas com a turma de 2007.2,alguns textos de Drummond estavam sendo utili-zados pela professora em sala de aula). Ressalta-se, aqui, a influência da cultura escolar narepresentação de literatura destes alunos.

No sub-grupo que afirma ler literatura para alémdas demandas escolares, como é de se esperar,houve maior quantidade e variedade de citação deautores e obras preferidos, alguns deles clássicos,ou seja, legitimados pela cultura letrada. Tambémforam mencionados “gêneros” de texto que gos-tam de ler, como aventura, mistério, poesia, contoseróticos, biografia. Os autores citados normalmentevinham acompanhados de referência a um (oumais) romance específico, como: Machado de As-sis (Dom Casmurro), Graciliano Ramos (VidasSecas), Jorge Amado (Capitães de Areia), Aloí-sio Azevedo (O Cortiço). Luciano mencionou queo próximo livro que gostaria de ler é Grande Ser-tão: Veredas. O aluno Antônio citou o poeta Viní-cius de Moraes como seu autor preferido. Entreos rapazes, a escritora de romances policiais Aga-tha Christie teve duas citações. Harry Potter fi-gurou como livro preferido de dois alunos (eAlexandre disse que é o próximo que ele vai ler).Entre os best sellers, também foram citados OCódigo da Vinci, O Caçador de Pipas e Cidadede Deus. A jovem Ana gosta de ler livros religio-sos, contos eróticos e poesia. Diante dessa diver-sidade de leituras, recorro ao pensamento de AracyEvangelista, quando afirma que os professoresdeveriam considerar e trazer para a sala de aulapreferências de leitura de seus alunos, ressaltandoque as fronteiras entre o literário e o não literáriosão cada vez mais fluidas:

... quanto às obras de leitura literária a serem pro-postas em sala de aula e na biblioteca, seria neces-

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sário, antes, conhecer os interesses de leitura dosalunos, para com esses interesses dialogar. Não bas-ta propor. O terreno mais propício para novas pro-postas é o diálogo sobre os gostos e preferênciasdos leitores, pois é destes que essas nascerão. Asreflexões e as análises que serão feitas na escolaabrangerão as potencialidades artístico-literárias,tanto das obras preferidas pelos alunos quanto da-quelas sugeridas pela escola, para ampliação dohorizonte de leituras. (2001, p.9).

Não verifiquei a estratégia sugerida por Evan-gelista nas aulas de Luana.

É de se notar que, quando os alunos falam deseus gostos e preferências de leitura, mesclamlivros/autores clássicos e não clássicos. Porém,quando perguntei aos alunos desse sub-grupo quetipo de textos e autores associam à literatura, fo-ram citados apenas autores canônicos, legitima-dos pela cultura escolar: Machado de Assis, CarlosDrummond de Andrade, Graciliano Ramos, Cecí-lia Meireles. Também nesse sub-grupo, predomi-na uma representação de literatura ligada aosclássicos.

Perguntei aos alunos se veem algum sentido emestudar literatura na escola: ao contrário do queacredita Luana, quase todos (das duas turmas) dis-seram que sim (com apenas duas exceções). Ameu pedido, eles justificaram sua resposta. Os ar-gumentos que mobilizaram ajudam a melhor com-preender a representação de literatura dos alunos.Quando abordam a importância da leitura de lite-ratura, seus argumentos passam pelo aprendizadoda língua portuguesa que a literatura propicia, pas-sando pelo aumento de vocabulário, melhora nacapacidade de expressão oral e escrita, conheci-mento da norma culta etc. Aqui se percebe, pordiversas vezes, a influência/assimilação de argu-mentação da professora. Marcos, que considera aleitura ‘uma coisa bem clássica’, acredita que ‘ébom’ aprender literatura na escola e afirma: ‘se agente lê mais a gente acaba falando melhor. Aprofessora fala isso no curso, mas é verdade. Esão poucas vezes que a gente lê, se a gente lêmais, a gente acaba notando assim uma certadiferença na hora de escrever ou de falar’.Cláudia também se refere ao discurso dominanteda professora: ‘mas eu não leio... Eu acho... Ébom... A professora está sempre falando que é

bom. Além do conhecimento que você adquire,tem aquela... As palavras difíceis que você nãoconhece, que você acaba conhecendo, vocêacaba pesquisando, querendo saber o que éaquilo’. Ilana afirma que gosta de ler livros deliteratura por conta da forma como os autores es-crevem, que, segundo ela, ‘é diferente, não é tãocoloquial como a nossa, é culta’.

Um argumento utilizado de forma recorrentepelos alunos para justificar por que veem sentidoem estudar literatura na escola refere-se à possi-bilidade de conhecimento de ‘outras culturas’(aqui referem-se à cultura de outros povos) e de‘outras épocas’ que a literatura enseja. SegundoAna, ‘literatura leva a cultura pra pessoa (...)Livros que conta história, parte da vida de ou-tras pessoas, por exemplo do Nordeste, a cul-tura deles lá, norte, sul, oeste, leste’. Para Luciano,literatura significa ‘viagem a algumas épocas queinfelizmente eu não pude viver, então um modode não fugir, mas pelo menos viajar por outraépocas e outros contextos que eu não vivi’. Parao grupo estudado, com frequência, a ideia de ‘pas-sado’ aparece ligada à literatura, confirmando aassociação desta com obras e autores clássicos.

Ao tratar da importância do ensino da literaturana escola, outra referência frequente dos alunosfoi o ganho de ‘cultura’ (esta categoria nativa pa-rece, em alguns momentos, estar ligada à ideia deerudição), ‘sabedoria’, ‘conhecimento’ que a li-teratura proporciona. Para Daniela, o sentido deaprender literatura na escola é ‘você ser uma pes-soa mais culta, saber de tudo um pouco’. Parao aluno Flávio, ler literatura deixa a pessoa ‘maisinteligente’, com ‘mais conhecimento’.

Para alguns alunos, a leitura de literatura estáassociada ao aumento do potencial crítico do leitor,como afirma Luciano: ‘Você passa a ter a sua...a analisar as informações de uma forma maispessoal, você não passa só observar o queaquela mídia te passa, você passa a questio-nar’. Diego, que afirma que deixou de ler por con-ta da televisão, defende o ensino da literatura naescola: ‘Às vezes a televisão não dá a busca dosaber total. A mídia controla alguma coisa, olivro é a coisa mais fiel do conhecimento detudo, busca saber o que é a verdade’. Pergunteiao aluno Silvio se ele vê algum significado em apren-

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der literatura, e ele respondeu: ‘Sim. Eu acreditoque, quanto mais informação tem, mais culturatem, melhor você pode fazer. E você fica menospreso naquela, naquilo que é mídia, que a In-ternet viu, que os jornais põem na sua cabe-ça’. A fala dos alunos revela desconfiança emrelação às informações veiculadas na mídia, bemcomo a legitimação do objeto livro.

Uma constante no grupo é o sentido de utilida-de que atribuem à leitura de literatura, fartamenteargumentado (mesmo entre os que não leem estetipo de texto). Sendo assim, pode-se concluir que osub-grupo majoritário que não gosta de ler literatu-ra possui uma representação de leitura literáriaantitética, que reúne aspectos bons e ruins: é ‘im-portante’ e ‘útil’, mas ‘cansa’ e não dá prazer(por isso não fazem). Como exemplo, destaco oscomentários a seguir, entre tantos outros similares,que expressam a relação dos alunos com a leituraliterária e sintetizam o aspecto mencionado: ‘Eunão gosto e é importante’ (Cláudia), ‘Necessá-ria e eu não leio muito por preguiça’ (Marcos).Por considerarem a leitura de literatura importan-te, alguns se incomodam com o fato de não gosta-rem de ler, o que leva a aluna Lívia a expressar,sintetizando: ‘Eu gostaria de gostar de ler’. Die-go segue a mesma linha: ‘Às vezes gostaria dedespertar o interesse meu por ler’.

Para além da lógica utilitária, alguns alunos queafirmam gostar de ler livros de literatura demons-tram perceber outras possibilidades e característi-cas desse tipo de texto. Alexandre acredita que aliteratura ajuda o leitor a entender seus sentimen-tos a partir do contato com os personagens, alémde provocar uma ‘viagem’ sensorial. Ao compa-rar um livro com um filme baseado nele, o alunoafirma:

Acho que o interessante do livro (...) é que ele con-ta com mais detalhe, então, assim, ele faz você via-jar, que conta o cheiro do lugar que você entrou,descreve o que tinha na parede. Coisas que você,não lendo o livro, às vezes passa imperceptível.Conta como o personagem se sentiu e faz também,tipo, algumas coisas que eu sinto, vamos dizer, umador física que eu não sei descrever, lendo o livro eufalo ‘ah, então é assim’. Então você aprende a des-crever as coisas, então eu acho isso interessantetambém.

Silvio também se refere ao auto-conhecimentoque a literatura possibilita, remetendo à dimensãoda “descoberta de si” (DAUSTER; FERREIRA;TIBAU, 2009) também citada pela professoraLuana ao falar de sua relação com este tipo detexto:

Eu acho que... a leitura expõe certos conceitos quevocê tinha dentro de você, mas que você, tipo, nãoos ouvia, porque achava anormal. Por exemplo, emtextos de Jorge Amado, ele fala sobre sexo e xinga-mento. E se você viu isso numa cultura, no texto quenão está acostumado a ler, você até se surpreende:‘caramba, olha o que esse cara escreveu!’.

Luciano ressalta o poder da literatura de esti-mular a imaginação do leitor. Quando perguntei aFlávio se ele vê algum sentido em estudar literatu-ra na escola, respondeu que sim, já que a literatura‘desenvolve mais a criatividade do aluno’. Aofalar de poesia, este aluno demonstra compreen-der que a literatura traz inovação para a lingua-gem, fugindo aos chavões e estereótipos. Dealguma forma, o jovem parece perceber o jogo decriação contra a repetição que a linguagem literá-ria enseja, apontado por tantos autores que pen-sam a literatura, como Barthes (1996), Calvino(1995), Eco (1991) etc.

Nego acha que poesia é só aquela paradinha ‘Ah...te amo, te dou um beijo e uma flor’, essas paradasassim, mas não é... É algo que você não consegueexpressar, você tenta expressar através de palavras,entendeu? Acho isso muito legal! (...) Não é aquelaparada que se torna repetitivo no dia a dia, tipo, é...‘A flor no meu jardim’, essas paradas assim.

Evidenciam-se algumas características predo-minantes na representação de leitor do grupo ob-servado (nas duas turmas): leitor é aquele que lêliteratura (associada com mais frequência ao su-porte livro), que gosta de ler literatura e o faz paraalém das demandas escolares. A representação deleitor também inclui a ideia de ler com frequên-cia. Para cumprir o quesito frequência, pareceaceitável, especialmente para os alunos que se con-sideram leitores, que sejam levados em conta tam-bém outros tipos de texto, como sites de Internet,jornais e revistas. O aluno Pedro, que se classificacomo leitor, afirma: ‘Eu leio todo dia algumacoisa’. Ele conta que lê jornal diariamente e livros

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uma vez por mês. Luciano, que se considera leitore lê até no ônibus, também mostra sua preocupa-ção com a frequencia: ‘acho que poderia lermais, mas, dentro do possível, sim, eu leio’. Umtrecho da fala de Daniela ilustra a posição que pre-valece no grupo dos que não se consideram leito-res: leitor seria aquele que ‘lê um livro e depoisemenda em outro. Eu não sou essa pessoa’.Dante reforça esta ideia: ‘Não me considero lei-tor assim de pegar livro, de ter interesse emacabar o livro, de pegar outro, estar sempre nabiblioteca procurando alguma coisa’.

Perguntei a cada jovem se ele/ela se conside-ra leitor/leitora. Aproximadamente quarenta porcento dos entrevistados se classificam destaforma. Deste total, cerca de sessenta por centosão do sexo masculino. Este resultado pode serconsiderado surpreendente se contrastado à re-presentação que a professora possui de seus alu-nos (como não-leitores). No grupo estudado, todosos alunos que se consideram leitores afirmam quegostam de ler literatura, ou seja, cumprem um as-pecto central da representação de leitor predomi-nante entre esses jovens. Chamou minha atençãoo aluno Silvio, que é leitor de literatura clássica,gosta de ler livros, mas não se considera leitor,por conta da frequência com que lê (que, paraele, não é satisfatória). Essa posição ilustra a im-portância deste item na representação de leitordo grupo. O estudante justifica sua auto-repre-sentação: ‘Um leitor é uma pessoa que lê maisassiduamente, sabe? Que está lendo ali dire-to. Eu não, só leio às vezes, eu sou um leitorde final de semana, só’. Quando esse sub-gru-po qualifica sua relação com a literatura, utilizaverbos como: ‘gosto’, ‘amo’, ‘adoro’, formandoum campo semântico que revela ligação prazero-sa e afetiva com o objeto.

Para o grupo pesquisado (incluindo as duas tur-mas), a princípio, se o aluno não gosta de ler oque é valorizado pelo discurso de autoridade daprofessora, então não se considera leitor. Assim,a auto-representação dominante – não-leitor – pa-rece estar ligada ao fato de que as leituras quedespertam o interesse da maioria não coincidemcom os autores, as obras, os suportes, as práticaslegitimadas e valorizadas pela comunidade esco-lar de leitores. Como exemplo, cito a aluna Lívia.

Ela não gosta de ler literatura, mas revela que lêsites de jornal e outros na Internet e também ‘re-vista informativa, principalmente na área eco-nômica, essas coisas de geografia e história,pra poder ficar por dentro’. Ainda assim, nãose considera leitora:

Entrevistador: Você se considera uma leitora?Aluna: Não.Entrevistador: O que seria uma leitora pra você?Aluna: Uma pessoa que lê. (risos)Entrevistador: Você não lê?Aluna: Eu leio, mas uma leitora seria a pessoa quelê, tipo, não sei explicar. Uma pessoa que dependeda leitura, que está sempre se informando e adqui-rindo conhecimentos a partir da leitura e, geral-mente, eu não, não adquiro conhecimentos a partirda leitura, mas assim a partir do dia a dia, do con-vívio com as pessoas.

Porém, dentre os que não se consideram leito-res, a maioria fez ressalvas ao se classificar destaforma, enfatizando que não lê literatura, mas lêoutras coisas. As ressalvas parecem sugerir umanegociação de significados (VELHO, 2004) a par-tir do discurso de autoridade da professora, de pre-dominante associação entre leitor e leitura literária.Como exemplo, podemos citar a auto-representa-ção do aluno Diego, que se diz ‘viciado’ em jornal,navega diariamente na Internet (lendo sites espe-cializados em arquitetura, dentre outros), lê revis-tas, tem uma mini-biblioteca em casa (de livrosdidáticos e outros), mas não gosta de literatura:

Entrevistador: Você se considera um leitor?Diego: Não, não.Entrevistador: O que significa ser leitor para você?Diego: Só se for jornal e revista, assim, sim. Leitorde conhecimento de autores, não sou.

Dante também procura fazer ressalvas ao seauto-classificar: ‘Não me considero leitor assimde pegar livro, de ter interesse em acabar o li-vro, de pegar outro, estar sempre na bibliotecaprocurando alguma coisa, mas em questão ge-ral de ler de alguma notícia. Gosto também deler muita coisa de história, assim, história doBrasil.’ O aluno Marcos, que não lê literatura, maslê jornal ‘quatro vezes por semana’ e navega pelaInternet com frequência, assim responde quandopergunto se ele se considera leitor: ‘Não. Acho

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que, sei lá, eu leio um jornal mais pra me infor-mar, agora, olhando deste ponto de vista, agente vê assim, leitura é realmente, é uma coisabem clássica, mas é, não é tão assim, tem jor-nal, tem revista, eu não leio muita revista, leiomais jornal.’

Para além das práticas valorizadas pela comu-nidade escolar de leitores estudada, os alunos en-trevistados leem (e escrevem) quase que diaria-mente. O suporte mais citado foi o computador,que a maioria possui em casa. Os poucos que nãopossuem revelam ter acesso frequente, seja emlan houses, no trabalho ou em casa de amigos. Oacesso à Internet é intenso. Para muitos, diário. Oaluno Marcos, que não se classifica como leitor,assim expressa sua percepção sobre as práticasde leitura dos jovens em geral: ‘Para mim, todojovem faz isso, é uma leitura mais na Internet,blogs, sei lá, páginas na Internet, deste tipo. Émuito difícil de encontrar alguém lendo um li-vro ou revista, coisa do tipo’. Do grupo estuda-do, todos demonstram algum nível de letramentodigital (SOARES, 2002). Suas práticas de leitura eescrita extra-escolares mais constantes passampelas mudanças que a tela gera nas formas de in-teração entre escritor e leitor, entre escritor e tex-to, entre leitor e texto (a partir do hipertexto, dapossibilidade de comunicação on line etc.). ParaMagda Soares,

... a hipótese é de que essas mudanças tenham con-sequências sociais, cognitivas e discursivas, e es-tejam, assim, configurando um letramento digital,isto é, um certo estado ou condição que adquiremos que se apropriam da nova tecnologia digital eexercem práticas de leitura e de escrita na tela, dife-rente do estado ou condição – do letramento – dosque exercem práticas de leitura e escrita no papel.(2002, p.151)

Quando pergunto ao aluno Diego com que fre-quência usa o computador, ele assim responde:‘Todo dia, todo dia, diariamente uso o compu-tador não só para comunicar com meus ami-gos, mas também pra escola, pesquisa geral-mente utiliza muito computador e também naparte da leitura, de ler artigos de outros paí-ses, que eu leio, às vezes’. Sites informativos(atendendo a assuntos de interesses diversos dos

alunos, como literatura, arquitetura, história, fute-bol, e/ou demandas escolares), e-mail, Orkut, MSNe outros programas de relacionamento são os maisutilizados pelos jovens entrevistados. A leitura dejornal on line também foi citada por quatro alunosno grupo de 2007. Um só aluno mencionou o aces-so a sites de jogos. Dante, que não se consideraleitor, conta que utiliza com frequência Orkut, MSNe faz pesquisas no Google para a escola. Ele afir-ma que usa o computador ‘toda hora’: ‘Na Inter-net eu leio bastante’. O uso do computador éunanimemente uma referência prazerosa para osjovens pesquisados.

A pedagogia da literatura da professora não in-clui o computador como suporte de leitura. Suaproposta central para estimular a leitura – de partirde centros de interesse dos alunos para ofereceralgo novo – concentra-se na busca de temas deinteresse dos estudantes e não privilegia a questãodos suportes e tipos de texto que povoam seu dia-a-dia. Dessa forma, não são levadas em conta asnovas maneiras de ler e escrever associadas aotexto eletrônico, que integram práticas cotidianassignificativas desses jovens, constituindo-se emvalor, fonte de interesse, formação, prazer e novassociabilidades. A partir de sua pesquisa com ado-lescentes internautas, Freitas conclui que:

... a Internet está possibilitando que os adolescen-tes leiam/escrevam mais. Passam horas diante datela e, manuseando o teclado, entregam-se a umaleitura/escrita teclada criativa (criando códigos apro-priados ao novo suporte), espontânea, livre, em tem-po real e interativa. Além destes aspectos comuni-cativos, percebemos que a navegação pelos sitesda Internet pode também estar possibilitando umnovo encontro com a literatura. (2003, p.160)

Assim, a pedagogia da literatura de Luana dei-xa de lado a prática mais frequente e prazerosa deleitura dos alunos no seu cotidiano: a leitura digital.

Para Freitas (2003), a Internet abre novos epromissores caminhos de aproximação com a lite-ratura e lhe dedica um enorme espaço. Crescemos sites dedicados à literatura, com bases de da-dos atualizadas sobre obras, autores, gêneros, mo-vimentos literários etc., facilmente acessáveis emprogramas de busca (como Google e Yahoo). Narede, encontram-se grupos de pesquisa e fóruns

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de debate sobre autores e obras, ampliando possi-bilidades de interação entre internautas (FREITAS,2003, p.160). Outro caminho aberto pela rede vir-tual é o de divulgação de textos produzidos peloleitor navegador, por meio de blogs, Orkut, sitespessoais ou especializados, dentre outros. Já exis-tem sites onde é possível obter obras literárias naíntegra e gratuitamente, facilitando o acesso dascamadas populares à literatura.

Para os alunos entrevistados nesta pesquisa, olivro ainda é o suporte mais associado à literatura(a ponto de ser utilizado como metonímia), mas ocomputador já permeia a relação de vários delescom o texto literário. A estudante Ilana lê e coleci-ona poemas que descobre pela Internet. Diego, aofalar sobre o que significa literatura para ele, afir-ma: ‘A primeira coisa que vem na minha cabe-ça é livro, mas acho que literatura abrangemuito além do livro, porque você pode buscarliteratura em computador, jornal, biblioteca’.

Para Freitas, é na Internet que o texto conse-gue assumir toda a sua potencialidade por meio dohipertexto, que promove novas formas de leitura/escrita, “estabelecendo nós, ligações com outrostextos e autores, criando linhas variadas e inter-pretativas, (...) concedendo a este (ao texto) umadinamicidade que se concretiza na possibilidade dese realizarem diferentes percursos” (2003, p.162).Com isso, o leitor navegador pode elaborar umaedição particular, exercitando a montagem de umcaleidoscópio textual em movimento de criaçãopessoal. Assim, Freitas destaca a atitude interati-va, exploratória e lúdica favorecida pela leitura natela, ressaltando que o leitor navegador torna-semuito mais ativo do que o “leitor em papel” (2003,p.163). Além dos recursos já citados em torno dotexto eletrônico, ainda há a “oportunidade de seassociar às informações o recurso da imagem emesmo da animação e do som” (FREITAS, 2003,p.161). Maria Teresa Freitas (2003) defende queas transformações tecnológicas podem ser aliadasdo livro e da literatura, contribuindo para o letra-mento literário. Sem pretensão de esgotar o as-sunto, desejo apenas ressaltar que leitura e escritaencontram terreno fértil na Internet. Se o profes-sor inclui entre seus objetivos despertar o interes-se dos jovens pela leitura, por que ignorar as

possibilidades abertas pela Internet e o apelo queesta exerce sobre os alunos?

A leitura de jornais e revistas também faz partedo cotidiano de quase todos os entrevistados (comexceção das alunas Áurea e Daniela). Todos osque afirmam ler literatura também leem jornal (im-presso ou on line), normalmente em casa, com fre-qüência, no mínimo semanal. Seis alunos afirmaramler revistas, sendo estas de temas variados: modae saúde, revistas ‘informativas, na área econô-mica’, biologia, ‘revista científica, de tecnologia,de arquitetura, de conhecimento de outros paí-ses’.

Vimos que aproximadamente sessenta por centodos entrevistados não leem literatura para além dasdemandas escolares. Perguntei por que não o fa-zem. Dentre as respostas mais frequentes, estão:‘preguiça’, ‘cansaço’, falta de paciência, falta detempo. Se levarmos em conta que esses jovensefetuam cotidianamente outras leituras (para alémdas obrigações escolares), essas justificativas pa-recem não dar conta. Como exemplo, cito o alunoDiego, que passa ‘horas no computador’, temum ‘vício’ em jornal (‘tenho lido muito revista,revista cientifica, revista de tecnologia, de ar-quitetura, de conhecimento de outros países,diariamente eu leio jornal, tenho um vício porjornal’), mas, quando pergunto sobre a leitura deliteratura, ele afirma:

Ah, às vezes a professora cita, indica pra gente al-guns livros de literatura assim, com que ela está tra-balhando na escola. Fora dela, eu não leio muitolivro também pela falta de tempo. Eu gostaria muitode ler, antigamente eu lia muito, quando eu tinha umpouco mais de tempo, porque agora eu fico envolvi-do com essa parada de curso, escola, pré-vestibular,então, tempo para gente é muito reduzido.

O professor-escritor Daniel Pennac esclarece:“A partir do momento em que se coloca o proble-ma do tempo para ler, é porque a vontade não estálá” (1995, p.119). Na mesma turma, poderia citarexemplo oposto ao de Diego: o de alunos que tra-balham e estudam ou têm dupla jornada de estudo(escola e curso preparatório para vestibular), masdedicam tempo à leitura de literatura, mesmo queseja no ônibus. Em outro momento, Diego esclare-ce o que talvez seja a principal razão de seu afas-

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tamento dos livros: ‘Não sinto tanto prazer emler [livros]’. Aqui vale destacar uma recorrência:nesse grupo, só lê literatura (fora das demandasescolares) quem consegue obter prazer com estaprática. Todo o sentido de utilidade atribuído à lite-ratura não é suficiente para motivar esse tipo deleitura. Entre os que não se consideram leitores, afalta de gosto/prazer em ler literatura é uma cons-tante.

Menos de 1/3 dos alunos (31%) consideram quea escola influencia positivamente seu gosto/inte-resse pela leitura. Vale ressaltar que todos os estu-dantes pesquisados estudam na sua atual escoladesde o primeiro ano do ensino médio, com exce-ção de uma aluna. Considerando dois grupos dealunos – os que se consideram leitores e os quenão se consideram –, este percentual divide-se daseguinte forma: dentre os que se consideram leito-res, aproximadamente sessenta por cento achamque a escola consegue estimular a leitura. Dentreos que não se consideram leitores, todos (com umaexceção) concordam que escola não consegueestimular gosto/interesse pela leitura, como no casode Dante: ‘entrei [na escola] sem muita vontadede pegar livro, essas coisas, e continuo sem’.Do sub-grupo que não se classifica como leitor,quase a metade (45%) afirma receber influênciaspositivas na família, por conviver com mãe e/oupai leitor. Entre os que se consideram leitores, to-dos (com uma exceção) têm seu gosto/interessepela leitura também estimulado pela família. Pode-mos concluir, portanto, que, no grupo estudado,quando a família não incentiva a leitura, a escola,sozinha, não consegue cumprir esse papel.

Dentre os textos lidos pelos pais dos entrevis-tados, os mais citados são jornal impresso e livros(‘literaturas antigas’, ‘best sellers’, ‘textos reli-giosos’, ‘todo tipo de livro’). O exemplo dadopelos pais leitores mostra-se determinante paraestimular a leitura dos alunos. Lívia, que tem umpai leitor, sintetiza: ‘Ele lê muita, muita coisa,bastante, para ter bastante informação. E euacabo aprendendo com ele, entendeu? Eu achoque, você vendo as pessoas lendo, você acabalendo’.

Considerando o grupo como um todo, quasesetenta por cento dos entrevistados afirmam que a

escola não incentivou seu gosto/interesse pela lei-tura. Das entrevistas, podemos destacar as seguin-tes unidades recorrentes no campo semântico deleitura escolar (relacionada aos livros e à literatu-ra), que fornecem indícios da relação que os alu-nos estabelecem com esse tipo de leitura:‘trabalho’, ‘prova’, ‘cobrança’, ‘chato’, ‘pre-conceito’, ‘obrigação’.

Considerações finaisA escola tem obrigação de formar leitores, se

entendemos a leitura e a escrita como direitos so-ciais (KRAMER, 2004). Aqui não trato apenas dealfabetização, mas de letramentos, considerando oliterário, o funcional, o digital, enfim, todas as di-mensões que hoje o conformam e ajudam a prepa-rar o indivíduo para a vida na sociedade atual. Waltydefende a escolarização da literatura: “muitas ve-zes a escola é o único lugar em que a criança temacesso ao livro e ao texto literário. Numa socieda-de empobrecida, a escola não pode prescindir deseu papel de divulgação dos bens simbólicos quecirculam fora dela, mas para poucos” (2006, p. 54).No caso dos estudantes pesquisados, não pode-mos considerar que a escola seja o único lugarpossível de contato com o texto literário, já que,com o computador, todos têm acesso à “bibliotecaeletrônica” (CHARTIER, 1999b), que se constituitambém desse tipo de texto. Porém, esses alunosnão possuem uma trajetória de socialização e soci-abilidades que tenha favorecido intimidade e apro-ximação com a literatura. Em seu meio familiar, deuma forma geral, não prevalece a leitura literária.Nos diversos grupos sociais em que esses jovenstransitam, para além da família e da escola, socia-bilidades em torno da literatura são praticamenteinexistentes. Pela visão da maioria dos entrevista-dos, a escola não consegue incentivar e desenvol-ver o gosto pela leitura. Portanto, são jovens compoucas oportunidades de iniciação como leitoresliterários, por condições de vida e familiares.

Ao se transformar a literatura em “saber esco-lar” (SOARES, 2006, p.21), o cuidado volta-se paraa construção de uma pedagogia que não afaste osalunos dela, tratando o texto literário como simplespretexto para o ensino de conteúdos programáticos,

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sempre com cobrança posterior. Entendo que umaescolarização adequada da literatura deveria privi-legiar um estudo do texto “no sentido da exploraçãode seus elementos literários” (PAULINO, 2004,p.7), permitindo ao leitor usufruir da experiênciaestética (EVANGELISTA, 2001, p.5), construindomemórias prazerosas de contato com o texto quefavoreçam o desenvolvimento do gosto pela leituraliterária. Na visão do jovem Luciano, sua professo-ra tenta, mas não consegue despertar ‘paixão’ pelaliteratura nos alunos. A análise dos dados mostrouque, no que diz respeito à maioria dos estudantes,Luana não logra atingir sua meta relativa ao letra-mento literário. As práticas escolares de leitura não

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vêm se constituindo em práticas significativas paraa maior parte do grupo pesquisado. Por outro lado,as práticas cotidianas e prazerosas dos alunos, comdestaque para as novas formas de leitura e escritadigitais, não são levadas em conta pela professora,que perde a Internet e o texto eletrônico como alia-dos para promover aproximação com a literatura.Assim, pode-se concluir que, na comunidade de lei-tores estudada, a pedagogia da literatura adotadapor Luana não favoreceu, no período observado, a“vivência do literário” (SOARES, 2006, p.42) pelosjovens em sala de aula, associada à fruição do esté-tico, à emoção, diversão e prazer que o texto literá-rio pode propiciar.

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 201-213, jan./jun. 2010

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Recebido em 29.04.09Aprovado em 20.06.09

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PRÁTICAS CULTURAIS JUVENIS:MÁSCARAS CONTEMPORÂNEAS

Ana Carolina Pereira da Silva Rosa *Helenice Mirabelli Cassino Ferreira **

Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald ***

* Mestranda do Programa de Pós–Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. Profª de EnsinoFundamental da Escola Parque. Endereço para correspondência: Rua Marquês de São Vicente, 355, Gávea – 22451-041 Rio deJaneiro. E-mail: [email protected]

** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. ProfªSubstituta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro /UERJ (Deptº de Estudos da Infância).Endereço para correspondência: Rua São Francisco Xavier 524, 12º andar, sala 12037, Maracanã – 20550-900 Rio de Janeiro.E-mail: [email protected]

*** Doutora em Educação. Profª da Faculdade de Educação e do Programa de Pós–Graduação em Educação da Universidade doEstado do Rio de Janeiro; coordenadora do Projeto “Educação e Mídia: imagem técnica e cultura escrita”. Endereço paracorrespondência: Rua São Francisco Xavier 524, 12º andar, sala 12037, Maracanã – 20550-900 Rio de Janeiro. E-mail:[email protected]

RESUMOO artigo focaliza os sentidos produzidos por jovens em suas práticas culturaiscontemporâneas relacionadas ao videogame e ao cosplay, quando assumem ascaracterísticas de seus personagens favoritos. A interpretação dessas práticas com oapoio tanto do conceito de máscara de Mikhail Bakhtin, como da noção de avatar,desenvolvida por Arlindo Machado, deu-nos subsídios para entendê-las como algunsdos inúmeros rituais de expressividade estética através dos quais os jovens estãoexpressando-se, vivendo novos papéis, relacionando-se socialmente e exercendo suacidadania. Diante dessa constatação, o texto aponta para a necessidade do rompimentocom as representações sociais que associam as supostas posturas levianas, hedonistase violentas dos jovens às leis das mídias, sugerindo a importância de que a escolarepense suas práticas, levando em consideração a redefinição do sujeito da educaçãona contemporaneidade.

Palavras-chave: Juventude – Práticas culturais – Máscara – Contemporaneidade –Educação

ABSTRACTYOUTHFUL CULTURAL PRACTICES: CONTEMPORARY MASKS

The article focuses on the meaning produced by youths in their contemporary culturalpractices related to video-game and cosplay, when they assume the characteristicsof their favorite characters. The interpretation of these practices, with the support ofMikhail Bakhtin’s concept of mask as well as the idea of avatar formulated by ArlindoMachado, gave us subsidy to understand them as ones of the many rituals of aesthetic

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expressiveness, through which youths are expressing themselves, playing new roles,relating themselves socially and exercising their citizenship. Besides this assessment,this paper point out the necessity of rupture with the social representation that associatethe so-called frivolous, hedonists and violent postures of the youths in the eyes of themedia, suggesting the importance that the school rethinks its practices, consideringthe redefinition of the education subject in the contemporary world.

Keywords: Youth – Cultural practices – Mask – Contemporary – Education

Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso,digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar

para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para osonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de pontode observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra

ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.

(Ítalo Calvino)

Este artigo traz recorte dos resultados de pro-jeto institucional desenvolvido no triênio 2006-2008,cujo objetivo mais amplo foi olhar alteritariamentepara as práticas culturais de jovens fãs de mangás,animes e videogames – tripé da indústria de entre-tenimento japonesa que vem se constituindo comofenômeno mundial de comunicação de massa. Apesquisa, de base etnográfica, privilegiou comocampo empírico os animencontros, mega eventosdirecionados a esse público, organizados pela inici-ativa privada, sendo que os dados aqui apresenta-dos e interpretados referem-se a quatro eventos1.

Dentre as inúmeras atividades ligadas ao con-sumo e à recepção dos artefatos acima referidos,chamou-nos atenção a presença marcante de jo-vens – rapazes e moças – exoticamente fantasia-dos, incorporando, como soubemos depois deconversar com eles, o modo de vestir-se e o gestu-al de seus personagens preferidos com os quaisestabelecem identificação a partir dos animes, dosmangás ou dos videogames. Essa prática é deno-minada cosplay e seus praticantes cosplayers.

Os cosplayers exibem-se em desfiles, taiscomo os que ocorrem em passarelas de moda, quecontam com a assistência interessada e efusiva dopúblico frequentador dos animencontros. Mesmotendo nos preparado para chegar aos eventos im-buídas de um olhar que nos isentasse de perceber

a juventude “como uma etapa de transição”, “comouma categoria de trânsito entre um estado e ou-tro” (REGUILLO, 2003), a súbita impressão queessa movimentação de rapazes e moças, estranha-mente caracterizados, nos causou, a partir do olharde sobrevôo que lançamos para o campo, não di-feriu muito dessa visão. De fato, momentaneamen-te, o espetáculo visual dos cosplayers transbordoudo olhar que a teoria nos ajudou a constituir. En-quanto longe do cenário dos eventos, estávamosseguras quanto aos modos pelos quais os jovensconstituem suas subjetividades e identidades nacontemporaneidade (REGUILLO, 2003; CARRA-NO, 2000; MARTUCCELLI, 2000; MANUEL,1999; VIANNA, 2003; HERSCHMANN, 2005),ali, diante da cena ou da “obscena”2, nosso olharperdia a clareza.

1 Top Game Show, Rio Centro, RJ, 02/07/2006; Anime Center,UERJ, RJ, 29/07/2006; Anime Family, Colégio Marista São José,RJ, 10/12/2006; Anime Center Verão, RJ, 03/01/2007.2 Categoria tomada de empréstimo de Gomes (1994). Analisan-do a reforma urbanística do Rio de Janeiro no período da BelleÉpoque, o autor, baseando-se em crônica de Lima Barreto, refe-re-se à cidade que se ajustava aos ideais das elites como “cena”,e à cidade real, por onde circulava uma rica tradição popular quenão cabia na versão da ordem e do progresso, como “obscena”.Consideramos que essa expressão é muito própria para repre-sentar a prática de cosplay que não cabe na ordem subjacente àconcepção de juventude tal como é forjada, muitas vezes, peloEstado, pela família e pela escola.

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Walter Benjamin, num dos fragmentos de Ruade Mão Única, mostra que o envolvimento com acena, ou com a “obscena”, supõe tornar nítido oscontornos humanos.

Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas,que anos a fio eu evitara, tornou-se para mim, de umsó lance, abarcável numa visão de conjunto, quan-do um dia uma pessoa amada se mudou para lá. Eracomo se em sua janela um projetor estivesse instala-do e decompusesse a região com feixes de luz. (BEN-JAMIN, 1987, p. 35)

De certa forma, foi o que aconteceu conosco:do olhar de sobrevôo, de quem está avistando ocampo de cima, passamos a nos misturar ao cam-po e a nos aproximar dos cosplayers. Isso nospermitiu descobrir, olhando os personagens encar-nados nos jovens, através das fantasias, adereços,perucas e maquiagem, os contornos singulares decada um. Essa aproximação, acompanhada do olhare do sorriso realmente interessados que lançamosa alguns dos jovens, foi o pretexto que eles esta-vam esperando para serem entrevistados.

Outra atividade que muito nos chamou a aten-ção, observando os contextos dos eventos citados,foi a aglomeração de jovens ao redor de videoga-mes projetados em grandes telas que reuniam olha-res atentos a cada movimento dos jogadores.Formavam-se filas que pareciam não ter fim, namedida em que cada um, assim que finalizava suapartida, retornava ao final da fila para aguardaruma nova chance. Com o tempo e com as entre-

vistas, percebemos que a relação entre videogamee cosplay é mais estreita do que imaginávamos.Em muitos casos, os jogadores optam sempre pelomesmo personagem (avatar), o que, por diversasvezes, se torna uma fonte de desejo e de motiva-ção para a prática de cosplay. Sendo assim, seriaum equívoco considerar o avatar como um cos-play virtual? Ou interpretar o cosplay como umavatar corpóreo? A relação entre essas duas prá-ticas juvenis motivou-nos a ouvir os jovens e a pen-sar suas relações com o real e o virtual na sociedadecontemporânea.

Vale salientar que a discussão que gira em tor-no dos termos real e virtual não é nosso objetivoneste trabalho. No entanto, torna-se necessárioesclarecer que nos referimos ao mundo real comoaquele vivido presencialmente pelos jovens atra-vés de suas experiências essencialmente corpo-rais. Por outro lado, nos referimos ao virtual comoo mundo mediado pela tecnologia e que, inseridono ciberespaço, “torna-se um campo aberto a no-vas sociabilidades e a novas experiências de vida”(ROESLER; SARTORI, 2004, p. 71).

São, portanto, as falas de dez desses jovens,interpretadas à luz do conceito de máscara de Mi-khail Bakhtin (1987), que trazemos para este tex-to, numa tentativa de reconhecer que tanto ocosplay como a utilização do avatar nos jogos ele-trônicos podem ser lidos como um dos inúmerosrituais de expressividade estética, através dos quaisos jovens estão se expressando, relacionando-sesocialmente e exercendo sua cidadania (MARTÍN-BARBERO, 2003). Segundo Herschmann (2005),hoje tal exercício não passa mais pelo desenvolvi-mento de ações de caráter político-transformador,como ocorreu com a geração de 68. A cidadaniados jovens hoje passa pela atitude de assumir aperplexidade com o presente, explicitando-o atra-vés de “espetáculos” que denunciem a barbárie deseu tempo, chamando a atenção do público para aineficácia dos grandes projetos sociais que não pro-duzem os resultados esperados.

Do cosplay à máscara: um diálogocom Bakhtin

Bakhtin discorre sobre a importância dos fes-tejos populares para o homem medieval, particu-

Cosplayer de personagem de anime.Foto: Tenchi Muyou, captada do site Cosplay Brasil

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larmente o carnaval, pelo seu aspecto cômico, po-pular e público, e ressalta que esses ritos e espetá-culos caracterizavam-se por oferecer:

... uma visão do mundo, do homem e das relaçõeshumanas (...) deliberadamente não-oficial, exterior àIgreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao ladodo mundo oficial, um segundo mundo e uma segun-da vida aos quais os homens da Idade Média per-tenciam em maior ou menor proporção, e nos quaiseles viviam em ocasiões determinadas. (BAKHTIN,1987, p. 5).

Por essa citação, entendemos que, durante ocarnaval, não há espectadores, mas todos o vivem,de acordo com as leis da festa e que, assim, essejogo se transforma, por um determinado tempo, naprópria vida. Guardadas as devidas proporções,identificamos no relato abaixo de uma de nossasentrevistadas – a cosplayer Jéssica3 – a ideia deuma segunda vida, baseada no princípio do riso, avida festiva.

Bom, pra mim o evento é um lugar especial. Um diada semana que eu não tenho aborrecimento, queninguém fala besteira comigo, sabe? Um dia só dealegria, um dia só de amizade, um dia de compa-nheirismo. Você tá lá, você tá triste, as pessoas vêm,te acalmam, te fazem... sabe, melhor (...) Aqui todomundo se entende, não tem briga. É uma fuga domundo real. Não tem corrupção, não tem ignorân-cia, aqui tá todo mundo feliz. Aqui é um mundo sónosso!

Esses relatos nos remetem à ideia de Bakhtin(1987) sobre uma vida não oficial, que permite aossujeitos penetrar temporariamente no “reino utópi-co da universalidade, liberdade, igualdade e abun-dância” (p. 8). O mundo particular descrito porJéssica é uma fantasia temporária e também cons-ciente, já que ela própria ressalva: “Eu não sou opersonagem. Eu sou um ser humano, eu sou aJéssica e os eventos servem para eu conseguirser quem eu quero ser no desenho. É como sefosse uma realização”.

Interpretamos, ainda nas palavras da jovem, aideia de igualdade, presente nesse mundo “idealiza-do”, tentando relacioná-la ao carnaval medieval, umavez que ela diz que o evento “é um dia em que euposso ser quem eu sou, sem medo de errar, (...)porque eu sei que as pessoas vão estar me en-

tendendo, porque elas são iguais a mim, elasestão aqui pelo mesmo propósito: se divertir”.Bakhtin (1987) aponta que, ao mesmo tempo emque as festas oficiais consagravam a desigualdade,os festejos populares aboliam hierarquias e permiti-am ao homem sentir-se igual aos seus semelhantesatravés de um “contato vivo, material e sensível”(p. 9). É importante esclarecer que o autor se refe-re à igualdade sob um aspecto político e social, mas,de certa forma, percebemos, nas falas recolhidas,um desejo do jovem de incluir-se na sociedade atra-vés das diferentes maneiras de pertencimento.

As múltiplas identidades assumidas pelos jovensna contemporaneidade (MARTÍN-BARBERO,2003), que a prática de cosplay legitima, aproxi-mam-se da liberdade possibilitada no carnaval que,segundo Bakhtin, “necessitava manifestar-se atra-vés de formas de expressão dinâmicas e mutáveis(protéicas), flutuantes e ativas” (BAKHTIN, 1987,p. 6). Nessa perspectiva, é possível relacionar aspráticas dos jovens observados à ideia de másca-ra, formulada pelo autor:

A máscara traduz a alegria das alternâncias e das re-encarnações, a alegre relatividade, a alegre negaçãoda identidade e do sentido único, a negação da coin-cidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a ex-pressão das transferências, das metamorfoses, dasviolações das fronteiras naturais, da ridicularização,dos apelidos; a máscara encarna o princípio da vida,está baseada numa peculiar inter-relação da realida-de e da imagem, característica das formas mais anti-gas dos ritos e espetáculos.(BAKHTIN, 1987, p. 35).

As metamorfoses e a quebra de fronteiras fa-zem parte do cotidiano desses jovens que se rela-cionam com o outro e com o mundo, nos contextosfragmentados da atualidade. Assim acontece nosambientes virtuais, quando assumem diversos ni-cks (apelidos) nas salas de bate-papo online e têma possibilidade de conhecer pessoas de idades eperfis muito diferentes dos seus ou, ainda, quandoexercem variados papéis nos diferentes espaçosnos quais atuam, o que lhes permite a experimen-

3 Optamos por conservar o nome próprio dos sujeitos não só pelaimpossibilidade de que eles sejam identificados no meio da mul-tidão que acorre aos animencontros, como também e, princi-palmente, por considerar que suas falas não os desabonam emnada, sendo expressão de sua dimensão de agentes sociais.

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tação de diversas máscaras. Não estamos afirman-do que eles assumem personalidades diferentes,mas que expressam as transferências, as meta-morfoses, violando as fronteiras naturais daridicularização.

A ideia de máscara que permite, segundo Ar-lindo Machado (2002), assumir diversos papéis, atémesmo aqueles pouco aceitos pela sociedade, foiimportante para a nossa análise, uma vez que nosajudou a perceber que também é possível buscarna experimentação oferecida pela prática do cos-play uma maneira de inverter papéis, “efetuar per-mutações entre o elevado e o baixo, o sagrado e oprofano, o nobre e o plebeu, o masculino e o femi-nino...” (MACHADO, 2002, p. 11). É comum en-contrar meninos fazendo cosplay feminino evice-versa, como confirma Nina, outra entrevista-da, quando nos diz que já fez “pelo menos, unsquatro cosplays masculinos”, experimentandopersonalidades diferentes da sua, como no caso

dos personagens masculinos que são todos “os quetêm lados sombrios”. Jéssica, que se auto-intitulanegra e gorda (embora tenha pele clara e estejalonge do padrão obeso), faz cosplay de uma per-sonagem branca e magra e tem um discurso fer-voroso defendendo a possibilidade da representaçãonão apenas pela semelhança física, mas por afini-dades de atitude. Seria essa uma maneira da jo-vem experimentar a condição estética hegemônicacontemporânea?

É preciso salientar aqui que Bakhtin (1987) es-tabelece uma diferença importante entre a máscarapopular dos festejos medievais, resgatados na nar-rativa renascentista, e o sentido que ela toma noromantismo, em que: “... arrancada da unidade davisão popular e carnavalesca do mundo, empobre-ce-se e adquire várias outras significações alheias àsua natureza original: a máscara dissimula, recobre,engana etc.”, perdendo “quase completamente seuaspecto regenerador e renovador” (p. 35). Talvez

Foto: Tenchi Muyou.

Cosplayers posam para foto. Imagens captadas no site Cosplay Brasil

Foto: Remy

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seja esse sentido de máscara que mais se aproximeda visão apocalíptica que vê nas ações juvenis anegação pura e simples da realidade, a busca incon-sequente pelo prazer, sem qualquer comprometimentocom a subjetivação crítica dos sujeitos.

Observando e entrevistando alguns destes jo-vens, atrevemos-nos a supor que o cosplay é umaforma de subverter a ordem a priori estabelecidano seu cotidiano. Ser o personagem, por um deter-minado tempo, poderia significar uma maneira deescapar, no sentido de ‘ganhar forças’ para depoisvoltar à realidade de suas vidas. Não se trata deconsiderar essas práticas como fugas despropor-cionais da vida real, mas como um jogo de faz-de-conta que alimenta suas fantasias e, de certa forma,lhes dá suporte para significar o mundo e que vãoalém de momentos de pura diversão e entreteni-mento, sendo também e, principalmente, uma for-ma de se comunicar. Segundo a fala de Nina, emrelação às suas práticas, “é ali aonde eu achoque eu diminuo o fator dos danos que eu rece-bo da vida”.

É interessante observar que, embora a máscaraseja facilmente reconhecida nas práticas juvenis,Maffesoli (1984) afirma que é um artifício inerente

ao ser humano e seus conflitos. Isso significa quetodos precisam de máscaras invisíveis para desem-penhar papéis sociais. Por outro lado, podemos per-ceber que a utilização de máscaras permiteexperimentar novas possibilidades diante das trans-formações vividas na contemporaneidade.

Do presencial à virtualidade: másca-ras contemporâneas

Arlindo Machado, autor que nos aproximou deM. Bakhtin, ao relacionar a teoria da máscara como avatar 4 (personagem assumido nos jogos ele-trônicos), afirma: “O avatar pode ser visto comouma espécie de máscara, que se pode por e tirar,como no carnaval, para compor identidades múlti-plas e assumir novos papéis, muitos deles não acei-tos seja pela sociedade, seja pelo própriomascarado” (MACHADO, 2002, p. 11).

Imagem do jogo Final Fantasy XIII. Captada do site Portal dos Games

4 O termo avatar foi originado da mitologia hindu, onde desig-nava o corpo temporário utilizado por um deus quando visitavaa terra. Foi utilizado, pela primeira vez, para designar a repre-sentação visual (eventualmente também sonora) do usuário nociberespaço por Chip Morningstar, em 1985, em seu Habitat, oprimeiro mundo virtual dotado de avatares. (MACHADO, 2002).

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Nesse sentido, entendemos que a relação entreo cosplay e o avatar é bastante direta, na medidaem que os dois são representações do sujeito den-tro de um contexto não-oficial ou uma segunda vida,numa interpretação que se apóia nas ideias deBakhtin sobre o riso e os festejos populares. Am-bos são possibilidades do sujeito experimentar ou-tras faces, outros comportamentos, outras históriasdiferentes da sua.

Da mesma maneira que, nas brincadeiras in-fantis, a criança sempre faz-de-conta que é prin-cesa, super-homem, dona de casa, médico ouprofessora, as crianças e jovens, nos contextos aque nos referimos, podem “ser”, por determinadotempo, os personagens de que mais gostam, ou atémesmo aqueles de que não gostam ou com os quaisnão se identificam, numa brincadeira de experimen-tar diferentes peles e, consequentemente, novasidentidades e formas de pertencimento.

Se o cosplay está mais próximo do carnavalcomo o conhecemos, com suas fantasias concre-tas ou “palpáveis”, o avatar traz a linguagem con-temporânea da realidade virtual através de imagense sons digitais. Porém, não deixa de ser uma ma-neira de corporalizar uma figura do sujeito, já quehoje é cada vez menor e mais dissipada a diferen-ça entre imagem e objeto. A virtualidade desejamesmo romper com essa barreira entre represen-tação e realidade.

Victa de Carvalho (2006, p. 80) relata que, en-quanto nos anos 1990 era anunciada a “obsoles-cência dos corpos e a libertação das mentes”, apartir das técnicas de realidade virtual, seus estu-dos apontam na direção oposta, para “um corpoque vem sendo cada vez mais convocado a estarpresente e ativo, participando e construindo suasexperiências”, e que isso se dá pelos dispositivosimersivos que ajudam a construir novas subjetivi-dades.

A autora destaca ainda que, nos ambientes vir-tuais, o real parece expandido e pode ser perce-bido tanto por tornar visíveis experiênciassensíveis, como por não discriminar realidade erepresentação:

A partir das experiências imersivas em ambientesvirtuais, diluímos as fronteiras entre representaçãoe referente, a ponto de não ser mais necessário pen-sar essas diferenças. Não se trata da substituição

da realidade por um duplo, mas de uma miscigena-ção, de uma coexistência de realidades incompossí-veis. (CARVALHO, 2006, p.86).

Segundo Pereira (2001, p. 7), “a pesquisadoramultimídia Diana Domingues defende que as tec-nologias ampliaram o campo de percepção comformas de existir antes não permitidas pelo corpobiológico.” Dessa forma, a experiência que se dáno ambiente virtual não é possível fora dele. É oambiente que determina a existência de cada ava-tar e as experiências que o jogador vai vivenciarde acordo com as possibilidades do programa. Emsua vida online, que caracteriza esse faz-de-con-ta virtual, não é importante colocar limites entre“falso” e “verdadeiro”, entre real e fantasia, massimplesmente fruir aquilo que a tecnologia põe aseu dispor. Assim como no carnaval descrito porBakhtin, vive-se aquele momento e aquela expe-riência a partir do princípio do riso. Desse modo,o próprio leque de possibilidades permite que ojovem “viva experiências, decifre mensagens, ven-ça desafios, cometa erros que o ajudem a com-preender o mundo em que vive e a criar umrepertório próprio do seu tempo.” (PEREIRA,2001, p. 4)

A ideia de segunda vida experimentada pordeterminado tempo, a que se refere Bakhtin(1987), pode ser também relacionada às falasdos jogadores de games, como Rodney, de 17anos, que, ao ser perguntado como definiria ovideogame, pronuncia enfaticamente: “Minhasegunda vida. Literalmente, minha segundavida!” Não é por acaso que um ambiente virtualfrequentado por milhares de pessoas no mundointeiro tem o nome de “Second Life”. Nessaespécie de jogo, o usuário experimenta uma vidaparalela através de um avatar, que tem açõescotidianas como trabalhar, comer, ter amigos, ira festas, passear, casar, ter filhos.

A própria concepção de jogo admite a ideia desegunda vida, pois ela não pertence à vida “co-mum” e “é capaz, a qualquer momento, de absor-ver inteiramente o jogador” (HUIZINGA, 2005, p.11). Porém, no ambiente virtual, a possibilidade deviver como um “outro eu” é ampliada a partir dofator de imersão. As inovações tecnológicas, quepermitem efeitos sonoros e um design cada vezmais sofisticado, aumentam a ilusão de estar den-

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tro do jogo. Além disso, histórias envolventes quedão liberdade ao usuário de agir sobre elas, inter-ferindo nos rumos que estas irão tomar, são fato-res determinantes para criar essa sensaçãoimersiva.

A pesquisadora Lucia Santaella afirma que “ainteratividade é uma propriedade intrínseca da co-municação digital”, lembrando que muitos gamesapresentam altos níveis de interatividade na me-dida em que são marcados por combinações hí-bridas que geram grande complexibilidade epossibilidades. Afirma, ainda, que essa interativi-dade não ocorre “apenas como experiência ouagenciamento do interator, mas como possibilida-de de co-criação de uma obra aberta e dinâmica,em que o jogo se reconstrói diferentemente a cadaato de jogar” (SANTAELLA, 2004). Dessa ma-neira, observamos uma série de fatores que le-vam à sensação de segunda vida durante o jogo,assim como reconhecemos nos eventos presen-ciais por nós estudados um ambiente favorávelpara viver essa “Second Life” através da pre-sencialidade do cosplay.

A respeito das características de participaçãoe imersão, Janet Murray (2003, p. 101) afirma: “Odesejo ancestral de viver uma fantasia originadanum universo ficcional foi intensificado por um meioparticipativo e imersivo, que promete satisfazê-lode um modo mais completo do que jamais foi pos-sível.” Se histórias em formato participativo sãocapazes de nos envolver mais do que aquelas quesimplesmente assistimos ou ouvimos, assumir umpersonagem através de um avatar é:

... como se tornar outra pessoa por determinado tem-po, adquirindo seus hábitos, sua maneira de pensare se comportar. É como se você pudesse apenascolocar uma boina na cabeça e já começasse a darde ombros, gesticular e até falar como um francês.(MURRAY, 2003, p. 115).

Os formatos participativos dos games, nos quaisinteração e agenciamento são palavras-chave paraentender a relação dos jovens com os artefatosculturais, são bem exemplificados na fala de outrojovem, André, de 18 anos, quando afirma que jogarvideogame é mais divertido do que ver desenho naTV: “Você tá cansado de ver aquilo sempre damesma maneira, aí você quer fazer de outro

jeito... é tipo assim, vamos supor, o Seya en-frentando o Yoga, nunca vai acontecer isso.Então, no videogame você já tem essa possibi-lidade” 5.

Ao se colocar dentro da história e ser capaz demudar seus rumos, o jogador, através de sua ima-gem virtual, vive outras experiências, numa dimen-são de vida festiva apontada por Bakhtin (1987). Apossibilidade de intervenção fascina, tanto quantoa do “novo”. Felipe, de 16 anos, diz que “contro-lar seu personagem é uma coisa muito manei-ra”, ao mesmo tempo em que imagina que, se fosseconstruir um jogo, ele se passaria no período medi-eval “porque o que a gente vive a gente en-joa... o medieval seria novo”.

Bakhtin (1987) observa que, embora as formascarnavalescas da Idade Média aproximem-se dasformas do espetáculo teatral, isso não significa queelas entrem no domínio da arte, mas que se situamentre a arte e a vida. “Na realidade, é a própriavida apresentada com os elementos característi-cos da representação” (BAKHTIN, 1987, p. 6).De acordo com Machado (2004), essa fusão entreo que comumente chamamos de realidade e defantasia é um conceito absolutamente exploradonos mundos virtuais. Da mesma forma que no car-naval medieval, nos ambientes virtuais a diferençaentre espectador e ator se dissipa. Nos jogos, pode-se considerar que essas duas funções se fundem eo interator se insere nos ambientes como o seusujeito ou seu agente visualizador .

Ainda segundo Machado (2007), nos jogos ele-trônicos, duas são as formas de visualização: umaque considera o ponto de vista externo em que oavatar pode ser visto na tela pelo jogador, e outra,através do uso da câmera subjetiva, que considerao ponto de vista interno, o ponto de vista do joga-dor. Esta última nos leva a relacioná-la ao próprioolhar do cosplayer durante sua atuação em umevento. Nas duas formas, o jogador é levado a“mergulhar” no mundo virtual que se apresenta.Porém, através do recurso da câmera subjetiva, osefeitos visuais e a acústica colaboram para a imer-

5 Seya e Yoga são personagens do jogo “Cavaleiros do Zodíaco”,baseado em anime. O jovem se refere ao fato de que no desenhoesses personagens não estão em posições de enfrentamento e,consequentemente, não os veria num duelo, fato possível nojogo, a partir das escolhas dos jogadores.

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são e o jogador passa a experimentar uma sensa-ção muito maior de presença ativa e não apenasde observação do desenrolar da narrativa. Por umdeterminado espaço de tempo ele é capaz de agir,reagir e pensar como o seu personagem, inseridono ambiente do programa. Assim, pode criar maisfacilmente a ilusão de “ser” o ente fantástico, umarqueiro, uma sacerdotisa, um guerreiro ou umadeusa, negociando entre suas fantasias projetadasnum avatar e as possibilidades previstas no pro-grama.

Apesar de todos esses fatores que, por muitasvezes, levam a discursos que estigmatizam a in-dústria cultural japonesa, reconhecendo nela umpoder vertical de veiculação de valores e mensa-gens, cabe enfatizar que buscamos os sentidos pro-duzidos por esses jovens por intermédio dessaspráticas. Ao reconhecer que os sentidos produzi-dos são originais em função dos processos de me-diação de cada sujeito, podemos olhar para osjovens e perceber que não se trata de substituiçãode maneiras de se relacionar com o mundo. Parauma das entrevistadas, Nina, o virtual não substituio real: “Eu acho que fica aquela coisa fria:controle, monitor de televisão, não que eu nãogoste, mas eu acho que o jogo, por exemplo,de RPG, ele te dá, assim, um calor. Existe o con-tato. No jogo você tá fazendo contato entre vocêe o que o programador fez”. Por outro lado, aquantidade de jovens que vêm constituindo novassociabilidades através de maneiras híbridas de re-lacionar-se no virtual, é um indicativo de mudan-ças culturais que merecem um olhar maiscuidadoso.

É possível dizer que o desenvolvimento das tec-nologias cria certas expectativas, gerando deman-das que há pouco tempo não existiam. Assim, apossibilidade de ser um personagem em um ambi-ente com resoluções gráficas altamente definidaspassou a ser tão necessária ou tão “comum” paraos nossos sujeitos da pesquisa quanto a fantasia deimaginar-se como determinado personagem de umlivro de histórias. Benjamin nos ensina: “Os gregosforam obrigados, pelo estágio de sua técnica, a pro-duzir valores eternos” (BENJAMIN, 1994, p. 175),querendo dizer que o pensamento, a criação, osvalores de determinada sociedade são criados apartir das possibilidades de seu tempo. Dessa for-

ma, enxergar o avatar como uma conseqüência daspossibilidades do tempo presente e interpretá-locomo uma máscara, no sentido apresentado porBakhtin, nos ajuda a considerar que as linguagenscriadas a partir da virtualidade precisam ser enca-radas sob a ótica de um novo sujeito que se cons-titui na contemporaneidade.

A transitoriedade dos festejos e da vida não-oficial, estudadas por Bakhtin e reconhecidas nosjogos eletrônicos, talvez sejam um dos grandes atra-tivos deste meio. A possibilidade de jogar e depoisjogar de novo – sendo outro personagem, seguindooutro caminho, tomando outras resoluções, enfren-tando inimigos diferentes, tendo oportunidade deacertar onde havia errado anteriormente – admiteo ato de refazer que, além de ser uma ideia muitosedutora, reflete o pensamento e o comportamen-to do sujeito contemporâneo. Esse novo sujeito, quetransita pela fragmentação e não linearidade dasinformações e dos acontecimentos do mundo pau-tado por novas lógicas, exige a agilidade das trans-formações e das realidades possíveis. “Nos jogosde computador, não tomamos decisões para a vidainteira ou por toda uma civilização”, diz Janet Mur-ray (2003, p.153), reforçando a ideia contida naspalavras de Tatiana, outra jogadora entrevistada:“No videogame você tem milhões de vidas...pode começar tudo de novo, do zero. Na vidareal, infelizmente não dá pra fazer isso. Esse éo fascínio do videogame”.

A possibilidade de tentar novamente, de repetir– como a criança que quer sempre fazer ou ver denovo – evoca a ideia de brincadeira, ou pelo me-nos, se opõe à seriedade dos compromissos ou ati-tudes onde o erro representa a impossibilidade deseguir adiante. Na vida “oficial”, a ideia de come-çar de novo vem, geralmente, acompanhada desentimentos como incapacidade, frustração ou de-sânimo, enquanto que, no jogo, na brincadeira e navida festiva, refazer significa repetir uma experi-ência boa ou renovar, associando-se ao prazer e àalegria.

O argumento de Arlindo Machado (2002, p. 11),de que “O avatar pode ser visto como uma espé-cie de máscara, (...), para compor identidadesmúltiplas e assumir novos papéis ...”, encontra econas palavras de Rosane Abreu que afirma que astecnologias de comunicação e informação contri-

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buem para a construção de identidades. Segundoa autora, “Com elas, os jovens experimentam, tes-tam e brincam com as formas de ser (usam avata-res, nicks etc). Isso parece estar ajudando os jovensa se conhecerem melhor e, consequentemente, aassumirem com mais facilidade os diversos papéissociais.” (ABREU, on-line).

Como acontece com os cosplayers, os jovensjogadores de games parecem divertir-se ao expe-rimentar avatares com características diferentesdas suas. Gustavo, de 18 anos, que gosta do perso-nagem Squall, do jogo Final Fantasy, diz que suapreferência se deve ao fato de ele ser “um caracínico, um tanto quanto sarcástico, seco, sem...sem aquela ‘proximidade’... ele é sozinho, semmuito contato exterior, sei lá. Gosto porque eleé completamente oposto da minha pessoa”.

Não seria essa uma possibilidade de lidar e acei-tar a alteridade? Será que jovens acostumados a“vestir” outras formas e personalidades de umamaneira tão próxima do real não estariam maisaptos para viver a diversidade?

Imagens do corpo como forma de ex-pressão: possibilidades de exercícioda cidadania

Analisando o princípio material e corporal pre-sente na cultura cômica popular, Bakhtin (1987)aponta que ele está ligado a um caráter cósmico esocial. Não é o corpo individual, mas o corpo/povoque cresce e se renova em comunhão com a vida,em que o “baixo” e o corporal representam o sen-sível, a satisfação das necessidades, a reprodução,a morte e o renascimento. Invocar essa ideia dereconstrução a partir da experiência corporal nospermite posicionar esses jovens, no campo cultu-ral, como atores que expressam suas opiniões emrelação ao mundo em que vivem através de suasatitudes “espetaculares”.

A visibilidade alcançada nos eventos pode sig-nificar uma forma, consciente ou não, para se fir-mar como sujeitos ativos socialmente. Ângela eGabriel, ambos de 16 anos, concordam que ir aoseventos é uma oportunidade de serem aceitos, jáque ali podem fazer o que gostam sem reprimen-das, com a sensação de estar entre aqueles com

os quais se identificam. Eles agradeceram à entre-vistadora o fato de serem ouvidos sem preconcei-to, demonstrando uma busca por aceitação einclusão.

Também é possível encontrar Cosplays depersonagens que não se relacionam diretamente

com a cultura pop japonesa, mas que fazemparte do universo das indústrias culturais,

como é o caso deste “Maskara”.

Foto: Remy, captada no site Cosplay Brasil

Outra cosplayer, Glaucia, diz que gosta demangás e animes porque tratam de temas da rea-lidade, permitindo que ela, ao mesmo tempo emque se distrai, reflita um pouco sobre alguns as-suntos polêmicos, como corrupção, violência, dro-gas, exclusão.

O olhar crítico desses jovens também se voltapara a escola que não tem espaço para a ludicida-de e onde se chega “... com vontade de ir embo-

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ra”, nas palavras de Jéssica. A escola “chata” eséria da qual ela se ressente evoca a “estabilida-de e perpetuação” das festas oficiais (BAKH-TIN, 1987, p. 8). O riso alegre e regenerador éafastado, ainda hoje, da educação oficial, talvez pelocaráter quase sagrado do ensino e pela supervalo-rização do intelecto sobre o sensível, estabelecen-do um nivelamento diferencial entre o erudito e opopular. Apesar da fragilidade entre as fronteirasculturais na contemporaneidade, a escola, nesteinício de século, ainda reserva ao popular, que étão próximo da juventude, os espaços folclóricosou marginalizados.

Com a intenção de pensar o lugar dessas prá-ticas juvenis no contexto escolar sob uma novaótica, Roesler e Sartori (2004) afirmam que, emtempos de ciberespaço, “estamos diante de no-vas sociabilidades” (p.72) e, consequentemente,presenciamos novas maneiras de exercer a cida-dania, entendendo esse exercício como “capaci-dade de engendrar práticas sociais de produçãode significados, espaços de desenvolvimento decultura.” (p.75). Pensando nesse novo olhar, tor-na-se essencial reconhecer que essas novas so-ciabilidades são marcadas por novos tipos de lei-tores conectados a múltiplas linguagens(ARANHA, 2006) que exigem novas demandas.Sendo assim, a análise das práticas juvenis nosalerta para a necessidade de transformações nosparadigmas educacionais para que a escola sejaum território fértil de produção de sentido e exer-cício de cidadania.

Se compreendemos, como explicita Guattari,que “nenhuma produção de subjetividade hoje podeestar livre da influência das máquinas informacio-nais e computacionais” (GUATTARI, apud PE-REIRA, 2001, p. 8), torna-se um problema que osespaços escolares continuem a deslegitimar asexperiências juvenis com essas máquinas. Parapensar esse processo necessário de legitimação,recorremos a Martín-Barbero (2003) que apontapara a urgência do “reconhecimento dos saberesque entranham as formas do expressivo, que pas-sam pelo corpo, pela emoção, pelo prazer”. Para oautor,

... a nova realidade propõe uma redefinição do sujei-to da educação (...) que se expressa em idiomas não

verbais, baseados em sua sensibilidade e em suacorporeidade, e habita os mundos dos códigos tri-bais, das quadrilhas e das seitas, a partir de onde semanifesta sua rejeição à sociedade (MARTÍN-BAR-BERO, 2003 - tradução nossa).

Relacionando essas palavras às práticas esco-lares anacrônicas ao mundo high tech vivenciadopelos jovens, parece indispensável que, ao invésde manter a posição confortável de fugir à respon-sabilidade e transferir toda a falência do sistemaeducativo para os ombros dos estudantes (desinte-ressados, desordeiros, desrespeitosos), seria pre-ciso perceber como esses sujeitos se constituemnos contextos sociais atuais para construir tempose espaços que sejam condizentes às suas novasdemandas.

Considerações finaisAo lançar um novo olhar para as culturas juve-

nis, dispondo-nos a escutar jovens que praticamcosplay e que jogam videogames, pudemos iden-tificar inúmeras possibilidades de exercício da ci-dadania (CANCLINI, 1999). Longe de alienados,suas vozes denunciam, reclamam e protestam con-tra uma sociedade que, como diz Martín-Barbero(2003), “não tem direito de lhes pedir uma estabili-dade que nenhuma das grandes instituições mo-dernas é capaz de garantir: a política, o trabalho ea escola atravessam sua mais profunda e largacrise... a de identidade” (tradução nossa). O con-tato com eles nos permitiu romper com as repre-sentações que os associam a posturas hedonistase violentas e com o estereótipo de geração subme-tida às leis da mídia, descomprometida com o bem-estar e com os destinos do mundo.

Esperamos que este texto possa contribuir paraque as imagens e narrativas que os jovens trazema partir de suas práticas culturais possam ser com-preendidas através de novas sensibilidades, dimi-nuindo, assim, as distâncias entre essas práticas ea cultura escolar.

Nessa perspectiva, Ítalo Calvino nos inspira,sugerindo a importância de se perceber as práti-cas culturais juvenis na contemporaneidade como“vôos a outros espaços”, através da experimenta-ção de máscaras que subvertam conscientemente

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ou não, “o reino humano condenado ao peso”. Paraenxergar as cenas e “obscenas” dessa subversão,precisamos observar “o mundo sob uma outra óti-

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A PESQUISA SOBRE TRABALHO E SABER DOCENTE NO BRASIL:PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Wanderson Ferreira Alves *

* Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.Membro do GEPEFE-USP (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Formação do Educador). Endereço para correspondência:Faculdade de Educação da UFG, Rua 235 (Delenda Rezende de Melo), s/n, Setor Universitário – 74605-050 Goiânia/GO. E-mail: [email protected]

RESUMOOs estudos sobre os saberes dos docentes parecem ter encontrado boa acolhidajunto a importante parcela dos estudiosos que, no Brasil, se dedicam às pesquisassobre os professores, sua formação e seu trabalho. Autores como Maurice Tardif,Donald Shön, Kenneth Zeichner, António Nóvoa se tornaram recorrentes na literaturado campo educacional e algumas de suas indagações e teorizações foram assumidaspela pesquisa acadêmica. O objetivo deste trabalho, de natureza teórica, é justamenteo de examinar algumas das perspectivas que vêm informando os procedimentosmetodológicos nos estudos sobre os saberes docentes e apresentar algumascontribuições que as disciplinas que estudam o trabalho, especialmente a Psicologiado Trabalho e a Ergonomia da Atividade, podem oferecer aos pesquisadoresinteressados em compreender o saber e o trabalho do professor. Conclui apontandopara a necessidade de se pensar o ensino como atividade humana de trabalho, bemcomo a importância de conhecer e reconhecer que o trabalho é algo complexo edifícil de ser apreendido; ignorar isso é uma especial porta de entrada para que osobjetivos sociais do trabalho de ensinar não sejam alcançados.

Palavras-chave: Saber docente – Trabalho docente – Método

ABSTRACTRESEARCH UPON TEACHER’S KNOWLEDGE AND WORK IN BRAZIL:METHODOLOGICAL PERSPECTIVES

Studies upon teacher’s knowledge have been well received by most Brazilian scholarswho dedicate their research upon teachers’ formation and work. Authors like MauriceTardif, Donald Shön, Kenneth Zeichner, and António Nóvoa had become recurrent inthe educational field literature and some of their investigations and theories had beenadopted in academic research. This paper aims to examine some of the perspectivesinfluencing methodological procedures in the studies on teachers’ knowledge and topresent some contributions from psychology of work and ergonomics. We concludepointing out the need to think teaching as human activity of work as well as the importanceto recognize that work is something complex and difficult to understand. To ignore thisopens the door to not attaining the social objective of the work of teaching.

Keywords: Teacher’s knowledge – Teacher’s Work – Method

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IntroduçãoA discussão sobre os saberes dos docentes pa-

rece ter encontrando boa acolhida entre importan-te parcela dos estudiosos que, no Brasil, se dedicamàs pesquisas sobre os professores, sua formação eseu trabalho. Autores internacionalmente conheci-dos, como Maurice Tardif, Donald Shön, KennethZeichner, António Nóvoa, dentre outros, se torna-ram recorrentes na literatura do campo educacio-nal brasileiro e algumas de suas indagações eteorizações foram assumidas pela pesquisa aca-dêmica. O objetivo do presente texto é justamenteo de examinar algumas das perspectivas que vêminformando os procedimentos metodológicos nosestudos sobre os saberes docentes e apresentaralgumas contribuições que as disciplinas que estu-dam o trabalho, especialmente a Psicologia do Tra-balho e a Ergonomia da Atividade, podem ofereceraos pesquisadores interessados em compreendero trabalho e o saber dos professores.

O texto a seguir está estruturado em dois ei-xos: o primeiro corresponde a uma breve apre-sentação das abordagens que norteiam asinvestigações sobre os saberes docentes, momen-to em que são indicados alguns procedimentosmetodológicos comumente utilizados e tambéminovações desenvolvidas pelos pesquisadores; osegundo eixo corresponde às contribuições teóri-co-metodológicas da Psicologia do Trabalho, par-ticularmente os estudos de Ivar Oddone, e daErgonomia de matriz francesa, nomeadamentecom dois de seus reconhecidos autores, FrançoisGuérin e Alain Wisner.

Pesquisando os saberes dos professo-res: afinal, o que eles sabem e fazem?

A temática relativa ao saber docente vem-sedesenvolvendo em âmbito internacional há váriasdécadas. Seu interior abriga um leque de temas(socialização profissional, desenvolvimento profis-sional, percursos biográficos e profissionais, pen-samento do professor, comportamento do professoretc.) e uma diversidade de enfoques teóricos (beha-viorismo, cognitivismo, pragmatismo, neo-marxis-mo etc.). Trata-se de um campo de pesquisas quecongrega diferentes disciplinas oriundas das ciên-

cias humanas e sociais (Psicologia, Sociologia, Fi-losofia, Pedagogia etc.). Em um quadro tão diver-so não causa espanto o fato de que os estudiososdo saber docente lançaram mão de um tambémdiversificado conjunto de procedimentos metodo-lógicos no desenvolvimento de suas pesquisas. Detestes padronizados e pesquisas quase-experimen-tais até estudos etnográficos havia espaço para todauma variedade de iniciativas.

No caso específico do Brasil, a discussão so-bre os saberes dos professores recebe impulso coma publicação de Os professores face ao saber:esboço de uma problemática do saber docente,texto de Tardif, Lessard & Lahaye publicado naRevista Teoria e Educação no ano de 1991. É pos-sível nesse ponto objetar e afirmar que os estudossobre os saberes já estavam constituídos em nossopaís, quando autores, como Maurice Tardif, Antó-nio Nóvoa e Lee Shulman, começaram a ter seustextos divulgados no Brasil. Sem dúvida, é difícilafirmar simplesmente que os professores e seussaberes eram temas ausentes nas pesquisas brasi-leiras na área da educação, mas é importante no-tar – e isso faz toda a diferença – que o saberdocente não estava constituído como objeto de es-tudo e tampouco que as pesquisas não tinham, nogeral, o intuito de valorizar a inteligência ou de pro-curar conhecer a inventividade, os modos de pro-ceder e apreciar do professor no curso dedesenvolvimento de seu trabalho. A tendência docampo pedagógico brasileiro nos anos 80, bemapontam Fiorentini, Souza Júnior & Melo (1998),foi o de destacar as carências e as negatividadesdas práticas dos professores.

Diversos estudos que apresentam sínteses, ba-lanços ou investigações empíricas sobre a temá-tica dos saberes docentes já foram produzidos epublicados. Não é o caso aqui de recenseá-losnovamente, o leitor interessado poderá encontrarum farto material a esse respeito nos artigos quecompõem o dossiê Os saberes da docência, pu-blicado no número 74 da revista Educação & So-ciedade, bem como acessar estudos queapresentam sínteses sobre o tema, como os tra-balhos de Borges (2003), Gauthier (2006) e Al-ves (2007). Nos limites do presente texto, ointeresse é, sobretudo, oferecer uma perspectivapanorâmica das grandes linhas de investigação

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sobre os saberes dos professores, apontando suasproposições centrais, as técnicas e os instrumen-tos de pesquisa que convencionalmente utilizam.A exposição será assim esquemática, todavia,permitirá em grandes traços situar as tendênciasinvestigativas do campo.

Para tal tarefa, serão utilizadas as abordagensde pesquisa sobre o saber docente apresentadaspor Borges (2003). O enfoque dado pela autoratem o mérito de ser suficientemente aberto no sen-tido de não produzir uma classificação excessiva-mente rígida, o que é sempre um risco nesse tipode empreendimento. Borges aponta cinco grandesabordagens sobre os saberes: pesquisas sobre ocomportamento do professor; pesquisas sobre acognição do professor; pesquisas sobre o pensa-mento do professor; pesquisas compreensivas, in-terpretativas, interacionistas; e pesquisas que seapóiam na sociologia do trabalho e das profissões.Vejamos um pouco mais sobre cada uma delas.

1) Pesquisas sobre o comportamento do pro-fessor. Essas pesquisas são tributárias da psicolo-gia de matriz behaviorista, sendo seu objetivo ava-liar a eficácia do ensino a partir do impacto da açãodocente sobre os alunos (busca por estabelecercorrelações) uma de suas principais expressões.Orientam-se por uma visão funcional do ensino,concebendo o professor como um gestor do pro-cesso de aprendizagem que lança mão de conteú-dos, métodos e põem em curso certos comporta-mentos mais ou menos eficazes. Dentre outrosaspectos, essas pesquisas foram criticadas por nãolevarem em consideração os aspectos subjetivosna relação entre professores e alunos, bem comonão observarem as particularidades das situaçõesde ensino em sala de aula.

2) Pesquisas sobre a cognição do professor.Essa também é uma abordagem tributária da psi-cologia e que se desenvolveu a partir das críticasàs pesquisas processo-produto. O foco central des-sas pesquisas são os processos mentais, ou me-lhor, em sentido rigoroso, é a cognição dosprofessores. A principal preocupação é como osdocentes, na situação de ensino-aprendizagem, pro-cessam as informações, como as articulam, con-seguem utilizá-las, reutilizá-las e integrá-las às suasações. Os saberes docentes são vistos como umconjunto de informações, símbolos, roteiros, esque-

mas de ação. O cognitivismo foi bastante criticadopor sua estreiteza no modo de conceber o profes-sor e por desconsiderar a dinamicidade do proces-so de ensino-aprendizagem, tomando-o como umasituação previsível.

3) Pesquisas sobre o pensamento dos pro-fessores. Os estudos sobre o pensamento dos pro-fessores talvez seja a abordagem mais difundidano âmbito dos estudos sobre os saberes dos pro-fessores. Assim como as abordagens anteriores,ela também possui vínculos com a Psicologia, no-meadamente com o enfoque cognitivo, todavia, ul-trapassa as preocupações individualizantes eprocura situar o professor em seu contexto, emseu cotidiano de trabalho. É uma abordagem depesquisa influenciada também pela fenomenologiae pela etnometodologia, comportando estudos deenfoque psicossocial, sócio-crítico e sócio-constru-tivista. As pesquisas sobre o pensamento dos pro-fessores (teacher’s thinking) se interessam poraquilo que os professores pensam e percebem, apreocupação é com as representações que os pro-fessores fazem a respeito de seu trabalho, da dis-ciplina que ministram e a maneira como, no decorrerdo processo de ensino, pensam e resolvem os pro-blemas com que se deparam.

4) Pesquisas compreensivas, interpretativase interacionistas. Essas pesquisas buscam inves-tigar e evidenciar os pensamentos, as ações e inte-rações dos atores sociais a partir do contexto emque estes estão inseridos e mediante um enfoquehistórico e social. Existem pontos de contato coma abordagem anterior, algumas influências comuns(como a da etnometodologia), todavia, a perspecti-va compreensiva ou fenomenológica não enfatizaos aspectos cognitivos, mas a linguagem, as metá-foras, as narrativas, o sentido que os atores atribu-em à sua disciplina, à sua profissão etc. A pessoado professor aí ganha destaque, a experiência pro-fissional é ressaltada ao passo em que se atribui‘voz aos professores’.

5) Pesquisas que se orientam pelas contri-buições da sociologia do trabalho e das pro-fissões. A especificidade dessas pesquisas é aprocura por compreender a dimensão social doprofessor e de seus saberes, conferindo assim ên-fase aos aspectos ideológicos, aos conflitos e àstensões que permeiam, de diferentes modos, o tra-

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balho e a formação do professor. Essas pesquisassão influenciadas pela etnografia, pelo interacio-nismo, pela fenomenologia, retendo da Sociologiado Trabalho e da Sociologia das Profissões que osaber profissional é algo que se aprende na rela-ção com o trabalho (no decorrer de um períodorelativamente longo, que é o processo de socializa-ção profissional) e que as profissões são constru-ções sociais que se inserem em um quadro dedisputas por afirmação e legitimidade social.

Borges (2003) explica ainda que essas aborda-gens sobre o saber docente se encontram com di-versos outros estudos no campo do ensino, seentrecruzando com pesquisas de enfoque históri-co, pesquisas ligadas à Didática, aos estudos sobrecurrículo, às questões de gênero e, de minha parte,acrescento: aos estudos que investigam as media-ções entre trabalho e saúde do professor. Ao queparece, estamos diante de um campo de estudosque não somente é vasto em si mesmo, mas que seinfiltra e recebe infiltrações de várias correntesteóricas e metodológicas.

Em meio a tanta diversidade, os pesquisadores,ao desenvolverem seus estudos, utilizaram diferen-tes técnicas e instrumentos de investigação, porvezes fizeram uso de recursos convencionais, típi-cos à orientação epistemológica que sustentavasuas pesquisas e, por vezes, tiveram que criar no-vas técnicas e procedimentos. Essa é uma ques-tão importante, será preciso explicá-la melhor.

Algumas abordagens de pesquisa sobre o sa-ber docente, como as pesquisas sobre o comporta-mento do professor, sustentadas pelo behaviorismo,para levar adiante seus objetivos, fizeram uso detestes padronizados: testes fundamentalmentequantitativos e que visavam, por exemplo, captar onúmero de interações feitas pelo professor duran-te uma lição, número de perguntas feitas ao longode uma aula, dentre outros. Outras pesquisas, in-fluenciadas pela fenomenologia e seguindo a linha-gem etnometodológica, utilizaram a observaçãoparticipante e entrevistas aprofundadas para co-nhecer o professor em seu contexto, conhecer ossentidos que ele conferia a sua profissão, a suaprática etc.

No conjunto, é possível arrolar uma quantida-de significativa de técnicas e instrumentos em-pregados pelos pesquisadores para elaborar seus

estudos, tais como a observação, entrevista nãodirigida, filmagens, histórias de vida, levantamen-tos, estudos de caso, grupos de opinião etc. Emalgumas circunstâncias, no entanto, os pesquisa-dores se confrontaram com necessidades frenteàs quais o aparato metodológico disponível erainsuficiente, daí a necessidade de adaptação emesmo invenção de novos procedimentos meto-dológicos. Uma exigência posta, em certo senti-do, pelo próprio objeto.

A título de exemplo, é possível citar a pesquisarealizada em escolas públicas do estado do Cearápor Therrien & Damasceno (2000). Nessa pes-quisa, os autores buscaram articular a noção depráxis (VÁSQUEZ) à abordagem do professorreflexivo (SCHÖN) e à teoria do agir comunicati-vo (HABERMAS); bem como empregaram comotécnicas e procedimentos a observação participan-te, filmagens (vídeos), utilizaram métodos biográfi-cos (histórias de vida), estudos de documentaçãoe entrevistas individuais e em grupos. Na verdade,entre as pesquisas sobre os saberes docentes osexemplos são vários, como: a pesquisa realizadapor Manrique (2007) que procura, por meio de re-gistros escritos elaborados pelos professores (me-moriais), acessar seu saber experiencial e constituirao mesmo tempo um processo formativo; a neces-sidade de produzir conhecimento sobre os profes-sores, valorizar seus saberes e, ao mesmo tempo,intervir na realidade escolar vem também consti-tuindo novas modalidades de pesquisa, este é ocaso da pesquisa-colaborativa desenvolvida porGarrido, Pimenta & Moura (2000), que se fundana parceria entre universidade e escola; na mes-ma linha, segue o projeto desenvolvido por Mi-zukami (2003) que não somente utilizou recursosmetodológicos convencionais (observação, narra-tivas, portfólios etc.), mas criou estratégias deacesso aos saberes dos professores e promoçãode seu desenvolvimento por meio de projetos te-máticos, configurando parcerias entre professo-res da universidade e da escola, denominadas deexperiências de ensino e aprendizagem. En-fim, os exemplos são muitos e revelam os esfor-ços dos pesquisadores na busca de melhorapreender o que os professores fazem e sabem,às vezes aliando o conhecer e o intervir ou, se sequiser, o conhecer intervindo.

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Pelo que se pode depreender do exposto até omomento, vemos que os pesquisadores da área daeducação têm se preocupado e centrado esforçosna direção de melhor compreender isso que, umtanto vagamente, se denomina de saberes docen-tes. Nesse ponto, é oportuno destacar um impor-tante desafio aos que se propõem a desenvolverseus estudos nesse âmbito e que pode ser formu-lado nos seguintes termos: Como é possível evi-denciar o saber do professor? Mais que isso: sendoesses saberes articulados e, em parte, desenvolvi-dos no curso da atividade laboral, intrinsecamenteligados a ela, como é possível identificá-los? Osmodos de proceder do professor, as maneiras dese comportar, de se expressar corporal e verbal-mente estão eivados de saberes? Como? Se estão,como distinguir o que é uma idiossincrasia do su-jeito e aquilo que faz parte de um saber profissio-nal, produzido pelo coletivo docente? São questõessimples, óbvias até, mas que comportam mais difi-culdades que normalmente se imagina. Os pesqui-sadores que possuem experiência no estudo dossaberes dos professores entendem bem isso.

É relativamente fácil defender a existência de sa-beres da profissão docente, dizer que essa é umaprofissão plena de saberes, que o professor de-senvolve um conjunto de saberes que estruturamsua atividade e lhe dão segurança na sua ação.Contudo, apontar e classificar esses saberes émuito difícil, porque eles são constituídos emação, ligados a juízos e decisões tomadas em si-tuação (portanto, não são facilmente classificá-veis), têm origem diversa no aspecto de filiaçãoteórica e, também, estão associados à própria his-tória de vida dos professores e à sua situaçãoidentitária. (GUIMARÃES, 2006, p.142)

Ora, estamos metodologicamente bem funda-mentados para investigar o trabalho e o saber dosprofessores? Temos uma base de técnicas e pro-cedimentos suficientemente sólidos para aceder aossaberes que circulam nas situações de trabalho dosprofessores nas escolas? De minha parte, entendoque, na área da educação, temos avançado emrelação a esse ponto, mas a caminhada ainda élonga. É longa porque demanda, de um lado, en-frentar desafios epistemológicos, de outro, redimen-sionar o que se compreende por campo de estudossobre os saberes docentes.

No tocante ao desafio epistemológico, a ques-tão se refere aos fundamentos filosóficos e consti-tutivos do conhecimento, a partir dos quais ospesquisadores desenvolvem suas investigações. Épreciso alertar para o risco de ecletismo quando,para se conhecer o trabalho dos professores, a fi-losofia de matriz pragmática é conjugada, sem mais,à dialética ou quando da ação (em DEWEY) sepassa à práxis (no marxismo). Nesse terreno, nãosão as palavras que são diferentes, mas os conti-nentes.

No que se refere ao redimensionamento docampo de estudos sobre os saberes docentes, aquestão envolve afirmar o trabalho como eixo arti-culador maior das temáticas, o que permite agre-gar abordagens diretamente vinculadas aosaspectos pedagógicos e também às abordagens quearticulam trabalho e saúde. É a articulação maisampla entre trabalho, formação e saber que pautatal perspectiva. Entendo que é sob tais balizadoresque a noção de saber docente ganha sentido, poisesta não é uma discussão à parte das questões pró-prias ao mundo do trabalho, como igualmente nãoé uma questão à parte, como que completamenteseccionada, dos desenvolvimentos e das preocu-pações que, desde meados do Século XX, instigamos estudos no campo da Sociologia do Trabalho edas Profissões, da Ergonomia e da Psicologia doTrabalho. A relação é entre particularidade e tota-lidade. É necessário assumir isso. O saber do pro-fessor é, antes de tudo, o saber de um trabalhadore é preciso tirar conseqüências desse fato.

Nessa direção, seria importante o diálogo comas diferentes disciplinas que estudam o trabalho.Essas disciplinas1 possuem uma longa tradição,algumas delas com décadas de investigação so-bre o trabalho, e poderiam contribuir teórica e me-todologicamente com as pesquisas na área daeducação, particularmente com o campo dos sa-beres docentes.

Sendo esta a aposta, a seção seguinte do textoé uma tentativa de fornecer algumas pistas para

1 Além das disciplinas citadas anteriormente, vale mencionar ascontribuições da lingüística articulada aos estudos sobre as situ-ações de trabalho, com destaque para as investigações desenvol-vidas no Brasil por Maria Cecília Pérez Souza-e-Silva e suaequipe na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A esserespeito, vide. Souza-e-Silva & Faïta (2002) e Machado (2004).

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desdobramentos futuros. Antes de prosseguir eenfocar a questão propriamente metodológica, épreciso uma observação: as técnicas e os procedi-mentos no quadro de uma pesquisa estão subordi-nados às concepções de mundo mais amplas queas orientam, são seus fundamentos e projetos queguiam o procedimental e não o inverso. A técnicaem uma pesquisa não é inteligível per se, não ga-nha sentido fora do quadro teórico que a envolve.Tendo feito esse esclarecimento, passo então aopróximo momento do texto.

Psicologia do Trabalho: as instruçõesao sósia de Ivar Oddone

Como bem observa Clot (2006), os contornosda Psicologia do Trabalho ou, mais exatamente, oque ela congrega e as abordagens existentes emseu interior são objeto de intensa discussão. É pos-sível falar aqui em perspectivas fundadas no cog-nitivismo, perspectivas que valorizam a subjetivi-dade, em desdobramentos da PsicologiaErgonômica, da Psicopatologia do Trabalho, Psi-codinâmica, em contribuições da Psicologia Histó-rico-Cultural, enfim, existem vários ângulos parase chegar aos debates na Psicologia do Trabalho(CLOT, 2006). Neste texto, concentro-me no pro-blema dos métodos de acesso aos saberes que ostrabalhadores movimentam em suas atividades la-borais. Alguns estudiosos do campo da Psicologiado Trabalho vêm estruturando um corpo teórico-metodológico muito adequado para a investigaçãodas atividades de trabalho e que, devido suas ca-racterísticas, despertam interesse – refiro-me àsinstruções ao sósia, de Oddone, Re & Briante(1981).

O desenvolvimento do método das instruçõesao sósia está ligado ao quadro sócio-político daItália ao final dos anos de 1960 e a um contextoem que os autores buscam conferir outra direçãode sentido para a Psicologia ao propor que estaestabelecesse interlocução com a experiência la-boral de homens e mulheres.

Na apresentação de Redécouvrir l’expérienceouvrière, obra síntese de Oddone, Re e Briante(1981), Yves Clot comenta que o contexto em queIvar Oddone e sua equipe desenvolvem suas pes-quisas é o do “maio de 68” italiano, movimento que

por lá ocorre um pouco mais tarde, em 1969. Noâmbito das questões atinentes ao mundo do traba-lho, o quadro que circunda o referido período é odo fortalecimento das lutas por direitos e relaçõesdemocráticas pelo operários. De modo mais preci-so, no caso de Turin é possível situar todo um con-junto de novas relações que vão-se constituindo aolongo dos anos de 1960 entre médicos, psicólogosdo trabalho e a organização sindical: é nesse con-texto que as iniciativas de Oddone e seus colabo-radores ganham sentido. Essas mobilizações e lutasnos anos 70 resultarão, dentre outros aspectos, naassinatura da convenção coletiva da metalurgia queprevia o direito a que o trabalhador pudesse, emsua jornada de trabalho, gozar de 150 horas de for-mação, uma formação cultural, distinta assim daformação eminentemente profissional. Os estudose processos metodológicos elaborados por Oddo-ne foram desenvolvidos nesses seminários de for-mação sindical na Fiat de Turin.

Ivar Oddone, médico estudioso da Psicologiado Trabalho, estava preocupado com as questõesrelativas à saúde e ao meio laboral, mas seu inte-resse repousava sobre um fundo político, nomea-damente gramsciano, direcionado a contribuir comos trabalhadores, fortalecer suas lutas, evidenciaros saberes que o taylorismo tendia a obscurecer.Tornar o trabalho concreto, ainda que parcialmen-te, visível era então um imperativo, tendo em vistaampliar a potência das lutas dos trabalhadores.Mas, como levar tal empreendimento adiante?Como proceder para possibilitar aos operários re-dimensionar a compreensão de seu trabalho e o docoletivo de trabalhadores de que faz parte? Queestratégia utilizar para alargar a experiência do tra-balho desses operários?

Inicialmente, Oddone e seus colaboradores bus-caram simplesmente recolher as histórias de cadasujeito individualmente, mas esse empreendimentonão foi bem sucedido: o operário participante ten-dia a idealizar suas descrições sobre o trabalho, ooperário ‘enfeitava’, inclinava a descrição em di-reção a um modelo dominante do proceder, ou seja,em direção às regras abstratas (como na descri-ção ideal prescrita nos manuais e roteiros formali-zados) do que às exigências e contradições vividasna realidade do trabalho. Nesses termos, o prejuí-zo era óbvio para os fins que norteavam Oddone e

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sua equipe, pois certos constrangimentos da reali-dade e a experiência informal se perdiam. As ins-truções ao sósia foram desenvolvidas para oenfrentamento dessa questão, pois seu interesseera alcançar e reelaborar os saberes da experiên-cia de trabalho dos operários.

Objetivamente, o procedimento consistia emsolicitar a um operário voluntário que instruísse umsuposto sósia. A seguinte pergunta nortearia o pro-cesso: se existisse uma outra pessoa fisicamenteidêntica, perfeitamente igual a você, e essa pessoaamanhã fosse lhe substituir no trabalho, o que eladeveria saber e fazer para que ninguém percebes-se a substituição?

O desdobramento da questão anterior era rea-lizado a partir de quatro referências específicas:(1) a relação do trabalhador com a tarefa, (2) comos colegas de trabalho, (3) com a hierarquia e (4)com os sindicatos. É claro que não é possível eli-minar completamente o problema da distância en-tre o comportamento descrito e o efetivo, o narradoe o realizado, mas isso, segundo os autores, pode-ria ser equacionado, por exemplo, com a escolhados aspectos enfocados e o testemunho de outrostrabalhadores. Os seminários, desse modo, servi-am como um coletivo que coloca em exame, ela-bora e reelabora o experienciado no labor cotidiano.

O trabalhador, ao exercitar as instruções a umsósia e se concentrar nas indicações do como pro-ceder, é instigado a desprender-se da primeira pes-soa e apontar os implícitos da situação laboral, nesseponto, o recurso ao você deve... mostra-se perti-nente. O sósia é um outro fictício, um colega detrabalho idêntico que não sabe fazer o que ele(como especialista de sua área) sabe, mas que pre-cisa saber para que o trabalho seja realizado. Oque, em uma determinada situação de trabalho, éevidente para o sujeito que ali está todos os dias,para o sósia não o é. O que precisa ser realizadopara ele não é nada óbvio. Para o sósia saber oque deve fazer, os implícitos e os modos de desen-volver a tarefa devem ser explicados, os modos deagir e se relacionar devem ser, minuciosamente,informados.

No curso desse processo anteriormente des-crito, Oddone buscava alargar a experiência dosoperários no sentido de potencializar suas lutas e acompreensão de seu trabalho. O desafio aí é enor-

me, visto que o trabalho não se torna mais visívelsimplesmente porque ele está sendo ‘observado’por alguém e o próprio sistema social tende, comoensinava Marx, a se apresentar no capitalismo comoquase-natural. Oddone não desconhecia sua ár-dua empreitada, contudo estava convencido de queuma importante abertura estava na produção deconhecimento que articulasse o saber conceitualcom o saber dos trabalhadores, trabalho em con-junto entre pesquisadores e operários que, poten-cialmente, poderia redimensionar a Psicologia doTrabalho e conferir aos operários uma outra pers-pectiva sobre seus saberes e seu trabalho.

Ergonomia da Atividade: conhecerpara transformar o trabalho

Alguns estudos que se aproximam de aspectosproblematizados pela Ergonomia podem ser identi-ficados ainda no séc. XVII e, mais precisamente,no início do séc. XX, com estudos elaborados porfisiologistas do trabalho do CNAM2, na França, edo até então Kaiser Wilhelm , atual Instituto MaxPlank, na Alemanha (WISNER, 1992). Todavia, épor volta da década de 1940, no contexto da IIGuerra, que de fato é possível localizar o surgi-mento da Ergonomia, é que “As guerras, em virtu-de da situação da extrema necessidade quecausam, são momentos de rupturas para certosprincípios sociais que governam a Ciência” (WIS-NER, 1992, p.31). E de fato, ainda segundo o au-tor, situações novas foram experimentadas à medidaque foi preciso enfrentar os problemas que a reali-dade impunha a todos e, nesse sentido, especialis-tas de disciplinas diferentes foram instados etrabalhar juntos e a direcionar o conhecimento paraas situações concretas. A Ergonomia tem desdesuas origens essa característica de ser um campo(ou uma arte que se fundamenta na ciência, comoprefere Alain Wisner) que demanda a ação con-junta de várias disciplinas: Biomecânica, Fisiologiado Trabalho, Psicologia do Trabalho, Sociologia doTrabalho, Lingüística, dentre outras. A Ergonomia,conforme Wisner (2004), é uma disciplina que de-manda sínteses.

2 Localizado em Paris, o Conservatoire National des Arts etMétiers (CNAM) é uma das mais conceituadas instituições nosestudos sobre a Ergonomia.

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Na França, a trajetória da Ergonomia foi sensi-velmente diferente da perspectiva desenvolvida nospaíses anglo-saxônicos. Nesses países, a Ergono-mia esteve ligada a uma base teórica e metodoló-gica fundada em um certo modo de compreendera realidade social e o ser humano no trabalho. Foia ciência positiva, desdobrada no behaviorismo, quemarcou a abordagem inglesa e americana (emble-mático disso é o recorrente uso da expressão Hu-man Factors). Na França, a trilha seguida foi bemoutra.

A abordagem francófona desde cedo manifes-tou seu desconforto com o recorte positivista, aopasso que muitos dos estudiosos da Ergonomia fo-ram influenciados pela Psicologia de matriz sovié-tica. Na França, a Ergonomia é, fundamentalmente,uma Ergonomia da Atividade. Em síntese, explicaWisner, isso significou uma construção diferentedo objeto de análise: “O objeto da ergonomia britâ-nica – e americana – é, em primeiro lugar, o equi-pamento: o da ergonomia francófona é muito maisenigmático, é o trabalho” (WISNER, 2004, p.44).Compreender o trabalho para transformá-lo, comoresume o título da obra síntese de Guérin et al(2004), é a proposição fundamental da análise er-gonômica.

É importante explicitar que a inflecção experi-mentada pela Ergonomia não se deu somente porrazões teóricas, mas igualmente por aspectos mui-to concretos. É que as contradições próprias à aná-lise das situações de trabalho parecem ter sido umdos importantes elementos fomentadores da refe-rida perspectiva, pois os recursos teórico-metodo-lógicos até então disponíveis pareciam nãoacompanhar o que, de fato, ocorria nas situaçõeslaborais.

Todavia, certos ergonomistas, pertencentes particu-larmente à ergonomia de língua francesa, descobri-ram que parte dos insucessos da ação ergonômicaestava relacionada com o fato de confiarem na des-crição do trabalho fornecida pela direção da empresa– a tarefa prescrita – enquanto na realidade os opera-dores tinham atividades bem diferentes – o trabalhoreal – decorrentes das exigências com as quais sedeparavam na realidade. (WISNER, 1992, p. 32)

A questão acima referida, a da decalagem en-tre o trabalho prescrito e o trabalho real, será en-tão central para a Ergonomia da Atividade. O

trabalho prescrito remete ao que é previamente fir-mado, portanto, a uma esfera na qual se indica oque precisa ser realizado (por exemplo, nos manu-ais técnicos, nas normas gerais de operação, nasorientações de segurança do trabalho etc.). O tra-balho real remete ao que é efetivamente realizado,portanto, à esfera daquilo que se faz diante dasespecificidades, variabilidades e constrangimen-tos3 da situação de trabalho. No cerne de tudo isso,está a atividade dos trabalhadores. O trabalhoprescrito precisa, inelutavelmente, passar por elapara que seja desenvolvido. Depreende-se dissouma conclusão universal em se tratando de traba-lho humano: o trabalho real nunca será idêntico aotrabalho prescrito ou, em outros termos, “todo tra-balho feito ‘como foi mandado’ é sempre, também,um ‘trabalhar de outra maneira’” (DI RUZZA;SCHWARTZ, 2003, p.4).

A Ergonomia possibilita uma visada sobre o tra-balho, efetuada em situações bem delimitadas, queem conjunto põe em exame as condições em queo trabalho é realizado, os resultados a que se che-ga e a complexa dinâmica que enlaça tudo issocom a atividade do sujeito. O trabalho aqui é ins-tância pessoal, remete sempre a pessoas, suas vi-das e percursos, mas também é instânciasócio-econômica com fins que transcendem o in-divíduo e a ele se impõem. Nesse sentido, não sedeve perder de vista que o trabalho é uma realida-de social exterior ao indivíduo isolado (GUERÍNet al, 2004). A Ergonomia considera e articula es-sas duas perspectivas que, no contexto da relaçãoentre capital e trabalho, são (em sentido dialético)eivadas de contradições.

O analista do trabalho sempre se confronta com asingularidade de uma pessoa que, no ato profissio-nal, põe em jogo toda a sua vida pessoal (história,experiência profissional e vida extra-profissional) esocial (experiência na empresa, identidade e reco-nhecimento profissional). Mas, ao mesmo tempo,defronta-se com o modo como essa singularidadefundamental é objeto de uma gestão sócio-econô-mica por parte da empresa: política social e gestãodos recursos humanos, tendo por “objeto” os tra-

3 No sentido de exigências postas, de demandas a serem cumpri-das, de situações em que se é apertado. Nas publicações emErgonomia, a palavra contrainte, sem tradução exata na línguaportuguesa, é comumente utilizada para expressar esse aspecto.

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balhadores, a escolha das condições e objetivos deprodução determinando o uso social dessa popula-ção. (GUÉRIN et al., 2004, p.17)

Como se nota, a Ergonomia da Atividade cons-titui uma perspectiva que põe o ser humano ‘intei-ro’ em relação ao trabalho. É o trabalhador e oquadro que o envolve que é precisamente delinea-do e analisado, daí a imperativa necessidade (essaé outra característica da Ergonomia) da prudênciae do não contentamento em, de fora, decretar oque se passa com as pessoas no trabalho. Para oespecialista externo isso significa adotar o princí-pio de que o trabalho é algo que se realiza em con-textos muito próprios, por exemplo, de disponibili-dade de materiais, de constrangimentos de tempo,de características dos trabalhadores. Assim, se ointeresse for o de compreender para transformar,será necessário se encontrar com as situaçõesconcretas e ver o que lá efetivamente se passa4.

Considerações finaisNo presente texto, procurei apresentar um pou-

co das perspectivas teórico-metodológicas das pes-quisas que perpassam o campo de estudos sobre osaber docente e recortam, de diferentes maneiras,os professores e sua profissão. Argumentei quetivemos avanços em relação ao corpo de técnicase instrumentos utilizados nas pesquisas e que, paraalém dos recursos convencionais, as demandasimpostas pelo próprio objeto exigiram que o novoemergisse. Assim, os pesquisadores se viram di-ante da necessidade de adaptações e mesmo decriar novos modos de produção de conhecimento.Não se deve ter dúvida, mesmo com dificuldades,existiram avanços nesse ponto. Todavia, se a pro-cura é pela compreensão do que fazem e sabemos docentes, é razoável perguntar pelo que as dis-ciplinas, que estudam o trabalho, produziram e pro-duzem a esse respeito. Acredito que esse seja umcaminho fértil, uma via importante para que se possapensar e repensar a profissão de ensinar tanto noaspecto da prática formativa inicial e continuada,como no das situações de trabalho.

A abordagem da Psicologia do Trabalho e daErgonomia da Atividade apresentadas têm fortevínculo com preocupações políticas e sociais, seus

autores procuraram constituir métodos de investi-gação que não somente produzissem conhecimen-to sobre a experiência do trabalho, mas quesimultaneamente potencializassem a transforma-ção do trabalho. As instruções ao sósia e a aná-lise ergonômica do trabalho são métodos de seproduzir conhecimento sobre o trabalho, não sãoos únicos métodos, não são as únicas vias de seconhecer a atividade laboral. O interesse de am-bas as perspectivas é, ao mesmo tempo, modestoe desafiador. Modesto porque é preciso humildadefrente à complexidade dos aspectos que envolvemo trabalho; desafiador porque estudar o trabalho éalgo muito complicado, mas também politicamenteimportante e socialmente necessário.

O trabalho é algo complexo, mas é politicamentefundamental que os trabalhadores possam compre-endê-lo melhor e que seus saberes sejam social-mente reconhecidos, como do mesmo modo é umimperativo social que atividade de uma empresa,de um hospital, do transporte público ou de escolasencontre eficácia em seus objetivos fixados soci-almente. A contradição que perpassa tudo isso éque, em uma sociedade de mercado como a nossa,o bem comum, como se sabe, é obscurecido pelointeresse privado. Todavia, é importante ter clare-za de que não se está melhor quando se desconhe-ce o que reside sob o que denominamos de trabalho.A Organização Científica do Trabalho provou issosuficientemente. Não é demais lembrar que Taylorfez referência ao labor operário como o de um ‘ho-mem boi’ e que Henry Ford, um pouco depois, di-zia que seus operários podiam deixar a inteligênciajunto com o chapéu logo ao entrarem na fábrica.

Na área da educação, tal visão restrita do queé o trabalho também se apresenta. Embora críti-cas, a meu ver não insensatas, algumas indaga-ções se impõem. Seria forçado dizer que, via deregra, as políticas educacionais, quando em oca-sião de reformas no ensino, são movimentadas a

4 Bem entendido, ir ao trabalho concreto não significa acreditarque todas as respostas lá residem. O trabalho é uma realidadesocial. Portanto, a posição do trabalho concreto (em sentidodialético rigoroso) pressupõe o trabalho abstrato, por conse-guinte os imperativos de uma norma política, ideológica e eco-nômica que está e ultrapassa as situações particulares. Reconhe-cer isso, contudo, absolutamente não autoriza economizar es-forços em compreender o que se passa nas situações laborais.Essa é uma importante lição da Ergonomia da Atividade.

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partir de uma visão simples do trabalho? Se o tra-balho é algo complexo, desconsiderar sua dinâmi-ca não pode causar desfuncionamentos graves?Quem paga a conta quando os projetos fracassam?Para responder a essa última interrogação não épreciso ser muito imaginativo...

O que foi discutido no presente texto traz impli-cações em relação ao que vem sendo elaboradonas pesquisas e nos estudos sobre os saberes do-centes. Falar de saberes sem encarná-los nas situ-ações concretas de trabalho, enveredar pelosexcessos do cognitivismo ou promover uma espé-cie de fuga em direção ao indivíduo5, destacando-o do conjunto das relações sociais é tatear por umaperspectiva cuja potência para compreender e in-tervir sobre a realidade é, no mínimo, bastante li-mitada. Ensino é trabalho, não se deve perder issode vista.

Nesse ponto, a Psicologia do Trabalho e a Er-gonomia da Atividade têm o que dizer sobre o quefazem e sabem os professores mas, curiosamen-te, parecem sub-aproveitadas pelo campo da edu-cação, embora mais facilmente possam serencontrados em estudos no campo da saúde, nos

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5 Nesse ponto, a observação de Resende é precisa: se tomada sem mediações, a retirada da história em direção ao indivíduo é aretirada do indivíduo da história (cf. RESENDE, 2009).

estudos sobre linguagem e na Engenharia da Pro-dução. Nesse sentido, os limites e as possibilida-des abertas por ambas as disciplinas em questãopodem ainda ser explorados pelos educadores.Sem dúvida, ainda há muito que fazer nesse âm-bito e o leitor interessado poderá encontrar emalguns autores brasileiros o fortalecimento dessadiscussão, como nos estudos desenvolvidos porVieira (2004), Alves (2009), Botechia & Athayde(2008).

Por último, é oportuno efetuar uma observaçãoque, a julgar pelos caminhos até aqui percorridos,não é nada impertinente: se o trabalho humano forvisto como uma mera evidência (algo manipulável,de contornos claramente identificados e sobre oqual não se precisa indagar), o empreendimentode compreendê-lo malogrará logo de saída, istoporque a concepção que se tem sobre o trabalhointerfere no modo como ele será interpretado. Con-servar o ‘espanto’ frente à atividade de trabalhoé algo então fundamental. Como dizem os ergono-mistas, o trabalho é sempre uma realidade enig-mática. Nesses termos sim, vale a pena falar emsaberes da profissão docente.

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Wanderson Ferreira Alves

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 229-239, jan./jun. 2010

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Recebido em 30.05.08Aprovado em 27.06.08

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RESUMOS DEDISSERTAÇÕES

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PEREIRA, Áurea da Silva.* Percursos da Oralidade e Letramento na comunidaderural de Saquinho, município de Inhambupe, BA. 2008. 190f. Dissertação (Mestrado)– Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Departamentode Educação – Campus I, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2008.**

Esta pesquisa enfoca as narrativas de histórias devida de quatro idosos, residentes de uma comuni-dade rural – Saquinho – no interior da Bahia. Tra-ta-se de pessoas consideradas “iletradas” devidoao baixo nível de escolaridade, com ascendêncianegra e que exercem funções de liderança popularna comunidade. Do material registrado na pesqui-sa, contendo vários tópicos da vida pessoal e cole-tiva, pode-se perceber que as histórias de vidacontadas por esses idosos testemunham fatos,acontecimentos vividos em Saquinho em um am-plo período de tempo, elementos que constituemum patrimônio cultural dessa comunidade e que sepreserva através da tradição oral. Investigamos aintervenção do letramento nas experiências de vidanarradas por esses sujeitos ditos ‘iletrados’; verifi-camos o papel da leitura e da escrita na formaçãoda identidade social. Utilizamos a metodologia dahistória oral (MEIHY, 1994, 2005, 2007), destacandoa importância da tradição oral e dos saberes locaisna formação sociocultural de comunidades rurais(CERTEAU, 1996; ZUMTHOR, 1993, 2000), ediscutimos sobre as práticas de letramento escolare o seu distanciamento do contexto cultural da co-munidade (ARROYO, 2003, 2005; MARCUSCHI,2001a, 2001b ; MOTA, 2002, 2004, 2006; KLEI-MAN, 1995; STREET, 1984; SOARES, 2000,2004). Os dados coletados e analisados trazem umvalioso conjunto de textos que contribui para umareflexão sobre a interação escola e comunidade,assim como uma avaliação sobre os currículos es-colares em comunidades rurais.

Palavras-chave: História oral de vida – Oralidadee letramento – Memória e Tradição oral

* Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC, Universidade doEstado da Bahia. Professora da Universidade do Estado da Bahia, Campus II – Departamento de Educação, Colegiado deLetras. Ministra componentes curriculares de estágio supervisionado do curso de Letras. Endereço para correspondência:Rodovia Alagoinhas – Salvador BR 110 km 03 – 48.040-210 Alagoinhas, BA. E-mail: [email protected].** Orientadora: Profª. Doutora Kátia Maria Santos Mota (UNEB); co-orientador: Profº. Doutor Elizeu Clementino de Souza(UNEB); data: 15 de agosto de 2008. Banca examinadora: Profª. Dra. América Lúcia Silva César (UFBA), Profª. Dra. Edil SilvaCosta (UNEB).

ABSTRACT: Pathways of Orality and Literacyin the Rural Community of Saquinho, inInhambupe, Bahia, Brazil.This research presents narratives of life histories byfour elders, residents of a rural community calledSaquinho, in the state of Bahia (Brazil). These people,from afro-descendant origin, are considered illiterate dueto their low level of schooling; even though they assumethe social functions of popular leadership in thecommunity. On the other hand, we also investigated theintervention of the literacy culture in the experiencesnarrated by the subjects, although they are consideredas “illiterate”: there are many situations in real life inwhich the subjects had to face tasks involving writtentexts; their reaction included success and failure results;it was also examined the role of reading and writing inthe development of social identity. The researchfollowed the methodology of oral history (MEIHY, 1994,2005, 2007), pointing out the importance of oral traditionand local knowledge for the socio cultural ethos of ruralcommunities (CERTEAU, 1996; ZUMTHOR, 1993, 2000)and it was discussed the school’s literacy practices andits mismatch with the cultural reality of the community(ARROYO, 2003, 2005; MARCUSCHI, 2001a, 2001b;MOTA, 2002, 2004, 2006; KLEIMAN, 1995; STREET,1984; SOARES, 2000, 2004). The collected and analyzeddata compose a rich set of texts which can contributefor a reflection about the interaction between schooland community cultures, as well as an evaluation aboutschool curricula in rural communities.

Keywords: Life oral history – Orality and literacy –Memory and oral tradition

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CARVALHO, Carla Meira Pires de*. O Teatro na Educação de Jovens e Adultos:contribuições para o processo de letramento e a formação da cidadania. 175f. il.2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação eContemporaneidade. Departamento de Educação – Campus I, Universidade do Estadoda Bahia, Salvador, 2009**.

O letramento constitui-se como um dos maioresdesafios educacionais, tornando-se ainda maiscomplexo e acentuado quando se trata da Educaçãode Jovens e Adultos (EJA). Reflete-se, então, quetal modalidade de ensino requer um olhardiferenciado, pois os sujeitos envolvidos possuemhistórias de vida marcadas por um processo deexclusão da aprendizagem formal, dentro de umasociedade grafocêntrica. Assim, o caminhometodológico trilhado nessa investigaçãofundamentou-se na pesquisa qualitativa de caráterexploratório, utilizando, além da observação porparte do pesquisador, a análise de dados atravésda sistematização de categorias, advindas das falasdos sujeitos entrevistados, professores e alunos deEJA. Buscou-se investigar a inserção da disciplinaTeatro e suas implicações político-pedagógicas naformação do letramento e da cidadania na EJA.Enfocando os estudos sobre letramento, cidadania,teatro e educação, esta investigação utiliza comoaporte teórico autores como Paulo Freire, MagdaSoares, Ângela Kleiman, Tomaz Tadeu da Silva,Flávio Desgranges, Ana Mae Barbosa, DuarteJúnior e Viola Spolin. Os resultados da pesquisa,organizados em um total de treze categorias,apontam não só para a contribuição da disciplinaTeatro no desenvolvimento das práticas deletramento, como também no estímulo à frequênciaà escola, ao mesmo tempo em que insere essesujeito em espaços culturais que lhes foramhistoricamente interditados. Finalmente, ficaevidente que a sensibilização estética dessessujeitos, a partir da experiência teatral, passa a sedesenvolver nos diferentes espaços sociais em queesses sujeitos circulam, contribuindo, assim, para asua formação de cidadania.

* Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade– PPGEduC/UNEB. Licenciada em teatro pela Universidade Federal da Bahia. Professora substituta da Escola de Teatro daUniversidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]** Orientadora: Professora Drª. Kátia Maria Santos Mota (UNEB); data: 10 de setembro de 2009; banca examinadora: Profa.Dra. Isa Maria Faria Trigo (UNEB), Profº. Drº. Sérgio Coelho Borges Farias (UFBA).

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos– Teatro – Letramento e cidadania

ABSTRACT: Theater in Youth and AdultEducation: contributions for the process ofliteracy and the construction of citizenship

Literacy is considered one of the major challenges for theyouth and adult population in school, especially when itinvolves subjects coming from situations of socialexclusion, those whose life histories have characterizedthem as outsiders in a graphocentric culture. From thisstarting point, the present investigation develops anexploratory qualitative research, considering the voicesof the subjects – teachers and students – as the maintool, in which the data are organized and analyzed incategories, added to fieldwork observations.. The mainfocus is on the understanding of the pedagogic practicesin the Theater class and its political implications in thedevelopment of literacy and citizenship in this educationalmodality. Based on the studies on literacy, citizenship,theater, and education, this research is based upon thetheories of Paulo Freire, Magda Soares, Ângela Kleiman,Tomaz Tadeu da Silva, Flávio Desgranges, Ana MaeBarbosa, Duarte Júnior, and Viola Spolin. The results showthat the construction of fourteen analytical categoriespoint out not only to the positive contribution of Theaterclasses in the development of literacy but also as apowerful strategy to increase the frequency of thestudents in school; at the same time, students are includedin cultural spaces which have been historically denied tothem. Finally, it is evident that the aesthetic awareness,brought through the participation in theatrical activities,empowers the active participation of these students indifferent social spaces where they interact, contributingin this way to the subjects’ construction of citizenship.

Keywords: Youth and Adult Education – Theater –Literacy and citizenship

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FIGUERÊDO, Michal Siviero.* Coral “Canto que Encanta”: um estudo do processode educação musical com idosos em Madre de Deus, região metropolitana deSalvador, Bahia. 145f. il. 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduaçãoem Música da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.**

Esta pesquisa estudou o processo de educaçãomusical com idosos. Foi realizado um estudo de casoexplanatório para coletar e analisar os aspectosimpactantes no processo de ensino e aprendizagemmusical dos participantes da atividade de Canto-Coralda Secretaria de Desenvolvimento Social daPrefeitura Municipal de Madre de Deus. Comofontes de evidências para as análises, destacam-se:observações diretas realizadas pela pesquisadora,que já atuava e continuou atuando como educadorae regente no grupo; gravações em áudio e vídeo deensaios e apresentações; os formulários de 25 idosascoralistas contendo dados pessoais gerais, auto-avaliação de funções do organismo, informaçõessobre a experiência e preferências musicais, opiniãosobre a aprendizagem no coral e avaliação musicalrelacionada à extensão vocal, afinação, ritmo,percepção e expressividade. Além disso, estapesquisa contou com a contribuição multidisciplinarda fonoaudióloga Leila Mazarakis do sistema públicode saúde do município que avaliou, em consultório,23 senhoras coralistas. Buscou-se investigar quaissão os aspectos citados pela literatura científica sobreo envelhecimento, que faziam parte da realidade doCoral das Idosas de Madre de Deus. Os resultadosencontrados revelam que vários aspectos fisiológicos(como a presbiacusia e a presbifonia) e psicossociais(situação sócio-econômica e tensões grupais) estãointerligados e impactam o processo de ensino eaprendizagem de diversas maneiras. Oconhecimento desses fatores impactantes contribuipara que o educador musical compreenda melhoraspectos significativos relacionados aoenvelhecimento, realize práticas educativas maisadequadas à faixa etária estudada e promova aqualidade de vida dos idosos.

* Doutoranda e Mestre em Educação Musical pela Universidade Federal da Bahia (mestrado com apoio da FAPESB). Regentedo coral de idosos Canto que Encanta na Prefeitura Municipal de Madre de Deus-Bahia, de 1998 a 2008. Professora de Arte noInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IFBaiano). Endereço para correspondência: Escola de Música daUFBA, Rua Araújo Pinho, 58, Canela – 40110-040 Salvador-BA. E-mail: [email protected]** Orientador: Profº Dr. Luiz Cesar Marques Magalhães (UFBA). Data da defesa: 17 de Março de 2009.Banca examinadora: Profª Dra. Magali Oliveira Kleber (UEL); Profª Dra. Ana Cristina Gama dos Santos Tourinho (UFBA).

Palavras-chave: Idosos – Educação Musical –Canto-Coral

ABSTRACT: “Canto que Encanta” Chorus: astudy of the process of musical education withelders in Madre de Deus (metropolitan area ofSalvador, Bahia, Brazil).

This exploratory study-case studied a process of musicaleducation in elders. We collected significant data aboutthe teaching-learning process of the participants in theChorus Canto que Encanta in the city of Madre deDeus. We were and still are teacher and leader of thechorus. We use participant observation, video and audiorecords, forms, auto-evaluation, and evaluation of vocalextension, tuning, rhythm, perception andexpressiveness. Moreover, this research receivedcontribution from the Speech Therapist Leila Mazarakiswho pertains to the health public system of Madre deDeus. She evaluated 23 aged chorus singers. We triedto investigate which aspects present in the scientificliterature about aging were part of the reality of theMadre de Deus Aged Chorus. The results show thatsome physiological (as presbicusis and the presbifonia)and psychosocial (economic situation and grouptensions) aspects are linked and influence the processof education and learning in diverse ways. The detailedknowledge about these impacting factors may help theMusical Educator to understand important aspectsinvolved in this life period and to create musical activitiespotentially beneficial for the improvement of the qualityof life of elders.

Keywords: Aged – Musical education – Chorus Song

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* Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisadora do grupo de pesquisa “EFOPI” – Educação,Formação de Professores e Infância da Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora da Rede Municipal de Ensino de Juizde Fora. Endereço para correspondência: Rua Jovino Ribeiro, 33/403, Bairro: Bairu – 36050-220 Juiz de Fora/MG. Email:[email protected]** Orientadora: Profª. Drª. Léa Stahlschmidt Pinto Silva (UFJF). Data: 24 de março de 2008. Banca examinadora: Profª. Drª.Luciana Pacheco Marques (UFJF), Profª. Drª. Vera Maria Ramos de Vasconcellos (UERJ).

ARAÚJO, Viviam Carvalho de.* A brincadeira na instituição de Educação Infantilem tempo integral: o que dizem as crianças? 138f. Dissertação (Mestrado) –Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora.Juiz de Fora/MG, 2008. **

A importância de práticas que inserem a brincadeirano currículo educacional e nas propostaspedagógicas das instituições de educação infantilé uma das formas de se considerar as culturasinfantis e entender as crianças enquanto sujeitoshistóricos, que participam e transformam arealidade em que vivem. Esta pesquisa teve comoobjetivo investigar o lugar do brincar em umainstituição de educação infantil em tempo integrala partir da perspectiva das crianças. A abordagemteórico-metodológica adotada caminhou no sentidode considerar as crianças enquanto sujeitos dedireito, produtores e consumidores de cultura. Apesquisa teve como universo empírico uma escolade educação infantil em tempo integral da RedeMunicipal de Ensino de Juiz de Fora/MG. Ossujeitos da investigação foram 20 crianças, entre 4e 5 anos, que frequentam a instituição. Osprocedimentos metodológicos adotados foram aobservação envolvendo situações em que ascrianças brincavam e a utilização de desenhosproduzidos por elas que, aliados à oralidade,tornaram-se um procedimento metodológicopossível de fomentar o discurso das crianças arespeito do tema. Essa discussão baseou-se nosconceitos teóricos abordados por autores daperspectiva histórico-cultural, como Vigotski,Leontiev e Elkonin, que apontam que a brincadeirade faz-de-conta é a atividade principal das criançasna idade pré-escolar. Os resultados indicam que abrincadeira de faz-de-conta é a principal atividadedesempenhada por elas no contexto da instituiçãode educação infantil que frequentam. As discussõesrealizadas nesta pesquisa apontam o quanto o temarelacionado à brincadeira precisa ser debatido nosespaços de formação dos professores.

Palavras-chave: Educação Infantil – Brincadeira– Infância – Criança

ABSTRACT: Playing at the institution ofchildhood education in full time:What do the children say?The importance of practices which insert play in theeducational curriculum and in the pedagogicalproposals of children education institutions is one wayto consider children culture and understand children ashistorical individuals, who participate and change thereality they live in. The aim of this research was toinvestigate the place of play in a full-time childreneducation institution from the children’s perspective.The theoretical-methodological approach adoptedconsidered children as individuals of right, producersand consumers of culture. The research had as itsempirical universe a full-time public school of childreneducation in the city of Juiz de For a/MG. The subjectsof the investigation were 20 children, aged from 4 to 5years, enrolled in this school. The methodologicalprocedures adopted were the observation of situationsin which children played and the use of drawings madeby them that, together with speech, have became amethodological procedure able to promote children’stalk about the subject. This discussion was based onthe theoretical concepts approached by authors of thehistorical cultural perspective, as Vigotski, Leontiev andElkonin, who put the make-believe play as the mainactivity of preschool age children. The results indicatethat make-believe play is the main activity made by themin the context of the children education institution theyattend. The discussions made in this research point outhow much the subject related to play still needs to bediscussed in the places of teacher formation.

Keywords: Children education – Play – Childhood –Child

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Revista da FAEEBA: Educação e ContemporaneidadeISSN 0104-7043

Revista temática semestral do Departamento de Educação I – UNEB

Normas para publicação

I – PROPOSTA EDITORIAL

A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade é um periódico temático e semestral,que tem como objetivo incentivar e promover o intercâmbio de informações e resultados de estudos epesquisas de natureza científica, no campo da educação, em interação com as demais ciências sociais,relacionando-se com a comunidade regional, nacional e internacional. Aceita trabalhos originais, queanalisam e discutem assuntos de interesse científico-cultural, e que sejam classificados em uma dasseguintes modalidades:- ensaios: estudos teóricos, com análise de conceitos;- resultados de pesquisa: texto baseado em dados de pesquisa;- estudos bibliográficos: análise crítica e abrangente da literatura sobre tema definido;- resenhas: revisão crítica de uma publicação recente;- entrevistas com cientistas e pesquisadores renomados;- resumos de teses ou dissertações.

Os trabalhos devem ser inéditos, não sendo permitido o encaminhamento simultâneo para outroperiódico. A revista recebe artigos redigidos em português, espanhol, francês e inglês, sendo que ospontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Os originais em francêse inglês poderão ser traduzidos para o português, com a revisão realizada sob a coordenação do autor oude alguém indicado por ele.

Os temas dos futuros números e os prazos para a entrega dos textos são publicados nos últimosnúmeros da revista, assim como no site www.revistadafaeeba.uneb.br, ou podem ser informados peloeditor executivo a pedido. Também será publicada, em cada número, a lista dos periódicos com os quaisa Revista da FAEEBA mantém intercâmbio.

II – RECEBIMENTO E AVALIAÇÃO DOS TEXTOS RECEBIDOS

Os textos recebidos são apreciados inicialmente pelo editor executivo, que enviará aos autores aconfirmação do recebimento. Se forem apresentados de acordo com as normas da Revista da FAEEBA:Educação e Contemporaneidade, serão encaminhados para os membros do Conselho Editorial ou parapareceristas ad hoc de reconhecida competência na temática do número, sem identificação da autoriapara preservar isenção e neutralidade de avaliação.

Os pareceres têm como finalidade atestar a qualidade científica dos textos para fins de publicação e sãoapresentados de acordo com as quatro categorias a seguir: a) publicável sem restrições; b) publicável comrestrições; c) publicável com restrições e sugestões de modificações, sujeitas a novo parecer; d) nãopublicável. Os pareceres são encaminhados para os autores, igualmente sem identificação da sua autoria.

Os textos com o parecer b) ou c) deverão ser modificados de acordo com as sugestões do conselheiroou parecerista ad hoc, no prazo a ser definido pelo editor executivo, em comum acordo com o(s) autor(es).As modificações introduzidas no texto, com o parecer b), deverão ser colocadas em vermelho, paraefeito de verificação pelo editor executivo.

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Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão das partes em inglês, o(s)autor(es) receberão o texto para uma revisão final no prazo de sete dias, tendo a oportunidade de introduzireventuais correções de pequenos detalhes.

III – DIREITOS AUTORAIS

O encaminhamento dos textos para a revista implica a autorização para publicação. A aceitação damatéria para publicação implica na transferência de direitos autorais para a revista. A reprodução totalou parcial (mais de 500 palavras do texto) requer autorização por escrito da comissão editorial.

Sendo a Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade um periódico temático, será dadapreferência à publicação de textos que têm relação com o tema de cada número. Os outros textosaprovados somente serão publicados numa seção especial, denominada Estudos, na medida dadisponibilidade de espaço em cada número, ou em um futuro número, quando sua temática estiver deacordo com o conteúdo do trabalho. Se, depois de um ano, não surgir uma perspectiva concreta depublicação do texto, este pode ser liberado para ser publicado em outro periódico, a pedido do(s) autor(es).

O autor principal de um artigo receberá três exemplares da edição em que este foi publicado. Para oautor de resenha ou resumo de tese ou dissertação será destinado um exemplar.

IV – ENCAMINHAMENTO E APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS

Os textos devem ser encaminhados exclusivamente para o endereço eletrônico da revista:[email protected]. O mesmo procedimento deve ser adotado para os contatos posteriores.Ao encaminhar o texto, neste devem constar: a) a indicação de uma das modalidades citadas no item I;b) a garantia de observação de procedimentos éticos; c) a concessão de direitos autorais à Revista daFAEEBA: Educação e Contemporaneidade.

Os trabalhos devem ser apresentados segundo as normas definidas a seguir:

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereços residencial(somente para envio dos exemplares dos autores) e institucional (publicado junto com os dados emrelação a cada autor), telefones (para contato emergencial), e-mail; c) titulação principal; d) instituição aque pertence(m) e cargo que ocupa(m).

2. Resumo e Abstract: cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado econclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, no mínimo,três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo e do resumo, assim como do trabalhoresenhado. Atenção: cabe aos autores entregar traduções de boa qualidade.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (em formato TIF, cor cinza, dpi 300), quando apresentadosem separado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referênciasde sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida peloConselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.

4. Sob o título Referências deve vir, após a parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos autorese das publicações conforme as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Vide osseguintes exemplos:

a) Livro de um só autor:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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b) Livro até três autores:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução deGeraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.

c) Livro de mais de três autores:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

d) Capítulo de livro:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.).Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.

e) Artigo de periódico:MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma brevereflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 11, n.17, p. 13-26, jan./jun. 2002.

f) Artigo de jornais:SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O Globo, Riode Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.

g) Artigo de periódico (formato eletrônico):TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira deHistória, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.

h) Livro em formato eletrônico:SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.

i) Decreto, Leis:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para despachode aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.

j) Dissertações e teses:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdadede Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.

k) Trabalho publicado em Congresso:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridadesbrasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: históriada educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego dapontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR 10520 de2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou,quando ultrapassa três linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autorfaz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva e submeter-se aos procedimentos gramaticais dalíngua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, estedeve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas desites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Paraqualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginasdo texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecerà NBR 10520, de 2003.

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6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como osagradecimentos, apêndices e informes complementares.

7. Os artigos devem ter, no máximo, 60 mil caracteres com espaços e, no mínimo, 30 mil caracteres comespaços. Os resumos de teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e conter título, númerode folhas, autor (e seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e data da defesa pública,assim como a tradução em inglês do título, resumo e das palavras-chave.

Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows ouequivalente:

• letra: Times New Roman 12• tamanho da folha: A4• margens: 2,5 cm• espaçamento entre as linhas: 1,5;• parágrafo justificado.

Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de encaminharos textos. Deste modo, será mais rápido o processo de avaliação e possível publicação.

Para contatos e informações:

AdministraçãoE-mail: [email protected]. 71.3117.2316

Grupo EditorE-mails: [email protected] / [email protected]

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Revista da FAEEBA: Educação e ContemporaneidadeISSN 0104-7043

Semestral thematic journal of the of Education Faculty I – UNEB

Norms for publication

I – EDITORIAL POLICIES

The Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade is a thematic and semestral periodicwhich have for objective to stimulate and promote the exchange of informations and of results of scientificresearch, in the field of education, interacting with the other social sciences, interconnected to the regional,national and international community.

The Revista da FAEEBA receive only original works which analyze and discuss matters of scientificand cultural interest and that can be classified according to one of the following modalities:- essays: theoretical studies with analysis of concepts;- research results: text based on research data- reviews of literatures: ample critical analysis of the literature upon some specific theme;- critical review of a recent publication;- interviews with recognized researchers;- abstract of PhD and master thesis.

Submitted works should be unpublished and should not be submitted simultaneously to other journal.Papers written in Portuguese, Spanish, French and English are received. Views published remain theirauthors’ responsibility. Texts originally in French and English may be translated into Portuguese andpublished after a revision made by the author or by someone he has suggested.

Themes and terms of the futures volumes are published in the last volumes are also available on-lineat www.revistadafaeeba.uneb.br. In each volume, appears also the list of academic journals with whichthe Revista da FAEEBA have established cooperation.

II – RECEIVING AND EVALUATING SUBMITTED WORKS

Texts submitted are initially appreciated by the Editor which will confirm reception. If they are editedin accordance with the norms, they will be sent, anonymously so to assure neutrality, to other member ofthe editorial committee or to ad hoc evaluators of known competence .

Evaluators’ reports will confer the submitted work scientific quality and class them in four categories: a)publishable without restrictions b) publishable with restrictions; c) publishable with restrictions andmodifications after new evaluation; d) unpublishable. Evaluators’ reports are sent anonymously to the authors.

In the b) or c) case, the works should be modified according to the report’ suggestion in the termsdetermined by the editor in agreement with the authors. Modifications made should appear in red so as topermit verification.

After the grammatical revision of the text, the correction of the bibliography, and the revision of the part inEnglish, the authors(s) will receive the text for an ultimate opportunity to make small corrections in a week.

III – COPYRIGHTS

Submitting text to the journal means authorizing for publication. Accepting a text for publication implythe transfer of copyrights to the journal. Whatever complete or partial reproduction (more than 500

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hundreds words) requires the written authorization of the editorial committee. As the Revista da FAEEBA:Educação e Contemporaneidade is a periodic journal, preference will be given to the publication of textsrelated to the theme of each volume. Other selected approved text may only be published in a specialsection called Studies depending of available space in each volume or in a future volume more in touchwith the text content. If, after a year, no possibility of a publication emerges, the text can be liberated forpublication in another journal if this is the will of the author.

The main author of a paper will receive three copies of the volume in which his paper was published.The author of an abstract or a review will receive one.

IV – Sending and presenting works

Texts as well as ulterior communication should be sent exclusively to the e-mail [email protected]. In should be explicited initially a) at which modality the text pertains;b) ethical procedures; c) copyrights concession to the Revista da FAEEBA: Educação e Contempora-neidade.

Works should respect the following norms:

1. In the first page, should appear: a) the paper’s title; b) authors’ name, address, telephones, e-mail; c)main title; d) institutional affiliation and post.

2. Resumo and Abstract: each with no more than 200 words including objective, method, results andconclusion. Immediately after, the Palavras-chave and Keywords, which desired number is between 3and 5. Authors should submit high quality translation.

3. Figures, graphics, tables and photographies (TIF, grey, dpi 300), if presented separately should comewith indication of their localization in the text, have a title and indicates author and reference. In thissense, the tabular norms of tabular presentation, established by the Brazilian Conselho Nacional deEstatística and published by the IBGE in 1979.

4. Under the title Referências should appear, at the end of the paper, in alphabetic order, the list ofauthors and publication according to the norms of the ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).See the following examples:

a) Book of one author only:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.

b) Book of two or three authors:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução deGeraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.

c) Book of more than three authors:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

d) Book chapter:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.).Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.

e) Journal’s paper:MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma brevereflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 11, n.17, p. 13-26, jan./jun. 2002.

f) Newspaper:SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O Globo, Riode Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.

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g) On-line paper :TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira deHistória, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Available at: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.

h) E-book:SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.

i) Laws:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para despachode aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.

j) Thesis:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdadede Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.

k) Congress annals:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridadesbrasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: históriada educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANT: Organizing references, the author should take care of punctuation correct use, so asto preserve uniformity.

5. This journal use the author-date quote system, according to the NBR 10520 de 2003. Bibliographicalquotes or quotes from on-line publications, if inserted into the text, should appear between quotationmarks or if the quotation is more than three lines long, distanced and without quotation marks with authorreference. Examples: 1- According to Freire (1982: p.35), etc. 2-Minority pedagogy is for all (Freire,1982, p.35). On-line quotes should indicate the URL and access date. Footnotes should only containexplanatory notes strictly necessary respecting the NBR 10520, of 2003.

6. Texts can contain footnotes, thanks, annexes and complementary informations.

7. Papers should have no more than 60 000 characters and not less than 30 000 characters (includingspaces). Reviews are limited to 5 pages. Thesis abstracts should contain no more than 250 words andshould include title, number of page, author data, key-words, name of the director and university affiliation,as well as the date of the defense and the English translation of text, abstract and key-words.

Look out: texts will only be accepted formated in Word for Windows or equivalent:• font: Times New Roman 12• paper dimension: A4• margins: 2,5 cm• line spacing: 1,5;• paragraph justified.

Authors are invited to check the norms for publication before sending their work. It will ease theprocess of evaluation and facilitate an eventual publication.

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