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Hífen, Uruguaiana, v. 28, n. 53, p. 13-24, jan./jun., 2004. O “animal da técnica”: o processo civilizatório como uma história de dominação e distanciamento da natureza César Romero Fagundes de Souza * * Professor de Filosofia na PUCRS - Campus Uruguaiana. Resumo: Este texto apresenta uma reflexão sobre nossa relação com a Natureza, sob a luz de alguns caminhos que Heidegger mostra ao refletir sobre o tema da técnica na segunda fase de seu pensamento, pós Ser e tempo (1927). Partimos das perspectivas que fundamentam nossa relação original com a Natureza – a criacionista e a evolucionista –, procurando entender por que, em nosso percurso de desenvolvimento como espécie, o melhoramento contínuo das nossas capacidades adaptativas (atividades cerebrais superiores, tais como as relativas às operações racionais), na direção da civilização e da cultura, afasta-nos radicalmente de nossa origem natural, levando-nos a negligenciar sistematicamente nossa condição como entes sensíveis da Natureza. A ilustração desse percurso serve como base para situar e entender a reflexão de Heidegger, no segundo momento de seu pensamento, sobre os perigos do domínio da técnica moderna e a necessidade de retomarmos a capacidade de reflexão – o pensar que medita –, a fim de pensarmos sobre a origem do processo que chamou ‘esquecimento do ser’, como o caminho para nos re-posicionarmos em um mundo cada vez mais dominado pela técnica, que leva, inevitavelmente, a esse distanciamento. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Por que nosso processo evolutivo como espécie, na direção da civilização e da cultura, afasta-nos radicalmente de nossa origem natural, levando-nos a negligenciar sistematicamente nossa condição como entes sensíveis à Natureza? A fim de estabelecermos um ponto de partida claro para nossa reflexão, devemos considerar, como sugere Aristóteles, “as coisas em seu primeiro crescimento e origem” (ARISTOTLE, 1971, 1252a). Ao revermos os fundamentos de nosso modo de considerar a Natureza, na perspectiva do Ocidente, seja nos mitos da Grécia Antiga, como o de Prometeu, seja na perspectiva judaico-cristã, descrita originalmente no livro do Gênesis da Bíblia, a Natureza é vista sempre como uma força hostil a ser dominada, transformada, subjugada e negada, a fim de que possamos ascender plenamente ao plano superior de nossas faculdades racionais, estabelecendo o domínio humano sobre a Terra. A Natureza tem estado aí para servir como meio ao ser humano na realização de seus fins, em sua passagem sobre a Terra, como indivíduo e como espécie. Ora, mas de onde vem esse direito “conferido” a nós ab initio sobre a Terra e tudo o que há nela? Duas interpretações: uma, teológica, outra, teleológica. A versão teológica judaico-cristã do Gênesis diz que a Natureza (o Mundo, o Universo) foi criada por Deus. No início, na ordem da criação, Deus cria os céus, as águas e a Terra e tudo o que neles há. Só então, olhando para sua obra, pensa em quem poderá usufruir tudo isso, que fez porque achava bom. Cria, então, do barro (humus) o homem, a quem dá sua forma e semelhança e a quem doa toda a sua criação. Aqui, a Natureza é ainda algo bom. Somente após a queda, pelo pecado original o desejo do ser humano de se igualar a Deus no conhecimento do bem e do mal, passa a ser concebida como fonte de sofrimento e como força hostil a ser dominada. No primeiro momento, o ser humano reina absoluto, em sua condição de não-saber; no segundo, deverá submeter e dominar uma Natureza inóspita, hostil, a fim de sobreviver. O mito judaico-cristão da criação do mundo, narrado no Gênesis, se presta a muito mais. Como padrão de explicação cosmológica das gerações passadas, interessa- nos, aqui, a justificação encontrada para o fato de que não só podemos dominar, submeter e explorar a Natureza, mas devemos fazê-lo assim, pois é nosso direito, adquirido desde a origem. A versão teleológica diz que tudo o que é ou existe o é para algum fim, um J©8@l. E, para Aristóteles, a natureza de uma coisa consiste em ser auto-suficiente, porque “o que cada coisa é quando completamente desenvolvida, nós chamamos sua natureza, estejamos nós falando de um homem, de um cavalo, ou de uma família. Além disso, a causa final e o fim de uma coisa são o melhor, e ser auto-suficiente é o fim e o melhor” (ARISTOTLE, 1971, 1253a). Mas esse fim nenhum ente pode atingir individualmente, no curto período de tempo de sua existência, seja ser humano seja um ente da Natureza enquanto tal. No caso dos entes, somente na espécie esse fim poderá ser atingido. No caso da Natureza, somente no momento final de seu percurso, como acabamento

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Resumo: Este texto apresenta uma reflexão sobre nossa relação com a Natureza, sob a luz de alguns caminhos que Heidegger mostra ao refletir sobre o tema da técnica na segunda fase de seu pensamento, pós Ser e tempo (1927). Partimos das perspectivas que fundamentam nossa relação original com a Natureza – a criacionista e a evolucionista –, procurando entender por que, em nosso percurso de desenvolvimento como espécie, o melhoramento contínuo das nossas capacidades adaptativas (atividades cerebrais superiores, tais como as relativas às operações racionais), na direção da civilização e da cultura, afasta-nos radicalmente de nossa origem natural, levando-nos a negligenciar sistematicamente nossa condição como entes sensíveis da Natureza. A ilustração desse percurso serve como base para situar e entender a reflexão de Heidegger, no segundo momento de seu pensamento, sobre os perigos do domínio da técnica moderna e a necessidade de retomarmos a capacidade de reflexão – o pensar que medita –, a fim de pensarmos sobre a origem do processo que chamou ‘esquecimento do ser’, como o caminho para nos re-posicionarmos em um mundo cada vez mais dominado pela técnica, que leva, inevitavelmente, a esse distanciamento.

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Hífen, Uruguaiana, v. 28, n. 53, p. 13-24, jan./jun., 2004.

O “animal da técnica”: o processo civilizatório como uma história de dominação e

distanciamento da natureza

César Romero Fagundes de Souza *

* Professor de Filosofia na PUCRS - Campus Uruguaiana.

Resumo: Este texto apresenta uma reflexão sobre nossa relação com a Natureza, sob a luz de alguns caminhos que Heidegger mostra ao refletir sobre o tema da técnica na segunda fase de seu pensamento, pós Ser e tempo (1927). Partimos das perspectivas que fundamentam nossa relação original com a Natureza – a criacionista e a evolucionista –, procurando entender por que, em nosso percurso de desenvolvimento como espécie, o melhoramento contínuo das nossas capacidades adaptativas (atividades cerebrais superiores, tais como as relativas às operações racionais), na direção da civilização e da cultura, afasta-nos radicalmente de nossa origem natural, levando-nos a negligenciar sistematicamente nossa condição como entes sensíveis da Natureza. A ilustração desse percurso serve como base para situar e entender a reflexão de Heidegger, no segundo momento de seu pensamento, sobre os perigos do domínio da técnica moderna e a necessidade de retomarmos a capacidade de reflexão – o pensar que medita –, a fim de pensarmos sobre a origem do processo que chamou ‘esquecimento do ser’, como o caminho para nos re-posicionarmos em um mundo cada vez mais dominado pela técnica, que leva, inevitavelmente, a esse distanciamento. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Por que nosso processo evolutivo como espécie, na direção da civilização e da cultura, afasta-nos radicalmente de nossa origem natural, levando-nos a negligenciar sistematicamente nossa condição como entes sensíveis à Natureza? A fim de estabelecermos um ponto de partida claro para nossa reflexão, devemos considerar, como sugere Aristóteles, “as coisas em seu primeiro crescimento e origem” (ARISTOTLE, 1971, 1252a). Ao revermos os fundamentos de nosso modo de considerar a Natureza, na perspectiva do Ocidente, seja nos mitos da Grécia Antiga, como o de Prometeu, seja na perspectiva judaico-cristã, descrita originalmente no livro do Gênesis da Bíblia, a Natureza é vista sempre como uma força hostil a ser dominada, transformada, subjugada e negada, a fim de que possamos ascender plenamente ao plano superior de nossas faculdades racionais, estabelecendo o domínio

humano sobre a Terra. A Natureza tem estado aí para servir como meio ao ser humano na realização de seus fins, em sua passagem sobre a Terra, como indivíduo e como espécie. Ora, mas de onde vem esse direito “conferido” a nós ab initio sobre a Terra e tudo o que há nela? Duas interpretações: uma, teológica, outra, teleológica.

A versão teológica judaico-cristã do Gênesis diz que a Natureza (o Mundo, o Universo) foi criada por Deus. No início, na ordem da criação, Deus cria os céus, as águas e a Terra e tudo o que neles há. Só então, olhando para sua obra, pensa em quem poderá usufruir tudo isso, que fez porque achava bom. Cria, então, do barro (humus) o homem, a quem dá sua forma e semelhança e a quem doa toda a sua criação. Aqui, a Natureza é ainda algo bom. Somente após a queda, pelo pecado original – o desejo do ser humano de se igualar a Deus no conhecimento do bem e do mal–, passa a ser concebida como fonte de sofrimento e como força hostil a ser dominada. No primeiro momento, o ser humano reina absoluto, em sua condição de não-saber; no segundo, deverá submeter e dominar uma Natureza inóspita, hostil, a fim de sobreviver. O mito judaico-cristão da criação do mundo, narrado no Gênesis, se presta a muito mais. Como padrão de explicação cosmológica das gerações passadas, interessa-nos, aqui, a justificação encontrada para o fato de que não só podemos dominar, submeter e explorar a Natureza, mas devemos fazê-lo assim, pois é nosso direito, adquirido desde a origem.

A versão teleológica diz que tudo o que é ou existe o é para algum fim, um J©8@l. E, para Aristóteles, a natureza de uma coisa consiste em ser auto-suficiente, porque “o que cada coisa é quando completamente desenvolvida, nós chamamos sua natureza, estejamos nós falando de um homem, de um cavalo, ou de uma família. Além disso, a causa final e o fim de uma coisa são o melhor, e ser auto-suficiente é o fim e o melhor” (ARISTOTLE, 1971, 1253a). Mas esse fim nenhum ente pode atingir individualmente, no curto período de tempo de sua existência, seja ser humano seja um ente da Natureza enquanto tal. No caso dos entes, somente na espécie esse fim poderá ser atingido. No caso da Natureza, somente no momento final de seu percurso, como acabamento

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de sua realização total. Compartilham desse princípio, por exemplo, tanto a teoria de Darwin, para explicar a história da evolução da vida na Terra, a partir da teoria da seleção natural, desenvolvida em Origem das espécies, de 1859 (DARWIN, 1971), como a hipótese de Kant, para explicar a história humana no Planeta, segundo uma lei natural, desenvolvida em Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, de 1784 (KANT, 1986).

Para Darwin, a força motriz da vida no Planeta é a luta pela sobrevivência. Nessa luta, por se manter vivo e se perpetuar como espécie, o mais apto sobrevive, legando aos seus descendentes as suas características. Nesse processo, o mais apto não é necessariamente o mais forte, mas aquele que conseguiu adaptar-se ao meio, sobrevivendo, deixando descendentes, dando continuidade à espécie. Essa teoria poderosa é o fio condutor que permite ordenar e reordenar cada descoberta dos elos que vão preenchendo a cadeia da história da vida no Planeta. Os cientistas estimam que a vida animal na Terra data de cerca de 3,2 bilhões de anos. À luz da teoria evolucionista de Darwin, descobertas recentes de paleontólogos, naturalistas e biólogos, em novos sítios paleontológicos, revelam que até cerca de seiscentos milhões de anos atrás (início do período chamado Cambriano) convivia uma infinidade de formas de vida animal muito simples. Por causas ainda desconhecidas (queda nos níveis de fontes de alimentos, desequilíbrio nas condições ambientais), um fenômeno chamado ‘predatismo’ desencadeou o processo vertiginoso da especificação e complexificação das formas de vida animal. Quando essas passaram a se alimentar umas das outras, variando sua dieta, modificando suas estruturas essenciais, na luta pela sobrevivência, as espécies se consolidaram em formas cada vez mais complexas de vida, originando os três grupos: os artrópodes, os moluscos e os vertebrados, do qual a espécie humana provém (GOULD, 1989). A partir disso, estima-se que o ser humano, em sua linha evolucionária, até o surgimento do homo sapiens, nosso ancestral direto, date, enquanto espécie, em cerca de cem mil anos. Compare esses dados com a história do desenvolvimento dos povos no Planeta, de sua origem de um ancestral comum na África para os diferentes continentes nos quatro cantos do mundo, para onde gerações sucessivas migraram, até à nossa origem como civilização, que é mais recente ainda. Nessa direção, ao considerarmos a história da vida no Planeta, não devemos nos admirar de quão recente seja a espécie humana sobre a Terra, e, menos ainda, a história da razão e seus produtos (a sociedade, a cultura) no percurso civilizatório.

SER HUMANO E NATUREZA

Seguindo ainda essa via de compreensão, ao olharmos para o ser humano como espécie, em nosso processo de adaptações sucessivas na luta pela sobrevivência, é possível considerar o desenvolvimento das capacidades cerebrais superiores como um resultado desse processo adaptativo. E, nesse sentido, a razão humana – como uma diferença qualificadora –, sob a perspectiva da história da evolução da vida sobre a Terra, é algo extremamente recente. O advento da sociedade e da cultura, como resultantes dos sucessivos processos adaptativos dos seres humanos na luta pela sobrevivência da espécie, é o ambiente “natural” no qual a espécie humana irá então prosseguir seu curso. Se considerarmos a razão como uma faculdade adaptativa recente – desenvolvida no percurso de nossa história como espécie na luta pela sobrevivência –, podemos entender por que possa ser utilizada ainda, quase exclusivamente, como instrumento para o cálculo essencial dos meios mais adequados para garantir nossa sobrevivência. Nesse modo de consideração, a razão, enquanto capacidade, estaria a serviço das duas forças propulsoras da luta pela sobrevivência do indivíduo na direção da preservação da espécie: o medo e o desejo. Vista assim, a razão seria, então, uma mera especialização das forças instintivas que nos preservam como indivíduos e como espécie. Heidegger chama “instinto” (Instinkt) à

organização de todos os ímpetos possíveis na totalidade do planejamento e da segurança. Essa palavra designa aqui o “intelecto” [Intellekt], que ultrapassa o entendimento limitado dos cálculos do imediato. Ao seu intelectualismo nada, que deva integrar como “fator” o cálculo das equações dos diversos “setores isolados”, pode escapar. O instinto é a sobrelevação do intelecto, que corresponde ao super-homem, rumo ao incondicional de tudo. Como esse cálculo rege pura e simplesmente, parece que perto da vontade [Willen] nada mais há do que o mero asseguramento da pulsão de calcular [Triebes zur Rechnung]. Essa pulsão constitui a primeira regra de cálculo para o cálculo de tudo. O “instinto” valeu até hoje como uma característica do animal que, no âmbito de sua vida, busca o útil e evita o prejudicial, sem aspirar nada mais além disso. A segurança do instinto animal corresponde à sujeição cega ao âmbito da utilidade. Ao poder incondicional do super-homem corresponde a total liberação do sub-homem. A pulsão animal e a razão humana tornam-se idênticas [Der Trieb der Tierheit und die ratio der Menschheit werden identisch] (HEIDEGGER, 2002, p. 82, itálicos meus).

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Kant pretende que a razão deve elevar-se para além de nosso instinto. Em Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, lemos que “a razão é a faculdade de ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural [Naturinstinkt]” (KANT, 1986, p. 11, itálicos meus). Nesse trabalho, Kant dá um passo decisivo para o entendimento do percurso da vida humana sobre a Terra, à medida em que concebe – com relação à cultura, ao processo civilizatório humano, na criação de sua natureza, a sociedade – uma visão de progresso para a razão, enquanto capacidade conatural ao ser humano. Se a razão humana é decorrência natural de um processo adaptativo dos seres humanos em sua luta pela sobrevivência e preservação da espécie, então, como qualquer outro ente ou evento da Natureza, ela deve ter um J©8@l, um propósito, um fim, para o qual se encaminha. Pois, para Kant, “[t]odas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a um dia se desenvolver completa e adequadamente [zweckmässig]”. E esta é a lei da Natureza. Do contrário, “não teremos uma natureza regulada por leis, e sim um jogo sem finalidade da Natureza e uma indeterminação desconsoladora toma o lugar do guia da razão [Leitfadens der Vernunft]” (KANT, 1986, p. 11). Nesse sentido, então, a razão, por meio do processo civilizatório humano, vai realizando seu fim na evolução da espécie nessa natureza não natural, a sociedade, em sua progressão rumo ao futuro da espécie. E como se dá esse processo? De acordo com Hobbes, a “razão é o passo; o progresso da ciência, o caminho; e o benefício da espécie humana, o fim” (HOBBES, 1971, p. 60).

Heidegger, em Contribuições à filosofia (1937), chama as duas interpretações, que propusemos acima, de mecanicista e biológica, respectivamente (HEIDEGGER, 1999, § 61). Na primeira versão, a Natureza é criação divina, originada de um processo de causa-efeito. Na segunda, o ser humano chega à dominação da Natureza por mérito próprio como resultado de seu processo evolucionário, como espécie, em sua luta pela sobrevivência. Ambas têm em comum o fato de colocarem o ser humano, enquanto animal racionale, na condição triunfante de espécie superior na Natureza. Ou seja, as duas versões para a história da dominação humana sobre a Terra justificam essa dominação com base ou no merecimento ou na causalidade. Em outras palavras, de um modo ou de outro, a Natureza estaria aí para o ser humano: seja porque ele a tenha recebido como um presente do Criador, seja por tê-la conquistado.

Importa, sobretudo, destacar que quem conta as duas histórias somos nós. Qualquer povo, por mais primitivo que se encontre em seu estado civilizatório, tem uma versão sobre-natural (meta-física) para sua visão do começo do mundo e da

vida. São nossas as perguntas: O que somos? O que é isso, a Natureza? De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Quem nos colocou aqui? etc. As respostas a elas, também. E essas questões estão na origem de nosso estranhamento (2"L:•.,4<, thaumazein), em nosso estar-aí diante da Natureza (ARISTOTLE, 1956, 982b). Tais perguntas, se não tivessem sido esquecidas por terem sido pobremente encobertas pelas respostas que demos na origem, deveriam nos acompanhar por toda a nossa existência, seja como indivíduos seja como espécie. Pois, porque demos uma resposta, não significa que tenhamos resolvido o enigma; não significa que tenhamos des-coberto a verdade última-primeira sobre elas.

Em que medida a metafísica [Metaphysik] pertence à natureza do ser humano [Mensch]? O ser humano é representado pela metafísica, de início, como um ente dentre os demais, dotado de capacidades. A essência, qualificada desta ou daquela maneira, a natureza, o quê e o como de seu ser, é em si mesma metafísica: animal (sensibilidade) e rationale (não-sensível). Limitado, assim, ao metafísico, o ser humano permanece atado à diferença desapercebida entre ser e ente. Em toda parte, o modo cunhado pela metafísica de o ser humano representar em proposições apenas encontra o mundo construído pela metafísica. A metafísica pertence à natureza do ser humano. Mas o que é a natureza ela mesma? O que é a metafísica ela mesma? Em meio a essa metafísica natural, quem é o ser humano ele mesmo? (HEIDEGGER, 2002, p. 63).

Na segunda fase de seu pensamento, após

Ser e tempo (1927), Heidegger recoloca a pergunta pelo ser, agora, na direção da sua verdade. O problema da indiferenciação entre ser e ente, criado e difundido pela metafísica e pela ciência, é visto agora sob a luz do tema da técnica moderna. Para Heidegger, o problema do esquecimento do ser dos entes (e de nós próprios), no processo de racionalização de nossa relação para conosco, para com a vida e para com a Natureza, resulta de uma vivência sem reflexão, que determina o modo de vida ocidental. Essa falta de reflexão, esse esquecimento, não é característica do momento presente em que vivemos, em que parece não podermos estar mais distantes de uma relação com uma Natureza natural, não des-naturalizada, não humanizada, não disponibilizada, mas se estende no tempo desde sempre, desde a origem do que somos como civilização. Pois, para Heidegger, alguém “poderia falar da época da total falta de questionamento, que estende sua duração no tempo, para além do presente, longe para trás e adiante. Esta época nada essencial – se esta determinação ainda tem qualquer significado – é mais impossível e inacessível” (HEIDEGGER, 1999, § 51).

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O estranhamento abissal, em nosso primeiro enfrentamento com o que somos e com o que a Natureza é, pode ter-nos levado, no início, a refletir sobre a imensidão inescrutável do que representa a vida sobre a Terra. Esse estranhamento, essa reflexão, porém, foram esquecidos, abandonados em prol de uma explicação apaziguadora, objetificadora e justificadora de nossa relação com a Natureza, que nos permitiu, desde a origem, sua manipulação impune na consecução de nossos fins. A razão como cálculo – como capacidade adaptativa humana, desenvolvida, ampliada, aprimorada – permitiu-nos lidar desde sempre com a Natureza como mero meio, matéria, energia, recurso, a tal ponto que “o que aparentemente oferece resistência e um limite a ela é somente o material para posterior elaboração e o impulso para o progresso e uma ocasião para extensão e ampliação” (HEIDEGGER, 1999, § 51). Heidegger chama esse modo de agir humano sobre a Natureza de ‘maquinação’ (Machenschaft; na tradução inglesa, machination, no sentido de: maquinar, manobrar, mobilizar), “o domínio do fazer e do que é feito” (HEIDEGGER, 1999, § 67). A maquinação, resultante desse modo de considerar a Natureza como ens creatum, é a essência da história da ciência e da técnica no Ocidente.

Pode-se chamar, numa única palavra, de “técnica” [Technik] a forma fundamental de manifestação em que a vontade de querer [Willen zum Willen] se institucionaliza e calcula no mundo não-histórico da metafísica acabada. Esse nome engloba todos os setores dos entes que equipam a totalidade dos entes: natureza objetivada, cultura ativada, política produzida, superestrutura dos ideais. A “técnica” não significa aqui os setores isolados da fabricação e aparelhamento de máquinas. Estes possuem, sem dúvida, uma posição privilegiada, a se determinar mais de perto, fundada na primazia do material que se assume como o pretenso elementar e o objeto em sentido eminente (HEIDEGGER, 2002, p. 69).

Considerada como presença constante, a

Natureza é já sempre disponível, manejável, objetificável, à mão. E esse modo de considerar o ente (o sensível, a Natureza) leva à nossa vivência (Erlebnis) e ao encantamento pela maquinação, que dita, determina, o que o ente é para nós, antes mesmo que tenhamos nos colocado a questão que pergunta pelo que ele é. Para Heidegger, isso se dá pelo “desencantamento do ente, enquanto toma lugar pelo poder de um encantamento que é decretado pelo próprio desencantamento” (HEIDEGGER, 1999, § 50). Esse encantamento, para Heidegger, vem da irrestrita dominação da maquinação. “Quando a maquinação finalmente domina e permeia tudo, então não existem mais

quaisquer condições pelas quais ainda detectar o encantamento e para alguém se proteger dele. O enfeitiçamento pela tecnicidade e seu progresso constantemente auto-ultrapassante são somente um signo deste encantamento, em virtude do qual tudo leva ao cálculo, ao uso, à reprodução, ao manejo, e à regulamentação” (HEIDEGGER, 1999, § 58).

Para Heidegger, no horizonte judaico-cristão do trato com a Natureza, o mundo instaurado pela Modernidade, pelo cogito cartesiano, que traduz a subjetividade secular de nosso distanciamento objetificador em relação ao ente, à Natureza enquanto tal, tudo “‘é feito’ e ‘pode ser feito’ se alguém reunir ‘vontade’ para isso. Mas que essa ‘vontade’ seja precisamente aquilo que já colocou e de antemão reduziu o que pode ser possível e acima de tudo necessário – isso já é mal interpretado adiante do tempo e deixa de fora qualquer questionamento. Porque essa vontade, que produz tudo, já consentiu na maquinação, essa interpretação do ente como re-presentável e re-presentado” (HEIDEGGER, 1999, § 51). Ao abandono do ser “pertence o esquecimento do ser e ao mesmo tempo a desintegração da verdade” (HEIDEGGER, 1999, § 54).

E o abandono é mais forte naquele lugar onde ele está mais decididamente escondido. Isto acontece onde o ente se tornou o mais ordinário e familiar. Isto aconteceu primeiro no Cristianismo e seu dogma, que explica todo ente em sua origem como ens creatum, onde o criador é o mais certo e todo ente é o efeito desta causa mais subsistente. Mas a relação causa-efeito é a mais ordinária, mais crua, e mais imediata, e é empregada por todo cálculo e perda humanos para o ente a fim de explicar alguma coisa, i.e para empurrá-lo na claridade do ordinário e familiar. Aqui, onde o ente tem necessariamente de ser o mais familiar, o Seyn [o ser não metafisicamente considerado] é necessariamente... o mais ordinário. E desde agora Seyn “é” em verdade o que é mais não-ordinário, Seyn aqui se retirou completamente e abandonou o ente. O abandono do ente pelo Sein [o ser considerado metafisicamente] significa que o Seyn retirou-se do ente e que o ente se tornou inicialmente (nos termos do Cristianismo) somente ente feito por um outro Sein [o criador]. O mais elevado Sein como causa de todo ente assumiu o que é mais-próprio ao Seyn. Estes entes, uma vez feitos pelo deus criador, tornaram-se então do fazer humano, à medida que agora os entes são tomados e controlados somente em sua objetividade. A entidade dos entes dissolve-se em uma “forma lógica”, na qual é pensável por um pensamento que é ele-próprio infundado (HEIDEGGER, 1999, § 52).

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NATUREZA, SER HUMANO E TÉCNICA MODERNA

De acordo com Heidegger, Natureza, enquanto ens creatum, é tomada desde o início, em sua versão ocidental modificada e direcionada para a dominação, para a objetificação, como uma subversão da noção grega de NbF4l (physis), que é o surgimento de uma coisa para fora de si própria. Para os gregos, tanto a NbF4l como a J¦P<0 (techne) eram formas de B@\0F4l (poiesis), produção, de trazer para a aparência. A diferença reside no fato de que, enquanto na NbF4l, esse fazer-aparecer, trazer para fora, tem sua origem em si próprio, o que é produzido pelo ser humano (o artífice), por meio da J¦P<0, tem origem não mais em si próprio, mas naquele que produz. A produção por meio da J¦P<0, nesse sentido, difere da produção da técnica moderna (moderne Technik; tecnologia). O artífice, no sentido original da J¦P<0, aprendeu a responder e a ser sensível ao modo de ser do ente sobre o qual opera no produzir, no evocar, no revelar de sua produção. A técnica moderna, no seu modo de produzir, de revelar a Natureza, por outro lado, não evoca o ente, a Natureza, ao modo da J¦P<0 do artífice, mas extrai dela o que quer (HEIDEGGER, 2002). A técnica moderna (tecnologia) “como um modo de revelar, “ataca” os seus recursos para “por em ordem” o rendimento que exigiu; [e] aquilo que é exigido, acima de tudo, é um fornecimento de energia armazenável” (FOLTZ, 2000, p. 25). Conforme Heidegger:

O desencobrimento [Entbergen] que domina a técnica moderna possui, como característica, o pôr [Stellen], no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribuído, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar são todos modos de desencobrimento (HEIDEGGER, 2002, p. 20).

É nesse modo de desocultar a Natureza,

de trazer para fora dela os rendimentos que ela nos pode dar, que radica o perigo da técnica moderna. Essa capacidade que temos, por meio dela, de dis-por (de) tudo, inclusive (de) nós mesmos. É no caráter de colocar à dis-posição no des-encobrir da técnica moderna que reside a sua essência e o seu perigo, na direção de um distanciar-nos da essência do que é, e mesmo da própria necessidade do questionar o ser dos entes produzidos por esse modo de revelar a Natureza.

Que alguma coisa faça a si mesma por si mesma e seja, portanto, também factível por um correspondente procedimento diz que o fazer-se por si mesmo é a interpretação de

NbF4l que é executada pela J¦P<0 e seu horizonte de orientação, [de tal modo que] o que conta agora é a preponderância do factível e o fazer-se (cf. a relação de 4*©" com J¦P<0), em uma palavra: maquinação. Desde o tempo do primeiro começo a NbF4l estava desabilitada, a maquinação não se tornou ainda completamente manifesta naquilo que lhe é mais-próprio. Ela permanece escondida em constante presença cuja determinação culmina em ¦<Jg8©Pg4" no pensamento originário <Enfarung Denken> dos gregos. O conceito medieval de actus já recobre totalmente o que é o mais-próprio para interpretação não-conceitual grega de entidade. É nesta conexão que o que pertence à maquinação agora força pra frente mais claramente e que ens se torna ens creatum na noção de criação judaico-cristã, quando a idéia correspondente de Deus entra em cena. Mesmo que alguém recusasse cruamente interpretar a idéia de Criador, o que é ainda essencial é o ser-causado do ente. A conexão causa-efeito torna-se a toda-dominadora (Deus como causa sui). Este é um distanciar essencial da NbF4l e ao mesmo tempo o cruzar em direção da emergência da maquinação com o que é mais-próprio da entidade no pensamento moderno. Os modos mecanicista e biológico de pensar são sempre meramente conseqüências da interpretação escondida do ente em termos de maquinação (HEIDEGGER, 1999, § 61).

Na era do domínio da técnica moderna,

Natureza seria então tudo aquilo que não é feito, produzido pelo ser humano por meio da técnica. Quantos de nós, porém, estariam aptos a discernir com precisão o limite que separa o que é natural do que não é? De acordo com Heidegger, em nosso tempo, a Natureza, que vem ao acontecer e se esforça por se manter (webt und strebt), que nos ataca e nos encanta como paisagem (Landschaft), permanece oculta a nós; “as plantas do botânico não são as flores do campo; a “nascente” de um rio, estabelecida geograficamente, não é a “fonte do vale”” (HEIDEGGER, 1977, § 15). Quando nós “interpretamos a natureza como aquilo que está simplesmente presente, nosso envolvimento “originário” com ela é obscurecido” (FOLTZ, 2000, p. 30). Mas o que está por detrás desse processo de domínio total da Natureza como presença dis-ponível, na consecução dos produtos que fomentam a cultura? O que esconde o des-ocultamento objetificador da Natureza pela técnica moderna? O que subjaz a esse agir para com a Natureza, que Heidegger chama ‘maquinação’, na elevação das potencialidades da razão calculadora aos seus limites mais elevados? “Isto que é deixado solto em suas próprias algemas. Que algemas? O padrão de explicabilidade calculável geral, pelo qual tudo se aproxima a tudo o mais igualmente e se torna completamente estranho a si mesmo – sim, tão totalmente outro que estranho. A

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relação de não-relacionalidade” (HEIDEGGER, 1999, § 67).

Para Heidegger, a essência da técnica moderna há muito já invadiu e dominou o ser humano. O perigo da técnica moderna não está em seus produtos, nas máquinas e equipamentos técnicos, que, em seu uso, podem ser letais ou não. A vigência extrema e o predomínio dos produtos da técnica moderna levam consigo “a possibilidade ameaçadora de se poder vetar ao ser humano voltar-se para um desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais inaugural [ein anfänglicheren Wahrheit]” (HEIDEGGER, 2002, p. 31). O perigo da técnica moderna reside em sua essência, em sua potencialidade de nos permitir-levar a dis-por e com-por tudo na Natureza, segundo fins eminentemente humanos, a ponto de nos impedir o acesso à verdade sobre ela e nós mesmos.

Uma vez que o destino [Geschick] domina ao modo da com-posição [Ge-stell], ele se torna o maior perigo. Ele se anuncia em duas frentes. Quando o não-oculto [Unverborgene] já não atinge o ser humano, como objeto [Gegenstand], mas exclusivamente, como o que-subsiste [Bestand], quando, no supérfluo, o ser humano é somente o requisitante do que-subsiste – então é que chegou à última beira do precipício, lá onde ele mesmo só se toma como o que-subsiste. E é justamente este ser humano assim ameaçado que se alardeia na figura de senhor da Terra. Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do ser humano. Esta aparência faz prosperar uma derradeira ilusão, segundo a qual, em toda parte, o ser humano só se encontra consigo mesmo (HEIDEGGER, 2002, p. 29).

Nosso afastamento sistemático e cultural

da Natureza, porém, não nos “livrou” dela. Como entes sensíveis, nós a trazemos em nós do nascimento à morte: comemos, bebemos, respiramos, moramos... Quanto mais nos “afastamos”, mais necessitamos dela. Mesmo quando nos sentimos a salvo dos elementos, cercados das facilidades da vida moderna – num ambiente de objetos culturais familiares; rendimentos produzidos, instalados, fabricados por meio da técnica moderna –, a Natureza está ali: extirpada, transformada, trazida ao mundo de uma forma que não a sua. Ela nos dá a sustentação para o afastamento: é o distante próximo; e, na proximidade, o distante. Quando “falta”, porque algo saiu errado no fluxo irreflexivo do viver cotidiano, torna-se, então, revelada, porém, como problema, como entrave, obstáculo para o continuum da vivência. Para sermos, apenas retira-se, recolhe-se, oculta-se, sob a forma de recurso manuseável, disponível, sem deixar de ser-aí.

Em nossa luta incessante (instintiva) por mais e mais poder (HOBBES, 1971), o processo de

desenvolvimento de nossas aptidões como espécie, habilitou-nos, por meio da técnica, ao acesso ilimitado e irrestrito à Natureza. Diferentemente de outros animais, nós, enquanto racionais, munidos desses meios para multiplicar os fins do querer, estamos numa relação não-natural para com ela, uma vez que retiramos dela muito mais do que seria necessário à nossa sobrevivência como entes naturais. Nesse sentido, há muito mais razão (enquanto proporção e medida) na Natureza do que em nossas atividades para com ela.

A vontade de querer [Wille zum Willen] supõe como condição de sua possibilidade tanto o asseguramento da consistência (verdade) como a exacerbação das pulsões (arte). A vontade de querer institucionaliza assim como ser o próprio ente. Somente na vontade de querer podem predominar a técnica (asseguramento do que-subsiste) e a incondicional falta de reflexão [Besinnungslosigkeit] (“vivência” <Erlebnis>). Enquanto forma suprema da consciência racional, são inseparáveis, isto é, são o mesmo tanto a técnica tecnicamente interpretada e a falta de reflexão como a incapacidade institucionalizada, para si mesma encoberta, de estabelecer uma referência ao que é digno de ser questionado. Por que isso é assim e como isso chegou a ser assim, pressupõe-se aqui somente como algo experienciado e concebido. Para acabar essa ponderação, cabe dizer que a antropologia não se esgota na investigação do ser humano e na vontade de tudo explicar a partir do ser humano como a sua expressão. Mesmo onde não se investiga, mas, ao contrário, se ensaiam decisões, acontece o seguinte: joga-se uma humanidade contra outra, reconhece-se a humanidade como força originária, como se fosse a primeira e a última instância em todos os entes, e os entes e suas várias interpretações fossem simplesmente a conseqüência. É assim que passa a predominar a única questão determinante: “A que forma [Gestalt] pertence o ser humano?”. Pensa-se forma de maneira metafisicamente indeterminada, ou seja, platonicamente, como o que é e somente então determina toda transmissão e evolução, embora ela mesma independa tanto de uma como de outra. Esse reconhecimento prévio “do ser humano” faz com que se busque o ser apenas e sobretudo no âmbito do ser humano e que se considere o próprio ser humano, entendido como disponibilidade (consistência) humana... (HEIDEGGER, 2002, p. 75-76).

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TÉCNICA MODERNA E CIÊNCIA: LIMITES

A capacidade de dispor de tudo na Natureza para compor os bens-fins de consumo, capazes de nos levar à realização de nossa felicidade, levou-nos ao distanciamento da verdade sobre o ser, e, por conseguinte, sobre nós mesmos. O perigo de nossa atividade sobre a Natureza e sobre os seres humanos está em nos afastarmos do que é essencial. Nesse processo, tudo é re-produtível, factível, instalável, disponibilizável. Não há limites para a ação humana sobre a Terra. “A devastação da terra começa como processo voluntário, mas que, em sua essência, não é e nem pode ser sabido. Começa no momento em que a essência da verdade [Wesen der Wahrheit] se circunscreve como certeza [Gewißheit] na qual a re-presentação e a produção humanas asseguram-se de si mesmas” (HEIDEGGER, 2002, p. 86). Em nome da razão e da ciência, abandonamos a relação mítica para com os fenômenos naturais, e, com isso, distanciamo-nos do sentimento de respeito e assombro frente ao caráter sagrado do mistério que é para nós (ainda) o dom da vida e da origem de tudo o que há. A ilusão de conhecer a Natureza, que a razão calculadora por meio da ciência e da técnica nos concedeu, levou-nos à brutalização de nossa relação com ela. E, nesse distanciamento, corremos o risco de endurecer nosso coração, tornando-nos capazes de fazer mal, não só à Natureza, que nos dá vida, mas também aos próprios seres humanos.

A lei inaparente da terra a resguarda na suficiência sóbria do nascer e perecer de todas as coisas, no círculo comedido do possível a que tudo segue e ninguém conhece. A bétula nunca ultrapassa o seu possível. As abelhas moram no seu possível. Só a vontade que, a toda parte, se instala na técnica, esgota a terra até a exaustão, o abuso e a mutação do artificial. A técnica obriga a terra a romper o círculo maduro de sua possibilidade para chegar ao que já não é nem possível e, portanto, nem mesmo impossível. As pretensões e os dispositivos técnicos possibilitaram o êxito de muitas descobertas e inovações. Mas isso não prova, de modo algum, que as conquistas da técnica tenham tornado possível até mesmo o impossível. Uma coisa é usar a terra, outra acolher a sua benção e familiarizar-se na lei desse acolhimento de modo a resguardar o segredo do ser e encobrir a inviolabilidade do possível (HEIDEGGER, 2002, p. 85).

Mesmo com toda a ilusão que a ciência

permite, ainda nos será impossível resolver o enigma da vida e da morte. O segredo daquilo que dá a vida nos é vedado. É o mistério. Essa ambição desesperada, sem limites, da vontade de

querer tudo re-produzir para o aumento de poder e de felicidade, que está instalada na essência da técnica moderna, que permite usar a Natureza como recurso, energia armazenável, matéria, fonte, ainda não conseguiu ultrapassar o limite da factibilidade e da mera satisfação de nossos desejos. A ciência moderna, utilitária, disfarçada de investigação desinteressada da Natureza, em seus esforços vãos, não conseguiu descobrir o essencial:

A terra, porém, permanece abrigada na lei inaparente de seu possível. A vontade impinge o impossível como meta do possível. O apoderamento que instaura essa exigência e a mantém em vigor provém da essência da técnica, palavra aqui idêntica ao conceito da metafísica em sua superação. A uniformidade incondicionada de todos os povos da terra sob a dominação da vontade de querer evidencia a insensatez da ação humana colocada como absoluto (HEIDEGGER, 2002, p. 86).

A técnica moderna tem o poder de

desmontar a relação entre o ser humano e o ser. É um poder que ataca a compreensão do ser, restringindo-a à compreensão do presente. A vida, porém, como dom da Natureza, como doação, é a única força que escapa ao poder da técnica moderna. É nesse aspecto imensurável, não-instalável do ente, que a técnica encontra o seu limite: a nascencialidade do ente como doação (LOPARIC, 1999). Reprodução in vitro, melhoramento genético, determinação dos caracteres do embrião, hibridização genética, modificação genética (o caso das sementes transgênicas), clonagem animal e humana, nada disso nos poderia afastar mais do advento da origem e nos empurrar mais para o fundo do velamento que a técnica moderna traz no seu tudo fazer e dispor. Estaremos sempre, porém, no nível da factibilidade, da manipulação do que tomamos como o que está-aí já dado: dis-posição, com-posição, dis-ponibilização: somente re-produção disfarçada de produção. Produzir, ex nihilo, a vida, que nos vem sempre como dom, gratuidade pura, que nada cobra além do cuidado, essa produção está fora do alcance da mão e intelecto humanos, operando por meio da técnica moderna. Mas, para Heidegger,

aquilo que é verdadeiramente inquietante não é o fato de o mundo se tornar cada vez mais técnico. Muito mais inquietante é o fato de o [ser humano] não estar preparado para esta transformação do mundo, é o fato de nós ainda não conseguirmos, através do pensamento que medita, lidar adequadamente com aquilo que, nesta era, está realmente a emergir (HEIDEGGER, 2000, p. 21).

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Ao refletirmos, em nosso tempo, sobre os argumentos e atitudes de cientistas ocupados com sua ânsia em ver quem consegue clonar o primeiro ser humano, somos levados a vê-los, nesse querer-poder-fazer, como crianças com seus brinquedos: não há limites para sua curiosidade. Nessa ocupação de querer-ver “o-que-tem-dentro”, correm o risco de destruir a essência do ente cuja essência investigam: “A fim de encontrarmos a verdadeira alcachofra, nós a desfolhamos” (WITTGENSTEIN, 1999, § 164). O mais importante, aqui, “não reside na possibilidade de um eventual mau uso do genoma humano, mas na própria idéia, subjacente aos projetos cada vez mais ambiciosos da engenharia genética, de que a essência do ser humano pode ser escaneada” (LOPARIC, 1999, p. 335). Até onde pode ir a ciência nessa prática ilimitada de (desejo de) manipulação dos entes? Existe ou não um princípio que deva/possa orientar as nossas relações para com a Natureza? Será que a maturidade da razão – na realização de seu J©8@l, na direção apontada por Kant – seria essa atitude descomprometida para com a vida e para com uma Natureza des-naturalizada tal como a ciência tem? Esse é o estado positivo das ciências, desejado e buscado como fim (lógico) da razão humana, tal como preconiza Comte? Como resolver o problema atual para as gerações posteriores? “Quase se tem a impressão de que, sob a dominação da vontade, tanto a essência da dor como a essência da alegria fechou-se para o ser humano. Ou será que a desmesura da dor pode ainda provocar aqui uma transformação?” (HEIDEGGER, 2002, p. 86).

De um lado, a ciência, a história da humanidade e a sociedade atual nessa fúria incessante pela realização-irrealizável de seus desejos; de outro, a Natureza, exaurida, à mercê da boa vontade de alguns, destinados a conscientizar o mundo para a necessidade da manutenção da biodiversidade no Planeta; de outro, ainda, uma geração de crianças e jovens que ainda podem mudar o rumo das coisas. Como resolver essa equação? Enquanto estado, ONG’s, economia e comunidade científica, pressionados, e pelas razões erradas, revertem o estado de coisas a fim de evitar o pior (seja do ponto de vista do lucro, seja do ponto de vista do medo do fim da vida na Terra), a educação das novas gerações é a grande esperança do Planeta; pois somos nós, seres humanos, que realizamos as ações que são descritas como políticas, econômicas, filosóficas, científicas etc., etc. Não são entidades à parte; somos nós que manipulamos os entes naturais e o ambiente; somos nós: homens, mulheres, idosos, crianças, os seres humanos, que tornamos a sociedade o que é e arriscamos a perder o que somos, aquilo de onde viemos e onde vivemos. Mas essa é uma perspectiva ainda muito humana.

A ausência de uma relação, de uma ligação ôntica, de um vínculo, com o começo das coisas,

com a sua origem, perpetrada na história do ocidente, graças ao nosso avanço progressivo por mais e mais poder, é na verdade o triunfo da técnica moderna sobre a Natureza, inclusive a do ser humano, pois os aspectos míticos e de respeito da relação dos seres humanos com a Natureza em seus primórdios, sua origem sagrada, divina, doada a nós: os ventos, a migração dos animais, as chuvas, a colheita, a caça etc... também foram suplantados pelo poder da técnica moderna, afastando-nos dessa relação mais essencial com os entes e objetos de nossa história como entes da Natureza. Temos, agora, no lugar dos mitos que explicavam a origem das coisas e fenômenos na Natureza, a ciência e o seu conjunto de explicações, que nos desvinculam dessa relação com a origem misteriosa, mágica, enigmática, sobrenatural, que é a vida como dom, doação, gratuidade. A ciência, por meio da técnica moderna, apropriou-se dessa gratuidade – que nada cobra, que nada pede em troca, pois é doação –, banalizando-a.

Com isso, não se pode desejar um retorno às condições primitivas da humanidade como solução do problema, pois seria insensato. Mas questiona-se, por meio de um re-pensar e re-sentir a vida, em sua dimensão mais essencial, sobre a possibilidade de se construir uma relação re-significada para com a Natureza em seu acontecer numa perspectiva ética e estética; assim como o caçador esquimó que ensina ao filho, num ritual milenar, os passos de uma relação de respeito à vida para com a Terra e as criaturas que lhe proverão a vida: retirar dela somente o necessário à sobrevivência, preservando o ciclo da vida no qual todos (sabendo ou não) estamos inseridos e do qual dependemos. E essa relação de respeito deveria valer não só para as criaturas vivas, mas também para os objetos que cada vez mais criamos (com o auxílio da técnica moderna) para nosso uso (cuja absoluta necessidade pode sempre ser questionada), e que, mal usados (ou feitos para a destruição ou substituição), são abandonados, gerando o lixo diário de cada dia de nossa cultura da manutenção do desejo e de sua satisfação.

O problema ético com relação à cultura do descartável é o desrespeito correlato à Natureza alienada, des-naturalizada, objetificada, utilizada como recurso, como fonte, que, se esgota aqui, vamos buscar lá, e assim por diante. Quantos há, entre nós, que ainda concebem importância ao caráter durável ou não de algo, quando o buscam ou o adquirem? Quantos de nós ainda se relaciona com objetos com respeito e com cuidado, pois, à medida em que duram conosco, passam a fazer parte de nossa história, confundindo-se com ela, podendo, depois de nós, contá-la? Por alegações espúrias, a cultura do descartável nos ensina que não devemos apegar-nos às coisas materiais.

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(Aqui se oculta, talvez, uma intenção muito precisa, porém, desconhecida e ainda não refletida). Quantos de nós quer que seu sapato dure, suas calças, seu casaco, seu carro? Alguém ainda possui alguma coisa que não seja descartável, re-ponível, re-produtível? Pois, se duram, podem despertar em nós a atenção e o interesse de que durem, quebrando o ciclo do desejo de re-pôr. Hoje, está tudo pronto! Tudo produzido. Se estragar, substitui. Não há espaço para o sentir a perda, pois não há tempo suficiente com os objetos para que se gere esse sentimento. Por isso, são feitos para não durar. Sobre esse ponto, Heidegger observa o seguinte, no Seminário de Le Thor de 1969:

Hoje em dia, ser é ser-substituível. A idéia mesma de “reparação” é uma idéia antieconômica. É necessário a todo ente de consumo que ele já esteja consumido, exigindo assim a sua substituição. Temos assim uma visão do desaparecimento do que é tradicional, do que é transmitido de geração para geração. Mesmo no fenômeno da moda o essencial não é o adereço (como adereço, a moda torna-se tão anacrônica quanto a reparação), mas a substitutividade dos modelos de estação em estação. A vestimenta já não é trocada porque tornou-se defeituosa, e sim porque ela possui o caráter essencial de ser “o vestuário do momento à espera do próximo vestuário” (HEIDEGGER, 1986, p. 369).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qual o limite dessa visão-agir objetificante? Até onde podemos ir sem uma relação de respeito a tudo que concede a vida e ao que é vivo?

Nenhuma mera ação poderá transformar a situação do mundo porque, enquanto operatividade e operância, o ser veda o acesso de todos os entes ao acontecimento do que lhes é próprio. Nem mesmo o sofrimento que se abate sobre a terra pode provocar uma transformação imediata. É que o sofrimento só consegue ser experimentado passivamente, ou seja, como o que se opõe à ação, e assim como ela integrando o mesmo âmbito essencial da vontade de querer (HEIDEGGER, 2002, p. 85).

Pelas razões erradas, talvez nos

encaminhemos, como muitas vezes na história humana sobre a Terra, para o fim adequado: a restauração, a preservação. Mas, seria ainda possível chegarmos a um princípio universal de respeito ao sagrado da vida na Terra, e não só à vida, mas ao que a possibilita? Chegaríamos a um estágio moral que tivesse como princípio do agir o respeito ao sagrado que dá ser, que permite a nós e a tudo o existir? Talvez... por meio de um processo formador das novas gerações para um

pensar que medite mais do que calcule. Fundar um novo começo, não mais sobre os benefícios do avanço da dominação técnica do ser humano sobre a Natureza, em que a técnica, como poder-fazer, que constituímos e nos constitui, encaminhasse-nos para um fazer científico novo que tivesse uma relação com o desejo de des-cobrir o que é a Natureza, não mais para prever nem dominar no dispor-compor-disponibilizar, mas para saber viver-com. Isso poderia-nos re-posicionar quanto ao primeiro começo, colocando-nos numa relação não-hierárquica para com a Natureza, mas de contigüidade. Uma atitude reflexiva assim chegaria, porém, a sobrepujar a força pungente da razão calculadora “que não vê limite para seus projetos” (KANT, 1986)? Seria possível usar a técnica para colocá-la – seu poder e domínio – dentro dos limites do aceitável e estritamente necessário?

A fundamentação de uma ética para com a Natureza poderia levar-nos, porém, a um abandono da vontade: a um querer-não-querer. Mas seria esse um caminho para a humanidade e para o Planeta? Não seria possível re-educar as novas gerações para uma relação mais essencial e de respeito para com a Natureza, sem abrir mão da técnica, mas limitando-a, restringindo-a, sensibilizando-a? Até onde pode isso tudo ir? Que meios podem ser utilizados para frear a manipulação incansável do desejo humano: um carro novo, um corpo novo, uma roupa nova? Pode uma reorientação da ação humana para um agir responsável para com a Natureza, para uma disciplina de contenção de desejos, para uma conscientização do que é essencial à vida, levar a humanidade a realizar o fim da razão kantiana na Terra, antes que desapareçamos? O passo do ser humano, da Natureza à civilização, representa mesmo progresso, ou apenas a mesma luta contra os elementos naturais pela sobrevivência só que com mais instrumentos? A cobiça, o desperdício, a violência desmedida e as guerras continuam ilustrando isso. O ser humano, “quando aperfeiçoado, é o melhor dos animais, mas, quando separado da lei e da justiça, é o pior de todos; visto que a injustiça armada é a mais perigosa, e ele é equipado desde o nascimento com armas, designadas para serem usadas pela inteligência e virtude, que ele pode usar para os piores fins. Por isso, se ele não tem virtude, ele é o mais perverso e o mais selvagem dos animais, e o mais cheio de luxúria e gula” (ARISTOTLE, 1971, 1253a).

Quem faz filosofia e ciência é o ser humano, com visão de mundo e conjunto de valores determinados pela circunstância histórica na qual vivemos. Nesse sentido, o caráter objetificante de nossa relação com o mundo, tanto no processo do pensar o ser como no de investigar

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o ente (os níveis ontológico e ôntico, respectivamente), chega à filosofia e à ciência através da visão de mundo e dos valores daqueles que a praticam (HEIDEGGER, 1977). Visão de mundo e valores advêm, com certeza, da educação que os praticantes da ciência normal bem como da filosofia receberam. Assim, ao supormos cada uma dessas pessoas como membros de uma comunidade determinada espaço-temporalmente por uma forma de ver o mundo e a si mesmos, devemos crer que o problema da origem da indiferenciação entre ser e ente, assim como o da objetificação do ente, tenha sido gerado por outro processo de formação de crenças que não a filosofia ou a ciência, mas que os seus praticantes e realizadores (filósofos e cientistas), ao encetarem seu trabalho em suas respectivas áreas, levariam consigo na determinação dos pressupostos de seu domínio de atuação; ou seja, as visões de mundo dessas pessoas teriam influenciado todo o processo de sua atividade, que teriam sido influenciadas por essa prática formadora de suas visões, e assim por diante. Frente a isso, fica a tarefa de compatibilizar essa constatação com o fato de que o avanço da ciência e da técnica modernas nos afasta do começo, da origem, e de modos mais essenciais de explicação e de relacionamento para com a Natureza, que, supostamente, respeitariam o caráter sagrado da vida.

Vale lembrar que vivemos um tempo de crise de valores, sem um princípio orientador de nossa visão de mundo (STEIN, 1988). Os paradigmas religiosos e filosóficos, responsáveis, talvez, exatamente por essa visão objetificante do mundo, em que o ser humano lida com tudo como se fosse objeto, coisa que deve submeter, subjugar, dominar, em que mesmo a vida pode ser também manipulada, trouxeram-nos até aqui. No entanto, não são mais capazes de sustentar seus significantes. A ciência objetificante – que as próprias religiões ajudaram a consolidar por intermédio de seus praticantes, através dos tempos, em seu avanço cego pelo excesso da luz da tecnologia, em seu domínio progressivo sobre a Natureza – ultrapassou o limite de contenção dos dogmas religiosos e dos valores morais interassegurados nas comunidades por séculos. Hoje, encontramo-nos perdidos, conduzidos pelos interesses econômicos de um sistema instalado para a manipulação inescrupulosa e ilimitada de nossos desejos. E há, pelo menos, dois perigos aqui: aquele vislumbrado por Heidegger, sobre o avanço desenfreado da técnica moderna num tempo sem reflexão, sem um pensar que medita – que domina o ser humano, determinando-o, bem como sua forma de compreensão –, e o retorno aos processos fundamentalistas políticos, ideológicos, religiosos.

Como, então, se poderia instaurar uma perspectiva como a que Heidegger propõe a partir

de sua reflexão sobre a técnica moderna e seus perigos? Trata-se de mudar, na raiz, não o ver, mas aquilo que o determina. Não é possível determinar as implicações da adoção de uma tal perspectiva sem levar em conta o que, com certeza, levou a humanidade, em seus primórdios, a colocar o ser humano numa relação de superioridade em relação a tudo mais. Ao refletirmos sobre a adoção original da perspectiva objetificante, não podemos ser ingênuos nem considerá-la ingênua; pois, com certeza, antes de um modo de ver, diz respeito a um desejo (de poder) e de uma consideração sobre essa possibilidade. Pois, de nada adiantaria o ser humano se colocar o desejo de dominar o mundo e de submetê-lo, se não tivesse os meios para isso. O fato é que tínhamos e temos os meios, e a técnica esteve desde o início a nosso dispor para viabilizar essa tarefa.

A reflexão de Heidegger pode ser considerada um amadurecimento da maneira de o ser humano considerar a sua relação com a Natureza e, por conseguinte, uma outra perspectiva em relação a tudo o que somos. Pois o ser humano é o único que chega a uma compreensão do ser, a esse sentimento em relação à sua vida e à do outro. Enquanto ser-o-aí (Dasein), enquanto projeto aberto, lançado no mundo, é ele quem pode realizar o passo para o novo começo, pois é o único que se coloca (ou pode colocar) a pergunta pelo ser (HEIDEGGER, 1977, § 4). É somente a partir da razão, elevada ao domínio da reflexão que medita, que podemos reorientar nossa ação no mundo (HEIDEGGER, 2000, p. 13). A mudança não pode passar pelo abandono da técnica nem da metafísica enquanto tal, mas pelo domínio consciente desses modos de ser do ser humano como Dasein. Pois, para Heidegger,

também a técnica moderna é meio para um fim. É por isso que a concepção instrumental da técnica guia todo esforço para colocar o ser humano num relacionamento direito com a técnica. Tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. Pretende-se dominar a técnica. Este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do ser humano (HEIDEGGER, 2002, p. 12).

Em Serenidade (1959), Heidegger indica

um caminho para desfazer o enfeitiçamento do ser humano pela técnica moderna, que pode levar um dia ao pensamento que calcula “a ser o único pensamento admitido e exercido”; tentar salvar a essência do ser humano, aquilo que ele tem de mais próprio: “ser um ser que reflete”. O importante, para Heidegger, é manter essa essência do que nos faz ser, “é manter desperta a reflexão” (HEIDEGGER, 2000, p. 26).

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Abstract: This paper presents a reflection upon our relationship with Nature under the light of some pathways that Heidegger shows in reflecting on the subject of technics in the second moment of his thinking, after Being and time (1927). We have started from the perspectives which ground our original relationship with Nature the creationistic and the evolutionistic perspectives, trying to understand why, in our developmental journey as species towards culture and civilization, the continuous improvement of our adapting capacities (high brain activities such as those related to rational operations) get us radically far away from our natural origin, bringing us to neglect systematically our condition as sensitive beings of Nature. A picture of this trajectory serves as background to situate and to understand Heidegger’s reflection, in the second moment of his thinking, upon the dangerous of the realm of modern technics and the necessity of returning to our capacity of reflection the thinking that meditates, in order to think about the origin of the process which he called ‘forgetfulness of being’, as the pathway for us to re-situate ourselves in a world even more dominated by technics, which brings, inevitably, to the detachment between human beings and nature.

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