o capote - nikolai gogol

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COLEÇÃO PARA SEMPRE ESCRITORES PARA TODOS OS TEMPOS Volume 1 N. V. Gógol O CAPOTE E OUTRAS NOVELAS Seleção, tradução, prefácio e notas de PAULO BEZERRA civilização brasileira

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Conto de Nikolai Gogol

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  • COLEO PARA SEMPRE

    ESCRITORES PARA TODOS OS TEMPOS

    Volume 1

    N. V. Ggol

    O CAPOTEE OUTRAS NOVELAS

    Seleo, traduo, prefcio e notas de PAULO BEZERRA

    civilizao brasileira

  • H uma grande diferena entre Akki Akkievitch e as personagens de Dostoievski. Estas tm uma conscincia aguda e angustiante do seu estado de humilhadas e ofendidas, debatem-se desesperadamente contra ele e em sua luta vo do questionamento da existncia de Deus sugesto da mudana da natureza humana para adapt-la s necessidades reais do homem. Enquanto as criaturas de Dostoievski se debatem diante dos problemas centrais da existncia humana, levando- nos a tomar partido nas suas discusses, Akki Akkievitch s consegue suscitar compaixo. E por isto que Makar Divuch- kin, personagem central de Gente pobre, fica furioso ao ler O Capote por imaginar que est sendo comparado com Akki e, portanto, sendo objeto de compaixo, o que qualquer personagem de Dostoievski sente como uma terrvel ofensa. Pobres como Akki foram muitos heris dostoievskianos como Golidkin (O duplo), Prokhartchin (O Sr. Prokhartchin) e at mesmo Rasklnikov (Crime e Castigo). Mas todas essas personagens se distinguem pela maneira como enfrentam o mundo em que vivem: Golidkin refugia-se no simblico criando o seu outro ideal, Prokhartchin levanta-se da sua pobreza para proclamar-se Napoleo e Rasklnikov mata a velha agiota, imagem do microcosmo bancrio, desafiando a ordem universal das coisas e postulando a reorganizao social e moral do universo.

    Ggol foi o grande mestre do riso na literatura russa. Neste campo um continuador da tradio do riso que vem de Pe- trnio e Apuleio, passando por Rabelais, Cervantes, Sterne, fazendo parte daquilo que o crtico Dmitri Likhatchov denomina de mundo do riso. Nesse gnero teve um continuador imediato em Tchekhov (o conto A morte do funcionrio uma minipardia de Akki Akkievitch), influenciou Mikhail Zs- chenko, Ili Ilf e Vassili Pietrov, e entre os mais recentes o contista russo Flix Krivin e o romancista georgiano Nodar Dumbadz.

    Paulo Bezerra

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    O capote

    Num departamento... no, melhor no dizer em que departamento. Nada h de mais ofensivo que toda essa variedade de departamentos, chancelarias, regimentos, em suma, toda sorte de reparties pblicas. Hoje em dia qualquer indivduo acha que tocar no seu nome j significa ofender toda a sociedade. Dizem por a que bem recentemente um capito- isprvnik1 no me lembro de que cidade divulgou edital dizendo claramente que estavam violando as leis do Estado e se andava pronunciando o seu santo nome em vo. E como prova juntou ao edital o imenso volume de um romance qualquer, onde a cada dez pginas aparece um capito-isprvnik em absoluto estado de embriaguez. Portanto, para evitar complicaes, melhor denominarmos o departamento de que falamos... de um certo departamento.

    De sorte que, num certo departamento, trabalhava um funcionrio. No se pode dizer que esse funcionrio fosse l essas coisas: baixinho, um tanto encarquilhado, meio arruiva- do, com miopia j esboada, uma pequena calvcie na fronte, ambos os lados do rosto ondeados por rugas e o semblante com uma daquelas cores a que se pode chamar de hemorroidais... Mas, que se pode fazer! A culpa do clima de Petersburgo. Quanto categoria (porque entre ns preciso anunciar antes de tudo a categoria), era ele aquilo que se chama de eterno

    1 Chefe distrital de polcia na Rssia tzarisia (N. do T.).

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  • conselheiro titular, o que, como se sabe, alvo das chacotas e galhofas de que se farta tudo quanto escritor que tem o elogioso costume de cair em cima daqueles que no podem arreganhar os dentes. Bachmtchkin era o seu sobrenome, derivado, como se v, de bachmk botina. Entretanto, nada se sabe a respeito de quando e como ele se originou de bach- mk. O pai, o av, at o cunhado e todos os Bachmtchkin sem exceo andavam de botas, mudando a sola apenas trs vezes ao ano. Seu nome era Akki, seu patronmio, Akkie- vitch. Talvez o leitor ache esse prenome meio esquisito e rebuscado, mas pode estar certo de que no houve qualquer re- buscamento: as circunstncias naturais que lhe tornaram simplesmente impossvel outro nome, e isso aconteceu justamente assim. Nasceu Akki Akkievitch no anoitecer de um 23 de maro, se no me falha a memria. A falecida me, alma bondosa, mulher de um funcionrio pblico, mandou batiz-lo como era devido. Estava ainda ao leito, a cama em frente porta, tendo em p direita Ivan Ivnovitch Irochkin, o padrinho, uma beleza de homem, chefe de repartio no senado, e a madrinha, Arina Seminovna Bielobrichkova, esposa de um oficial-de-quarteiro2, mulher de virtudes raras. Sugeriram genitora dar criana qualquer um dos trs nomes: Mkkia, Sssia ou Khozdazat, nome de um mrtir. No pensou a falecida , esses nomes, no. Para satisfaz-la, abriram o calendrio em outro lugar e novamente saram trs nomes: Trifll, Dula e Varakhissi. S sendo castigo articulou a me , nunca ouvi nomes to esquisitos. Varadat ou Varuk ainda v l, mas Trifil e Varakhissi! Bem, pelo que vejo, ele no tem sorte mesmo. J que assim, o melhor mesmo dar a ele o nome do pai. O pai se chamava Akki, que o filho tambm se chame Akki . Eoi assim que se originou o nome de Akki Akkievitch. Batizaram o menino; este chorou e fez tamanha careta, como pressentindo que viria a ser conselheiro titular. Foi assim que tudo aconteceu. E contamos

    2 Guarda especial de um quarteiro ou bairro na Rssia tzarista (N. do T.).

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    toda essa histria para que o leitor possa ver por si mesmo que tudo aconteceu por absoluta necessidade e que outro nome seria inteiramente impossvel.

    Quando e por recomendao de quem Akki Akkievitch entrou para o departamento, era coisa de que ningum podia se lembrar. Por mais que mudassem de diretores e chefes de toda espcie, viam-no sempre no mesmo lugar, na mesma posio, no mesmo cargo, o mesmo escrevente, de tal maneira que depois passaram a acreditar que ele parecia mesmo j haver nascido inteiramente preparado, de uniforme e calvo. No departamento ningum lhe prestava o menor respeito. Os guardas, alm de no se levantarem quando ele passava, nem chegavam a lhe dirigir o olhar, como se fosse uma simples mosca que voava pela sala de recepo. Os superiores o tratavam com uma frieza desptica. Qualquer subchefezinho da repartio colocava-lhe a papelada sob o nariz sem sequer dar-se ao luxo de dizer: Copie , ou Eis um trabalhinho interessante, bom ou algo agradvel, como se faz entre funcionrios bem educados. E ele ia recebendo, olhando apenas o papel, sem procurar ver quem lhe entregara e se tinha direito de faz-lo. Recebia e no mesmo instante comeava a escrever. Os funcionrios jovens zombavam e gracejavam dele o quanto permitia o humor de chancelaria, contavam mesmo em sua presena toda sorte de histrias que envolviam a sua pessoa, a sua senhoria, uma velha de setenta anos; diziam que a velha lhe batia, perguntavam quando os dois iam casar-se, faziam-lhe chover sobre a cabea bolinhas de papel e diziam que era neve. Mas Akki Akkievitch no respondia uma palavra, como se no houvesse ningum diante dele: em meio a todas essas amolaes no cometia um s erro no seu trabalho. S mesmo quando a brincadeira passava do limite, quando algum lhe empurrava o brao, perturbando-lhe o trabalho, que ele falava: Deixem-me em paz. Por que me magoam? Havia algo estranho nas suas palavras, na sua voz. Alguma coisa tanto pedia compaixo que um jovem, recm-iniciado, que a exemplo dos colegas ia-se permitir zombar dele, deteve-se de repente como se comovido e desde ento tudo lhe pareceu mudar, assumir um novo aspecto. Alguma fora sobrenatural o afastava dos colegas que h pouco conhecera e tomara por pessoas de-

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  • centes e civilizadas. Depois, vinha-lhe imaginao nos momentos mais alegres a imagem daquele funcionrio baixinho de fronte calva com suas palavras penetrantes: Deixem-me em paz. Por que me magoam? Nestas palavras penetrantes outras palavras ecoavam: Eu sou teu irmo. O pobre rapaz levava a mo ao rosto. E muitas vezes estremeceria em sua vida ao perceber o quanto h de desumano no ser humano, que grosseria feroz subjaz num ambiente culto, requintado e, meu Deus!, inclusive naquelas pessoas que a sociedade reconhece nobres e honradas.

    Seria difcil encontrar uma pessoa to consumida em seu posto. Trabalhava com zelo: no, isso ainda no diz tudo; trabalhava com amor. Naquele infindvel transcrever, vislumbrava algo como um mundo mais diverso e agradvel. O prazer lhe brotava do rosto; tinha algumas letras favoritas e, se chegava a escrev-las, sentia-se enlevado: sorria, piscava, remexia os lbios, de tal maneira que se imaginaria ler em seu rosto qualquer letra que a sua pena traasse. Se fosse condecorado de acordo com o empenho que demonstrava, talvez, para sua prpria surpresa, chegasse at mesmo ao cargo de conselheiro de Estado. Porm, como diziam seus jocosos colegas, ao invs de um boto na lapela, ganhou apenas hemorridas nos fundilhos. Bem, no se pode dizer que nenhuma considerao lhe fosse externada. Um diretor, sendo boa alma e desejando recompens-lo pelo longo servio j prestado, ordenou que se lhe desse algo mais importante que aquele trabalho habitual de cpia; tratava-se de extrair de um memorando j pronto um relatrio qualquer a outra repartio pblica, consistindo todo o trabalho na simples mudana do ttulo geral e na transposio de alguns verbos da primeira para a terceira pessoa. Isso lhe custou tanto trabalho que ele ficou encharcado ae suor, limpou a testa e disse finalmente: No, melhor que me dem alguma coisa para copiar. Desde ento, deixaram-no definitivamente no trabalho de escrevente. E como se, fora daquelas cpias, nada mais existisse para ele. Akki Akkievitch no tinha a mnima preocupao com o vestir: seu uniforme passara do verde a um pardacento esfarinhado. Usava uma gola estreitinha, baixinha, de tal forma que o pescoo, embora curto, brotava da gola, parecendo extremamente longo, como o da

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    queles gatinhos de gesso de cabea mvel que, pelas praas e nas feiras, vendedores ambulantes carregam s dezenas sobre as cabeas. Levava sempre alguma coisa grudada ao uniforme, fosse algum fiapo de linha ou um pedacinho de palha. Alm disso, era dotado de uma arte especial de, ao andar pela rua, passar por baixo de janelas no justo momento em que se atiravam detritos de toda espcie, da ter sempre o chapu engalanado por cascas de melo e melancia e porcarias semelhantes. Em nenhuma ocasio prestou ateno ao que ocorria diariamente na rua, impressionando com isso seu colega, o jovem funcionrio, que aguava de tal maneira o olhar vivo que percebia do outro lado da calada quando arrebentava a presilha das calas de algum, fato que sempre lhe fazia brotar do rosto um sorriso malicioso.

    E se Akki Akkievitch olhava para alguma coisa, via sempre em tudo suas linhas limpas, escritas com uma caligrafia igual, e s perceberia que no estava no meio da uma linha, mas no meio da rua, se um cavalo aparecesse de repente e lhe pousasse o focinho no ombro, soprando-lhe das narinas um furaco sobre o pescoo. Chegando em casa, sentava-se imediatamente mesa, sorvia rapidamente sua sopa de verduras e comia um pedao de carne bovina com cebola sem sequer perceber o sabor, e comia tudo isso com moscas e tudo o que Deus mandasse naquele instante. Percebendo que o estmago comeava a inflar, levantava-se da mesa, tomava do tinteiro e copiava os papis que trazia para casa. Se tal no acontecia, ele tirava uma cpia propositalmente, para sua prpria satisfao, sobretudo quando se tratava de um papel notvel no pela beleza do estilo mas pelo endereo de uma personalidade qualquer, nova ou importante.

    Mesmo naquelas horas em que escurece inteiramente o cu acinzentado de Petersburgo e todo o funcionalismo est de barriga cheia depois de haver jantado cada um de acordo com os seus vencimentos e seus prprios desejos nas horas em que tudo repousa depois daquele ranger de penas e do vaivm do departamento, dos afazeres necessrios de cada um e dos demais, depois de tudo o que um homem infatigvel assumiu voluntariamente, passando at do necessrio , nas horas em que o pessoal burocrtico se apressa em gozar o tempo

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  • ainda restante, os mais animados indo ao teatro, esse vagando pelas ruas, aproveitando o seu tempo para contemplar alguns rabos-de-saia, aquele indo a festinhas onde gasta o tempo em cumprimentos a uma mocinha bonita, estrela de um pequeno crculo de funcionrios, outro e isso o mais freqente

    indo simplesmente visitar colegas que habitam dois pequenos comodos de um terceiro ou quarto andar, com ante-sala

    e alguma pretenso moda, uma lmpada ou um bibel qualquer, fruto de muitos sacrifcios, privaes de jantares, passeios etc., em suma, mesmo naqueles instantes em que os funcionrios se dispersam pelas casas dos amigos a fim de jogar um uste bem agressivo, acompanhado de ch com torradas de centavos e baforadas de fumaa dos seus longos cachimbos, contando, enquanto do cartas, algum mexerico vindo da alta sociedade, a qual o homem russo no renuncia nunca e sob nenhuma circunstncia, ou mesmo quando, por falta de assunto, tornam a contar a eterna anedota do comandante a quem disseram que haviam cortado o rabo do cavalo do monumento de Falconnet3, enfim, mesmo quando todo mundo procurava se divertir, s Akki Akkievitch no se entregava a nenhum divertimento. Ningum podia dizer que j o tivesse visto numa festa em alguma ocasio. Concluindo a gosto suas cpias, deitava-se para dormir, sorrindo de antemo ao pensar no dia seguinte: amanh Deus mandar alguma coisa para copiar. Assim ia passando a vida tranqila de um homem que, ganhando quatrocentos rublos, sabia se sentir satisfeito com a sua sorte. E talvez chegasse a uma profunda velhice, no fossem tantas desgraas espalhadas no s pelo caminho dos conselheiros titulares como tambm dos conselheiros secretos, efetivos, da Corte, enfim, de tudo quanto conselheiro, inclusive daqueles que no do nem recebem conselhos de ningum.

    H em Petersburgo um poderoso inimigo de todos aqueles que recebem quatrocentos rublos por ano ou aproximada

    5 Monumento de Pedro, o Grande, construdo pelo escultor Falconnet e instalado em reters burgo.

    mente. Esse inimigo no outro seno o nosso frio do norte, embora haja quem o considere muito saudvel. Entre as oito e as nove da manh, no justo momento em que as ruas ficam tomadas pela multido que se dirige aos departamentos, ele

    garotes to fortes e pungen- ares funcionrios ficam deci- -los. Nessas ocasies em que

    comea a dar indiscriminados piparotes to fortes e pungentes em todos os narizes que os pobres funcionrios ficam decididamente sem saber onde escond-los. Nessas ocasies era que o frio faz arder a testa e brotarem lgrimas dos olhos, at mesmo de altos funcionrios, os pobres conselheiros titulares ficam s vezes indefesos, restando-lhes como nica salvao correr em seus capotinhos ralos cinco ou seis ruas o mais breve possvel e depois sapatear bastante no vestbulo de sua repartio at que se aqueam todas as faculdades congeladas e o talento para o exerccio das funes.

    H certo tempo Akki Akkievitch comeara a sentir um ardor especialmente forte nas costas e nos ombros, embora procurasse cobrir o mais rapidamente possvel a distncia inevitvel. Pensou finalmente se no haveria algum pecado em seu capote. Depois de examin-lo atentamente em casa, descobriu que nuns dois ou trs lugares, justamente nas costas e nos ombros, o tecido virara gaze: estava transparente de to gasto e o forro desfiara. preciso dizer que o capote de Akki Akkievitch era ainda objeto de galhofas do pessoal da repartio: tiraram-lhe inclusive o nobre nome de capote, substituindo-o por roupo. A pea era realmente de um formato estranho: a gola sempre diminuindo de ano para ano, pois servia de remendo para outras partes. O remendo no dava prova de mestria do alfaiate: a pea era feia e tinha forma de saco. Percebendo do que se tratava, Akki Akkievitch resolveu que era necessrio levar o capote a Pietrvitch, um alfaiate que vivia num terceiro pavimento subindo pela escada de servio e, apesar do olho torto e da cara sarapintada, consertava com bastante acerto calas e fraques de funcionrios etc., naturalmente quando no estava bbado nem urdia na cabea outra inveno qualquer. claro que no deveramos falar muito desse alfaiate, mas, como convencionamos que o carter de cada personagem ficaria inteiramente definido na nossa narrativa, nada nos resta fazer; vamos a Pietrvitch tambm. A princpio, chamava-se simplesmente Grigori e era servo de um se

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  • nhor qualquer; comeou a chamar-se Pietrvitch depois que recebeu alforria e passou a cair na bebedeira por motivo de qualquer festa, inicialmente das grandes e depois indistintamente, em todas as festas religiosas, bastando apenas que houvesse uma cruz marcando o calendrio. Neste aspecto era fiel aos costumes ancestrais e, quando discutia com a mulher chamava-lhe mundana e alem. Uma vez que j mencionamos a mulher, sera preciso dizermos umas duas palavras a seu respeito nfelizmente, pouco se sabia dela, a no ser que era mulher de Pietrvitch, que usava touca em vez de chale embora, ao que parece, no pudesse se gabar de ser bonita;pelo menos, se alguem passava por ela, s os soldados da guarda ine olhavam o rosto sob a touca: assim mesmo torciam o bigode e deixavam escapar dos lbios um som todo especial

    Ao subir a escada que levava a Pietrvitch, escada que sejamos justos, vivia encharcada de gua, lavagem e tomada de ho a pavio daquele cheiro de lcool que consome os olhos e e bem constante em todas as escadas de servio de Peters- burgo pois bem, ao subir essa escada, Akki Akkievitch ja ia pensando na quantia que Pietrvitch pediria e decidira mentalmente no dar mais de dois rublos. A porta estava aberta porque a mulher do alfaiate, preparando no sei que peixe fazia tanta fumaa na cozinha que no dava para divisar nem mesmo as baratas. Akaki Akkievitch passou pela cozinha sem que a propna dona da casa o notasse e entrou finalmente no comodo, onde deu com Pietrvitch sentado sobre as pernas numa mesa de madeira ao natural, ao estilo de um pax turco. estava descalo como hbito dos alfaiates no trabalho a J u t 1 a laltar vista foi 0 dedo muito conhecido a Akaki Akkievitch, com aquela unha deformada, grossa edura como uma carapaa de tartaruga. Pietrvitch tinha ao pescoo um novelo de seda e linhas e um trapo sobre os joelhos. Ha uns tres minutos tentava enfiar a linha no fundo da agu- ma e, como no acertasse, estava furioso com a escurido e a propna linha, rosnando a meia-voz: No entra, desgraada- ta querendo acabar comigo, essa velhaca!

    Para Akki Akkievitch no era agradvel chegar no justo momento em que Pietrvitch estava zangado: gostava de

    e encomendar algo quando j estava meio tocado ou, como

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    dizia sua mulher, j t de cuca cheia, esse diabo zarolho . Em tais circunstncias Pietrvitch sempre fazia abatimento com muito boa vontade, sempre concordava, chegava inclusive a fazer reverncias e agradecer. E bem verdade que depois vinha a mulher, chorava, alegava que o marido estava bbado e por isso pedira pouco: mas era s o fregues aumentar dez copeques e fim de papo. Mas desta vez Pietrvitch parecia em jejum e por isso estava spero, intratvel e disposto a pedir o diabo sabe que preo. Akki Akkievitch logo percebeu a situao e j se dispunha a, como se diz, tirur o corpo fora, no entanto, a coisa j se tinha iniciado: Pietrvitch fixou-o com o nico olho que possua, e Akki Akkievitch no teve outra sada seno dizer:

    Bom dia, Pietrvitch! Bom dia desejo pra sua pessoa respondeu Pietr

    vitch e. olhou de esguelha as mos do visitante, procurando ver que prenda ele trazia.

    Olha, Pietrvitch, eu te... ... bom esclarecer que Akki Akkievitch se expressava o

    mais das vezes atravs de preposies, advrbios e, por fim, de partculas que realmente no tm qualquer significado. Se a coisa era muito complicada, ele costumava inclusive nunca terminar a frase, de sorte que, comeando muito freqentemente um discurso com as palavras: Isso, em verdade, inteiramente de... , nada acrescentava depois e acabava esquecendo por achar que j havia dito tudo.

    O que foi que houve? perguntou Pietrvitch e correu simultaneamente seu nico olho por todo o uniforme do visitante, olhando da gola s mangas, passando para as costas, abas, botoeiras, tudo de seu conhecimento, j que era trabalho seu. Os alfaiates tm esse costume; correm os olhos por toda a pessoa logo que a encontram.

    Eu, Pietrvitch, .. o capote, o pano... nos outros cantos todos, est bem resistente, est meio empoeirado, e parece velho, mas novo, s que num cantinho est um pouco ... nas costas e aqui no ombro t um pouco surrado, nesse ombro aqui t um pouquinho... veja, s isso. Um trabalhinho de...

    Pietrvitch apanhou o roupo, estendeu-o inicialmente na mesa, examinou-o longamente, meneou a cabea e estirou

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  • o brao na direo da janela, apanhando no parapeito uma tabaqueira redonda com o retrato de um general qualquerauc Wa ' f JfC3Ur urTV etn&ul de Papel cobria o rosto

    uma dedada havia furado. Depois de uma pitada de ra-m, f p OVIt - eten rPUpo sobre os bras abertos e icou a examina-lo contra a luz, meneando novamente a cabea. Revirou o forro as avessas e meneou mais uma vez a cabea tornou a tirar a tampa da tabaqueira com a cara do general coberta de papel e, depois de levar uma pitada de taba-finalmeme-2, tampOU'a e Suardou-a num canto, dizendo

    Nao, e impossvel ajeitar esse troo: est um trapo! o estrem ecer^' P aS Akki Akkievitch sentiu o cora-

    Por que impossvel, Pietrvitch? perguntou ele com voz de criana quase suplicante. - Est apenas gasto nos ombros, e voce deve ter alguns retalhinhos...n- 77 cta^ os da arranar retalhos a gente arranja, mas nao dapra remendar. O troo est esfarrapado: basta tocar com

    agulha que ele vai logo se desfiando.Nao tem importncia, bote um remendinho.

    nL, Acontece que no h onde botar o remendo, no te-

    o Drimei-oC nSr ' ^ dc pan S tem nome voa com o primeiro pe-de-vento.

    so ! MeSm aSSm b ta Um remendinho- Como que is-- Nao respondeu decidido Pietrvitch. Nada se

    P!I ZeI A col*a est ruim mesmo- O melhor que o senhorm a s temp esfriar mais transform-lo em as para agasalhar os pes, porque meia no aquece. Meia nvenao de alemao para embolsar mais dinheiro (Pietrvitch

    gostava de aproveitar oportunidades para atacar os alemes)

    fe novo 0f Vai tCr meSm de mandar fa2er um caP-

    n VO l eXOU Perturbada a vista de Akki Ak- d an te rio, n cmodo Passou a confundir-seera o M ^ clc Cm cla^ arosto S de ^ de Pi Kh

    Um novo, de que jeito? Akki Akkievitch falou como se estivesse sonhando. Ora, eu no tenho dinheiro paraisso.

    Isso mesmo, um capote novo disse Pietrvitch com uma tranqilidade de brbaro.

    E se eu tivesse de fazer um novo, como que aquilo... Isto , o preo? Sim. Trs notas de cinqenta e uns quebrados.Ao dizer isto, Pietrvitch contraiu significativamente a bo

    ca. Gostava muito dos grandes efeitos, gostava de deixar subitamente as pessoas em completo embarao para depois olhar de esguelha a cara que faziam aps suas palavras.

    Cento e cinqenta rublos por um capote! exclamou o pobre Akki Akkievitch, e talvez fosse essa a primeira exclamao que fazia desde que nascera, pois sempre se distinguira por falar baixinho.

    Isso mesmo respondeu Pietrvitch , e ainda preciso ver que capote, porque, se botarmos gola de marta e um capuz forrado de cetim, a coisa chegar aos duzentos rublos.

    Pietrvitch, por favor Akki Akkievitch falava em tom suplicante, sem ouvir nem procurar ouvir as palavras do alfaiate e todos os efeitos , por favor, d um jeito qualquer para que ele possa servir pelo menos um pouquinho mais.

    Ah, no, isso seria perda de tempo e gasto intil de dinheiro.

    Aps essas palavras, Akki Akkievitch saiu completamente destrudo. Depois de sua sada, Pietrvitch ainda permaneceu muito tempo de p, comprimindo importante os lbios e sem voltar ao trabalho, satisfeito por no se haver rebaixado nem comprometido seu ofcio de alfaiate.

    Uma vez na rua, Akki Akkievitch parecia sonhar. Que coisa dizia a si mesmo , nunca pensei que desse nisso. depois de certa pausa, acrescentou l a, ... Veja s que deu, e eu no podia supor mesmo que desse nisso. E veio um longo silncio, depois do que ele pronunciou: Isso a, ! Isso a, de jeito nenhum, no esperava, isso... de jeito nenhum... essa circunstncia! Dito isto, tomou um rumo completamente diferente, sem sequer suspeitar, em vez de se diri

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  • gir para casa. Pelo caminho, um limpa-chamins esbarrou nele com todo o seu lado sujo, manchando-lhe o ombro inteiro: do alto de uma casa de construo caiu sobre ele uma poro de cal. Nada disso ele percebeu, e, s depois que esbarrou num policial, que, com a alabarda ao lado, despejava tabaco de um cornimboque na mo calosa, s ento voltou a si, e mesmo assim porque o policial disse:

    Ei, que negcio esse de esbarrar no focinho da gente? A calada no te basta?

    Isto o levou a abrir os olhos e tomar o caminho de casa. S ento teve condies de coordenar idias, de perceber de forma clara e real a sua situao. Comeou a falar sozinho, no mais desordenadamente, porm de maneira sensata e franca como se conversa com um amigo prudente ao qual se pode falar das coisas mais cordiais e ntimas. Ah, no dizia ele , j no se pode discutir com Pietrvitch: agora ele t ... pelo visto levou alguma surra da mulher. O melhor mesmo eu ir casa dele num domingo de manh: depois de um sbado de bebedeira estar vesgo e sonolento, de sorte que precisar de um trago para curar a ressaca mas a mulher no lhe dar dinheiro; a entro eu e lhe meto na mo uma moeda de dez copeques, ele ficar mais condescendente e a o capote, ...

    Assim Akki Akkievitch meditou consigo mesmo, aprovou seu prprio plano e aguardou o primeiro domingo. Avistando a mulher de Pietrvitch saindo para algum lugar, dirigiu- se diretamente casa do alfaiate. Depois de um sbado, Pietrvitch estava realmente vesgo, cabea pendente e todo sonolento; mas, apesar de tudo, bastou-lhe tomar conhecimento do assunto para dar a impresso de impulsionado pelo diabo:

    Impossvel disse ele , faa o favor de encomendar um novo.

    Ento que Akki Akkievitch estirou-lhe a mo com os dez copeques.

    Obrigado, senhor, tomarei um traguinho sua sade. Quanto ao capote, no vaie a pena perder tempo: no serve para absolutamente nada. Mas, em compensao, eu lhe farei um primor de capote novo, nisso estamos conversados.

    Akki Akkievitch ia tentar o assunto do conserto, mas Pietrvitch interrompeu dizendo:

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    Que eu vou lhe fazer um capote novo ponto pacfico, pode confiar em mim, farei esforo. Posso faz-lo at mesmo de acordo com a moda: a gola presa por colchetes de prata.

    Foi ento que Akki Akkievitch percebeu que no poderia passar sem um novo capote e caiu totalmente em desnimo. Como, com que dinheiro iria mandar faz-lo? E verdade que poderia confiar parcialmente no prmio que receberia pelas festas, mas esse dinheiro j estava h muito tempo destinado a outras despesas. Precisava comprar novas calas, pagar uma velha dvida ao sapateiro por um conserto de velhas botinas, encomendar trs camisas e duas peas de roupa interna, cujo nome no fica bem mencionar em linguagem impressa, enfim, todo o dinheiro tinha destino certo, e, mesmo que o diretor fosse to benevolente a ponto de fixar quarenta e cinco ou cinqenta rublos de gratificao ao invs de quarenta, mesmo assim restaria uma soma to irrisria que, comparada ao capital necessrio compra de um capote, no passaria de uma gota d gua no oceano. Ele sabia, bem verdade, que Pietrvitch era capaz de fazer a extravagncia de pedir subitamente o diabo sabe que preo exorbitante, de tal forma que sua prpria mulher no conseguia se conter e gritava: T ficando maluco, seu idiota! Um dia trabalha de graa, desta vez pega a mania absurda de pedir um preo que nem ele mesmo vale. Sabia ele que Pietrvitch faria at por oitenta rublos, no entanto o problema era onde arranjar esses oitentas rublos. A metade ainda poderia conseguir: a metade arranjaria; mas onde iria buscar a outra metade?... Mas preciso que antes o leitor saiba a origem da primeira metade. Akki Akkievitch costumava guardar meio copeque de cada rublo que gastava, depositando o economizado num mealheiro fechado a chave. De meio em meio ano contava as moedas de cobre acumuladas e as trocava por moedas de prata. Assim o vinha fazendo h muito tempo, de maneira que vrios anos de acumulao lhe permitiram juntar quantia superior a quarenta rublos. De sorte que tinha em mos a primeira metade; mas, e a segunda, onde iria buscar? Onde arranjar os outros quarenta rublos? Akki Akkievitch pensou, pensou e resolveu que precisaria diminuir os gastos comuns pelo menos durante um ano; mandar s favas o consumo de ch pelas noitinhas, deixar de acen

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  • der a vela, precisando de alguma coisa iria ao quarto da senhoria aproveitar o claro de sua vela; na rua, caminharia o mais macio e cuidadosamente possvel pelas pedras e o calamento, quase na ponta dos ps, para no gastar a sola; mandaria lavar a roupa interna o mais raramente possvel e, para evitar gast- la, iria tira-la sempre que chegasse em casa, vestindo apenas um velho roupo de algodozinho, no poupado nem pelo tempo. Verdade seja dita; a princpio lhe foi um tanto difcil acostumar-se a essas restries, mas depois acabou se habituando; aprendeu inclusive a no comer noite, mas em compensao se alimentava espiritualmente, nutrindo sua eterna idia de um futuro capote. Era como se sua prpria existncia tivesse adquirido mais plenitude, com se ele houvesse casado como se contasse com outra pessoa ao seu lado, como se no estivesse sozinho e a companheira de sua vida tivesse concordado em percorrerem juntos a estrada da vida e essa companheira nao era outra seno o capote novo de algodo grosso e orro resistente. Ele se tornou de certo modo mais vivo, inclusive mais firme de carter, como uma pessoa que j escolheu e se definiu por um objetivo. Do seu rosto e dos seus atos desapareceu a duvida natural e a indeciso, enfim, desfizeram- se todos os traos hesitantes e indefinidos. Vez por outra uma chama lhe cintilava nos olhos, as idias mais audazes e ousadas se faziam vislumbrar em sua cabea: e por que no botar marta na gola?! Essas abstraes por pouco no o levaram displicncia. Uma vez, ao copiar um papel, ele esteve to prestes a cometer erros que chegou a soltar um uf! e benzeu-se iodos os meses ia pelo menos uma vez casa de Pietrvitch para talar sobre o capote, onde era melhor comprar o pano de que cor, de que preo e, embora meio preocupado, ele sempre regressava satisfeito para casa, pensando que finalmente chegaria o momento em que tudo isso seria comprado e o capote pronto. O assunto tomou um curso inclusive mais rpido do que ele esperava. Contra todas as expectativas o diretor lhe concedeu nao os quarenta ou quarenta e cinco rublos, mas uma verdadeira soma sessenta rublos. Ser que o diretor pressentira que Akki Akkievitch estava precisando de um capote ou teria acontecido por acaso e s assim mais vinte rublos vieram lhe cair nas maos? Essa circunstncia apressou a mar

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    cha das coisas. Eram s mais uns dois ou trs meses de uma fbmezinha, e Akki Akkievitch estaria com quase exatamente oitenta rublos. Seu corao, que habitualmente era tranqilo, comeou a agitar-se. Foi logo no primeiro dia s compras junto com Pietrvitch. Compraram um pano muito bom, o que alis no era de suipreender, uma vez que j estavam h meio ano pensando nisso e raramente passavam um mes sem ir ao bazar consultar os preos. E, para completar, vitch disse que no havia tecido melhor. Para o forro escolheram cetineta, mas uma cetineta to boa e slida que, segundo Pietrvitch, era at melhor do que a seda e parecia inclusive surtir mais efeito e ser mais brilhante. Marta no compraram porque era de fato muito cara; em vez dela compraram gato, mas escolheram o melhor que havia na loja, um gato que, de longe, sempre se podia confundir com marta. A confeco do capote durou ao todo duas semanas porque havia muito acolchoado, do contrrio ficaria pronto antes. Pelo feito Pietrvitch cobrou doze rublos no havia como cobrar menos: tudo se tinha costurado decididamente em seda, com uma costura dupla e mida, e em cada uma delas ele correra seus prprios dentes para eliminar qualquer salincia.

    Foi... difcil dizer com preciso, mas o dia mis solene na vida de Akki Akkievitch foi provavelmente o dia em que Pietrvitch finalmente lhe trouxe o capote. Trouxe-o pela manh, no exato momento em que Akki Akkievitch devia sair para o departamento. Em nenhuma ocasio o capote seria mais oportuno, pois o frio j comeava a fustigar com pancadas bastante fortes e parecia disposto intensific-las. Pietrvitch veio com o capote como o fazem os bons alfaiates. Expresso de imponncia to grande como a que lhe brotava do rosto, Aka- ki Akkievitch jamais vira. Pietrvitch parecia sentir plenamente que fizera uma grande obra e que de repente mostrara em si mesmo o abismo que separa os verdadeiros alfaiates dos remendes. Tirou o capote de um pano recm-chegado da lavanderia, dobrou em seguida o pano e o meteu no bolso para uso. Depois de retirar o capote, observou-o com bastante orgulho e, estendendo-o nos braos, jogou-o muito habilmente nos ombros de Akki Akkievitch. Em seguida esticou-o e ajustou-o por trs, puxando-o para baixo. Depois fechou-o sobre

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  • o corpo de Akki Akkievitch sem aboto-lo inteiramente Homem de idade avanada, Akki Akkievitch quis provar as mangas: Pietrvitch ajudou a vestir as mangas tambm e as mangas tambm ficaram boas. Em suma, o capote saiu exatamen- te na medida. Diante de tudo isso, Pietrvitch no perdia oportunidade de dizer que pedira to pouco porque vivia numa pequena rua onde trabalhava sem letreiro e ainda porque conhecia Akki Akkievitch h muito tempo; se fosse na Avenida Nievski s o trabalho custaria setenta e cinco rublos. Akki Akkievitch no queria discutir esse assunto com Pietrvitch e ademais temia todas as grandes somas com que ele costumava ofuscar os fregueses. Acertou as contas com ele, agradeceu-lhe e no mesmo instante saiu de capote novo para o departamento. Pietrvitch saiu atrs dele e, na rua, ainda ficou muito tempo parado, observando de longe o capote; depois caminhou deliberadamente para um lado a fim de usar um beco curvo para contornar Akki Akkievitch e mais uma vez contemplar a sua obra de um lado diferente, isto , de frente. Enquanto isso, Akki Akkievitch caminhava ao pleno enlevo de todos os seus sentimentos. Sentia em cada frao de segundo o capote novo sobre os ombros, e foram vrias as vezes em que chegou inclusive a desabrochar um sorriso de satisfao interior. Ora, duas eram as vantagens: uma de que estava aquecido, outra, de que era bom. Nem chegou a perce, ber o caminho e, quando menos esperava, estava no departamento. Tirou o capote no vestirio, examinou-o bem e deixou-o aos cuidados especiais do porteiro. No se sabe de que modo a i e S .0 a l 4 o departamento ficou logo sabendo que Ak- ki Akkievitch tinha um capote novo e que o roupo no mais existia. Todos correram no mesmo instante ao vestirio para ver o novo capote. Comearam a parabeniz-lo, saud-lo; a principio ele se limitou a sorrir, depois passou a sentir at vergonha. Quando os colegas comearam a lhe dizer que era preciso comemorar o novo capote ou que ele devia pelo menos dar um sarau para eles, Akki Akkievitch ficou totalmente perdido, sem saber o que fazer, o que responder, como escusar- se. Passados alguns minutos iria persuadi-los, vermelho de vergonha e de modo bastante ingnuo, que esse capote no tinha nada de novo, que no era nada demais, que era o capote

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    velho. Por fim, um dos funcionrios, um subchefe qualquer de repartio, provavelmente com a inteno de mostrar que no nutria qualquer orgulho e se dava inclusive com subordinados, disse: . .

    Bem, pessoal, em vez de Akki Akkievitch quem vai dar o sarau sou eu. Esto todos convidados ao ch em minha casa: justo hoje o dia do meu santo. ^

    Como era natural, no mesmo instante, os funcionrios deram os parabns ao subchefe de repartio e aceitaram de bom gosto o seu convite. Akki Akkievitch quis escusar-se, mas todos comearam a lhe dizer que era descortesia, uma atitude indelicada e vergonhosa, e ele no teve outra sada seno aceitar. Alis experimentou satisfao ao perceber em seguida que iria ter oportunidade de passear inclusive noitinha de capote novo. Na verdade, esse dia inteiro foi a maior festa que Akki Akkievitch conheceu.

    Voltou para casa no mais feliz estado d alma, tirou o capote e pendurou-o cuidadosamente na parede, observando mais uma vez o tecido e o forro; depois, para comparaao, tirou do armrio o capote velho, inteiramente em trapos. Olhou-o e no pde deixar de rir: a diferena era de fato enorme! Depois, durante a refeio, ficava muito tempo deixando escapar um sorriso dos lbios sempre que lhe vinha memria o estado em que se encontrava o capote velho. Jantou alegre, no escreveu nada depois do jantar, nenhum papel; estirou-se na cama e bancou um pouco o sibarita at escurecer. Em seguida, para evitar demora, vestiu-se e jogou o capote sobre os ombros, saindo rua. O lugar exato em que vivia, o funcionrio que o convidara coisa de que infelizmente no nos lembramos: a memria comea a me falhar drasticamente, e tudo o que existe em Petersburgo, todas as ruas e prdios, confundiram-se tanto em minha cabea que muito difcil recordar-me ordenamente de alguma coisa. Seja como for, certo pelo menos que o tal funcionrio vivia na melhor parte da cidade, logo, num lugar muito distante de onde morava Akki Akkievitch. A princpio ele teve de passar por algumas ruas desertas, frouxamente iluminadas , mas, medida que se aproximava do quarteiro do funcionrio, as ruas iam ficando mais animadas, mais povoadas e melhor ilumina

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  • das. Os pedestres se tornavam mais freqentes, damas bem vestidas comeavam a aparecer, golas de castor se distinguiam em alguns homens, os surrados trens de madeira entranada cravada de pregos dourados, foram rareando, dando lugar trenos envernizados que, guiados por cocheiros elegantes de bones de veludo carmesim e mantas de pele de urso, passavam rpidos pelas ruas e por coches de boleias limpas, Fazendo a neve ranger sob as suas rodas. Akki Akkievitch observava tudo isso como uma novidade. Havia vrios anos que no saia a rua durante a noite. Parou por curiosidade diante da vitrina iluminada de uma loja para olhar um quadro em que uma mulher bonita tirava o sapato, deixando a descoberto a perna inteira que, diga-se, no era nada feia; atrs dela um homem de costeletas e bonita barbicha espanhola enfiava a cabea por uma porta entreaberta. Akki Akkievitch meneou a cabea e deu um leve sorriso, depois continuou em sua caminhada. Teria sorrido por que vira uma coisa que ignorava mas que mesmo assim existe na sensibilidade de cada um? Ou, a semelhana de muitos funcionrios, teria pensado: Ai, esses rranceses! Que danados, se querem uma coisa daquilo ento e aquilo mesmo... Talvez nem tenha pensado nisso, pois nao se pode penetrar na aima do homem e descobrii tudo o que ele possa ter em mente. Akki Akkievitch chegou finalmente ao prdio em que residia o subchefe da repartio Este vivia tolgado: tinha o apartamento no segundo andar com escada iluminada por uma lanterna. Ao entrar na ante-sala, Akki Akkievitch viu filas inteiras de galochas sobre o piso Entre elas, um samovar fervia borbulhento, soltando baforadas de vapor no meio da sala. As paredes estavam tomadas de capotes e capas entre os quais havia at alguns com gola de castor ou lapelas de veludo. Do outro lado da parede vinha uma algazarra que de repente se tornou clara e sonora quando um criado abriu a porta e saiu com uma bandeja cheia de copos vazios, um vaso de creme e uma cesta de torradas. Via-se que os funcionrios h muito estavam reunidos e j haviam toma-

    a P5m^,r c.0P0 de ch- Pendurando ele mesmo seu capote, Akaki Akkievitch entrou na sala, e seus olhos vislumbraram simultaneamente velas, funcionrios, cachimbos, mesas de jogo, enquanto a sucesso de vozes procedentes de todos

    os lados e o rudo de cadeiras arrastadas lhe atordoavam os ouvidos. Postou-se muito desajeitado no meio da sala, procurando e tentando imaginar o que fazer. Mas j o haviam notado; receberam-no com um grito e todos se dirigiram ante-sala e tornaram a examinar o capote. Embora meio confuso, Akki Akkievitch era um homem franco e no podia deixar -de se alegrar ao ver como todos elogiavam o capote. Depois, como era natural, todos o deixaram e ao capote abandonados, voltando, como era de praxe, s mesas destinadas ao uste. Tudo isso: o barulho, o vozerio e a multido, tudo isso era meio esquisito para Akki Akkievitch. Ele simplesmente no sabia como se comportar, o que fazer das mos, dos ps e de todo o seu corpo. Finalmente, chegou-se aos jogadores, olhou as cartas, fitou um e outro no rosto e algum tempo depois comeou a bocejar, a sentir que aquilo era enfadonho, principalmente porque h muito j dera a hora em que ele normalmente se deitava para dormir. Quis se despedir do anfitrio mas no o deixaram sair, dizendo que deviam beber sem falta uma taa de champanha em comemorao ao capote. Uma hora depois serviram o jantar, que consistia de salada de beterraba, vitela fria, pasta de carne, doces e champanha. Fizeram Akki Akkievitch beber duas taas, depois do que comeou a sentir tudo mais alegre na sala. Porm no pde esquecer de jeito nenhum que j dera meia-noite e que h muito chegara a hora de ir para casa. Para que o dono da casa no inventasse algum modo de cont-lo, saiu sorrateiramente, procurou na ante- sala o capote, que no sem lamentar viu estirado no cho, sacudiu-o, limpou-o bem, vestiu-o sobre os ombros e desceu a escada saindo rua. Na rua ainda estava claro. Algumas loji- nhas, esses eternos clubes de criados e de todo mundo, ainda estavam abertas; outras, apesar de fechadas, deixavam escapar um longo raio de luz ao longo de toda a fresta, indcio de que havia clientela e provavelmente criados ou criadas continuavam batendo papo, deixando os seus patres perplexos sem saber onde eles se encontravam. Akki Akkievitch caminhava em alegre estado d alma e, sabe Deus por que, quase chegou a correr de repente atrs de uma dama que passou como um raio ao seu lado, com todas as partes do corpo num movimento raro. No entanto, parou ali mesmo e voltou a caminhar

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  • mansinho, surpreso com o trote que nem ele mesmo sabia de onde viera. Um pouco adiante estenderam-se sua frente aque- as ruas desertas que, se durante o dia j no eram to alegres

    de noite muito menos. Agora elas se faziam mais desertas solitanas, os lampies passavam a piscar mais raramente vendo- se que para este lugar se destinava menos querosene. Vieram as casas de madeira, as cercas; no se via alma viva: s a neve cintilava nas ruas, enquanto cubculos baixos projetavam um ar triste e sombrio, adormecidos com suas janeletas fechadas Aproximou-se do lugar em que a rua era cortada por uma praanntC|rT apavorantf de to deserta, com algumas casas no lado oposto que mal se avistavam.

    Ao longe, Deus sabe onde, uma luzinha tremeluzia numa guarita que parecia instalada no fim do mundo. Aqui a alegria de Akaki Akakievitch diminuiu bastante. No foi sem algum temor involuntrio que enveredou pela praa, como se o coraao pressentisse algo de mau. Olhou para trs e para os lados: um verdadeiro mar ao seu redor. 1 No, o melhor no olhar pensou e continuou a caminhar, de olhos fechados- e, quando os abriu para verificar se estava perto do fim da praa viu de repente, diante de seu nariz, alguns sujeitos de bigode, tipos que ja nao lhe foi possvel distinguir. Sentiu os olhos escurecerem e o corao parar. Acontece que esse capote meu!

    disse um deles com a voz troante e agarrou Akki Akkie- v tch pela gola Este quis gritar por socorro mas um outro lhe esrregou em plena boca o punho do tamanho da cabea de um funcionrio, acrescentando: Inventa de gritar! Akki Akakievitch sentiu apenas como lhe tiraram o capote, deram-

    enHrm An h C i CSUU d e C StaS na neve sem nada mais sentir. Ao cabo de alguns minutos voltou a si e levantou-seporem nao havia mais ningum. Sentiu frio, que estava semcapote, comeou a gritar, mas a voz parecia nem imaginar ematingir o fim da praa. Desesperado, sem se cansar de gritarpos-se a correr pela praa no sentido direto da guarita, junta qual postava-se um policial que, apoiado em sua alabardaparecia olhar curioso e tentar saber por que diabo uma pessoacorria de longe em sua direo e gritava. Akki Akkievitchcorreu para ele e comeou a gritar em voz ofegante, dizendoque ele ficava dormindo e no olhava, no via como se rouba

    vam as pessoas. O policial lhe respondeu que nada havia vis- to, que notara apenas como dois indivduos o haviam retido n meio da praa mas pensara que se tratasse de amigos seus; disse-lhe que ao invs de ficar ali berrando inutilmente, ele devia procurar o inspetor no dia seguinte que o inspetor descobriria quem lhe roubara o capote.

    Akki Akkievitch chegou em casa em absoluta desordem: os fios de cabelo que ainda lhe restavam nas tmporas e na nuca estavam desgrenhados, o peito, s lados e a cala estavam grudados de neve. Ao ouvir terrveis batidas na porta, a velha senhorita pulou apressadamente da cama e com um p calado e outro descalo correu para a porta, prendendo discretamente com a mo a camisola sobre os seios. Mas, ao abrir, deu um recuo ao ver o estado de Akki Akkievitch. Quando ele lhe contou o ocorrido, ela sacudiu os braos e disse que ele devia se dirigir diretamente ao distrito, que o inspetor do bairro ia engabelar, prometeria mas ficaria embromando; por isso o melhor mesmo era ele se dirigir-diretamente ao chefe do distrito, que ela inclusive o conhecia, porque Ana, a fin- landesinha, sua antiga cozinheira, trabalhava agora como bab na casa do chefe do distrito; disse que freqentemente o via em pessoa, passando ao lado de sua casa, que ele ia todos os domingos missa, que rezava e ao mesmo tempo olhava alegre para todas as pessoas, logo, tudo fazia crer que se tratava de um homem bom.

    Depois de ouvir essa deciso, Akki Akkievitch saiu triste para o seu quarto; como ele passou a noite pode julgar unicamente aquele que for capaz de imaginar um pouco sequer a situao de outra pessoa.

    De manh cedo ele se dirigiu ao chefe do distrito; mas lhe disseram que estava dormindo; voltou s dez horas e tornaram a dizer: est dormindo; voltou s onze, disseram: bem, o chefe no est em casa; voltou na hora do jantar, mas os escreventes procuraram por todos os meios impedi-lo de entrar, querendo saber a qualquer custo de que assunto se tratava, que necessidade havia em ver o chefe do distrito e que coisa tinha acontecido. Por fim, Akki Akkievitch resolveu pelo menos uma vez na vida mostrar firmeza e disse categoricamente que precisava falar pessoalmente com o chefe do distrito, que

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  • eles no tinham o direito de barr-lo, que vinha do departamento tratar de assuntos pblicos; se eles teimassem em ret- lo, apresentaria queixa e ento eles iriam ver... Contra semelhante argumento, os escreventes nada ousaram dizer, e um deles foi chamar o chefe do distrito.

    O chefe do distrito acolheu de maneira extremamente estranha a histria do roubo do capote. Ao invs de dar ateno ao ponto principal da questo, ps-se a interrogar Akki Ak- kievitch: perguntou por que ele voltava to tarde para casa s.e. nf tcna ido a algum lugar indecente, de tal maneira qu Akaki Akakievitch ficou inteiramente confuso e saiu sem saber se o caso do capote seria levado aos devidos termos ou no.

    Esteve todo esse dia ausente do trabalho (o nico caso em sua vida). No dia seguinte compareceu ao trabalho, inteiramente plido, de capote velho, que estava ainda mais deplorvel. A histria do roubo do capote comoveu muitos dos colegas, embora houvesse quem no perdesse nem essa ocasio para zombar de Akki Akkievitch. Resolveram imediatamente fazer uma coleta para ele, mas reuniram uma quantia nfima, porque os funcionrios j haviam gasto muito na compra de um retrato do diretor e na aquisio de um livro qualquer, sugerido pelo chefe da repartio, que era amigo do autor. Portanto, a quantia reunida foi mera bagatela.

    Um deles, movido por compaixo, resolveu ajud-lo pelo menos com um bom conselho, dizendo que ele procurasse no o inspetor do bairro, porque, embora pudesse acontecer que o inspetor desse algum jeito de descobrir o capote para assim agradar chefia, de qualquer maneira o capote ficaria com a policia desde que Akki Akkievitch no apresentasse provas legais de sua posse sobre o mesmo; o melhor seria ele procurar uma certa pessoa importante, porque essa pessoa importante, depois de entrar em contato por escrito e por via oral com quem de direito, poderia fazer o assunto caminhar com mais exito. A Akki Akkievitch no restou outra coisa seno procurar tambm a pessoa importante. Qual era exatamente o posto da pessoa importante e de que consistia coisa que ate hoje estamos por saber. Devemos esclarecer que a pessoa importante tornara-se pessoa importante bem recentemente e que antes disso era pessoa sem importncia. Alis, seu cargo

    nem na atualidade se consideraria importante se comparado a outros ainda muito mais importantes. Porm, h sempre um crculo de pessoas para quem as coisas sem importncia se tornam importantes. Ademais, ele procurava aumentar sua importncia atravs dos mais variados recursos: determinou que os funcionrios inferiores o recebessem em plena escada, quando ele estivesse chegando ao gabinete, que ningum ousasse dirigir-se diretamente sua pessoa, que tudo seguisse a mais rigorosa ordem: o registrador do conselho faria relatrio ao secretrio de provncia, o secretrio de provncia ao secretrio titular e este a outro qualquer, para que ento o problema chegasse ^ at ele.

    E, na Santa Rssia, tudo est contaminado de imitao, cada um se achando chefe e sonhando com o lugar do seu superior. Dizem at que um desses conselheiros titulares, ao ser promovido a chefe de uma chancelariazinha qualquer, encerrou-se numa saleta especial que denominou sala de presena e colocou porta certos contnuos de gola vermelha e gales, que levavam a mo maaneta da porta e a abriam para qualquer um que ali chegasse, embora a sala de presena comportasse s duras penas uma simples escrivaninha. A nossa pessoa importante era homem de maneiras e costumes imponentes, majestosos mas no complicados. A severidade era o principal fundamento do seu sistema. Severidade, severidade e severidade , costumava dizer, ao pronunciar a ltima palavra, olhava sempre e com muita imponncia para o rosto do seu ouvinte. E bem verdade que tal coisa no tinha qualquer motivo, pois a dezena de funcionrios que compunha todo o mecanismo governamental da chancelaria j estava suficientemente apavorada: ao avist-lo, parava imediatamente de trabalhar e postava-se espera de que ele passasse por toda a sala. Sua conversa habitual com os subordinados caracterizava- se pela rigorosidade e se constitua quase sempre de trs frases: Que petulncia essa? Ser que o senhor sabe com quem est falando? Entende diante de quem se encontra?

    Bem, ele era uma boa alma, bom companheiro, prestativo; mas o ttulo de general4 f-lo perder completamente a ca-

    4 Veja-se nota introdutria do tradutor

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  • bea. Ao receb-lo ficou de certo modo confuso, perdeu o fio da meada e no mais atinou o que fazer. Quando lhe ocorria estar entre pessoas de cargo igual ao seu, ainda se mantinha na devida qualidade de pessoa humana, de pessoa muito decente, nada tola sob muitos aspectos; mas bastava que se encontrasse num ambiente em que houvesse pessoas um grau apenas inferior sua posio hierrquica para simplesmente perder as estribeiras: emudecia, e sua situao suscitava pena ainda mais porque ele mesmo sentia que poderia passar o tempo de maneira incomparavelmente mais agradvel. Seu olhos deixavam s vezes transparecer um forte desejo de se juntar a alguma roda ou conversa interessante, no entanto se detinha ao refletir: no seria isso uma concesso demasiado grande de sua parte, no estaria caindo na intimidade e no iria com essa atitude ferir a importncia de sua pessoa? E, depois dessas meditaes, permanecia eternamente no mesmo silncio, s vez por outra pronunciando um ou outro som monossilbico, o que lhe valeu o ttulo de maante-mor.

    Foi a essa pessoa importante que o nosso Akki Akkie- vitch teve de procurar, e procurar no momento que lhe era mais inoportuno, bastante inconveniente, embora muito conveniente para a pessoa importante.

    A pessoa importante estava em seu gabinete numa animadssima conversa com um velho conhecido e companheiro de infncia recm-chegado, a quem no via h vrios anos, quando levaram ao seu conhecimento que um tal de Bach- mtchkin o procurava

    Quem ? perguntou em voz entrecortada. Um funcionrio qualquer responderam. Ora! Pode esperar, a ocasio no prpria disse o

    homem importante.Aqui cabe dizer que a pessoa importante mentiu redon

    damente; ele dispunha de tempo, h muito j conversara com o amigo tudo o que tinha de conversar e arrastavam a conversa com pausas bastante longas, dando palmadas na perna um do outro e dizendo: Pois, Ivan Abrmovitch . mesmo, Ste- pan Varlmovitch! Mas, apesar de tudo, ele ordenou que o funcionrio esperasse para mostrar ao amigo, homem que h muito se afastara do servio e vivia em sua casa numa aldeia,

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    o quanto os funcionrios permaneciam espera na ante-sala. Por fim, depois que falaram pelos cotovelos e se deliciaram em pausas interminveis, tragando charutos e bem acomodados em confortveis poltronas de encosto reclinvel, ele pareceu lembrar-se de repente e disse ao secretrio que se achava postado junto porta com papis para relatrio:

    Ah, parece que h um funcionrio a, no ? Pode mand-lo entrar.

    Ao ver o ar resignado de Akki Akkievitch e seu velho uniforme, voltou-se para ele e perguntou de repente com aquela voz intercalada e austera que de antemo treinara proposi- talmente a ss em seu quarto e diante do espelho, uma semana antes de receber o atual cargo e o ttulo de general:

    Que deseja?Akki Akkievitch j sentira de antemo a necessria ti

    midez; meio confuso, falando na medida em que a desenvoltura da lngua o permitia, explicou, acrescentando inclusive mais freqentemente que o habitual a partcula aquilo, que tinha um capote novinho em folha mas que o haviam roubado de maneira desumana; que se dirigia a ele pedindo para interceder de algum modo, entrar em contato com o chefe de polcia ou outro qualquer, dar um jeito de descobrir onde estava o capote. Sabe Deus por que, o fato que o general achou que Akki Akkievitch estava usando de intimidade.

    Meu caro senhor continuou ele intercadente , o senhor por acaso no conhece o regulamento? No sabe onde se encontra? Como se encaminham as coisas? O senhor devia ter antes apresentado uma solicitao chancelaria; esta a enviaria ao chefe do escritrio, ao chefe da seo, depois ao secretrio e ento o secretrio a passaria para mim...

    Mas Excelncia Akki Akkievitch procurava reunir toda a sua diminuta frao de presena de esprito e, sentindo que estava terrivelmente suado , Excelncia, tive a ousadia de importun-lo porque esse negcio de secretrios, ... uma gente que no merece confiana...

    O qu? Como? De onde lhe vem tanta ousadia? Que maneiras so essas que o senhor adquiriu? Que desrespeito esse que os jovens andam difundindo em relao aos seus chefes e superiores! A pessoa importante pareceu no notar

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  • que Akki Akkievitch j passava dos cinqenta anos. Logo, se ele pudesse ser qualificado de jovem, isso s seria possvel em termos relativos, ou melhor, em comparao com aqueles que j estavam na casa dos setenta.

    O senhor por acaso no sabe com quem est falando? No entende diante de quem se encontra? Entende isso ou no entende? Vamos, responda.

    E bateu com o o p, elevando a voz a um timbre que deixaria no s Akki Akkievitch apavorado.

    Akki Akkievitch gelou estupefato, cambaleou, tremeu todo e no houve meio de se agentar sobre as pernas: se os contnuos no tivessem corrido imediatamente para segur-lo, ele teria despencado; saiu quase carregado. A nossa pessoa importante, satisfeita em ver que o efeito tinha inclusive superado a expectativa e completamente embriagada pela idia de que sua palavra podia at levar uma pessoa a perder os sentidos, olhou de esguelha para o amigo a fim de verificar a sua reao. E no foi sem satisfao que o viu numa situao completamente embaraosa, j comeando inclusive a sentir pavor.

    Como desceu a escada e tomou a rua Akki Akkievitch nem chegou a notar. No sentia braos nem pernas. Nunca tinha sido to fortemente repreendido por um general e ainda por cima um a que nem era subordinado. Caminhou em meio s nevascas que assobiava pelas ruas, boquiaberto, perdendo as caladas; seguindo o costume de Petersburgo, o vento o atacava de todos os lados, de todos os becos. Num abrir e fechar de olhos apanhou uma angina e chegou em casa aos trancos e barrancos, sem fora para dizer uma s palavra; deitou-se na cama com a garganta toda inflamada. Que fora tem s vezes uma reprimenda passada com rigor! No dia seguinte, j estava com febre alta. Graas ajuda do clima de Petersburgo a doena evoluiu mais rapidamente, o que era de se esperar, e, quando o mdico apareceu e lhe tomou o pulso, nada teve a fazer seno receitar uma compressa e mesmo assim para que o doente no ficasse sem o beneficente socorro da medicina; por outro lado, avisou-o no mesmo instante que dentro de uns dois dias a morte era certa. Depois disso dirigiu-se senhorita e disse:

    Quanto a senhora, no perca tempo toa: encomen

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    de agora mesmo um caixo de pinho, porque o de carvalho ficar muito carG para ele.

    Teria Akki Akkievitch escut ado essas palavras fatais ou no, teria ou no se deixado impressionar, lamentara ou no sua desditosa vida nada disso sabemos, porque ele esteve o tempo todo em delrio, ardendo em febre. Apareciam-lhe vises, cada uma mais estranha que a outra, dando-lhe a impresso de interminveis: ora via Pietrvitch e lhe encomendava um capote com estranhas armadilhas para ladres, que lhe apareciam incessantemente debaixo da cama e cada instante ele pedia senhorita j>ara lhe tirar um ladro inclusive de debaixo do cobertor; ora perguntava por que o velho roupo estava pendurado sua frente se ele tinha um capote novo; ora se via diante do general, ouvindo a rigorosa reprimenda e dizendo: Peo desculpa, Excelncia ; ora blasfemava, pronunciando as palavras mais terrveis, de tal maneira que a velha senhorita chegava inclusive a benzer-se, pois nunca ouvira nada semelhante sair daquela boca, ainda mais porque essas palavras vinham imediatamente depois de sua excelncia . Depois passou a falar coisas sem qualquer nexo, de sorte que nada se podia entender; podia-se apenas perceber que as palavras e idias desordenadas giravam em torno da mesma coisa o capote. Finalmente, o pobre Akki Akkievitch entregou a alma. No lacraram nem o seu quarto nem os seus pertences, porque, em primeiro lugar, no havia herdeiros, e em segundo, a herana era pouca demais, resumindo-se a um rolinho de penas de ganso, cinco cadernos de papel timbrado, trs pares de meia, dois ou trs botes de calas e o velho capote j conhecido dos leitores. Para quem ficou tudo isso, Deus sabe: confesso que o narrador dessa novela nem se interessou por isso.

    Levaram o morto e o enterraram. E Petersburgo ficou sem Akki Akkievith, como se ali ele nunca houvesse estado. Desapareceu e ocultou-se um ser que ningum defendera, que ningum estimara, por quem ningum se interessara, qu no chamara a ateno nem mesmo do naturalista, desse que no perde a oportunidade de espetar com um alfinete Uma simples mosca e examin-la com um microscpio um ser que suportara resignado os escrnios da chancelaria e baixou se

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  • pultura sem nada de extraordinrio, mas que acabou tendo, embora nos ltimos momentos de vida, o lampejo de uma visita radiosa em forma de capote para lhe animar por instantes a pobre existncia, e depois se abateu sobre ele uma insuportvel desgraa, dessas que se abatem sobre os reis e senhores do mundo...

    Alguns dias aps a morte de Akki Akkievitch, um contnuo foi enviado do departamento ao seu apartamento com uma ordem para comparecer imediatamente ao trabalho: o chefe exigia. Mas o contnuo voltaria de mos vazias, respondendo que ele no mais poderia comparecer. E, quando lhe perguntaram por qu? , exprimiu-se com as palavras: Muito simples, ele morreu, foi enterrado h quatro dias.

    Foi assim que no departamento tomaram conhecimento da morte de Akki Akkievitch. No dia seguinte, seu lugar j estava ocupado por um novo funcionrio, bem mais alto, cuja caligrafia j no era to reta porm bem mais inclinada e torcida.

    Mas quem poderia imaginar que a histria de Akki Akkievitch no teminaria aqui, que depois de sua morte ele ainda teria alguns dias turbulentos, como uma espcie de recompensa por aquela existncia que ningum notara? No entanto, foi assim que aconteceu, e a nossa pobre histria assume inesperadamente um desfecho fantstico. De repente, Peters- burgo foi tomada de rumores de que nas proximidades da ponte Kalnkin e bem mais adiante comeara a aparecer o fantasma de um funcionrio procura de um certo capofe que lhe haviam roubado; sob o pretexto do capote roubado, tirava de todas as pessoas, sem dar ateno a ttulos e patentes, qualquer espcie de capote: tivessem gola de gato, astrac, fossem acolchoados, forrados, pelias de urso, raposa, em suma, qualquer tipo de couro ou pele at ento inventado pelas pessoas para cobrir a prpria. Um funcionrio do departamento viu com seus prprios olhos o fantasma e reconheceu nele Akki Akkievitch; mas isso lhe infundiu tamanho pavor que ele saiu em disparada e por isso no pde observ-lo bem, vendo apenas como o fantasma o ameaava de longe com o dedo em riste.

    As queixas no cessavam, afluam de todas as partes; que

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    fossem s os conselheiros titulares os atingidos, mas o negcio de ficar sem o capote pela noites estava expondo totalmente ao perigo de um resfriado os ombros e costas dos prprios conselheiros da Corte. A polcia recebeu a ordem de agarrar o fantasma a qualquer custo, vivo ou morto, e, para servir de exemplo a outros, castig-lo da maneira mais severa possvel. E ela por pouco no o conseguiu. Foi o guarda de um bairro qualquer que no beco Kirichkin chegou a botar a mo na gola do absoluto defunto em pleno local do crime, quando ele tentava arrancar um capote de baeta bem grossa de um msico aposentado, que outrora assobiara flauta. Agarrando-o pela gola, o guarda gritou por dois outros camaradas a quem incumbiu de segur-lo por um instante, enquanto metia a mo no cano da bota procura de uma tabaqueira a fim de reanimar um pouco o nariz que congelava pela sexta vez em sua existncia, mas o tabaco era de uma qualidade que nem o defunto pde suportar. Tapando a narina direita com o dedo, mal o guarda conseguiu levar outra pitada esquerda; o morto soltou um espirro to forte que salpicou em cheio os olhos dos trs. Enquanto eles levavam a mo aos olhos para esfreg-los, o morto desapareceu por completo, de sorte que eles ficaram sem saber nem se o tinham realmente segurado em suas mos. Desde ento os guardas ficaram com um medo to grande dos mortos que temiam prender inclusive os vivos, limitando-se a gritar de longe: Ei, v dando o fora! e o funcionrio- fantasma comeou a aparecer inclusive pelas bandas da ponte Kalnkin, causando um bocado de pavor s pessoas medrosas.

    Acontece que nos esquecemos completamente da nossa pessoa importante, que, em realidade, quase foi a causa do rumo fantstico, ou melhor, de uma histria plenamente verdadeira. Para sermos justos devemos dizer antes de tudo que, logo depois que o pobre Akki Akkievitch saiu arrasado pela reprimenda, ele sentiu alguma coisa assim como pena. No era alheio cornpaixo; seu corao era capaz de muitas aes boas, embora a posio que ocupava impedisse freqentemente que elas fossem praticadas. To logo o amigo visitante deixou seu gabinete, ele se ps inclusive a meditar sobre o pobre Akki Akkievitch. E desde ento vinha-lhe quase todos os dias imaginao aquele funcionrio plido, que no suportara a repri

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  • menda de um superior. Ficou to preocupado com ele que ao cabo de uma semana tomou a deciso de mandar um funcionrio sua procura, a fim de saber como estava passando e se no haveria um meio de ajud-lo; e, quando lhe informaram que Akki Akkievitch havia morrido de uma febre repentina, chegou a ficar pasmado, a sentir um peso na conscincia e passou o dia todo de mau humor. A fim de se divertir um pouco e esquecer a desagradvel impresso, foi festi- nha de um amigo e l encontrou companhia decente e, o que era melhor, quase todos os presentes eram do mesmo grau de hierarquia, de sorte que nada podia constrang-lo. Isto teve impressionante influncia em seu estado de esprito. Tornou- se expansivo, de conversa agradvel, amvel, em suma, passou uma noite vontade. No jantar tomou umas duas taas de champanha, bebida que, como se sabe, contribuiu bastante para alegrar a pessoa. O champanha lhe despertou a vontade de fazer vrias extravagncias: resolveu no ir de imediato para casa mas dar uma chegadinha casa de Carolina Ivnovna, dama, ao que parece, de origem alem, por quem nutria sentimentos plenamente amigveis. E preciso esclarecer que a nossa pessoa importante j no era jovem, era um bom esposo, um honrado pai de famlia. Tinha dois filhos, um dos quais j trabalhava na chancelaria, e uma graciosa filha, de dezesseis anos e narizinho um pouco arrebitado porm bonitinho, que todos os dias lhe beijava a mo, dizendo: Bonjour, papa . Sua esposa, mulher ainda nova e inclusive nada feia, dava-lhe antes a mo para beijar e depois de vir-la ao contrrio beijava a dele. No entanto, mesmo plenamente satisfeito com o carinho do lar, a figura importante achou por bem arranjar uma amiga no lado oposto da cidade para relaes amistosas. Essa amiga no levava nenhuma vantagem sobre a mulher dele, no era nem mais jovem que ela; mas o mundo est mesmo cheio dessas coisas e no nos cabe julg-las.

    Pois bem, a nossa pessoa importante desceu a escada, subiu no tren e ordenou ao cocheiro:

    Para a casa de Carolina Ivnovna.Agasalhado com bastante luxo num aquecido capote,

    manteve-se numa agradvel situao que no se pode imaginar para um russo, qual seja, quando voc mesmo no est

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    pensado em nada, mas idias lhe entram sozinhas na cabea, cada uma mais agradvel que a outra, no sendo preciso nem se dar ao trabalho de procur-las.

    Plenamente satisfeito, relembrava todos os pontos alegres da festinha, todas as palavras que fizeram gargalhar uma pequena roda; chegava inclusive a repetir muitas delas meia voz e percebeu que ainda continuavam divertidas como antes, no sendo por isso d surpreender que tivesse rido vontade. No entanto perturbava-o de quando em quando um vento fustigante que, investindo de repente sabe Deus de onde e por que motivos, aoitava-lhe o rosto, lanando-lhe flocos de neve, fazendo inflar como uma vela a gola do capote ou lanando-a de repente sobre a cabea com uma fora sobrenatural, dando-lhe assim imenso trabalho em se desvencilhar dela. De repente a nossa pessoa importante sentiu que algum o agarrava pela gola com bastante fora. Voltou-se e viu um homem de baixa estatura, num uniforme velho e surrado, e no foi sem pavor que reconheceu nele Akki Akkievitch. O funcionrio tinha o rosto plido como a neve e o olhar de um defunto de verdade. Mas o pavor da pessoa importante ultrapassou todos os limites quando viu o morto torcer a boca e, descarregando sobre ele o terrvel cheiro de tmulo, pronunciou essas palavras:

    Ah! At que enfim! At que enfim eu te ... te agarrei pela gola! E do teu capote mesmo que preciso! No quiseste procurar o meu e ainda me repreendeste agora me d o teu!

    A pobre pessoa importante por pouco no morreu. Por mais enrgico que fosse na chancelaria e com os inferiores em geral, e embora qualquer um exclamasse: Puxa, que enrgico! s ao ver seu porte de bravo e sua figura, aqui ele se comportou como muitas pessoas de aspecto hercleo; sentiu tamanho pavor que chegou no sem fundamento a temer o ataque de uma doena qualquer. Ele mesmo tirou o capote o mais rpido possvel e gritou ao cocheiro com uma voz que no era a sua: Vamos correndo para casa!

    Ouvindo uma voz que se pronuncia habitualmente em minutos decisivos e vem inclusive acompanhada de algo muito mais eficaz, o cocheiro encolheu em todo caso o pescoo,

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  • sacudiu o chicote e disparou como uma flecha. Uns seis minutos depois a pessoa importante j se encontrava diante da entrada de sua casa.

    Plido, apavorado e sem capote ele chegou em sua casa ao invs de se dirigir de Carolina Ivnovna; arrastou-se de qualquer modo at o seu quarto e passou a noite bastante descontrolado, de sorte que na manh do dia seguinte a filha lhe disse durante o ch:

    Papai, tu hoje ests muito plido.Mas ele permaneceu calado e no disse a ningum uma

    s palavra a respeito do que lhe acontecera, onde estivera e para onde desejava ir.

    Esse acontecimento deixou-o fortemente impressionado. Passou inclusive a dizer muito mais raramente aos seus subordinados: Que ousadia essa, no entende diante de quem se encontra. E se chegava a pronunciar essas palavras, j no o fazia antes de tomar conhecimento do que se tratava. Porm o mais notvel que desde ento cessou inteiramente a apario do funcionrio-fantasma: ao que parece, o capote do general lhe caiu bem aos ombros. Pelo menos no se ouviu mais falar de que em alguma parte algum tivesse ficado sem o capote. No entanto muitas pessoas ativas e preocupadas no queriam se acalmar de jeito nenhum e diziam que o funcionrio-fantasma ainda continuava aparecendo nos lugares distantes da cidade. E de fato: um guarda do bairro de Ko- lomna viu com seus prprios olhos o fantasma saindo de detrs de um prdio: porm, sendo por natureza um tanto fraco, to fraco que certa vez foi derrubado por um simples leito que saa correndo de detrs de uma casa, fato que provocou o riso dos cocheiros que ali se encontravam riso que custou a cada cocheiro um nquel de multa , pois bem, com essa fraqueza toda no ousou ret-lo e limitou-se a acompanh- lo distncia na escurido at que enfim o fantasma virou-se de repente e, parando, perguntou: Vai querer alguma coisa? mostrou um punho daqueles que nem entre os vivos se podem ver. O guarda respondeu no e foi logo dando meia volta. Mas esse j era um fantasma bem mais alto, tinha enormes bigodes. Tomou, segundo o guarda, a direo da ponte Obukhov e desapareceu por completo na escurido da noite.

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    Dirio de um louco

    Outubro, 5

    Hoje aconteceu um incidente fora do comum. Levantei- me bastante tarde e, quando Maura me trouxe as botas escovadas, perguntei as horas. Ouvindo que h muito passava das dez, tratei de me vestir o mais depressa possvel. Confesso que no iria de jeito nenhum ao departamento se soubesse de antemo a cara azeda que o nosso chefe de seo ia fazer. H muito tempo ele vem me dizendo:

    O que que voc tem, meu amigo, sua cabea era uma eterna barafunda. Ora parece ter um faniquito de to agitado, ora mistura as coisas de tal modo que nem satans entende, escreve ttulos com minsculas, no pe data nem nmero.

    Gara maldita! O que ele tem mesmo inveja de mim porque eu fico no gabinete do diretor limpando as penas para Sua Ex.a.

    De sorte que eu no iria ao departamento se no alimentasse a esperana de ver o tesoureiro e, arriscando um olho, pedir a esse judeu um valezinho por conta do meus vencimentos. Esse judeu pecinha rara! Para ele soltar algum dinheiro com um ms adiantado um verdadeiro deus-nos-acuda, mais fcil chegar o dia do juzo. Pode pedir, pode se arrebentar, pode esticar que esse diabo grisalho no d um tosto. Mas em casa at a cozinheira lhe bate na cara. Todo mundo sabe disso.

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