o castelo animado (howl's moving castle)

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um livro magnífico de animação. :)

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  • 1. 1

2. 2Traduo de Raquel ZampilTtulo original em ingls: HOWLS MOVING CASTLEDiana Wynne Jones 1986Publicado primeiramente porMetheun Childrens Books Ltd, 1986.Publicado primeiramente por Collins, 2000.Este para StephenA idia para este livro me foi sugerida, numa es-cola que eu visitava, por um menino que me pediuque escrevesse um livro chamado O castelo ani-mado.Anotei o nome dele e o guardei num lugar to se-guro que at hoje no consegui encontr-lo.Gostaria de agradecer muito a ele. 3. 3CAPTULO UMNo qual Sophie fala com chapusa terra de Ingary, onde coisas como bo-tas-de-sete-lguas e mantos de invisibilidade exis-tem, um verdadeiro infortnio ser a mais velha de trsirms. Todos sabem que voc que vai sofrer o primeiro,e maior, fracasso se as trs sarem em busca da sorte.Sophie Hatter era a mais velha de trs irms. E noera nem mesmo a filha de um pobre lenhador, o que lhepoderia ter dado alguma chance de sucesso. Seus pais e-ram abastados, donos de uma chapelaria na prspera ci-dade de Market Chipping. Na verdade, a me morreraquando Sophie tinha dois anos e a irm, Lettie, um, e o paise casara com a vendedora mais nova da loja, uma jovemlinda e loura chamada Fanny que logo deu luz a ter-ceira irm, Martha. Isso deveria ter feito de Sophie e Lettieas Irms Feias, mas na verdade as trs garotas crescerammuito bonitas, embora Lettie fosse considerada a maisbonita. Fanny tratava as trs garotas com a mesma bon-dade e de modo nenhum favorecia Martha.O sr. Hatter tinha orgulho das trs filhas e colocoutodas na melhor escola da cidade. Sophie era a mais estu-diosa. Lia muito e logo se deu conta de que tinha poucachance de um futuro interessante. Para ela isso foi umadecepo, mas mesmo assim continuou feliz, cuidandodas irms e preparando Martha para buscar sua sortequando chegasse a hora. Como Fanny estava sempre o-cupada na chapelaria, era Sophie quem cuidava das duasN 4. 4mais novas. Entre estas duas havia muitas ocasies degritos e cabelos puxados. Lettie no se sentia nem umpouco resignada em ser aquela que, ao lado de Sophie,estava destinada a ter menos sucesso. No justo! gritava Lettie. Por que Mar-tha deveria ficar com o melhor s porque nasceu caula?Eu vou me casar com um prncipe, vou sim!Ao que Martha sempre replicava que ela seria muitorica sem ter de se casar com ningum.Ento Sophie tinha de separ-las e consertar-lhes asroupas. Era muito hbil com a agulha. Com o passar dotempo, comeou a fazer roupas para as irms. Havia umvestido de um rosa vivo que fizera para Lettie no feriadode Primeiro de Maio antes de esta histria de fato come-ar e que Fanny dizia que parecia ter sado da loja maiscara de Kingsbury.Nessa poca todos recomearam a falar da Bruxadas Terras Desoladas. Diziam que a Bruxa havia ameaa-do a vida da filha do Rei e que este ordenara a seu mgicopessoal, o Mago Suliman, que fosse s Terras Desoladasnegociar com a Bruxa.E parecia que o Mago Suliman havia no s falhadona negociao com a Bruxa, como acabara morto por ela.Assim, quando alguns meses depois um castelo altoe negro surgiu de repente nas colinas acima de MarketChipping, lanando nuvens de fumaa preta de suas qua-tro torres altas e finas, todos estavam convencidos de quea Bruxa sara das Terras Desoladas outra vez e estavaprestes a aterrorizar o pas, da mesma forma que fizeracinqenta anos antes. Todo mundo ficou muito assustadomesmo. Ningum saa sozinho, principalmente noite.Mais aterrorizante ainda que o castelo no ficava sempre 5. 5no mesmo lugar. s vezes era uma mancha comprida enegra no pntano a noroeste, outras vezes se erguia acimados rochedos ao leste, e s vezes descia e se assentava nourzal, pouco alm da ltima fazenda ao norte. Em certasocasies dava para v-lo se movendo, a fumaa saindo dastorres em rolos cinzentos e sujos. Por algum tempo, todomundo tinha certeza de que o castelo logo desceria at ovale, e o Prefeito falava em pedir a ajuda do Rei.No entanto, o castelo continuou perambulando pe-las colinas, e soube-se que ele no pertencia Bruxa, massim ao Mago Howl. Este j era mau o bastante. Emborano parecesse querer deixar as colinas, sabia-se que se di-vertia colecionando garotas e sugando-lhes a alma. Algu-mas pessoas diziam que ele devorava o corao delas. Eraum mago cruel e desalmado, e nenhuma garota estava asalvo dele se fosse apanhada sozinha. Sophie, Lettie eMartha, assim como todas as outras jovens de MarketChipping, eram advertidas de que nunca sassem sozinhas,o que era uma grande contrariedade para todas. Elas seperguntavam que fim o Mago Howl dava a todas as almasque colecionava.Logo, porm, elas se viram com outras preocupa-es, pois o sr. Hatter morreu subitamente, assim queSophie tinha idade suficiente para deixar a escola. Ficouclaro ento que o sr. Hatter tinha um orgulho exageradodas filhas. As mensalidades que ele vinha pagando haviamdeixado a chapelaria com dvidas bastante pesadas. Logoaps o enterro, Fanny sentou-se na sala de visitas da casaadjacente chapelaria e explicou a situao. Infelizmente, vocs todas vo ter de deixar aescola disse. Estou fazendo todas as contas poss-veis, e a nica maneira que vejo de manter a loja e cuidar 6. 6de vocs trs assent-las como aprendizes em algum lu-gar. No prtico mant-las todas aqui na loja. No po-demos nos dar a esse luxo. Ento, eis o que decidi: Lettie,primeiro...Lettie ergueu o rosto, resplandecente de sade ebeleza, que nem o sofrimento nem as roupas pretas con-seguiam ocultar. Eu quero continuar estudando disse ela. E voc vai, querida disse Fanny. Arranjeipara que voc seja aprendiz no Cesaris, o caf na Praado Mercado. Eles so conhecidos por tratarem seus a-prendizes como reis e rainhas, e voc deve ser muito felizl, alm de aprender uma profisso til. A sra. Cesari uma boa cliente e amiga, e concordou em aceit-la, comoum favor.Lettie riu de uma forma que demonstrava que noestava nem um pouco satisfeita. Bem, obrigada disse ela. No uma sorteeu gostar de cozinhar?Fanny pareceu aliviada. Lettie podia ser embarao-samente determinada s vezes. Agora, Martha disse ela. Sei que voc jovem demais para trabalhar fora, ento pensei em algoque lhe oferecesse um aprendizado longo e tranqilo econtinuasse sendo til a voc, seja l o que decidir fazerdepois. Conhece minha velha amiga de escola AnnabelFairfax?Martha, que era esguia e clara, fixou os olhos gran-des e cinzentos em Fanny de maneira quase to determi-nada quanto Lettie. Refere-se quela que fala muito? perguntou. Ela no uma feiticeira? 7. 7 , com uma linda casa e clientes por todo oFolding Valley disse Fanny, ansiosa. Ela uma boamulher, Martha. Vai lhe ensinar tudo o que sabe e muitoprovavelmente a apresentar a pessoas importantes queconhece em Kingsbury. Voc estar bem estabelecidaquando ela tiver concludo o trabalho com voc. uma mulher simptica admitiu Martha. Tudo bem.Sophie, ao ouvir, sentiu que Fanny havia resolvidotudo exatamente como deveria ser. Lettie, como a segun-da filha, no tinha grandes chances de conquistar muito,ento Fanny a colocou num local onde pudesse encontrarum jovem e belo aprendiz e viver feliz para sempre. Mar-tha, destinada a se dar bem e fazer fortuna, teria a feitia-ria e amigos ricos para ajud-la. Quanto prpria Sophie,esta no tinha dvidas do que estava por vir. Portanto,no ficou surpresa quando Fanny disse: Agora, Sophie querida, parece certo e justo quevoc, sendo a mais velha, herde a chapelaria quando eume aposentar. Portanto, resolvi tom-la eu mesma comoaprendiz, para lhe dar a oportunidade de dominar o neg-cio. O que acha disso?Sophie no podia dizer que simplesmente se sentiaresignada chapelaria. Agradeceu a Fanny. Ento est resolvido! afirmou Fanny.No dia seguinte, Sophie ajudou Martha a arrumarsuas roupas numa caixa, e na manh do outro dia todas aajudaram a embarcar numa carroa, parecendo pequena,empertigada e nervosa. Pois o caminho para Upper Fol-ding, onde morava a sra. Fairfax, ficava alm das colinas,depois do castelo animado do Mago Howl. Martha estavaassustada, o que era compreensvel. 8. 8 Vai dar tudo certo para ela disse Lettie, querecusou qualquer ajuda com as malas. Quando a carroaestava fora do campo de viso, Lettie enfiou todos os seuspertences numa fronha e pagou ao criado do vizinho seispence para lev-los num carrinho de mo at o Cesaris, naPraa do Mercado.Lettie marchou atrs do carrinho de mo parecendomuito mais alegre do que Sophie esperava. De fato, elateve a presena de esprito de limpar a poeira da chapelariade seus ps.O criado retornou com um bilhete rabiscado porLettie, dizendo que ela havia colocado suas coisas nodormitrio feminino e que o Cesaris parecia muito diver-tido. Uma semana depois, o carroceiro trouxe uma cartade Martha, dizendo que ela chegara em segurana e que asra. Fairfax era muito querida e usa mel em tudo. Ela criaabelhas. Isso foi tudo que Sophie soube de suas irmsdurante algum tempo, pois comeou seu prprio aprendi-zado no dia em que Martha e Lettie partiram.Sophie, naturalmente, j conhecia bastante bem onegcio de chapus. Desde garotinha entrava e saa cor-rendo do grande galpo no ptio, onde os chapus erammoldados em blocos, e flores e frutas e outras ornamen-taes eram feitas de cera e seda. Sophie conhecia as pes-soas que trabalhavam ali. A maior parte j estava aliquando o pai dela era garoto. Conhecia Bessie, a nicabalconista que restava. Conhecia os clientes que compra-vam os chapus e o carroceiro que trazia chapus de palhacrua do interior para serem preparados no galpo. Conhe-cia os outros fornecedores e sabia como fazer feltro parachapus de inverno. No havia muito que Fanny pudesselhe ensinar, exceto talvez a melhor forma de fazer um cli- 9. 9ente comprar um chapu. Voc conduz o cliente ao chapu certo, querida afirmou Fanny. Mostre primeiro os que no voservir, de modo que eles vejam a diferena to logo colo-quem o certo.Na verdade, Sophie no vendia muitos chapus.Aps um dia ou dois observando no galpo, e outro diavisitando o vendedor de tecido e o negociante de sedacom Fanny, esta a ps para aprender a decorar chapus.Sophie ficava numa pequena alcova nos fundos da loja,costurando rosas em gorros e vus em chapus, debruan-do-os todos com seda e decorando-os elegantemente comfrutas de cera e fitas. Ela era boa nisso. E gostava de fa-z-lo. Mas sentia-se isolada e um pouco entediada. Opessoal da oficina era muito velho para ser divertido e,alm disso, tratava-a como algum parte, a futura her-deira do negcio. Bessie a tratava da mesma forma. Dequalquer maneira, o nico assunto de Bessie era o fazen-deiro com quem se casaria na semana seguinte ao Primei-ro de Maio. Sophie quase invejava Fanny, que podia sairpara negociar com o vendedor de seda sempre que qui-sesse.A coisa mais interessante era a conversa dos fre-gueses. Ningum compra um chapu sem fofocar. Sophieficava sentada em seu quartinho, costurando e ouvindoque o Prefeito no comia verduras, e que o castelo doMago Howl havia se deslocado para os penhascos nova-mente, e aquele homem, sussurro, sussurro, sussurro... Asvozes sempre baixavam quando falavam do Mago Howl,mas Sophie deduzia que ele pegara uma garota mais abai-xo no vale no ms passado. Barba-azul!, diziam os sus-surros, e ento as vozes voltavam a se tornar audveis para 10. 10observar que Jane Farrier estava uma verdadeira desgraacom o cabelo daquele jeito. Aquela era uma que nunca a-trairia nem mesmo o Mago Howl, muito menos um ho-mem respeitvel. Ento se ouvia um fugaz e temerososussurro sobre a Bruxa das Terras Desoladas. Sophie co-meou a achar que o Mago Howl e a Bruxa das TerrasDesoladas deviam era ficar juntos. Eles parecem feitos um para o outro. Algumdevia arranjar esse casamento disse ela ao chapu quecosturava naquele momento.No entanto, no fim do ms, as fofocas na loja pare-ciam de repente ser todas sobre Lettie. O Cesaris, apa-rentemente, estava repleto de cavalheiros, da manh noite, comprando grandes quantidades de bolo e exigindoque fossem servidos por Lettie. Ela j recebera dez pro-postas de casamento, do filho do prefeito ao rapaz quevarria as ruas, e tinha recusado todas, dizendo que eramuito jovem para se decidir. Eu diria que muito sensato da parte dela afirmou Sophie a um gorro a que prendia a seda.Fanny estava satisfeita com as notcias. Eu sabia que ela ia ficar bem! disse, contente.Ocorreu a Sophie que Fanny estava feliz por Lettie no seencontrar mais por perto. Lettie ruim para a clientela disse ela aogorro, plissando a seda cor de cogumelo. Ela faria atvoc parecer glamouroso, sua coisinha velha. Outras mu-lheres olham para Lettie e se desesperam. medida que as semanas se passavam, Sophie fa-lava cada vez mais com os chapus. No havia muita gen-te com quem conversar. Fanny estava fora, negociando outentando atrair fregueses grande parte do dia, e Bessie es- 11. 11tava ocupada servindo e contando a todos seus planos decasamento. Sophie adquirira o hbito de pr, conforme iaterminando, cada chapu em seu suporte, onde eles fica-vam parecendo com uma cabea sem corpo. Ela fazia umapausa para dizer a cada um como o corpo dele deveria ser.Adulava os chapus um pouco como o lojista devia adularos clientes. Voc tem um encanto misterioso disse ela aum que era todo de vus com brilhos ocultos.A um de abas largas e cor de creme, com rosas de-baixo da aba, ela disse: Voc vai ter de se casar por di-nheiro!. E a um de palha cor de lagarta, com uma penaanelada e verde, ela disse: Voc est novo como uma fo-lhinha da primavera. Aos gorros cor-de-rosa, ela diziaque tinham charme e covinhas, e aos chapus da moda,ornamentados com veludo, que eram espirituosos. Disseao gorro plissado cor de cogumelo: Voc tem um cora-o de ouro e algum, de posio alta, ver isso e se apai-xonar por voc. Isso porque ela sentia pena daquelegorro. Ele parecia to exagerado e feioso.Jane Farrier veio chapelaria no dia seguinte e ocomprou. De fato, o cabelo dela parecia um pouco estra-nho, pensou Sophie, espiando de seu quartinho, como seJane o houvesse enrolado em torno de uma srie de ati-adores de brasa. Parecia uma pena que ela tivesse esco-lhido aquele gorro. Mas aparentemente todo mundo esta-va comprando chapus e gorros naqueles dias. Talvezfosse a conversa de vendedora de Fanny ou quem sabe achegada da primavera, mas a chapelaria estava sem som-bra de dvida se recuperando. Fanny comeou a dizer,com um pouco de culpa: Acho que eu no deveria tertido tanta pressa em arranjar um lugar para Martha e Let- 12. 12tie. Nesse ritmo, provavelmente conseguiramos nosmanter.Havia tantos clientes medida que abril chegava aofim e o Primeiro de Maio se aproximava que Sophie tevede pr um vestido cinza recatado e ajudar na loja tambm.No entanto, tamanha era a demanda que ela mal tinhatempo de costurar os chapus entre um cliente e outro, etodas as noites os levava para a casa ao lado, onde traba-lhava luz da lamparina madrugada adentro para que ti-vessem chapus venda no dia seguinte. Chapus ver-de-lagarta como o da mulher do Prefeito eram muitoprocurados, assim como os gorros cor-de-rosa. Ento, nasemana que antecedeu o Primeiro de Maio, uma pessoaentrou na loja e pediu um cor de cogumelo com pregas,igual ao que Jane Farrier estava usando quando fugiu como Conde de Catterack.Naquela noite, enquanto costurava, Sophie admitiupara si mesma que sua vida era bastante sem graa. Emvez de conversar com os chapus, ela experimentou cadaum deles ao finaliz-los, e olhou-se no espelho. Foi umerro. O vestido cinza muito srio no combinava comSophie, principalmente quando seus olhos estavam aver-melhados pelo esforo de costurar, e, como seu cabelo eracor de palha avermelhada, tampouco ficavam bem nela overde-lagarta ou o cor-de-rosa. O de pregas cor de cogu-melo a deixava com uma aparncia simplesmente enfa-donha. Como uma velha criada! disse Sophie.No que ela quisesse fugir com algum conde, comoJane Farrier, ou mesmo sonhasse com toda a cidade lhepedindo a mo, como Lettie. Mas queria fazer algo nosabia bem o qu um pouco mais interessante do que 13. 13costurar chapus. Ela pensou em encontrar tempo no diaseguinte para ir falar com Lettie.Mas no foi. Ou no encontrou tempo ou no en-controu disposio, ou pareceu-lhe uma grande distnciaat a Praa do Mercado, ou ela se lembrou de que, sozi-nha, corria perigo com o Mago Howl de qualquer for-ma, a cada dia parecia mais difcil sair para ver a irm. Eramuito estranho. Sophie sempre acreditara que era to de-terminada quanto Lettie. Agora descobria que havia algu-mas coisas que ela s podia fazer quando no houvessemais desculpas. Isso um absurdo! disse Sophie. A Praado Mercado fica a apenas duas ruas daqui. Se eu correr...E jurou para si mesma que iria at o Cesaris quan-do a chapelaria fechasse para o Primeiro de Maio.Nesse meio-tempo, um novo boato chegou loja.O Rei havia brigado com o irmo, Prncipe Justin, diziam,e o Prncipe fora para o exlio. Ningum sabia qual fora omotivo da briga, mas o Prncipe de fato passara por Mar-ket Chipping disfarado alguns meses antes, e ningumsoubera. O Conde de Catterack fora enviado pelo Rei procura do Prncipe, quando, por acaso, conheceu JaneFarrier. Sophie ouviu e ficou triste. Parecia que coisas in-teressantes aconteciam mesmo, mas sempre com outraspessoas. Ainda assim, seria bom ver Lettie.Chegou o Primeiro de Maio. Os folguedos enchiamas ruas desde o amanhecer. Fanny saiu cedo, mas Sophietinha alguns chapus para terminar. Ela cantava enquantotrabalhava. Afinal, Lettie estava trabalhando tambm. OCesaris ficava aberto at a meia-noite nos feriados. Vou comprar um daqueles bolinhos com creme decidiu Sophie. H sculos que no como um. 14. 14Ela via as pessoas passarem pela janela com roupascoloridas, vendedores de suvenires, outras em pernas depau, e sentiu-se muito animada.Mas, quando finalmente ps um xale cinza sobre ovestido cinza e saiu rua, no estava mais animada. Senti-a-se prostrada. Havia gente demais passando, rindo e gri-tando, barulho e agitao em excesso. Para Sophie, eracomo se os ltimos meses que passara sentada costurandoa tivessem transformado numa velha ou numa se-mi-invlida. Ela apertou o xale em torno do corpo e se-guiu furtivamente, mantendo-se perto das casas, evitandoser pisoteada pelas pessoas com seus melhores sapatos ouempurrada por cotovelos em fartas mangas de seda.Quando veio uma saraivada de estrondos de algum lugaracima deles, Sophie pensou que fosse desmaiar. Ergueu osolhos e viu o castelo do Mago Howl logo ali na colinaacima da cidade, to perto que parecia estar pousado so-bre as chamins. Chamas azuis eram lanadas de todas asquatro torres do castelo, trazendo com elas bolas de fogoazul que explodiam no cu, de forma medonha. O MagoHowl parecia ofendido pelo Primeiro de Maio. Ou talvezfosse uma tentativa de participar, sua moda. Sophie es-tava aterrorizada demais para se importar com isso. Elateria voltado para casa se a essa altura no estivesse a meiocaminho do Cesaris. Ento, correu. O que me fez pensar que eu queria uma vida in-teressante? perguntou ela, enquanto corria. Eu teriamuito medo. o que d ser a mais velha de trs.Quando alcanou a Praa do Mercado, estava pior,se isso fosse possvel. A maior parte das hospedarias fica-va na praa. Turbas de jovens andavam para l e para c,pavoneando-se, sob o efeito da cerveja, arrastando casacos 15. 15e mangas longas e batendo botas afiveladas que jamaissonhariam usar num dia de trabalho, falando alto e abor-dando, atrevidos, as garotas. Estas passeavam aos pares,prontas para serem abordadas. Era perfeitamente normalpara o Primeiro de Maio, mas Sophie sentia medo dissotambm. E, quando um jovem num fantstico traje azul eprata avistou Sophie e resolveu abord-la, ela se encolheuno vo da porta de uma loja e tentou esconder-se.O jovem olhou-a, surpreso. Est tudo bem, meu ratinho cinzento disseele, rindo, com certa compaixo. S quero lhe ofereceruma bebida. No fique to assustada.O olhar de pena fez Sophie sentir-se extremamenteenvergonhada. Ele era um tipo muito vistoso, com o rostosofisticado e anguloso um tanto velho, j passado dosvinte anos e cabelo louro penteado de forma rebusca-da. Suas mangas esvoaavam mais que as de qualquer ou-tro na praa, debruadas e com detalhes em prata. Ah, no, obrigada, senhor gaguejou Sophie. Eu... eu estou indo ver minha irm. Ento, por favor, faa isso riu o ousado jo-vem. Quem sou eu para separar uma jovem to bonitade sua irm? Gostaria que eu a acompanhasse, j que pa-rece to assustada?Ele falou com gentileza, o que deixou Sophie aindamais envergonhada. No. No, obrigada, senhor! arquejou ela epassou rapidamente por ele, que usava perfume tambm.O aroma de jacintos seguiu-a enquanto ela corria. Quehomem refinado!, pensou Sophie, abrindo caminho entreas mesinhas do lado de fora do Cesaris.As mesas estavam lotadas. O interior do estabele- 16. 16cimento tambm estava cheio e to barulhento quanto apraa. Sophie localizou Lettie na fila de ajudantes no bal-co por causa do grupo de patentes filhos de fazendeirosdebruados sobre ele, gritando comentrios para ela. Let-tie, ainda mais bonita e talvez um pouco mais magra, co-locava bolos em sacolas o mais rpido que podia, torcen-do cada sacola habilmente e olhando para trs, sob o co-tovelo, com um sorriso e uma resposta para cada sacolaque torcia. Ouviam-se muitas risadas. Sophie teve de lutarpara conseguir chegar ao balco.Lettie a viu. Pareceu abalada por um momento.Ento seus olhos e seu sorriso se abriram e ela gritou: Sophie! Posso falar com voc? berrou Sophie. Emalgum lugar continuou, um tanto indefesa, enquantoum enorme e bem-vestido cotovelo a afastava do balco. S um momento! respondeu Lettie. Virou-separa a garota ao seu lado e sussurrou algo. A garota assen-tiu, deu um sorriso e veio para o lugar de Lettie. Vocs tero de se contentar comigo disse multido. Quem o prximo? Mas eu quero falar com voc, Lettie! disseum dos filhos de fazendeiros. Fale com Carrie respondeu ela. Eu queroconversar com minha irm. Ningum pareceu de fatose importar. Empurraram Sophie at a extremidade dobalco, onde Lettie erguia uma aba e lhe fazia sinal, e dis-seram-lhe que no retivesse Lettie o dia todo. QuandoSophie passou para o outro lado do balco, Lettie agar-rou-lhe o pulso e a arrastou para os fundos da loja, atuma sala cercada por estantes de madeira, todas repletaspor filas de bolos. Lettie puxou dois bancos. 17. 17 Sente-se disse ela. Olhou na estante maisprxima, distrada, e entregou a Sophie um bolinho comcreme tirado de l. Talvez precise disso.Sophie afundou-se no banco, aspirando o cheirodelicioso do bolo e sentindo-se um pouco chorosa. Ah, Lettie! disse. Estou to feliz em vervoc! , e eu estou feliz por voc estar sentada disse Lettie. Olhe, eu no sou Lettie. Sou Martha. 18. 18CAPTULO DOISNo qual Sophie compelida a buscar seu destinoqu? Sophie fitou a garota no banco diante de-la.Parecia Lettie. Estava usando o segundo melhorvestido azul de Lettie, um azul maravilhoso que combina-va perfeitamente com ela. Tinha o cabelo escuro e os o-lhos azuis de Lettie. Eu sou Martha disse a irm. Quem vocpegou cortando as calcinhas de seda de Lettie? Eu nuncacontei isso a ela. Voc contou? No disse Sophie, perplexa. Agora ela podiaver que era Martha. Era o jeito de Martha inclinar a cabeae de segurar os joelhos com as mos, girando os polega-res, Por qu? Eu estava apavorada com a possibilidade de vo-c vir me ver disse Martha , porque sabia que teriade lhe contar.Agora que contei me sinto aliviada. Prometa queno vai dizer a ningum. Sei que no dir se prometer.Voc to sincera... Eu prometo concordou Sophie. Mas porqu? Como? Lettie e eu planejamos tudo contou Martha,girando os polegares , porque ela queria aprender feiti-aria e eu, no. Lettie tem crebro, e quer um futuro emque possa us-lo... Mas tente dizer isso a mame! Ela temtanto cime de Lettie que no admite nem que ela temO 19. 19crebro!Sophie no podia acreditar que Fanny fosse daquelejeito, mas no fez nenhum comentrio. Mas e voc? Coma o bolinho disse Martha. gostoso.Ah, sim, eu posso ser esperta tambm. S precisei de duassemanas com a sra. Fairfax para descobrir o feitio queestamos usando. Eu me levantava noite e lia os livrosdela em segredo, e foi fcil, de verdade. Ento pergunteise podia visitar minha famlia e a sra. Fairfax concordou.Ela um amor. Pensou que eu estivesse com saudades decasa. Peguei o feitio e vim para c, e Lettie voltou para acasa da sra. Fairfax fingindo ser eu. O difcil foi a primeirasemana, quando eu no sabia todas as coisas que deveriasaber. Foi horrvel. Mas descobri que as pessoas gostamde mim... elas gostam de voc, sabe, se voc gostar delas...E deu tudo certo. E a sra. Fairfax no expulsou Lettie del, portanto acho que ela tambm conseguiu se virar.Sophie mastigava o bolo sem sentir o sabor. Mas o que a levou a querer fazer isso?Martha balanou-se no banco, mostrando um largosorriso no rosto de Lettie e girando os polegares num ale-gre rodopio cor-de-rosa. Quero me casar e ter dez filhos. Voc no tem idade suficiente! disse Sophie. Ainda no concordou Martha. Mas, veja,eu preciso comear cedo para ter tempo de ter dez filhos.Alm disso, dessa forma tenho tempo para esperar e verse a pessoa que eu quero gosta de mim como eu mesma.O feitio vai diminuir gradualmente, e eu vou ficar cadavez mais parecida comigo, sabe?Sophie estava to atnita que terminou o bolinho 20. 20sem ter percebido de que tipo era. Por que dez filhos? Porque esse o nmero que eu quero repli-cou Martha. Eu nunca soube disso! Bem, no seria bom falar sobre isso quando vo-c estava to ocupada substituindo mame quando o as-sunto era eu fazer minha fortuna disse Martha. Vo-c acreditava que a inteno de mame era boa. Eu tam-bm acreditei, at que papai morreu e vi que ela s estavatentando se livrar de ns, pondo Lettie onde ela encontra-ria um monte de homens e acabaria se casando, e memandando para o lugar mais longe possvel! Eu estava tofuriosa que pensei: por que no? E falei com Lettie, queestava to furiosa quanto eu, e planejamos tudo. Agoraestamos bem. Mas ns duas nos sentimos mal por suacausa. Voc inteligente e boa demais para ficar enfiadanaquela loja o resto de sua vida. Conversamos sobre isso,mas no conseguimos pensar no que podamos fazer. Eu estou bem protestou Sophie. S umpouco chato. Est bem? exclamou Martha. , vocprovou que est bem no vindo aqui por meses e entoaparecendo com esse vestido e esse xale cinza horrorosos,parecendo ter medo at mesmo de mim! O que mameest fazendo com voc? Nada disse Sophie, constrangida. Estamosbastante ocupadas. Voc no devia falar sobre Fanny des-se jeito, Martha. Ela sua me. , e eu sou parecida com ela o bastante paraentend-la replicou Martha. Foi por isso que ela memandou para to longe, ou pelo menos tentou. Mame 21. 21sabe que voc no precisa ser dura com uma pessoa paraexplor-la. Ela sabe o quanto voc aplicada. Sabe quetem essa coisa de ser um fracasso por ser a mais velha. Elamanobra voc perfeitamente e faz com que trabalhe paraela como uma escrava. Aposto que no paga voc. Ainda sou aprendiz protestou Sophie. Eu tambm, mas recebo salrio. Os Cesaris sa-bem que mereo disse Martha. Aquela chapelariaest ganhando uma fortuna agora, e tudo por sua causa!Voc criou aquele chapu verde que faz a mulher do pre-feito parecer uma colegial estonteante, no foi? Verde-lagarta. Eu o enfeitei disse Sophie. E o gorro que Jane Farrier estava usando quan-do encontrou aquele nobre prosseguiu Martha. Voc um gnio com chapus e roupas, e mame sabedisso! Voc selou a sua sorte ao fazer aquela roupa paraLettie no Primeiro de Maio do ano passado. Agora, ganhao dinheiro enquanto ela sai por a passeando... Ela sai para fazer as compras disse Sophie. Fazer as compras! gritou Martha. Os polega-res giraram. Isso ela faz numa metade de manh. Eu ja vi, Sophie, e ouvi os comentrios. Ela sai por a numacarruagem alugada e de roupa nova sua custa, visitandotodas as manses pelo vale! Dizem que ela vai compraraquela propriedade grande no Fim do Vale e estabele-cer-se l com estilo. E onde voc est? Bem, Fanny tem direito a algum prazer apstodo o trabalho que teve em nos criar disse Sophie. Suponho que eu v herdar a loja. Que destino! exclamou Martha. Oua...Mas, naquele momento, duas estantes vazias debolo foram puxadas na outra extremidade do cmodo, e 22. 22um aprendiz meteu a cabea ali. Pensei ter ouvido sua voz, Lettie disse ele,sorrindo de forma amistosa e sedutora. Saiu a novafornada. Avise a eles.A cabea de cabelos cacheados e com um pouco defarinha tornou a desaparecer. Sophie pensou que ele pare-cia um bom rapaz. Ansiava por perguntar se era ele o ra-paz de quem Martha gostava, mas no teve chance. Mar-tha levantou-se rapidamente, ainda falando. Preciso buscar as garotas para levar todas essasestantes para a confeitaria disse ela. Me ajude com aextremidade desta. Arrastou a estante mais prxima eSophie a ajudou a pass-la pela porta, entrando na lojacheia e barulhenta. Voc precisa fazer alguma coisa emrelao a si mesma, Sophie ofegou Martha enquantoprosseguiam. Lettie vivia dizendo que no sabia o queaconteceria com voc quando no estivssemos por pertopara lhe dar alguma auto-estima. Ela tinha razo em sepreocupar.Na confeitaria, a sra. Cesari agarrou a estante delasnos braos volumosos, gritando instrues, e uma fila depessoas passou por Martha, apressadas, indo buscar mais.Sophie gritou at logo e escapuliu no meio do alvoroo.No parecia direito tomar mais tempo de Martha. Almdisso, queria ficar sozinha para pensar. Correu para casa.Agora havia fogos de artifcio sendo lanados do campo margem do rio, onde acontecia a Feira, competindo comos disparos azuis do castelo de Howl. Mais do que nunca,Sophie sentiu-se como uma invlida.Ela pensou e pensou, durante quase toda a semanaque se seguiu, e tudo que conseguiu foi ficar mais confusae descontente. As coisas simplesmente no pareciam ser 23. 23do jeito como ela havia acreditado que eram. Estava pas-ma com Lettie e Martha. Ela no as compreendera duran-te anos. Mas no podia acreditar que Fanny fosse o tipode mulher que Martha descrevera.Tinha muito tempo para pensar, pois Bessie se a-fastara para se casar e Sophie estava quase o tempo todosozinha na loja. Fanny parecia mesmo estar muito ausente,passeando ou no, e os negcios ganharam um ritmo maislento depois do Primeiro de Maio. Passados trs dias, So-phie criou coragem para perguntar a Fanny: Eu no devia ganhar um salrio? claro, meu amor, com tudo o que voc faz! respondeu Fanny afetuosamente, ajeitando um chapuadornado com rosas diante do espelho da loja. Vamosver isso assim que eu tiver acabado a contabilidade estanoite. Ento ela saiu e s voltou depois que Sophie jhavia fechado a loja e levado os chapus daquele dia paracasa a fim de finaliz-los.Sophie a princpio sentiu-se mesquinha por ter da-do ouvidos a Martha, mas, quando Fanny no fez menoao salrio nem naquela noite nem em nenhum momentodaquela semana, Sophie comeou a pensar que Marthatinha razo. Talvez eu esteja mesmo sendo explorada disse a um chapu que estava enfeitando com seda ver-melha e um cacho de cerejas de cera , mas algum temde fazer isso; caso contrrio no haver nenhum chapupara vender. Ela terminou aquele e comeou outro,preto e branco, muito elegante, e um pensamento novolhe ocorreu: O que importa se no tiver chapu paravender? Ela olhou para os chapus reunidos, em su-portes ou numa pilha, espera de acabamento. Para 24. 24que servem todos vocs? indagou-lhes. A mim, cer-tamente, no esto fazendo nenhum bem.E viu-se a um triz de sair de casa e ir em busca deseu destino, at que se lembrou de que era a mais velha e,portanto, isso de nada serviria. Ela apanhou o chapu no-vamente, suspirando.Ainda estava descontente, sozinha na loja na manhseguinte, quando uma jovem feiosa entrou intempestiva-mente, girando um gorro plissado cor de cogumelo pelasfitas. Olhe para isto! guinchou ela. Voc medisse que este era o mesmo gorro que Jane Farrier estavausando quando encontrou o Conde. E voc mentiu. Nadaaconteceu comigo! No de surpreender disse Sophie, antes quepudesse se controlar. Se voc tola o bastante parausar este gorro com um rosto desses, no teria sabedoriapara reconhecer o prprio Rei se ele lhe pedisse algo...Isso se ele no tivesse se transformado em pedra primeiro,ao olhar para voc.A freguesa fuzilou-a com os olhos. Ento atirou ogorro em Sophie e saiu pisando duro da loja. Sophie cui-dadosamente colocou o gorro no cesto de lixo, ofegante.A regra era: perca a pacincia, perca um fregus. Ela aca-bara de confirmar a regra. E a perturbava saber o quantofora divertido faz-lo.Sophie no teve tempo para recuperar-se. Ouviu-seo rudo de rodas e cascos de cavalo e uma carruagem es-cureceu a vitrine. A campainha da chapelaria soou e afreguesa mais altiva que ela j vira entrou, com uma estolade zibelina pendendo dos braos e diamantes piscandopor todo o vestido preto. Os olhos de Sophie dirigiram-se 25. 25primeiro ao amplo chapu da senhora plumas verda-deiras de avestruz tingidas para refletir tons de rosa, verdee azul cintilando nos diamantes e ainda parecerem negras.Esse era um chapu de mulher rica. O rosto da senhoraera esmeradamente bonito. O cabelo castanho lhe davauma aparncia jovem, mas... Os olhos de Sophie alcana-ram o jovem que seguia a senhora, o rosto ligeiramenteinforme, os cabelos castanho-avermelhados, bem-vestido,mas plido e obviamente preocupado. Ele fitou Sophiecom uma espcie de horror suplicante. Era visivelmentemais novo do que a mulher. Sophie estava confusa. Srta. Hatter? perguntou a mulher com vozmusical porm autoritria. Sim disse Sophie.O homem parecia mais transtornado do que nunca.Talvez a senhora fosse me dele. Ouvi dizer que voc vende os chapus maismagnficos disse a mulher. Quero v-los.Sophie no confiava em si mesma, em seu atualhumor, para responder. Foi buscar os chapus. Nenhumdeles condizia com a classe dessa senhora, mas Sophiepodia sentir os olhos do homem a seguindo e isso a dei-xou constrangida. Quanto mais cedo a mulher descobrisseque os chapus no lhe serviam, mais cedo o estranho ca-sal iria embora. Ela seguiu o conselho de Fanny e mostrouos mais inadequados primeiro.A mulher comeou a rejeitar os chapus imediata-mente. Covinhas, disse ela em relao ao gorrocor-de-rosa, e Juventude, ao verde-lagarta. Para o quetinha brilho e vus, ela disse: Fascnio misterioso. Que coisa mais bvia. Oque mais voc tem? 26. 26Sophie apanhou o elegante preto-e-branco, que erao nico chapu com uma remota chance de interessar -quela senhora. A mulher o olhou com desprezo. Este no faz nada por ningum. Est desperdi-ando o meu tempo, srta. Hatter. S porque a senhora entrou e pediu para verchapus replicou Sophie. Esta s uma lojinhanuma cidade pequena, madame. Por que a senhora... Atrs da mulher, o homem arquejou. Ele parecia tentarlhe dizer algo, sinalizando. ...se deu o trabalho de en-trar? finalizou Sophie, perguntando-se o que estavaacontecendo. Eu sempre me dou esse trabalho quando algumtenta se levantar contra a Bruxa das Terras Desoladas respondeu a mulher. Ouvi falar de voc, srta. Hatter, eno dou a mnima para a sua competio ou sua atitude.Vim aqui para det-la. Pronto. Ela estendeu a mo,como se lanasse algo em direo ao rosto de Sophie. A senhora quer dizer que a Bruxa das TerrasDesola das? A voz de Sophie tremeu, parecendo ter-setornado outra por causa do medo e da perplexidade. Eu mesma disse a mulher. E que isso aensine a no se meter com assuntos que me dizem respei-to. No creio que eu tenha feito isso. Deve haveralgum engano grasnou Sophie.O homem agora a olhava, totalmente horrorizado,embora ela no pudesse ver o porqu. Erro nenhum, srta. Hatter disse a Bruxa. Venha, Gaston. Ela fez meia-volta e dirigiu-se para aporta da loja. Enquanto o homem humildemente a abriapara ela, a mulher voltou-se para Sophie. Por falar nis- 27. 27so, voc no vai conseguir dizer a ningum que est sob opoder de um feitio disse ela.A porta da chapelaria soou como um sino fnebrequando ela saiu.Sophie levou as mos ao rosto, perguntando-se oque o homem tinha olhado com tanto horror. Ento sen-tiu as rugas macias e profundas. Olhou para as mos.Tambm estavam enrugadas e esquelticas, com veiasgrossas no dorso e ns dos dedos salientes. Ela levantou asaia cinza e olhou os tornozelos e ps magricelas e decr-pitos, o que deixara frouxos seus sapatos. Aquelas eram aspernas de algum com uns noventa anos, e pareciam reais.Sophie dirigiu-se ao espelho e percebeu que cami-nhava com dificuldade. O rosto no espelho refletia calma,pois ali estava o que ela esperava ver. Era o rosto de umavelha macilenta, murcho e encardido, emoldurado porcabelos brancos ralos.Seus olhos, amarelados e lacrimosos, fitavam-na doespelho, parecendo um tanto trgicos. No se preocupe, sua velha disse Sophie parao rosto. Voc parece ter bastante sade. Alm disso,essa aparncia est bem mais prxima do que voc deverdade.Ela pensou em sua situao com muita tranqilida-de. Tudo parecia ter ficado calmo e distante. No estavanem mesmo zangada com a Bruxa das Terras Desoladas. Bem, claro que vou cuidar dela quando tiveroportunidade disse a si mesma , mas, enquanto isso,se Lettie e Martha podem suportar ser uma a outra, euposso suportar ser assim. Mas no posso ficar aqui. Fannyteria um ataque. Vamos ver. Este vestido cinza bastanteadequado, mas vou precisar do xale e de um pouco de 28. 28comida.Ela capengou at a porta da loja e cuidadosamentependurou a placa de FECHADO. Suas articulaes esta-lavam medida que se movimentava. Tinha de andar cur-vada e devagar. Mas sentiu-se aliviada ao descobrir que erauma velha bem saudvel. No se sentia fraca ou doente,apenas rgida. Apanhou o xale e com ele envolveu a cabe-a e os ombros, como fazem as mulheres idosas. Entoarrastou os ps at a casa, onde pegou sua bolsa com al-gumas moedas e um pedao de po e de queijo. Deixou acasa, escondendo a chave cuidadosamente no lugar dehbito, e comeou a descer a rua, surpresa com a tranqi-lidade que sentia.Ainda se perguntou se devia dizer adeus a Martha,mas no gostava da idia de a irm no a reconhecer. Eramelhor simplesmente partir. Sophie resolveu que escreve-ria s duas irms quando chegasse a algum lugar, e atra-vessou mancando a rea onde tivera lugar a Feira, cruzoua ponte e seguiu pela estrada no campo mais alm. Era umagradvel dia de primavera. Sophie descobriu que ser umavelha no a impedia de desfrutar a viso e o aroma dasflores nas cercas vivas, embora a viso estivesse um poucoembaada. Suas costas comearam a doer. Ela caminhavaainda com firmeza, mas precisava de uma bengala. En-quanto prosseguia, examinava as sebes em busca de umavara solta.Evidentemente, seus olhos no eram to bonsquanto antes. Ela pensou ter visto um galho, uns doisquilmetros adiante, mas, quando o puxou, viu que era aextremidade de um velho espantalho que algum haviajogado ali. Sophie suspendeu a coisa, que tinha um nabomurcho como rosto. Ela percebeu que sentia certa afini- 29. 29dade com ele. Em vez de desmont-lo e pegar a vara, ela oprendeu entre dois galhos da sebe, de modo que ele seerguia descuidadamente com as mangas esfarrapadas nosbraos de gravetos esvoaando sobre a cerca. A est disse ela, e sua voz dissonante a sur-preendeu dando um cacarejo como risada. Nenhum dens dois est em situao muito boa, no , meu amigo?Talvez voc consiga voltar para o seu campo se eu o dei-xar onde as pessoas possam v-lo. Ela voltou a andarpela estrada, mas um pensamento ocorreu-lhe e ela vol-tou. Se eu no estivesse condenada ao fracasso porminha posio na famlia disse ela ao espantalho ,voc podia ganhar vida e me oferecer ajuda para eu fazerfortuna. Mas eu lhe desejo felicidade, de qualquer forma.Ela riu novamente, voltando a caminhar. Talvezfosse um pouco louca, mas, afinal, as velhas sempre o so.Encontrou uma vara cerca de uma hora depois,quando se sentou numa elevao para descansar e comerseu po com queijo. Ouviu rudo nos arbustos atrs dela:pequenos guinchos estrangulados, seguidos por movi-mentos que arrancavam ptalas de flores da sebe. Sophierastejou com os joelhos ossudos para espiar o interior dasebe, em meio a folhas, flores e espinhos, e descobriu umco magro e cinzento ali. Ele estava aprisionado por umaslida vara que, de alguma forma, se prendera numa cordaamarrada no pescoo do animal. A vara havia se enfiadoentre dois galhos do arbusto de forma que o co mal po-dia se mover. Ele revirou os olhos diante do rosto curiosode Sophie.Jovem, Sophie tinha medo de ces. Mesmo comoanci, sentiu-se alarmada com as duas fileiras de dentesbrancos visveis na boca aberta do animal. No entanto, 30. 30disse a si mesma: Da maneira como estou agora, no valemuito a pena me preocupar com isso, e procurou a te-soura no bolso de costura. Com ela, comeou a serrar acorda em torno do pescoo do co.Ele estava muito arisco. Encolheu-se, afastando-sedela, e rosnou. Mas Sophie continuou cortando brava-mente. Voc vai morrer de fome ou sufocar at a mor-te, meu amigo disse ela ao co, em sua voz desafinada, a menos que me deixe solt-lo. Na verdade, acho quealgum j tentou estrangular voc. Talvez isso expliquesua ferocidade.A corda tinha sido amarrada bem apertada no pes-coo do animal e a vara fora enroscada perversamentenela. Foi preciso serrar bastante antes que a corda se par-tisse e o co pudesse se ver livre da vara. Voc quer po com queijo? perguntou-lheSophie ento.Mas o co limitou-se a rosnar para ela, arrastan-do-se para o outro lado da sebe, e escapuliu. Assim que voc agradece? perguntou So-phie, esfregando os braos, que formigavam. Pelomenos me deixou um presente.Ela puxou a vara que havia prendido o cachorro edescobriu que era uma bengala bem razovel, bem apara-da e arrematada com ferro. Sophie terminou seu po comqueijo e recomeou a andar. A estrada foi se tornando ca-da vez mais ngreme e ela viu na bengala um grande aux-lio. Tambm era algo com que falar. Sophie marchou adi-ante com vontade, tagarelando com sua bengala. Afinal,gente velha com freqncia fala sozinha. J tive dois encontros disse ela e nem uma 31. 31migalha de gratido da parte de nenhum deles. No entan-to, voc uma boa bengala. No estou me queixando.Mas com certeza vou ter um terceiro encontro, mgico ouno. Na verdade, fao questo. Imagino como vai ser.O terceiro encontro aconteceu mais para o fim datarde, quando Sophie j estava quase no topo da colina.Um campons descia a estrada assoviando em sua direo.Um pastor, pensou Sophie, a caminho de casa depois decuidar de suas ovelhas. Era um jovem bem forte, de unsquarenta anos. Santo Deus! disse Sophie a si mesma.Esta manh eu o teria visto como um velho. Como oponto de vista pode mudar!Quando o pastor viu Sophie murmurando consigomesma, passou cuidadosamente para o outro lado da es-trada e gritou com grande entusiasmo. Boa noite para a senhora, tia! Para onde est in-do? Tia? disse Sophie. Eu no sou sua tia,meu jovem! um modo de falar explicou o pastor, a-vanando junto da sebe oposta. Eu s estava tentandofazer uma pergunta educada, vendo a senhora andando nadireo das colinas no fim do dia. No vai chegar a UpperFolding antes de anoitecer, no ?Sophie no havia pensado nisso. Ela parou ali naestrada e refletiu. Na verdade, isso no tem importncia disse,quase para si mesma. No se pode ser exigente quandose est em busca do prprio destino. Verdade, tia? perguntou o pastor. Ele agorahavia se afastado de Sophie, descendo o morro, e pareciasentir-se melhor com isso. Ento eu lhe desejo boa 32. 32sorte, tia, desde que seu destino no tenha nada a ver comenfeitiar o rebanho das pessoas. E partiu estrada a-baixo com grandes passadas, quase correndo, sem chegara tanto.Sophie ficou olhando-o, indignada. Ele pensou que eu fosse uma bruxa! disse ela bengala. Ela teve vontade de assustar o pastor gritan-do-lhe coisas horrveis, mas isso lhe pareceu um poucocruel. Ento seguiu morro acima, resmungando. Poucodepois, as sebes deram lugar a encostas nuas e as terras frente tornaram-se uma regio montanhosa coberta porurzes, as encostas ngremes alm dela cobertas por umagrama amarela e crepitante. Sophie seguiu adiante. A essaaltura, seus velhos ps calejados doam, assim como ascostas e os joelhos. Ela ficou cansada demais para res-mungar e continuou andando, ofegante, at o sol estarbem baixo. E, de repente, ficou muito claro para Sophieque no podia dar mais nem um passo sequer.Ela desabou sobre uma pedra na beira da estrada,perguntando-se o que faria agora. O nico destino que me ocorre agora uma ca-deira confortvel! arquejou.A pedra estava numa espcie de promontrio, oque dava a Sophie uma viso magnfica do caminho poronde viera. L estava quase todo o vale estendendo-se a-baixo dela luz do sol poente, todos os campos, muros esebes, as curvas do rio e as lindas e ricas manses bri-lhando ao lado de arvoredos, at as montanhas azuis adistncia. Logo abaixo dela estava Market Chipping. So-phie podia ver as ruas bem conhecidas. L estava a Praado Mercado e o Cesaris. Ela poderia ter atirado uma pe-dra na chamin da casa ao lado da chapelaria. 33. 33 Estou ainda to perto! disse Sophie benga-la, desalentada. Toda essa caminhada e cheguei poucoacima do telhado!Foi ficando frio na pedra medida que o sol sepunha. Um vento desagradvel soprava em qualquer dire-o para a qual Sophie se voltasse a fim de evit-lo. Agoraj no lhe parecia sem importncia que ela estivesse nascolinas durante a noite. Ela se viu pensando cada vez maisnuma cadeira confortvel e numa lareira, e tambm naescurido e em animais selvagens. Mas, se voltasse paraMarket Chipping, s chegaria no meio da noite. Era me-lhor ir adiante. Suspirou e se ps de p, as articulaesestalando. Era horrvel. Todo o seu corpo doa. Eu nunca tinha me dado conta do que as pesso-as idosas tm de suportar! ofegou, subindo a estradacom dificuldade. Mas no acredito que um lobo v mecomer. Eu devo estar muito seca e dura. Isso j umconforto.A noite caa agora com rapidez e as montanhas co-bertas de urzes estavam cinza-azuladas. O vento se torna-va mais cortante. Os arquejos de Sophie e os rangidos desuas articulaes eram to altos em seus ouvidos que de-morou algum tempo para ela perceber que parte do rudono vinha dela. E levantou os olhos embaados.O castelo do Mago Howl vinha ribombando aossolavancos em sua direo atravs do pntano. Uma fu-maa negra saa em nuvens de trs de suas ameias pretas.O castelo parecia alto e fino, opressivo e feio, e muito si-nistro de fato. Sophie apoiou-se na bengala e ficou obser-vando-o. No estava particularmente assustada. Pergun-tava-se como ele se movia. Mas o principal pensamentoem sua mente era que toda aquela fumaa devia significar 34. 34que havia uma grande lareira em algum lugar por trs da-queles muros altos e negros. Ora, por que no? perguntou bengala. pouco provvel que o Mago Howl v querer a minha almapara sua coleo. Ele s gosta de moas jovens.Ergueu a bengala e acenou com ela imperiosamentena direo do castelo. Pare! gritou.O castelo, obediente, parou ruidosamente a cercade 15 metros acima do ponto onde ela estava. Sophie sen-tia certa satisfao enquanto claudicava em sua direo. 35. 35CAPTULO TRSNo qual Sophie entra num castelo e num pactoavia uma imensa porta escura na parede negra dian-te de Sophie e ela foi at l, mancando, animada. Ocastelo era ainda mais feio visto de perto. Era alto demaispara a altitude em que se encontrava e seu formato noera muito regular. Tanto quanto Sophie podia ver na escu-rido cada vez maior, era construdo de enormes blocosnegros como carvo e, assim como tal, os blocos tinhamformatos e tamanhos diferentes. medida que se aproxi-mava, sentia a friagem que emanava deles, mas isso no aassustou. Ela s pensava em cadeiras e lareiras, e estendeua mo ansiosamente para a porta.Sua mo, porm, no conseguiu aproximar-se. Umaespcie de muro invisvel a deteve a uns trinta centmetrosda porta. Sophie tateou com um dedo irritado. Depois, ocutucou com a bengala. O muro parecia cobrir totalmentea porta, da altura onde a bengala alcanava at a urze queaparecia sob a soleira. Abra! gritou Sophie.Isso no teve efeito algum sobre a porta. Muito bem disse Sophie. Vou encontrar aporta dos fundos.Ela foi cambaleando para o canto esquerdo do cas-telo, pois era ao mesmo tempo mais perto e se encontravanum declive. Mas Sophie no conseguiu dar a volta. Omuro invisvel a deteve novamente assim que ela alcanouas pedras angulares pretas e assimtricas. Nesse momento,H 36. 36Sophie proferiu uma palavra que aprendera com Martha,que nem senhoras nem jovens devem saber, e ps-se asubir o morro, no sentido anti-horrio, na direo docanto direito do castelo. Ali no havia barreira. Ela dobroua esquina e seguiu mancando impacientemente para a se-gunda grande porta negra no meio daquele lado do caste-lo.Havia outra barreira ali.Sophie fuzilou-a com o olhar. Acho isso muito inconveniente! exclamou.A fumaa negra soprou em nuvens vinda das amei-as. Sophie tossiu. Agora ela estava zangada. Era velha, fr-gil, estava com frio e com dores pelo corpo todo. A noiteestava chegando e aquele castelo ficava ali soprando fu-maa nela. Vou falar com Howl sobre isso! disse ela edirigiu-se, furiosa, para o canto seguinte do castelo.Ali no havia barreira evidentemente era precisodar a volta ao castelo no sentido anti-horrio , mas, umpouco mais para um lado na parede seguinte, havia umaterceira porta esta muito menor e em pior estado. A porta dos fundos, finalmente! disse Sophie.O castelo recomeou a mover-se quando Sophie seaproximou da porta dos fundos. O cho tremeu. A paredeestremeceu e estalou, e a porta comeou a deslizar paralonge dela. Ah, no, voc no vai fazer isso! gritou So-phie. Correu atrs da porta e bateu violentamente nelacom a bengala. Abra! berrou.A porta abriu-se para dentro, ainda deslizando e a-fastando-se dela. Sophie, mancando furiosamente, conse-guiu colocar um dos ps na soleira. Ento saltou e agar- 37. 37rou-se, lutando para no cair, e tornou a saltar, enquantoos grandes blocos negros em torno da porta sacolejavam erangiam medida que o castelo ganhava velocidade sobrea encosta irregular. Sophie no se surpreendeu que o cas-telo tivesse a aparncia torta. O admirvel era ele no cairaos pedaos de imediato. Que forma estpida de tratar uma construo! disse ela, ofegante, enquanto se atirava em seu interior.Ela teve de largar a bengala e agarrar-se porta aberta afim de no ser atirada l fora novamente.Quando comeou a recuperar o flego, percebeuque havia uma pessoa de p diante dela, segurando a portatambm. Era uma cabea de uma pessoa mais alta queSophie, mas dava para ver que era pouco mais do que umacriana, um pouquinho s mais velha do que Martha. Eparecia estar tentando fechar a porta na cara dela e em-purr-la de volta para a noite, expulsando-a do cmodoaquecido e iluminado atrs dela. No ouse fechar esta porta para mim, garoto! disse ela. Eu no ia fazer isso, mas a senhora est man-tendo a porta aberta protestou ele. O que deseja?Sophie olhou sua volta, para o que podia ver almdo garoto. Havia vrias coisas provavelmente prprias demagia pendendo das vigas rstias de cebolas, molhosde ervas e feixes de estranhas razes. Havia tambm ou-tras, estas com certeza prprias de magia, como livros decouro, garrafas tortas e um velho e sorridente crnio hu-mano de cor marrom. Do outro lado do garoto, via-seuma lareira com um fogo modesto queimando. Tratava-sede uma lareira muito menor do que toda a fumaa l forasugeria, mas, obviamente, essa era apenas uma salinha nos 38. 38fundos do castelo. Muito mais importante para Sophie eraque o fogo havia atingido o estgio rosa brilhante, compequenas chamas azuis danando nos troncos, e posicio-nada ao lado dele, no local mais quente, havia uma cadeirabaixa com uma almofada.Sophie empurrou o garoto para o lado e atirou-sena cadeira. Ah! Que sorte! disse, acomodando-se con-fortavelmente ali. Era uma bno. O fogo aqueceu suasdores e a cadeira forneceu apoio para suas costas, e elasabia que, se algum quisesse expuls-la agora, teria deusar uma magia extrema e violenta.O garoto fechou a porta. Ento apanhou a bengalade Sophie e educadamente a encostou cadeira para ela.Sophie percebeu que no havia indcio de que o casteloestivesse se movendo pela encosta: nem mesmo o fantas-ma de um rudo ou o menor dos tremores. Que estranho! Avise ao Mago Howl disse ela ao menino que este castelo vai desmoronar na cabea dele se formuito mais adiante. O castelo tem um feitio que no o deixa des-moronar afirmou o garoto. Alm disso, infelizmenteHowl no est aqui neste momento.Essa era uma boa notcia para Sophie. Quando ele volta? perguntou ela, um pouconervosa. Provavelmente no antes de amanh res-pondeu o garoto. O que a senhora quer? Eu posso a-jud-la? Sou Michael, o aprendiz de Howl.Essa notcia era melhor ainda. pena, mas s o Mago pode me ajudar disse 39. 39Sophie rpida e firmemente. E era provvel que fosseverdade. Vou esperar, se no se importa.Estava claro que Michael se importava. Ele ficourondando-a, impotente. Para deixar claro que ela no tinhainteno de ser dispensada por um mero aprendiz, Sophiefechou os olhos e fingiu que dormia. Diga-lhe que o nome Sophie murmurou e-la. A velha Sophie acrescentou, por via das dvidas. Isso provavelmente vai significar esperar a noitetoda disse Michael.Como era exatamente isso que Sophie queria, elafingiu no ouvir. Na verdade, logo em seguida, caiu nosono. Estava muito cansada por toda aquela caminhada.Depois de um momento, Michael desistiu dela e voltou aotrabalho que fazia na bancada onde se encontrava o aba-jur.Assim, ela teria abrigo por toda a noite, mesmo quefosse por razes ligeiramente falsas, pensou Sophie, sono-lenta. Como Howl era um homem perverso, era bem feitoque abusassem dele. Mas Sophie pretendia estar bem lon-ge dali quando ele voltasse e fizesse objees.Ela olhou sonolenta e sorrateira para o aprendiz.Ficou bastante surpresa ao descobrir que era um garotobom e educado. Afinal, ela entrara ali de forma um tantodescorts, e Michael nem se queixara. Talvez Howl omantivesse em abjeta servido. Michael, porm, no pare-cia servil. Era um rapaz alto e moreno, com um rosto a-gradvel e franco, e estava vestido de maneira bastanterespeitvel. Na verdade, se Sophie no o houvesse vistonaquele momento cuidadosamente despejando um fluidoverde de um frasco sobre um p negro num de vidro, elao tomaria como filho de um prspero fazendeiro. Que 40. 40estranho!No entanto, as coisas destinavam-se a ser estranhasno que dizia respeito aos magos, pensou Sophie. E essacozinha, ou oficina, era deliciosamente confortvel etranqila. Sophie caiu devidamente no sono e comeou aroncar. E no acordou nem quando vieram um lampejo euma pancada abafada da bancada, seguida de um palavrologo reprimido por Michael. Tampouco acordou quandoMichael, lambendo os dedos queimados, deixou o feitiode lado por aquele dia e apanhou po e queijo no armrio.Ela nem se moveu quando Michael derrubou a bengalacom estardalhao ao passar por ela para alimentar o fogocom um tronco, ou quando, examinando a boca aberta deSophie, o rapaz comentou para a lareira: Tem todos os dentes. Ela no a Bruxa dasTerras Desoladas, no ? Eu no a teria deixado entrar se fosse repli-cou a lareira.Michael deu de ombros e tornou a apanhar a ben-gala de Sophie, corts. Ento ps um tronco no fogo coma mesma polidez e foi para a cama em algum lugar no an-dar de cima.No meio da noite Sophie foi acordada por algumroncando. Ela deu um pulo, empertigando-se, bastanteirritada ao descobrir que era ela quem estava roncando.Parecia-lhe ter cochilado por alguns instantes, mas Micha-el havia aparentemente desaparecido naquele intervalo,levando com ele a luz. No restava dvida de que um a-prendiz de mago aprendia esse tipo de coisa em sua pri-meira semana. Ele tinha deixado o fogo muito baixo, eeste emitia silvos e estalidos irritantes. Um vento frio ba-teu nas costas de Sophie. Ela lembrou-se de que estava no 41. 41castelo de um mago, e ainda, com desagradvel nitidez, deque havia um crnio humano numa bancada de trabalhoem algum lugar atrs dela.Estremeceu e girou o pescoo rgido sua volta,mas s havia escurido. Que tal um pouquinho mais de luz, hein? disse ela. A vozinha esganiada parecia no fazer mais ba-rulho do que o crepitar do fogo. Sophie estava surpresa.Contava que a voz ecoasse pelas abbadas do castelo. Eainda havia uma cesta de achas de madeira ao lado dela.Ela estendeu o brao e atirou um pedao de lenha ao fo-go, o que lanou um jato de fagulhas verdes e azuis emdireo chamin. Ela ergueu um segundo pedao de le-nha e recostou-se, no sem lanar um olhar nervoso atrsdela, onde a luz azul violcea do fogo danava acima dosossos marrons do crnio. O cmodo era bastante peque-no. No havia ningum ali, exceto Sophie e o crnio. Ele tem os dois ps no tmulo e eu s tenho um consolou-se, tornando a voltar-se para o fogo, que a-gora se inflamava em chamas azuis e verdes. Deve tersal nessa madeira murmurou Sophie.Acomodou-se de maneira mais confortvel, pondoos ps nodosos no guarda-fogo e a cabea num canto dacadeira, de onde podia observar as chamas coloridas, ecomeou a considerar, sonhadora, o que devia fazer demanh. Mas sua ateno desviou-se um pouco ao imaginarum rosto nas chamas. Seria um rosto azul e magro murmurou ela, muito comprido e magro, com um nariz azul. Masaquelas chamas vermelhas aneladas no alto so sem som-bra de dvida os cabelos. E se eu no for embora antes deHowl chegar? Os magos podem suspender feitios, eu 42. 42suponho. E aquelas chamas prpura perto do fundo for-mam a boca. Voc tem dentes selvagens, meu amigo. Etem dois tufos de chamas verdes por sobrancelhas... Curiosamente, as nicas chamas alaranjadas no fogo seencontravam debaixo das sobrancelhas verdes, como o-lhos, e ambas tinham um brilhozinho prpura no meio,que Sophie podia quase imaginar estivesse olhando paraela, como a pupila de um olho. Por outro lado con-tinuou Sophie, examinando as chamas laranja , se o fei-tio fosse desfeito, eu teria o corao devorado antesmesmo de conseguir dar meia-volta. Voc no quer que devorem seu corao? perguntou o fogo.Seguramente, era o fogo quem falava. Sophieviu-lhe a boca prpura mover-se medida que as palavrassaam. A voz era quase to esganiada quanto a dela, cheiade chuviscos e gemidos de madeira queimando. Naturalmente que no respondeu Sophie. O que voc ? Um demnio do fogo replicou a boca pr-pura. Sua voz era mais um gemido quando disse: Estoupreso a essa lareira por contrato. No posso sair daqui. Ento a voz se tornou enrgica. E o que voc ? perguntou ele. Posso ver que est sob o efeito de umfeitio.Isso arrancou Sophie de seu estado sonolento. Voc pode ver! exclamou ela. Pode tirar ofeitio? Fez-se um silncio espasmdico, intenso, en-quanto os olhos laranja no rosto azul tremeluzente dodemnio subiam e desciam por Sophie. Trata-se de um feitio forte disse ele, porfim. Parece-me um da Bruxa das Terras Desoladas. 43. 43 E disse Sophie. Mas parece mais do que isso crepitou o de-mnio. Eu detecto duas camadas. E, naturalmente,voc no poder contar a ningum sobre ele, a menos quej saibam. Ele fitou Sophie um momento mais. Vouter de estud-lo disse. Quanto tempo isso vai levar? perguntou So-phie. Pode levar algum tempo respondeu o dem-nio. E acrescentou, num bruxuleio suave e persuasivo: Que tal fazer um pacto comigo? Eu quebro o seu feitiose voc romper esse contrato a que estou preso.Sophie olhou cautelosa para o fino rosto azul dodemnio. Ele exibia uma expresso claramente ardilosa aofazer essa proposta. Tudo o que ela havia lido falava doextremo perigo de se fazer um pacto com um demnio. Eno havia dvida de que esse parecia extraordinariamentemaligno, com aqueles longos dentes de cor prpura. Est sendo sincero? indagou ela. No completamente admitiu o demnio. Mas voc quer ficar assim at morrer? Esse feitio encur-tou sua vida em uns sessenta anos, se que posso julgaressas coisas.Esse foi um pensamento desagradvel, que Sophietentara evitar at ali. Isso fazia uma diferena e tanto. Esse contrato a que est preso comeou ela, com o Mago Howl, no ? claro disse o demnio. Sua voz tornou aganhar um tom de lamento. Estou amarrado a esta la-reira e no posso arredar p daqui. Sou obrigado a fazer amaior parte da magia por aqui. Tenho de manter o casteloe faz-lo mover-se e executar todos os efeitos especiais 44. 44que assustam as pessoas, afugentando-as, assim comoqualquer outra coisa que Howl queira. Howl bastanteimpiedoso, voc sabe.Sophie no precisava que lhe dissessem que Howlera impiedoso. Por outro lado, provavelmente o demnioera to perverso quanto ele. E voc no ganha nada com esse contrato? perguntou ela. Eu no teria entrado nele se no ganhasse disse o demnio, bruxuleando tristemente. Mas no oteria feito se soubesse como seria. Estou sendo explorado.Apesar de sua cautela, Sophie sentiu compaixopelo demnio. Pensou em si mesma fazendo chapus paraFanny, enquanto ela passeava por a. Tudo bem disse ela. Quais so os termosdo contrato? Como posso quebr-lo?Um vido sorriso prpura espalhou-se pelo rostoazul do demnio. Voc concorda com o pacto? Se voc concordar em quebrar o feitio que estsobre mim respondeu ela, com a forte sensao de quedizia algo fatal. Feito! gritou o demnio, o rosto compridosaltando alegremente em direo chamin. Vou que-brar seu feitio na hora em que voc romper meu contra-to! Ento me diga como quebrar seu contrato! replicou Sophie.Os olhos laranja cintilaram e se desviaram. No posso. Parte do contrato que nem o Ma-go nem eu podemos dizer qual a clusula principal.Sophie viu que fora enganada. Abriu a boca para 45. 45dizer ao demnio que, nesse caso, podia ficar ali naquelalareira at o dia do Juzo Final.O demnio percebeu o que ela diria. No seja precipitada! estalou ele. Vocpode descobrir o que se observar e ouvir com ateno.Eu lhe imploro que tente. O contrato no vai fazer bem anenhum de ns dois a longo prazo. E eu mantenho a pa-lavra. O fato de estar preso aqui mostra que mantenhomesmo!Ele estava de fato saltando sobre a lenha de umaforma agitada. Novamente Sophie sentiu uma onda decompaixo. Mas, se devo observar e ouvir, isso significa quetenho de ficar aqui no castelo de Howl objetou ela. Somente cerca de um ms. Lembre-se de quetenho de estudar seu feitio tambm alegou o dem-nio. Mas que desculpa posso dar para ficar aqui? Vamos pensar em uma. Howl intil em vriascoisas. Na verdade comeou o demnio, sibilando ma-levolamente , ele est to voltado para o prprio umbi-go que, na metade das vezes, no enxerga adiante do na-riz. Podemos engan-lo... desde que voc concorde. Muito bem disse Sophie. Vou ficar. Agoraencontre a desculpa.Ela acomodou-se confortavelmente na cadeira, en-quanto o demnio pensava. Ele pensava em voz alta, nummurmrio crepitante, que fazia Sophie lembrar-se da for-ma como falara com sua bengala no caminho, e ardia en-quanto pensava com um estrondo to alegre e poderosoque ela tornou a dormir. Pensou ouvir o demnio fazer defato algumas sugestes. Lembrava-se de sacudir a cabea 46. 46negativamente para a idia de que devia fingir que era atia-av de Howl, havia muito desaparecida, e mais uma ouduas ainda mais absurdas. No entanto, no se lembravacom muita clareza. Por fim, o demnio comeou a cantaruma cano suave e bruxuleante. No era em nenhumalngua que Sophie conhecesse pelo menos assim elaimaginara at ouvir nitidamente a palavra caarola cantadavrias vezes e ela a puxava para o sono. Sophie caiunum sono profundo, com a leve suspeita de que agoraestava sendo encantada, assim como enganada, mas issono a aborrecia. Logo ela se livraria do feitio... 47. 47CAPTULO QUATRONo qual Sophie descobre vrios fatos estranhosuando Sophie acordou, a luz do dia escoava suafrente. Como no se lembrava de ter visto nenhumajanela no castelo, o primeiro pensamento de Sophie foi deque adormecera costurando os chapus e que sonhara queestava indo embora de casa. O fogo sua frente havia sereduzido a carvo rosado e cinza branca, o que a conven-ceu de que ela certamente sonhara que havia um demniodo fogo ali. Mas seus primeiros movimentos lhe disseramque algumas coisas ela no sonhara. Todo o seu corpoestalava. Ai! exclamou ela. Meu corpo todo estdoendo! A voz era um rudo agudo e fraco. Ela levouas mos ossudas ao rosto e sentiu as rugas. Com isso,percebeu que estivera em estado de choque todo o dia deontem. Estava muito zangada com a Bruxa das TerrasDesoladas por fazer isso com ela, muito, muito zangada. Entrando em lojas e transformando as pessoas em ve-lhos! exclamou ela. Ah, ela vai ver s!Sua raiva a fez levantar-se numa salva de estalos erangidos e dirigir-se mancando at a janela inesperada, queficava acima da bancada de trabalho. Para sua perplexida-de, a vista dali era a de uma cidade litornea. Podia veruma rua sem pavimentao que subia, ladeada por casi-nhas de aparncia pobre, e mastros se projetando almdos telhados. Alm dos mastros, ela divisava o brilho domar, algo que nunca vira antes em sua vida.Q 48. 48 Onde estou? perguntou Sophie ao crnio dep na bancada. No espero que me responda isso, meuamigo acrescentou, apressada, lembrando-se de queesta era a casa de um mago, e fez meia-volta para dar umaolhada na sala.Era um cmodo bastante pequeno, com pesadasvigas pretas no teto. luz do dia dava para ver que estavaincrivelmente sujo. As pedras do cho encontravam-semanchadas e engorduradas, a cinza empilhada junto aoguarda-fogo da lareira, teias de aranha pendendo das vigas.Havia uma camada de poeira no crnio. Distrada, Sophiea limpou quando foi espiar a pia ao lado da bancada detrabalho. Ela estremeceu com o lodo rosa e cinza ali den-tro e o lodo branco que pingava da bomba acima dela.Howl obviamente no se importava com as pssimas con-dies em que seus criados viviam.O restante do castelo tinha de estar alm de umadas quatro portas pretas baixas que se viam ali. Sophieabriu a mais prxima, na parede oposta, alm da bancada.Atrs dela havia um grande banheiro. Em certos aspectos,era um banheiro que normalmente voc s encontrarianum palcio, cheio de luxos, como um vaso sanitrio re-servado, um boxe de chuveiro, uma banheira enorme comps em forma de garras e espelho em todas as paredes.Mas estava ainda mais sujo do que o outro cmodo. So-phie estremeceu diante do vaso sanitrio, encolheu-se coma cor da banheira, recuou diante do musgo que crescia nochuveiro e, com facilidade, evitou olhar sua figura refletidanos espelhos, pois o vidro estava coberto com borres efios de substncias no identificadas. As substncias noidentificadas, propriamente ditas, amontoavam-se numagrande prateleira acima da banheira. Estavam em potes, 49. 49caixas, tubos e centenas de pacotes e bolsas de papel par-do rasgados. O pote maior trazia um nome, anunciandoem letras tortas: PODER SECANTE. Apanhou um pa-cote aleatoriamente. Leu PELE rabiscado nele e mais quedepressa o colocou de volta no lugar. Em outro pote se liaOLHOS, escrito com a mesma garatuja. Um tubo exibiaPARA DECOMPOSIO. Parece funcionar mesmo murmurou Sophie,olhando para a pia com um estremecimento. A gua jor-rou quando ela virou uma torneira azul-esverdeada quedevia ser de cobre e Sophie deixou a gua levar um poucodaquela decomposio. Depois lavou as mos e o rosto nagua sem tocar a pia, mas no teve coragem de usar oPODER SECANTE. Secou as mos na saia e foi embusca da prxima porta negra.Esta se abriu para um lance de degraus de madeirafrouxos. Sophie ouviu algum mover-se l em cima e fe-chou a porta, apressada. Parecia s levar a uma espcie desto, de qualquer forma. Ento mancou at a porta se-guinte. A essa altura, j caminhava com facilidade. Erauma velha em tima forma, como havia descoberto on-tem.A terceira porta se abria para um quintal minsculocom muros altos de tijolos. Ali havia uma grande pilha detoras e montes desordenados do que parecia uma misturade ferro-velho, rodas, baldes, lminas de metal e arameamontoados at quase o topo do muro. Sophie fechoutambm aquela porta, bastante confusa, porque aquilo noparecia ter nada a ver com o castelo. No se via nenhumaparte do castelo acima dos muros de tijolos. Estes acaba-vam no cu. Sophie s podia pensar que essa parte era oque vinha logo depois do lado onde o muro invisvel a 50. 50havia detido na noite passada.Ela abriu a quarta porta e era apenas um armrio devassouras, com dois mantos de veludo em bom estado,porm empoeirados, pendurados nas vassouras. Sophietornou a fechar a porta, devagar. A nica outra que resta-va era aquela na parede com a janela, e fora por ali queentrara ontem noite. Ela foi mancando at l e, comcuidado, a abriu.Ficou um momento ali parada, olhando as colinasque se moviam lentamente, observando a vegetao passardebaixo da porta, sentindo o vento soprar seus cabelosralos, e ouvindo os estrondos e rangidos das grandes pe-dras pretas medida que o castelo se deslocava. Entofechou a porta e foi para a janela. E l estava a cidadeporturia novamente. No era um quadro. Uma mulherhavia aberto uma porta oposta e varria, jogando a poeirana rua. Atrs da casa, uma vela de lona cinza subia pelomastro em movimentos bruscos, fazendo um bando degaivotas levantar vo em crculos sobre o mar trmulo. No compreendo disse Sophie ao crniohumano. Em seguida, como o fogo parecesse quase ex-tinto, ela foi at l e colocou alguns pedaos de madeiranele, remexendo as cinzas.Chamas verdes subiram entre a madeira, pequenase aneladas, e formaram um rosto comprido azul com ca-belos verdes chamejantes. Bom dia disse o demnio do fogo. No seesquea de que temos um pacto.Ento nada daquilo fora sonho. Sophie no eramuito dada a chorar, mas sentou-se na cadeira por umtempo, fitando um demnio indefinido e esquivo, e noprestou muita ateno aos rudos de Michael se levantan- 51. 51do, at que o viu de p ao seu lado, parecendo constran-gido e um pouco exasperado. Ainda est aqui disse ele. Algum proble-ma? Sophie fungou. Estou velha comeou ela.Mas era exatamente como a Bruxa dissera e o de-mnio do fogo adivinhara. Michael disse com alegria: Bem, um dia acontece com todos ns. Quertomar caf?Sophie descobriu que era mesmo uma velha muitosaudvel. Depois de comer apenas po e queijo no almoode ontem, ela estava faminta. Quero! disse ela e, quando Michael se dirigiuao armrio na parede, ela se ps de p e espiou sobre oombro dele para ver o que havia para comer. Sinto muito, mas temos apenas po e queijo disse Michael com certa frieza. Mas tem uma cesta cheia de ovos a dentro! exclamou Sophie. E aquilo ali no bacon? E que talalgo quente para beber? Cad sua chaleira? No tem disse Michael. Howl o nicoque pode cozinhar. Eu tambm posso afirmou Sophie. Pegueaquela frigideira que vou lhe mostrar.Ela estendeu a mo para a grande frigideira pretapendurada na parede do armrio, apesar de Michael tentarimpedi-la. Voc no entende disse ele. Calcifer, odemnio do fogo. Ele no vai baixar a cabea para cozi-nhar para ningum, a no ser para Howl.Sophie se virou e olhou para o demnio do fogo.Ele tremeluziu, olhando-a de forma malvola. 52. 52 Recuso-me a ser explorado disse ele. Voc quer dizer Sophie falou a Michael que tem de passar sem nem mesmo uma bebida quente, amenos que Howl esteja aqui? Michael concordou,constrangido. Ento voc que est sendo explorado! exclamou Sophie. Me d isso aqui.Ela arrancou a frigideira dos dedos resistentes deMichael, jogou o bacon ali dentro, enfiou uma colher depau na cesta de ovos e marchou com tudo aquilo para alareira. Agora, Calcifer disse ela , chega de boba-gens. Abaixe a cabea. Voc no pode me obrigar! crepitou o de-mnio do fogo. Ah, posso, sim! gritou Sophie de volta, com aferocidade que muitas vezes havia detido suas duas irmsno meio de uma briga. Se no fizer, vou jogar gua emvoc. Ou ento vou tirar sua lenha acrescentou ela,enquanto se ajoelhava diante da lareira. Ali, ela sussurrou: Ou posso desistir de nosso pacto e contar a Howl so-bre ele, no ? Ah, maldio! cuspiu Calcifer. Por que adeixou entrar aqui, Michael? Amuado, ele baixou orosto azulado at que tudo que pde ser visto dele foi umanel de chamas verdes ondulantes danando sobre a ma-deira. Obrigada disse Sophie, e deixou cair a frigi-deira pesada sobre o anel verde para ter certeza de queCalcifer no se levantaria de repente. Espero que o seu bacon queime disse Calci-fer, abafado sob a frigideira.Sophie jogou fatias de bacon na frigideira, que j 53. 53estava quente. O bacon chiou e ela precisou enrolar a mona saia para conseguir segurar o cabo da panela. A portase abriu, mas Sophie no notou por causa do barulho dafritura. No seja tolo disse a Calcifer. E fiquefirme porque quero quebrar os ovos. Ah, ol, Howl disse Michael, impotente.Nesse momento Sophie virou-se rapidamente. Elafitou o jovem alto num vistoso traje azul e prata que aca-bara de entrar e fora detido no gesto de encostar o violono canto da parede. Ele tirou os cabelos claros dos olhosverdes vtreos e curiosos e a fitou tambm. Seu rostolongo e anguloso estava perplexo. Quem diabos voc? perguntou Howl. De onde eu a conheo? Sou uma completa estranha mentiu Sophiecom firmeza. Afinal, Howl s estivera com ela por temposuficiente para cham-la de rato, portanto isso era quaseverdade. Ela devia agradecer s suas estrelas a feliz esca-pada que tivera, supunha, mas, na verdade, seu principalpensamento era: Santo Deus! O Mago Howl s um ga-roto de vinte e poucos anos, com toda a sua perversidade!Fazia tanta diferena ser velha, pensou ela, enquanto vira-va as fatias de bacon na frigideira. E ela teria morrido an-tes de permitir que esse garoto vestido com exagero sou-besse que ela era a garota de quem ele sentira pena noPrimeiro de Maio. Coraes e almas no entravam nessahistria. Howl no ia saber. Ela diz que o nome dela Sophie disse Mi-chael. Chegou na noite passada. Como que fez Calcifer se submeter? per-guntou Howl. 54. 54 Ela me intimidou! disse Calcifer, numa vozpattica e abafada, vinda de baixo da frigideira que chiava. No so muitos os que podem fazer isso disse Howl, pensativo.Ele apoiou o violo num canto e aproximou-se dalareira. O aroma de jacintos misturou-se ao cheiro do ba-con quando ele empurrou Sophie para um lado. Calcifer no gosta que nenhuma outra pessoa, ano ser eu, cozinhe nele disse ele, ajoelhando-se e en-volvendo uma das mos com a manga esvoaante a fim desegurar a panela. Passe-me mais duas fatias de bacon eseis ovos, por favor, e me diga por que veio at aqui.Sophie fitou a jia azul que pendia da orelha deHowl e passou-lhe os ovos um a um. Por que vim, rapaz? disse ela. Era bvio de-pois do que ela vira do castelo. Vim porque sou suanova faxineira, claro. mesmo? disse Howl, quebrando os ovoscom uma s mo e atirando as cascas no meio da lenha,onde Calcifer parecia com-las com sofreguido. Quem disse que ? Eu disse respondeu Sophie, acrescentandosubmissa: Posso limpar a sujeira deste lugar mesmoque no possa limp-lo de sua perversidade, rapaz. Howl no perverso disse Michael. Sou, sim contradisse-o Howl. Voc es-quece o quanto estou sendo perverso neste momento,Michael. Fez um gesto com o queixo na direo deSophie. Se est to ansiosa em ser prestativa, minhaboa senhora, ache algumas facas e garfos e limpe a banca-da.Havia bancos altos debaixo da bancada. Michael os 55. 55puxou para que todos se sentassem e empurrou para umlado todas as coisas sobre ela para criar espao para as fa-cas e garfos que havia tirado de uma gaveta ao lado. So-phie foi at l para ajud-lo. Ela no tinha esperana deque Howl a recebesse bem, naturalmente, mas at agoraele nem mesmo concordara em deix-la ficar alm do ca-f-da-manh. Como Michael no parecesse precisar deajuda, Sophie encaminhou-se para sua bengala e a colocoulenta e ostentosamente no armrio das vassouras. Comoisso no pareceu atrair a ateno de Howl, ela disse: Voc pode ficar comigo por um ms como ex-perincia, se quiser.O Mago Howl no disse mais do que Pratos, porfavor, Michael, ficando l parado, segurando a frigideirafumegante. Calcifer se ergueu com um rugido de alvio einflamou-se chamin adentro.Sophie fez outra tentativa de encostar o mago naparede. Se vou ficar aqui limpando pelo prximo ms disse ela , gostaria de saber onde o restante do cas-telo est. S consigo encontrar esta sala e o banheiro.Para sua surpresa, tanto Michael quanto o magoderam uma gargalhada.Foi s quando j quase terminavam o ca-f-da-manh que Sophie descobriu o que os fizera rir.Howl no s era difcil de encostar na parede; ele pareciano gostar de responder a nenhuma pergunta. Sophie de-sistiu de dirigir-lhe as perguntas e passou a faz-las a Mi-chael. Diga-lhe disse Howl. Vai faz-la parar deimportunar. No existe mais nada no castelo disse Micha- 56. 56el , exceto o que voc viu e dois quartos l em cima. O qu?! exclamou Sophie. Howl e Michaelriram novamente. Howl e Calcifer inventaram o castelo expli-cou Michael , e Calcifer o mantm em movimento. Ointerior dele, na verdade, s a velha casa de Howl emPorthaven, que a nica parte real. Mas Porthaven fica a quilmetros daqui! dis-se Sophie. Acho que isso muita maldade! O que vo-cs querem fazendo este castelo enorme e feio ir de umlado para o outro pelas colinas quase matando todomundo em Market Chipping de medo?Howl deu de ombros. Que velha mais sem papas na lngua! Chegueiquela fase em minha carreira em que preciso impressio-nar todos com meu poder e minha maldade. No possodeixar que o Rei pense bem de mim. E no ano passadoofendi algum muito poderoso e preciso me manter forado caminho dele.Parecia uma maneira estranha de evitar algum, masSophie supunha que os magos tivessem padres diferentesdas pessoas comuns. E no demorou para que descobrisseque o castelo tinha outras peculiaridades. Eles haviam a-cabado de comer e Michael estava empilhando os pratosna pia cheia de lodo ao lado da bancada quando se ouviuuma batida forte e oca na porta.Calcifer inflamou-se. Porta de Kingsbury!Howl, que estava a caminho do banheiro, dirigiu-separa a porta. Havia uma maaneta quadrada de madeiraacima da porta, engastada no lintel, com uma pincelada detinta em cada um dos quatro lados. Naquele momento, 57. 57via-se um borro verde no lado voltado para baixo, masHowl girou a maaneta de modo que o borro vermelhoestivesse no lado de baixo antes de ele abrir a porta.Do lado de fora estava um personagem usandouma peruca branca engomada e um amplo chapu sobreela. A roupa dele era escarlate, prpura e dourada, e elesegurava um pequeno basto decorado com fitas. Elecurvou-se. Aromas de cravo e flor de laranjeira invadirama sala. Sua Majestade, o Rei, apresenta seus cumpri-mentos e envia o pagamento por dois mil pares de bo-tas-de-sete-lguas disse a pessoa.Atrs dele, Sophie vislumbrava uma carruagem espera numa rua cheia de casas suntuosas cobertas comentalhes pintados, e torres, espirais e domos alm desta,de um esplendor que ela mal havia imaginado existir. La-mentou que a pessoa porta levasse to pouco tempo pa-ra entregar uma bolsa comprida de seda, tilintante, e paraque Howl a apanhasse, se curvasse em resposta e fechassea porta. Howl girou a maaneta quadrada de volta, demodo que o borro verde estivesse voltado para o chonovamente, e enfiou a bolsa comprida no bolso. Sophieviu os olhos de Michael seguirem a bolsa com urgncia epreocupao.Howl ento se encaminhou diretamente para o ba-nheiro, gritando: Preciso de gua quente aqui, Calcifer! e l fi-cou por muito, muito tempo.Sophie no conseguiu conter a curiosidade. Quem que estava porta? perguntou aMichael. Ou melhor perguntar onde ele estava? Aquela porta d para Kingsbury disse Micha- 58. 58el , onde vive o Rei. Acho que aquele homem era o a-judante do Chanceler. E acrescentou, preocupado, paraCalcifer eu gostaria que ele no tivesse dado a Howltodo aquele dinheiro. Howl vai me deixar ficar aqui? perguntouSophie. Se deixar, voc nunca vai pression-lo a falarnada respondeu Michael. Ele odeia ser encostadona parede. 59. 59CAPTULO CINCOO qual muito cheio de limpezanica coisa a fazer, Sophie concluiu, era mostrar aHowl que ela era uma excelente faxineira, um verda-deiro tesouro. Amarrou um pano velho nos cabelosbrancos e ralos, arregaou as mangas, mostrando os bra-os velhos e magricelas, e enrolou uma toalha de mesavelha, apanhada no armrio de vassouras, na cintura, co-mo um avental. Era um alvio e tanto pensar que haviaapenas quatro cmodos para limpar em vez de todo ocastelo. Apanhou um balde e uma vassoura e se lanou aotrabalho. O que voc est fazendo? gritaram Michael eCalcifer num coro horrorizado. Uma faxina replicou Sophie com firmeza. Este lugar est uma vergonha. No precisa disse Calcifer. Howl vai pr voc daqui para fora! murmu-rou Michael.Mas Sophie os ignorou e a poeira comeou a se le-vantar em nuvens.No meio do trabalho, ouviram-se novas batidas porta. Calcifer inflamou-se, anunciando: Porta de Porthaven! e deu um grande espirrocrepitante que lanou centelhas prpura em meio s nu-vens de poeira.Michael saiu da bancada e dirigiu-se porta. Sophieespiou atravs da poeira que estava levantando e viu queA 60. 60dessa vez Michael girou a maaneta quadrada acima daporta de modo que o lado com o borro de tinta azul fi-casse para baixo. Ento abriu a porta para a rua que se viapela janela.L estava uma garota. Por favor, sr. Fisher disse ela , vim buscaraquele feitio para minha me. O feitio de segurana para o barco do seu pai,no ? perguntou Michael. No vai levar um minu-to.Ele voltou at a bancada e tirou um p de um jarrona prateleira, medindo-o num pedao de papel. Enquantofazia isso, a garota espiou Sophie com a mesma curiosi-dade com que ela a espiava. Michael torceu o papel emtorno do p e foi at ela, dizendo: Diga a ela que o espalhe ao longo do barco. Elevai ficar l, mesmo que haja uma tempestade.A garota pegou o papel e entregou-lhe uma moeda. O Feiticeiro agora tem uma bruxa trabalhandopara ele tambm? perguntou ela. No respondeu Michael. Voc se refere a mim? perguntou Sophie. Ah, sim, minha criana. Sou a melhor e mais limpa bruxaem Ingary.Michael fechou a porta com uma expresso exas-perada. Isso agora vai correr toda a Porthaven. Howlpode no gostar.Ele girou a maaneta com o verde para baixo no-vamente.Sophie riu consigo mesma, sem remorso. Prova-velmente deixara a vassoura que usava pr idias em sua 61. 61cabea. Mas talvez isso convencesse Howl a deix-la ficar,se todos pensassem que ela estava trabalhando para ele.Era estranho. Como jovem, Sophie teria se encolhido devergonha pela maneira como estava agindo. Como velha,no se importava com o que fazia ou dizia. E achou issoum grande alvio.Ela se aproximou ruidosamente quando Michaelerguia uma pedra na lareira e escondia a moeda da meninadebaixo dela. O que voc est fazendo? Calcifer e eu tentamos manter uma reserva dedinheiro disse Michael com certa culpa. Howl gastatodo o dinheiro que temos, se no fizermos isso. Esbanjador irresponsvel! crepitou Calcifer. Ele seria capaz de gastar o dinheiro do Rei em menostempo do que eu levaria para queimar uma tora. No temjuzo.Sophie borrifou gua da pia para abaixar a poeira, oque fez Calcifer se encolher contra a chamin. Ento var-reu novamente o cho. Varreu na direo da porta a fimde dar uma olhada na maaneta quadrada acima dela. Oquarto lado, que ela ainda no vira ser usado, tinha umborro de tinta preta. Perguntando-se aonde aquele daria,Sophie comeou a varrer energicamente as teias de aranhadas vigas. Michael gemeu e Calcifer tornou a espirrar.Nesse momento, Howl saiu do banheiro, envoltonuma nuvem de perfume. Tinha um aspecto maravilho-samente elegante. At os bordados de prata em seu trajepareciam ter se tornado mais brilhantes. Ele deu uma o-lhada e voltou para o banheiro com uma manga azul eprata protegendo-lhe a cabea. Pare com isso, mulher! disse ele. Deixe 62. 62essas pobres aranhas em paz! Essas teias so uma vergonha! declarou So-phie, juntando-as em bolos. Ento tire-as, mas deixe as aranhas disseHowl. Provavelmente ele tinha uma desagradvel afinida-de com aranhas, pensou Sophie. Elas s vo fazer mais teias disse ela. E matar moscas, o que muito til replicouHowl. Fique com essa vassoura parada enquanto atra-vesso minha prpria sala, por favor.Sophie apoiou-se na vassoura e observou Howl a-travessar o quarto e pegar seu violo. Quando ele punha amo no trinco da porta, ela disse: Se o borro vermelho leva a Kingsbury e o bor-ro azul d em Porthaven, aonde leva o borro preto? Que mulher bisbilhoteira voc ! exclamouHowl. Esse leva ao meu refgio particular e voc novai saber onde .Ele abriu a porta para a ampla e mvel paisagem dopntano e as colinas. Quando vai voltar, Howl? perguntou Micha-el, um pouco desesperanado.Howl fingiu no ouvir. Ele disse a Sophie: Voc no vai matar uma s aranha durante mi-nha ausncia. E a porta bateu atrs dele. Michael lan-ou um olhar significativo para Calcifer e suspirou. Calci-fer crepitou com uma risada maliciosa.Como ningum explicasse aonde Howl havia ido,Sophie concluiu que ele tinha partido para caar jovenzi-nhas novamente e se lanou ao trabalho com vigor maisjustificado do que antes. Ela no ousou causar dano a ne-nhuma aranha depois do que Howl dissera. Ento, batia 63. 63nas vigas com a vassoura, gritando: Fora, aranhas! Forado meu caminho!. As aranhas saam correndo para todosos lados, para salvar suas vidas, e as teias caam em feixes.Depois, naturalmente, ela teve de varrer o cho nova-mente. Em seguida, ajoelhou-se e esfregou o cho. Queria que parasse com isso! disse Michael,sentando-se na escada, fora do caminho dela.Calcifer, agachando-se no fundo da lareira, mur-murou: Gostaria de no ter feito aquele acordo comvoc! Sophie continuou esfregando com vigor. Voc vai ficar muito mais feliz quando estivertudo limpo e bonito disse ela. Mas estou infeliz agora! protestou Michael.Howl s voltou tarde da noite. Nessa hora, Sophietinha varrido e esfregado at o ponto em que mal podia semexer. Estava sentada curvada na cadeira, o corpo tododolorido. Michael agarrou Howl pela manga esvoaante eo arrastou para o banheiro, onde Sophie podia ouvi-lodespejando queixas num murmrio empolgado. Expres-ses como velha horrvel e no ouve uma nica pala-vra! eram fceis de se ouvir, embora Calcifer estivesserugindo. Howl, detenha-a! Ela est matando a ns dois!Mas tudo o que Howl disse, quando Michael o lar-gou, foi: Voc matou alguma aranha? claro que no respondeu Sophie. Suas do-res deixavam-na irritada. Elas me olham e correm parase salvar. O que so elas? Todas as garotas cujo coraovoc devorou?Howl riu. 64. 64 No, apenas aranhas disse ele, e subiu a es-cada sonhadoramente.Michael suspirou. Dirigiu-se ao armrio de vassou-ras e procurou at encontrar uma velha cama de armar,um colcho de palha e alguns tapetes, que colocou no es-pao sob a escada. melhor voc dormir aqui esta noite disseele a Sophie. Isso significa que Howl vai me deixar ficar? perguntou Sophie. Eu no sei! respondeu Michael, irritado. Howl nunca se compromete com nada. Eu j estava aquih cinco meses antes que ele desse a impresso de perce-ber e fizesse de mim seu aprendiz. Eu s pensei que umacama seria melhor do que a cadeira. Ento, muito obrigada disse Sophie, agrade-cida. A cama era de fato mais confortvel que a cadeira e,quando Calcifer se queixou de que estava com fome na-quela noite, foi tarefa fcil para Sophie ir l fora e lhe ofe-recer outro tronco.Nos dias que se seguiram, Sophie abriu caminhopelo castelo, limpando-o sem remorsos. Ela se divertiu, deverdade. Dizendo a si mesma que estava procurando pis-tas, lavou as janelas, limpou a pia cheia de limo, e fez Mi-chael recolher tudo que estava sobre a bancada e nas pra-teleiras, para que pudesse esfreg-los bem. Ela tirou tudodo armrio e das vigas e limpou estes tambm. O crniohumano, Sophie imaginou, comeou a parecer to resig-nado quanto Michael. J mudara de lugar tantas vezes!Ento ela prendeu um velho lenol s vigas mais prximasao fogo e forou Calcifer a abaixar a cabea, enquantovarria a chamin. Calcifer detestava isso. Ele crepitou com 65. 65uma risada maligna quando Sophie descobriu que a fuli-gem se espalhara por todo o quarto e que precisaria limpartudo de novo. Esse era o problema de Sophie. No tinharemorsos, mas lhe faltava mtodo. Mas havia esse mtodoem sua falta de remorsos: calculou que no podia limpar olugar completamente sem mais cedo ou mais tarde depararcom o tesouro oculto de Howl almas de garotas, cora-es mascados ou alguma outra coisa que explicasse ocontrato de Calcifer. O interior da chamin, guardada porCalcifer, parecia-lhe um bom esconderijo. Mas ali nadahavia a no ser quilos de fuligem, o que Sophie guardouem bolsas no quintal. O quintal estava no topo de sua listade esconderijos.Todas as vezes que Howl chegava, Michael e Calci-fer se queixavam de Sophie. Mas Howl no parecia seimportar. Tambm no parecia perceber a limpeza. Tam-pouco notou que a despensa ficou muito bem abastecidacom bolos e gelia e ocasionalmente alface.Pois, como Michael havia profetizado, a notcia ha-via se espalhado por Porthaven. As pessoas vinham at aporta olhar Sophie. Eles a chamavam de sra. Bruxa, emPorthaven, e Madame Feiticeira, em Kingsbury. A notciase espalhara pela capital tambm. Embora as pessoas quevinham para a porta de Kingsbury fossem maisbem-vestidas do que as de Porthaven, ningum em ne-nhum dos dois lugares gostava de chamar algum to po-deroso sem uma desculpa. Assim, Sophie estava sempretendo de fazer uma pausa em seu trabalho para assentir esorrir e receber um presente, ou buscar Michael para pre-parar um feitio rpido para algum. Alguns dos presenteseram agradveis quadros, cordes de conchas e aven-tais teis. Sophie usava os aventais diariamente e pendu- 66. 66rava os cordes e os quadros em seu cubculo sob a esca-da, que logo comeou a ter uma aparncia de casa de fato.Sophie sabia que sentiria saudades dali quandoHowl a expulsasse. Temia cada vez mais que ele o fizesse.Sabia que ele no poderia continuar ignorando-a parasempre.Ela limpou o banheiro em seguida. Isso lhe tomoudias, porque Howl passava muito tempo ali todos os diasantes de sair. Assim que ele saa, deixando-o cheio de va-por e feitios perfumados, Sophie entrava. Agora vamos ver sobre aquele contrato! murmurou ela no banheiro, mas seu principal alvo era na-turalmente a prateleira de pacotes, jarros e tubos. Ela ostirou um a um, com o pretexto de esfregar a prateleira, epassou a maior parte do dia examinando-os cuidadosa-mente para ver se aqueles rotulados de PELE, OLHOS eCABELO eram de fato pedaos de garotas. At onde elapodia ver, eram apenas cremes, ps e tintas. Se algum diaforam garotas, ento, pensou Sophie, Howl havia usado otubo PARA D