o conceito de soberania perante a globalizacao

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Revista CEJ, Brasília, n. 32, p. 80-88, jan./mar. 2006 80 DIREITO INTERNACIONAL O CONCEITO DE SOBERANIA PERANTE A GLOBALIZAÇÃO RESUMO Examina o conceito de soberania, sua ori- gem e desenvolvimento, e confronta-o com o fenômeno da globalização, para in- vestigar em que medida esta afeta a inde- pendência dos Estados nacionais. Afirma que a teoria da soberania absoluta já não é aceita na atualidade, o que signi- fica vislumbrar as mudanças sofridas pelo conceito para adaptar-se à realidade jurí- dico-social. No entanto, tal fato não é sufi- ciente para admitir que a soberania do Estado tenha chegado ao fim com o pro- cesso de globalização. Considera esse entendimento insustentá- vel, ao se analisar o sistema mundial de direitos, que reconhece às nações o direi- to de governar-se soberanamente e ao qual a globalização não se sobrepõe. PALAVRAS-CHAVE Estado-nação; soberania; globalização; Estado; Direito Internacional; ONU. Liziane Paixão Silva Oliveira Kleber Sales

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Revista CEJ, Brasília, n. 32, p. 80-88, jan./mar. 2006

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DIREITO INTERNACIONAL

O CONCEITODE SOBERANIAPERANTE AGLOBALIZAÇÃO

RESUMOExamina o conceito de soberania, sua ori-gem e desenvolvimento, e confronta-ocom o fenômeno da globalização, para in-vestigar em que medida esta afeta a inde-pendência dos Estados nacionais.Afirma que a teoria da soberania absolutajá não é aceita na atualidade, o que signi-fica vislumbrar as mudanças sofridas peloconceito para adaptar-se à realidade jurí-dico-social. No entanto, tal fato não é sufi-ciente para admitir que a soberania doEstado tenha chegado ao fim com o pro-cesso de globalização.Considera esse entendimento insustentá-vel, ao se analisar o sistema mundial dedireitos, que reconhece às nações o direi-to de governar-se soberanamente e aoqual a globalização não se sobrepõe.

PALAVRAS-CHAVEEstado-nação; soberania; globalização;Estado; Direito Internacional; ONU.

Liziane Paixão Silva Oliveira

Kleber Sales

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1 INTRODUÇÃO

O estudo do conceito de “sobera-nia” ganha importância perante aglobalização, visto que, para alguns es-tudiosos, como Matteucci, aquela já estáem via de extinção. A fundamentaçãoestá na mudança do paradigma de Esta-do adotado pelo constitucionalismo, poisas fontes de produção normativa, cujocontrole sempre foi visto como primor-dial para a existência de uma nação so-berana, não mais pertencem ao Estado,mas a organismos internacionais. O Es-tado, sob esse ângulo, perde sua auto-nomia e sua independência. Todavia,alguns teóricos, como Hirst e Thompson,acreditam que a organização política dosEstados é favorecida pela existência deum sistema mundial de direitos, ou seja,a globalização amplia e aperfeiçoa a coo-peração entre os Estados soberanos seminviabilizar a independência das nações.

Antes de afirmar se a globalizaçãoextingue ou não a soberania, é imperio-so verificar se esse processo é realmen-te vislumbrado. A palavra “globalização”tornou-se comum no vocabulário doscientistas sociais, uma máxima centralnas prescrições dos economistas, umslogan para jornalistas e políticos. Vive-mos uma era em que a maior parte davida social é determinada por proces-sos globais, em que culturas, economi-as e fronteiras nacionais estão-se dis-solvendo. É possível, nos contextos so-cial, econômico, tecnológico e políticocontemporâneos, verificar a isonomiatão falada pelos defensores da era glo-bal? Vive-se realmente um momento deuniformização? Seria esta a melhor pa-lavra para expressar o significado a quese pretende remontar?

Paulo Nogueira Batista Jr., no prefá-cio da edição brasileira do livro Globa-lização em questão, declara que, segun-do as versões mais exaltadas, os paísesem desenvolvimento estariam indefesosdiante de movimentos irreversíveis, sórestando a submissão e a aceitação pas-siva das imposições feitas. Não obstantetais idéias vigorarem em algumas esfe-

ras das relações intergovernamentais, essapremissa é refutada. Não será necessaria-mente a globalização, como fenômenointegralizador, que mitigará a soberania na-cional, mas a forma como os governantesse colocam diante dela?

Nas considerações finais, faz-se umapanhado dos conhecimentos pesqui-sados acerca de tão vasto e complexotema, uma vez que, das leituras realiza-das, surgiram questionamentos teóricosque, longe de levarem a pensamentosexatos, conduzem à “crise”, no sentidoetimológico de risco e oportunidade.

2 SOBERANIA DO ESTADO:ESCOLHENDO UM CONCEITO

As reflexões sobre a relação entresoberania e globalização objetivam es-clarecer aspectos importantes acerca doinstituto da soberania em sua acepçãopolítico-jurídica ante o processo deglobalização, sem, contudo, prenderem-se a análises profundas de suas impli-cações no campo econômico, social, cul-tural, ou qualquer outro. No decorrer dareflexão, pretende-se responder a umaquestão necessária ao desenvolvimen-to deste artigo, qual seja: como o pro-cesso de globalização afeta o conceitode soberania?

2.1 ELEMENTOS FORMADORES DOESTADO MODERNO

Existe divergência quanto aos pres-supostos essenciais para a formação doEstado. Os doutrinadores de Direito In-ternacional1 entendem, em concordeunanimidade, que os elementos essen-ciais para a existência do Estado são: oterritório como elemento físico, a popu-lação como elemento humano e o go-verno soberano.

Em conformidade com essa corren-te, reza a Convenção Panamericana deMontevidéo, de 1933, sobre Direitos e De-veres dos Estados, promulgada pelo Bra-sil (Decreto n. 1.570, de 13/04/1937), queO Estado, como pessoa de Direito Inter-nacional, deve reunir os seguintes requi-sitos: a) população permanente; b) terri-

tório determinado; c) governo; e d) a ca-pacidade de entrar em relação com osdemais Estados.

De modo diverso, estudiosos da teo-ria geral do Estado entendem que não éa população, mas o povo que constitui oelemento humano do Estado. Alguns es-tabelecem a soberania como poder pe-culiar do Estado, pois existem sociedadesformadas por território, povo e governo,mas não se constituem em Estados porfaltar a soberania. Além disso, uma cor-rente minoritária inclui o quarto elemen-to, a finalidade, pois, para ela, o Estadotem o fim específico e essencial de regu-lamentar as relações sociais.

Neste momento, é indispensávelestabelecer a divergência entre popula-ção e povo. A primeira significa um con-junto de pessoas instaladas de modopermanente em um território, sejam elasnacionais ou estrangeiras residentes noEstado. Para Pellet, população é enten-dida, sobretudo, como a massa dos in-divíduos ligados de maneira estável aoEstado por um vínculo jurídico, o víncu-lo da nacionalidade2.

O conceito de povo é jurídico, maisrestrito que o de população. Para Marce-lo Caetano, o termo “população” tem umsignificado econômico, que correspondeao sentido vulgar, e que abrange o con-junto de pessoas residentes num territó-rio, quer se trate de nacionais ou estran-geiros. Ora, o elemento humano do Es-tado é constituído unicamente pelos quea ele estão ligados pelo vínculo jurídicoque hoje chamamos de nacionalidade3.

Seguindo o mesmo ponto de vista,encontram-se Kelsen4, Borja y Borja5,Sanguinetti6, Del Vecchio, Groppali7, en-tre outros. Em resumo, o termo “popu-lação” é mais abrangente que povo; esteé um conceito jurídico, enquanto aque-le é demográfico.

O território é consagrado por todosos doutrinadores como elemento físicofundamental de um Estado, local no qualtem validade a ordem jurídica. É forma-do por solo, subsolo, ilhas marítimas, flu-viais e lacustres, plataforma continental8,

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mar territorial9, mares inferiores, espaçoaéreo, representações diplomáticas10 eembarcações e aeronaves militares emqualquer lugar.

O Estado é uma pessoa jurídica e,como tal, necessita do governo pararepresentá-lo. O Direito Internacionalconsidera o Executivo, o Legislativo e oJudiciário como partes constituintes dogoverno, que deve ser independente eautônomo, ou seja, soberano para queo Estado se constitua. A soberania é umelemento essencial para a existência doEstado e, com base em conceito jurídi-co tradicional, é o poder exercido poruma entidade estatal que tem como ca-racterística a conjugação de autonomiae independência.

2.2 ORIGEM E DESENVOLVIMENTODO CONCEITO

O conceito de soberania apareceuem um momento histórico específico,apresentando características que, com opassar dos séculos, incorporaram novoselementos. A análise conceitual da sobe-rania deve estar atrelada às condições his-tóricas em que surge o conceito.

O termo “soberania” era utilizadona Idade Média distintamente da formacomo será interpretado no século XVI. Anoção de soberano que qualificava apessoa do rei passa, na Idade Moderna,a caracterizar o Estado moderno, apre-sentando novo significado.

No que diz respeito à origemepistemológica da palavra “soberania”, osteóricos contrapõem-se. SegundoPaupério, Sahid Maluf, Oliveira e RibeiroJúnior, o termo provém do latim medie-val superamus, que significa “aquele quesupera”. Para Menezes, vem do latim clás-sico super omnia11. Mas configurou-sepelo vocábulo francês souveraineté, que,no conceito de Bodin, expressa o poderabsoluto e perpétuo de uma República 12.

Foi inquietante iniciar o estudo dateoria da soberania pelo conceito esta-belecido por Bodin, pois, reconhecida-mente um dos formuladores do con-ceito moderno de soberania e, emboraseja sempre citado, nunca se fez umaanálise profunda de sua obra. JeanBodin escreveu livros sobre variadostemas, porém, como bem explica Bar-ros, não reivindicava a originalidade,no sentido de ser inédito, de apresen-tar algo totalmente novo. Pretende

critica a idéia de Aristóteles de separar aadministração pública da doméstica, porentender que não é possível separar a parteprincipal (família) do todo (República) 22.

A coisa pública será o terceiro elemen-to, pois, para a existência da República, énecessário que algo seja compartilhado portodas as famílias. Bodin expõe: é precisoque haja alguma coisa em comum e decaráter público, como é o patrimônio pú-blico, o tesouro público (...). Não existerepública se não há nada público 23.

O quarto elemento indispensável éa soberania. O autor utiliza a metáforado navio para explicitar a importânciaque a soberania tem na República. Domesmo modo que o navio só é madei-ra, sem forma de embarcação, quandolhe é suprimida a quilha que sustentaos lados, a proa, a popa e o convés,assim também a República sem podersoberano, que une todos os membrose partes, e todas as famílias, corpos ecolégios, não é República24.

A soberania é um elemento essencial para a existência doEstado e, com base em conceito jurídico tradicional, é o poderexercido por uma entidade estatal que tem como característicaa conjugação de autonomia e independência.

2.2.1 A SOBERANIA EM BODIN,ROUSSEAU E HOBBES

No capítulo VIII do Livro I, JeanBodin formula uma definição de sobe-rania. Ninguém, até então, tinha-se sub-metido a isso. Dispõe que a soberaniaé um poder absoluto e perpétuo de umaRepública em relação aos que manipu-lam todos os negócios de Estado deuma República . Observam-se dois as-pectos destacados por Bodin para carac-terizar o poder soberano. São eles: ab-soluto e perpétuo.

Segundo o autor, a soberania é ab-soluta porque o seu exercício é livre e nãopode ser interrompido por nenhum obs-táculo de natureza política. Absoluto sig-nifica incondicionado, mas não arbitrário.Pode-se dizer que ao governante confe-re-se poder absoluto e soberano, não es-tando subordinado a nenhuma lei ulteri-or ou posterior; está acima do direito in-terno. Ele teria o monopólio do direito,mediante o poder legislativo25.

Com Hobbes, a idéia de sobera-nia fica dissociada da pessoa dogovernante; é impessoal. O Estado pas-sou a ser conceituado como fenômeno

apenas introduzir sua marca na tradi-ção que remonta aos antigos13. Ele con-sagrou-se ao publicar, em 1576, Les SixLivres de la République, além de tersido o primeiro a afirmar que a sobera-nia era uma característica do Estado14.

No primeiro livro da obra Os seis li-vros da República, Bodin define a Repú-blica15, detalha seus elementos e diferen-cia-a da família. Segundo o autor, Repú-blica é um correto governo de várias fa-mílias, e do que lhes é comum, com po-der soberano16. Ela surge a partir da lentamultiplicação das famílias e estabelece-se mediante a violência dos mais fortes eo consentimento dos demais17.

O primeiro elemento da Repúblicaa ser explicitado foi o justo governo, queserve para diferenciá-la de um bando deladrões e piratas com os quais não sepodem estabelecer relações de comércionem fazer alianças, atividades respeitadasnas repúblicas organizadas18. No enten-dimento de Bodin, ela deve buscar terri-

tório suficiente para abrigar os seus habi-tantes, uma terra fértil, animais para ali-mentar e vestir os súditos, céu e tempe-ratura agradáveis, boa água e materialpara construção das casas. Posteriormen-te, seriam satisfeitas as comodidades me-nos urgentes19.

A família foi o segundo elemento aser considerado para conceituar a Repú-blica, pois ela é a sua fonte, seu principalelemento, sem o qual ela não existiria.Para Bodin, as sociedades políticas for-mam-se pela reunião natural de várias fa-mílias, seja mediante o medo ou a vio-lência. Os antigos chamam repúblicauma sociedade de homens reunidos paraviver bem e felizmente. Dita definição,sem embargo, contém mais ou menos onecessário. Faltam, nela, três elementosprincipais, é dizer, a família, a soberaniae o que é comum em uma república20.

Em suma, a diferença entre a famí-lia e a República reside no fato de a pri-meira ser o reto governo de vários sujei-tos sob a obediência de um chefe de fa-mília e do que lhe é próprio, enquanto asegunda é o reto governo de várias famí-lias e do que lhes é comum21. O autor

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independente dos governantes e governados, uma pessoaartificial, o Leviatã.

A essência da soberania, que, segundo Bodin, identifica opoder de fazer e anular leis, para Hobbes devem ser estabeleci-dos, no poder de impor, mediante a força, determinados com-portamentos. Ambos os autores têm a necessidade de identifi-car fisicamente o detentor do poder26. Sobretudo Hobbes de-senvolve a noção de soberania estatal e, posteriormente, Lockee Rousseau difundem a idéia de soberania popular27.

Em 1762, Jean-Jacques Rousseau, o cidadão de Genebraque viveu o fenômeno da democracia direta, escreve O contratosocial e, nesse tratado, transfere a titularidade da soberania dogovernante para o povo. De acordo com Rousseau, a soberaniaé expressão da vontade geral; equivale ao interesse comum, e ésempre constante, inalterável e pura28. Não se trata da vontadede todos, pois esta é a soma das particulares, das minorias coleti-vas e equivale-se ao mal. Em suma: a vontade, ou é geral, ou nãoo é; ou é a do corpo do povo, ou unicamente de uma parte. Noprimeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania efaz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou deum ato de magistratura; é, quando muito, um decreto29.

Para esse teórico suíço, a soberania tem duas qualidades: ada inalienabilidade e a da indivisibilidade. Ambas estão explicadas,respectivamente, nos capítulos I e II do Livro II da obra mencio-nada. Quanto à inalienabilidade, escreve: a soberania, sendoapenas o exercício da vontade geral, nunca pode alienar-se, eo soberano, não passando de um ser coletivo, só pode ser re-presentado por si mesmo; pode transmitir-se o poder – não,porém, a vontade30. No que tange à indivisibilidade, a razão éque a vontade só é geral se houver a participação de todos, nãosendo necessário, porém, que seja unânime.

A necessidade de conceituação leva Bodin a apontar comocaracterísticas fundamentais da soberania o poder absoluto,indivisível, perpétuo, inalienável e imprescritível. Acerca dos doisprimeiros, cabe a lição de Ribeiro Júnior, quando sugere que opoder soberano deveria concentrar-se na mão de um só homem,pois, segundo alega, a família, que é verdadeira miniatura daRepública, tem apenas um chefe, e o cosmos tem somente umDeus soberano. Assim, de acordo com as suas idéias, inspiradasprincipalmente em Aristóteles, não existem limites jurídicos parao poder, sendo o soberano o indivíduo a quem o povo atribui,perpetuamente, autoridade ilimitada e absoluta31.

Para Hauriou e Azambuja, as idéias do contratualista sãoeivadas de contradições, principalmente no que tange à qualifi-cação da vontade geral, que, em determinados momentos, éexpressa como a vontade comum de todos os membros da co-letividade; em outros, é a vontade de um pequeno grupo, econfunde-se com vontade legislativa, muito embora esta nãotenha sido mencionada por Rousseau32.

2.2.2 CARACTERÍSTICAS DA SOBERANIA:UMA ABORDAGEM ANALÍTICA

Numa síntese das reflexões sobre a soberania e suas caracte-rísticas, praticamente a totalidade dos estudiosos reconhece-a comoinalienável, indivisível, imprescritível, perpétua e absoluta. Pode-se assegurar que essas características sejam válidas atualmente?

No entendimento de Hirst e Tompson, a soberania adquirecaracterísticas de alienabilidade e divisibilidade. Atente-se para a

linha de argumentação dos referidos autores, quando afirmam:Regimes de regulação, agências internacionais, políticas comunssancionadas por tratado, tudo isso chega a existir porque osprincipais Estados-nação concordam em criá-los e em conferi-lhes legitimidade, compartilhando sua soberania. A soberaniaé alienável, os Estados cedem poder para agências supra-Esta-do, mas não se trata de uma qualidade fixa. A soberania éalienável e divisível33.

É forçoso interpretar essa afirmativa à luz da soberania brasi-leira frente aos inúmeros tratados ratificados. Com fulcro na con-cepção dos autores supramencionados, propõe-se uma questãocrucial que norteia todo o desafio sugerido pelo tema, fruto dereflexões posteriores. Quando o Estado brasileiro assina um trata-do aliena ou divide a sua soberania?

Num primeiro momento, a alienabilidade34 da soberaniapode ser compreendida como a possibilidade que o titular temde alienar, de ceder o seu poder soberano. Desde o tempo deBodin, essa possibilidade já era remota, pois a maioria dos reisdetinha a soberania como usufruto, e não como propriedade.Rousseau, por defender a soberania popular, não concebia talhipótese. O Brasil referenda a inalienabilidade da soberaniapopular no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal de1988, uma vez que os governantes do Estado brasileiro sãorepresentantes do povo, não detêm a titularidade do podersoberano. Lupi explica que a soberania tem diversas facetas,entre elas a territorial35, largamente combatida, que pode seralienada, como ficou demonstrado na compra da atual regiãodo Acre pelo Brasil à Bolívia36.

A indivisibilidade defendida por Bodin estava fundada naimpossibilidade de partilha do poder entre o rei, os aristocra-tas e o povo. Segundo Rousseau, não podia ser dividida por-que pertencia ao povo. Dallari explica que, hoje, compreende-se que o titular da soberania é o Estado, e, mesmo assim, éinadmissível existirem partes separadas da mesma soberania37.

Ainda com relação à afirmação feita por Hirst e Thompson,verificam-se alguns equívocos. Quando o Estado assina um trata-do internacional, não está cedendo o poder soberano, pois cadamembro dos organismos internacionais permanece com essepoder, podendo retirar-se quando desejar. O que diferencia o Es-tado das demais pessoas jurídicas de Direito Internacional públicoé o fato de só ele ser soberano. Desta forma, mesmo as organiza-ções de vocação universal, como a ONU, não formam super-Esta-dos, por não possuírem o poder soberano38. Destarte, o Brasil nãoalienou nem dividiu a sua soberania ao assinar tratados.

Os qualificativos temporais da soberania são a perpetuida-de e a imprescritibilidade. Para Lupi, quando Bodin tratou daperpetuidade, atrelou-a à vida do soberano39. Diferentementeinterpretou Matteucci, estabelecendo que a perpetuidade é umatributo intrínseco ao poder de organização política e não coin-cide com as pessoas físicas que o exercem. Assim, na monar-quia, a soberania é uma qualidade da Coroa e não do rei40. Combase na interpretação dada por Lupi, a soberania não seria maisperpétua, se é fato que a maioria dos Estados adotam sistemarepresentativo, como é o caso do Brasil. Na análise de Rousseau,a soberania é perpétua porque pertence ao gênero do povo,que nunca padece.

No que concerne à imprescritibilidade, o poder soberanonão se extingue com o passar do tempo. Essa característica, como

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todas as outras, permanece válida nos dias atuais. Um exemplofornecido por Lupi é o da Argentina, que, mesmo não exercen-do efetivamente a soberania sobre as Malvinas, não concordacom a legitimidade de outro soberano41.

O adjetivo “absoluto”, atribuído à soberania, não é mais con-cebido, nos moldes pensados por Bodin e Hobbes, como o poderilimitado, incontrolável do Estado. Conforme Lupi, absoluto, nestesentido, é uma ficção instituída para separar as unidades do en-torno, deixando os Estados, ao seu arbítrio, exercerem seu podersobre uma população situada num território sem a interferênciade outrem. Tal ficção, em raras oportunidades, talvez em nenhu-ma propriamente, correspondeu à realidade42.

O Estado é soberano para determinar o próprio destino,interna e externamente, mas essa liberdade é pautada por com-promissos internacionalmente assumidos. Assim, a soberania éanalisada sob duas óticas: a interna, tida, no Direito Público in-terno, como soberania nacional, e a externa, que é a soberaniado Estado ante os demais.

A primeira, na concepção de Azambuja, refere-se à autorida-de do Estado, às leis e ordens que edita para todos os indivíduosque habitam o seu território e as sociedades formadas por essesindivíduos; predomina sem contraste, não pode ser limitada pornenhum outro poder43. A segunda significa que, no cenário inter-nacional, as relações recíprocas entre os Estados são de igualdadee respeito; não há dependência, do mesmo modo que não háelementos que identifiquem a formação de um “mega-Estado”.

Os teóricos franceses Le Fur e Carré de Malberg44 enten-dem não existir uma soberania externa e outra interna indepen-dentemente, pois, assim, deixa de ser una. Para ambos, nosdomínios do poder soberano, o máximo que se pode aceitar éuma divisão formal de funções, uma função externa e umafunção interna da mesma e única soberania45.

Desde já, sem conferir validade a argumentos que qualifi-quem o Estado e a globalização como paradoxos, a avaliação éno sentido de contemplar as duas dimensões como indispensá-veis e complementares da realidade do Estado contemporâneo.As dimensões interna e externa da soberania são essenciais paraa organização moderna do Estado, mesmo que esporadicamen-te se apresente uma tensão entre elas.

2.3 CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO CONTEMPORÂNEOA definição concebida por Matteucci merece ser o pon-

to de partida para a elaboração do conceito contemporâneode soberania:

Em sentido lato, o conceito jurídico-político de soberaniaindica o poder de mando de última instância numa sociedadepolítica, e, conseqüentemente, a diferença entre esta e as de-mais associações humanas, em cuja organização não se en-contra este poder supremo, exclusivo, e não derivado. Este con-ceito está intimamente ligado ao de poder político: de fato, asoberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, nosentido da transformação da força em poder legítimo, do po-der de fato em poder de direito46.

O estudo do poder soberano perpassa por uma esfera fáticae outra normativa, muito embora a soberania pretenda ser aracionalização jurídica do poder. Segundo a conceituação deMatteucci e com base em outras definições, é possível selecio-nar elementos que auxiliem na formação de um conceito.

Miguel Reale, ao estudar o significado do termo, concebeu-o como o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valerdentro de seu território a universalidade de suas decisões, noslimites dos fins éticos de conveniência47. A observação de Realedemonstra que a soberania não é só um poder de fato, nem umpoder jurídico, pois encontra seus limites na exigência de nãoburlar os fins éticos.

Complementando a definição anterior, Francisco Rezekentende a soberania como atributo fundamental do Estado, asoberania o faz titular de competências que, precisamenteporque existe uma ordem jurídica internacional, não são ili-mitadas, mas nenhuma outra entidade as possui superiores48.Juridicamente, o instituto da soberania nunca foi desafiadodesde a Carta das Nações Unidas até os documentos interna-cionais mais recentes.

O Estado soberano é independente, na medida em quedispõe de poderes para atuar no cenário nacional e internacio-nal. Porém, quando o Estado determina a extensão de suas obri-gações internacionais, o poder fica limitado, o que não repre-senta a divisão da soberania.

Levando em consideração as distintas acepções do termo,entende-se a soberania como um poder de decisão atribuídojuridicamente ao Estado, que se traduz em independência eautonomia, tanto em dimensão externa quanto interna, sendo aliberdade pautada por fins éticos.

As interpretações conceituais distorcidas ensejam a má uti-lização dos termos “independência” e “autonomia” e sãocomumente usadas como palavras sinônimas para qualificar asoberania49, o que é equivocado. De modo geral, a independên-cia, como elemento jurídico indispensável para a existência doEstado, é o aspecto formal da soberania. Tem-se a autonomiacomo o aspecto material que pode ser graduado conforme asituação e a atitude desempenhada pelo Estado.

Na atualidade, alguns estudiosos, como Matteucci, defen-dem a existência do “eclipse da soberania”; outros, a crise dasoberania frente à globalização, como Bonavides. Tais teoriasfundamentam-se na expansão e no fortalecimento das institui-ções internacionais no mercado mundial mais integralizado paraestabelecer suas premissas.

3 AS PERSPECTIVAS DA GLOBALIZAÇÃONo início, era apenas um segredo sussurrado entre um grupo

de intelectuais bem informados. Em seguida, foram publicadosalguns artigos sobre o assunto em revistas especializadas.Contemporaneamente, uma vasta literatura foi escrita acerca doassunto, a globalização, que atrai a atenção de políticos, sociólo-gos, juristas, historiadores, entre outros grupos. Contudo, falta aesse debate um pouco de precisão50.

A expressão adquiriu importância bastante peculiar nosúltimos tempos. Teve início com as grandes navegaçõeseuropéias dos séculos XV e XVI, quando os marinheiros se lan-çavam em busca de novos territórios para serem colonizados.O mundo era descoberto por meio da expansão transoceânica51.O segundo estágio da globalização ocorreu com a RevoluçãoIndustrial no século XIX, período marcado pelo desenvolvimentodas telecomunicações, por investimentos no exterior, pela co-lonização da África, da Ásia e do extremo Oriente. As décadasdo pós-guerra abrigaram o terceiro estágio da globalização.

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Nessa fase, destacam-se a descolonizaçãoda Ásia e da África e a modernização daAmérica do Sul, que contribuíram para aimplantação de determinadas indústrias,não aceitas nos países ricos pela rigorosalegislação ambiental por eles adotada.

O vocábulo “globalização” surge doradical “global”, que significa integral, in-teiro, total. Ante essa afirmativa, uma per-gunta se impõe: o que se faz integralizadona globalização?

Conforme Magnoli, globalização é oprocesso pelo qual o espaço mundial ad-quire unidade52. Todavia, não se encon-tram, na análise deste processo, a unifor-midade, a igualdade, a homogeneidademencionada pelo ilustre geógrafo e pelagrafia do termo: a realidade demonstragrande diferença entre a prosperidade dospaíses abastados e a pobreza extrema emoutras partes do globo.

a comunicação instantânea de notíciasque diminuem as distâncias entre os Es-tados. A fantasia está em considerar tal pro-cesso de fato global, pois só uma parceladiminuta da população mundial tem aces-so a esse tipo de informação por falta decondições financeiras, ou intelectivas. Ven-tila-se, entre os “globalistas”, a morte doEstado, mas o que se observa é o fortaleci-mento deste, como único ente capaz degerir as desigualdades.

b) Como realidade perversa – seusefeitos já podem ser notados por muitose verificados por alguns. Segundo Annan,mais de 25 milhões de brasileiros vivemabaixo da linha de miséria, e há, no mun-do, 1,2 bilhões de pessoas com renda diá-ria inferior a um dólar60. Essas pessoassofrem diretamente os efeitos nefastos daglobalização. Conforme Paulo Bonavides,essa seria a versão hegemônica e maléfi-ca da globalização neoliberal do capita-lismo sem pátria61.

c) Como deve ser – voltada a satisfa-zer as necessidades essenciais a uma vidahumana digna, relegando a posição se-cundária necessidades fabricadas62. É im-perioso utilizar os avanços tecnológicos eeconômico-financeiros advindos desseprocesso para melhorar, significativamen-te, a qualidade de vida da populaçãomundial. A Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, no art. III, declara: todapessoa tem direito à vida, à liberdade eà segurança pessoal; todavia, a globa-lização, nos moldes em que se processa,infringe diretamente esse dispositivo e ou-tros, como o inc. XXIII, que consagra odireito ao trabalho.

No mesmo sentido posiciona-seAnnan, para o qual o ser humano deveser colocado no centro de todas as ativi-dades. E afirma: não há aspiração maisnobre, nem responsabilidade mais im-periosa do que ajudar os homens, asmulheres e as crianças do mundo inteiroa viverem melhor. Só quando isso acon-tecer é que saberemos que aglobalização está de facto a favorecer ainclusão, permitindo que todos compar-tilhem as oportunidades que oferece63.

A globalização é alardeada como umprocesso de internacionalização dos fa-tores produtivos e do capital, impulsio-nado pela revolução tecnológica. Deve serentendido como um processo históricoque conduz a disparidades, e não àequidade, como pode ser constatado por

O Estado soberano é independente, na medida em quedispõe de poderes para atuar no cenário nacional

e internacional. Porém, quando o Estado determinaa extensão de suas obrigações internacionais, o poder fica

limitado, o que não representa a divisão da soberania.

Concorde com a mesma idéia estáSposati, segundo o qual o processo deglobalização não é uniforme, não atin-ge todos os países da mesma maneira,e não atinge os que vivem no mesmopaís do mesmo modo53. Continua: aglobalização, que pode surgir de imedia-to, como um processo de homoge-neidade, é, de fato, um processo hetero-gêneo sob múltiplos aspectos54.

Seguindo essa perspectiva, de acor-do com Held e Mcgrew estão Beetham,Falk, Gill, Bradshaw e Wallece, Castells,Greider, Hoogvelt, Gray, para os quais asanálises canalizam para a globalização emperspectiva econômica. Como conseqü-ência, observa-se que a globalização eco-nômica (...) é diretamente responsável,por aumentar as disparidades de opor-tunidade de vida no mundo inteiro - háum aprofundamento da polarização darenda e da riqueza55.

O processo de internacionalização dosfatores produtivos, impulsionado pela re-volução tecnológica e pela internacio-nalização dos capitais, não culminou coma unificação, com a homogeneização dospadrões de consumo, como o prometido.Pelo contrário, as benfeitorias advindas da

globalização permanecem concentradasnum pequeno número de países, no inte-rior dos quais estão compartilhadas demodo desigual. Se, com a globalização, aeconomia passa a condicionar o universoda produção, o mesmo não se aplica aosvalores éticos. O grande desafio imposto élidar com o vazio ético que brotou da ido-latria exacerbada do mercado de capital.

É sempre oportuno, nesse sentido,lembrar o posicionamento do Secretá-rio-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan:Se a globalização oferece grandesoportunidades, o que é certo é que, atéhoje, os seus benefícios foram distribuí-dos de uma forma muito irregular, en-quanto o seu custo é suportado por to-dos. (...) Assim, o grande desafio queenfrentamos hoje é certificarmo-nos deque, em vez de deixar para trás milha-res de milhões de pessoas que vivem

na miséria, a globalização se torneuma força positiva para todos os po-vos do mundo. Uma globalização quefavoreça a inclusão deve assentar nadinâmica do mercado, mas esta, só porsi, não é suficiente. É preciso ir maislonge e construirmos juntos um futuromelhor para a humanidade inteira, emtoda sua diversidade56.

Pretende-se demonstrar que um seg-mento relevante da população mundialnão tem acesso aos adventos daglobalização, ficando excluído de seusbenefícios e relegado aos malefícios, demodo que as desigualdades decorrentesdireta ou indiretamente deste processogarantam que não seja uniforme, não sejaglobal. Como preleciona o jurista PauloBonavides, seria apenas um compêndiode ambigüidades57.

O geógrafo Milton Santos não con-cebe a globalização como um fenôme-no58, mas como um período com variá-veis que perdem o vigor, surgindo outraspara substituí-los. Pode-se analisá-la sobtrês eixos. São eles:

a) Como fábula59 – a comunidadepassa a acreditar em fatos fantasiososcomo verdadeiros. Um exemplo disso é

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uma observação, mesmo que singela, da sociedade mundial. Aglobalização possibilitou a algumas nações o enriquecimento,mas, para a maioria, ensejou a depredação de seus recursosnaturais e o agravamento da mazela social. Desse modo, tor-nou-se um desafio refletir sobre como a globalização, que sina-lizava para o progresso unificado dos Estados, não logrou êxito,e como a idolatria do mercado conduziu a humanidade a umvazio ético.

3.1 O ESTADO EM FACE DA GLOBALIZAÇÃOCom efeito, a questão crucial apresentada pela globalização 64

aos Estados nacionais é se eles se manterão independentes eautônomos. Para alguns estudiosos entusiastas, a globalizaçãocolocaria a soberania no museu da História. Outros, no entanto,afirmam que o sistema mundial de direitos contribui para o for-talecimento dos Estados.

Idéias díspares são defendidas por Oliveira, Ribeiro eBonavides. Para os dois primeiros, a soberania está em crise emdecorrência da globalização. Observam também que os paísesperiféricos têm a soberania limitada. O terceiro revela que osneoliberais pretendem extinguir a soberania interna e externa emenciona que só sabem conjugar cinco verbos: desnacionalizar,desestatizar, desconstitucionalizar, desregionalizar e desarmar.

Dando continuidade a esse pensamento, encontram-se osglobalistas, segundo os quais a globalização “esvaziou” os Esta-dos, enfraquecendo a sua autonomia e soberania, uma vez quenão têm capacidade para contrapor os ditames da economiaglobal, nem de proteger a comunidade do seu território. Os pro-cessos econômicos, ambientais e políticos regionais e globaisredefinem profundamente o conteúdo das decisões nacionais65.Assim, na concepção desses teóricos, há o declínio do Estado-nação e o aumento do multilitarismo.

Acrescenta-se a essa corrente a posição de Torres: esse en-fraquecimento do Estado nacional, vale ressaltar, dá-se de duasformas: voluntariamente, quando o Estado delega competên-cias deliberadamente a instâncias supranacionais, fortalecen-do organismos mundiais, e/ou de forma involuntária, decor-rente do próprio processo de globalização66.

Não se concebe, na atual conjuntura, a idéia de que umEstado tenha o poder soberano enfraquecido por vincular-se aorganismos internacionais, já que o pensamento dominantedurante a assinatura da Paz de Westfália67, de que os Estadossoberanos tinham liberdade absoluta para governar um espaçonacional, não é atualmente aceito, pois a Carta das Nações Uni-das estabelece um limite consensual ao arbítrio dos Estados noexercício da soberania68.

Aceitar a soberania como poder ilimitado eabsoluto do Estado no seu território é não

vislumbrar as mudanças sofridas pelo conceitopara adaptar-se à realidade jurídica e social.

externos perdem eficácia69. Nesse sentido, alerta Magnoli parao fato de que as tendências integradoras e globalizadoras daeconomia contemporânea colocam novos desafios para osEstados nacionais. A resposta a tais desafios evidencia nãouma suposta fraqueza dos Estados, mas, pelo contrário, suaforça e vitalidade70.

Sendo assim, o Estado passa a atuar, em algumas situa-ções, com exclusividade como intermediário entre as aspiraçõespolíticas externas e internas e deixa de desempenhar funçõeseminentemente locais. A questão ambiental passa a ocupar aagenda do Estado na medida em que as conseqüências dessasquestões são globais, entre as quais destaca-se a diminuição dabiodiversidade. Entendida como um problema transfronteiriço,cujo combate definirá o futuro da humanidade, o reconheci-mento da extensão do problema e do seu caráter coletivo fezcom que o Estado atuasse diretamente na solução da questão.Desta feita, o Estado, para responder aos novos padrões mundial-mente implantados, abdica de algumas funções e avoca outras,consolidando a sua autoridade e seu poder soberano.

4 CONSIDERAÇÕES FINAISO termo “soberania” tem sido manipulado por estudiosos

e governos para determinar diferentes conceitos, a dependerdos interesses e dos atores envolvidos. Em alguns momentos, étido como absoluto, em outros, como relativo, e, ainda, comoinexistente. Formar um conceito independente de correntes pré-fixadas foi uma das tarefas deste artigo.

A teoria da soberania absoluta de Bodin não é mais aceitano contexto mundial. Neste ponto, a teoria da erosão, do eclip-se, está coberta de razão, mas, daí a conceber-se um Estadosupranacional é muito diferente. Para vislumbrar a existência deum supra-Estado, é preciso defender que os Estados deixaramde ser soberanos, embora continuem sendo chamados de “Es-tado”, e que o novo Estado global vai ser dotado de soberania. Amaior organização universal, a ONU, apesar de ser uma pessoajurídica de Direito Público Internacional, não é soberana, e éformada pelos Estados, que continuam independentes e autô-nomos, mesmo integrando-a.

Aceitar a soberania como poder ilimitado e absoluto doEstado no seu território é não vislumbrar as mudanças sofridaspelo conceito para adaptar-se à realidade jurídica e social. A so-berania será um conceito contemporaneamente válido se porela entender-se a qualidade ou o atributo da ordem estatal, que,embora exercida com limitações, não foi igualada a nenhumaoutra no âmbito interno e nem superada no externo. Reafirman-do essa idéia, Souza entende que soberania não significa podertotal, ilimitado71.

O Estado é autônomo na medida em que é livre para deci-dir no âmbito do seu quadro de competência; é independente,por não estar subordinado a nenhum outro Estado. Assim, aliberdade estatal não é ilimitada para fazer o que se desejar, semnenhuma restrição. A teoria da soberania exige de um Estadoque ele respeite a soberania dos demais, pois nenhum Estadotem o direito de alargar suas competências por decisão unilate-ral, sob pena de atentar contra a soberania do outro.

Por independência externa compreende-se que o Estado nãoestá subordinado a nenhum outro, pois, com base no Direito In-ternacional, são considerados iguais. Ela é um atributo essencial

Em sentido diametralmente oposto, posicionam-se os cé-ticos Hirst e Thompson. Eles acreditam que o Estado perma-nece soberano, sem ser onipotente na base territorial. Ele éfortalecido pelos processos de internacionalização, uma vezque é o Estado nacional, em última análise, que detém omonopólio das normas, sem as quais os poderosos fatores

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do Estado; para Lupi, condição sine quanon para a sua existência72. Por todos osmotivos elencados, propõe-se que a sobe-rania não seja absoluta, todavia não se pre-tende estabelecer o seu fim como um todo,mas, apenas, a qualidade de absoluta.

REFERÊNCIAS1 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen.

Direito Internacional público. Lisboa: FundaçãoColouste Guebentian, 1999. p. 374; REZEK, JoséFrancisco. Direito Internacional público: cursoelementar. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 153;ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Inter-nacional público. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 67;SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de DireitoInternacional público. 2. ed. São Paulo : Atlas, 2004.p. 144; JO, Hee Moon. Introdução ao Direito In-ternacional. São Paulo: LTr, 2000. p.198.

2 DINH; DAILLIER; PELLET, op. cit., p. 375.3 CAETANO, Marcelo. Manual de Ciência Política e

Direito Constitucional. 6. ed. Lisboa: Coimbra,1972. p.123.

4 KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Es-tado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 334.

5 BORJA Y BORJA, Ramiro. Teoría Geral delDerecho y del Estado. Buenos Aires: Depalma,1977. p.63-64.

6 SANGUINETTI, Horacio. Curso de Derecho Polí-tico. 2. ed. Buenos Aires: Astrea de Alfredo, 1986.

7 GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 111.

8 É o prolongamento das terras sobre o mar atéa profundidade média de 200 metros.

9 É a projeção de 12 milhas náuticas a partirda costa.

10 Tratado de Versalhes.11 No baixo latim, teria ensejado o superlativo

supremitas (caráter dos domínios que não de-pendem senão de Deus), com o significado desuperior (MENESES, Anderson de. Teoria geraldo Estado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense,1999.p. 148).

12 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 23. ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 30.

13 BARROS, Alberto Ribeiro de. A teoria da so-berania de Jean Bodin. São Paulo: FAPESP,2001. p.199.

14 HELLER, Hermann. La Soberanía: contribucióna la teoría del Derecho Estatal y del DerechoInternacional. México: Fondo de CulturaEconómica, 1995. p. 80.

15 Como se vê, o termo “República” equivale aomoderno significado de Estado. (DALLARI,Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria geral doEstado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 77).

16 BODIN, Jean. Los seis libros de la república.Trad. de Pedro Bravo Gala. 3. ed. Madrid:Tecnos, 1997. p. 9. No original: República es unrecto gobierno de varias familias, y de lo queles es común, con poder soberano.

17 Idem, p. 165.18 Idem, p. 9.19 Idem, p. 13.20 Idem, p. 11. No original: los antiguos llamaban

república a una sociedad de hombres reunidospara vivir bien y felizmente. Dicha definición, sinembargo, contiene más y menos de lo necesario.Faltan en ella sus tres elementos principales, esdecir, la familia, la soberanía y lo que es comúnen una república.

não se vêem mais que duas faces de uma úni-ca soberania. (PAUPÉRIO, op. cit., p. 28)

46 BOBBIO, op. cit., p. 1.179.47 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado.

2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1960. p. 127.Apud DALLARI, op. cit., p. 80.

48 REZEK, op. cit., p. 226.49 Para Walker (1990), existem quatro interpreta-

ções para o significado de soberania. O primeiroé a “codificação do princípio da igualdade en-tre os membros da comunidade internacional”,e, nesse ponto, Lupi afirma que a soberania éum conceito juridicamente vazio, porque nãohá Estados com características iguais, sendo aisonomia apenas formal. O segundo significa-do seria como “codificação entre universalida-de e diversidade cultural”. Em terceiro, estariaa concepção “legal”, que é tratada como inde-pendência. Por fim, o “princípio político”, queé similar ao aspecto da autonomia discutido.(R. B. J. WALKER, Sovereignty, identity,community:reflections on the horizons ofcontemporary political pratice. In: WALKER, R.B. J., MENDLOVITZ. Contending sovereignities.London: Rienner e Boulder, 1990. Apud :ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade.Brasília: IBAMA, 1998. p. 81.)

50 Para os céticos, entre eles Hirst e Thompsom, otermo mais apropriado para denominar esseperíodo seria “internacionalização”, pois queseriam as ligações crescentes entre economiasou sociedades nacionais diferentes. Defendema continuidade da preservação do território, dasfronteiras e dos governos locais.

51 MAGNÓLI, Demétrio. Globalização: Estadonacional e espaço mundial. 9. ed. São Paulo:Moderna, 1997. p. 7.

52 Idem, p. 7. Por unidade entende-se: “Qualidadedo que é um ou único ou uniforme.Homogeneidade, igualdade, identidade, unifor-midade. Ação coletiva orientada para um mes-mo fim; coesão, união. (FERREIRA, AurélioBuarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: odicionário da língua portuguesa. 3. ed. rev. e ampl.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 1.738).

53 SPOSATI, Aldaíza. Globalização: um novo e ve-lho processo. In: DOWBOR, Ladislau; IANNI,Octávio; REZENDE, Paulo-Edgar A. Desafiosda globalização. 3. ed. Petrópolis: Vozes,2000. p. 43.

54 Idem, p. 44.55 HELD, David; MACGREW, Anthony. Prós e con-

tras da globalização. Trad. de Vera Ribeiro. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 72.

56 ANNAN, Kofi. Nós, os povos: o papel das Na-ções Unidas no século XXI. New York: Publiépar l’Organisation des Nations Unies–Département de l’Information, 2000. p. 6-7.

57 BONAVIDES, Paulo. A globalização e a sobera-nia: aspectos constitucionais. Revista do Insti-tuto dos Advogados Brasileiro v. 34, n. 92, p.26, abr./jun. 2000.

58 Tanto David Held e Anthony Mcgrew como amestranda Rosenely Peixoto, na sua disserta-ção, tratam a globalização como fenômeno dasociedade contemporânea. O termo“globalização” não será tratado neste trabalhocomo fenômeno, algo extraordinário, maravi-lhoso, mas como processo, uma sucessão demudanças, seguindo a concepção de MiltonSantos.

59 Para Hirst e Thompson, ela também possui essafeição fantasiosa que denominam de mito, omito da globalização.

60 ANNAN, op. cit., p. 21.

21 Idem, p.18-19.22 Jenofonte y Aristóteles han separado, sin razón,

a mi juicio, la economía doméstica de la polí-tica, lo que puede hacerse sin desmembrar laparte principal del todo. Idem, p. 16.

23 Idem, p. 17: Es preciso que haya alguna cosaen común y de carácter público, como elpatrimonio público, el tesoro público, (...). Noexiste república si no hay nada público.

24 Idem, p. 17: Pero del mismo modo que el navíosólo es madera, sin forma de barco, cuandose le quitan la quilla que sostiene los lados, laproa, la popa y el puente, así la república, sinel poder soberano que une todos los miembrosy partes de ésta y todas las familias y colegiosen un solo cuerpo, deja de ser república.

25 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;PASQUINO, Giafranco. Dicionário de política.Trad. de Carmen C. Varriale et al. 7. ed. Brasília:Universidade de Brasília, 1995. p. 1.183.

26 Idem.27 Conforme Ribeiro Júnior, Rousseau sustenta a

teoria da soberania popular. Todavia, Paupério eAzambuja colocam-no como membro da dou-trina da soberania inalienável. Tais expressões,embora diferentes, são conceituadas por ambosda mesma forma como a impossibilidade quetem o indivíduo de transferir, alienar a outrem asoberania da qual é depositário. Cabe advertirque, segundo Paupério, a soberania popular, queantecede a nacional, foi por ela substituída his-tórica e praticamente (...) por uma imposiçãojurídica de ordem política, e está submetida àrazão, e não ao povo (PAUPÉRIO, A. Machado.O conceito polêmico de soberania. 2. ed. Rio deJaneiro: Forense, 1958. p. 91).

28 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social.Trad. de Antonio de Pádua Danesi. 3. ed. SãoPaulo: Martins Fontes, 1996. p. 127.

29 Idem, p. 34-35.30 Idem, p. 33.31 RIBEIRO JÚNIOR, João. Teoria geral do Esta-

do e ciência política. 2. ed. Bauru: Edipro,2001. p. 191.

32 As considerações feitas acerca desse decano daFaculdade de Direito de Toulouse são basea-das no estudo de Farias.

33 HIRST, Paul; THOMPSON, Grahame.Globalização em questão. Trad. de Wanda Cal-deira Brant. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 294.

34 Alienação, para a legislação civil, compreendea perda da propriedade por parte do alienante.Também indica o ato de transferência a títulogratuito ou oneroso do direito pertencenteàquele que transfere.

35 A origem histórica da soberania territorial re-monta à Paz de Westfália.

36 LUPI, André Lipp Pinto Basto. Soberania, OMCe Mercosul. São Paulo: Aduaneiras, 2001. p. 280.

37 A soberania é um direito; sendo assim, seutitular é uma pessoa jurídica (DALLARI, op.cit., p. 82-83).

38 Idem, p. 263-273.39 LUPI, op. cit., p. 274.40 BOBBIO, op. cit., p. 1.181.41 LUPI, op. cit., p. 278.42 Idem, p. 290.43 AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência políti-

ca. 13. ed. São Paulo: Globo, 2001. p. 63.44 A concepção de ambos os teóricos foi retirada

de PAUPÉRIO, op. cit., p. 28.45 OLIVEIRA, Nelci Silvério de. Teoria geral do

Estado. Goiânia: Cultural e Qualidade, 1999. p.27. É de grande valia acrescentar a opinião deCarré de Malberg: na ordem interna e externa,

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61 Na lição do jurista Paulo Bonavides, na época contemporânea, há duas ver-sões básicas de globalização: uma hegemônica e satânica, que é aglobalização neoliberal do capitalismo sem pátria, sem fronteiras, sem es-crúpulos; outra a globalização da democracia, de caminhada lenta.(BONAVIDES, op. cit., p. 35).

62 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à cons-ciência universal. São Paulo: Record, 2001. p. 148.

63 ANNAN, op. cit., p. 7.64 O conceito de “interdependência” foi um dos precursores da noção de

globalização que é empregada, nos últimos dez anos, como seu sinônimo. Ainterdependência é fundamentada na sensibilidade e na vulnerabilidade dosEstados. A sensibilidade corresponde à rapidez com que as mudanças em umpaís acarretam mudanças nos demais. Já a vulnerabilidade é compreendidacomo a capacidade de os Estados implementarem políticas que contornemas alterações desencadeadas em outros Estados. (PEIXOTO, Alexandre Kotzias.A erosão da soberania e a teoria das Relações Internacionais. 1997. 134 f.Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Departamento de Rela-ções Internacionais, Brasília, Universidade de Brasília, 1997. p. 53-56.).

65 HELD, David, op. cit., p. 86.66 TORRES, Igor Gonçalves. O enfraquecimento do Estado nacional como enti-

dade reguladora do comércio exterior. [1997?]. 134 f. Dissertação (Mestradoem Relações Internacionais) – Departamento de Relações Internacionais,Universidade de Brasília, [1997?]. p. 34.

67 Segundo Held, o modelo de Westfália apresenta as seguintes características:1) o mundo é composto por Estados soberanos, que não reconhecem auto-ridade superior; 2) o processo legislativo, de solução de contendas e deaplicação da lei concentra-se nas mãos dos Estados individualmente; 3) oDireito Internacional volta-se para o estabelecimento de regras mínimas decoexistência; 4) a responsabilidade sobre atos cometidos no interior das fron-teiras é assunto privativo do Estado envolvido; 5) todos os Estados são vistoscomo iguais perante a lei e regras jurídicas não levam em consideraçãoassimetrias de poder; 6) as diferenças entre os Estados são, em última ins-tância, resolvidas a força; 7) a minimização de impedimentos à liberdadedo Estado é prioridade coletiva . (HELD, David. Democracy and Global Order:from the Modern Sate to Cosmopolitan Governance. Stanford: SatanfordUniversity Press, 1995. p. 78. Apud PEIXOTO, op. cit., p. 19-20).

68 Idem, p. 4.69 SANTOS, op. cit., p. 76-77.70 MAGNÓLI, op. cit., p. 41.71 SOUZA, José Pero Galvão et al. Dicionário de política. São Paulo: T. A. Queiroz,

1998. p. 205.72 LUPI, op. cit., p. 294.

REFERÊNCIA COMPLEMENTARGRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 1980.

Artigo recebido em 26/9/2005.

ABSTRACT

The authoress examines the concept of sovereignty, itsorigin and development , and confronts it with the globalizationphenomenon, to investigate to which extent it affects theindependence of the national States.

She affirms that the theory of absolute sovereignty is nolonger accepted nowadays, which means to foresee the changessuffered by the concept in order to adapt itself to the socialjuridical reality. However, such matter is not enough to admitthat the State’s sovereignty has come to an end with theglobalization process.

At last, she considers that this point of view is unacceptable,by analyzing the rights world system, which acknowledges thenations’ right to rule themselves in a sovereign way, whichglobalization does not surpass.

KEYWORDSState-nation; sovereignty; global izat ion; State;

International Law;UNO.Liziane Paixão é membro do grupo de estudo em RelaçõesInternacionais e Meio Ambiente da UnB e do UniCEUB.