o cordel paulistano vol. 1

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O CORDEL PAULISTANO apresenta: ELE&amancha

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Zine que mescla crônicas paulistanas em formato de cordel.

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O CORDEL PAULISTANOapresenta:

ELE & a mancha

Passava por ali todos os dias e todos os dias lá estava ela. Já o incomodava diariamente

havia quase um ano. Muitas pessoas prestam suas incomodações ao clima, aos problemas da vida ou do mundo, outros sentem incomodado o peito quando morre um ou outro amor. Ele era incomodado por uma mancha estranha na escadaria da estação.

Uma mancha oleosa e disforme no sétimo degrau.

Os arredores da estação já eram a materialização da decadência humana. Mendigos encardidos e embriagados

a dançar ao som dos carros, prostitutas saindo do trabalho pela manhã, catarro de criança de rua, lixo de todo o tipo e mais e mais lixo.

Era rel igioso passar pelo degrau, olhar a mancha e sentir o mais pungente dos ascos. Não era

uma pessoa das mais l impas, em seu apartamento apertado era possível

encontrar ocasionalmente meias sujas em sua sala de estar, bi lhetes vencidos de loteria em pontos não estratégicos pelo chão e copos vazios de conhaque em cada canto.

Mas a mancha era cruel e nunca perdoou sua visão ou seus sentidos metafísicos. A mancha era horrível, como tudo que há

dentro do lado sombrio de um homem.

Naquela manhã, percebeu ao amarrar seus cadarços antes de sair de casa que não seria uma manhã comum.

Andou suas várias estações como sempre, fez a baldeação de sempre e se apertou com as centenas nos mesmos trens de sempre.

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Não sentiu pena do infeliz fragrante de bebida e mijo, mas um regozijo não contido bradou em seu peito. Um dia sem a mancha maldita.

Ao terminar os degraus, paramédicos passaram por ele e aprontaram-se

para acudir o homem. Não quis ficar por lá, junto ao aglomerado de curiosos que se formava, poderiam tirar o homem dali e iria acabar vendo a tal mancha.

Ouviu o burburinho se abrandar pela distância enquanto

deixava a cena, mas sem deixar de entender que o decúbito salvador de manchas tinha morrido ali mesmo, logo acima da mancha,

E que como um soldado que salta sobre a granada para salvar o pelotão, transformou aquela quarta-feira livre de manchas num longo, incólume e feliz dia.

Passou-se o sol e depois a lua da noite tépida da primavera paulistana. Era um novo dia.

Ele bebericou café e comeu quatro biscoitos de polvilho deixados de lado por uma lasca de

broa de milho. Saiu de casa sem passar o cadeado no portão. Comprou o exemplar da revista mensal de modelismo ao passar pela banca. Pigarreou cachimbo. Embarcou e desembarcou.

Chegou ao lugar da mancha e ela não estava mais lá, porém não havia júbilo em sua respiração pesarosa, pois percebeu (ou sempre soube) que havia manchas

dentro dele e não há químico ou esfregaço suficiente no mundo.

O CORDEL PAULISTANO

OUTUBRO,2014

IDEALIZADO POR

DIAGRAMADO, MONTADO & EDITADO por

ilustrações:

é um projeto

mapachemídia

dan arsky

mayume matsubara

[email protected]

www.FB.cOm/sogivemecoffeaNdTV