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. estudos semióticos http://www.revistas.usp.br/esse issn 1980-4016 semestral dezembro de 2016 vol 12, n. 2 p. 47-57 Mestiçagem e imigração: triagem e mistura em um discurso do século XIX Alexandre Marcelo Bueno (PUC-SP) * Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discutir o processo de mestiçagem em sua relação com as discussões sobre a imigração no Brasil do século XIX. Para isso, utiliza elementos conceituais da semiótica tensiva, em particular os conceitos de triagem, mistura e campo de presença para examinar como se constroem as características passionais dos diferentes grupos imigrantes sobre as quais recai a moralização. Como parte da análise, depreendeu-se dois diferentes processos de mestiçagem que envolvem questões como a aspectualidade do processo, que determina a rapidez ou a lentidão da mistura, e a tonicidade ligada aos aspectos biológicos que orienta a interrupção do processo. Além disso, considerou-se também os elementos características de cada grupo imigrante envolvidos na mistura proposta pelo texto como uma forma de se perceber as variações aspectuais dadas. Por meio da noção de campo de presença, foi proposta a sua relação com a moralização como um modo de compreender as simpatias e as antipatias do enunciador em relação aos diferentes grupos imigrantes presentes em seu discurso. Procura-se assim discutir algumas questões sobre o fenômeno da mestiçagem que aparentemente não são observadas em outras áreas do saber que tratam do mesmo assunto. Palavras-chave: imigração; mistura; triagem; campo de presença; moralização. 1. Introdução Nosso trabalho versa sobre dois temas bastante caros para a constituição histórica da identidade nacional brasileira: a imigração e a mestiçagem. No entanto, a mestiçagem da qual trataremos é um pouco diferente da que permeia o imaginário da sociedade brasileira contemporânea. A ideia de mestiçagem não foi sempre considerada completamente positiva no Brasil. Para os teóricos raciais do século XIX, os mestiços “exemplificavam (...) a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de ‘espécies diversas’” (Schwarcz, 2004, p. 56). O mestiço poderia, assim, ser responsável por uma piora na “qualidade” da sociedade brasileira. Ainda no século XIX, a mestiçagem envolvia um amplo leque de temas, que iam do racial ao cultural, passando por questões econômicas, morais e políticas. Como diz De Luca: A condenação da mestiçagem, por sua vez, foi repostulada a partir de um novo rol de argumentos, segundo os quais a mistura de povos portadores de heranças culturais distintas colocava em risco o caráter nacional, tornado estável graças à ação depuradora do tempo. Dessa hibridização, que desrespeitava a afinidade étnica peculiar a cada agrupamento humano, resultaria a anarquia política (1998, p. 156). Além dessa condenação à mestiçagem, por estar atrelada a ideia de degeneração, havia também uma mestiçagem desejada e incentivada, a depender dos grupos nela envolvidos. Assim, é preciso relativizar a mestiçagem como um postulado totalmente negativo e recusado no século XIX, pois seu incentivo ou sua condenação decorriam da origem do imigrante e da consequente afinidade ou inadequação para a formação da sociedade. Neste trabalho, examinaremos um discurso que mobiliza justamente essa oscilação entre duas mestiçagens. Ele se coloca contra a mistura de determinados grupos, mas defende o mesmo procedimento para outros. Essa escolha por determinados grupos em detrimentos de outros tinha como horizonte o desenvolvimento nacional e a constituição de uma identidade brasileira cuja matriz seria a civilização europeia. O texto que escolhemos para discutir essas questões foi produzido durante o período monárquico brasileiro. O autor, Menezes e Souza, autor de um livro chamado Theses sobre a Colonização do Brazil (1875), relata os efeitos da imigração no Brasil Imperial e propõe, entre coisas questões, melhorias nas condições materiais dos imigrantes já estabelecidos em solo brasileiro. Implicitamente, no capítulo que analisaremos, há algumas propostas para os debates sobre a política imigratória que estava em discussão naquele momento. * Pós-doutorando pelo Centro de Pesquisas Sociossemióticas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Endereço de e-mail: [email protected]

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estudos semióticoshttp://www.revistas.usp.br/esse

issn 1980-4016semestral

dezembro de 2016vol 12, n. 2

p. 47-57

Mestiçagem e imigração: triagem e mistura em um discurso do século XIXAlexandre Marcelo Bueno (PUC-SP)*

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discutir o processo de mestiçagem em sua relação com asdiscussões sobre a imigração no Brasil do século XIX. Para isso, utiliza elementos conceituais dasemiótica tensiva, em particular os conceitos de triagem, mistura e campo de presença para examinarcomo se constroem as características passionais dos diferentes grupos imigrantes sobre as quais recai amoralização. Como parte da análise, depreendeu-se dois diferentes processos de mestiçagem queenvolvem questões como a aspectualidade do processo, que determina a rapidez ou a lentidão da mistura,e a tonicidade ligada aos aspectos biológicos que orienta a interrupção do processo. Além disso,considerou-se também os elementos características de cada grupo imigrante envolvidos na misturaproposta pelo texto como uma forma de se perceber as variações aspectuais dadas. Por meio da noção decampo de presença, foi proposta a sua relação com a moralização como um modo de compreender assimpatias e as antipatias do enunciador em relação aos diferentes grupos imigrantes presentes em seudiscurso. Procura-se assim discutir algumas questões sobre o fenômeno da mestiçagem queaparentemente não são observadas em outras áreas do saber que tratam do mesmo assunto.

Palavras-chave: imigração; mistura; triagem; campo de presença; moralização.

1. Introdução

Nosso trabalho versa sobre dois temas bastantecaros para a constituição histórica da identidadenacional brasileira: a imigração e a mestiçagem. Noentanto, a mestiçagem da qual trataremos é umpouco diferente da que permeia o imaginário dasociedade brasileira contemporânea.

A ideia de mestiçagem não foi sempreconsiderada completamente positiva no Brasil. Paraos teóricos raciais do século XIX, os mestiços“exemplificavam (...) a diferença fundamental entreas raças e personificavam a ‘degeneração’ quepoderia advir do cruzamento de ‘espécies diversas’”(Schwarcz, 2004, p. 56). O mestiço poderia, assim,ser responsável por uma piora na “qualidade” dasociedade brasileira.

Ainda no século XIX, a mestiçagem envolvia umamplo leque de temas, que iam do racial aocultural, passando por questões econômicas,morais e políticas. Como diz De Luca:

A condenação da mestiçagem, por sua vez, foirepostulada a partir de um novo rol deargumentos, segundo os quais a mistura de povosportadores de heranças culturais distintas colocavaem risco o caráter nacional, tornado estável graçasà ação depuradora do tempo. Dessa hibridização,que desrespeitava a afinidade étnica peculiar acada agrupamento humano, resultaria a anarquiapolítica (1998, p. 156).

Além dessa condenação à mestiçagem, por estaratrelada a ideia de degeneração, havia também umamestiçagem desejada e incentivada, a depender dosgrupos nela envolvidos. Assim, é preciso relativizara mestiçagem como um postulado totalmentenegativo e recusado no século XIX, pois seuincentivo ou sua condenação decorriam da origemdo imigrante e da consequente afinidade ouinadequação para a formação da sociedade.

Neste trabalho, examinaremos um discurso quemobiliza justamente essa oscilação entre duasmestiçagens. Ele se coloca contra a mistura dedeterminados grupos, mas defende o mesmoprocedimento para outros. Essa escolha pordeterminados grupos em detrimentos de outrostinha como horizonte o desenvolvimento nacional ea constituição de uma identidade brasileira cujamatriz seria a civilização europeia.

O texto que escolhemos para discutir essasquestões foi produzido durante o períodomonárquico brasileiro. O autor, Menezes e Souza,autor de um livro chamado Theses sobre aColonização do Brazil (1875), relata os efeitos daimigração no Brasil Imperial e propõe, entre coisasquestões, melhorias nas condições materiais dosimigrantes já estabelecidos em solo brasileiro.Implicitamente, no capítulo que analisaremos, háalgumas propostas para os debates sobre a políticaimigratória que estava em discussão naquelemomento.

* Pós-doutorando pelo Centro de Pesquisas Sociossemióticas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Endereço de e-mail: [email protected]

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Alexandre Marcelo Bueno

Além da questão da mistura de determinadosgrupos imigrantes, há também no discurso deMenezes e Souza um processo de triagem queestabelece uma hierarquia do melhor e do piortrabalhador estrangeiro para o país, baseado emtemas como raça, capacidade para o trabalho,caráter (em termos passionais) e moralidade. Comoveremos, essa triagem é a operação responsávelpela diferenciação dos grupos a partir doestabelecimento dessas características que são,posteriormente, moralizadas tendo em vista o queseria supostamente melhor para o desenvolvimentoeconômico, cultural e social do país.

Temos, assim, como hipótese, a existência dediscursos que operam processos de misturadistintos já no nível tensivo, que seria responsávelpela articulação de valores, de dinâmicas sociaisdiscursivizadas e de avaliações sobre a qualidade eos defeitos de grupos imigrantes. Ao lado damistura, a triagem também teria um papelfundamental nesse tipo de discurso, poisestabeleceria a seleção e a consequente exclusão dedeterminados imigrantes nas considerações sobre apolítica imigratória que se desenhava naquelemomento histórico.

A seguir, trataremos da operação de triagem,como uma operação fundante do discurso deMenezes e Souza. Veremos, assim, como ela éresponsável pela distinção inicial entre os diferentesgrupos imigrantes para, em seguida, começar ahierarquizá-los por meio de diferentescaracterizações passionais.

2. Triagem e paixões: o delineamento dos imigrantes

A primeira questão posta pelo discurso deMenezes e Souza se refere ao operador triagem. Aoeleger uma determinada grandeza a partir da qualirá desenvolver seu discurso, o enunciador começaa fazer sua seleção para especificar sobre quaisimigrantes irá tecer suas considerações, ou seja,atribuir e delimitar as significações a cada grupo:

Não nos faremos cargo de analysar o caracter,os costumes e as tendencias de todos os povos dovelho mundo. Apenas passaremos em rapidaresenha os Allemães, Belgas, Suissos, Italianos,Hespanhóes, Portuguezes, Chins e Coolins e Anglo-Saxões1 (Menezes e Souza, 1875, p. 403).

A partir do momento em que a grandeza“imigração” entra em seu campo de presença, oenunciador começa a operar a triagem sobre elapara, em seguida, delimitar as nacionalidades quepassaram a fazer parte de suas considerações.Posteriormente, uma segunda triagem é aplicadapara destacar algumas “qualidades” passionais e

1 Mantivemos a grafia do texto original.

características voltadas para o trabalho de cadagrupo imigrante. Somente após essas duas triagensé que a mistura entra como operador que produzuma mestiçagem desejada ou rejeitada peloenunciador, como veremos adiante.

O discurso começa, então, a produzirdescontinuidades na grandeza “imigração” e arestringir os traços semânticos associados a cadagrupo imigrante (Fontanille; Zilberberg, 2001, p.29). A triagem produz, assim, unidades de sentidopara cada grupo imigrante a partir da noção maisgeral da imigração (Fontanille; Zilberberg, 2001, p.33). É dessa maneira que o discurso em análise vaidesenvolver os traços figurativos e temáticos, asações e as paixões de cada um dos grupos, emmaior ou menor extensão.

Iniciaremos nossa análise pela especificação dosimigrantes europeus, nos detendo em especial noimigrante alemão2. O trecho a seguir é a passagemde um texto (cujo título não foi informado) de J.Duval, em um procedimento de citação que permeiatodo o discurso de Menezes e Souza3. Nós oselecionamos para mostrar as consequências datriagem nesse discurso:

O Allemão, diz ele, obtem successo emigrando;ele tem o gosto e o talento da emigração. Paciente,perseverante, applicado, amando o trabalho pelotrabalho, passando facilmente de qualquer officiode artesão para a profissão agricola, supportandocom coragem, mas sem resignação fatalista, asprovas de uma situação nova, resistindo áoppressão em nome de seu direito, haurindo suaforça moral nas alegrias da familia, ambicioso edotado de aptidão para a administração municipal,elle reune em grao subido e raro a maior parte dasqualidades, que se asseguram a propriedade docolono (Duval apud Menezes e Souza, 1875, p.404).

Além da sanção já colocada no início doenunciado (“sucesso”), há dois pontos quegostaríamos de reter sobre o longo trecho anterior,ambos ligados à organização modal dos imigrantesalemães: sua competência para o trabalho e suaconfiguração passional. Para sermos mais precisos,a própria configuração passional contagia o fazer,uma vez que não é apenas uma operaçãoprogramada, mas uma disposição passional (isto é,um dispositivo modal aspectualizado) (Greimas;Fontanille, 1993, pp. 70-71) que o leva a ser maiscompetente para o trabalho.

2 Daremos atenção apenas aos alemães por eles terem um maiordesenvolvimento semântico e sintático no discurso de Menezes eSouza. Além disso, por serem considerados os melhores imigrantespara o país, eles servem como parâmetro ideal para comparar comos imigrantes entendidos como os piores para o Brasil, segundo o

ponto de vista do enunciador. 3 Não entraremos na questão da interdiscursividade e daintertextualidade porque não é esse o foco de nosso trabalho,apesar de reconhecermos a importância e a pertinência dessaquestão para a análise de discursos em geral.

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Nesse quesito, identificamos dois blocospassionais: um relacionado ao que podemoschamar de paixões do fazer ou que impulsionam ofazer, ligados a um querer-ser tônico (“ambicioso”),um fazer durativo e igualmente tônico(“perseverante”) e ainda um dever-fazer tambémtônico (“aplicado”). O outro bloco se refere a paixõesda resistência ou do que modernamente se chamaresiliência: uma espera prolongada e extensa(“paciente”) e um poder-ser durativo (“resistente”).

Todas as paixões lexicalizadas do discursoinstituídas em torno do imigrante alemão, juntas,constroem a sua identidade passional por meio do“contágio” (Fontanille, 2007, p. 218), ou seja, umaexpressão passional que desencadeia outras. Nessesentido, observamos que a constituição passionaldo imigrante alemão já desperta a simpatia e ointeresse do enunciador, aspecto que será melhordesenvolvido no tratamento da sanção e damoralização na parte final deste texto. Para omomento, mesmo sem uma análise exaustiva daconfiguração passional dos imigrantes (cada léxicodestacado comporta uma série de percursospassionais, modalizações e aspectualizações),podemos dizer que a identidade passional dosimigrantes alemães nos mostra que eles sãosujeitos regidos pela tonicidade e pela duratividade.

Quando passamos ao exame dos “Chins eCoolies”, as considerações advindas dacaracterização desse grupo, isto é, suasdelimitações passionais e de fazer, se contrapõem àimagem construída dos imigrantes alemães, comopodemos observar a seguir:

Os Coolis não resistem tanto á fadiga como osAfricanos, nem são tão assiduos e perseverantes notrabalho; aborrecem-se de repente da vida activa elaboriosa; fogem das situações ou das fabricas eentregam-se á ociosidade vagabunda. É baldadotodo o esforço, que se emprega para gerar no Coolishábitos sedentários; raro é que elle renove por um,dous ou tres annos o primeiro contracto, que fizerapor tres ou cinco annos, estipulando sempre aclausula de poder exigir repatriação (Menezes eSouza, 1875, p. 411).

Se os imigrantes alemães são regidos pelatonicidade, o mesmo não ocorre com os indianos.Eles são construídos como pouco perseverantes, ouseja, como dotados de um fazer átono e poucodurativo. A falta de duratividade e a atonicidadeperpassam a constituição passional dessesimigrantes: não resistem à fadiga, aborrecem-sefacilmente (são aspectualmente terminativos em seufazer) e são afeitos a fugirem das situações(subitaneidade que altera seu programa narrativo).

Esse conjunto passional pode, assim, serresumido por outro traço atribuído a eles nodiscurso: a ociosidade. Em outras palavras, essetraço pode ser entendido como um fazer átono, pelo

pouco investimento de forças dirigidas a uma açãovoltada ao trabalho produtivo. Em suma, oimigrante indiano é orientado pela atonicidade epela falta de duratividade em sua constituiçãopassional, o que interfere diretamente em seudesempenho no trabalho.

Em relação ao trabalhador chinês, o autordestaca a sua habilidade para o trabalho, mas aomesmo tempo mostra como passionalmente oimigrante chinês é mais suscetível a alterações dehumor:

São, o mais possível, industriosos, escrevia oconsul inglez de Shang-Hai, e podem resistir atrabalho diario, não como nossos trabalhadores daEuropa nos climas temperados, porém, muito maisque estes ultimos sob um sol tropical; entretantonão supportam um trabalho muito assiduo e seminterrupção, e ninguem consegue tambemprolongar-lhes esse trabalho além do tempo e datarefa, que lhes são habituaes (Menezes e Souza,1875, p. 418).

A duratividade do fazer do imigrante chinês ébastante curta, sendo equivalente à do indiano.Além disso, segundo o trecho anterior, o imigrantechinês não aceitaria qualquer tentativa demanipulação, na medida em que só realizaria otrabalho no limite do que ele consideravasuportável, ao contrário do que parece ser o esforçocontínuo voltado ao trabalho que caracterizaria otrabalhador alemão.

Em resumo, os imigrantes asiáticos seriamsujeitos átonos, com pouco vigor e dedicação para otrabalho por conta de sua disposição passional.Modalmente, pela alteração de humor apontadaanteriormente, podemos dizer que os asiáticos sãomais orientados pelo querer do que pelo dever, aocontrário do imigrante alemão. Isso porque osasiáticos não se submeteriam à carga de trabalhode um trabalhador alemão, seja pela suacompleição física, incapaz de acompanhar tamanhadispensa de energia, seja pela sua vontade em nãose “sacrificar” no trabalho, o que, do ponto de vistado enunciador, denotaria uma falta de capacidade eaté uma preguiça ligada ao trabalhador asiático.

Essas primeiras diferenciações decorrem deduas triagens que incidem sobre a grandeza“imigração”: a restrição a poucos grupos imigrantes(diante das possibilidades do momento históricoque o discurso é instituído) e uma segundadelimitação que se refere à caracterização de cadaum dos grupos imigrantes. Temos, assim, de início,duas consequências da operação de triagem: osimigrantes e suas características.

Quando o discurso se torna mais articulado,com categorias mais discretas, observamos ainstituição da oposição entre imigrantes europeus eimigrantes asiáticos que terá consequências nasanção e na moralização desses grupos. No entanto,

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antes de entrarmos nessas considerações, veremosa seguir como é encarada a possibilidade demistura desses dois tipos de imigrantes com asociedade brasileira.

3. A mestiçagem desejada e a evitada

Além da descrição das características dos gruposimigrantes, o discurso de Menezes e Souza articulaigualmente a questão da mestiçagem, entendidanaquele momento como uma mistura de raças queimplicava questões sociais, culturais, religiosas,morais e econômicas.

No que se refere ao imigrante alemão, o textoafirma que ele perderia o caráter “germânico” apartir da segunda geração, pois se misturaria àssociedades anglo-saxônicas. Em outras palavras, oimigrante alemão se fundiria à sociedade receptorade modo relativamente rápido. Contudo, o mesmonão ocorreria em relação a sociedades ibéricas, ouseja, a fusão do alemão com as raças latinasocorreria de forma mais lenta:

Perdem, porém, o caracter germanico desde asegunda geração, si se misturam ás sociedadesanglo-saxonicas, ao passo que a fusão é muitomais lenta com os ramos da raça latina, salvo coma franceza, que é dotada de grande poder deassimilação (Menezes e Souza, 1875, p. 405).

Nesse sentido, o processo de mestiçagemprecisaria considerar os elementos que estão emjogo no processo de fusão de diferentes populações,segundo o ponto de vista da época. Por possuíremtraços semânticos (que geram temas sociais,morais, religiosos etc.) mais próximos da sociedadede recepção, mais rápida seria a fusão dos grupos.Se os traços semânticos forem mais distantes, maislenta seria a fusão dos grupos, como é o caso dassociedades ibéricas em relação ao imigrante alemão.

O trecho anterior ainda suscita uma outraquestão: a de que haveria sociedades com mais oumenos capacidade para integrar o imigrante. Nessecaso, parece-nos que não se trata exatamente deuma fusão ou mesmo uma mescla, mas sim de umadiluição da alteridade, que se transformaria nomesmo, ou seja, na identidade, tal como é discutidapor Landowski (2002). De qualquer forma, o trechonos permite pensar em um processo mais ou menostônico de sociedades que dissolvem, com o empregode certa força, as marcas da alteridade em algumnível (cultural, linguístico, religioso, etc.).

No caso dos imigrantes asiáticos, o processo étotalmente diferente. Haveria uma dificuldade paraintegrar o imigrante asiático à sociedade derecepção. Para comprovar essa ideia, o texto deMenezes e Souza apresenta um trecho do texto deLeroy-Beaulieu:

Sob o aspecto social, acrescenta Leroy-Beaulieu, a emigração de Indianos e Chins tem os

mais deploraveis resultados; pertencendo esteshomens, não a sociedades primitivas, cujosmembros estão prestes a se fundirem, por instinctonatural, nas sociedades mais adiantadas, porém asociedades envelhecidas e decrépitas, conservamcom tenacidade seus habitos e costumes anti-europeus. Sua lingua, seu culto são obstaculosinsuperaveis a uma união com os outros elementosdas ilhas; é uma justa-posição de população, quenada justifica e nada attenúa; (Leroy-Beaulieu,apud Menezes e Souza, 1875, p. 413-414).

São, assim, a língua e a religião os elementosque impediriam a mistura da população asiáticacom a sociedade receptora. Resultaria da presençadesses imigrantes somente uma co-existência(justaposição) de grupos sociais distintos em ummesmo espaço. Em outras palavras, os grupospermaneceriam, no máximo, em contiguidade,dividindo um mesmo lugar. Isso tudo porque osasiáticos preservariam seus traços culturais e nãoaceitariam a cultura da sociedade de recepção,corroborando a questão do querer e do apego aosseus próprios valores que delimitam a suasociabilidade em terras estrangeiras.

Mesmo com essa visão, Menezes e Souzaespecula como seria a mistura de imigrantesasiáticos no Brasil. Ao realizar esse exercício deimaginação, o enunciador revela a sua principalpreocupação, que fica mais evidente no trechoabaixo, retirado de um trabalho de Nicolao JoaquimMoreira a respeito da imigração chinesa parareafirmar sua posição sobre esses imigrantes:

Que a raça chineza abastarda, e faz degenerara nossa é verdade anthropologica, que tem por si aautoridade de notaveis especialistas. A raçaeuropeia diz um desses autores citados pelo Sr. Dr.Moreira, harmonica na fórma, parece abater-se nacombinação com outras raças, pois que osmestiços patenteam sempre a constituição asiatica,arabica ou africana. Tudo é calmo e medido noscaracteres anatomicos da raça mãi; tudo éenergico, violento e accentuado nos signaesorgânicos das raças secundarias. Parece até,escreve tambem o eminente physiologista Berard,que certas raças imprimem mais fortemente do queoutras, seus caracteres nos descendentes. Assim, éque, quando os mongóes se misturam, ainda queem pequena proporção, com qualquer povo, estepermanece mongolizado por longo tempo (Moreira,apud Menezes e Souza, 1875, p. 419).

A inquietação, enquanto uma agitaçãodecorrente do temor (Fontanille; Zilberberg, 2001,p. 267), é gerada pela possibilidade vislumbrada doproduto final do processo de mestiçagem. Emespecial, sobre a ideia de fusão, pois a mestiçagemde um asiático com um brasileiro levaria a umadeterioração da sociedade brasileira cuja duraçãoexcede o desejo do enunciador. Assim, adegeneração biológica se estenderia também emuma degeneração da cultura, da moral e da políticabrasileiras produzidas pela presença e pela

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interação de trabalhadores asiáticos na e com asociedade brasileira.

Interessante notar, nesse discurso, como oimigrante asiático é, ao mesmo tempo, átono para otrabalho e nas paixões e forte o suficiente em suaconfiguração biológica para imprimir suas marcasno fenótipo da população com a qual se mistura. No

caso do imigrante europeu, temos o percursoinverso: é fraco em termos biológicos (seja oprocesso lento ou acelerado) e tônico em termos dedisposição passional para o trabalho. Colocamosessa relação no esquema tensivo para representarcomo funciona essa relação no discurso de Menezese Souza:

No trecho a seguir, Menezes e Souza revela o queele considera o seu ideal de mistura para asociedade brasileira. Como era de se esperar, são osimigrantes europeus que levarão o país a melhorarem seus aspectos sociais, raciais, econômicos eculturais por meio da mistura com a populaçãobrasileira:

O organismo brazileiro precisa ser retemperadocom sangue novo, genial, escaldando na febre doprogresso, e que lhe faça subir ao coração a seivada força, da energia, da mocidade. Como quereistransfundir-nos nas veias suco envelhecido eenvenenado de constituições exhaustas,degeneradas e refluindo do coração, que vibra lentae penosamente as palpitações da decrepitude, eque já sente próximos os symtomas da paralysia?

E si a fealdade physica não fosseacompanhada do enfraquecimento das faculdadesintellectuaes, ainda o mal não seria tão grande;não nos restará, porém, esse triste consolo;porquanto a degeneração moral estará na razãodirecta da degeneração physica (Menezes e Souza,1875, p. 420)

Tendo como pressuposto a insuficiência dasociedade brasileira, o que implica na necessidadede se trazer imigrantes para o país, observamos queo imigrante asiático seria o responsável pelalentidão, pela decrepitude e, por fim, pela paralisiada sociedade brasileira. Em outras palavras, o forteda constituição biológica seria o responsável pelaintrodução da fraqueza na constituição biológica (epor extensão cultural e moral) da sociedade

brasileira. Assim, o mestiço instauraria a fraqueza ea lentidão que levaria a sociedade brasileira àletargia, tal como já ocorreria com as sociedadesasiáticas. Já o imigrante europeu seria a novidade eo progresso necessários para colocar a sociedadebrasileira nos trilhos do desenvolvimentoeconômico, social, cultural.

Além disso, o trecho anterior ainda aponta paraa relação física e moral que o discurso vem tecendo.Assim, há uma homologação entre os aspectosfísicos e os aspectos morais do imigrante, cujaoperação nos remete à relação entre ética e estética,questões a serem melhor exploradas em um futurotrabalho. O que desejamos reter aqui é a atenuaçãoque o enunciador promove em relação à compleiçãofísica de uma população mestiça com a matrizpredominante do asiático rapidamente descartada,porque para ele é impossível dissociar tal relação.Mesmo assim, o enunciador revela que suapreocupação principal está na degeneração moralque essa mistura poderia produzir no país, o quenão deixa de ser um preconceito de sua parte.

Utilizamos a sintaxe analítica da mestiçagem, deZilberberg, para entendermos o processo presenteno discurso ora analisado. Partimos, assim, dasintaxe abaixo para analisamos essa questão:aproximação adjunção amálgama liga → → → →assimilação (Zilberberg, 2004, p. 85).

O que podemos observar, em relação aosimigrantes, é que a sintaxe inicia com aaproximação dessa grandeza, ainda separada, em

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relação à constituição de sentidos da sociedadebrasileira. Em seguida, ocorre a adjunção, em queessa grandeza permanece como uma contiguidadena qual o contato entre grandezas se inicia. Emseguida, há um amálgama, ou seja, uma misturaainda não totalmente bem resolvida. Depois, surgea liga, enquanto uma mistura que gera um novoproduto pela transformação e integração dessagrandeza externa. Por fim, há uma assimilação, queidentificamos como a fusão completa entre asociedade brasileira e os sentidos advindos dosimigrantes, gerando uma nova grandeza (Zilberberg,2004, p. 85).

No caso dos imigrantes alemães, a mestiçagemocorreria da seguinte maneira: a passagem daadjunção para o amálgama e, em seguida, para aliga ocorre de forma lenta ou rápida, mas gera umagrandeza nova e melhor, pela ótica do enunciador.No caso dos imigrantes asiáticos, parece-nos queela se interrompe no amálgama, seja pela forçabiológica do asiático seja pelo que ela produz deestranhamento para o enunciador.

Que mulheres serão no Brazil as cooperadorasdo cruzamento dessa raça? Só algumas escravas, eessas das de peior qualidade. Imagine-se o aspectophysionomico, a configuração e as condições dosorgãos, que offerecerá á vista e ao estudo oproducto hybrido de tão detestavel união! Si ocruzamento for com sangue caucásico, ficarão

impressos no filho os caracteres mongólicos(Menezes e Souza, 1875, p. 420).

O trecho anterior mostra como o enunciadorencara a mestiçagem dos imigrantes asiáticos: elaincluiria o produto dessa mistura à área do bizarro,que leva ao espanto e ao impacto revelados pelaexclamação contida no enunciado (Zilberberg, 2004,p. 87). Assim, o enunciador chama a atenção para oabsurdo que seria ter em solo brasileiro mestiçosgerados da união entre um asiático e um brasileiro,pois esse seria o caminho para a decadência e oatraso da sociedade.

Isso pode ser explicado a partir da ideia de que oimigrante não apenas se estabelece no país, masposteriormente interage e se mistura à populaçãolocal, levando a melhoramentos e a pioras em suaconstituição racial, social, cultural e econômica. Porisso, a melhoração da mistura leva, como mostraZilberberg, a um enriquecimento (ao menos doponto de vista do enunciador do discurso analisado)enquanto a mistura de uma grandeza má levaria auma profanação da constituição social brasileira, oque mantém a isotopia do espanto no discurso deMenezes e Souza (Zilberberg, 2004, p. 89).

Pelo que foi considerado nesta seção, podemosainda compreender a questão da mistura a partirdas propostas contidas no seguinte esquema(Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 37):

O discurso de Menezes e Souza trabalha com aquestão da compatibilidade e da adequação de cadaum dos imigrantes em relação ao seu papel nasociedade brasileira. Assim, apesar de especularsobre a mistura com povos asiáticos, o discurso deMenezes e Souza remete esse grupo à dêixis datriagem e, em especial, ao polo do incompatível,pois não haveria solução para a mistura entrepovos supostamente tão distintos em seus diversosaspectos, como a questão do bizarro parece já noster mostrado.

Já os imigrantes europeus preenchem os doistermos da dêixis da mistura: o compatível e oadequado. Contudo, na relação entre grandezas,retomamos a questão da lentidão do processo de

fusão do imigrante alemão em sociedades ibéricas.Assim, a adequação não é tão conforme como sepoderia desejar para um enunciador como Menezese Souza. Por ser, então, menos compatível eadequado, o processo de fusão é mais lento. Comona sociedade norte-americana haveria maiscompatibilidade e adequação entre as grandezas emjogo (como a religião, a constituição física/racial,etc.), o processo de mestiçagem que chegaria aoápice da fusão ocorre de modo mais rápido.

O imigrante asiático é construído como umindivíduo de difícil assimilação por ser consideradoincompatível, porque ele tem um forte apego à suacultura, aos seus hábitos e ao seu próprio grupo.Mas também há um desejo do enunciador em não

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contar com a mestiçagem desse grupo pelas razõesanteriormente descritas. A simpatia do enunciadorem relação ao imigrante europeu, sua resistência aoimigrante asiático e uma ojeriza ao mestiço dematriz asiática vão também interferir em seusprocedimentos de moralização e em sua confiança,conforme trataremos a seguir.

4. Moralização, fidúcia e campo de presença

Além das sanções presentes em trechosanteriormente citados, veremos nesta seção como arelação entre moralização e fidúcia do enunciadorsurge a partir do ingresso dos imigrantes em seucampo de presença.

Vínhamos examinando o discurso de Menezes eSouza por meio do uso dos operadores triagem emistura. Outro aspecto do discurso que pode serexplorado está ligado ao campo de presença. Assim,após delimitar, selecionar e restringir o tema daimigração a alguns grupos e a suas características,por meio da triagem, o enunciador passa aapreender e a focalizar os objetos que se formam emseu horizonte tensivo.

Como afirmam Fontanille e Zilberberg, há umarelação entre o foco e a apreensão e os operadorestriagem e mistura. Entendendo a noção inicial deimigração como uma grandeza, observamos como oenunciador rapidamente passa da apreensão para ofoco dessa grandeza com a especificação de seusconstituintes (a delimitação das nacionalidades aserem consideradas em seu discurso). Em seguida,com o desenvolvimento das características de cadagrupo imigrante, o enunciador volta a apreendercada uma delas enquanto sentidos fechados easpectualmente terminativos (do ponto de vista doprocesso global de discursivização). No entanto, odiscurso volta a promover uma abertura dossentidos quando o enunciador trata da questão damestiçagem, em que ele realiza um trabalho deespeculação sobre as possibilidades da presençadessa alteridade no Brasil e sobre suasconsequências para o país por meio da focalizaçãodesse processo (Fontanille; Zilberberg, 2001, pp.129-130).

Tomando, assim, os imigrantes europeus e osimigrantes asiáticos como dois grandes blocos desentidos entrelaçados que resultam na discretizaçãono nível fundamental a partir dos operadores foco eapreensão, percebemos como o texto homologa aoposição entre europeus e asiáticos a partir dasnoções de novo e antigo (do ponto de vista doobjeto), de atual e ultrapassado (do ponto de vistado momento de referência temporal da enunciação)(Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 128). Essasrelações podem ser melhor depreendidas noseguinte trecho:

Queremos progresso e o Chim representa oregresso; queremos luz e o Chim symboliza a treva;queremos moral e o Chim é a encarnação datorpeza e da devassidão; queremos liberdade e oChim é imagem do despotismo theocratico – a maisintoleravel das autocracias; queremos vida e oChim nos aponta para a inacção e para aimmobilidade – sensibilização aterradora da morte;queremos robustez do corpo e virilidade de forças eo Chim na taça de opio e no insipido pilau nosmostra os mais debilitantes enervadores do vigorphysico e da energia moral; queremos culturaadiantada e inteligente e o Chim considera aenchada e a charrúa primitiva como osinstrumentos mais aperfeiçoados, e os processosagricolas do tempo de Confucio como a ultimapalavra da sciencia agronomica; queremoscaminhar pela estrada do futuro com a celeridadedo wagon e o Chim entende que o palanquim é oideal da rapidez e a esse systema pretende ficarligado até a consummação dos seculos (Menezes eSouza, 1875, p. 422).

O asiático sintetiza o atraso e o regresso. Suapresentificação no espaço físico e social brasileirorepresenta a instauração de um tempo passado quenão se coaduna com os anseios do enunciador.Para este, apenas a presença de imigranteseuropeus no Brasil poderia realizar seu desejo deprogresso para o país. O que está, de certa maneira,em discussão no discurso de Menezes e Souza é atentativa de se fazer o país entrar no rol dos paísesconsiderados mais civilizados e avançados doplaneta.

Esquematicamente, os dois quadrados abaixonos permitem refletir sobre essa relação temporalentre os dois blocos imigrantes:

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O imigrante asiático está do lado da dêixis daprecariedade, pois representa o que é antigo e,principalmente, o que é decrépito e envelhecido,como vemos no trecho já citado: “pertencendo esteshomens (...) a sociedades envelhecidas e decrépitas”

(Leroy-Beaulieu, apud Menezes e Souza, 1875, p.413).

O outro quadrado se refere aos imigranteseuropeus e, em especial, ao imigrante alemão comosíntese do progresso desejado pelo enunciadorenquanto uma projeção para o futuro:

Assim, o enunciador antecipa-se à possível“tragédia” que a entrada de imigrantes asiáticospoderia produzir para projetar um futurosupostamente melhor para a sociedade brasileira.Se no seu momento atual ele revela uma certaimpaciência, a ponto de se espantar com apossibilidade de se contar com sujeitos mestiços noBrasil, o seu futuro requer, justamente, a paciênciapara contar com os supostos benefícios advindos deuma mestiçagem lenta, no caso do imigrantealemão, pois eles são justamente sujeitos do saber-esperar.

Nesse quesito, o que se observa no discurso deMenezes e Souza é o desejo de o enunciador contarcom a presença desse grupo imigrante no país e,como vimos, o desejo da exclusão de outros gruposimigrantes. Esses aspectos ficam mais clarificadoscom a moralização desses diferentes grupos.

Entendida como o julgamento de uma “maneirade fazer ou uma maneira de ser” (Greimas;Fontanille, 1993, p. 149), a moralização recai sobreos excessos e as insuficiências passionais dossujeitos. No caso do discurso examinado, amoralização se projeta sobre a disposição passionaldos imigrantes europeus e asiáticos. No caso doseuropeus, a tonicidade é valorizada peloenunciador, pois eles que levam o trabalhadoralemão à dedicação e à disciplina laboral. Alémdisso, o europeu é também moralizado pela suaharmonia física e pelo seu vigor moral: “Tudo écalmo e medido nos caracteres anatomicos da raçamãi” (Moreira, apud Menezes e Souza, 1875, p.419).

Já os imigrantes asiáticos são julgados pela suainsuficiência voltada para o trabalho, pela suacompleição física fraca e pelo seu desinteresse emse dedicar ao trabalho. São também destacados nos

asiáticos os seus vícios, compreendidos no discursocomo um excesso:

Ainda que um grande grupo d’entre elles seja denotavel doçura, muitos outros, estranhos áqualquer lei religiosa e social, são familiares comtoda a especie de crimes-roubos, sedições,incendios, assassinatos; - praticam monstruosasdevassidões, que escapam á acção da justiça, eque, nem por isso, são menos aviltantes para apopulação (Duval, apud Menezes e Souza, 1875,p. 412).

O excesso de seu vício (“monstruosasdevassidões”) é pontuado de forma tão intensa pelodiscurso que ele seria o responsável pelaescapatória dos os asiáticos em relação às leis.

Como a paixão é sempre intersubjetiva (Greimas;Fontanille, 1993, p. 15), podemos dizer que oimigrante europeu desperta no enunciadorsimpatia, apreço e confiança. Já o imigranteasiático mobiliza as paixões da antipatia e dadesconfiança, enquanto o mestiço causa ojeriza noenunciador. Em suma, a relação entre o imigranteeuropeu e o enunciador é a da atração, enquantocom o asiático e o mestiço é a da repulsa.

É por meio dessas paixões que a fidúcia e amoralização parecem possuir uma relação direta nodiscurso de Menezes e Souza. O enunciador mostrauma confiança em relação aos imigrantes alemães,decorrente da maneira de ser e de fazer, uma vezque eles são aplicados ao trabalho e possuem umasolidez moral. Por isso, sua mistura com apopulação brasileira seria boa para o país,sobretudo quando criasse uma nova grandeza coma fusão entre os povos. Por outro lado, osimigrantes indiano e chinês são mostrados comopouco confiáveis justamente porque eles sãoapontados como sujeitos efêmeros, que não

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cumprem seu contrato, fazem pouco para realizarseu trabalho, além de serem corporalmente fracos emoralmente excessivos.

Por isso, podemos dizer que a confiança doenunciador em relação ao imigrante alemão seassenta sobretudo na noção de solidez (de caráter,sobretudo) porque ela é durável (e durativa),

enquanto uma capacidade necessária para odesenvolvimento do país com o que há desupostamente melhor em termos humanos. Já adesconfiança no imigrante asiático se deve à suaprecariedade, pois este já teria dado provas de que éfrágil e efêmero, constituído por forças dispersivas(Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 275):

A partir, então, dessa relação passional,Menezes e Souza estabelece sua hierarquização dosgrupos imigrantes. Como afirmam Fontanille eZilberberg, a pejoração visa a “excluir participantes”e a melhoração pretende “fazer com que excluídosparticipem” (2001, p. 27). Assim, a pejoração incidesobre os imigrantes asiáticos e a melhoração sobreos imigrantes europeus, como esperamos ter ficadoclaro em nossa análise. Uma das razões para essasoperações está ligada à construção discursiva dosimigrantes. De um lado, os imigrantes asiáticos,com poucas qualidades eufóricas, devem então serexcluídos do processo imigratório em discussão. Deoutro lado, os imigrantes europeus, por suasqualidades de caráter e por serem trabalhadores

competentes, são aqueles que devem entrar nasconsiderações de uma política imigratória quedeveria encontrar meios de incentivar sua entrada eestabelecimento.

Além da pejoração, a proposta de Menezes eSouza é a de excluir os imigrantes asiáticos doprocesso imigratório daquele momento. A principalrazão para isso é por visar o estabelecimento deuma sociedade livre de elementos desconectados deuma pureza baseada em imigrantes brancos,europeus e com matriz religiosa cristã.

Nesse sentido, o esquema abaixo parece darconta da explicação desse processo que tem comoponto central os valores e os desejos do enunciador(Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 52):

Dessa forma, a pejoração prevê a delimitação dapresença de imigrantes asiáticos em solo brasileiro,segundo a proposta do autor, cujo limite é a purezaproduzida pela exclusão. Do lado dos imigranteseuropeus, a melhoração produziria o acréscimo doselementos “bons” desses imigrantes na sociedadebrasileira e, em seu limite, a participação ampliada

dos europeus poderia levar a sociedade brasileira ase tornar equivalente de uma sociedade europeiaqualquer, em um princípio de universalização cujofoco são os valores de universalidade (de matrizocidental) (Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 52).

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5. Considerações finais

Tudo o que foi dito a respeito do texto deMenezes e Souza poderia ser resumido por meio dalógica da implicação. Mais especificamente, de duasimplicações que orientam o seu discurso: “Se oimigrante é europeu, ele é bom para o Brasil / Se oimigrante é asiático, ele é ruim para o Brasil”.

Dessa maneira, o discurso de Menezes e Souzacomeça com a triagem para separar “o joio do trigo”em termos de qualidade imigratória para, emseguida, tratar da mestiçagem em ambos os grupos,pendendo suas preferências para o grupo europeuem detrimento dos imigrantes asiáticos. Nessesentido, o discurso de Menezes e Souza, ao incluiros imigrantes asiáticos em suas considerações,mesmo para negá-los, possui uma riqueza desentidos que nos permite depreender comofuncionava o racismo no século XIX.

Baseadas em teorias científicas para a época, adistinção e a hierarquização de diferentes “raças”eram fundamentadas em estudos de antropometriaque associavam, por exemplo, o tamanho e oformato da cabeça à inteligência e à moralidade dedeterminadas “raças” em detrimento de outras.Nessa hierarquia de povos, os caucasianosocupavam o topo da escala, seguidos de asiáticos eafricanos. Esse tipo de pensamento eugenistaperdurou por muitas décadas, sendo encontradosalguns de seus elementos ainda na década de 1930no Brasil.

Além disso, esse pensamento, mesmo que nãototalmente assumido, orientava as decisões daselites políticas sobre diversos assuntos, como aconstituição racial da sociedade brasileira e aspolíticas imigratórias, como nos mostraelegantemente Octávio Ianni:

“(...) as ‘elites’ brasileiras decidiram priorizar aimigração de ‘europeus’, ‘brancos’, ‘ocidentais’,membros da civilização ‘ocidental-cristã’, relegandoas populações nativas ou indígenas, os africanos eos seus descendentes e, inclusive, os orientais. Foiuma política imigratória de cunho ‘arianista’,inspirada no ‘darwinismo social’ do evolucionismodo pensamento europeu em apogeu na época”(Ianni, 2004, p. 156)

O discurso de Menezes e Souza se inserejustamente nesse universo discursivo. Mesmo comuma postura cientificista, não podemos eximir oautor da atribuição de um preconceito de sua parte.

Assim, ao acompanhar as opiniões advindas daEuropa, ele nada mais fez do que reproduzi-las paraconfirmar aquilo que já sabia de antemão: que osimigrantes asiáticos não eram bons para paísnenhum, sobretudo para o Brasil. Produto dopensamento de seu tempo, Menezes e Souzaconfirma (ou antecipa) uma espécie de antropologiasocial que orientaria a política imigratóriabrasileira, a ponto de, por exemplo, a imigraçãojaponesa ser a mais tardia de todos os grandesgrupos que vieram para o país. Essa imagem dostrabalhadores imigrantes asiáticos só foi revertidaao longo do século XX, sobretudo após a suasegunda metade do século.

De nossa parte, cabe a nós o trabalho deexaminar e compreender a organização dos sentidosque orientaram determinadas ideias no camposocial. As propostas da semiótica tensiva nospermitiram, assim, observar esse objeto de umlugar epistemológico que aponta para outrasquestões talvez ainda não tratadas em camposteóricos em que a mestiçagem social encontra ummaior espaço de discussão, como a Sociologia, aAntropologia e a História. Assim, as modulações dossentidos, interrupções de processos e a questão dapaixão no discurso que se considera “científico”podem ser um modo de inserir a Semiótica nasdiscussões das já mencionadas grandes áreas doconhecimento humano, com suas especificidades eseu ponto de vista particular.

De qualquer forma, esperamos ter mostradocomo a mistura e a triagem operam em um discursocujo foco é a discussão de um tema social e políticoimportante para a história do país. Além disso,esperamos ter mostrado como é possível desvelar asoperações de triagem que, com a ascensão doconceito positivo de mestiçagem, passaram a serocultadas na história recente do país, conformeaponta Fiorin:

A cultura brasileira euforizou de tal modo amistura que passou a considerar inexistentes ascamadas reais da semiose onde opera o princípioda exclusão: por exemplo, nas relações raciais, degênero, de orientação sexual etc. A identidadeautodescrita do brasileiro é sempre a que é criadapelo princípio da participação, da mistura. Daí sedescreve o brasileiro como alguém aberto,acolhedor, cordial, agradável, sempre pronto a darum “jeitinho”. Ocultam-se o preconceito, a violênciaque perpassa as relações cotidianas etc. Enfim,esconde-se o que opera sob o princípio da triagem(Fiorin, 2009, p. 124).

Referências bibliográficas

De Luca, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.

Fiorin, José Luiz. A construção da identidade nacional brasileira. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1,

n. 1, p. 115-126, 2009. Fontanille, Jacques. Semiótica do Discurso. Trad.

Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2007.

Fontanille, Jacques; Zilberberg, Claude. Tensão e Significação. Trad. Ivã Carlos Lopes; Luiz Tatit; Waldir Beividas. São Paulo: Discurso

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Editorial/Humanitas, 2001. Greimas, Algirdas Julien; Fontanille, Jacques.

Semiótica das Paixões. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993.

Ianni, Octávio. Pensamento social no Brasil. Bauru:EDUSC, 2004.

Landowski, Eric. Presenças do Outro. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002.

Menezes e Souza, João Cardoso de. Theses sobre a Colonização do Brazil. Rio de Janeiro:

Typographia Nacional, 1875. Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças:

cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Zilberberg, Claude. As condições semióticas da mestiçagem. Trad. Ivã Carlos Lopes. In: Cañizal, Eduardo Peñuela; Caetano, Kati Eliana (orgs.). Oolhar à deriva: mídia, significação e cultura. São Paulo: Annablume, 2004, pp. 69-101.

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Dados para indexação em língua estrangeira

Bueno, Alexandre Marcelo.Metissage et immigration: tri et melange dans un discours du XIXe siècle.

Estudos Semióticos, vol. 12, n. 2 (2016)issn 1980-4016

Abstract: Cet article vise à discuter le processus de métissage par rapport aux discussions surl'immigration du XIXe siècle au Brésil. Pour cela, on utilise des éléments conceptuels de la sémiotiquetensive, en particulier les concepts tri, mélange et champ de présence pour examiner comment les passionssont construite sur différents groupes d'immigrants et comme la moralisation est projetée sur lui. Dans lecadre de l'analyse, on a proposé à deux processus de métissage différents impliquant des questions tellesque aspectualité de le processus qui détermine rapidement ou lentement le mélange et la tonicitéconcernant les aspects biologiques qui guide l'interruption du processus. En outre, on considère égalementles éléments caractéristiques de chaque groupe d'immigrants impliqués dans le mélange proposé par lediscours comme un moyen de percevoir les variations aspectualités Pour la notion de champ de présence,on a été proposé sa relation avec la moralisation comme un moyen de comprendre les sympathies et lesantipathies de l'énonciateur pour les différents groupes d'immigrants présents dans son discours. Enfin, onvise à discuter de certaines questions environ le phénomène de métissage qui ne sont pas observées dansautres domaines de la connaissance portant sur le même sujet.

Keywords: immigration; mélange; tri; champ de presence; moralisation

Como citar este artigoBueno, Alexandre Marcelo. Mestiçagem eimigração: triagem e mistura em um discurso doséculo XIX. Estudos Semióticos. [on-line].Disponível em: ( http://www.revistas.usp.br/esse ).Editores responsáveis: Ivã Carlos Lopes e JoséAmérica Bezerra Saraiva. Volume 12, Número 2,São Paulo, Dezembro de 2016, p. 47-57. Acessoem “dia/mês/ano”.

Data de recebimento: 20/02/2016Data de aprovação: 25/06/2016