o desconhecido
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Poesia em prosa, por vezes prosa poética, com laivos de simbolismo, cubismo e impressionismo, mas também com traços absctractos e muito non-sense.TRANSCRIPT
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O D E S C O N H E C I D O
[ v a l v e s ]
2
O D E S C O N H E C I D O
[valves]
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1.01
“Entrai, entrai, meus senhores, minhas senhoras, entrai, meninos e me-
ninas!… É entrar, ‘que lá dentro mundos fantásticos vos esperam; coisas
nunca antes vistas; cenários impensáveis que vos deslumbrarão!… Entrai to-
dos! Entrai e não vos arrependereis! Entrai! – Faça favor, avozinho! – Entrai
e de nada mais precisareis! Podeis cá deixar tudo, pois tudo lá é vão… Rou-
pas, tesouros, pedras preciosas, tudo – entrai e ve-reis que todos os vossos
bens foram até hoje inúteis… Entrai sem receio de algo cá fora deixarem, si-
gam em frente pra sempre, todos – vós também, meus meninos… sim, lar-
gai aqui esses rebuçados sem préstimo lá dentro! – Venham todos, venham,
venham todos: o espectáculo está prestes a começar! Há gás lacrimogéneo
pra todos!… E que as vossas lágrimas sejam a nossa alegria!”
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1.02
Não são tempos de epopeias, estes. Outras sagas, portanto, ocupam os
dias que passam. Não que os feitos presentes manchem a memória dos pas-
sados, ou que faltem aos heróis da actualidade o brilho e a dimensão dos
outrora celebrados. Há, pois, mármore – e do mais fino grão, embora, para
descobri-lo, necessário se torne investigar, revolver as mesmas montanhas
pedregosas de sempre, rios de sedimentos e pó. Sedimentos e pó. E, como
não há míngua de cinzéis e se multiplicam os braços que os empunham, se-
rá com inteira propriedade o procurar nos dias que passam os motivos por
que passam sem epopeias.
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1.03
É urgente dizer basta!
Sim: – É urgente dizê-lo e mais urgente é gritá-lo e de repente levá-lo
a toda a gente em todo o mundo e sem perder um segundo num segundo
dispersá-lo tão depressa como um grito tão aflito como urgente que se bas-
ta logo após ser dito.
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1.04
Há sempre, sempre, a possibilidade de o erro chegar por ele próprio,
instalar-se de livre vontade, comer, beber, dormir e fumar desmesurada-
mente e sem controlo, divertir-se sem eira nem beira e, no fim, partir. Partir
para onde calhar e sem destino certo, deixando que o acaso lhe percorra as
entranhas por puro prazer, e andar por aí livremente para, depois, mais tar-
de – muito mais tarde, quando for tarde demais, – regressar ao caminho
certo que já percorreu. O erro é assim, embora não acredite em nada e em
ninguém, nem mesmo em si próprio. Deixa-se envolver, envolvendo; ladra,
mas não morde; rejeita todos, mas a todos se submete, fingindo recusar
essa submissão; muda-se, ficando; vive, matando-se – mas em tudo isso o
erro é erro e, portanto, verdadeiro.
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1.05
O texto deve ser como um círculo ou um triângulo – preciso. O texto é
uma figura geométrica e, como tal, é perfeito. E, como todas as coisas per-
feitas, é também perene. Cai, caduco, seco, no chão.
Um texto vale como um texto – é essa a sua precisão. Um texto é uma
coisa que se usa como um fato: veste-se por fora e por dentro reveste-se.
Tal como um círculo ou um triângulo.
Os círculos ou os triângulos são como são todos os círculos ou todos os
triângulos – sendo. E, enquanto são, acabam sempre como começam – num
ponto. O texto cai, caduco, seco, no chão.
Num ponto desse chão está o centro de círculos e de triângulos: todas
as figuras geométricas precisam de um centro, tal como todos os textos. E é
desse centro que todos – textos, círculos e triângulos – partem para os seus
fins, centro fatal da sua perfeição.
***
Havia um artista no seu atelier. Um artista fechado no seu atelier fe-
chado. E ele pintava um quadro até à exaustão. E depois fotografava o qua-
dro pintado até à exaustão. Destruída a pintura, revelava a película, amplia-
va a película e expunha a si próprio a fotografia do seu quadro pintado até à
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exaustão. Tudo isto era filmado antes da fotografia ser rasgada e a fotogra-
fia rasgada também era filmada. Imediatamente e sem montagem, rodou o
seu filme sobre uma tela branca. E partiu a tela branca. E quebrou a câmara
e queimou o filme. E tudo isto filmou numa outra câmara montada à porta
fechada do atelier fechado onde havia um artista a filmar tudo isto.
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1.06
O abismo absoluto nasce de coisas tão simples como seja a sensação
de conduzir um automóvel por uma estrada abaixo no meio da serra com os
olhos fechados. Nesse instante, os dedos que se agarram ao cabedal duro
do volante contêm em si toda a força da vida a desprender-se em estilha-
ços. Num simples segundo, um clarão negro infiltra-se pelo corpo adentro e
num estremecimento brusco atravessa os contornos físicos do condutor co-
mo se fosse a lâmina fria de uma navalha brilhante. No limite mínimo da
fracção que não existe já, fica um eco no espaço vazio do grito, suspenso
para sempre. E quando o precipício se lança aberto à nossa cara e a nossos
pés se estende, profundo, bem profundo… Eis que abrimos os olhos e a sen-
sação se perde, resvala oca e sem sentido pelos penhascos da nossa alma
abaixo.
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1.07
Com o suor na testa branca, sábio como os reis das histórias nocturnas,
o coveiro abria a cova funda, cansado e com fulgor. No instante em que ba-
tia com o ferro no marfim podre, repensava a sua vida, abstracto e sem pa-
vor. E a tarde caía-lhe em cheio sobre os ombros largos dobrados pelo calor.
Aconteceu chegar ao final da cova e olhar aquele chão, que era igual à
terra de todos. O sol diagonal penetrava nas entranhas do buraco a desco-
berto. Só, no meio do deserto, encosta a pá à parede escura, futuro reino
de um alguém incerto. Decidiu comer uma fatia.
E o sono ao fim do dia chegou ali por perto. E farto de esperar pela vi-
da, dormiu um pouco enquanto morria. Dançou com a lua atormentada.
Acordou vazio e ouviu os vermes esfomeados que lhe roíam uma fatia. Pe-
gou na pá e na enxada e regressou a casa pela estrada, porque chovia.
***
Chove, chove, chuva, chove, chove mais perto de mim – envolve-me
em tuas lágrimas de chuva que da chuva em chuva brotas. É que são tuas
as mais reais e lacrimosas lágrimas que alguém por algo chora.
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Chove, ó chuva, chove cada vez mais eternamente. Deixa-me, sem pe-
jo, nas tuas lágrimas incontidas e sem desejos banhado. Porque se choves
tantas lágrimas sem choro sobre quem nada tem para chorar, é porque cho-
ves para de algo mais chorares.
Chove e chora, ó dilúvio, em dilúvio sobre mim, que nunca chovo e
nada choro. Chove e chora agrestes lágrimas de chuva. Mas não chores por
mim, ou chovas, e por mais nada, que não merece. Chora por ti, ó chuva,
que já não mais sabes chover.
13
1.08
(A ninguém)
Onde estão os jovens? Onde está a nova explicação?
Cada vez mais me sinto só, mais distante dos caminhos que na rua se
cruzam. Fechei-me nesta sensação um tanto estranha de os não conseguir
encarar, assim, sem deixar no ar este impávido olhar de leve loucura. Um
pouco tarde, encontrei o desespero.
Lá fora, sempre existe um rumo, mesmo que para parte nenhuma,
mesmo que sem destino; um desejo de se terem desejos… Aqui, não. Aqui,
apenas um refém de si mesmo algo cansado já da sua vida. Um espectador
inerte e obscuro no desalento de todas as causas em ruínas ao nascer.
Sim, onde estão os jovens? Porquê esta inútil esperança ainda?
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1.09
Os cientistas pensaram ter descoberto a saída do subterrâneo, região
sombria onde a comunidade estivera encarcerada – pobre gente miserável,
aquela! Para o efeito, construíram uma frágil ponte à custa dos materiais en-
contrados ali à mão. A estrutura, convictamente escorada, agradou à multi-
dão, ansiosa por se libertar de tão sinistro lugar. E conseguiu: foi povoar
uma outra cavidade, só que muito mais vasta, ampla e arejada, programada
desde então até ao mais ínfimo pormenor para responder às desilusões de
qualquer um. Foi daí que todos viram ruir a dita ponte. Nessa altura, os que
haviam rejeitado esse novo lugar já tinham virado costas há muito e partido
em busca de outros acessos que os levassem para longe. Esses poucos tra-
balham agora de sol a sol numa ilusão talvez impossível: uma nova ponte –
mais robusta, mais possante e capaz de suportar a multidão, caso um dia
ela aceite conhecer o outro lado da caverna. Só que a multidão está a au-
mentar, e são cada vez menos os construtores de pontes.
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1.10
“Mas eu não quero ir”, gritava no meio da penumbra verde, forçado a
caminhar por sítios completamente estranhos e nunca antes visitados na
memória. “A minha direcção é outra”, dizia, tentando convencer em vão
aqueles que me puxavam sem fim. “Larguem-me, que estou prestes a entrar
num outro mundo, um mundo diferente daquele que me foi dado conhecer
até hoje e no qual acredito ser possível a felicidade”. Mas eles não ouviam e
continuavam a sua missão envoltos em alvos lençóis brancos, imaculados.
Durante menos de um instante hesitaram, os seus braços perderam a tena-
cidade e o vigor impostos à luta e quase foi possível acreditar que cederiam.
Mas tal não aconteceu e aqueles seus tentáculos viscosos grudaram-se ain-
da mais à pele nua, arrancada à força da própria cama, refúgio aconchegan-
te e fofo mas que, agora, se mostrava cada vez mais afastado, irremediavel-
mente perdido para sempre.
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2.01
Sinto o meu corpo a tombar – é cansaço, com certeza. Vejo-me caindo
muito lenta, len ta men te… Sinto os membros adormecerem num torpor ful-
minante. O ar não me sustém e lá vou eu…
Quem me dera este vácuo preencher! Entranha-se em mim esta mole
rigidez, pacificamente esquecida. Derretem-se borrachas a arder, suspensas
por momentos, libertas para sempre… É horrível este odor feroz a flutuar!
Sinto-me embotado, sem acção. O meu rosto perde a cor. Desfaleci-
mento. Inconsciência… Esvoaça uma pena branca – vertigem estonteante…
A luz cessou: apagam-se-me as lembranças da vida. Pressinto uma queda,
um ligeiro rumor… Adormeço finalmente: mas em pânico e sem destino.
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2.02
Sento-me num valeiro profundo entre silvas, carvalhos e salgueiros.
Além, um loureiro em tronco nu e gravetos partidos espalhados pelo chão.
Defronte, um regato de águas ferrugentas murmura baixinho secretos sons
incompreensíveis (se ele soubesse falar não falaria tão bem…) Por vezes, o
seu leito separa-se, procurando novas rotas, sempre em contorções, mas,
adiante, volta a unir-se num só, como num simples toque de ternura. O lo-
do, alaranjado-ruivo, exala pela atmosfera o seu odor inconfundível (e como
declama este seu silêncio…) No meio do quadro, discreto, aproxima-se um
casal de piscos, galho após galho, trazendo consigo – vá-se lá saber porquê
– todas as melodias célebres do seu reportório incriado. Verde, verde mes-
mo, só a sombra imensa das folhas de louro, se um dia chegarem a nascer
(lembranças da minha infância, da minha infância perdida – para onde fos-
tes vós?) Poisado sobre uma escarpa vertiginosa, o céu… – Bom, o céu é
uma suja massa branca, mosaico em estilhaços apenas entrevisto através
das finas ramagens dos castanheiros ainda por florir.
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2.03
O seu amor por ela era infinito. Mas bastou uma palavra…
Foi o dia do seu fim esse em que pela primeira vez a seus olhos lhes foi
dado conhecer os dela: eram mistério! Haviam recebido da luz o brilho com
que para sempre o iluminaram. E faiscaram terríveis auroras de sonho e de
prazer naquela hora. De repente, sentiu-se a renascer o seu mesquinho ser.
Ele que, até aí, fora um suave e lento regato no seu leito calmo, trans-
formou-se numa sinfonia apoteótica de largos rios correndo livremente para
o mar através de fragas e bosques grandiosos. Ele que sempre vivera no
seu recanto imperturbável diante de rebanhos de ovelhas dolentes pastando
nas encostas solitárias, viajou então, de rompante, para terras distantes e
desconhecidas onde vastos palácios doutros tempos eram abertos ante si,
magnificamente ornamentados, cintilantes, soberbos; a pacata existência
que levou até esse momento por entre vidas cinzentas sempre iguais, apa-
gadas em ruelas tristes, frias, foi lançada ao vento, aos pinotes, dando pi-
ruetas no ar numa dança estonteante, loucamente embevecida por este no-
vo sol que a assaltou. Tinha descoberto o amor!
Teria uns treze anos castos ela. O seu cabelo longo, muito longo e on-
dulante, espraiava-se preguiçosamente sobre os ombros, beijando aqueles
braços brancos, despidos, finíssimos. Um a um, desciam os cabelos ao aca-
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so, brincalhões, acariciando-lhe o pescoço, deslizando sobre a blusa rosada,
caindo lentamente pelas costas abaixo, uns, enquanto outros, mais atrevi-
dos, escorriam como lágrimas pelas faces e destas saltavam com cuidado
para os seios pequeninos, tacteando-os devagar, adormecendo então, satis-
feitos, quase junto à cintura.
Era a do trigo em julho a cor dos seus cabelos; um ouro quase púrpura
que se esvaía em tons indefiníveis e que se multiplicavam a cada olhar, in-
cessantemente, pedra preciosa que distribui reflexos difusos à vida. Um ren-
dilhado de cores desfazendo-se, refazendo-se e de novo voltando a desfa-
zer-se, sem parar, como que a chatear quem quisesse percorrê-los com os
olhos…
O rosto, enfim. Um rosto claro, pequenino, levemente arqueado, oval –
seria com certeza perfeito, se perfeição alguma houvesse em alguma coisa.
Ali, a brancura leve daqueles tons e o recorte subtil dos lábios vermelhos,
delicados mas vivos, emanavam uma claridade ofuscante, quase transcen-
dente. Os ângulos fortes, fulgurantes, que explodiam ao longo do seu quei-
xo – perfil sublime!, – atiravam um qualquer mortal para o abismo, numa
ânsia derradeira.
Havia também certos traços invisíveis, estranhos, prestes a gritar de-
sordenadamente nas ruas em pregões à beleza. E então surgia o seu discre-
to, afilado e esquecido nariz – mas, ao mesmo tempo, um nariz que, em
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denúncia ou em domínio, mostrava uma espantosa altivez interior ou talvez
somente um profundo desinteresse pelas máculas que à sua volta terão sido
derramadas.
O seu nome? Chamem-lhe… Chamem-lhe...
Sim, o seu amor por ela era infinito. Mas bastou uma palavra.
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2.04
Queria tanto, muito, dizer que te amo e que me sinto feliz quando jun-
to a ti – queria poder exprimir palavras de carinho e dizer-te baixinho o teu
calor faz-me explodir – queria, quero!, sonhar contigo e com o teu corpo
despido e estremecer só de olhá-lo – queria gritar pelo mundo fora o teu no-
me em toda a parte e rir-me de satisfação por isso – queria rebolar-me de
prazer contigo e entrar por ti adentro como quem entra no paraíso – queria
muito, tanto, no teu sorriso poder gravar palavras vermelhas, quentes, hú-
midas, e deixar os teus lábios cobertos de amor – queria e quero para mais
além partir, quebrar todas as barreiras e romper todas as fronteiras e tu co-
migo a meu lado – de mão dada viver e correr todos os lugares e, contigo,
morrer de desejo por muito, muito mais – queria ter o encanto de te encan-
tar ao dizer coisas bonitas como a menina dos meus olhos está nos teus –
queria a teus pés me deitar, no teu colo enroscar-me e nos teus braços, fe-
liz, adormecer – queria saltar de alegria e de mim soltar as orquestras em
folia que se agitam só por te ver – queria, azul, escrever nos mares e nos
céus pintar o ardor que se forma e arde e me consome quando estou sem ti
– queria tanto, queria muito, recortar a tua silhueta e deixá-la ficar e trazer-
te sempre comigo – queria ser os beijos que te dou e o desejo com que tos
entrego para poder ficar em ti quando eu me vou – queria olhar para ti e ver
o amor que em mim se contorce e agita e me fere e excita – queria amanhã
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já agora para te reencontrar à mesma hora – queria não te ter conhecido
para ter outra vez o prazer de te conhecer…
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2.05
São gladíolos, amor, as flores da minha glória – são rosas, vermelhos,
laranjas e brancos as cores da minha vida – são doces perfumes das histó-
rias que há muito m’ encantam – são gladíolos, sim, meu amor: são os gla-
díolos do meu gládio!…
São nas minhas mãos a minha espada, as palavras. E eu canto há mui-
to os muitos sons que m’ encantam e as belas cores que m’ assombram as
noites claras em minha alma – e ruem mastros e claustros tombam – e ruas
amarelas são tomadas p’las histórias de meu gládio… histórias que canto,
nada mais…
São golpes e punhais, espadas e gladíolos, palavras que ferem, são
imagens e sonhos que m’ incitam, melodia azul, escura e triste, em mundos
profundos; paisagens belas, sim – mas alcançá-las?!...
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2.06
Olha. Vê e sente o que nos cerca e vê os teus olhos a ver as coisas
passarem por nós e nós aqui. Olha e sente e nada mais digas – nada mais
para além do silêncio que nos cerca no fluir das coisas que fluem. Calados
sintamos o estarmos aqui e saibamos que de nada nos vale aqui nos sentir-
mos.
Olha. Olha e sente por nós a brisa correr nos dias que passam por nós
e nós aqui, enlaçados ao tempo que passa e já passou.
Olha. Sente – sente, mesmo assim: sente que me calas a voz em silên-
cio se olhares o vento que passa na brisa sem voz; tu que cantas sem canto
o canto de estarmos aqui a ver passar o que nos cerca; tu que tens no olhar
as coisas que passam sem parar enquanto em nós fica o passar das coisas
sem cessar.
E de nada nos vale nos sabermos aqui, nós sabemos – mas é o estar-
mos aqui tudo quanto nos resta de aqui estarmos.
Não. Sintamos só o estarmos aqui. Que nos importa o vento correr sem
parar pelas horas mortas que passam, se nós estamos aqui somente a sentir
o estarmos aqui? Não, nada mais sintamos – nem mesmo o estarmos aqui.
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2.07
A lua nem me tocou. Entrou de mansinho pela vidraça, sorrateira como
a noite, e beijou-te descaradamente o rosto à minha frente. Num gesto atre-
vido, iluminou-te a fronte com o seu sorriso brilhante, malicioso. Tu nem
deste por nada! – Mas a lua foi mais longe e bruscamente instala-se entre
nós, aconchegando-te os cabelos com um suspiro luminoso. No seu ar noc-
turno, sereno, olhou-me de soslaio fingindo nem me ver sequer. E, num últi-
mo instante, deixou o seu brilho todo reflectir-se na tua face. Por um segun-
do apenas, tudo o mais ficou abandonado numa escuridão imensa. Foi um
segundo apenas – mas bastou para eu ver em ti, numa nitidez profunda, a
imagem fascinante da beleza. Depois, a lua partiu sem ninguém ver, deixan-
do os meus lábios colados aos teus.
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2.08
Como todas as flores esquecidas nuas nos jardins, como todas as pe-
dras abandonadas nas montanhas, lá no alto, como todos os cais desertos,
sem barcos para assaltar o mundo no meio dos mares, como sete sóis bri-
lhantes por cima das nuvens cerradas, tristes, fechadas, como cordas pen-
duradas em fotografias num quarto sem luz, como carrosséis vazios no topo
de qualquer coisa vazia, como a triste figura cega a um passo do abismo,
como velhos livros antigos nunca lidos por ninguém, como um nada perdido
sem norte numa densa floresta escura, como tudo quanto é desconhecido
ainda e se julgava conhecer, como restos de frases nunca ditas, presas no
fundo da garganta e do forte desejo de tê-las dito, como o simples cantar
do pássaro solitário, algures na madrugada fria, como o eco distante que
nada significa… assim me sinto eu diante desse teu sorriso que responde
sem palavras a tudo isto.
27
2.09
Se o pensamento e a imaginação não são reais, se eles não são tão
reais como a realidade – se eles não são a realidade – então porque existem
eles? Não serão eles realidade apenas por não lhes podermos tocar com as
mãos?! Ou mexer-lhes, mudá-los de lugar?! Mas isso é ridículo, meus senho-
res! Nós, das coisas, só temos em nós a impressão, nada mais. Absoluta-
mente mais nada. E aquilo que pensamos, e aquilo que imaginamos, temo-
lo bem mais impresso em nós do que tudo quanto o mundo dispôs à nossa
frente; vemo-lo com maior nitidez do que a própria mão que segura este pa-
pel. Nós é que não acreditamos naquilo que pensamos ou imaginamos – te-
mos medo de acreditar naquilo que é desmesuradamente monstruoso ou in-
comensuravelmente belo. Sem paralelo na existência, os nossos pensamen-
tos, deixamo-los o mais longe possível – e preferimos acreditar no mundo,
moldá-lo e afeiçoá-lo, dizemos nós quando a ele nos moldamos e afeiçoa-
mos, fugindo de nós próprios para o mais longe possível de nós próprios.
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2.10
Sei, com toda a certeza dos meus ossos mais preciosos, que nada va-
lho. E com toda a nitidez me vejo pequeno pedaço de carne e pêlos, foras-
teiro sempre, seja lá onde for, esteja eu onde estiver. Simples sistema ner-
voso, amontoado inútil de canos com sangue dentro, fraqueza feita múscu-
los e moléculas soltas – eis portanto a geringonça que sou. Tanta coisa para
tão pouco…
Enfim: aparafusada a minha vida sobre umas pernas em movimento,
fui um dia para aqui lançado e aqui estou eu. O aparelho funciona, é certo,
mas ignoro qual a sua utilidade. – Qual a sua finalidade?! Isto não serve pa-
ra nada, isto a nada se adapta! Bem tenho procurado uma aplicação eficaz,
sólida, consistente, para tão bizarro mecanismo. Mas não – tudo buscas in-
frutíferas, tempo inutilmente perdido, inglórias tentativas.
Facto consumado, uma dúvida rapidamente esvoaçou em torno do meu
olhar e depressa ela se fez hipótese firmada, ameaça cumprida: em meu re-
dor o que há é um engano terrível, um equívoco fatalmente certeiro, um
acentuado erro no mais ínfimo dos cálculos – o erro por excelência. E é ne-
cessário que assim seja; a única explicação possível é nesse mesmo erro
que se funda.
Desde então, eu já nem pareço o mesmo. Passo os dias a vaguear, va-
gabundo errante em busca do seu próprio erro peregrino. Atravesso agora
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imensas planícies de perder de vista. Solitário no meio de tamanha vastidão,
nem sequer perdido me sinto, privado que fui da noção de mim. O pequeno
pedaço de carne e pêlos de outrora é hoje, apenas, um ponto negro, quase
invisível, tal é a distância que o separa das sentinelas sitiadas do acampa-
mento. Um finíssimo grão de pó entre as areias de um deserto dourado es-
tendido ao sol. E se, por acaso, me aborda alguém curioso das minhas an-
danças sem parança, eu digo-lhe, feliz, que ando em busca da única explica-
ção possível.
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3.01
«”Isto não pode ser assim! Isto não pode ser assim! Que faço eu aqui?
Sim, que faço eu aqui parado na berma deste caminho por onde passam
tantas figuras fazendo gestos com os braços? Que faço eu aqui?... Eu não
sei, eu não sei…” Eu gritava, parado, hirto, em cima de um morro, e nin-
guém me via, mesmo que para mim olhasse. “Se houvesse alguém que me
visse, eu faria um gesto, mas assim não vale a pena. E se eu conseguisse
perceber os seus movimentos com os braços e as pernas… Parece-me que
disputam algo entre si e eu, daqui, não imagino o que seja e ninguém fala
comigo. – Que faço eu aqui, então?” Eram carroças, cavalos, homens,
cães… E todos dentro da sua própria vida, todos olhando para dentro. Só eu
não enxergava nem vislumbrava explicação alguma para aquilo e para mim.
“Isto não pode ser assim, meus senhores! Isto deve ser de outra maneira,
pois, assim, eu nada faço aqui!”»
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3.02
Sou completamente indiferente àquilo que faço, àquilo que digo ou
àquilo que penso. Aquilo que faço, aquilo que digo, aquilo que penso é tudo
desprovido de qualquer sentido ou de motivação alguma. Nada disso me in-
teressa, nada disso me preocupa. Aborrece-me também tudo quanto no
mundo acontece. Fora de mim, nada me ocupa a atenção, os sentidos ou o
pensamento. Tudo no exterior carece de realidade. Os gestos – frágeis; as
palavras – mudas; as ideias – inúteis.
Quero apenas viver a passar pelo tempo. Simplesmente isso: viver a
passar pelo tempo. Da vida apenas me quero a mim – eu, assim como sou,
mero corpo vazio, oco e desprovido de qualquer ligação com a própria vida.
Qualquer coisa como entrar por mim adentro e encontrar aí uma grande ca-
tedral vazia, escura e silenciosa. Sem ninguém. E, ao chegar junto ao altar,
adorar qualquer coisa fútil, símbolo virtual do meu desprezo e da minha indi-
ferença perante tudo – algo como a suja pastilha elástica colada às escondi-
das por detrás da pedra d’ ara.
32
3.03
Sinto-me, nesta rua que piso e neste ser onde vivo, a criança de dez
anos acabada de violar e nua e todos a passar, nesta rua e por este ser, rin-
do às gargalhadas. De mim.
Sento-me neste chão com vontade de nele entrar e daqui sair para ne-
nhum outro lugar onde esteja eu e eu tenha de me acompanhar.
Queria a minha pele ao sol deixar e com ela o que por fora sou e ser
oco por dentro e partir sem mim para longe de mim.
Mas sei que estou para sempre colado ao que sou, mesmo que eu seja
o que não sou ou que eu não seja o que sou e seja outra coisa qualquer.
33
3.04
Quando a angústia entra no rosto de um homem e se senta no seu cor-
po, tenta dominá-lo, aniquilá-lo, destruí-lo – quando o amor lhe baixa os
braços, lhe sobe à cabeça a dor e quando num espelho se partem as suas
faces, aos bocados – quando tudo isto existe, em carne e osso existe… É o
fim.
E quando a morte no seu olhar s’ entranha e o seu olhar penetra vida
adentro e nada descobre; e quando tudo se revolve e tudo se guerreia nu-
ma ideia simples de pôr termo a tudo – quando por ele as suas mãos se mo-
vem, mesquinhas, inúteis, e quando nesse gesto tudo o resto cai desfeito…
é o fim, então.
Mas quando o mar, o vento e o ar, as formas das coisas e as coisas
sem forma se enrolam por si adentro – quando isso acontece pela estrada
fora dentro de si – e se depois de tudo isso o que fica é o que sobra dos
sentimentos idos, das emoções ausentes… enfim: d’ um corpo que perdeu a
alma…
Se depois de quando isso acontecer num homem for ele ainda ho-
mem…
Se isso aconteceu em mim… onde está o fim, que não me basta ainda?
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3.05
Eis o medo. A manifestação do medo traz consigo reacções no plano
psíquico, como é evidente, mas, acima de tudo, é no aspecto físico que se
revela mais intensamente. Aparecem de repente arrepios por todo o corpo,
os pêlos eriçam-se e a pele dos braços e do pescoço fica enrijecida, brusca-
mente esticada, como a carcaça de um animal deixado ao sol durante vários
dias. O rosto empalidece de um momento para o outro e algumas veias qua-
se saem do corpo, latejando desordenadamente, ao mesmo tempo que o
sangue é bombeado sem nexo. Os músculos parecem contrair-se, endureci-
dos e paralisados, impossibilitando assim um gesto que seja. O único movi-
mento visível é um estremecimento geral, que se inicia nos lábios, algo arro-
xeados, entreabertos ligeiramente para permitir a passagem de uma respira-
ção difícil, irregular. As narinas já há muito que estão comprimidas e a ponta
do nariz, branca como a cal, arrefece assustadoramente. Depois dos lábios,
é o queixo que treme, seguindo-se as pernas, que depressa ficam bambo-
leantes, fracas demais para suportar tão grande peso e com vontade de re-
nunciarem à tarefa. Os olhos dão a impressão de estarem vidrados e arre-
galam-se, criando francas rugosidades sobre a testa lívida. Dela nasce um
suor gélido, primeiro pelas frontes, agora caindo para o rosto e dentro em
breve apoderando-se de todo o corpo. Num fugaz instante, o frio transfor-
ma-se em calor, mas esta sensação esfuma-se num simples segundo, não
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passando de mera ilusão. E lá no fundo, lá muito longe, recomeça de novo o
bater do coração, a bater, a bater, parece um tambor gigante, o barulho au-
menta cada vez mais, estrondosamente, cada vez mais perto, cada vez mais
forte, parecem tiros de canhão disparados dentro do ouvido, dentro da ca-
beça. De súbito, fica tudo branco, um clarão passa diante da vista… Depois,
é a escuridão total.
36
3.06
O maior susto da minha vida aconteceu no dia em que entrei numa sa-
la branca e me vi lá dentro.
O compartimento era quadrado e as paredes pedaços de marfim – no
centro, uma cama de ferro já antiga e eu que lá dormia, estátua tombada
por acaso. O meu corpo estava rígido e pálido, tinha os olhos abertos e a
fria fisionomia calma do cadáver que já era – aparentemente, tinha sido
uma morte suave, sem contorções, sem dores visíveis do exterior.
Tive, neste breve momento e perante esta imagem fugaz, reflexões
instantâneas e confusas que se esbateram pela minha cara como quem bate
com ela na parede por descuido. O mundo inteiro passou por mim de uma
vez só e sem possibilidade de ter agora significado algum.
O chão era vidro e ainda se viam bocados de gelo inteiros, memória do
que se passou por aqui e aqui deixou um corpo que parecia ser de cal e na-
da mais. E eu ali, parado perante mim, estático, num quadro sem nexo, à
espera que eu me levantasse, incrédulo e com a morte à minha frente.
Quando dei um passo atrás, bati com o pé na porta e voltei-me, aterra-
do. Estava fechada por fora! E o gelo começava já a formar-se em meu re-
dor.
37
3.07
Ouve-se um estrondo.
A minha vida está presa por um frágil fio, muito frágil… E eu estou no
meio da nave central, amarrado pelos pés e pelas mãos, e sobre mim, pres-
tes a soltar-se, está um enorme cilindro de pedra… É o relógio da torre pres-
tes a cair sobre mim… É o relógio da torre que ameaça esmagar-me a qual-
quer instante… O relógio da torre… O relógio da torre quer despenhar-se so-
bre mim, fulminar-me de um golpe só!... Três mil quilos, são três mil quilos
suspensos no ar, a dez metros de altura, sobre a minha cabeça… Está pres-
tes a despenhar-se… E eu grito, grito aflitivamente, grito em desespero, gri-
to, eu grito… E só o eco da igreja vazia me responde… Foram-se todos em-
bora… E o último bateu agora a porta com estrondo.
38
3.08
Trará-lo-ás contigo, o teu destino? Carregará-lo-ás aos ombros, como
carregas a tua sombra? Ó miserável, corre! – Corre em busca de ti! Tu não
vês que nada mais possuis?! Cegarrega estúpida, imbecil nada do povoado:
não compreendes os pontos de exclamação erguidos na tua rua, as interro-
gações lançadas à tua porta, ó incompreensão de ti próprio?!
Quantas noites perdeu a humanidade contigo? Sim, a humanidade com
agá dos grandes?! E tu, sapo inútil, abjecto, placidamente ainda pensavas
em pensar! Desaparece, faz-te verme, some-te pelo chão adentro! Tu, im-
palpável corpo e alma em sangue, fazes dó às palavras. Se fosses nada,
mais serias. Destrói-te, ó mito! – O teu destino és tu – somente tu, sem o
teu destino!
39
3.09
Nunca naveguei. Os meus braços em mim são um peso morto – são
um tronco que se ergue torto no mar que sempre sonhei.
Sei que naufraguei – balanços mil s’ entranham no que sou e no que
sou m’ engano pelos sonhos em que de mim por querer me desencontrei.
Amei – cada vez amo mais. O quê, não sei. Penso que m’ encanto ape-
nas pelos mares que nunca atravessei. Sou assim.
Eu sou assim. Talvez por isso eu me procure nas margens das águas
em que me afundo – oceanos profundos que vivo no copo de água que be-
bo.
40
3.10
Manhã de inverno. A geada pôs tudo branco. Farejo o frio nos ares. De
seguida, curvo o focinho para o imenso manto de erva gelada. Assim ando
um bocado, às voltas. Até que me detenho e começo a escavar com ambas
as patas. A terra ainda está enlameada, vestígio das últimas chuvas, tão
abundantes elas foram. Depressa as unhas ficam encardidas – e como isso é
deliciosamente irrelevante! De vez em quando paro, ofegante, e enfio o na-
riz, a cabeça toda, para o interior do buraco aberto. Sabe tão bem sentir tão
de perto esta frescura e este aroma, diferentes de tudo quanto está à super-
fície – sabem a coisa recente e inteiramente minha! Num pulo, regresso ao
trabalho, agora mais energicamente, fúria redobrada, sempre com vontade
de ir mais além, de penetrar mais profundamente naquela fenda negra e de
sabor inebriante. Só muito tempo depois, exausto mas satisfeito, resolvo pôr
termo a tudo, convicto enfim de que nada mais poderei encontrar, esgada-
nhe eu o que esgadanhar – e cai-me então a cauda pelas pernas abaixo…
Levanto os olhos e tudo continua branco… À minha volta, porém, jazem os
pequenos montículos de terra, por ali espalhados ao acaso e em desordem,
únicas manchas sobre o lençol estendido por cima desta manhã de inverno.
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42
ÍNDICE
1.01 "Entrai, entrai, meus senhores..............................................................5
1.02 Não são tempos de epopeias, estes…....................................................6
1.03 É urgente dizer basta!...........................................................................7
1.04 Há sempre, sempre, a possibilidade de o erro........................................8
1.05 O texto deve ser como um círculo….......................................................9
1.06 O abismo absoluto nasce de coisas tão simples....................................11
1.07 Com o suor na testa branca…..............................................................12
1.08 Onde estão os jovens?........................................................................14
1.09 Os cientistas pensaram ter descoberto a saída......................................15
1.10 "Mas eu não quero ir", gritava.............................................................16
2.01 Sinto o meu corpo a tombar – é cansaço..............................................17
2.02 Sento-me num valeiro profundo..........................................................18
2.03 O seu amor por ela era infinito............................................................19
2.04 Queria tanto, muito, dizer que te amo..................................................22
2.05 São gladíolos, amor, as flores..............................................................24
2.06 Olha. Vê e sente o que nos cerca.........................................................25
2.07 A lua nem me tocou. Entrou….............................................................26
2.08 Como todas as flores esquecidas nuas.................................................27
2.09 Se o pensamento e a imaginação não são reais....................................28
2.10 Sei, com toda a certeza dos meus ossos..............................................29
3.01 «"Isto não pode ser assim!..................................................................31
3.02 Sou completamente indiferente àquilo que faço....................................32
3.03 Sinto-me, nesta rua que piso...............................................................33
3.04 Quando a angústia entra no rosto........................................................34
3.05 Eis o medo. A manifestação do medo...................................................35
3.06 O maior susto da minha vida aconteceu...............................................37
3.07 Ouve-se um estrondo..........................................................................38
3.08 Trará-lo-ás contigo, o teu destino?......................................................39
3.09 Nunca naveguei. Os meus braços........................................................40
3.10 Manhã de inverno. A geada.................................................................41
ÍNDICE..............................................................................................4343
O DESCONHECIDO * ESTUDOS SOBRE A HIS-
TÓRIA DA POESIA E A SUA APLICAÇÃO AO CORPO-LABORA-
TÓRIO * ESCRITOS POR VALVES ENTRE 1988 E 2008
* COIMBRA, LISBOA, LEIRIA E AÇORES * SAMPLES UTI-
LIZADOS: CURTIS (1.08), KAFKA (1.09; 3.01),
PESSANHA (2.02), PACMAN (2.04), ANTERO (2.06)
* CAPA: DA VINCI, “CABEÇA DE UMA MULHER” * AU-
TO-EDIÇÃO * 2010 * 25 EXEMPLARES * PROIBIDA A
REPRODUÇÃO SEM CITAÇÃO DA FONTE.
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