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ISSN 2176-1396
O DESLUMBRE DA LITERATURA INFANTOJUVENIL
AFRO-BRASILEIRA: IMPRESSA E DIGITAL
Afife Maria dos Santos Mendes Fontanini1 - SEED PR/UNOPAR
Eixo – Educação da Infância
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Os contos sempre provocam um deslumbramento e marcam a história de vida do leitor,
independentemente do suporte em que estejam publicados (em livros ou no ciberespaço). As
novas tecnologias de informação e comunicação têm oportunizado que o letramento literário e,
consequentemente, o digital, ocorram, seja pelo acesso a valores e conhecimentos
democratizados em livros, ou em sites, e-books, animações e hipertextos. Vivemos uma época
em que a ideia de letramento voltado às práticas sociais de leitura e escrita, toma outras
proporções. Os novos letramentos, muitos atrelados às TICs (tecnologias da informação e da
comunicação), mostram que a diversidade cultural, presente no mundo globalizado, pode ser
contemplada em textos multimodais (composições com variadas formas de linguagem: escrita,
oral e visual). Portanto, este artigo propõe uma reflexão sobre o trabalho com a Literatura
Infantojuvenil Afro-Brasileira, tomando como referência a obra “Rapunzel e o Quibungo”,
adaptada por Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho, publicada pela Editora Mazza e
pelo projeto “A Cor da Cultura”, por meio do programa “Livros Animados”. Durante a análise
da obra, aponta-se diversos links da internet que auxiliarão o leitor a melhor compreender a
cultura afro-brasileira. Portanto, ao privilegiar a leitura de histórias com personagens negros,
busca-se desconstruir narrativas pautadas em padrões fixados em apenas uma etnia, trazendo
de forma afirmativa a cultura dos povos africanos que formaram o Brasil, em uma sequência
didática de leitura fundamentada em Cosson (2012). A sequência didática básica de letramento
literário apresentada traz sugestões de atividades, para que sejam desenvolvidas dentro dos
quatro passos de ampliação das experiências literárias, levando o leitor a desenvolver a
autonomia, observar a estética e ainda sentir prazer. Os passos da sequência são: a motivação,
a introdução, a leitura com intervalos e a interpretação.
Palavras-chave: Literatura Infantojuvenil. Conto. Hipertexto
1 Mestre em Metodologias para o Ensino das Linguagens e suas Tecnologias/UNOPAR; Pós-graduação em
Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/FAFIJAN; Pós-Graduação em Administração, Supervisão e
Orientação Escolar/UNOPAR; Graduação em Letras Anglo-Portuguesas/FAFICLA; Professora PDE 2009/SEED-
PR; Técnico-pedagógica de Língua Portuguesa no Núcleo Regional da Educação de Apucarana; E-mail:
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Introdução
A Literatura Infantojuvenil Afro-Brasileira pode representar um marco na história de
formação dos leitores, pois a leitura dessas obras leva os indivíduos a se apoderarem e se
deslumbrarem pela tradição oral dos povos africanos. Ao reconhecer a literatura como um
direito humano que garante a integridade imaterial, o trabalho docente deve proporcionar que
estudantes negros(as) construam suas identidades, por meio da interação com enredos em que
os protagonistas também sejam negros(as).
Na década de 80, Candido já postulava a ideia da Literatura como um direito humano,
fazendo a distinção entre os bens compressíveis (cosméticos, enfeites, roupas extras, entre
outros) e os bens incompressíveis. Para o autor (1995, p. 174), são bens incompressíveis:
[…] não apenas os que asseguram a integridade física em níveis decentes, mas os que
garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a
moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça
pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, a opinião, ao lazer
e, por que não, à arte e à literatura.
Antonio Candido alinha-se ao grupo de historiadores e críticos brasileiros que abordam
a Literatura sociologicamente (CEREJA, 2005, p. 145). Ele vê a literatura como um sistema
mediado por um sistema maior – o da cultura –, por isso conhecer a contribuição dos africanos
para a cultura afro-brasileira é essencial na compreensão dos contextos históricos e sociais,
movimentos literários, públicos-alvo e ideologias presentes nos livros.
Cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados
à divisão da sociedade em classes, pois inclusive a educação pode ser instrumento
para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não
o é para outra (CANDIDO, 1995, p. 173).
Mas o que é indispensável aprender e ensinar sobre a literatura infantojuvenil afro-
brasileira? De acordo com Castilho (2004b, p. 41),
No Brasil, Monteiro Lobato foi o precursor da literatura infantojuvenil. Foi um
escritor brilhante que emocionou gerações. Inovou em suas narrativas dando às
crianças iniciativas criadoras, irreverência, amor, compromisso, com a invenção e
com a liberdade, direito ao questionamento, revelou suas inquietações, enfim,
humanizou as crianças através dos personagens (Emília, Pedrinho, Narizinho) e levou
ao conhecimento das crianças uma visão política do Brasil.
No entanto, existe um grande questionamento acerca do preconceito nas obras de
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Lobato, que tem gerado muita polêmica. Não obstante, é preciso frisar que, em 1945, a
personagem de Tia Nastácia já aparecia acompanhando Dona Benta na Grande Conferência da
Paz, descrita no livro “A reforma da natureza”. Apesar da legitimidade dos debates em torno do
preconceito, a inserção da figura de Tia Nastácia no universo picapauense pode ser considerada
um mérito lobatiano, devido ao espaço diferenciado que ela ocupava na casa, tendo voz e vez,
quando comparada às negras em situação semelhante no período (CAGNETI; SILVA, 2013, p.
31-32).
Ainda, segundo Cagneti e Silva (2013, p. 34),
Seria importante ressaltar que na época em que Lobato começou a escrever para
crianças, segundo colocações dele mesmo, o que existia no Brasil no gênero eram
traduções vindas da Europa. Obviamente nessas obras a figura do negro praticamente
inexistia. Seguidores de Lobato, essencialmente aqueles que contribuíram para a
efetivação da literatura intantil juvenil nacional, na década de 1970, vez ou outra
passaram a inserir o negro como personagem em suas narrativas.
Para Lima (2005), essas tramas comumente apresentavam imagens onde os negros(as)
apareciam como escravizados, sofrendo uma violência simbólica; como empregadas
domésticas com imagens caricaturadas; tratando a África, aos moldes coloniais, de maneira
primitiva e grosseira, ou focando a violência. Felizmente, na década de 1980, começaram a
surgir obras valiosas que apresentavam personagens negros(as), sem o reforço do estereótipo
negativo, publicadas por Joel Rufino dos Santos, Ziraldo, Rogério Andrade Barbosa, Angela
Lago, Mario Vale, Ana Maria Machado, Luiz Galdino e Mirna Pinsky (CAGNETI; SILVA,
2013, p. 34).
Com o advento da Lei nº 10.639/03, várias obras valorizando de forma afirmativa as
relações étnico-raciais foram publicadas, alterando a visão de enredos centrados em apenas uma
etnia. Portanto, já se consegue encontrar obras onde o negro(a) é trabalhado a partir de três
perspectivas: a da cultura, a do cidadão atuante na sociedade e a de um sujeito que ainda sofre
com a discriminação e preconceito.
Nas mãos do leitor, o livro de literatura infantojuvenil afro-brasileira pode ser fator de
perturbação e mesmo de risco, “daí, a ambivalência da sociedade em face dele, suscitando, às
vezes, condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão
convencional gostaria de proscrever” (CANDIDO, 1995, p. 176). É contra essa proscrição que
os professores têm que levantar a bandeira, pois quanto mais os estudantes negros(as) tiverem
acesso à leitura como direito humano, mais críticos e reflexivos se tornarão ao apropriar-se de
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sua cultura.
O Art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº 9394/96, traz
em seu caput que, “os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino
Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em
cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”, expondo de forma
bem clara no § 9o que os conteúdos relativos aos direitos humanos […] devem ser
contemplados. Por isso, sendo a Literatura uma necessidade universal que deve ser satisfeita
para que não se mutile a personalidade dos estudantes, pelo fato de dar forma aos sentimentos
e à visão do mundo, ela precisa ser trabalhada, no intuito de promover o processo de
humanização e respeito à diversidade.
Pensando nisso, passar-se-á a uma discussão sobre a importância de trabalhar-se com o
letramento literário e digital nas escolas, por meio das africanidades presentes tanto na cultura
do papel como no ciberespaço.
A importância do Letramento Literário e Digital
De acordo com Soares (2010, p. 15), foi na metade da década de 80 que os especialistas
da Educação e das Ciências Linguísticas começaram a discutir a questão do letramento. O
debate sobre a questão expandiu-se por todos os níveis da Educação Básica e também à
Educação de Jovens e Adultos, a partir de edições de livros escritos por Mary Kato (1986), Leda
Verdiani Tfouni (1988), Ângela Kleiman (1995), bem como pela própria Magda Soares (1998),
envolvendo a prática discursiva da escrita e da leitura.
Mais recentemente, a altercação sobre letramento também tem chegado aos estudos
literários, por meio de debates sobre a formação do leitor literário proposta nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (2002), nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) e nos
escritos do grupo de pesquisadores do CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita),
vinculado à FAE (Faculdade de Educação) e a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
As primeiras perspectivas trataram o letramento como “o resultado da ação de ensinar
ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um
indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2010, p. 18). Nessa
época, a ideia de letramento estava muito atrelada ao analfabetismo e ao alfabetismo, pois não
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bastava apenas saber ler e escrever, era preciso também saber fazer uso do ler e do escrever,
respondendo as exigências sociais (p. 20).
O termo letramento é uma versão para o português da palavra inglesa literacy. Segundo
Soares (2010, p. 17), o termo originou-se etimologicamente:
[...] a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo – cy, que denota
qualidade, condição, estado, fato de ser [...]. No Webster’s Dictionary, literacy tem a
acepção de “the condition of being literate”, a condição de ser literare, e literate é
definido como “educated; especially able to read and write”, educado, especialmente,
capaz de ler e escrever.
A discussão sobre esse fenômeno ajudou a alterar as condições sociais, culturais,
políticas, econômicas, cognitivas e linguísticas dos grupos onde foi introduzido. Contudo, com
o advento da cibercultura tornou-se necessário pluralizar o vocabulário, no sentido de
“confrontar as tecnologias tipográficas e tecnologias digitais de leitura e de escrita” (SOARES,
2002, p. 143).
Como argumenta Soares (2002, p. 146), em seu artigo:
Estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes
modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes
tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (web), a Internet. É,
assim, um momento privilegiado para, na ocasião mesma em que essas novas práticas
de leitura e escrita estão sendo introduzidas, captar o estado ou condição que estão
instituindo: um momento privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de
escrita digitais, o letramento na cibercultura, conduzem a um estado ou condição
diferente daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita quirográficas e
tipográficas, o letramento na cultura do papel.
Vivemos uma época em que a ideia de letramento voltado às práticas sociais de leitura
e escrita, toma outras proporções. Os novos letramentos, muitos atrelados às TICs (Tecnologias
da Informação e da Comunicação), oportunizam que a diversidade cultural, presente no mundo
globalizado, seja contemplada em textos multimodais (composições com variadas formas de
linguagem: escrita, oral e visual). Segundo Rojo (2012, p. 13), outra ideia vem se consolidando,
pois:
Diferentemente do conceito de letramentos (múltiplos), que não faz senão apontar
para a multiplicidade e variedades das práticas letradas, valorizadas ou não nas
sociedades em geral, o conceito de multiletramentos – é bom enfatizar – aponta para
dois tipos específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossas sociedades,
principalmente urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das
populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais
ela se informa e se comunica.
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Para tanto, a informação e a comunicação que chega à sociedade contemporânea, por
meio de textos com múltiplas abordagens culturais, precisa de um local para sua consolidação,
e é no uso da rede de computadores que tal subcultura encontrará espaço. Para Lévy (1999, p.
257), “longe de ser uma subcultura dos fanáticos pela rede, a cibercultura expressa uma mutação
fundamental da própria essência da cultura”. Para tanto, ela corresponde à globalização concreta
das sociedades, que inventa um universal sem totalidade.
Ao envolver a leitura e a escrita nesse espaço, ou seja, no ciberespaço, com seus textos
na tela – hipertextos – estes farão parte da formação do leitor, que atualmente convive com as
novas tecnologias de informação e comunicação. Isto significa que o professor deve, além de
trabalhar com os materiais impressos com vistas ao letramento, também explorar os recursos
digitais com seu alunado, rumo ao letramento digital.
É por isso, que o trabalho com a Literatura Infantojuvenil Afro-Brasileira precisa
acontecer independentemente de seu suporte (livro ou hipertexto). De acordo com Cosson
(2014, p. 12), os jovens estão:
[…] eternamente plugados pelos fones de ouvido, trocando incessantemente
mensagens nas redes sociais, jogando on-line em sites especializados ou entretidos
nos videogames, navegando de muitas formas na web, os jovens não parecem ter
tempo nem concentração para a leitura de livros impressos – um hábito que se
apresenta aparentemente contrário ao modo dispersivo e irrequieto com que se
relacionam com os demais produtos e manifestações culturais contemporâneas
(COSSON, 2014, p. 12).
Dessa forma, em composição com outras manifestações artísticas, a Literatura
Infantojuvenil Afro-Brasileira precisa ser trabalhada, é aqui que entram os “avatares” da
Literatura (canções populares, filmes, histórias em quadrinhos, animações e até a literatura
eletrônica), conforme Cosson (2014, p. 16-18).
O ciberespaço abre um leque para exploração de inúmeras linguagens, produzindo e
impulsionando para que uma aprendizagem coletiva e compartilhada possa ser explorada no
espaço escolar. Ele é um dos ambientes socioculturais que se encontra em evidência no século
XXI, a era da sociedade das conexões, da hibridização de culturas e de gêneros literários. Lévy
(1998, p. 104-105) postula que:
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No silêncio do pensamento, já percorremos hoje as avenidas informacionais do
ciberespaço, habitamos as imponderáveis casas digitais, difundidas por toda parte, que
já constituem as subjetividades dos indivíduos e dos grupos. [...] O ciberespaço:
nômade urbanístico, pontes e calçadas líquidas do Espaço do saber. Ele traz consigo
maneiras de perceber, sentir, lembrar-se, trabalhar, jogar e estar junto. É uma
arquitetura do interior, um sistema inacabado de equipamentos coletivos da
inteligência, uma estonteante cidade de tetos de signos. A administração do
ciberespaço, o meio de comunicação e de pensamento dos grupos humanos, será uma
das principais áreas de atuação estética e política do século XXI. […] O ciberespaço
designa menos os novos suportes de informação do que os modos originais de criação,
de navegação no conhecimento e de relação social por eles propiciados. […] Constitui
um campo vasto, aberto, ainda parcialmente indeterminado, que não deve reduzir a
um só de seus componentes. Ele tem vocação para interconectar-se e combinar-se com
todos os dispositivos de criação, gravação, comunicação e simulação.
Portanto, quando se quer formar leitores literários há que se tomar o cuidado com as
estratégias escolhidas para efetivação do processo de ensino e aprendizagem. O contato com o
material impresso é valiosíssimo, mas não se pode esquecer que os “nativos digitais”, termo
adotado por Palfrey e Gasser no livro “Nascidos na Era Digital”, também necessitam interagir
com outros suportes.
De acordo com Palfrey e Gasser (2011, p. 11 – 14), os nativos digitais são aqueles
nascidos após 1980, e que têm habilidade para usar as tecnologias digitais. Eles se relacionam
com as pessoas por meio das novas mídias, por blogs, redes sociais, e nelas se surpreendem
com as possibilidades que encontram. Porém, aqueles que não se enquadram nesse grupo
precisam conviver e interagir com esses nativos e, além disso, aprender a conviver em meio a
tantas inovações tecnológicas, são os chamados imigrantes digitais.
Pensar em como construir uma rede de saberes, que envolva a Literatura Infantojuvenil
Afro-Brasileira, pode ser uma forma de animar o intelecto dos alunos, pois a partir da
africanidade, da interdisciplinaridade e da tecnologia, pode-se também trabalhar textos
literários.
É certo que os livros impressos, que apresentam a especificidade da escrita artística, são
muito importantes e representam uma influente tecnologia, mas para chegarmos à revolução do
texto eletrônico e dos links e hipertextos literários, é preciso explicar aos estudantes que a
história dos livros já viu muitas outras.
De acordo com Chartier (1999, p. 7):
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De fato, a primeira tentação é comparar a revolução eletrônica com a revolução de
Gutenberg. Em meados da década de 1450, só era possível reproduzir um texto
copiando-o à mão, e de repente uma nova técnica, baseada nos tipos móveis e na
prensa, transfigurou a relação com a cultura escrita. O custo do livro diminui, através
da distribuição das despesas pela totalidade da tiragem, muito modesta, aliás, entre
mil e mil e quinhentos exemplares. Analogamente, o tempo de reprodução do texto é
reduzido graças aos trabalhos da oficina tipográfica.
É necessário lembrar que a transformação de um livro manuscrito em impresso não
ocorreu de forma tão integral. Todo um processo histórico se delineou desde então. Hoje, a tela
do computador carrega informações sobre o texto literário, que devem ser exploradas na
formação dos leitores. Conforme Chartier (1999, p. 12-13):
Existe propriamente um objeto que é a tela sobre a qual o texto eletrônico é lido, mas
este objeto não é mais manuseado diretamente, imediatamente, pelo leitor. A inscrição
do texto na tela cria uma distribuição, uma organização, uma estruturação do texto
que não é de modo algum a mesma com a qual se defrontava o leitor do livro em rolo
da Antiguidade ou o leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito
ou impresso, onde o texto é organizado a partir de sua estrutura em cadernos folhas e
páginas.
O espaço do texto eletrônico exige que o sujeito desenvolva novas maneiras de ler,
devido à revolução nas estruturas do suporte. Isso significa que o professor deve, além de
cultivar os materiais impressos, também saber explorar os recursos digitais com seu alunado.
Ao suscitar a existência de uma nova perspectiva de trabalho literário, por meio de
materiais impressos e digitais, a aplicação da sequência didática básica de letramento literário
(motivação, introdução, leitura e interpretação), proposta no livro de Cosson (2012),
proporcionará que sejam feitos os registros sobre as reflexões e habilidades desenvolvidas
quanto à mediação e à formação do leitor literário, que transita entre a cultura do papel e uma
cibercultura que discute africanidades.
Sequência didática básica desenvolvida para o livro “Rapunzel e o Quibungo”
Nessa sequência, exploraremos o livro “Rapunzel e o Quibungo”, uma adaptação de
Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho, que foi publicada pela Editora Mazza e animada
pelo projeto “A Cor da Cultura”, por meio do programa “Livros Animados”.
1º Momento – Motivação
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Apresentar o teaser da música “Minha Rapunzel de Dread”, com MC Soffia e
participação de Gram & Pedro Angel, disponível no link:
<https://www.youtube.com/watch?v=3ut5RVtO3H4>
“Num conto de fadas a Rapunzel joga suas tranças
Na minha história, ela tem dread e é africana
Agora vou contar o meu conto para vocês
Como todas as histórias começa com era uma vez […]”
Após assistir ao teaser criado para a campanha publicitária da MC Soffia, responda:
Como seria uma princesa que se parecesse com você?
Logo após, leia o depoimento dado pela MC Soffia:
"Eu sempre ouvi contos de fadas, mas nunca um que parecesse comigo. Então, inventei na minha cabeça uma
princesa do jeito que eu sempre quis que existisse. Antes só me mostraram uma, a Tiana, mas eu queria ver mais,
porque tem negras de todo jeito. Quando a tia Yaya, minha assessora de imprensa, deu a ideia de fazer alguma coisa
junto com o Gram, achei que ia ser legal gravar essa letra e dizer que minha Rapunzel tem dread. As pessoas têm
muito preconceito, mas dread é lindo". (NICOLAU, 2016).
Disponível em: <https://catracalivre.com.br/geral/dica-digital/indicacao/confira-com-exclusividade-o-teaser-do-
novo-clipe-de-mc-soffia-minha-rapunzel-tem-dread/>
2º Momento – Introdução
Muitas nações africanas eram ágrafas, ou seja, não tinham escritas, mas cultivavam uma
literatura oral que foi passada de geração em geração. Segundo Santilli (1985, p. 8 – 9), o
escritor Orlando Mendes apontou na literatura oral moçambicana a existência de contos, fábulas
e lendas, povoados de animais das florestas, de elementos da natureza, dos espíritos e símbolos
do sobrenatural, da sociedade, dos antepassados, das transformações vividas e transmitidas, que
nos fazem descartar o pensamento de que as sociedades africanas seriam estáticas, não passíveis
de evolução. Assim como as sociedades europeias, as comunidades africanas possuem histórias
Figura 1: MC Soffia e Ana Paula Xongani (MakingOf)
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belíssimas para contar.
Essa sequência didática apresentará o gênero conto, no intuito de trabalhar a capacidade
de atenção, a experiência de vida, as expectativas e a visão de mundo dos leitores. Rapunzel é
conto adaptado sobre o qual se farão reflexões, ele pode ser classificado como um conto
maravilhoso com ou sem fadas, pois apresenta uma visão mágica da realidade (com objetos,
animais e acontecimentos fora da realidade e transformáveis). (COSTA, 2007, p. 75)
No século XVII, Charles Perrault registra pela primeira vez os contos de fadas,
narrativas orais que se tornaram Literatura e que, posteriormente, permearam também os
escritos de Andersen e Grimm. Esses autores são de origem francesa, dinamarquesa e alemã
respectivamente, por isso a curiosidade em saber como seriam seus contos se eles tivessem
nascido no Brasil?
Segundo Costa (2007, p. 75), o conto é,
[…] uma narrativa curta e sintética que contém uma única ação, isto é, trata de apenas
um conjunto restrito de personagens, em tempo e espaço reduzidos, que vivem poucos
acontecimentos. Essa fórmula serviu, e continua servindo, à literatura infantil e
juvenil, pois está adequada à pouca experiência de leitura, à dificuldade de a criança
acompanhar enredos mais complexos, com histórias paralelas e muitos personagens.
Também pela dificuldade em seguir um tempo mais estendido, o conto mantém-se
num tempo de ação mais condensado.
É sob essa perspectiva que Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho, com sua larga
vivência na literatura infantil, adaptam os contos de fadas, ambientando-os nas diversas regiões
brasileiras, transformando personagens que nada têm de brasileiros em seres com nosso rosto e
nossa pele, enfrentando monstros e bruxas do nosso imaginário cultural. Dessa forma, os
autores garantem que o encantamento da tradição se faça presente.
A biografia dos autores e do ilustrador é um entre outros contextos que acompanham o
texto adaptado, portanto para conhecer melhor a vida e obra desses ilustres brasileiros que se
preocuparam em produzir obras de Literatura Infantojuvenil Afro-Brasileira com qualidade,
seguem algumas informações:
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Quem são os autores e o ilustrador da obra “Rapunzel e o Quibungo”?
AUTORES
Cristina Agostinho é mineira de Ituiutaba. Tem 12 livros publicados, oito
deles infantojuvenis, que lhe valeram quatro prêmios nacionais. Em outra
vertente, a da biografia e memória social, também recebeu prêmios e o
reconhecimento da crítica especializada. Entre seus livros publicados, se
destacam Pai sem terno e gravata, traduzido em Cuba e vencedor do Prêmio
Adolfo Aizen da UBE de melhor livro juvenil, categoria Realidade; Amor
inteiro para meio-irmão, Prêmio João de Barro (Prefeitura de BH).
Ronaldo Simões Coelho é mineiro de São João Del Rei. Como médico
psiquiatra, passa o tempo ouvindo histórias, e como escritor passa o tempo
contando aquelas que inventa. É o sexto entre sete irmãos: seis homens e uma
mulher. Por coincidência, tem seis filhos e uma filha. Foi inventando histórias
para eles, que sentiu vontade de escrever. Há muitos anos, publica seus livros
que vêm sendo lidos por milhares de crianças de todo o Brasil e até de fora
dele.
ILUSTRADOR
Walter Lara, mineiro de Betim, é artista plástico e ilustrador. Recebeu o
Prêmio Altamente Recomendável (da FNLIJ) pelos livros O Dia Não Está
Para Bruxa, de Marcos Tafuri e Para Criar Passarinho, de Bartolomeu
Campos de Queirós, este também finalista do Prêmio Jabuti. Em 2010,
estreou como autor com o livro O Artesão (Abacatte), que recebeu os
prêmios: Altamente Recomendável e 30 melhores Livros Infantis do Ano –
Revista Crescer, além de ter sido selecionado para o catálogo de Bolonha.
Figura 4: Walter Lara
Fonte: COELHO, R. S.; AGOSTINHO, C. Rapunzel e o Quibungo/adaptação. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2012.
Figura 2: Cristina
Agostinho
Figura 3: Ronaldo Simões
Coelho
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“Rapunzel e o Quibungo” apresenta em sua capa e contracapa os primeiros elementos
de aproximação entre o livro e a criança negra, pois rompe com o pressuposto de que apenas
um segmento étnico possa ser contemplado pelos tradicionais contos.
Figura 5: Capa do Livro
Figura 6: Contracapa do Livro
O Dicionário On Line de Português (2009-2016) aponta um exemplo para utilização da
palavra rapunzel, “segundo o crítico Joyce Thomas, Rapunzel é o nome de uma erva apetitosa,
com uma coluna dividida em duas; se a planta não for fertilizada, as metades se enroscam como
tranças", publicado na Folha de São Paulo, de 08/01/2011. A Rapunzel negra, que ilustra a capa
do livro, apresenta uma expressividade encantadora no olhar, além de lindas e compridas
tranças, que se enroscam e caracterizam a estética que compreende a identidade negra e
afrodescendente. Faz-se necessário ressaltar, que o ato de trançar os cabelos pode enriquecer
grandemente as experiências vividas pelos(as) estudantes negros(as), bem como a ideia cultural
de beleza.
Na África os penteados sempre foram carregados de grande simbologia. Os penteados
indicavam: status, estado civil, identidade étnica, região geográfica, religião, classe
social, status dentro da própria comunidade e até detalhes sobre a vida pessoal do
indivíduo. Alguns penteados podiam ser usados para atrair pessoas do outro sexo, isso
justifica o fato em que algumas comunidades, as mulheres viúvas andavam com os
cabelos despenteados para não despertar o interesse masculino, durante o período de
luto. O cabelo despenteado também podia significar que a mulher estava deprimida,
“perdido” a moral ou que era insana. (CLEMENTE, 2010, p. 6)
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O leitor deve aproveitar esse momento para observar as características físicas da
protagonista, pois toda a trama dar-se-á em torno das ações realizadas por e sobre ela.
3º Momento – Leitura
Chegou a hora de ler o livro “Rapunzel e o Quibungo”, sendo assim alguns intervalos
de leitura serão realizados, no intuito de promover a reflexão e ampliação de conhecimentos.
Conversas acerca dos quatro momentos que permeiam a história serão realizadas e a
incorporação de outros textos que promovam a intertextualidade com a obra será indicada para
que os leitores atinjam o letramento literário e digital. Sendo assim, a leitura será dividida em
quatro momentos distintos, conforme segue:
1º Intervalo: O nascimento da menina e o rapto de Rapunzel pelo Quibungo
Nascida na Bahia, a linda menina negra de sete anos e cabelos compridos era amada por
seus pais. Um dia sai para brincar na beira da Lagoa do Abaeté, adorava cantar e seu canto
parecia o do uirapuru. Acontece que, nesse dia, o Quibungo um papão malvado rapta Rapunzel
e a aprisiona em uma torre de bambu no alto de uma castanheira. Seus pais a procuram, mas
não a encontram mais.
Nesse intervalo, é importante que o professor ajude o aluno a conhecer mais sobre os
elementos da cultura africana, afro-brasileira e indígena que foram inseridos no enredo, no
intuito de promover o letramento literário e digital. Para tanto, indica-se o acesso a alguns links
para melhor compreender os personagens (suas características) e os espaços físicos.
Uirapuru: O uirapuru-verdadeiro (Cyphorhinus aradus) é uma ave cantora conhecida
pelo seu canto particularmente elaborado, o que justifica que também seja conhecido
vulgarmente como músico ou corneta. Para saber mais, porque a voz de Rapunzel parecia com
a do uirapuru, acesse Aquariosmaster: <https://www.youtube.com/watch?v=1ptgWSpK_RU>
Quibungo: Para Antonio (2012), o Quibungo é uma lenda trazida pelos escravos bantos
vindos de Angola para o Brasil. Como toda manifestação popular, sofreu interferências culturais
ao ser trazida para as terras brasileiras. Na Bahia, essa história é contada com o objetivo de
disciplinar, a partir do medo, as crianças teimosas que se afastam dos pais ou que se recusam a
obedecer aos adultos. Para saber mais, acesse:
<http://lendasefolclores.blogspot.com.br/2012/01/lenda-do-quibungo.html>.
Lagoa do Abaeté: O termo Abaeté vem da língua tupi e refere-se a uma pessoa boa e
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honrada. Foi daí que surgiu a lenda de que um guerreiro, preservador do local, tinha uma ligação
com a mãe d’água, Uiara, um dia foi levado por ela para o fundo da água. (ALVES & RIBEIRO,
2015). Acesse a reportagem e saiba mais: <http://g1.globo.com/bahia/salvador-466-
anos/noticia/2015/03/cercada-de-misterios-lagoa-do-abaete-sofre-com-problemas-de-
estrutura.html>.
O professor pode ainda estimular a pesquisa sofre as plantas: bambu e castanheira como
espaços físicos que caracterizam o enredo.
2º Intervalo: Dakarai e o Quibungo – visitas à Rapunzel
Presa durante anos na torre de bambu no alto da castanheira, Rapunzel acabou por atrair
a atenção do príncipe Dakarai com seu canto. Todos os dias, ele ia até a torre para ouvir o canto
triste e solitário e tentar descobrir como ter acesso àquele lugar. Até que um dia, viu o Quibungo
subir pela janela, agarrando-se nas longas tranças da moça, que estavam presas na ponta de um
cipó. Ele levava mandioca, peixe e farinha para alimentá-la. Ao ver o bicho indo embora, o
príncipe ficou feliz, pois agora sabia como fazer para chegar lá em cima.
Situar a história na Bahia já desenha todo um novo contexto para a mais que conhecida
história de Rapunzel. O uso de elementos tropicais, como as frutas locais, as árvores
locais, a cultura local, trazem um curioso (e gostoso) aparato para o conto clássico,
herdado da tradição oral europeia. Agora são os trajes africanos, a comida à base de
mandioca, peixe e farinha; o bicho-papão africano, conhecido como Quibungo que
assumem o lugar de signos e símbolos nessa “nova” história. A velha bruxa dá lugar
ao Quibungo, o bicho peludo, com bocarra nas costas, onde atira, mastiga e engole as
crianças. O mito chegou ao Brasil através dos bantos e se instalou na Bahia.
Curiosamente, em Angola e no Congo, quibungo significa “lobo”. Um devorador
largamente conhecido pelas crianças! Um terror suportável! Um terror desejável,
porque as crianças adoram as histórias que provocam susto e arrepios! (SISTO, 2014).
Para visualizar os pratos típicos do Brasil (ROSÁLIA, 2013), acesse:
<https://www.youtube.com/watch?v=shsd59WZ8Ak>.
3º Intervalo: Amor à primeira vista
De origem africana, o nome Dakarai significa felicidade, e não por acaso ele está prestes
a encontrar a sua. Após ver o Quibungo indo embora, o belo príncipe chama por Rapunzel e
carregando um cesto com frutas deliciosas (coco, cupuaçu, cajá, umbu e graviola), bem como
um colar de sementes coloridas sobe até a torre, segurando-se nas tranças da moça. Foi amor à
primeira vista, conversaram, comeram e Rapunzel entoou uma canção alegre. Planejaram a
fuga, mas Rapunzel esqueceu-se de tirar o colar de sementes quando o Quibungo voltou para
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visitá-la, foi quando ele percebeu a desobediência. Com um enorme buraco nas costas, em vez
de engoli-la, o Quibungo preferiu cortar suas tranças com os dentes.
Cortar os cabelos também carrega uma grande simbologia. Além da força física,
sedução e vaidade, os cabelos da cabeça estão ligados às questões espirituais. Na
história de Rapunzel também significa sua passagem de menina a mulher. Aliás, para
ficarmos no contexto dessa nova Rapunzel, vale lembrar que há uma divertida lenda
africana que explica o fato das mulheres terem cabelos compridos. (SISTO, 2014).
Piasson (2013) aponta, para conhecer a lenda africana que explica o fato das mulheres
terem cabelos compridos, acesse:
<https://issuu.com/professorandre/docs/mitos_e_lendas_africanas>.
E para completar os elementos dessa adaptação, temos os versos com que o Quibungo
e o príncipe Dakarai chamam Rapunzel. O monstro diz: “Rapunzel, Rapunzel/a
comida está aqui;/Rapunzel, me obedeça/deixe o cabelo cair”. O príncipe diz:
“Rapunzel, Rapunzel/me escute, linda criança;/Rapunzel, Rapunzel, jogue aqui a sua
trança”. E a musicalidade da história é mantida. E a ação provocada pelo medo
instintivo torna-se um ato de alegria, pela primeira vez. Pois essa alegria, temperada
de sorrisos e amor à primeira vista serve de contraponto para a maldade e o desejo de
vingança do monstro, que depois vai acusar o príncipe de “querer roubar sua criança”.
Essa, é a luta “espiritual” dos contos de fadas, que se concretiza com a união no
casamento (SISTO, 2014).
Na cultura africana, o casamento também é considerado um mito de transformação.
4º Intervalo: Viveram juntos pelo mundo afora
No mesmo dia em que o Quibungo corta as tranças de Rapunzel, Dakarai aparece e
chama pela amada. Acontece que para enganá-lo, o monstro prende as tranças na ponta de um
bambu para facilitar que o príncipe suba até a torre. Ao alcançar a janela, Rapunzel ainda tenta
avisá-lo, mas o monstro o empurra e ele cai em cima de plantas espinhantes e fica todo
machucado. No intuito, de ver o que tinha acontecido com o amado, Rapunzel corre até a janela
e esbarra no Quibungo que acaba caindo das alturas e arrebentando-se no chão. Então, a bela
moça negra desce da torre pelas escadas de bambu, chorando muito. No entanto, suas lágrimas
curam as feridas de Dakarai e eles passam a viver juntos pelo mundo afora.
Como a punição é também prerrogativa do conto de fadas, nosso Quibungo tem um
fim estrondoso e o casal vai viver perto do povo a que o príncipe descende, “onde
viveram juntos pelo tempo afora”, tramando de outra forma o “felizes para sempre”,
aproximando-o da tribo e da coletividade (SISTO, 2014).
Dando continuidade, o professor poderá trazer outros contos que foram adaptados por
Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho, no intuito de estabelecer uma relação
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interdisciplinar e trabalhar o encantamento da tradição, entre eles: “Cinderela e Chico Rei”,
“Afra e os três lobos guarás” e “Joãozinho e Maria”.
O docente também poderá projetar para os alunos a animação feita de “Rapunzel e o
Quibungo” pelo projeto “A Cor da Cultura”, por meio do programa “Livros Animados”.
O projeto “A Cor da Cultura” é uma parceria entre o Canal Futura, o CIDAN – Centro
de Informação e Documentação do Artista Negro, a SEPPIR – Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a TV Globo, a TV Educativa e a Petrobras,
visando unir esforços para a valorização e preservação do patrimônio cultural afro-
brasileiro. (SANT'ANNA, 2005, p. 7)
No episódio do Livro III – Ep. 04, a apresentadora Vanessa Pascale e um grupo de
crianças mergulham nas histórias dos livros “Rapunzel e o Quibungo” e “Joãozinho e Maria”.
Para assistir ao episódio, acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=FI-dwHTtZMM>.
4º Momento – Interpretação
Na obra “Rapunzel e o Quibungo”, pode-se dizer que o trabalho com a construção de
sentidos envolve tanto as inferências realizadas pelos leitores quanto as formuladas pelo
docente, durante a expansão de conhecimentos nos intervalos de leitura.
A interpretação, em um primeiro momento, passa pela decifração/pelo íntimo do aluno
leitor, que possivelmente nunca leu e ouviu contos de fadas adaptados para a cultura afro-
brasileira, sendo contados por familiares e/ou professores. É comum nas escolas brasileiras,
trabalhar-se com os tradicionais contos de fadas, mas sempre dentro de uma visão eurocêntrica,
por isso na história de vida dos leitores são esses enredos que se fazem presentes.
Em um segundo momento, ocorre a materialização da interpretação como ato de
construção de sentidos, ou seja, espera-se que os leitores se identifiquem e busquem o
pertencimento a uma determinada etnia, pela adaptação do conto, que traz em evidência a
cultura afro-brasileira, provocando assim o empoderamento e o compartilhamento de
conhecimentos. Para tanto, a sistematização da sequência didática básica e a interpretação
ocorrerão por meio da dramatização da obra “Rapunzel e o Quibungo”. A dramatização será
feita pelos alunos leitores, que utilizarão a técnica do teatro de fantoche de vara.
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O teatro, no ensino fundamental, proporciona experiências que contribuem para o
crescimento integrado da criança e do adolescente sob vários aspectos. No plano
individual, proporciona o desenvolvimento de suas capacidades expressivas e
artísticas; no plano coletivo, por ser uma atividade grupal, oferece o exercício das
relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexão sobre como agir com os
colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia, como
resultado de poder agir e pensar com maior “liberdade”. (CAMARGO, 2003, p. 39)
Para a interpretação, sugerem-se quatro momentos de trabalho, conforme segue:
1) Confecção dos personagens:
Solicitar aos alunos leitores que façam o desenho dos personagens citados na história
em papel sulfite, caracterizando-os da melhor forma possível. Auxiliar os educandos, os
ajudando a listar as figuras dramáticas que poderão ser desenhadas: Rapunzel,
Quibungo, pais de Rapunzel, Dakarai, o cão de caça de Dakarai e pessoas da aldeia. Se
desejarem os alunos também poderão reproduzir as imagens dos alimentos que o
Quibungo levou para Rapunzel (cesto com mandioca, peixe e farinha) e/ou as frutas
ofertadas por Dakarai à moça (coco, cupuaçu, cajá, umbu e graviola).
Recortar os contornos dos desenhos e colá-los em papel cartão, recortando-os
novamente para que fiquem firmes.
Colar na parte de trás do desenho um pau de espetadas (vara), com o auxílio de cola de
isopor ou fita adesiva. Os fantoches de vara já estão prontos para usar.
2) Criando os espaços:
Em uma caixa de papelão grande, fazer um recorte em forma de janela para que ocorra
a apresentação do teatro de fantoche de vara nesse espaço cênico. Na frente da caixa,
reproduzir os espaços que permeiam toda a história. De um lado mostrar a Lagoa do
Abaeté (local onde Rapunzel foi raptada) e do outro reproduzir a torre de bambu no alto
da castanheira (local onde Rapunzel ficou presa).
3) Preparando o enredo:
Divida os alunos em grupos para a apresentação. Solicite que escolham quem será o
narrador da história e quem fará a fala de cada um dos personagens. Deixe que eles
reproduzam os diálogos da história, que criem novos, que aumentem ou modifiquem a
narrativa, conforme suas interpretações. O importante é que cada aluno leitor possa
externalizar sua leitura, além de trabalhar a oralidade (entonação, dicção e criatividade).
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Aprender a manipular os fantoches de vara também é muito importante, assim como a
trilha sonora escolhida para fundo da apresentação, que pode ser preparada com
antecedência. Uma boa sugestão é trazer para os alunos músicas com ritmos diferentes
das que conhecem – Coração de Rubi, canção gravada por Zé Ramalho com a
participação de Maria Lúcia de Godoy possui uma letra interessante de ser trabalhada.
A letra e o áudio da canção encontram-se disponíveis em:
<https://www.vagalume.com.br/ze-ramalho/coracao-de-rubi.html>.
Importante: os registros das interpretações literárias irão variar conforme a idade dos
alunos e a série escolar, bem como de acordo com a princesa e/ou príncipe que se pareça
com cada um (o que remete ao momento da Motivação).
4) Gravação da peça teatral:
Depois de tudo preparado, o professor poderá gravar com o celular as apresentações dos
teatros, no intuito de projetá-las em uma reunião de pais posteriormente. Ao trabalhar
os enredos que brotaram das interpretações com os familiares de forma impressa ou
digital, o docente também estará despertando o encantamento pela Literatura
Infantojuvenil Afro-Brasileira de forma afirmativa.
Considerações Finais
O trabalho com a Literatura Infantojuvenil Afro-Brasileira na escola deve ocorrer a
partir da implementação de uma proposta pedagógica curricular que efetivamente contemple a
Lei nº 10639/03, em toda a Educação Básica. Em seu escopo, a Lei indica “o estudo da História
da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, como elementos importantíssimos para o resgate da
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do
Brasil”. Na área da Literatura tal trabalho ganha indiscutível relevância, pois a arte literária
produz a humanização, provocando nos leitores o encantamento e o empoderamento sobre a
própria identidade.
No entanto, a seleção do livro infantojuvenil deve passar por um crivo apurado, tendo
em vista a necessidade de apresentar enredos e ilustrações em que negros(as) apareçam de forma
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positiva, tanto no espaço da cultura do papel como na indicação de links e hipertextos
vinculados ao ciberespaço.
A internet possui um vasto material sobre a cultura africana e afro-brasileira que pode
ser explorado, principalmente pelos estudantes, “nativos digitais”, que precisam interagir com
aspectos históricos e culturais que caracterizam a formação da população brasileira. Nesse
sentido, acredita-se que a obra “Rapunzel e o Quibungo” apresenta diversos elementos que além
de trabalhar a beleza literária, também contribuem para o sentido de pertencimento de crianças
e jovens negros(as).
A sociedade contemporânea precisa refletir sobre os modos de pensar e agir, pois só
assim a ideia de respeito à diversidade se consolidará.
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de estrutura. G1 BA Globo. Com, 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/bahia/salvador-
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