o discurso do consumo “a seus pés”: um estudo da narrativa...

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) O Discurso do Consumo “a Seus Pés”: um estudo da narrativa publicitária de Havaianas a partir da releitura da obra Abaporu 1 Jane de Freitas Misseno Mündel 2 Professora da Graduação ESPM SP e Mestranda do PPGCOM ESPM SP Resumo Este artigo é um texto produzido a partir de reflexões sobre o discurso publicitário contemporâneo que, por conta comoditização dos produtos e serviços, passam a apelar mais às emoções, aos benefícios sensoriais, do que aos aspectos racionais. O storytelling, o montar um enredo e contar histórias, passa a ser uma das principais estratégias criativas da publicidade. Principalmente em momentos de oportunidade. Para isso, utilizou-se como objeto os anúncios de mídia impressa de Havaianas inspirados na obra Abaporu, de Tarsila do Amaral por ocasião da comemoração dos 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Apoiado em autores que tratam do tema comunicação, cultura e consumo, é feita uma contextualização da publicidade enquanto responsável pela orquestração das relações de interação e empatia entre marca e indivíduos e o entendimento da chamada “releitura” de obras como forma de a publicidade atribuir significado junto ao seu público. Palavras-chave: Comunicação e consumo; cultura e arte; publicidade; Havaianas; Abaporu Introdução O conceito de comunicação engloba múltiplos sentidos. Trata-se de um campo que, como processo, “[...]além dos elementos básicos ‘emissor-meio-mensagem- receptor’, os estudos de comunicação cada vez mais tomam como foco a percepção, 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 – Consumo, Literatura e Estéticas Midiáticas, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Professora da Graduação ESPM SP, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da ESPM, especialização em Ciências do Consumo Aplicadas, pela ESPM e graduada em Comunicação Social também pela ESPM. E-mail: [email protected]

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PPGCOM  ESPM  //  SÃO  PAULO  //  COMUNICON  2015  (5  a  7  de  outubro  2015)  

O Discurso do Consumo “a Seus Pés”: um estudo da narrativa publicitária de Havaianas a partir da releitura da obra Abaporu1

Jane de Freitas Misseno Mündel2

Professora da Graduação ESPM SP e Mestranda do PPGCOM ESPM SP

Resumo Este artigo é um texto produzido a partir de reflexões sobre o discurso publicitário contemporâneo que, por conta comoditização dos produtos e serviços, passam a apelar mais às emoções, aos benefícios sensoriais, do que aos aspectos racionais. O storytelling, o montar um enredo e contar histórias, passa a ser uma das principais estratégias criativas da publicidade. Principalmente em momentos de oportunidade. Para isso, utilizou-se como objeto os anúncios de mídia impressa de Havaianas inspirados na obra Abaporu, de Tarsila do Amaral por ocasião da comemoração dos 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Apoiado em autores que tratam do tema comunicação, cultura e consumo, é feita uma contextualização da publicidade enquanto responsável pela orquestração das relações de interação e empatia entre marca e indivíduos e o entendimento da chamada “releitura” de obras como forma de a publicidade atribuir significado junto ao seu público.

Palavras-chave: Comunicação e consumo; cultura e arte; publicidade; Havaianas;

Abaporu

Introdução

O conceito de comunicação engloba múltiplos sentidos. Trata-se de um campo

que, como processo, “[...]além dos elementos básicos ‘emissor-meio-mensagem-

receptor’, os estudos de comunicação cada vez mais tomam como foco a percepção,

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 – Consumo, Literatura e Estéticas Midiáticas, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Professora da Graduação ESPM SP, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da ESPM, especialização em Ciências do Consumo Aplicadas, pela ESPM e graduada em Comunicação Social também pela ESPM. E-mail: [email protected]

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[...] interpretação, pensada do ponto de vista da subjetividade e a significação com

base no discurso.” (TONDATO, 2015).

Por outro lado, cada vez mais percebe-se o entendimento do papel da

comunicação na estruturação de laços sociais, dos vínculos entre as pessoas,

possibilitando o entendimento recíproco entre as mesmas, constituindo um elemento

de integração e interação social.

Gregory Bateson, trata a comunicação “não mais e apenas como ato

individual, e sim como um fato cultural, uma instituição e um sistema social. [...]

como uma orquestração ritual [...]”. (SAMAIN, 2001).

Nesse campo, a publicidade é uma das ferramentas responsáveis por essa

“orquestração”, por fazer circular seu discurso, sua mensagem – pelos ambientes

midiáticos - e assim gerar tal integração e interação entre os indivíduos. Ambientes

midiáticos esses que, como sistema, segundo Carrascoza (2014, p. 8) é considerado

como um universo que imbrica o material e o simbólico de todos os meios de

comunicação e está presente na vida dos consumidores a toda hora e em todo lugar.

“A publicidade abrange um sistema de comunicação midiática que povoa o cotidiano contemporâneo, não apenas informa, por meio de uma retórica particular, os features dos produtos, ou os diferenciais dos serviços oferecidos pelos anunciantes, mas tem o objetivo de incitar o consumo. [...] ela é a mercadoria, disseminada no mercado simbólico, que discursa favoravelmente, de forma explícita, sobre todas as demais.” (CARRASCOZA, 2014, p. 53).

E, ao incitar o consumo, a comunicação se manifesta também por meio dos

objetos, sejam eles bens de consumo ou não.

Para Douglas e Isherwood (2006, p. 115), “o consumo usa os bens para tornar

firme e visível um conjunto particular de julgamentos nos processos fluidos de

classificar pessoas e eventos. [...]”. De acordo com esses autores, o consumo traduz as

relações sociais e produz sentido sobre cada indivíduo e sua posição social. Ao se

consumir um objeto ou marca, o sujeito deixa claro quem ele é. “Os bens são,

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portanto, a parte visível da cultura. São arranjados em perspectivas e hierarquias que

podem dar espaço para a variedade total de discriminações de que a mente humana é

capaz.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 114).

Já, Carrascoza (2014, p. 8), afirma que “[...] a sociedade de consumo é

formada pelos fluxos comunicacionais que carregam grandes, pequenos e

microdiscursos, de ontem e de hoje, que se misturam, se fundem, se aglutinam o se

repelem.” Essa mistura de discursos, muitas vezes, suprime os limites entre ficção e

realidade, ponto presente na análise abordada por este artigo.

Ainda sobre a sociedade de consumo, e considerando-se os fluxos

comunicacionais conforme abordado acima, Everardo Rocha (2010, p. 32) deixa claro

o “quanto de espaço está disponível para a publicidade falar com a sociedade e falar

dessa sociedade.” Isso porque

“O consumo de anúncios não se confunde com o consumo de produtos. [...] o que menos se consome num anúncio é o produto. Em cada anúncio vendem-se estilos de vida, sensações, emoções, visões de mundo, relações humanas, sistemas de classificação, hierarquia [...]”. (ROCHA, 2010, p. 32)

Para Rocha (2010), a publicidade é o passaporte, o documento de saída da

produção e o visto de entrada no consumo.

E essa entrada no consumo pode se dar de diversas maneiras na publicidade.

Seja em peças de varejo, seja em anúncios de produtos ou serviços, em peças

institucionais – em que se divulgam apenas um conceito e personalidade de marca -,

seja em product placement ou em anúncios de oportunidade (aqueles que aproveitam

algum fato que virou notícia, ou uma data comemorativa específica, para divulgar um

produto ou serviço, favorecer uma marca e estimular os comentários boca-a-boca..

Os anúncios de oportunidade têm como característica a rápida veiculação

(imediatamente ao fato ocorrido ou data comemorativa) para que o público possa

entender do que se trata. Eles compõem uma estratégia interessante da empresa para

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chamar a atenção dos consumidores diante da concorrência e aumentar a visibilidade

da marca

A proposta deste artigo está em justamente analisar a lógica da produção da

mensagem e estímulo ao consumo, não apenas de produto, mas sim do ideário, do

imagético, do simbólico, a partir de uma peça de oportunidade das sandálias

Havaianas para a celebração dos 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922.

Aos pés da arte ou a arte aos seus pés

Em 2012, ano em que a famosa Semana de Arte Moderna de 1922

comemorava seus 90 anos, a marca de sandálias de borracha Havaianas aproveitou a

oportunidade para fazer uma homenagem a essa que significou importante data para a

cultura brasileira.

Inspirada nas obras dos modernistas da época, como Tarsila do Amaral e Di

Cavalcanti – um dos idealizadores da Semana -, a empresa criou dois modelos de

sandálias com ilustrações das principais obras desses artistas: “Sonhos de Carnaval”,

de Di Cavalcanti, e “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, conforme imagem da Figura 1,

abaixo3.

Figura 1 – Sandálias Havaianas com ilustrações das obras modernistas

3 Fonte: http://itdesignblog.com/2012/08/24/havaianas-semana-de-arte-moderna/ - acesso em 28/07/2015  

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Aproveitando-se do fato de o produto – sandálias Havaianas – ser

essencialmente brasileiro, assim como as obras de arte da oportuna data celebrada,

observa-se aí o exemplo do bem que traz estampado e coisifica a própria cultura, que

torna-se ele mesmo um meio de divulgação, que comunica e democratiza o consumo

da arte.

O indivíduo, ao adquirir e usar tais modelos de sandálias Havaianas, evidencia

seu “entendimento”, sua interpretação e “apreço” pelas artes plásticas e dá

significado a elas e ao seu estilo de vida.

Segundo Slater (2002), todo consumo é cultural. Isso porque sempre envolve

um significado; os significados envolvidos são necessariamente significados

partilhados; todas as formas de consumo são culturalmente específicas – articuladas

dentro ou em relação a modos de vida significativos e específicos e, por fim,

“[...] é através de formas de consumo culturalmente específicas que produzimos e reproduzimos culturas, relações sociais e, na verdade, a sociedade. Ser um membro de uma cultura ou de um ‘modo de vida’, [...] implica o conhecimento dos códigos locais de necessidades e coisas. Conhecendo e usando os códigos de consumo de minha cultura, reproduzo e demonstro minha participação numa determinada ordem social” (SLATER, 2002, p. 131).

E assim se percebe a manifestação dessas obras de arte – de acordo com sua

importância significativa na cultura brasileira – e o provável conhecimento e

significado, como dito acima, atribuído por parte do público que a reconhece e é

capaz de “consumí-la” numa peça de Havaianas e de reproduzir esse consumo por

meio do uso do produto que a traz estampada.

“A cultura tanto pode ser considerada algo comum quanto ideal: pode ser, por um lado, uma forma de descrever o caráter significativo da vida de uma coletividade ou, por outro lado, pode ser uma esfera mais refinada de objetos culturais valorizados (arte e literatura, pensamento e filosofia), bem como de valores intrínsecos a esses objetos e às elites que os produzem ou apreciam [...]” (SLATER, 2002, p. 68).

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ABAPORU: o pé que teria uma Havaianas

O “Abaporu”4 é considerado, pelo mercado de artes plásticas, uma das obras

de arte mais importantes e mais valiosas já produzida no Brasil.

Em janeiro de 1928, Tarsila do Amaral – artista plástica nascida em Capivari,

interior de São Paulo - pintou um quadro para dar de presente para o escritor Oswald

de Andrade, seu marido na época.

Segundo descrito na página de website oficial de Tarsila, quando Oswald viu a

tela, impressionou-se. Ainda de acordo com o website, diz-se que juntos, ficaram

olhando para aquele ser ali presente, aquela imagem estranha, e acharam que ela

representava algo de excepcional: uma figura solitária, nua, de certa forma

monstruosa, o pé gigante e descalço, sentada numa planície verde, o braço dobrado

num joelho com a mão sustentando uma cabeça minúscula. Boca e olhos praticamente

sumidos, e uma das mãos caída ao lado do pé imenso. Em frente, um cacto e um sol

ardente– que pode ser uma flor do próprio cacto.

Aquela figura monstruosa, de pés enormes, plantados no chão ao lado de um

cacto, sugeriu a Oswald de Andrade a ideia da terra brasileira, do homem nativo,

selvagem, antropófago... Aliás, a obra traz fortes características brasileiras, como as

cores da bandeira nacional (verde, amarelo e azul). Tarsila lembrou-se, naquele

momento, de seu dicionário tupi-guarani e batizaram o quadro de “Abaporu” (o

homem que come carne humana, o antropófago). Foi então, a partir dessa peça, que

Oswald escreveu o Manifesto Antropófago e, juntos, criaram o “Movimento

Antropofágico”, com a intenção de "deglutir" a cultura europeia e transformá-la em

algo bem brasileiro. Esse Movimento foi muito importante para a arte nacional e

significou uma síntese do Movimento Modernista brasileiro, que queria modernizar a

nossa cultura, mas de um modo bem próprio, valorizando o País.

4 Fonte: http://tarsiladoamaral.com.br - Acesso em 16/07/2015

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Com a homenagem de Havaianas para os 90 anos da Semana de Arte Moderna

de 1922, diversos anúncios de oportunidade criados por vários publicitários e

estudantes de comunicação, começaram a surgir nos meios de comunicação,

principalmente na internet, trazendo o Abaporu, de Tarsila do Amaral -, numa

releitura em que apresenta o produto Havaianas associada a ela. Na figura 2, abaixo5,

a representação da obra original de Tarsila do Amaral.

Figura 2 – Imagem divulgação da obra Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral

Na figura 3, abaixo6, e na 4, um pouco mais à frente, releituras da obra sob a

perspectiva de publicitários que, ao observar diante de si o pé gigante e descalço do

ser solitário, atrelam de forma oportuna uma trama de “consumo” de um bem –

Havaianas – a uma narrativa preestabelecida pela obra de arte original.

5 ABAPORU, 1928, óleo sobre tela, 85x73 cm, (P101), Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires – Fundación Costantini, Buenos Aires, Argentina. Fonte: http://tarsiladoamaral.com.br - Acesso em 16/07/2015 6 Autor desconhecido. Fonte: http://itdesignblog.com/2012/08/24/havaianas-semana-de-arte-moderna/ - acesso em 28/07/2015  

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Figura 3 – Anúncio, mídia impressa, de Havaianas

“A publicidade, sendo um produto ficcional – que traz enraizado em sua materialidade e em seu discurso as condições existenciais da sociedade, o pensamento e o imaginário da época em que foi criado -, também expressa a historicidade na construção simbólica de suas narrativas, [...]” (CARRASCOZA, 2014, p. 11).

É importante, aqui, entender a releitura de uma obra como uma “composição

ou criação de alguma coisa a partir de outra existente; elaboração de uma obra tendo

outra como base; ação de interpretar alguma coisa, acrescentando algo novo e

original.”7

Assim, a releitura publicitária da obra em questão, conforme apresentado

acima, não é simplesmente uma cópia, nem plágio. Consiste, sim, na criação de uma

nova obra, realizada a partir de outra feita anteriormente acrescentando, nela, uma

nova produção, um novo sentido, uma nova história.

É fácil observar que a figura 3 muda toda a narrativa imagética da peça ao

acrescentar apenas um “detalhe” à obra original: uma sandália Havaianas no pé de

Abaporu.

7 Fonte: Dicio – Dicionário de português online. Disponível em http://www.dicio.com.br/releitura/ - acesso em 28/07/2015.

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“[...] os detalhes parecem ser apenas detalhes. Mas, em verdade, são estratagemas narrativos, que visam emoldurar diante do leitor partes de um universo impossível de ser apreendido com um único olhar. Toda narrativa segue essa lógica. Toda narrativa, de certa forma, é regida por uma estética de seleção [...]” (CARRASCOZA, 2014, p. 38).

Pode-se dizer, desta feita, que a arte interpreta o mundo e dá forma, dá vida,

ao que parece inerte. Para Carrascoza (2014, p. 41) “a vida é desprovida de forma.

Cabe ao artista delinear, seja qual for seu modo de expressão, os traços de seu

universo pessoal, valendo-se do detalhe para lhe dar verossimilhança [...]”. O

publicitário autor da peça em questão, atuou como um artista dando vida e

“humaniza” o Abaporu. Ele, Abaporu, não está mais sozinho, nu. Ele tem Havaianas.

E uma vez que o detalhe é um item que contribui para a verossimilhança da

narrativa, a cena de consumo – de um produto material ou simbólico -, sendo um

detalhe dentro do storytelling de uma peça publicitária, cumpre esse papel na trama.

O detalhe das Havaianas no grande pé de Abaporu, esse detalhe que o humaniza e lhe

atribui emoção e sentimento, “é concebida para que o espectador, acompanhando o

movimento da história, ‘veja’ e ‘perceba’ o produto ou os benefícios que ele lhe traz

se o consumir”. (CARRASCOZA, 2014, p. 47). O slogan “Havaianas. Todo mundo

usa”, estampado na peça, contribui para tal interpretação do consumidor: até o

Abaporu, de Tarsila, usa Havaianas”.

Como parte dos objetivos de qualquer peça publicitária, estabelece-se, desta

forma, a empatia da marca Havaianas junto ao seu público. Ficção e realidade se

misturam. Obra e audiência se conectam. Abaporu e indivíduos fazem parte do

mesmo mundo. Compartilham do uso de Havaianas. Assim como coloca García

Canclini (1999) ao afirmar que os sujeitos que consomem o mesmo produto

consideram-se ligados aos movimentos e ideário de um grupo, pois o consumo gera a

sensação de pertencimento.

Por outro lado, a figura 4 mostra um anúncio mais recente, criado após o

momento de oportunidade da data comemorativa citada anteriormente, e que

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explicita um discurso novo, contemporâneo, em novo cenário, com outros traços

gráficos, porém valorizando o angulo em que apresenta o personagem principal (neste

caso, a caricatura da atriz Mariana Ximenes, uma das garotas propaganda da marca)

como forma de deixar evidente o pé direito, em tamanho gigantesco, voltado para o

mesmo sentido em que está o pé de Abaporu, roubando a cena e usando Havaianas.

Percebe-se direta conexão com a obra de Tarsila do Amaral.

Figura 4 – Anúncio, mídia impressa, de Havaianas, 20148.

“A publicidade junta tudo magicamente. Na sua linguagem, um produto vira uma

loura, o cigarro vira saúde e esporte, o apartamento vira a família feliz, [...]

classificando o lado da produção com o do consumo.” (ROCHA, 2010, p. 136). E o

Abapuru vira um pé, “o” pé, mas com Havaianas. Para Rocha (2010), de forma

fantasiosa, os anúncios nos contam de coisas para além das categorias de verdade e

mentira. “O plano no qual eles se colocam é outro. É sem dúvida, um plano mágico

em que o efeito de ilusão é a regra do jogo.” (ROCHA, 2010, p. 158).

O “passo” final

As mudanças no cenário midiático trouxeram novos desafios para a

comunicação. Os consumidores nunca tiveram acesso a tantas informações. Num

8 Fonte: https://www.havaianas.com.br/pt-br/propaganda - acesso em 28/07/2015

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momento em que muito se fala sobre esse excesso de dados, da saturação de

mensagens publicitárias e, consequentemente, da dispersão da atenção da audiência

nos grandes centros urbanos, sabe-se que as corporações têm empregado, cada vez

mais, energia e capital humano e financeiro para a obtenção do interesse e

consideração do público em relação às suas marcas, produtos ou serviços. Com esse

desafio presente no dia-a-dia, além da concorrência acirrada entre os players do

mercado, torna-se imprescindível a busca por ações claras e evidentes de

diferenciação junto ao público.

Com a comoditização dos produtos e serviços, percebe-se um movimento das

campanhas publicitárias que passam a apelar mais às emoções, aos benefícios

sensoriais, do que aos aspectos racionais. O storytelling, o montar um enredo e contar

histórias, passa a ser uma das principais estratégias criativas da publicidade. E é assim

que Havaianas atua na produção de seus discursos publicitários, apostando

principalmente no imagético como forma de atribuir significado junto ao seu público.

“[...] a publicidade opta por emocionar o consumidor, buscando gerar sua empatia com o produto, ela se guia pelos valores do quadrante ‘euforia’ (entre os polos lúdico e prático). O material publicitário, nesse caso, procura influenciar o consumidor acentuando euforicamente em seu conteúdo o humor, o entretenimento, a sensibilidade.” (CARRASCOZA, 2014, p. 56 e 57).

Como observado nas peças de oportunidade e releitura do Abaporu, ao apostar

na aproximação emocional, a comunicação de Havaianas busca utilizar novas

maneiras de se estabelecer junto ao público, bem como gerar interesse e

compartilhamento positivo de informações e percepções. A marca humaniza, agrupa e

“re-significa” o consumo de seus produtos.

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Referências CARRASCOZA, João A. Estratégias criativas da publicidade: consumo e narrativa publicitaria. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014. CASTRO, Gisela G. S. Entretenimento, subjetividade e consumo nas redes digitais: mobilização afetiva como estratégia de negócios. 2013. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-1461-1.pdf - acesso em 15/07/2015 DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São Paulo: Brasiliense, 2010. SAMAIN, Etienne. Gregory Bateson: rumo a uma epistemologia da comunicação. 2001. Disponível em: http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/revista/article/view/309 - acesso em 13/06/15 SLATER, Don. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel, 2002. TONDATO, Márcia P. Entre objetos e teorias: uma trajetória de construção das ciências da comunicação, Texto-base de introdução à disciplina Teorias da Comunicação e da Mídia, 2015-1