o dispositivo televisivo - fcsh.unl.pt dispositivo televisivo.pdf · produção de saber e fazer,...
TRANSCRIPT
O DISPOSITIVO TELEVISIVO (de ‘O Fenómeno Televisivo’, de F. R. Cádima, Círculo de Leitores, Lisboa,
1995))
A relação dos media com o mundo - e designadamente a relação
específica da "máquina" televisiva - é, no seu complexo campo reticular de
produção de saber e fazer, simultâneamente desestabilizadora e apaziguadora,
na medida em que a prosa precária que a televisão induz, emerge ora como
momento fundador de visibilidade, ora como instrumento de verdade do qual
não devem ser iludidos os seus dispositivos, os seus poderes e os seus limites.
A televisão é, por excelência, uma máquina produtora de redundância,
isto é, recicla continuamente no seu dispositivo e organiza no seu fluxo
discursivo, um novo espaço-tempo, uma visão do mundo generalista e
compósita. Como se se tratasse de uma grande estrutura narrativa que faz
circular em torno de esquemas invariantes um fluxo contínuo e homogéneo de
programas.
Existe, por assim dizer, uma acção socializante do imaginário televisivo
que se configura nos modelos estabilizados das suas "grelhas" de
programação e das suas formas de representação do mundo, as quais
conduzem, grosso modo, ao espectáculo de ritualização da cultura e da
informação. Sintoma, cujo princípio de realidade se manifesta sem se
autodesignar, isto é, trabalha num registo de ilusão naturalista e de criação de
efeitos de legitimação tendo por horizonte de conhecimento o seu contrato de
visibilidade e de credibilidade com o telespectador, um horizonte de
acontecimento, em suma.
Daí, o dispositivo televisivo parte para a construção do seu "puzzle" - ou
da sua "cultura-mosaico", como dizia Abraham Moles. Toda a sua complexa
organização discursiva, o seu dispositivo logotécnico, tem como primeira acção
do seu interface - do seu écran de univocidades -, solicitar a capacidade de
identificação do telespectador enquanto parte da audiência, envolvendo-o num
fluxo de tempo sem memória e imaterial, pelo carácter efémero de
materialização visual instantânea das imagens que difunde, estratégia de facto
redutora, designadamente quando se trata de um media com o impacto e o
poder de veicular saber que a televisão, objectivamente, tem.
Imagens em perda, portanto, écrans-espectáculo do esquecimento,
écran de superfícies múltiplas, ambos adstritos ao modelo tecnodiscursivo
unívoco da televisão clássica, onde, em acréscimo, a função hegemónica é, em
regra, a do "divertimento". Dispositivo tanto mais complexo quanto a máquina
televisiva se torna assim, de alguma forma, um "a priori" da consciência
moderna.
Pode por isso dizer-se que a televisão generalista clássica perdeu o
sentido da história, isto é, o seu dispositivo evolui de tal forma ao ritmo do
"quotidiano", como espelho de uma realidade prosaica, vulgar, que, com
alguma perversidade, o registo "telereal" se faz, nela, a uma velocidade
directamente proporcional à fugacidade da ordem natural das coisas, do
tempo, e do mundo...
De facto, a actual sociedade de comunicação, sobretudo com o auxílio
da panóplia audiovisual de fim de século, constituiu-se em "sociedade
transparente", embora o tenha conseguido numa espécie de duplicação do
mundo, provocando assim a erosão do tradicional - ou convencional - "princípio
de realidade". O mundo "verdadeiro" torna-se, então, fábula... E se a história
pode também ser interpretada como um inventário do esquecimento, a
televisão, mais do que inventariar a figura da raridade, no sentido de Foucault,
faz ascender à "dignidade" do seu écran, apenas determinados factos, em
preterição de todos os outros. Produz, por assim dizer, a grande amnésia do
tempo. Mas também aqui nada de fundamentalmente grave se passa (...), isto
é, a perda de memória e o esquecimento já se haviam transformado nos traços
estruturais da sociedade contemporênea...
Para além da "materialização" do mundo no seu dispositivo logotécnico -
técnico e discursivo -, a televisão tem essa faculdade particular de produzir e
reciclar as identidades colectivas, de criar um dispositivo simbólico partilhado -
uma "vida simbólica comum" 1, o que, em última instância, pode ser visto como
uma estratégia de agenciamento de conteúdos e de saberes à imagem do que
acontecia no século passado com a dependência dos meios de comunicação
pública da tutela jurídica-administrativa do Estado, como aliás também
acontecia com o telégrafo óptico, ou, já neste século, com o serviço público de
televisão enquanto sistema de comunicação estatal.
É fundamentalmente com o objectivo de caracterizar essa figura
identitária formada pelos elementos compósitos da raridade, dos seus
estereótipos - que o meio televisão institui como "real" a partir do seu próprio
dispositivo tecnodiscursivo -, que recorremos essencialmente à análise de
Michel Foucault, por forma a melhor problematizarmos a complexa rede de
relações entre os dispositivos maquínicos e as "arqueologias" da produção
mediática - e histórica - de um sentido e de uma "representação", ou da
caracterização de uma realidade social. É essa filiação histórica e arqueológica
que nos permitirá caracterizar o registo inacabado do contexto da emergência,
designadamente, do dispositivo televisivo e da ordem do mundo que este
institui - quantas vezes também em ruptura com as aquisições e a experiência
de um tempo passado.
Como é conhecido, em Foucault, a emergência de processos de
normalização do campo social e político deve ser entendida, em geral, em
função da progressiva disseminação das práticas de poder, em termos de um
"bio-poder". Essas novas formas de poder inscrever-se-iam inclusivamente nos
próprios processos de individuação e distinção dos sujeitos, tecendo uma
malha vinculante, trabalhando as práticas do sujeito num todo coerente. Por um
1 Desaulniers, Jean-Pierre, "Télévision et nationalisme", Communication et Information, Vol. VII, nº 3, pp.25-36.
lado, portanto, o poder não se deteria como uma espécie de totalidade
indivisível nem se transferiria como se se tratasse de uma propriedade, isto é, o
poder funcionaria, nesta perspectiva, como um complexo mecanismo, uma
"tecnopolítica" organizada em pirâmide, de cujo aparelho transcorre o fluxo que
produz o poder e cria um campo simbólico cujo espectáculo nao é já o da sua
exposição, mas antes o seu carácter disciplinar, a modalidade "panóptica" do
poder.
A noção de poder deveria então interpretar-se como um dispositivo
clássico, uma rede de relações, de práticas, de estratégias discursivas e
não-discursivas, que estariam directamente imbricadas nas condições de
enunciação, nas condições de exercício da função enunciativa, nas práticas
disciplinares e no contexto histórico-cultural que enforma a genealogia do
sujeito moderno. A própria dualidade ver/ser visto (bem como o I am/Eye am
proposto por McLuhan), que emerge de uma forma radical a par do universo
pós-tipográfico, como nova ordem disciplinar do olhar moderno, poderia ser
interpretada como um dispositivo de vigilância, um dispositivo panóptico de
espaços recortados, de acontecimentos registados, de indivíduos
"observados", um modelo compacto disciplinar onde os indivíduos, em vez de
sujeitos de comunicação, se tornam objecto de informação.
Verificar-se-ia assim, por um lado, o fim da concepção de poder como
núcleo central, como fonte de um fluxo unívoco de dominação e portanto
vértice "absoluto" de qualquer estrutura hierárquica, por uma concepção de
contaminação hipertélica e microfísica de poder, um poder difuso e
disseminado na multiplicidade de técnicas, discursos, práticas, espaços e
quotidianos; por outro lado, com as novas práticas de poder emergentes,
assiste-se também à expansão de "mecanismos anónimos" normalizadores
dos espaços públicos e privados, expansão essa que se verifica na ordem do
discurso, no que é dito, e, de uma forma mais complexa e insondável, no
domínio do não-dito, na ordem do "extra-discursivo". As teorias da
omnisciência discursiva e semiológicas cederiam assim às teorias dos
contextos historico-comunicacionais, às condições de enunciação, e à teoria da
acção social e comunicacional, no quadro das intenções socialmente dirigidas.
Daí decorrem também as críticas foucaultianas à teoria da essência do
Estado como modelo globalizante, preferindo considerá-lo uma realidade
compósita dentro de um universo de abstracção mitificada, procedendo deste
modo à substituição da análise dos aparelhos e estruturas que exercem o
poder - numa perspectiva althousseriana -, pela dos dispositivos que a
reorganizam e disseminam pelo corpo social, quer através da sua estratégia
"paródica", destruidora da realidade, quer através da estratégia dissociativa,
destruidora das identidades - que embora sendo "usos da história" 2 não
deixam de ser também "usos" dos media. Assim, em termos gerais, na procura
do "sentido histórico", a crítica à "estatização da sociedade" é substituída em
Foucault pela da "governamentalização do Estado" 3 .
Mas daí decorre também que à medida que os mecanismos anónimos
se tornam mais funcionais, os destinatários sobre os quais eles se exercem,
em vez de soçobrarem ao novo dispositivo, reforçam os seus processos de
defesa, a sua resistência, reforçam a sua individualidade, assistindo-se por isso
àquilo que se poderia considerar uma viragem nos processos disciplinares de
individuação. É um pouco a ideia de "inumano" em Lyotard - isto é, onde está o
perigo está também a capacidade que salva... Este novo conceito de "sujeito",
se assim se pode dizer, parece resistir inclusive à ideia de "normalização"
como instrumento absoluto de poder, bem como à caracterização da razão
clássica como "genocidária" - e, enfim, da modernidade como o universo de
todas as rejeições, de todo o ostracismo.
2 Michel Foucault, "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", Hommage a Jean Hyppolite, Paris, PUF, 1971. 3 Michel Foucault, "La gouvernementalité" (texto de uma lição), Actes - les cahiers d' action juridique, Paris, nº 54, été 1986, citado por Armand Mattelart, Le Carnaval des Images - la fiction brésilienne, Paris, INA, 1987, p. 119.
Mas, para Foucault, sublinhe-se, interessa sobretudo compreender
através de que mecanismos nos tornámos prisioneiros da nossa própria
história, isto através de uma análise das relações entre a racionalização e o
poder, de uma nova economia das relações de poder: «Este novo modo de
pesquisa consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de
poder como ponto de partida» 4.
Para Michel Foucault, o principal objectivo dessas formas de resistência,
dessas lutas, é a oposição a uma forma de poder que se exerce sobre a vida
quotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categorias, os designa na
sua individualidade própria, uma forma de poder que transforma os indivíduos
em sujeitos.
Daí ser mais importante pôr em evidência as relações de poder e de
poder/resistência do que analisar as figuras de poder do ponto do vista da sua
racionalidade interna. Seria então necessário promover novas formas de
subjectividade, «não para descobrir mas para recusar o que nós somos »,
libertando o sujeito de um duplo constrangimento, emergente na
simultaneidade dos processos de individuação e de totalização das estruturas
do poder moderno (Foucault, idem). Mas é fundamentalmente a caracterização
das práticas da nossa época que anunciavam um Foucault céptico. Essas
práticas seriam o produto de uma confluência de técnicas modernas,
iluministas, e antigas, de "decifração do eu", a fim de racionalizar a "polícia das
populações" - o bio-poder.
A emergência da escrita, como uma dessas técnicas antigas,
determinantes na constituição do sujeito, permite, pois, caracterizar o
dispositivo historico-cultural clássico, cujos meios de regulação dominantes não
se alteraram radicalmente na "comunidade comunicacional" pós-alfabética, ao
ponto de obrigarem, por assim dizer, à definição de um novo dispositivo.
4Foucault,"Deux essais sur le sujet et le pouvoir", in Michel Foucault, un parcours philosophique, de Dreyfus, H., e Rabinow, P., Paris, Gallimard, 1984.
Mesmo a crise do paradigma do progresso, o transpolítico e as "telerealidades"
de fim de século, indo mais longe que o seu próprio fim, apenas anunciam a
crise do dispositivo clássico, não pondo em causa nem o dispositivo
comunicacional moderno - que é, no fundo, a "actualização" do dispositivo
pós-alfabético, nem a especificidade orgânica e naturalista do media televisão,
que tendencialmente, enquanto dispositivo tecnodiscursivo e instrumental,
apresenta inclusivamente a irrupção do acontecimento mais imprevisível como
algo "previsível", e, de igual modo, tende a apresentar o acontecimento banal,
ou o pseudo-acontecimento, como "imprevisto".
Daí, procurarmos agora estabelecer os parâmetros através dos quais a
máquina televisiva trabalha - e se reproduz - a partir do seu dispositivo
específico, técnico e instrumental. O seu modo de agenciamento e de "mise en
ordre" do mundo e das coisas tem determinado claramente, ao longo da sua
história breve, não a informação sobre os referentes da própria realidade, não
os signos da história, nem tão pouco a ideia de singularidade, de liberdade, de
solidariedade, mas antes a reprodução hipertélica dos seus próprios códigos, a
manutenção do seu sistema de "continuum", de "fluxo", a megamáquina
produtora de redundância.
No plano estrito do dispositivo logotécnico da televisão importa agora,
mais para além do quadro epistemológico proposto por Foucault, procurar a
especificidade da linguagem televisiva e, designadamente, o seu dispositivo
tecnodiscursivo, o qual releva, desde logo, da proximidade originária aos
modelos discursivos e narrativos do cinema. Essa especificidade tem de facto
desde há muito vindo a ser analisada em termos comparativos com a própria
linguagem cinematográfica. Christian Metz 5 havia inicialmente colocado a
questão, em termos genéricos, considerando que televisão e cinema
compartilhavam, por assim dizer, alguns dos mesmos "recursos expressivos". 5 Ver designadamente a sua obra Langage et cinéma, Paris, Larousse, 1971. No caso presente foi utilizada a versão castelhana - Lenguaje y Cine, Barcelona, Editorial Planeta, 1973, particularmente o capítulo X.5., "Cine y Televisión".
Tratava-se então de estabelecer uma identidade própria, de um ponto de vista
semiótico, para o "específico televisivo", embora Metz concluísse que cinema e
televisão constituem nas suas características "físicas" essenciais uma única e
mesma linguagem.
Recuando um pouco mais e procurando na própria teoria do cinema,
nomeadamente com Gilbert Cohen-Séat 6, a forma como o específico fílmico
poderia constituir ponto de partida para a caracterização das modalidades
concretas do código televisivo, deparar-nos-íamos com a necessidade de
recorrer à caracterização de um "discurso significante localizável" através de
unidades mínimas ou de sintagmas específicos que, em televisão, na sua
articulação discursiva ou narrativa com as modalidades específicas
cinematográficas, poderiam ser encontrados em "objectos de linguagem" ou
em "factos televisivos", tais como a informação, mas mais claramente na
"sitcom", ou no "docudrama" que são os géneros que trabalham mais os
códigos diferenciais existentes entre cinema e televisão.
Nos seus "Apontamentos sobre televisão", Umberto Eco 7 refere, no
entanto, que foi na "tomada directa" que a televisão foi encontrar aquelas
características pelas quais se pode distinguir de outras formas de
comunicação. A verdade é que no final dos anos 50 - altura em que esta tese
começou a ganhar corpo -, o "directo" era ainda a lei em grande parte das
emissões televisivas - designadamente pelas dificuldades iniciais no recurso
constante à "telegravação" e, depois, também, pelas dificuldades logísticas no
recurso ao videotape. Mas, de facto, foi através do directo que surgiu um
"modo de contar" os factos e de legitimar os acontecimentos totalmente diverso
do que se vinha a fazer até então.
Ao emitir as imagens de um acontecimento no momento da sua
ocorrência - o que implica determinadas dificuldades específicas da 6 Cf. Essai sur les principes d'une philosophie du cinéma, Paris, PUF, 1946. 7 Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1970, pp. 362-363.
organização de um relato "não depurado" -, ainda por cima sujeito, ao contrário
do cinema, ao irrelevante e ao imponderável, a televisão encontra a forma de
mostrar o tempo na sua "durée", e isso era de facto novo. A simultaneidade e
globalidade do directo vinha de facto organizar um novo espaço-tempo cujo
registo é desde logo o da "telerealidade", registo onde velocidade e
proximidade completam a ilusão do dispositivo "global" da televisão.
Mas nomeadamente a partir dos anos 60, verifica-se que as narrativas
clássicas adaptadas a televisão, mercê fundamentalmente do aparecimento do
videotape, e das possibilidades de montagem em video, passam a ter uma
cada vez maior utilização de novos processos de visibilidade como a
découpage. A prática do corte, da manipulação do campo/contracampo, a
inserção, ou o tratamento da durée, do script, etc. -, passam a expor-se a uma
outra apropriação que não a do directo. O campo da informação passa assim a
ser um dos géneros em que a utilização do directo se faz agora de um modo
específico, de acordo com a natureza da prática jornalística.
Tudo se tornava mais complexo, porém, no plano do discurso do "fluxo".
A articulação de algumas das especificidades da nova linguagem televisiva
com o que já era conhecido do cinema, introduz, por assim dizer, uma rede
códica 8 que comporta uma complexa pluralidade de discursos, por um lado
distintos uns dos outros, e, por outro lado, confundidos no fluxo contínuo, o que
quer dizer que a estrutura da linguagem televisiva, composta portanto de um
certo número de códigos - tantos quantos aparentemente compõem o espectro
de emissão diária, designadamente, possui um novo código que ordena as
relações de todos os códigos componentes dando uma nova coerência 8 Segue-se aqui a proposta de Jorge Urrutia (1973:9) que na Introdução à edição espanhola de Langage et cinéma, de Christian Metz, defende exactamente que a linguagem televisiva é composta por um certo número de códigos e de um código do "fluxo" que ordena o funcionamento geral. Também Stuart Hall (1974:9) defendeu a existência de um conjunto de "regras" muito precisas que por exemplo permitem identificar facilmente a forma western - histórias cujo tipo, conteúdo e estrutura são assim facilmente reconhecíveis: «Ces 'règles de codage' sont tellement connues et si bien partagées par le réalisateur et le public que le 'message' peut être décodé de manière symétric au codage. C'est cette réciprocité de codes qu'implique justement la notion de stylisation ou de 'conventionalisation', et ce sont évidemment ces codes réciproques qui définissent ou rendent possible l'existence d'un genre».
discursiva ao fluxo, configurando-o inclusivamente enquanto dispositivo. Temos
assim um conjunto de códigos diferenciais que se reorganizam segundo uma
lógica específica de programação, sendo este alinhamento um novo discurso
no qual se esbatem os diferentes géneros. Trata-se aqui de um código
hegemónico, do continuum onde se esbatem géneros narrativos e
"não-narrativos".
Veja-se ainda que entre cinema e televisão, a transferência, adaptação
ou reutilização de figuras ou de sistemas de figuras é uma constante, podendo
constituir-se múltiplos modelos narrativos comuns. Por outro lado, as
diferenças inegáveis que separam cinema e televisão são, segundo Metz 9
fundamentalmente de quatro tipos. São desde logo diferenças tecnológicas;
diferenças socio-políticas e económicas, designadamente nos processos de
decisão e de produção por parte do emissor; diferenças psicossociológicas e
afectivo-perceptivas nas condições concretas de recepção, e por fim,
diferenças na programação, quer dizer - no plano dos conteúdos -, a
especificidade de determinados géneros e de modelos narrativos. Verifica-se
por exemplo que toda uma série de géneros "nao-narrativos", como os
telejornais, as mesas-redondas, os talk-shows, os tempos de antena, etc., são,
portanto, fundamentalmente televisivos.
Para Metz, cada uma das diferenças encontradas entre cinema e
televisão, abre a possibilidade de se estabelecerem códigos diferenciais. Por
exemplo, no cinema, o código de recomposição técnica do movimento, o
código do fotograma, não é comum pela simples razão de que a imagem
televisiva é electrónica. De qualquer das formas, por muitas diferenças que se
conseguissem apontar, dificilmente se poderiam separar radicalmente os dois
media enquanto linguagens, enquanto integradores de conjuntos ou de séries
de códigos específicos comuns, como, por exemplo, os códigos icónicos, o
9 Christian Metz, Lenguaje y Cine, Barcelona, Editorial Planeta, 1973, pp. 282-293.
código da composição sonora e da composição visual-sonora: «Cinema e
televisão têm em comum todos os traços materiais pertinentes mais
importantes e as suas codificações específicas são em grande parte as
mesmas em ambos os casos» 10 . De facto, num como no outro caso,
encontramos uma grande identidade de processos discursivos, com variações
entre si, é certo, mas variações entre subcódigos, não entre linguagens.
Cinema e televisão são assim linguagens vizinhas que têm em comum um
certo número de características materiais pertinentes, bem como códigos
específicos, e portanto podem tratar-se ambas como se formassem uma
linguagem única, embora com códigos e subcódigos diferenciais específicos
que não invalidam o que têm de fundamental em comum. Enquanto sistema de
signos, e sistema narrativo, com excepção da especificidade do "directo", a
televisão está assim tributária do cinema.
A verdade é que a forma como Metz analisou esta questão, no final dos
anos 60, não era já, nessa altura, de todo pacífica. Por exemplo, Jules Gritti 11
preferia falar de "vários cinemas" e de "várias televisões", e opunha-se à ideia
de uma "ontologia unitária" entre cinema e televisão. As funções poética e
referencial mostram desde logo uma inidentidade de práticas, bem como, aliás,
campos opostos no que concerne à função fática - a manutenção do
"contacto", da "companhia" da televisão.
O cinema, de facto, não interpela o público da mesma maneira que a
televisão. No caso da televisão, a interpelação faz-se de um modo directo,
desde logo pelo seu carácter "electrodoméstico", depois através da
continuidade, assegurada, no passado recente, pela "continuista", a locutora
em permanência, ela própria paradigma da telegenia, e ainda pela identidade
de imagem, pelo "off", pelo olhar nos olhos do apresentador - o "parecer" como
10 Metz, idem, pág, 285. 11 Jules Gritti, "La télévision en regard du cinéma: vrai ou faux probleme?", Paris, Communications , 1966,nº 7, pág. 27.
princípio do "ser". Poder-se-ia também referir a função conativa, a retórica
destinada a captar a atenção do destinatário, a redundância entre imagem e
palavra, os closes ou a leitura afectiva do grande plano - o poder e qualidade
que lhe é intrínseco no écran televisivo -, ou ainda o nivelamento ou
padronização dos programas tendo como alvo o espectador estatístico, a
fidelização tecno-electrónica das audiências, a produção formatada de públicos
através de programas nivelados às grandes audiências, etc.
Um outro modo de estabelecer relações de proximidade e afastamento
entre televisão e cinema é a optada por Serge Daney 12, que na sua forma
poética de descrição não deixa de ser extremamente claro e pertinente,
aceitando mesmo, nesse cruzamento híbrido de linguagens, a "virtude dessa
impureza": «(...)O cinema tirou a sua força e longevidade (um século!) devido
ao facto de se apoiar sobre uma parte da nossa infância. Se a televisão veicula
cultura, o cinema faz passar por experiências. Se a televisão deve ter a sua
deontologia, os travellings do cinema são 'questões de moral'. Se a televisão
pôde ter talento na sua programação, nada poderá dispensar o cinema do
desejo de produzir. Se, enfim, a televisão é a nossa prosa, o cinema não tem
alternativa senão na poesia».
Do dispositivo tecnodiscursivo da televisão emergem também
modalidades específicas do ver televisivo que é, ao contrário de um "ver" de
imagens em excesso do cinema 13 , um modo de ver indolente, quantas vezes
sobredeterminado pela figura da teledependência, ou tão só de um hábito que
não é mais do que uma apatia do olhar configurada nas diferentes ordens da
imagem televisiva e no contrato de visibilidade que instituem. Imagens há, no
entanto, que trabalham na periferia, por assim dizer, da lógica convencional
que caracteriza o dispositivo televisivo nomeadamente o videoclip (se bem que
12 Serge Daney, Le salaire du zappeur, Paris, Éditions Ramsay, 1988, págs. 251-252. 13 Pierre Legendre, na sua obra Paroles poétiques échapées du texte (p.182) diz curiosamente: «Não somente o olho escuta, como se alimenta - há uma espécie de antropofagia no acto de estar no cinema».
sejam visíveis outras apropriações, quer em séries televisivas, quer mesmo na
informação), imagens que emergem na grelha de programas como uma
"imagem-pulsação" 14, imagem saturada, por oposição à rarefacção de sentido,
mas também em oposição à "imagem-pulsão" do cinema, elaborada numa
outra durée, feita de um princípio não ritualizado, mas antes de desassossego
e de prazer, de apelos, tensões, de excessos interpelantes.
A caracterização de dispositivo que nos orienta neste trabalho provém,
como referimos, essencialmente da teoria foucaultiana. Diremos, em síntese,
que procuramos estabelecer uma arqueologia das estratégias e práticas
emergentes da complexa rede interactiva entre os acontecimentos, os
pseudo-acontecimentos e a agenda dos media, o protocolo e as suas
mediatizações, entre estes e os seus enquadramentos jurídicos, institucionais e
políticos, não excluindo as respectivas máquinas censurantes, persecutórias e
propagandísticas. Por outro lado, pretendemos apontar o modo de
configuração dessa rede como programa, e procurar, finalmente, a partir da
identificação dos seus regimes de enunciação, de transparência e de
opacidade, dos seus efeitos de real, e função estratégica da construção do
"espaço-tempo" dominante do dispositivo. Isto, sobretudo a partir da leitura
genealógica, histórico-cultural, do encadeamento de séries de editoriais e
comentários dos telejornais 15 das suas técnicas e usos, do serial e do
repetitivo, das temáticas recorrentes, a própria análise da construção da rede
reticular, vinculante, de uma mise-en-ordre simbólica que pretende mostrar
como evidencia a sua "visão do mundo".
O princípio de realidade emergente, o regime de visibilidade e o contrato
de credibilidade que a informação televisiva, designadamente, institui,
trabalham, em conjunto, um registo de real que funciona enquanto
14 Jean-Marc Vernier,"L'Image-pulsation", Revue d'Esthétique, nº 10, Toulouse, Privat, 1986, pp. 129-134. 15 Vide designadamente a nossa tese de doutoramento O Telejornal e o Sistema Político ao Tempo de Salazar e Caetano (1957-1974), DCC/UNL, 1993 (822 pp.).
telerealidade - uma realidade criada por imagens electrónicas, difundidas por
uma máquina e por um dispositivo que é um "intensificador de poder" 16. Tal
como no panopticon de Bentham, esta nova máquina catódica dissocia a
dualidade ver/ser visto em novas modalidades, através de novos
encadeamentos, nos quais o "ser visto" - tudo o que está virtualmente
disponível para a "mise-en-ordre" da máquina - emerge, no essencial,
enquanto acontecimento, embora no plano absolutamente redutor da política e
da catástrofe - da actualidade trágica dos telejornais.
A complexidade de que se reveste a caracterização do dispositivo
televisivo enquanto estrutura agenciadora, e performativa, do discurso que
produz - daquilo que dá a ver - releva de algum modo, em primeiro lugar, do
reverso do paradoxo atribuído por Wittgenstein à própria linguagem, quando
refere que, se é através dela que mantemos um relação fática, é também por
ela que se cria uma impossibilidade, que se institui um regime de opacidade
nessa relação: na linguagem, as palavras confundem-se de palavras, o seu
campo de representação, o seu universo de convenções, têm uma entropia
própria, têm um grau de imprevisibilidade, entram num processo de
degradação face à sua "transparência" essencial. Lyotard, a este propósito,
dizia que não havia frase que exprimisse o próprio "sentir" - tratar-se-ia de um
diferendo que trairia o próprio sentimento. É o que se passa quando dizemos
«não encontro palavras para exprimir uma determinada emoção»... O
diferendo, neste caso, traduzir-se-ia pelo estado instável e pelo instante da
linguagem em que qualquer coisa, que deve poder ser expressa por palavras, o
não pode ainda.
Ora, esta dissolução do vínculo entre a palavra e o mundo, operada na
linguagem no regime de representação clássico, veio colocar a questão da
existência de um resto, de um "fundo disponível de linguagem". Segundo
16 Nöel Nel, Le débat télévisé, Paris, Armand Colin, 1990, pág. 132.
alguns autores, máquinas produtoras de imagens como a televisão, realizam,
superando-o, este fundo disponível, uma vez que virtualmente têm capacidade
para expor todos os objectos de visibilidade, sendo essa, por assim dizer, a
primeira característica do dispositivo televisivo: «São estas características, a de
ser realização da vontade de ver que no discurso permanece como fundo
indiviso das formas siqnificantes enunciadas, a da autonomização em relação
ao processo enunciativo e a da predisposição de todos os objectos virtuais da
visibilidade que definem a televisão como um dispositivo ao mesmo tempo
técnico e social» 17. E, nessa medida, constitui-se também em dispositivo
objectal.
A natureza instrumental e performativa do dispositivo televisivo -
Umberto Eco referia-se inclusivamente ao "específico televisivo" não na sua
dimensão estética, mas enquanto instrumento técnico -, inscreve-se assim não
só na sua virtualidade de aparelho disponível para um determinado uso mas
também de instrumento cuja estrutura activa ela própria dispõe e expõe,
operando-se deste modo ao cruzamento da ordem do discurso com a ordem da
técnica, óbvia neutralização da antiga dicotomia entre o logos e a techne -
entre o discurso e a técnica.
A lógica instrumental do dispositivo televisivo é, por natureza, uma lógica
multimodal, uma vez que permite diferentes regimes de ordenação do real,
diferentes ordens de disposição e de mise-en-scène do real. Concretamente,
nos alinhamentos dos telejornais do período da ditadura, trata-se sobretudo de
um dispositivo não-conversacional, repressivo do consenso racional, de um
dispositivo dissuasor, monológico - de um dispositivo televisivo unívoco, cujo
modo de funcionamento e cujos regimes de visibilidade e de credibilidade se
estruturam e estabilizam, não na confrontação, mas no convencimento, através
de efeitos de verdade e de estratégias de veridicção tendentes a construir a 17 Adriano Duarte Rodrigues, "Do dispositivo televisivo", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Maio, 1989, pp. 61-65.
ideia de uma única ordem do mundo e das coisas. Dispositivo não-
conversacional que integra uma estratégia monológica num quadro global de
instrumentalização, criando um universo próprio, onde a transparência do real e
o horizonte de acontecimento da televisão são obliterados pela máquina de
"tele-representação" e redistribuídos no discurso, onde a saber é substituído
pelo "fazer persuasivo", pelo ver/sentir das emoções do divertimento televisivo,
e pelo "crer".
Diferentes ordens de imagens televisivas instituem diferentes regimes,
ou contratos de visibilidade com o telespectador, incidindo ora numa "moral do
ver", quando o que é suposto passar é a credibilidade das imagens do
desempenho ou da representação política, por exemplo, ou numa "pregnância"
do olhar quando irrompe, com o directo, um signo do real, ou uma imagem-
pulsação, ou se dissolve - ou quebra - a lógica de eficácia comercial e
consensual do media. O regime de visibilidade específico do dispositivo
televisivo tem a ver com os diferentes montagens cenográficas, espaciais, as
topografias do estúdio, as découpages (os cortes, inserções, tratamento da
durée) e outros tratamentos da imagem - da "imagem-afecção" do grande
plano, da "mise-en-scène", da "mise-en-représentation", etc.
Outro é o caso do contrato de credibilidade que a imagem televisiva
pretende instituir através exactamente do "fazer persuasivo", do desempenho
político-televisivo da sinceridade, do "saber fazer". Tanto o regime e/ou o
contrato de visibilidade, como o contrato de credibilidade, criam um efeito de
legitimação e um regime de verdade que emerge como contrato global, como
programa estratégico de integração social, de dissuasão e consenso,
estabelecendo desse modo um efeito real de autocracia.
Vejamos um pouco mais para além desses parâmetros essenciais do
dispositivo televisivo que estamos a referir. Analisemos concretamente o
suporte onde esta lógica dual se institui, o écran imaterial a que Preikschat
chamou "palimpsesto electrónico" e através do qual emergem as imagens do
mundo, agora convertidas ao regime catódico, imagens das quais nascem
imagens, num sistema de hipertelia definitivamente em crise referencial. Mas
imagens também que se constituem em fundo da referência das esferas
pública e privada dos campos sociais mais directamente dependentes do
dispositivo, desse interface-écran que transforma o antigo modo de ver -
sequencial, politópico, nomádico -, em figura, precisamente em matriz
centrada, em écran catódico, justamente, de onde procede exponencialmente a
infinitude de combinações de pixels sobre os quais se projecta o espectador de
um tal universo, num devir que é, como diz Adriano Duarte Rodrigues, um devir
reticular das identidades, tanto das identidades das coisas e dos
acontecimentos, como dos indivíduos e das sociedades: «Este devir conectado
da identidade tende para a naturalização do dispositivo, condição da sua
eficácia performativa. À medida que atinge o seu termo, o dispositivo técnico
torna-se quase imperceptível, incorporado, acabando por vir quase a
confundir-se com o próprio funcionamento corporal. O vídeo equivale assim ao
processo de biologização da logotécnica» 18. Recorde-se, nesta linha, Edmond
Couchot 19, quando descrevia esta inscrição no corpo como o quiasma da
tecnologia e do sujeito, de realização do "bio-poder", sendo este um ponto
singular da rede, do tecido invisível, que estrutura e conecta esse cruzamento
excessivo, e através do qual o sujeito compõe múltiplas hibridações, múltiplos
cruzamentos.
A questão da natureza bio-tecnológica do dispositivo televisivo em
particular - e das tecnologias de uma forma geral - não é de forma nenhuma
uma questão nova (recorde-se por exemplo Walter Benjamin e Heidegger, e o
próprio Foucault, a que voltaremos), se bem que a sua problematização no
contexto da televisão, e nomeadamente após a sua fase de apogeu no final
dos anos 60, tenha provocado uma reflexão renovada em torno dessas noções. 18 Idem, pág. 64. 19 Edmond Couchot,"Hybridations", Modernes et après. Les immatériaux, Paris, Autrement, 1985, pp. 121-129.
Neste plano, outro exemplo concreto, no caso da teoria da televisão em
Portugal, foi referido por Emídio Rosa de Oliveira cujo ponto de vista incidia
sobre a televisão clássica enquanto "controlo social em casa", que solda e
pressuriza através de uma estratégia de sedução, que tende a colmatar as
brechas, as falhas de onde transcorre irreprimivelmente um pouco de
liberdade. Segundo este autor, é a partir desta nova forma de modelização, que
se estrutura uma "nova repressão" que consiste no nivelamento e na
uniformização acelerada de todos os comportamentos sociais e privados e na
imposição de um hedonismo normativo 20. A televisão reactivaria assim,
diariamente, uma diversidade de sinais através dos quais os indivíduos se
reconhecem enquanto parte de um todo, assegurando-se deste modo o vínculo
social.
De modo idêntico, a partir de práticas discursivas, culturais e
institucionais, Foucault falava de processos de normalização que se
constituíam como novas formas de práticas de poder, as quais se inscreveriam
por sua vez nas práticas do quotidiano, agindo de facto como "bio-poder". Com
efeito, Foucault caracterizava esse processo exactamente como a expansão de
mecanismos anónimos que normalizam o espaço social, as instituições, o
saber, a lei, tecendo como que uma quadrícula vinculante, um solo fundador,
homogeneizante, não só modelizador do corpo social, mas agindo
particularmente sobre as práticas do sujeito, internalizando-se e
"territorializando" os saberes e os corpos.
Interpretando a esta luz o dispositivo instrumental televisivo,
reconhecemos neste uma lógica consensual, criadora portanto dos consensos
reticulares no campo da recepção, no corpo social, onde o "uso" que se faz da
televisão, quer enquanto monopólio do Estado ou mesmo enquanto duopólio,
como se poderia verificar, não se destina a fornecer uma informação 20 Emídio Rosa Oliveira, "A televisão é um electro-doméstico", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Maio, 1989, pp. 67-72.
susceptível de verdade ou de falsidade, mas a garantir a sua performatividade
intrínseca, efectivando o acto enunciado pelo próprio facto de o enunciar. Claro
que não se trata aqui de um dispositivo de representação total, de visão e
integração total do espaço-tempo, mas tão somente de um dispositivo que na
sua rede intersticial, embora unívoca, contém a ilusão do dispositivo "global".
Uma deriva no conhecido aforismo mcluhaniano the medium is the
message, permite introduzir um novo postulado na caracterização do
dispositivo televisivo, que poderá ser enunciado noutra perspectiva, como
sendo as estratégias de reprodução/difusão e a tirania dos processos
electrónicos de medição das audiências - que lhes é intrínseca -, a "fundar" as
estratégias de produção. Há por assim dizer uma racionalidade económica,
para além de especificamente técnica, que assegura a presença do
destinatário na mensagem e no destinador: como alguém disse, a televisão
serve não para produzir programas mas sim para produzir públicos. Sob este
ponto de vista, a televisão, enquanto indústria cultural, faz substituir a "poética"
da forma dos géneros televisivos pelo formato de produção, pelo conjunto
indecomponível e coerente - no limite, pelo fluxo do "continuum", inscrevendo
assim o sistema tecno-discursivo como parte integrante de um processo global
de produção.
Poder-se-ia assim crer que há uma perca de especificidade da produção
televisiva que conduz a um estereótipo, delimitando, a priori, não só um
espectador e um público, mas sobretudo criando um "dispositivo abstracto de
enunciação", espécie de grelha vinculante, que se recicla nos diferentes
géneros, constituindo um todo - a que se chama habitualmente o fluxo contínuo
de emissão.
A questão do código hegemónico e o eventual carácter neutralizador
desse fluxo contínuo, desse dispositivo de enunciação - culture de flot,
chamava-lhe Patrice Flichy, foi também analisado como «um conjunto contínuo
de imagens animadas no qual cada emissão conta menos em si mesma que no
conjunto da programação» 21.
Segundo esta perspectiva, a especificidade da televisão residiria
exactamente no contínuo, jogando a grelha de programas o duplo papel de
dispositivo garante da continuidade, fidelisando a audiência, e de meio
coordenador de uma diversidade restrita. Veja-se, por exemplo, as estratégias
das redes europeias para o prime-time em período de concorrência, fixando os
públicos, e operando simultâneamente à resocialização mediática - redução da
diversidade à unidade.
Nessa redução à unidade, aliás, é importante ver, para além da
recomposição da imagem da sociedade, própria da informação, um fenómeno
mais complexo que reside num retorno à inscrição de modelos a partir de uma
diversidade de oferta, que aparentemente provocaria uma lógica de indiferença
entre destinador e destinatário. Trata-se de facto do risco latente da
omnipresença do mesmo "programa" em toda a linha da oferta, seja ela
generalista, codificada, on demand, por cabo ou por satélite. Os processos
recentes de concorrência entre redes de TV têm-no demonstrado à saciedade.
É aliás algo que se explica através de velhas teorias económicas: segundo
Hotteling, já em 1929 era visível que dois concorrentes no mesmo mercado têm
interesse em oferecer produtos quase idênticos para maximizar o seu lucro, e
assim, «os canais que pretendem maximizar a sua audiência têm interesse em
oferecer o mesmo tipo de programas, mais do que satisfazer as escolhas
afastadas do perfil médio da audiência» 22. Voltaríamos portanto a ter que
reconsiderar uma nova lógica de criação de consensos, uma nova
resocialização das referências e dos imaginários através de uma televisão
fragmentada na multiplicidade de redes, mas de conteúdos normalizados. 21 Paul Beaud, La société de conivence. Médias, médiations et classes sociales, Paris, Aubier,1984, pág. 5. 22 Pedro J. Braumann,"Análise e perspectivas do mercado audiovisual", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Maio, Lisboa,1989 pp. 151-157.
Uma visão radical deste dispositivo de enunciação enquanto dispositivo
total levou alguns autores, entre eles Jean Baudrillard, a considerar, por
exemplo, que a transgressão e a subversão não passam pelas ondas sem
serem subtilmente negadas enquanto tal: o dispositivo emerge assim enquanto
dispositivo de neutralização, em oposição quer à lógica instrumental, quer à
lógica performativa, negando ambas, transformando portanto os conteúdos em
"signos", esvaziando-os de sentido. Mas ainda segundo Baudrillard, é este
sistema neutralizador que torna os media inexoravelmente solidários do
sistema do poder 23 .
A natureza da imagem televisiva tem sido interpretada também, como já
referimos, enquanto fenómeno específico cuja origem radica nas próprias
características técnicas do meio e do seu écran catódico, e cuja lógica
subsume a disponibilidade do meio para admitir todas as imagens tal qual elas
lhe são dadas, tal qual elas são programadas.
Este desvio será assim como que a anulação das diferenças entre as
imagens alinhadas que compõem agora o fluxo contínuo de emissão:
«Deslocando as imagens para a sua cena o dispositivo televisivo confere-lhes
uma outra presença, uma outra actualidade, uma outra realidade; confere-lhes
justamente uma outra natureza, a de serem imagens sem natureza, sem
paternidade, imagens em exílio de uma cena primitiva arqueologicamente
remota perdida no tempo" 24.
Outra perspectiva extremamente interessante, e aliás fundamental para
retomar a questão da redução de conteúdos, já em plena era de fragmentação
23 Para além de Baudrillard, em Simulacres et Simulations (Galilée, 1981), ver também Olivier-René Veuillon: «La télévision, dans son mode de diffusion continu, et dans le relais des chaînes, empêche la constitution de manifestations suffisamment autonomes pour entrer en rapport, éventuellement contraditoire, les unes avec les autres. C'est pourquoi la permissivité de la télévision est pratiquement sans limites: on ne peut tout montrer et tout dire, les déclarations subversives ou les appels aux armes en tant qu'ils ne sont jamais isolables dans le flux, n'ont aucun effet qui leur soit propre». Les arts visuels et le rôle de la télévision, ERI, Edizione RAI, Torino,1979. 24 João Mário Grilo,"O grande programador", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Lisboa, Maio, 1989, pp. 73-76.
dos sistemas televisivos, é a dualidade paleo- versus neo-televisão, sugerida
primeiro por Umberto Eco 25 e depois por F. Caseti e R. Odin 26, a partir da
pulverização de redes e sistemas na Europa. Neste trabalho identifica-se
claramente a fase inicial da história da televisão com os diferentes modelos
protocolares e pedagógicos que caracterizaram, em geral, os primeiros trinta
anos de televisão. Era então a fase "institucional" do meio, geradora dos
grandes consensos nacionais - a televisão enquanto sistema de comunicação
de Estado -, que recorria de um contrato de comunicação pedagógico com o
espectador, ao contrário da neo-televisão, fragmentada, que privilegia uma
lógica de contacto, espaços de convivialidade e interactividade. Passava-se
assim de uma fase claramente de "socialização" para uma relação
aparentemente mais individualizada, e indiferenciada, com o meio.
Mas se a estratégia de criação de consensos delimita, como vimos, um
dispositivo de enunciação contratual, o mesmo não se deveria passar a partir
do momento em que se verifica a fragmentação do sistema televisivo e emerge
um novo regime caracterizado pela variação e pela indeterminação e sobretudo
pela indiferença dessa relação individualizada com o meio televisão, a qual
faria, em princípio, com que se esbatesse a natureza instrumental e
performativa da televisão. Trata-se aqui de uma questão complexa, tanto mais
que o desenvolvimento da neo-televisão ainda não deu suficientes pistas para
se defender nesta matéria um ponto de vista fundamentado, tão só
empiricamente que fosse.
Ao regime de indiferença da televisão fragmentária são assim aduzidos
novos argumentos, nomeadamente em consequência de dois dos seus mais
visíveis efeitos: o zapping (como uma espécie de procura de "justamente uma
imagem"...) e a videogravação, enquanto «práticas de desprogramação do 25 Umberto Eco, La guerre du faux, Paris, Grasset, 1985, pág 141. 26 Francesco Caseti e Roger Odin,"De la paléo à la néo-télévision", Communications, nº 51, Maio, Paris,1990 Seuil.
aparato televisivo», como lhes chamou João Mário Grilo (ibid.), são «o que
resta da televisão», ou pelo menos, diríamos nós, o princípio do fim da
televisão enquanto dispositivo criador de consensos.
Mas serão mesmo? Ou dito de outra maneira: será que a lógica
consensual se desarticula na indiferença apenas por um fenómeno de
fragmentação do sistema televisivo? Do ponto de vista do zappeur sim, sem
dúvida. A obra, aqui, perde-se no fluxo. A velocidade a que passam os
diferentes "flashes" - as paragens do telecomando - que são em si mesmo
"acontecimentos televisivos", não só evidenciam que «nada disso está
realmente a acontecer» (Geoffrey Reggio) como se quebra em definitivo essa
aura que atribui um sentido ao medium TV. Doravante esse sentido é apenas
televisivo, passa através da consciência televisiva do mundo, não de olhar
único, orwelliano, mas expondo um écran caleidoscópico, e, em simultâneo, a
virtualidade do retorno da maioridade do espectador.
Serge Daney, no entanto, alerta para o facto dessa "maioridade" ser
apenas aparente: «O zapping é desde sempre uma invenção da televisão, é-
lhe inerente e, fazendo zapping constantemente, não se faz mais que
generalizar o uso e realizar o conceito» 27. Trata-se, no fundo, de uma questão
nova, ainda não suficientemente estudada. Para Mercier 28, por exemplo, a
"liberdade de escolha" e o telecomando são, por assim dizer, a
desdramatização definitiva do objecto e do sistema televisivo, dissipando-se
assim as tradicionais representações excessivas do medium, como por
exemplo a tradicional caracterização da televisão como prodigioso meio de
aculturacão das massas. A lógica do zapping que é em parte a lógica que
deriva da fragmentação dos sistemas televisivos - surge fundamentalmente
como uma ruptura que vem recolocar a questão do contrato de comunicação 27 Serge Daney, Le salaire du zappeur, Paris, Éditions Ramsay,1988, p. 28. 28 Paul-Alain Mercier,"L'art d'accomoder les rogatons télévisuels", Communication et Langages, nº 76, 1988, Paris.
entre emissor e receptor, mas não deixa de ser, no entanto, uma lógica
perversa. De facto, se, por um lado, o emissor perde o poder impositivo,
exclusivo, da sua mensagem - face à disponibilidade de canais e ao
telecomando -, por outro lado, o facto de estar perante novas competências do
telespectador, leva-o a "renegociar" esse contrato, segundo a segundo, e,
nessa medida, renova os seus próprios processos discursivos através de uma
estratégia de "contaminação" do fluxo, a qual se torna, em última instância,
numa estratégia de contaminação extensível a todos os sistemas televisivos
generalistas.
As estratégias de contaminação, derivam do efeito de contágio que
linguagens e práticas como a publicidade, por exemplo, determinam noutros
géneros televisivos. É a standardização, ou padronização - não das grelhas de
programação em geral, nas diferentes redes televisivas, mas do discurso dos
programas em particular. Isto é, verifica-se um cada vez maior esbatimento das
fronteiras entre a publicidade e os programas, nomeadamente através da
integração da concepção publicitária do divertimento ou pelo "efeito de série"
em todos os géneros televisivos, ou, ainda, da preponderância dessa
concepção em programas que inclusive pouco ou nada têm em comum com
essa forma discursiva, como por exemplo os magazines de economia. A
inflação de concursos, talk-shows, telenovelas, reality-shows e programas
"eróticos", nas televisões públicas e privadas europeias, a partir de meados da
década de 80, explicam também esta tendência para a "televisão-espectáculo"
instituir um código de visibilidade, de novo contratual, contaminado pelo próprio
"jogo" da publicidade e pela hibridização de géneros, cuja divisa é, sem dúvida,
e em primeiro lugar, ganhar audiências e "produzir públicos" para as centrais
de compras de espaço publicitário e para a rentabilização dos projectos
comerciais. Uma das lógicas mais perversas desta integração do dispositivo
publicitário nas práticas de programação pode ser visto na divisão dos jogos da
NBA americana em quatro partes (quando anteriormente era em duas), ou em
idêntica pretensão para a Campeonato do Mundo de Futebol nos EUA, em
1994, o que aliás não foi aceite pela UEFA.
O fenómeno em si não deixa de levantar uma nova questão: a de saber
até que ponto não há um "paradigma publicitário" reemergente, agora no final
de século, com características igualmente excessivas, tal como havia
acontecido na primeira fase da genealogia das estratégias consumistas quando
Edward Filene, nos Estados Unidos da América, durante o taylorismo,
identificava "liberdade" com "consumo", e dizia que os americanos ao
comprarem "Ford" ou "General Motors" estavam a "votar" na democracia... O
que se passa no final de século é sem dúvida o retomar da lógica radical do
paradigma publicitário. Por isso, Armand Mattelart 29 chamava a atenção para
novas modalidades discursivas emergentes no modelo tradicional de
comunicação mediática - nomeadamente a contaminação do campo dos media
por práticas, discursos estratégias do universo da publicidade, originando uma
«amálgama abusiva entre a democracia e o 'democratic marketplace' (...) uma
infiltração indiscriminada do paradigma publicitário como modelo de
comunicação entre os homens». No limite, correr-se-ia o risco do discurso dos
media ser apenas um discurso publicitário ou um "discurso-espectáculo",
subsidiário das estratégias dos anunciantes e das agências de compra de
espaço 30 .
29 Armand Mattelart,"La publicidad: fin de una década y princípio de una nueva era", Comunicación Social 1990. Tendencias. Madrid,1990, Fundesco, p. 247. 30 Veja-se por exemplo que em França, analisada a publicidade de um só dia, em período de forte concorrência televisiva (19 de Maio de 1990), nas 5 redes generalistas (TF1, A2, FR3, La5 eM6), num total de 90 horas diárias de programação, apenas 4h30m de publicidade estavam devidamente assinaladas e inscritas nos écrans publicitários, sendo as restantes 8h30m (total de 13 horas de publicidade nas 5 redes) consideradas ilegais ou por se tratar de publicidade 'clandestina' ou por ter 'excesso de patrocínios', com duas a três vezes mais o tempo permitido por lei. De notar que se trata de publicidade que passa sobretudo nos períodos de maior audiência (Cf. 50 Millions de Consommateurs, Oct. 1990, Paris), o que só vem dar legitimidade à análise de Mattelart sobre a reemergência do paradigma publicitário, o que significa que os media, em geral, estão a ver submetido o seu discurso tradicional não só ao metadiscurso publicitário, como ainda às suas estrtaégias de mercado, reforçada agora pela emergência das centrais de compras e pelos departamentos de compra directa.
Na sequência da contaminação viral do continuum das grelhas de
programas, uma outra questão importante a ter em consideração é o
"efeito-série", ou melhor, a relação entre série e televisão. De facto, a série não
diz apenas respeito a um determinado tipo de programas, a um género
televisivo, ela é sobretudo um modo de funcionamento do media - e também,
sem dúvida, um dos parâmetros essenciais não só para uma caracterização da
"estética" televisiva, mas fundamentalmente para a definição do seu dispositivo
tecno-discursivo. Série, seriado, ou serialidade, tem em televisão sobretudo
um significado de repetição. Este género de programas por todos conhecido,
surge em geral com uma estrutura narrativa recorrente, com pequenas
variações topológicas, por vezes com uma estratégia de dispersão das
situações, (que nalguns casos pode inclusive ser de carácter histórico, "mítico"
ou "real"), mas em que a continuidade e a evolução da narrativa não excede,
como referimos, a "habilidade" de ver e prever do telespectador médio, enfim,
do "grande público" televisivo.
Nas séries, de uma forma geral, a televisão restitui em primeiro lugar um
regime de "ocorrências" cuja temporalidade se não confunde com a história
narrada mas sim com o presente-futuro 31, substituindo-se assim ao directo,
enquanto sua metamorfose, encenação e virtualidade, enquanto impressão de
presença imediata de algo que está a acontecer...
Deste modo, o tempo perde claramente a homogeneidade (ou a
"poética" e a coerência espacial, no caso da narrativa fílmica em geral), do seu
próprio devir, para se tornar espiral, exorbital, contaminado pelo acumular
indiscriminado de segmentos narrativos e acções, suspensas quer da
vulgaridade do seu desenlace, quer de um final cuja lógica é permanecer
equidistante de cada um dos segmentos e das acções que o antecedem por
forma a elidir o "eterno presente" que transcorre ao longo, muitas vezes, de
31 Jean Mottet,"L'espace-temps de la télévision: le cas du soap-opera", Quaderni, 1989/90, nº 9, Paris.
centenas de episódios, como no caso das telenovelas. Por sua vez, o espaço
na série evolui sobretudo através da sucessão de arquétipos e tópicos
estereotipados (um pouco a imagem das representações teatrais medievais,
politópicas, que aliás se repetem e reciclam no plateau-estúdio,
designadamente na fase de produção das séries televisivas). Os
enquadramentos são inclusive determinados pelo jogo de convenções da
lógica dialogal, sem "fora-de-campo" nem perspectiva. Trata-se de um contacto
através de visibilidades padronizadas, mas ainda de um contrato.
Deste modo também, a série comporta e expõe na sua estrutura regular,
nas suas narrativas elípticas e alusivas, a mutilação dos poderes da imagem
electrónica. Trata-se, no fundo, da instauração de um regime de visibilidades
perfeitamente formal, tautológico, feito de proximidades, contactos, cuja
recorrência intrínseca denuncia, para além do mais, um amplo conjunto de
práticas de autocelebração, sendo por isso a televisão uma máquina discursiva
fechada sobre si própria, que apenas remete para si mesma como referente,
como única consciência do mundo...
E é, sem dúvida, neste regime de visibilidade e de temporalidade, em
que as imagens se reproduzem em séries 32, e em que a banalização dos
efeitos surge como estratégia de fidelização, que os jogos formais tendem de
facto a substituir-se aos jogos de sentido. A imagem entra então numa era de
insignificância, esvaziada de sentido, numa espiral de esquecimento em que
também cada imagem apenas remete para si própria. E, de facto, repetição e
esquecimento completam-se: a disponibilidade dos telespectadores para se
tornarem cativos deste regime pode ser vista, em primeiro lugar, do ponto de
vista da máquina de organização televisiva, como um dispositivo contra o
tempo e o correr do tempo, e do ponto de vista do destinatário, como
32 Michel Kokoreff,"Sérialité et répétition: l'esthétique télévisuelle en question", Paris, Quaderni, nº 9, 1989/90, Hiver, pp. 19-39.
"paragem" do corpo-receptador 33, enfim, como um écran-interface sem sentido
nem memória - afinal a estratégia natural para que cada série pareça sempre
diferente. Mas no fundo ela subsume no seio da programação a noção de
grelha, que será, por assim dizer, a "hiper-série".
Referíamo-nos atrás ao consenso como memória, isto é, à inscrição dos
consensos como única forma de memória do sujeito reflexivo perante o écran
catódico, ele próprio interface neutralizador de todas as distâncias e da próprio
temporalidade. E aqui radica exactamente um novo parâmetro fundamental na
caracterização do dispositivo televisivo clássico: no écran esbate-se o tempo e
o espaço, havendo como que uma incompatibilidade radical entre a "culture de
flot" e a melancolia por uma imagem, ou tão só a emergência de uma única
imagem que desestabilize o fluxo. Dizia Deleuze que é, pelo contrário, a
totalidade das imagens que se fixa em nós... E seria nesse regime excessivo
de desvitalização das imagens - regime que tem percorrido uma espiral desde
o início da televisão, num processo progressivo, emergente de uma espécie de
palimpsesto electrónico que materializa em telerealidade todas as razões do
mundo, todos os seus acontecimentos -, que é desafiado cada vez mais o
dispositivo contactual passando portanto, aparentemente, a um dispositivo de
contrato, em constante actualização, expondo-se assim a crise do próprio
dispositivo e bem assim a crise da coesão e da produção dos consensos.
O écran catódico funciona, portanto, também, como neutralizador das
especificidades dos processos discursivos que lhe são exteriores, na medida
em que ao integrá-los no seu fluxo homogeneizante, a televisão molda-os ao
seu dispositivo enunciador através de um complexo processo de adequação à
sua lógica tecnodiscursiva. Por outro lado, funciona como neutralizador das
condições - ainda técnicas e discursivas - de retenção das imagens e dos sons, 33 Um depoimento de uma entrevistada dado a Jean-Pierre Corbeau (1978) aquando da realização do seu trabalho de campo intitulado Le village à l'heure de la Télé explicitava isso mesmo: «A 19h20 je me dis, bon maintenant, si tu veux connaître la suite, il faut attendre jusqu'a demain 19 heures, je sais qu'a mon âge, je risque de faire le grand saut, et c'est pour cela que chaque fois que j'entends la musique de générique, je pense, tu as vécu un jour de plus» (p.115).
de registo, não só devido à diversidade da teia enunciativa e da sua lógica de
fragmentação/recomposição, como também devido à essência do seu
dispositivo cujo modo de desvelamento é deixar aparecer o que, de seguida,
inevitavelmente se esquece; sob o ponto de vista técnico trata-se sobretudo da
questão da efemeridade da conservação dos pixels da imagem electrónica, e
portanto da conservação das suas próprias imagens, como se de uma técnica
"erosiva" se tratasse...
Este novo espaço-tempo emergente, que é finalmente caracterizado por
um novo tempo dado pela "velocidade audiovisual" 34 suplanta em definitivo,
através dessa errância logotécnica, a realidade da presença do espaço real,
dos objectos e dos lugares.
Nietzsche dizia que o homem se constituía por uma faculdade activa de
esquecimento, por uma espécie de recalcamento da memória biológica: a
mnemotécnica, com a emergência do alfabeto, teria sido assim o sistema da
crueldade por excelência, um "alfabeto terrível", a organização que traça signos
no próprio corpo e lhe dá uma memória de palavras e imagens, esse
"inventário domesticador" - o que, em última instância, poderá explicar
porventura a natureza desse "pecado" originário - uma convenção, um
contrato, nos quais radica a reemergência da faculdade da indiferença e
esquecimento. Instituída assim uma amnésia do tempo e da história, denegado
o acontecimento e as singularidades, através de um saber circunscrito ao
"pequeno mundo" da política e da catástrofe, resta a memória algorítmica, ou a
"poiética" de uma memória - Jean-Luc Godard lembrava que se a televisão
produzia de facto e esquecimento, o cinema havia criado os seus "souvenirs"...
Mas, dir-se-ia então, é no espaço do esquecimento que novos holocaustos
aguardam a sua hipertelia.
34 Paul Virilio, "La lumière indirecte", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 45-52.
Tal como, no écran catódico, em pleno processo vertiginoso, as imagens
se confundem de imagens, também a memória do mundo e das coisas atinge o
seu estádio de degradação, não por um excesso de imagens e de memória
mas antes pelo seu recalcamento, por aquilo que Michel Foucault reconhecia
ser a possibilidade de memória de um qualquer acontecimento: «Mostra-se às
pessoas não aquilo que elas foram, mas aquilo que é necessário que elas se
lembrem que foram». O que é algo diferente do "métier de vivre" de Bill Viola:
1988:372): «Le regard est son exercice, le monde son théâtre, la perception
son mode de passage, la mémoire sa condition» 35 .
Poder-se-ia pois dizer, com Florence de Mèredieu 36, que todo o sistema
do visível e da representação, tão fina e pacientemente construído após a
Renascença, parece assim desagregar-se brutalmente na pequena dimensão
do écran video, quer no self-media, no video alternativo, quer no écran
generalista ou temático, ainda que, com diferenças expressas. Figuras do
presente e do diferendo que o encerra, as práticas e as representações
singulares da arte video - essa "estética do narcisismo" contemporêneo, como
lhe chamou Rosalind Krauss, colocam-se na linha de resistência ao fluxo,
expõem sobretudo um "trabalho de memória" que guarda uma certa verdade,
salva a ideia de real, pois, como defendia Jean-Luc Godard (referindo-se ao
desporto na televisão), tratar-se-ia do trabalho mostrado na sua durée, ou seja,
tratar-se-ia da memória de um corpo possível de decompôr nos seus mais
ligeiros movimentos, numa vertigem sem tempo, como em Marey ou
Muybridge.
Se ao vídeo cabe o desvelar dos segredos do sujeito reflexivo,
participativo, e do seu processo de afirmação e individuação, à televisão
restar-lhe-á a prosa do mundo, o corpo inscrito pelos signos que iludem o
35 Bill Viola, "Y aura-t-il copropriété dans l'espace de données?", Communications, n º 48, 1988, Paris, Seuil. 36 Florence de Mèredieu,"Babel TV", Revue d'Esthétique, nº 10, 1986,Toulouse, Privat, p. 248.
naturalismo do écran-espelho do real. A televisão será, assim, não uma "janela
sobre o Mundo", mas um interface-écran que na sua vertigem centrípeta
absorve o vitalismo dos seres, das coisas e do mundo, dando a ver apenas os
seus restos e fragmentos - figura, aliás, da "grande política" e do desempenho
mediático dos seus protagonistas, da actualidade trágica e do fait-divers.
E no que concerne à imagem electrónica, a arte vídeo será nesse
sentido uma "antitelevisão", espécie de índice-limite da expressão dos traços
constitutivos do sujeito moderno: «Se a comunicação de massa preenche mais
ou menos no mundo contemporâneo as funções positivas que eram outrora as
da antiga retórica, se a televisão, mais particularmente, detém hoje uma função
global de regulação da invenção e da memória, o autoretrato (video) é
naturalmente a expressão mais subjectiva da resistência que a arte video opõe
de modo específico à televisão (contra, totalmente contra)» 37. Sem dúvida que
o pioneirismo do vídeo e da arte-vídeo, que remonta ao pós-experimentalismo
do novo cinema americano dos anos 40 e 50, nomeadamente através dos
trabalhos de Vostell e Nam June Paik (recorde-se a sua importante exposição
já em finais dos anos 60, "TV as a creative medium", na Howard Wise Gallery),
permitem configurar estratégias cuja especificidade remete para um reencontro
entre o electrónico e o cinematográfico. O próprio conceito de self-media, de
que todos eles eram adeptos, corresponde claramente ao seu posicionamento
enquanto artistas e críticos perante a linguagem convencional da televisão.
Dir-se-ia inclusive que não se tratava de uma demarcação elitista face à TV,
uma vez que as suas propostas surgiam no sentido de propor uma maior
participacão das experiências sociais, de uma televisão "do real", verdadeira
estória alternativa ao discurso dos grandes meios, e portanto de um maior
acesso das diferentes comunidades, a televisão (esse era por exemplo o
objectivo das street-tapes produzidas pelos colectivos-vídeo em diferentes
37 Raymond Bellour,"Autoportraits", Communications, nº 48, Paris, 1988, pp. 345-346.
cidades norte-americanas, experiências que mais tarde se desenvolveriam em
TV's locais, comunitárias e redes por cabo). Como diria o documentarista
Geoffrey Reggio, trinta anos mais tarde, «os acontecimentos relatados pelos
media não interessam - não é isso que está a acontecer».
No fundo, passado todo esse tempo, os problemas continuam os
mesmos... O dispositivo mantém-se. O trabalho a realizar continua ainda a ser
o mesmo - recusa das práticas e dos modelos constituídos, reencontro das
fissuras a partir das quais pode irromper a paixão, o "mundo da vida". Nem que
para tal se deva invocar a interactividade e o video on demand - o que
representará sem dúvida uma ruptura no actual dispositivo da televisão
generalista clássica. «A questão é de se chegar a sociedades autónomas,
verdadeiros laboratórios de resocialização, autorizando as novas tecnologias
do eu (...). É necessário aumentar o desejo de desenvolver uma alternativa ao
modo de grande difusão. Isso implica evidentemente elaborar o protótipo de
uma revolução da comunicação, de a simular: ao desenvolver uma meta-
arquitectura social devemos permitir um largo acesso público a modelos de
redes conversacionais auto-geridas pelos utilizadores» 38.
É esta resistência, esta tensão, que a televisão tenderá por certo a
reduzir, abrindo-se ao pulsar do mundo e das coisas, ao conjunto das
experiências sociais, indo assim ao encontro dos seus "dissidentes" e das
singularidades, democratizando-se, operando a transformação do
sujeito-estatístico, destinatário fantasma, em sujeito operante, reflexivo, "actor"
em corpo, actor em desejo, actor que vê com o corpo todo.
Acrescente-se, finalmente, que no próprio dispositivo televisivo se
poderia notar os efeitos perversos da sua ambivalência. Poder-se-ia dizer que
o tipo de representação do mundo que a televisão reflete é uma visão
secretista, limitada pela dimensão instrumental do dispositivo, francamente
38 Gene Youngblood,"Vidéo et utopie", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 176-181.
mais conservadora do que as possibilidades da técnica permitem... Assim, o
próprio dispositivo instrumental actuaria no interior da "máquina" logotécnica,
articulando a ordem de previsibilidade do seu funcionamento, representando o
mundo e organizando a acção, expondo apenas a sua visão funcional e política
da realidade.