o exercÍcio da cidadania polÍtica em perspectiva … · 2003. 6. 25. · 34 revista brasileira de...

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Introdução Esta pesquisa é uma continuação do traba- lho que desenvolvo há vários anos sobre as rela- ções entre cidadania política e eqüidade social em Portugal (Cabral, 1997). Ambas as categorias care- cem, todavia, de operacionalizações mais consis- tentes, que exigem, por seu turno, definições mais rigorosas de cada uma delas. Ora, enquanto a categoria da eqüidade social continua a se be- neficiar da intensa exploração empírica que tem sido feita por sociólogos e politólogos (Kluegel et al., 1995; G. Marshall et al., 1997) a partir da obra seminal de John Rawls (1971), o mesmo já não se pode dizer da categoria da cidadania política, em- bora haja uma vasta literatura produzida sob a ru- brica genérica da cidadania nas duas últimas dé- cadas (Turner e Hamilton, 1994). De uma forma geral, as operacionalizações politológicas do conceito de cidadania caracteri- zam-se por excessivo grau de “formalismo”, isto é, tendem a subordinar a construção dos indica- dores aos caracteres processuais do regime repre- sentativo, tais como os procedimentos eleitorais (Luhmann, 1980). Em contrapartida, outras con- cepções da cidadania privilegiam o respeito pelos direitos humanos e, em alternativa ou em combi- RBCS Vol. 18 nº. 51 fevereiro/2003 O EXERCÍCIO DA CIDADANIA POLÍTICA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA (PORTUGAL E BRASIL) * Manuel Villaverde Cabral * Este texto é uma nova versão muito modificada e aprofundada de dois artigos publicados anterior- mente: “O exercício da cidadania política em Portu- gal”, em M. V. Cabral, J. Vala e J. Freire (orgs.), Tra- balho e Cidadania, Lisboa, ICS, 2000; “Autoritarismo de Estado, distância ao poder e fami- lismo amoral: uma pesquisa em progresso”, em A. Cohn, A. Camargo e B. S. Santos (orgs.), Brasil-Por- tugal entre o passado e o futuro: o diálogo dos 500 anos (Actas do Congresso Brasil-Portugal Ano 2000 – Secção de Sociologia & Antropologia; Recife, 1999), Rio de Janeiro, EMC, 2001. Conferência proferida durante o XXVI encontro Anual da ANPOCS, em Caxambu-MG

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Page 1: O EXERCÍCIO DA CIDADANIA POLÍTICA EM PERSPECTIVA … · 2003. 6. 25. · 34 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51 ferenciação entre regimes democráticos e

Introdução

Esta pesquisa é uma continuação do traba-

lho que desenvolvo há vários anos sobre as rela-

ções entre cidadania política e eqüidade social em

Portugal (Cabral, 1997). Ambas as categorias care-

cem, todavia, de operacionalizações mais consis-

tentes, que exigem, por seu turno, definiçõesmais rigorosas de cada uma delas. Ora, enquantoa categoria da eqüidade social continua a se be-neficiar da intensa exploração empírica que temsido feita por sociólogos e politólogos (Kluegel etal., 1995; G. Marshall et al., 1997) a partir da obraseminal de John Rawls (1971), o mesmo já não sepode dizer da categoria da cidadania política, em-bora haja uma vasta literatura produzida sob a ru-brica genérica da cidadania nas duas últimas dé-cadas (Turner e Hamilton, 1994).

De uma forma geral, as operacionalizaçõespolitológicas do conceito de cidadania caracteri-zam-se por excessivo grau de “formalismo”, istoé, tendem a subordinar a construção dos indica-dores aos caracteres processuais do regime repre-sentativo, tais como os procedimentos eleitorais(Luhmann, 1980). Em contrapartida, outras con-cepções da cidadania privilegiam o respeito pelosdireitos humanos e, em alternativa ou em combi-

RBCS Vol. 18 nº. 51 fevereiro/2003

O EXERCÍCIO DA CIDADANIA POLÍTICA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA(PORTUGAL E BRASIL)*

Manuel Villaverde Cabral

* Este texto é uma nova versão muito modificada eaprofundada de dois artigos publicados anterior-mente: “O exercício da cidadania política em Portu-gal”, em M. V. Cabral, J. Vala e J. Freire (orgs.), Tra-balho e Cidadania, Lisboa, ICS, 2000;“Autoritarismo de Estado, distância ao poder e fami-lismo amoral: uma pesquisa em progresso”, em A.Cohn, A. Camargo e B. S. Santos (orgs.), Brasil-Por-tugal entre o passado e o futuro: o diálogo dos 500anos (Actas do Congresso Brasil-Portugal Ano 2000– Secção de Sociologia & Antropologia; Recife,1999), Rio de Janeiro, EMC, 2001.

Conferência proferida durante o XXVI encontroAnual da ANPOCS, em Caxambu-MG

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nação, pelos direitos sociais dos cidadãos (Sa-ward, 1994; Poppovic e Pinheiro, 1995). Sem pre-juízo do papel que esses últimos direitos desem-penham numa concepção global da cidadaniacontemporânea, não me ocuparei deles aqui, poiso que me interessa, nesta fase da pesquisa, são asquestões relativas ao exercício da cidadania polí-tica propriamente dita.

A especificidade dos direitos políticos

Com efeito, há uma diferença de natureza tan-to entre os direitos civis como os direitos sociais,por um lado, e os direitos políticos, por outro. Ha-bitualmente, essa diferença é obliterada na literatu-ra, a qual tende, na linha do esquema clássico de T.H. Marshall (1992), a tratar as “três gerações” de di-reitos como se eles se inscrevessem num simplescontínuo. Embora numa perspectiva diversa, algode semelhante sucede também com Rawls, ao con-ceber a evolução do binômio liberdade-igualdadeem três etapas: a da liberdade natural, correspon-dente aos direitos civis de Marshall; a da igualdadeliberal, correspondente aos direitos políticos for-mais; e a da igualdade democrática, corresponden-te à eqüidade social necessária, segundo Rawls,para conferir um valor substantivo à igualdade for-mal (Rawls, 1971, cap. 12, pp. 65-75).

Ora, independentemente da validade históricado contínuo dos direitos de cidadania, aliás discuti-da na literatura (Turner, 1993), a cidadania políticapossui uma especificidade que não só justifica tra-tamento sociológico próprio, como também tornaproblemática a eventualidade de aquele contínuoser alterado, conforme teria sucedido por exemplono Brasil (Santos, 1998a; Carvalho, 2001). Com efei-to, onde são reconhecidos, os direitos da igualdadecivil, tal como Marshall os concebe, tendem a serusufruídos de forma, por assim dizer, passiva, istoé, sem que para isso os seus beneficiários tenhamde se mobilizar. O mesmo acontece com os direitossociais subsumidos no moderno welfare state, cujosbenefícios são em princípio gozados por todas aspessoas que reúnam as condições legais.1

Como é evidente, nenhum desses direitosfoi obtido sem lutas sociais nem é usufruído, na

prática, de forma idêntica por todos os membrosde uma mesma sociedade. Contudo, nos Estadosonde os direitos civis e sociais vigoram constitu-cionalmente, os cidadãos não podem exercê-losde forma activa e, caso sejam discriminados,têm o direito suplementar de recorrer às instân-cias judiciais nacionais e, em alguns casos, atésupranacionais encarregadas de velar pela suaaplicação. Já o mesmo não sucede com os direi-tos políticos propriamente ditos, ou seja, a liber-dade de expressão e de associação, bem comoo direito de eleger e ser eleito para todos os car-gos representativos.2

Com efeito, os cidadãos podem usufruir des-ses direitos constitucionais sem os exercerem ple-namente. Ao contrário dos direitos cívicos e so-ciais, os atributos da cidadania política nunca sãoautomáticos, mas sim algo que tem de ser exerci-do individualmente de forma ativa.3 Como escre-ve Jon Elster, “as liberdades têm de ser exercidase não só garantidas” (1993b, p. 98). Ora, como ésabido, em nenhuma sociedade a cidadania polí-tica é exercida de forma igual e plena por todosos seus membros. Na sociedade portuguesa tam-bém não. É pois desta desigualdade presente epassada que me ocuparei.

Quanto ao que se passa no Brasil, não en-trarei, naturalmente, em pormenores. Limitar-me-ei a admitir que alguns dados apresentados porMurilo de Carvalho em texto recente, segundo osquais apenas 2% dos habitantes da área metropo-litana do Rio de Janeiro teriam sido capazes demencionar um dos seus direitos políticos, confi-guram também uma situação deficitária no quediz respeito ao exercício da cidadania (2002, p.26). A situação já é diferente no que concerne àparticipação eleitoral, cujo aumento espectaculartem sido amplamente demonstrado por Wander-ley Guilherme dos Santos (1998, pp. 115-192).4

Problema mais complexo é, sem dúvida,aquele que Santos levanta a propósito do quechamou de cidadania regulada (1998a, pp. 63-114). Com efeito, no Brasil, como aliás em outrospaíses, segmentos relevantes da população assa-lariada urbana acederam precocemente a um pa-cote significativo de direitos sociais, por assim di-zer, em troca dos direitos políticos confiscados

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pelo regime de Vargas. Resta saber se essa políti-ca de bem-estar é, para usar as palavras do autor,“legítima, isto é, não considerada como paterna-lista” (Idem, p. 40) e se a “cidadania regulada”pode ser equiparada à cidadania política no sen-tido que tenho usado. Não creio que seja o caso,desde logo porque a “regulação” dessa “cidada-nia” se fez privando-a do exercício dos direitospolíticos básicos.

Diverso e diretamente relacionado com apresente pesquisa, é o crescente recurso indivi-dual ou coletivo aos novos institutos processuaisda “ação popular” e da “ação civil pública”, cria-dos pela Constituição brasileira de 1988 (Vianna,2002), que não têm equivalentes em Portugal, em-bora parte desse tipo de ações se processe atra-vés da Provedoria de Justiça (Ombudsman), queconstituiu certamente uma das mais importantesinovações jurídicas trazidas aos cidadãos pela de-mocratização do sistema político português. Se-gundo os autores do estudo sobre “a democraciae os três poderes no Brasil”, os cidadãos brasilei-ros, os seus advogados, os sindicatos, as ONGs eas “promotorias” têm-se mobilizado intensamentepara tirar partido da “democratização do acessoao judiciário” em defesa de seus direitos, tenden-do “a moderar os efeitos negativos de uma repre-sentação política com pouca presença popular” e“admitindo oportunidades plurais para o exercícioda cidadania” (Vianna e Burgos, 2002, p. 483).

Por uma auditoria democrática

Regressemos, porém, ao argumento princi-pal. São raros os autores que levantam a questãoda persistência de fortes traços oligárquicos de or-dem societal nos sistemas representativos reais.Essa persistência pode, aliás, ser de dois tipos ge-ralmente cumulativos: persistência genérica,como lamenta Rawls (1971, pp. 300 passim), ouespecífica, como denuncia Linz (1988, pp. 112-113). Ora, em Portugal e não só, esses traços oli-gárquicos continuam a produzir fortes restriçõessociais à assunção efetiva da cidadania política.Trata-se, pois, de restrições oligárquicas que se si-tuam ainda no eixo da participação poliárquica,

para não evocar o ideal-tipo da democracia, talcomo definida por Wanderley Guilherme dos San-tos na sua leitura crítica do conceito de RobertDahl (1998b).

Carecemos, portanto, de operacionalizaçõesdo conceito de cidadania que, ao avaliarem o de-sempenho do processo democrático, não o subor-dinem ao ponto de vista da oferta de bens políti-cos, em detrimento do ponto de vista da procuradesses bens por parte do cidadão individual ouassociado. Em suma, são raras as propostas de es-crutínio do exercício da cidadania que não subor-dinem a política como forum à política comomercado (Elster, 1985). O que pretendo fazer naprimeira parte desta exposição é explorar empiri-camente uma concepção da política democráticaque não a subordine exclusivamente à oferta, so-bre a qual paira sempre o condicionamento oli-gárquico, mas que também não faça dela um fo-rum permanente, sem estrutura nem estabilidade,como Elster sugere, no artigo citado acima, ser ocaso das teses de um autor como Habermas.

Um esforço nesta direção é o que fornecem,por exemplo, Beetham e seus colegas (1994), aoapelarem à realização de auditorias democráticas,isto é, confrontos empíricos entre os propósitosconstitucionais da democracia e o seu desempe-nho efetivo, quer do lado da oferta partidária,quer do lado da procura de bens políticos, querainda do funcionamento das instituições para-po-líticas, como os tribunais e a mídia, para não falarneste momento nas instituições econômicas, poisisso levar-nos-ia de volta à questão da eqüidadesocial, que não pretendo analisar aqui. Como re-corda Beetham, “do ponto de vista de uma avalia-ção crítica das democracias estabelecidas, os indi-cadores que tratam as práticas existentes comoconstituindo o auge das realizações democráticasparecem-nos indevidamente auto-congratulató-rios”. A observação é óbvia, mas nem por isso oscientistas sociais e políticos deixarão de tirar delaas devidas conseqüências.

Acresce que, com a chamada “terceira vaga”democrática e a correlativa deslegitimação de to-dos os regimes políticos não-representativos(Huntington, 1991), a alegada universalização dademocracia fez deslocar os critérios formais de di-

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ferenciação entre regimes democráticos e não-de-mocráticos para os critérios substantivos da qua-lidade da democracia (Schmitter, 1999). Em outraspalavras, a diferenciação binária, por assim dizerabsoluta, entre democracia e não-democracia temcedido o passo, tanto do ponto de vista analíticocomo da vivência dos cidadãos, à diferenciaçãorelativa entre sistemas representativos num contí-nuo de regimes de diferente qualidade.

Vou assim concentrar-me na medição doexercício efetivo dos direitos conferidos aos cida-dãos em qualquer regime democrático consolida-do, como é hoje o caso do regime português doponto de vista constitucional. Por extensão da no-ção de cidadania, desenvolvi também um conjun-to de indicadores destinados a medir a avaliaçãosubjetiva que os cidadãos fazem do funcionamen-to do sistema político. Finalmente, recorri aindaao índice de distância ao poder, concebido nosanos de 1960 (Hofstede, 1972), a fim de avaliar oposicionamento genérico da população portugue-sa perante a forma como o poder político é, se-gundo ela, exercido. Em suma, trata-se de um in-quérito extensivo ao desempenho do regimedemocrático português do ponto de vista das pro-curas manifestas e latentes de bens políticos com-patíveis com a Constituição.

Identificação partidária, posicionamentoideológico e participação eleitoral

Abreviando a apresentação dos resultados doinquérito, o estudo confirmou a relativa debilida-de da identificação expressa pelo eleitorado por-tuguês em relação à oferta partidária disponível.Em 1997, fora de qualquer conjuntura eleitoral,43% dos eleitores não manifestaram simpatia porqualquer partido e 3% recusaram-se a responder;apenas 54% das respostas foram positivas. Em re-lação a 1994, a identificação partidária perdera seispontos percentuais, sendo os dois maiores parti-dos que mais perderam (Cabral, 1997; 1999a).

Esse resultado não surpreende, sabendoque, em Portugal, quanto maior é o grupo dos“simpatizantes” de um partido, menor é a sua mi-litância e menor é, também, a sua diferenciação

mútua, bem como a sua diferenciação relativa aoperfil sociográfico do eleitorado. Dito de outromodo, os dois maiores partidos são, pelo simplesfato de recolherem entre 70% e 80% do voto po-pular, os mais sujeitos à flutuação da opinião pú-blica. Em termos internacionais, esses valorestambém já não são surpreendentes,5 confirmandoo movimento de disengagement from democracyque vem afetando os eleitorados desde que a “ter-ceira vaga democrática” se generalizou, tanto emregimes consolidados como emergentes (Johns-ton, 1993).

No que diz respeito ao posicionamentoideológico segundo a clássica escala de dez grausentre Esquerda e Direita, o resultado mais salien-te é, porventura, o fato de 20% dos inquiridos nãotomarem posição. Os restantes distribuem-se se-gundo uma curva normal, com forte concentração(37%) nos dois graus centrais da escala (5+6), mascom clara predominância do grau 5 (29%). À Es-querda (graus 1-4) agrupam-se 24% e à Direita(graus 7-10), 17%. As preferências do eleitoradoportuguês inclinavam-se, então, para a Esquerdado leque ideológico. Cruzando com a identifica-ção partidária, é notório que, independentementedos discursos e das práticas dos partidos, o elei-torado português possui um mapa razoavelmenteclaro das posições topológicas de cada um deles(ver Quadro 1, em Anexo).

Finalmente, apenas 21% dos inquiridos ad-mitiram não ter votado nas eleições anteriores àdata do inquérito. Porém, considerando que aspessoas tendem a reconstruir o seu comporta-mento eleitoral de acordo com a espiral do silên-cio, ou seja, submetendo-se verbalmente à nor-ma social prevalecente (E. Noelle-Neumann,1995), segundo a qual a abstenção eleitoral estásujeita a uma forte carga negativa, a débil iden-tificação partidária dos cidadãos não deixou dese traduzir por abstenção significativa (Freire eMagalhães, 2002). Esses resultados revelam, por-tanto, uma insatisfação com a atual oferta políti-co-partidária, ao mesmo tempo que confirmam oprimado de facto da oferta sobre a procura nomercado eleitoral.

Embora o posicionamento ideológico dos ci-dadãos apresente correlações significativas e de

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sentido previsível com as principais variáveis so-ciais e atitudinais, só são expressivas as correla-ções positivas com a exposição à mídia informa-tiva e a simpatia partidária. Quanto a esta última,a ausência de relações minimamente expressivascom os atributos sociais dos cidadãos significaque a desidentificação em relação à oferta políti-co-partidária atravessa de forma quase indiferen-ciada o espectro da sociedade portuguesa. Omesmo sucede de maneira ainda mais acentuada,como veremos adiante, com a avaliação do siste-ma político e a distância ao poder.

Participação associada e automobilizaçãopolítica

Ao contrário da participação eleitoral, queconstitui, de acordo com as teorias convencionaisda democracia, um processo tendencialmente ato-mizado, a plena assunção da cidadania políticapassa pelo que chamei de participação associa-da. Esta corresponde a um processo ativo de re-socialização vis-à-vis dos determinismos socioló-gicos habituais, bem como à aquisição de umacultura cívica própria. Assim, numa teoria demo-crática que valorize a dinâmica interativa e reso-cializadora da participação, a propensão dos indi-víduos para se associarem voluntariamente comvistas à promoção de valores e interesses comunsconstitui não só o indicador mais aproximadopara quantificar esse processo de participação ex-plicitamente socializada e publicitada, como tam-bém uma medida do exercício efetivo dos direitosde cidadania política.

Ora, segundo o grau de envolvimento numconjunto de associações relevantes,6 verifica-seuma propensão para a participação associadamuito baixa por parte do eleitorado português.Numa escala de cinco pontos, a procura manifes-

ta de bens cívicos situa-se, em média, no ponto4,5 (mediana e moda = 5). A propensão para aação coletiva sustentada fica, pois, muito aquémda procura latente de bens políticos expressa pelaparticipação eleitoral, indicando, portanto, queesta última possui uma escassa ancoragem social.Com efeito, mais de dois-terços dos inquiridos re-velaram um grau nulo de participação associada eoutros 20%, um grau baixo.

A propensão para a participação associadaapresenta, como era de se esperar, correlações sig-nificativas e de sinal previsível com os atributossociais da população, mas elas não são expressi-vas, exceto com o índice de mobilização política,de que falarei a seguir. Nesse sentido, a participa-ção revela-se pouco sensível às determinações so-ciológicas, constituindo antes uma prática especí-fica do processo de exercício dos direitos decidadania, o qual dependerá de micro e mesofato-res que uma macroanálise como esta não captou.Também não têm expressão as correlações com oposicionamento ideológico e as identificações par-tidárias, o que significa que a propensão para aação coletiva das pessoas “de esquerda” é tão bai-xa quanto a das pessoas “de direita”.

Um pouco mais expressivas são as correla-ções com a exposição à mídia informativa e amobilização cognitiva (Cabral, 1997). Com efeito,esses últimos índices traduzem atributos reflexi-vos da mobilização política. Embora dependamdo sistema de diferenciação social, sobretudo donível de instrução e do lugar de classe, tanto aprocura de informação como a disposição paraintervir no espaço público e aí discutir temas decaráter político constituem, em si próprias, mani-festações potenciadoras do exercício da cidada-nia. Em outras palavras, o espaço público continuaa ser um lugar privilegiado da mobilização políti-ca, mas se é verdade que “nada politiza mais do

Tabela 1Participação associada (%)

Muito alta Alta Média Baixa Nula Média

1,3 4,5 6,0 20,3 67,9 4,5

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que a politização”, ainda é preciso que os cida-dãos entrem nesse espaço público para que a po-litização comece a ter lugar, e é isso que, freqüen-temente, não ocorre.

Com efeito, o processo de socialização polí-tica está genericamente pré-condicionado pelovalor que os inquiridos atribuem à sua própriaopinião. Assim, quem revela uma alta propensãopara a ação coletiva coincide com quem conside-ra a sua opinião importante; inversamente, quemrevela propensão nula para se associar, consideraque a sua opinião pouco ou nada conta. Ora, en-quanto o primeiro grupo representa apenas 3,5%do eleitorado português, o segundo correspondepraticamente a 40%. Resta saber se há causalida-de entre as duas atitudes e, caso haja, qual é osentido dela. Será que aqueles que se organizamcoletivamente ganham consciência de que a suaopinião conta ou será a percepção de que a suaopinião conta que leva uma minoria de pessoas amobilizar-se? É o que tentamos ver a seguir.

A fim de conhecer a propensão dos cida-dãos portugueses para se automobilizarem emdefesa de interesses e valores próprios, indivi-duais ou coletivos, sem aguardarem, por exem-plo, a mobilização partidária com vistas ao voto,construímos um índice reunindo oito tipos deação empreendidas ou susceptíveis de ser em-preendidas pelos cidadãos. Ao contrário do quesucedia com a participação associada, a automo-bilização distribui o eleitorado português deforma bastante mais equilibrada, pois este novoíndice inclui também indicadores de ordem ati-tudinal com menor significado em termos depráticas cívicas e políticas efetivas. No topo damobilização política continua a encontrar-se umaescassa minoria de “hipermobilizados”. Em con-trapartida, só 24% dos inquiridos se excluem,pelo menos pelas suas atitudes, de qualquer for-ma de mobilização. Em suma, numa escala decinco pontos a média situa-se em 3,6.

Mais do que a identificação partidária, a po-sição ideológica ou a participação associada, a au-tomobilização apresenta correlações significativas,de sinal previsível, com os principais caracteressociográficos da população, notadamente o nívelde instrução e a idade, sendo as pessoas mais ins-truídas e mais jovens as que revelam maior ten-dência para se mobilizarem. A automobilizaçãoestá também correlacionada, embora mais mitiga-damente, com a mobilização cognitiva e a expo-sição à mídia informativa, que assim continuam aandar a par. Em contrapartida, a classe social e orendimento possuem fracas correlações, mostran-do a mobilização depender mais diretamente do“capital escolar” do que do “capital econômico”ou do chamado habitus de classe.

Finalmente, verificou-se que não há relaçãonecessária entre as ações que os cidadãos revela-ram ter empreendido e aquelas que, embora nun-ca as tendo empreendido, admitem a possibilida-de de vir a fazê-lo. Daqui se podem deduzir doistipos de mobilização: as formas moderadas, queembora desigualmente postas em prática, são as-sumidas como legítimas por metade das pessoas,tais como assinar uma petição ou convocar umareunião; e as formas radicais, também desigual-mente postas em prática, mas que uma clara maio-ria recusa empreender, tais como fazer greve ou semanifestar na rua (ver Quadro 2, em Anexo).

Para a construção de um índice de cidadania

Se admitirmos, ao contrário de certas teoriasconservadoras da democracia, que a qualidade deum regime democrático será tanto maior quantomais os cidadãos exercerem os seus direitos, tere-mos uma noção melhor do funcionamento real doregime português, assim como se conseguirmoschegar a uma medida aceitável do exercício efetivo

Tabela 2Índice de auto-mobilização política (%)

Muito forte Forte Média Fraca Nula Média

5,2 11,1 30,2 29,1 24,4 3,6

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da cidadania em Portugal, combinando os índicesde participação associada e de automobilização.7

Verifica-se deste modo que perto de 70%dos cidadãos se situa nos três graus inferiores daescala. A média e a mediana situam-se no grau 8e a moda no 9. A automobilização tem mais pesona formação do índice do que a participação as-sociada, sendo, portanto, a baixa propensão dosinquiridos para a ação coletiva – em suma, aquilo aque Oliveira Vianna chamava o insolidarismo –a principal responsável pelos baixos valoresmédios encontrados. Por sua vez, a instrução é ofator com mais peso no exercício da cidadania.Porém, como já foi observado em estudos ecoló-gicos sobre o comportamento do eleitorado por-tuguês (Freire, 2001), também no âmbito individualse verifica ser fraca a associação entre os atribu-tos sociais da população, por um lado, e as suaspráticas e atitudes político-ideológicas, por outro(ver Quadro 3, em Anexo). Na realidade, os úni-cos atributos sociais com incidência no exercícioda cidadania são, além da instrução, a classe so-cial e o gênero, sendo os homens mais instruídosdas classes elevadas quem acaba por revelarmaior propensão para exercer os seus direitospolíticos.8 Et ceteris paribus, a mobilização cogni-tiva e a exposição à mídia, bem como o posicio-namento ideológico à esquerda, funcionam comopotenciadores do exercício da cidadania (verQuadro 4, em Anexo).

Avaliação do sistema político e distânciaao poder

Tem possivelmente razão Wanderley Gui-lherme dos Santos no seu “radical cepticismoquanto à possibilidade de completa avaliação dapolítica cívico-social do governo” (Santos, 1998a,p. 63). Com efeito, os esforços que tenho feitopara medir a avaliação que os cidadãos portu-gueses fazem de sistema político, na dupla di-mensão do comportamento da classe política eda isenção dos aparelhos de Estado, não têmsido muito bem-sucedidos, pois as respostas re-velam pouca consistência interna. Quando agre-gada, a avaliação limita-se a seguir uma curvanormal com alguma propensão para o descon-tentamento, indicando que estamos perante di-mensões das atitudes sociais em relação à ofertade bens políticos desligadas entre si.

Não surpreende, portanto, que a avaliação dosistema político não apresente associações significa-tivas com qualquer variável sociográfica. Em contra-partida, está moderadamente correlacionada com oíndice de distância ao poder, o qual, como veremos,também não apresenta correlações significativascom qualquer outro atributo ou atitude dos cida-dãos. As dimensões com maior peso na avaliaçãodo sistema político são a apreciação relativamentepositiva do comportamento dos governantes e aapreciação relativamente negativa dos partidos. Essa

Tabela 4Índice de avaliação do sistema político (%)

Muito positiva Positiva Média Negativa Muito negativa Média

4,1 16,9 40,2 26,9 11,9 3,3

Tabela 3Índice de cidadania política (%)

1 10Muito 2 3 4 5 6 7 8 9 Muito Médiaforte fraco

– ,06 1,5 1,6 4,2 8,4 14,8 23,1 24,8 21,1 8,1

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distinção entre o comportamento dos governantes eo dos partidos não surpreende, pois os cidadãosnão só já haviam manifestado débil identificaçãocom o sistema partidário, como é conhecida a ten-dência geral do público para dar mais apoio às au-toridades do que ao próprio sistema. Em contrapar-tida, esta marcada disjunção entre a políticapartidária e a esfera do governo aponta diretamen-te para os resultados adiante fornecidos pelo índicede distância ao poder.

Como se podia antecipar, a avaliação do sis-tema é condicionada pelo relacionamento daspessoas com a política. Assim, 60% revelam “terdificuldade ou não compreender de todo o que sepassa no mundo da política”, ao mesmo tempoque 56% consideram que “a sua opinião pouco ounada conta para resolver os problemas do país”. Écomo se, para a maioria dos cidadãos, a com-preensão da política e a importância de suas opi-niões dependessem mais deles próprios do que datransparência do espaço público, por um lado, eda conta em que o sistema tem as suas opiniões,por outro. Como era também de prever, a com-preensão e a influência políticas estão ligadas en-tre si, embora de forma menos linear do que sepoderia supor. Resta saber se existe causalidadeentre elas ou se, como já temos elementos parasuspeitar, a percepção de compreender a vida po-lítica e a de ter influência sobre ela são pura e sim-plesmente indissociáveis, opondo uma minoriacom acentuados traços oligárquicos a uma maioriadistante do poder (ver Quadro 5, em Anexo).

Confirma-se, em todo o caso, que a com-preensão e a influência políticas condicionam aparticipação e a mobilização dos cidadãos. Emsuma, apesar de os cidadãos adoptarem atitudesperante o sistema político desligadas entre si e sódebilmente relacionadas com os seus atributos so-ciais, foi possível identificar um conjunto de di-

mensões do seu relacionamento com a políticaque indicia um distanciamento sensível em rela-ção ao poder político. O índice de distância aopoder que usei foi adaptado daquele que o psicó-logo social Geert Hofstede construiu, na segundametade dos anos de 1960, a fim de medir a rela-ção de autoridade entre os empregados e a direcçãode uma grande empresa multinacional presente,na altura, em quarenta países entre os quais Por-tugal (Hofstede, 1972).9

Ora, verifica-se que a distância manifestadapelo conjunto da população portuguesa é supe-rior à do segmento populacional inquirido há trin-ta anos.10 Isso significa que a esmagadora maioriados portugueses considera que os governantesexercem o poder de forma diametralmente opos-ta à desejada pelos cidadãos, ou seja, tomam asdecisões sem os consultar. Mais significativoquanto às suas determinações e consequências é,porém, o fato de uma idêntica maioria pensar que“os portugueses têm medo de mostrar que discor-dam das decisões dos governantes”.

O resultado é que, numa escala de 6 graus,o distanciamento em relação ao poder político sesitua, em média, no ponto 3,7. Quando procura-mos os correlatos sociais, atitudinais e comporta-mentais dessa distribuição, o fato de ela se apro-ximar de uma curva normal, ao contrário do quesucedia com o índice de cidadania, confirma quea distância ao poder não apresenta correlaçõessignificativas com qualquer variável social, excetouma débil associação, assinalada há pouco, coma avaliação do sistema político, sendo esta últimatanto mais negativa quanto maior for o distancia-mento. Em outras palavras, esse sentimento dedistância ao poder atravessa indiferenciadamentea sociedade portuguesa.

É lícito pensar que esse traço societal mar-cante configura aquilo que se pode designar, na

Tabela 5Índice de distância ao poder (%)

1 2 3 4 5

6Média

Mínima Máxima

4,2 14,0 23,1 29,4 24,7 4,.7 3,7

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linguagem da política como forum, como umdéficit comunicacional entre governantes e go-vernados. No vocabulário da política comomercado, poderá dizer-se que esse mesmo tra-ço societal configura um desajustamento entre aoferta e a procura no mercado dos bens políti-cos. De qualquer modo, ambos os casos recor-dam os conflitos latentes entre elites e massasnos antigos regimes liberais oligárquicos e clien-telares, o que fornece um inesperado pano defundo para os níveis relativamente débeis deexercício da cidadania política por parte da po-pulação portuguesa.

A cidadania em perspectiva histórica

A elucidação deste fenómeno sem correlatossociológicos captáveis pelos instrumentos con-vencionais da ciência política remete para a histó-ria política do país, se não para a sua cultura cí-vica. Somos assim conduzidos ao horizontehistórico e fenomenológico do Estado português.Em suma, como explicar – um quarto de séculodepois de o regime autoritário ter sido derrubadoe da alegada consolidação do regime representa-tivo – esse sentimento de distância ao poder queos testes estatísticos convencionais se revelam in-capazes de elucidar? Eis o que me proponho tra-tar na segunda parte desta exposição.

A hipótese mais plausível foi perguntar emque medida não subsistiria em Portugal, nas rela-ções entre as elites de poder e a generalidade dapopulação, um distanciamento histórico que apassagem do Estado autoritário ao Estado demo-crático não havia feito desaparecer. Daí, a evoca-ção de um “autoritarismo de Estado” que não sósubsistiria à democratização formal da representa-ção e das instituições políticas, como seguramen-te precedera a institucionalização de um Estadoautoritário demasiado duradouro, como o regimeditatorial de Salazar, para não carecer de explica-ção metapolítica e para não deixar marcas profun-das para além da sua vigência contingente.

Vários autores estrangeiros exploraram,aliás, a possibilidade de existir, independente-mente de juízos de valor sobre a ditadura, uma

forte adequação do regime salazarista não só emnível de desenvolvimento socioeconômico, mastambém no âmbito da cultura política da socieda-de portuguesa da época, se não mesmo de sem-pre (Wiarda, 1977; Robinson, 1979; Schmitter,1999). Bem antes deles, já no Brasil alguém comoOliveira Vianna argumentara com força no senti-do da necessidade de um “estado corporativo for-te” perante a inadequação das instituições políti-cas democráticas à sociedade brasileira. Por outrolado, mais de um autor brasileiro, entre os quaisavulta sem dúvida Raymundo Faoro, tem imputa-do ao Estado colonial, se não à própria socieda-de portuguesa, uma cultura autoritária – entre opatrimonialismo e a burocracia administrativa oua uma combinação de ambos – legada ao Brasil.11

Habitualmente, porém, os autores portuguesesidentificados geracionalmente com a transição de-mocrática, como eu próprio, tinham tendênciapara resistir a essas idéias.12

A tese das sociedades civis reais

Seja como for, o prolongado autoritarismosocietal implícito na distância ao poder sentidapela maioria da população portuguesa no finaldo século XX possui, hoje em dia, um enquadra-mento teórico e metodológico novo, fornecidopela experiência da chamada terceira vaga de-mocrática e pelas enormes dificuldades verifica-das na emergência de “sociedades civis” que su-postamente renasceriam após a derrocada dosEstados autoritários que as teriam subjugado atéentão. Com efeito, em vez de uma sociedade ci-vil pujante e vibrante, correspondente aos ideaisliberais, o que emergiu na maior parte dos paí-ses onde esses regimes imperavam foram as for-ças latentes naquilo a que Jeffrey Alexanderdeu, prosaicamente, o nome de “sociedades ci-vis reais”, sempre muito diversas do ideal-tipoliberal, tanto na sua composição social quantono seu papel político. O fenômeno não é, aliás,exclusivo das democracias emergentes, tendoressurgido em muitas democracias consolidadasà medida que o desmantelamento da interven-ção e da regulação estatais avança perante a

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globalização neo-liberal (Alexander, 1998). Amais-valia trazida pela abordagem de Alexandere alguns dos seus colaboradores, relativamenteà tradição dos “descontentes com a sociedadecivil” (Cohen e Arato, 1992, pp. 275-341), residena tentativa de conferir à tradição crítica norma-tiva novas bases historiográficas, sociológicas eantropológicas.

Foi nesse novo quadro teórico e históricoque a colega brasileira Elisa Pereira Reis (Reis,1998, maxime pp. 111-134) recuperou uma antiganoção dos estudos rurais que oferece, por assimdizer, uma base para fundamentar, de forma mi-nimamente objetivada, o sentimento de distânciaao poder que encontrei entre a população portu-guesa de hoje. Trata-se da noção de familismoamoral, cunhada há mais de quarenta anos pelosociólogo norte-americano Edward Banfield, a fimde caracterizar aquilo a que dava o nome, numalinguagem à qual também já não estamos habitua-dos, as “bases morais de uma sociedade atrasada”(Banfield, 1958/1976). A referência revelou-se im-portante para esta estratégia de pesquisa, compa-rativa entre Portugal e Brasil. Com efeito, eu pró-prio já me havia deparado, na década de 1980,com algo de semelhante à estrutura e às funçõesdesse familismo amoral, no meu próprio trabalhosobre as estratégias de adaptação e resistência dopequeno campesinato português perante a pene-tração de relações mercantis nos campos secun-dada pelos diversos aparelhos de Estado (Cabral,1983, 1986, 1991).

De acordo com a tese das sociedades civisreais, o chamado familismo amoral fornece umanova perspectiva sobre a “distância ao poder”. Enão só uma perspectiva passiva, exclusivamenteassociada à miséria econômica, como sucedepredominantemente na reflexão de Elisa Reis edo próprio Banfield, mas também uma perspecti-va de algum modo ativa. Em outras palavras, em-bora efetivamente perverso em muitos de seusefeitos para as próprias famílias, o familismoamoral ganha em ser dissociado da miséria purae simples, ao mesmo tempo que convém reco-nhecer-lhe um carácter estratégico, como aliássucedia também com o “insolidarismo” de Olivei-ra Vianna.

Em busca de algumas mediações históricas

Dando provisoriamente por definido o ale-gado familismo amoral das camadas sociais his-toricamente mais desmunidas da sociedade por-tuguesa, em especial o campesinato pobre doNorte e Centro do país,13 convém ter presente ogrande peso quantitativo dessas camadas e o seuprolongado impacto nas representações e práti-cas sociais do conjunto da população, sobretudoas atitudes e os comportamentos políticos. Restaassim identificar alguns elos socioculturais sus-ceptíveis de mediar entre tal familismo amoral eo autoritarismo do Estado português, aquém ealém das formas contingentes que este tem to-mado ao longo de um período que recua aosprimórdios da modernidade em Portugal, comseus prováveis ecos no Brasil.

Voltemos atrás por um instante. Não sendomais do que um construto quantitativo fabricadohá trinta e tantos anos, o que a decomposição doíndice de “distância ao poder” mostra é que háuma enorme distância entre as “formas democráti-cas” como a população considera que o poder po-lítico devia ser exercido e as “formas autoritárias”como ela acha que o poder é exercido de fato.Esse resultado é relativamente trivial e pode segu-ramente ser encontrado em muitas sociedades.Mas o exercício não mostrou apenas isso. Reveloutambém algo menos trivial. A saber: a grandemaioria dos Portugueses teria, segundo os entre-vistados, medo de mostrar discordância perante asdecisões dos detentores do poder.14

Após um quarto de século de funcionamen-to regular das instituições representativas, comfreqüentes alternâncias partidárias no poder, éinegável que estamos ante um indicador que re-mete, necessariamente, para algo mais do que asimples inércia do receio que a maioria dos por-tugueses tinha, por razões compreensíveis, de ex-primir a sua opinião no tempo da ditadura. Tendopresente que mais de metade do atual eleitoradoportuguês chegou à maioridade (18 anos) depoisdas primeiras eleições livres em 1975, quando nãonasceu já em democracia, é manifesto que a reno-vação demográfica das gerações foi insuficientepara trazer consigo uma renovação equivalente

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dessa atitude receosa, aliás não apresentando oíndice de distância ao poder qualquer relaçãocom a idade dos inquiridos.

É provável que, se este estudo tivesse sidofeito durante o período de grande mobilizaçãoque se seguiu ao golpe do 25 de Abril de 1974, osresultados fossem diferentes. Nunca o saberemos,porém. Certo é que, com a desmobilização popu-lar necessária, segundo as teorias convencionaisda democracia, para a normalização do regime re-presentativo; com a rotinização da participaçãoeleitoral e da alternância partidária no governo; efinalmente, com a reoligarquização da classe po-lítica, os fatores de distância ao poder’ de que oEstado autoritário já havia certamente se benefi-ciado, ao mesmo tempo que os reproduzira econsolidara, voltaram a produzir efeitos similaressobre as representações e as práticas políticas damaioria dos portugueses perante o Estado demo-crático. Dar conta dos fatores que têm sustentadoa reprodução dessa cultura cívica marcada poruma indiferenciada “distância ao poder” e um dé-bil exercício dos direitos de cidadania remete,pois, para um universo de mediações históricascom o qual a politologia empírica está menos ha-bituada a lidar.

A variável mais independente do sistema

Precisamos, contudo, de uma ponta para pu-xar esse novelo de mediações a fim de identificaro que possa estar, por assim dizer, do outro ladoda “distância ao poder” – por hipótese, o “familis-mo amoral” –, de maneira a que ela não surjacomo um vago traço cultural, mas sim como umamanifestação longamente consolidada das estraté-gias de sobrevivência de gerações sucessivas defamílias desmunidas não só de recursos econômi-cos, como sobretudo de recursos simbólicos, pe-rante o exercício do mais simbólico dos poderes,a saber, o poder político.

Deste ponto de vista, a variável mais inde-pendente do sistema social português é, comotem sido repetidamente observado em todo o gê-nero de estudos, a posse desse tipo específico derecursos cognitivos e informativos que o sistemaescolar é suposto fornecer desde a modernização

do Estado, já a partir do século XVII e, decidida-mente, a partir do século XIX. Aliás, também nosEstados Unidos, como revela o último estudo deSidney Verba e de sua equipe sobre “as raízes pri-vadas da ação pública”, a educação continua a sero único fator verdadeiramente significativo para aexplicação de todos esses tipos de atitudes e com-portamentos (Burns, Schlozman e Verba, 2001).

Em Portugal, para além da evidência con-temporânea, há inúmeros indícios históricos deque a escolarização funcionou, ao longo dos pro-cessos de formação do Estado moderno, não sócomo um fator de apertado controle social, mastambém como a forma mais regulada de acessoespecífico ao poder político. Entre tantos outrosexemplos, é de mencionar a elegibilidade atribuí-da, no restrito sistema de franquia eleitoral liberal,aos detentores do 2.º grau de escolaridade secun-dária (os mesmos 9 anos da atual escolaridadeobrigatória) sobre a grande maioria dos detento-res de capital econômico, quando estes não pos-suíssem aquele modicum de capital cultural. É ne-cessário verificar se essa disposição é comum aoutros regimes eleitorais da época, mas é impor-tante registar, desde já, a precedência política dainstrução sobre o censo econômico desde os pri-mórdios do Estado liberal em Portugal na primei-ra metade do século XIX.15

Com a institucionalização gradual do sistemade ensino formal, os dois capitais – econômico ecultural – tendem a convergir. Porém, enquanto semantêm os dispositivos da escolarização restrita(Goody, 1986, 1987), como foi o caso em Portugalaté à segunda metade do século XX, tal convergên-cia de capitais não só reforça o caráter oligárquicodas elites e a sua falta de diferenciação funcional,como aponta para a influência do “estamento bu-rocrático”, como lhe chama Faoro, na própria defi-nição das regras do jogo político. Porventura maisainda do que em nível nacional, é isso que se ve-rifica na esfera das elites locais portuguesas com aimplantação do sistema eleitoral liberal.16

A noção da alfabetização restrita remete,por seu turno, para algo que está por fazer emPortugal, pelo que aqui apenas lhe poderei ace-nar brevemente. Vale dizer que o que falta éuma espécie de história natural do analfabetis-

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mo e dos seus efeitos comunicacionais e políti-cos em Portugal. Porém, não se trata apenas dadifusão da leitura e da escrita, mas também, apartir de certa altura, da difusão da imprensa.Terá sido neste momento crucial da difusão dapalavra escrita através da imprensa e do seu im-pacto diferenciador nas “relações de comunica-ção”, para usar a expressão de Jack Goody, quea Reforma e a Contra-Reforma introduziram nasociedade européia não só o cisma religioso,com o seu correlato na esfera de atitudes e com-portamentos econômicos que estariam na basedo “espírito do capitalismo”, mas também umcisma equivalente, quiçá mais importante aindado ponto de vista da gestão simbólica do poder,no sistema de comunicação entre elites e massas.Por definição, é mais fácil documentar o papelda comunicação escrita na emergência da “opi-nião pública”, como mediadora entre Estado esociedade civil (Zaret, 1998), nos países protes-tantes do que nos católicos, onde essa comuni-cação não existe ou é muito escassa.

Portanto, aqui apenas será possível assinalaressa escassez. Por exemplo, o controle absolutoda Coroa portuguesa sobre a difusão da tipogra-fia na colônia, acompanhado da repressão violen-ta de quem se atrevesse a reproduzir qualquertexto sob forma gravada, é exemplar da centrali-dade política da imprensa no exercício do podere, aliás, uma arma privilegiada na afirmação doestamento burocrático, bem como da centraliza-ção administrativa subjacente à unidade do impé-rio. A imprensa só chegou ao Brasil com a ida dacorte para o Rio de Janeiro e ficou, inicialmente,sob o controle do poder colonial, com a criaçãoda Imprensa Nacional em 1811, à imagem da con-gênere lusitana fundada em 1768.

Para uma história do analfabetismo emPortugal

O âmbito restrito deste artigo não comportauma história do analfabetismo em Portugal. Po-rém, nada ilustrará melhor o cisma comunicacio-nal entre elites e massas, aberto pela imprensanos países católicos, do que a restrição sistemáti-

ca à formação de camadas socioculturais intermé-dias – entre uma diminuta elite rapidamente alfa-betizada e a grande massa iletrada dos campone-ses pobres – com acesso aos textos sagrados.Com efeito, a proibição paradigmática que pen-deu sobre a tradução e a impressão da Bíblia emvernáculo foi ainda mais prolongada em Portugaldo que nos outros países católicos do Sul da Eu-ropa, já que a primeira bíblia impressa no paísem língua portuguesa data apenas de finais doséculo XVIII.17

Bendix assinalou de forma definitiva a asso-ciação virtuosa entre a extensão da instrução públi-ca e a cidadania política na construção do Estadomoderno (Bendix, 1996, maxime cap. 3 da ParteII). Entre as conseqüências políticas – deliberadasou não – da alfabetização restrita, que manteve ofosso entre os detentores do poder de regulaçãosobre a produção e a circulação da palavra impres-sa, por um lado, e as massas iletradas, por outro,Goody salienta o esmagamento de qualquer con-solidação política do dissenso, impedindo, por as-sim dizer, que os conteúdos implícitos de poten-ciais dissensos se tornassem explícitos:

É claro que o cepticismo, a crítica e a descrençanão estão ausentes das sociedades orais, mas asua expressão tende a ser apagada a cada geração[...]. Não há acumulação de idéias não-conformis-tas. Os ataques contra a ordem política vigentetendem a assumir a forma de rebelião orientadaao restabelecimento da ordem anterior em vez dareforma, para não falar da revolução. Nas culturasalfabetizadas, os comentários individuais dos filó-sofos e pregadores adquirem uma forma perma-nente que a extensa circulação da palavra impres-sa pode cristalizar mais facilmente em ideologiasconflituais […]. Só a partir do momento em que aimprensa forneceu um modo regular de comuni-cação e exortação é que o dissenso se exprimecomo tal. Trata-se de mais uma ilustração das mu-danças envolvidas no processo de tornar o implí-cito explícito (Goody, 1986, p. 122).

Tipicamente, no Brasil, entre as raras mani-festações de rebeldia do “povo-massa”, já Olivei-ra Vianna havia assinalado o carácter de “regres-so à velha ordem” dos movimentos popularesreligiosos, como Canudos (Vianna, 1949); e Muri-lo de Carvalho diz algo parecido a propósito da

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“revolta da vacina” e da plebe urbana vista como“bestializada” pela elite liberal (J. M. Carvalho,1987). Quanto a Portugal, não é necessário recor-dar a história da censura intelectual e dos seusefeitos compressores sobre o pensamento, parausar os termos de um clássico republicano (Bas-tos, 1926), nem o papel específico da Inquisiçãoe das próprias autoridades políticas no apertadocontrole da alfabetização e da circulação da pala-vra impressa, a começar pelos textos sagrados docatolicismo em língua portuguesa.18

Em compensação, para fazer a história natu-ral do analfabetismo, há necessidade de estudoshistóricos sobre a alfabetização e a respectivaquantificação. Esses estudos são ainda escassosem Portugal, mas, tanto quanto me é dado julgar,de boa qualidade e altamente informativos (Silva,1986; Magalhães, 1994; Marquilhas, 1996). A quan-tificação do índice de alfabetização ao longo dahistória levanta, aliás, problemas metodológicosamplamente discutidos na literatura – em especial,a questão da inferência da extensão da alfabetiza-ção a partir das assinaturas em documentos de ín-dole administrativa –, mas nem por isso resolvidosde forma satisfatória para uma abordagem dosseus efeitos comunicacionais e políticos.19 Sejacomo for, é importante notar que, a partir do sé-culo XVIII e, sobretudo, do século XIX, a alfabeti-zação se tornou, em Portugal também, quase ex-clusivamente dependente de uma escolarizaçãoformal a cargo do Estado ou por este regulada. Pa-radoxalmente, a estatização do ensino contribuiunão só para fazer desaparecer as práticas informaisde alfabetização, especialmente em meios sociaiscomo o dos artesãos, mas também para desenca-dear um novo conflito latente entre o Estado e“populações que, não sentindo necessidade de sealfabetizarem, [encaram] a escola como uma vio-lência inútil” (Magalhães, 1994, p. 519; ver tam-bém Ramos, 1988).

Outro sintoma do cisma entre as elites alfa-betizadas e as massas iletradas é esse novo “fac-tor de tensão entre estratos culturais devido aopreconceito dos analfabetos em relação aos quetresliam” (Marquilhas, 1996, p. 192). Esse precon-ceito, além de traduzir um mecanismo psicosocialde redução da dissonância cognitiva idêntico aos

analisados por Jon Elster (1993a), constitui um tra-ço típico de regimes comunicacionais como odessa alfabetização restrita que prevaleceu emPortugal até à segunda metade do século XX, ouseja, até ao momento em que a maioria da popu-lação permanecia excluída do sistema de escola-rização e a minoria que o freqüentava estava lon-ge de atingir os critérios de elegibilidade de umséculo atrás. A própria fixação tardia da ortografiaportuguesa faz também parte do carácter restritoda alfabetização.20 A arbitrariedade ortográfica emesmo gramatical funciona, portanto, como ummarcador direto do lugar na hierarquia sociocul-tural e também como um filtro suplementar noacesso à plena comunicação escrita. Em suma,trata-se de mais uma manifestação da instruçãocomo forma de controle social.

Para concluir este esboço, bastará mencio-nar o estudo decisivo de Jaime Reis sobre o anal-fabetismo no século XIX, quando não havia nopaís, oficialmente, mais de 20% a 25% de pessoasalfabetizadas. Aí procede o autor à metódica re-futação de todos os argumentos de índole econô-mica habitualmente invocados, em especial a fal-ta de recursos do Estado, para explicar o enormeatraso da alfabetização das massas em Portugal,mesmo em comparação com os outros países ca-tólicos do Sul da Europa (Reis, 1993). Assim, de-finitivamente desarmados esses argumentos, ficacomo explicação para os elevadíssimos índicesde analfabetismo e de analfabetismo funcional –verificados em Portugal não só no século XIX,mas ainda no final do século XX (Benavente etal., 1996) – a manifesta falta de vontade das eli-tes políticas em alfabetizarem as massas, só emparte justificada pelo fato de que não haveria,entre nós, necessidade de promover a uniformi-zação lingüística.21 Contudo, as explicações for-necidas por Jaime Reis, atribuindo a falta de em-penho das elites na alfabetização de massas àausência de “maiores tensões” étnicas, sociais,políticas ou militares no país (Reis, 1993, pp. 31-35, maxime parágrafo final), iludem o papel cru-cial que o analfabetismo generalizado segura-mente desempenhou, ao longo do século XIX emesmo mais tarde, na relativa apatia política dasclasses populares (Cabral, 2001).

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Acoplada àquela falta de vontade política elegitimando-a de algum modo, terá funcionado, atéhá pouco tempo, uma simétrica falta de motivaçãodas massas camponesas para a aprendizagem es-colar, a qual remete, por seu turno, para a virtualirrelevância da comunicação escrita no quadro dasestratégias econômicas e sociais – nomeadamentedos grupos domésticos do campesinato pobre –que fornecem a base material do familismo amoral.Dito isto, não obstante os efeitos fortemente discri-minantes que os níveis de instrução exercem sobrea maior parte das representações, atitudes e com-portamentos da população portuguesa atual, issomal se verifica para a “distância ao poder”; estatis-ticamente, apenas há uma relação inversa entreinstrução e distanciamento perante o poder. Daí sóse pode concluir que a chamada massificação doensino verificada nas últimas décadas não exerceusobre o sentimento de “distância ao poder” os efei-tos que dela é costume esperar.

O autoritarismo administrativo e sua ideologia

Outra importante mediação a explorar entreo sentimento de distância ao poder e o quadrosociocognitivo configurado pelo familismo amoralé o carácter administrativo, magistralmente carac-terizado por Raymundo Faoro em Os Donos doPoder, da dominação política exercida pelo Esta-do em Portugal e no Brasil ao longo da história.Mais do que qualquer outro instrumento ao seudispor, inclusive a violência física, o autoritarismorecorrente do Estado português dá-se a conhecerpela administração pública. É através dela que asmassas são, simultaneamente, integradas e discri-minadas; às vezes, reduzidas a uma condição“bestializada”. Em outras palavras, seria errôneover as massas camponesas do passado remoto erecente como camadas excluídas do Estado-na-ção. O que ocorreu é que o seu processo de in-clusão – basicamente através da submissão aosprocedimentos administrativos estatais – foi tam-bém o instrumento de sua discriminação.

Vale a pena, pois, equacionar a noção de Es-tado administrativo como forma de dominação

preventivamente esvaziada de qualquer contra-tualização, como aquele despotismo administrati-vo que Tocqueville atribuiu ao Estado francês, an-tes e depois da Revolução (Tocqueville,1856/1967). Trata-se de uma modalidade de su-bordinação das massas populares à parafernáliadas normas e de registos administrativos, em es-pecial sobre a pequena propriedade camponesa eo sistema de herança, ao mesmo tempo que amaioria esmagadora da população era excluída,em Portugal, do acesso ao próprio instrumento desua subordinação, a escrita. Esse tipo de domina-ção ter-se-á tornado ainda mais evidente com a li-beralização formal das instituições políticas, nota-damente nas sociedades da Europa meridionalsob a influência da Revolução Francesa e do Im-pério napoleônico.

Pensando na Itália de finais do século XVIIIe inícios do século XIX, Adrian Lyttelton sublinhao fato de “a destruição da ‘sociedade de ordens’não ter sido, inicialmente, realizada por fortesmovimentos autóctones, mas ter-se apoiado qua-se exclusivamente na força da administração esta-tal”, concluindo na esteira de Tocqueville, que“isto favoreceu a persistência de um modelo ab-solutista nas relações entre o cidadão e a adminis-tração” (Lyttelton, 2000, p. 66). Não é impossívelque o Estado liberal português, e porventura obrasileiro também, se tenham encontrado peranteo dilema do “comando impossível”, como lhechama o historiador Raffaele Romanelli, em quese encontrou o Estado italiano, ou seja,

[...] uma nova versão do dilema de forçar os ho-mens a serem livres: o Estado liberal tinha de in-tervir para criar condições para o exercício da li-berdade; porém, ao fazer isso, restringia a esferade autonomia da sociedade civil, que a classe go-vernante, sendo liberal, deveria proteger (Lyttel-ton, 2000, p. 67).

Seja como for, a articulação entre despotis-mo administrativo e analfabetismo é evidente.Rita Marquilhas, por exemplo, alude aos “efeitosmágico-simbólicos do escrito”, sobretudo o im-presso, mobilizados pelas autoridades políticas,desde o século XVIII pelo menos, na sua comuni-cação com as classes subordinadas (Marquilhas,

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1996, p. 192). Mas talvez nenhum estudo ilustremelhor o uso do analfabetismo como forma decontrole e discriminação sociais do que o ensaiode Elisa Reis sobre a “opressão burocrática” noBrasil contemporâneo (1999, pp. 239-269), onde aautora analisa a correspondência enviada por in-citação do ministro brasileiro Hélio Beltrão, quan-do do lançamento do seu Programa Nacional deDesburocratização em 1979.

Aí são citados numerosos cidadãos anôni-mos solicitando expressamente que a administra-ção use “o português escrito da maneira que sefala”. Segundo a autora, “quatro aspectos emer-gem claramente como noções bastante genéricasentre os correspondentes: a) o mito da “boa” au-toridade; b) a burocracia como “mal” absoluto; c)o carisma da autoridade versus regras burocráti-cas; d) os ‘direitos’ como ‘favores’” (Reis, 1999, p.250). Esses traços identificam de forma exemplaras representações negativas que as massas iletra-das tendem a ter da burocracia, acopladas a umaforte tentação carismática que acaba por legitimar,na realidade, o reverso do despotismo administra-tivo, ou seja, a dominação exercida por meio docarisma popular. Como aconteceu com o “mode-lo francês”: do jacobinismo ao bonapartismo e, fi-nalmente, ao Império.

Aplicados a Portugal, esses traços simultâ-neos de negatividade e positividade ajudam a en-tender o processo de consolidação da ideologiaadministrativa que domina o pensamento políti-co português desde finais do século XVIII, atra-vessando virtualmente o reformismo iluminista, oliberalismo e o republicanismo. No Brasil, segun-do Renato Lessa, uma ideologia administrativaanáloga à portuguesa teria tido um momento deapogeu na consolidação da Primeira Repúblicasob a presidência de Campos Sales (Sales, 1998;Lessa, 1999). De resto, essa concepção adminis-trativa do exercício do poder vinha já sendo teo-rizada, se não praticada, desde o Segundo Reina-do, pelo Visconde do Uruguai, no seu Ensaiosobre o direito administrativo (1862), onde o au-tor recupera a lição conservadora de Guizot paraser, por sua vez, recuperado numa perspectivaautoritária por Oliveira Vianna, por exemplo (J.M. Carvalho, 2002b).

Em Portugal, o auge dessa ideologia teve lu-gar, tipicamente, com a ditadura do Estado NovoCorporativo a partir da década de 1930. Com efei-to, o regime salazarista singulariza-se, em contras-te com a breve ditadura carismática de SidónioPais que o antecedeu (1917-1918), por ter codifi-cado rigidamente as tendências latentes do Esta-do liberal em direção ao que um autor da épocachamara de “ditadura administrativa”. Muito antes,também Oliveira Martins já usara a mesma expres-são, em Portugal contemporâneo (1880), para ca-racterizar o governo de Costa Cabral, em finais daprimeira metade do século XIX, por contrastecom a agitação política – inorgânica, segundoMartins – dos primeiros tempos do Estado liberal.No início do século XX, um dos mais articuladosideólogos da República proclamada em 1910, Ba-sílio Teles, abundara no mesmo sentido, não he-sitando em teorizar o exercício da “ditadura admi-nistrativa” como forma rotineira de governar opaís (As ditaduras, 1907).

De fato, o exame do pensamento políticoportuguês moderno revela que raramente as eli-tes se interrogaram acerca dos objetivos do poderou em nome de quem exerciam esse poder. Todoo seu esforço doutrinário está dirigido a uma úni-ca questão: como exercer um poder do qual es-sas elites parecem considerar-se “donas”, parausar a expressão de Raymundo Faoro? Subjacen-te à ideologia administrativa das elites oligárqui-cas, está, pois, o temor à irrupção das massas nacena política e, simultaneamente, à emergênciade eventuais lideranças carismáticas, sobretudo àconvergência dos dois fenômenos, segundo umpadrão semelhante ao observado por Lyttelton naItália, com o resultado de “consolidar a descon-fiança no Estado” e colocar “problemas fataispara ao Estado liberal”, desembocando no fascis-mo após a Primeira Grande Guerra (Lyttelton,2000, p. 68).

Práticas do despotismo administrativo

A forma estatal do despotismo administrati-vo ajuda, por sua vez, a perceber dois fenôme-nos: o fechamento da estamento burocrático, no

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seio do qual se dilui a própria elite política e noqual são absorvidas, igualmente, as elites clericale militar (Almeida, 1995); e a consolidação daqui-lo a que Joaquín Costa chamou há cem anos, pen-sando na Espanha, de “oligarquia e caciquismo”.Com efeito, a ausência de relações políticas hori-zontais que caracteriza o familismo amoral pró-prio de largas camadas das classes subordinadasaponta, necessariamente, para a procura, em es-pecial por parte das famílias camponesas, de re-lações verticais de intermediação e proteção paratodos os aspectos que ultrapassam o domínio ex-clusivo do grupo doméstico e da economia fami-liar – desde o imposto, o voto e o serviço militar,até a obtenção de empregos assalariados, passan-do por todas as ocasiões da vida em que não épossível evitar o contato com a administração.

Tais relações verticais configuram, pois, oclientelismo como recurso assimétrico procuradopor essas famílias junto dos “donos do poder” lo-cal e/ou nacional, trocando por exemplo voto porproteção pessoal, o que ajuda a explicar, por seuturno, a volatilidade de certos eleitorados emmuitas democracias aparentemente consolidadas,como Banfield observou no sul da Itália em finaisda década de 1950, sempre que há alternância nopoder entre segmentos da oligarquia (Banfield1976, pp. 48-56). Em Portugal, há tantos exemplosquantos se quiser para documentar esse tipo depseudo-volatilidade eleitoral desde a implantaçãodo liberalismo até hoje. Um dos primeiros a do-cumentá-lo foi Léon Poinsard (1910), sociólogoda escola de Le Play que tanto influenciou Olivei-ra Vianna, chamado a Portugal pelos conselheirosdo último rei, Manuel II, pouco tempo antes daproclamação da República.

Tudo isso nos leva a revisitar esse “familis-mo” e a sua pretensa “amoralidade”. No meu en-tendimento, esta última nada mais é, de resto, doque a expressão prática da necessidade em que seencontram os grupos domésticos mais desmuni-dos de recursos materiais, sociais e cognitivos deapelar a todos os meios ao seu alcance – lícitos oumenos lícitos perante a moralidade demo-liberalcontemporânea – a fim de se adaptarem e resisti-rem, como unidades de produção e reproduçãoque se vêem livres e autónomas (Cabral, 1998,

1995), a um meio hostil cuja face mais repressivaé, precisamente, o despotismo administrativo.

A própria “desconfiança” atribuída a essascamadas sociais – e, de fato, captada por todos osinquéritos de opinião feitos no Portugal de hoje –tem a sua contraparte no Estado, que é o primei-ro a “desconfiar” delas, como ocorre no exemplocaricatural, comum a Portugal e ao Brasil, da“prova de vida” que os cidadãos são freqüente-mente obrigados a fazer, a fim de se beneficiaremde direitos que lhes são fornecidos como “favo-res” (Reis, 1998, p. 247). A idéia que sustento éque o formalismo, a rigidez e a própria morosida-de dos procedimentos administrativos não são,como os discursos oficiais querem fazer crer, me-ras ineficiências susceptíveis de desejáveis corre-ções; pelo contrário, do ponto de vista político,são instrumentos funcionais, se não deliberados,de poder, do poder.

Referindo-se ao Brasil de meados do séculoXIX, Maria Sylvia de Carvalho Franco caracterizaas relações entre autoridade oficial e influênciapessoal no município paulista de Guaratinguetáde modo que poderia ser extrapolado tal qualpara o Portugal da época e até muito mais tarde.Segundo ela, a diferenciação entre função oficiale vida privada “permitiu a extensão do poderoriundo do cargo público para a dominação comfins estritamente particulares […] com toda a sor-te de favoritismos à parentela e às amizades”,transformando “a autoridade inerente ao cargousada directamente em proveito próprio” (Franco,1969, p. 133). Correlativamente, a “incapacidadepara identificar interesses comuns e organizar-seinstitucionalmente em sua defesa” é também re-gistada pela autora entre as camadas sociais inter-médias do município, acrescentando que elasviam os seus “negócios públicos e privados atra-vés de um prisma ao mesmo tempo de solidão edependência” (Franco, 1969, p. 148).

Com efeito, no que diz respeito às relaçõescom o despotismo administrativo do Estado, aconstelação de atitudes e comportamentos quevenho designando por familismo amoral não sónão se restringe às camadas mais desmunidas,como possui uma homologia com equivalente in-solidarismo das elites, como aquele que Oliveira

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Vianna atribuiu tanto aos donos quanto aos agre-gados dos latifúndios. Obviamente, a abissal dife-rença de recursos entre os primeiros e os segun-dos faz com que modos equivalentes de lidar coma potência estatal determinem resultados quenada têm de semelhante, aqui terminando a suaequivalência funcional.

Em contrapartida, as comparações que te-nho feito entre Brasil e Portugal, por superficiaisque sejam, levam-me a insistir no fato de que, aocontrário do que acreditava Oliveira Vianna emuitos outros autores brasileiros, o insolidarismoentre pares e em relação ao exterior não tem liga-ção necessária com a propriedade latifundiária, jáque na Europa meridional ele seria tipicamenteum atributo do minifúndio. Em outras palavras, ofenômeno – insolidarismo ou familismo, como selhe queira chamar – deve ser entendido, sobretu-do, como uma forma de relacionamento entre asfamílias e, sobretudo, entre elas e o exterior, emespecial o Estado.

Em todo o caso, o círculo do despotismoburocrático e do familismo amoral fecha-se sobresi próprio, numa prática inexorável, quando asoligarquias partidárias preenchem os quadros daadministração pública com seus clientes, muitasvezes filhos ou netos de camponeses pobres, en-tretanto alfabetizados e em busca de emprego se-guro. Nada é mais fácil de documentar ao longoda história da construção do Estado contemporâ-neo em Portugal.22 O clientelismo une, pois, odespotismo administrativo e o familismo amoralnuma só relação reproduzida pelos partidos polí-ticos modernos (Lopes e Freire, 2002).

Como entender o familismo amoral?

A concluir, pretendo resumir em quatropontos aquilo que convém entender por familis-mo amoral, a fim de evitar as conotações pejo-rativas que a expressão pode hoje revestir, ao serisolada do debate provocado, em especial na Itá-lia, quando do aparecimento do livro de Ban-field há aproximadamente quarenta anos. Deresto, o debate não teve lugar apenas na Itália eprosseguiu durante bastante tempo depois da

publicação do livro de Banfield, o que mostra asua relevância para além das circunstâncias con-ceituais e temporais.23

Em primeiro lugar, o familismo amoral é aquirecuperado tão–somente como forma de identifi-car, no contexto de grupos domésticos rurais de es-cassos recursos socioculturais e economia quasi-autárcica orientada à maximização do rendimentofamiliar indiviso (A. V. Chayanov, 1966), esse con-junto de representações e práticas que favorece, noseu relacionamento externo, notadamente com oEstado e o mercado do trabalho, o estabelecimen-to de relações verticais assimétricas (dependênciaclientelar) em detrimento de relações horizontaisorganizadas e estáveis, como são a participação cí-vica, o associativismo e a mobilização coletiva, emsuma, os dispositivos convencionais do exercíciodos direitos de cidadania política.

Para dar apenas um exemplo, se é certoque, como escreve Elisa Reis a propósito dascartas enviadas pelos cidadãos brasileiros aoPrograma de Desburocratização, “a correspon-dência é em si mesma uma atividade política”(Reis, 1999, p. 258), que projeta o correspon-dente num universo de relações públicas forma-lizadas, então é lícito tomar a baixíssima pro-pensão dos portugueses para escrever esse tipode cartas,24 não só como um sintoma do insufi-ciente manejo da palavra escrita e do receio dedeixar registo do seu dissenso, como também daposição de “distância ao poder” em que se en-contra, perante o despotismo administrativo,grande parte de uma população socializada noâmbito do familismo amoral.

Em segundo lugar, o familismo não designaaqui nem um arcaísmo nem, muito menos, umapatologia psicosocial. De resto, o próprio Ban-field teve o cuidado de demarcar essas idéias en-tão muito propagadas – estávamos na Itália me-ridional dos anos de 1950 – até entre grandesmeridionalistas italianos como Carlo Levi, autordo célebre Cristo si è fermato a Eboli (1947). Narealidade, Banfield adota, numa linguagem di-versa da que usaríamos hoje, uma abordagem vi-zinha da “escolha racional”, antecipando notada-mente a teoria da ação coletiva, como assinalaChazel (1986). Escreve Banfield:

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A teoria segundo a qual um fatalismo desconso-lado impediria o meridional de agir não explica,obviamente, as escolhas que ele faz quando defato age. Nem explica, tampouco, por que razão,quando uma ação individual se apresenta comonecessária, nem o desespero nem o fatalismo oimpedem de levar a cabo […]. Parece-nos possí-vel afirmar que o pessimismo do meridionalemerge quando se trata de iniciativas de base co-letiva, mas não de ações individuais (Banfield,1976, pp. 57 passim, maxime p. 63).

No decurso da acesa discussão que o livrodesencadeou na Itália, Banfield recebeu inúmeroscomentários, entre os quais se destacam os deAlessandro Pizzorno. Embora recusando a tenta-ção de Banfield para colocar o ethos familistacomo a “variável independente” de todo aquelesistema social, a contribuição de Pizzorno tem avantagem não só de reconhecer a realidade do fe-nômeno da escassa propensão daqueles campo-neses pobres para ação coletiva, como sobretudode o articular com o papel do despotismo adminis-trativo como forma de dominação política ineren-temente dissuasora das modalidades demo-liberaisde mobilização cívica e política (Pizzorno, 1976,pp. 240-241). Por seu turno, a apatia política docampesinato português do Norte e Centro do país– desde a revolta da Maria da Fonte (1846) até aoVerão Quente de 1975, quando se revoltou contrao novo poder instituído em Lisboa – é reconheci-da por todos os autores, sem prejuízo de fortesprotestos ocasionais como os registados, durante aSegunda Guerra Mundial, contra a falta de subsis-tências e a carestia da vida (Cabral, 1999a).

Em terceiro lugar, o familismo amoral estálonge de ser, no entendimento aqui feito, umapura negatividade. Conforme o próprio Banfieldreconhece, bem como Pizzorno, o alegado “amo-ralismo” do grupo doméstico acaba, de algummodo, por funcionar como um recurso estratégi-co, de que o clientelismo faz parte integrante nãosó no plano da proteção pessoal e familiar, comotambém no plano das relações com o sistema po-lítico. É excelente, aliás, a análise que Banfield fazdas negociações entre os membros dos gruposdomésticos, como eleitores, e a oferta partidárianos níveis local e nacional. Não deixa de ser sig-nificativo, também, que Pizzorno inclua o cliente-

lismo – e a própria Máfia! – entre as formas de“solidariedade intermédia” ao dispor do grupodoméstico perante “a ordem imposta pelo Estadoe a Igreja” (Pizzorno, 1976, p. 248). O mesmo sepoderia dizer, mutatis mutandis, dos “clãs paren-tais e eleitorais” no Brasil, segundo Oliveira Vian-na, e, mais perto de nós, segundo uma análisedos anos de 1960 sobre os “coronéis”.25

O caráter positivo que o familismo adquirena manipulação personalizada da proteção clien-telar e do próprio sistema político-partidário, pormais distorcidos que sejam muitos dos seus efei-tos agregados, é mais evidente ainda no planoeconômico, de acordo, aliás, com a teoria da eco-nomia camponesa de Tchayanov e Tepicht, quan-do se trata de explorações agrícolas familiarescuja orientação autárcica se explica pelo fato de aprópria economia regional e/ou nacional estarmuito pouco inserida nos mercados mundiais.Dito isto, Banfield não deixou de notar que ocontrole da natalidade e o investimento na esco-larização dos filhos surgiam já, tipicamente, comoa principal estratégia econômica – racional masindividual, no sentido não-liberal da família comoindivíduo – com vistas ao “avanço na sociedade”(Banfield, 1976, p. 63). Todos esses traços estãoabundantemente presentes nos estudos socioeco-nômicos sobre o campesinato pobre do Norte eCentro de Portugal, desde o clássico de BasílioTelles, A carestia da vida nos campos, no iníciodo século XX.

Em quarto e último lugar, o familismo amo-ral não deverá ser concebido, como tende aacontecer tanto com Banfield quanto na utilizaçãoque Elisa Reis fez desta noção, como pertencen-do exclusivamente à ordem da escassez absolutade recursos econômicos, mas também à da priva-ção relativa de recursos simbólicos, muito em es-pecial a privação dos códigos de leitura e escritaque dão acesso aos arcanos do poder perante asformas sucessivas do despotismo administrativodo Estado. Com efeito, o familismo não é incom-patível com estratégias bem-sucedidas de melho-ria individual das condições econômicas dos gru-pos domésticos rurais (ou de origem rural, sendoaliás a emigração um dos recursos mais utilizadosnessas estratégias).

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Desde o meu primeiro inquérito sobre as ati-tudes da população portuguesa ante o crescimen-to econômico, em 1991, aquilo que saltou à vistanão foi tanto a privação econômica, nem o senti-mento de falta de recompensas materiais para osesforços individuais de melhoria, mas, sobretudo,a profunda estratificação dos recursos simbólicos,desde a instrução à ação coletiva até a influênciapolítica. Os recursos distribuídos de forma maisdesigual na sociedade portuguesa contemporâneanão são os bens econômicos, mas sim o poder so-cial e político (Cabral, 1997, pp. 43-78).

Assim, pode-se concluir que o incrementoda eqüidade das oportunidades e recompensaseconômicas não se traduz, automaticamente, numacesso mais equitativo ao poder simbólico, conti-nuando muitos dos efeitos políticos do chamadofamilismo amoral a fazerem-se sentir para alémdas condições de escassez material que estiveramna sua origem. Inversamente, o sistema político-partidário pode conhecer, como aconteceu emPortugal a partir de 1974, uma liberalização genuí-na, sem que as elites sociais tenham perdido ovirtual monopólio da representação, o que era dealgum modo previsível, mas nem sequer tenhamperdido o controle da participação e da ação co-letiva, preservando assim a sua forma histórica dedominação autoritária e excludente.

Conclusão

Não pretendo de forma alguma ter esgotado,neste ensaio exploratório, a problemática paraque remete o sentimento de “distância ao poder”de que a maioria da atual população portuguesaestá indiferenciadamente possuída. Porém, parecelícito ver nesse distanciamento o resultado deuma cadeia de efeitos compostos, cuja matrizpode ser reconduzida, por seu turno, a esse con-junto de representações, atitudes e comportamen-tos perante o mundo da política configuradospela antiga noção – aqui recuperada e parcial-mente reconstruída – do familismo amoral.

Mais importante do que o valor intrínseco dequalquer das duas expressões, distância ao podere familismo amoral, é a identificação de dois

grandes nexos históricos de longa duração, quese constituíram como elos mediadores entre aque-les dois fenômenos. Com efeito, entre outros fato-res por identificar, vale apontar, para o analfabe-tismo como forma de controle social e para odespotismo administrativo do Estado portuguêsmoderno (e possivelmente do Estado brasileiro)como dois nexos estruturantes das relações entreas elites de poder e as classes subordinadas.

Articuladas entre si, essas duas formas derelacionamento comunicacional e político entreelites e massas terão assim gerado uma forma du-radoura de dominação autoritária, que nem a li-beralização do sistema político, nem a massifica-ção do ensino, terão sido suficientes, no últimoquarto de século, para erradicar das representa-ções e práticas políticas da maioria da populaçãoportuguesa um sentimento profundo e indiferen-ciado de distância ao poder.

NOTAS

1 Os direitos humanos e civis são aqui concebidos,sem prejuízo de uma análise mais profunda, comodireitos conferidos à pessoa como tal. Assim, quan-do se estabelece que ninguém será legalmente dis-criminado em função da cor da pele, do gênero oude qualquer outro atributo pessoal ou coletivo, tra-ta-se de um direito negativo, no sentido de que nãose reconhece à pessoa direitos particulares, mastão-somente o usufruto de todos os direitos confe-ridos às outras pessoas.

2 Tal como assinalam os críticos da cidadania con-temporânea, os direitos políticos – ao contrário tam-bém do que sucede com os direitos civis e sociais– estão habitualmente associados à nacionalidadeda pessoa, deles excluindo, portanto, os imigrantes(Turner, 1993). Trata-se, sem dúvida, de uma discri-minação contestável em nome da continuidade dosdireitos humanos e, por isso mesmo, tende a verifi-car-se a extensão de alguns direitos políticos, numnúmero crescente de Estados democráticos, aos re-sidentes de nacionalidade estrangeira.

3 Embora não seja essa a intenção dos legisladores,há algo de paradoxal na obrigatoriedade do direitode voto que confere a este último uma dimensãopassiva que não é suposto ter; a demonstração éfeita ao contrario pelos movimentos de boicote àseleições, freqüentes em Portugal. Para o Brasil, é re-

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levante o fato de muitos brasileiros mencionaremem pesquisas “o voto como uma obrigatoriedade enão como um direito” (J. M. Carvalho, 2002, p. 26).

4 Para uma revisão aprofundada do debate sobre o“déficit democrático no Brasil”, ver M. A. R. Carva-lho, 2002.

5 Tendo em conta que nem sempre a pergunta foiformulada de forma idêntica, o grau de desidentifi-cação partidária em Portugal (46%) situava-se, em1997, em nível semelhante ao da Suécia (44%), sen-do inferior ao de um regime pós-comunista como aHungria (59%), mas bastante superior ao de um re-gime democrático consolidado, embora há muitoconturbado, como a Alemanha (29%).

6 As organizações consideradas relevantes são as se-guintes, por ordem daquelas que recolheram maiornúmero de participantes: coletividades de índole re-creativa, cultural, ambiental ou de solidariedade so-cial (16%); sindicatos (11%); associações profissio-nais e econômicas (7%), e partidos políticos (4%).Finalmente, dos 32% de inquiridos que declararampertencer a um tipo qualquer de associação rele-vante, 18% desempenham ou desempenharam fun-ções dirigentes nessas associações, o que corres-ponde a 6% do eleitorado português.

7 Excluímos a participação eleitoral, bem como o po-sicionamento topológico perante a escala Esquer-da-Direita, visto nenhum desses indicadores apre-sentar variações significativas entre si nem com apropensão dos cidadãos para a ação coletiva oupara a automobilização em defesa dos seus interes-ses e valores. Com efeito, não só a participaçãoeleitoral e o posicionamento ideológico não intro-duziriam estatisticamente diferenças significativasna distribuição dos inquiridos perante o exercícioda cidadania, como elas parecem constituir, na rea-lidade, reações relativamente indiferenciadas àoferta prevalecente no mercado político. Excluímostambém da medida da cidadania a identificaçãopartidária, a fim de afastar da presente discussão aproblemática da adequação da atual oferta à pro-cura latente de bens políticos. Seja como for, a fra-ca correlação que a identificação partidária possuicom o exercício da cidadania tal como optamospor calculá-lo é recuperada através da mediaçãodos índices de participação e de mobilização.

8 A associação negativa entre o sexo feminino a par-ticipação cívica em geral não é exclusiva de socie-dades como a portuguesa; com efeito, estudos mui-to recentes mostraram que o mesmo acontece nosEstados Unidos (Burns, Schlozman e Verba, 2001).

9 A adaptação consistiu em substituir a expressãomanagement, utilizada pelo autor, por governantes,

emprestando assim um cunho político ao conceitogenérico de poder. O cálculo do índice, formado apartir de três indicadores (ver a seguir), seguiu tam-bém o método adotado pelo autor, de modo a per-mitir a comparação temporal entre as populaçõesinquiridas.

10 Cf. Hofstede, 1968, pp. 65-109, sobretudo Figura3.1, p. 77, mostrando que os empregados portugue-ses da empresa em questão se encontravam em1968 na 25ª. posição da tabela de distância ao po-der, com 63 pontos para uma média de 51 nos qua-renta países então estudados, enquanto hoje em diao conjunto da população somava 86 pontos numaescala de distanciamento crescente.

11 Faoro, 1998, por exemplo pp. 164-165 do volume 1,a concluir o capítulo sobre “A obra de centralizaçãocolonial”: “Nenhuma comunicação, nenhum contac-to, nenhuma onda vitalizadora flui entre o governoe as populações: a ordem se traduz na obediênciapassiva ou no silêncio. Não admira que, duzentosanos depois, as liberdades públicas só existam paradivertimento de letrados”.

12 Por exemplo, Lucena (1981) em crítica a Wiarda,mas também eu próprio em vários ensaios publica-dos e inéditos sobre o fascismo português em pers-pectiva comparada (Cabral, 1982).

13 Sobre as classes sociais em Portugal, cf. entre mui-tas outras contribuições, Martins (1998); Estanque eMendes (1997); Cabral (1998; 1999a e b). Especifi-camente sobre o campesinato nortenho, cf. Silva(1998), que é o único a aludir explicitamente aotrabalho de Banfield. A antropologia social dos es-paços rurais portugueses, apesar de haver crescidobastante nos últimas décadas, nunca analisou nemdiscutiu a noção de familismo amoral, ao contráriodo que sucedeu em vários outros “terrenos medi-terrânicos”.

14 Dois-terços dos inquiridos pensam que “os portu-gueses têm medo de mostrar que discordam das de-cisões dos governantes” (27% pensam que isso ocor-re “muito freqüentemente” e 40%, “algumas vezes”).

15 R. Bendix refere-se, no seu livro clássico sobre a ci-dadania, a existência de “voto plural” na Inglaterraem favor dos universitários, privilégio que o autorclassifica surpreendentemente como “inócuo”, etambém na Bélgica até final do século XIX (Bendix,1996, p. 133).

16 Um estudioso das relações entre alfabetização e po-der local assinala que, na década de 1880, a dife-renciação feita no sistema eleitoral português entreeleitores e elegíveis, coincidindo estes últimos comos alfabetizados, era praticamente única nos países

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europeus da época (Gameiro, 1997, p. 136); vertambém Almeida, 1991.

17 Salvo melhor informação, a primeira tradução com-pleta da Bíblia impressa em português foi obra deum convertido ao protestantismo, João Ferreira deAlmeida, e data de finais do século XVII (Novo Tes-tamento, 1681) e meados do século XVIII (AntigoTestamento, 1738-1744); mas na realidade, a primei-ra Bíblia católica em português deve-se ao Pe. An-tónio Pereira de Figueiredo e só foi impressa em fi-nais do séc. XVIII (Novo Testamento, 1778-1781;Antigo Testamento, 1783-1790)!

18 Vale a pena ilustrar esse aspecto do controle sobrea circulação dos livros religiosos com o caso das Bí-blias protestantes em castelhano, impressas na In-glaterra a fim de serem exportadas para a Penínsu-la Ibérica, que foram apreendidas em Lisboa pelaInquisição entre 1606 e 1611 (Marquilhas, 1996, pp.177-185). No que diz respeito à produção de livros,vale ainda recordar que, para além da censura re-gularmente exercida sobre editores e livreiros, asautoridades religiosas promoviam, ocasionalmente,o exame das bibliotecas particulares (idem, pp. 184passim), como sucedeu concretamente no bispadode Lamego em 1621 (idem., pp. 192 passim). Essespormenores são reveladores do carácter sistemáticoe metódico de como o controle sobre a produção ea circulação da palavra impressa era feito em Portu-gal no Antigo Regime.

19 No que diz respeito a esse problema metodológicodos estudos históricos sobre a alfabetização, é líci-to perguntar se essas assinaturas em documentosadministrativos permitem ter a certeza de que aspessoas sabiam efetivamente ler e, além disso, serealmente liam e o quê? Como crítica à posição ha-bitualmente tomada pelos investigadores nestaárea, pode citar-se contra a autora da excelente Fa-culdade das Letras o seu próprio exemplo encon-trado nos róis das bibliotecas particulares do bispa-do de Lamego examinadas pela Inquisição deCoimbra em 1621: “Diguo eu Domingos Fernandes[...] que pedi ao Padre Domingos Hemriques queme assentasse estas cartilhas por eu não saber es-crever onde me eu asiney” (Marquilhas, p. 203).

20 Segundo Rita Marquilhas (1996, p. 127), essa fixa-ção só se verificou em 1911 após a implantação daRepública; a opinião é corroborada por J. P. Maga-lhães (1994, p. 519), segundo o qual a “ausência depolítica na normalização ortográfica da Língua […]uma certa arbitrariedade da escrita e alguma ausên-cia de tradição escrevente favoreceram […] o refor-ço da oralidade”.

21 Ver, por exemplo, J. P. Magalhães (1994, p. 520) so-bre a ausência de dialetos em Portugal: “A ausênciade dialectos fortemente arreigados e o seu não reco-nhecimento [grifo meu] favoreceram a inércia porparte das autoridades, que se traduz no não fomen-to de uma instrução efetiva e de uma escolarizaçãopor parte das populações, sobretudo rurais”.

22 Desde as dúzias de panfletos individuais solicitandoempregos ou a reparação de danos por perda deemprego após a conquista do poder pelos liberais,em 1834, até as sucessivas camadas de funcionáriospúblicos recrutados pelos governos democráticosapós o 25 de abril, passando pela sempiterna con-trovérsia acerca da isenção dos chamados concur-sos públicos abundantemente documentada na tesede Tavares de Almeida sobre as elites liberais na se-gunda metade do século XIX (Almeida, 1995). Paraas formas recentes do clientelismo político-partidá-rio, cf. F. Farelo Lopes (1997), na linha de Luis Ro-niger (em J. Alexander, 1988).

23 Ver, por exemplo, vários dos ensaios publicados nacoletânea de P. Birnbaum e J. Leca (1986), maximeF. Chazel, “Individualisme, mobilisation et actioncollective”.

24 Apenas 3% revelaram, no nosso inquérito de 1997,tê-lo feito alguma vez!

25 Na Introdução, Cavalcanti de Albuquerque assinalaa passagem do “voto de cabresto” ao “voto merca-doria”: “A repetição do processo eleitoral […] vaisujeitar o patriarcalismo político do coronel […] aprogressivas modificações […]. O voto que o matu-to confiava ao coronel como se fosse um bem danatureza, uma planta do mato sem valor, começa aeletrizar-se com o atrito de sucessivas lides políticas[…]. O voto começa a ser favor; de favor se tornaobjeto de negócios […]. Se o voto do coronel eraantes como o seu gado […] agora também é merca-doria que lhe é vendida em troca de favores, rou-pa, sapatos, empregos […]” (Albuquerque e Vilaça,1978, pp. 39-40).

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Anexo Estatístico

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Quadro 2Formas Moderadas e Radicais de MobilizaçãoAnálise Fatorial em Componentes Principais

Factor 1 Factor 2

Mandar uma carta ,82 ,18Contactar um político ,79 ,11Assinar uma petição ,72 ,36Organizar uma reunião ,71 ,31

Bloquear uma estrada ,01 ,80Manifestar na rua ,31 ,78Fazer greve ,34 ,66Colar cartazes ,37 ,64

Variância explicada 49,3 13,4

Alpha de Cronbach ,81 ,76

N 1.617 1.615

Quadro 3Índice de Cidadania Política

Análise Fatorial em Componentes Principais

Factor 1 Factor 2 Factor 3

Instrução ,76 ,24 ,03Classe social ,73 ,02 ,01Rendimento -,57 ,13 ,00Habitat* ,52 -,03, 12

Gênero -,29 ,67 -,08Cidadania ,34 ,62 ,10Mobilização cognitiva ,22 ,55 ,14Exposição aos media informativos ,39 ,48 ,21

Identificação partidária ,14 ,33 ,66Avaliação do sistema político ,06 -,36 ,64Posicionamento ideológico ,15 ,34 ,52

Variância explicada 24,2 13,1 9,6

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Quadro 4Índice de Cidadania em Função da Classe Social, da Mobilização Cognitiva, da Instrução, do

Gênero, da Exposição aos Media e do Posicionamento IdeológicoAnálise de regressão linear múltipla

Beta p<

Classe social* ,21 ,000Mobilização cognitiva ,17 ,000Instrução ,15 ,000Gênero ,15 ,000Exposição aos media ,14 ,000Posicionamento ideológico ,06 ,049

R2 ajustado ,27

* Variável dummy

Quadro 5Índice de Avaliação do Sistema Político

Análise Fatorial em Componentes Principais

Factor 1 Factor 2 Factor 3

Compreensão da política ,75 -,05 -,08Mobilização política ,70 -0,4 ,06Percepção de influência política ,59 ,10 ,04Participação associada ,56 ,02 -,01

Avaliação dos governantes ,01 ,85 -,01Avaliação dos partidos ,02 ,83 -,09

Avaliação dos funcionários -,01 ,00 ,81Avaliação dos tribunais ,03 -,09 ,78

Variância explicada 21,5 19,5 14,9

Alpha de Cronbach ,60 ,59 ,44

N 1.574 1.473 1.463

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O EXERCÍCIO DA CIDADANIAPOLÍTICA EM PERSPECTIVAHISTÓRICA (PORTUGAL EBRASIL)

Manuel Villaverde Cabral

Palavras-chaveCidadania; Estado; Sociedade civil;Familismo amoral.

A exposição deste artigo divide-seem duas partes bem distintas. Naprimeira, após discussão das noçõesde cidadania e qualidade da demo-cracia, são apresentados os resulta-dos de um survey sobre o exercícioda cidadania política em Portugal.Todas as medidas convencionais in-dicam um débil exercício dos direi-tos políticos pela população dessepaís. Os correlatos sociológicos doexercício da cidadania são relativa-mente previsíveis, confirmando atendência para a concentração dosinstrumentos da participação e darepresentação política pelas cama-das com instrução e capital socialmais elevados. Em contrapartida, oforte distanciamento sentido em re-lação ao poder político atravessa apopulação de forma indiferenciada.A segunda parte é uma pesquisa his-tórica de fatores que ajudam a expli-car, a partir da constituição real dasociedade civil, a atual distância aopoder. No decurso da pesquisa, sãodiscutidos vários autores que se de-tiveram sobre a questão da cidada-nia no Brasil. Dois elementos sãoidentificados na cadeia de efeitosque gerou os déficits de cidadaniaatualmente verificados: a falta deinstrução das massas e o despotismoadministrativo do Estado. Comoconclusão, a explicação da distânciaao poder entra também em contacom estratégias populares, cuja ne-gatividade à luz do conceito liberalde cidadania pode esconder dimen-sões positivas de resistência e adap-tação, como sucede com configura-ções sociais como o chamado“familismo amoral”.

THE EXERCISE OF POLITICALCITIZENSHIP FROM A HISTO-RICAL PERSPECTIVE (PORTU-GAL AND BRAZIL)

Manuel Villaverde Cabral

KeywordsCitizenship; State; Civil-society;Amoral-familism.

The paper is divided in two clearlydistinct parts. In the first one, afterdiscussing the notions of citizenshipand quality of democracy, the re-sults of a survey showing a weakpropensity of the Portuguese popu-lation to exercise its citizenshiprights are presented. The sociologi-cal correlates are predictable andthey tend to confirm the tendency ofstrata with more education and so-cial capital to concentrate in theirhands the instruments of politicalparticipation and representation. Onthe contrary, the distance felt by themajority of the population towardspolitical power does not depend onits social properties. In the secondpart, the results of a historical re-search accounting for such ‘powerdistance’ from the standpoint of ‘realcivil societies’ are presented. In thecourse of the presentation, the re-search will be expanded to Brazilwith the help of several authors whohave discussed the issue of citizens-hip there. Two main elements areidentified in the chain of effects ac-counting for deficits in the exerciseof rights: mass illiteracy and the ‘ad-ministrative despotism’ of the State.To conclude, popular strategies ofresistance and adaptation to moder-nization, however negative in thelight of the liberal notion of citizens-hip, such as the so-called ‘amoral fa-milism’, are called upon in order tomore fully account for the distancetowards political power felt in Por-tugal and perhaps Brazil.

L’EXERCICE DE LA CITOYEN-NETÉ POLITIQUE D’APRÈSUNE PERSPECTIVE HISTORI-QUE (PORTUGAL ET BRÉSIL)

Manuel Villaverde Cabral

Mots-clésCitoyeneté; État; Société civile; Fa-milisme amoral.

Cet article est divisé en deux partiesdistinctes. Dans une première partie,après la discussion de notions de ci-toyenneté et de qualité de la démo-cratie, nous présentons les résultatsd’une enquête qui indique un exer-cice débile de la citoyenneté politi-que au Portugal. Les corrélats socio-logiques de l’exercice de lacitoyenneté sont prévisibles et con-firment la tendance des couches so-ciales possédant une instruction etun capital social plus élevés pour laconcentrer dans les mains des ins-truments de participation et de re-présentation politiques. En contre-partie, l’importante distance perçuepar rapport au pouvoir politique tra-verse la population de forme indif-férenciée. La seconde partie est unerecherche historique de facteurs quiaident à expliquer, à partir de laconstitution réelle de la société civi-le, celle de la «distance du pouvoir ».Tout au long de notre article, la re-cherche sera élargie au Brésil grâceà l’aide de plusieurs auteurs qui sesont penchés sur la question de lacitoyenneté dans ce pays. Deux élé-ments sont identifiés dans la chaîned’effets qui aura géré les déficits decitoyenneté que l’on vérifie actuelle-ment: l’illettrisme des masses et ledespotisme administratif de l’État.En conclusion, l’explication de ladistance par rapport au pouvoir en-tre également en compte avec desstratégies populaires, dont la néga-tion à la lumière du concept libéralde citoyenneté peut cacher des di-mensions positives de résistance etd’adaptation, comme il se passeavec le « familisme amoral »..

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 189