o fluir-ricorso e os tempos de finnegans wake...o fluir-ricorso e os tempos de finnegans wake....
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Universidade de Brasiacutelia
Departamento de Teoria Literaacuteria e Literaturas
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Literatura
Luiacutesa Leite S de Freitas
O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE
FINNEGANS WAKE
Brasiacutelia ndash DF
2014
Universidade de Brasiacutelia
Departamento de Teoria Literaacuteria e Literaturas
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Literatura
Luiacutesa Leite S de Freitas
O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE
FINNEGANS WAKE
Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em
Literatura do Departamento de Teoria Literaacuteria e
Literaturas da Universidade de Brasiacutelia como parte
dos requisitos para obtenccedilatildeo do grau de Mestre
elaborada sob orientaccedilatildeo do Professor Dr Piero Luis
Zanetti Eyben
Brasiacutelia ndash DF
2014
LUIacuteSA LEITE S DE FREITAS
O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE
Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em Literatura do Departamento de Teoria
Literaacuteria e Literaturas da Universidade de Brasiacutelia aprovada pela banca examinadora
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2014
____________________________________________________________________
Dr Piero Luis Zanetti Eyben
Universidade de Brasiacutelia mdash Presidente
____________________________________________________________________
Dr Caetano Waldrigues Galindo
Universidade Federal do Paranaacute mdash Membro Externo
____________________________________________________________________
Dr Henryk Siewierski
Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno
____________________________________________________________________
Dra Cristina Maria Teixeira Stevens
Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno ndash Suplente
aos meus pais
AGRADECIMENTOS
Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria
ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada
First we feel Then we fall
(FW 62711)
Now follow we out by Starloe
(FW 38230)
Resumo
FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p
Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto
como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce
(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial
a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo
Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das
investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu
paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva
compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone
da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de
Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do
proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho
eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos
as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como
abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o
tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de
James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem
como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente
dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur
Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia
Abstract
FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation
Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p
This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well
as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish
author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes
through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The
ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is
reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the
investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova
(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic
vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones
in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake
ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself
its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel
Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the
possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support
of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is
also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for
James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the
investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history
of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin
Heidegger and Paul Ricoeur
Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11
CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30
1 Algo parecido com nada 31
2 Sui generis38
3 Fluidez vida-morte46
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51
CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64
CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82
CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138
BIBLIOGRAFIA145
INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS
Hightime is ups be it down into outs according
Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1
(FW 23916)
1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim
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Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto
Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo
de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de
repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees
de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos
depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-
lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de
janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de
Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de
tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as
quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas
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O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por
algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo
de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que
Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua
produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem
natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que
leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no
primeiro contato com o Wake)
Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro
de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de
dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca
de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso
passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar
melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e
ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor
Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo
de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das
figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns
elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus
mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados
por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha
de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs
que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao
ocorrido
Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett
apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles
que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de
sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria
editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The
New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou
ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido
Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito
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concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903
e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o
iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The
Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados
Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo
teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que
comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do
irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante
de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto
Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da
Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de
Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de
Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a
primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da
coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929
Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress
Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas
das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first
that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure
the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos
1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e
simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les
amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila
pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se
somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter
se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que
ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach
se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do
totalitarismo nazista
2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo
15
In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3
Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene
Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em
Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles
em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu
tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de
James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e
artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa
especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene
Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo
norte-americano Richard Ellmann
Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)
Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra
de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que
seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na
proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria
sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva
Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris
3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos
16
contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos
depois de sua fundaccedilatildeo em 1968
Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de
James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915
que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da
rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-
Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-
americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por
um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost
em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria
especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de
famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que
abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta
parceria
Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que
tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A
moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce
contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a
publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook
(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde
1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito
por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo
quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais
durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work
in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio
depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na
Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan
Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma
acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o
proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por
acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido
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publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros
convites anteriores mas acabou cedendo
Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto
posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute
alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem
negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake
pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da
ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver
que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim
de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava
escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar
pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas
escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente
emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p
728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da
morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash
que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda
da Irlanda
Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais
aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos
finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito
do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe
restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou
a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou
a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure
for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5
(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma
tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound
se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito
5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)
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elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras
ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a
good poet and without exception the best of the younger prose writers His style
has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of
erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather
overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)
A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a
obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra
coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in
progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work
in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava
nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por
Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que
publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4
de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett
Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot
Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e
William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo
contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de
negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos
extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram
criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby
e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon
ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs
Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e
Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio
Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada
6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)
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O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na
publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce
Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil
para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando
numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo
ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero
Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e
Eugene Jolas
Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se
conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se
estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade
Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake
especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos
imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal
o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro
de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos
certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo
mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali
nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans
wake esperando uma leitura tradicional
You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8
8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo
20
O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a
linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao
remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez
de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do
acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente
ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais
coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo
sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de
palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a
ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem
em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa
argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que
Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do
estudioso Seamus Deane
Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9
Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades
estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios
que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O
leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de
sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se
prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense
ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes
disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em
si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto
9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo
21
virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada
termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem
ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma
uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo
textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras
por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo
Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-
lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se
Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e
relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees
oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se
propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to
Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em
1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica
A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall
tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura
do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes
Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela
proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de
Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to
the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to
Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais
amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)
William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e
facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final
de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que
seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas
sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma
maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority
on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969
22
pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre
Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas
William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de
joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa
mesma introduccedilatildeo
Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11
De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans
wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel
Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das
comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre
perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses
ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p
617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake
que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a
caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o
inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da
seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do
que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou
adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar
de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza
10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo
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Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em
Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as
direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer
esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash
Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em
Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem
fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake
e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo
que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma
primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)
Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo
foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e
premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)
teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual
a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas
as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que
compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da
tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um
dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei
descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de
impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as
12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)
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publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por
ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt
entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se
propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall
publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo
para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo
(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao
Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade
um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se
entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas
que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o
momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em
prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das
fronteiras
No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de
grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes
leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e
Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo
foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo
dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os
irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente
natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar
a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como
especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do
Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o
que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute
nos anos 1960
13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som
25
Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)
traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs
alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego
contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os
poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que
traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente
dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos
A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe
consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de
leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou
essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao
seu trabalho de traduccedilatildeo
Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo
de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees
e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi
executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu
Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo
do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em
suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele
acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo
semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos
elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de
James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos
(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante
e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas
a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita
por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as
Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o
livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick
do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia
Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil
26
Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans
wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre
as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como
pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo
natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos
maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A
intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as
dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por
contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e
contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria
um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons
Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados
sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute
velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e
ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se
acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal
e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto
impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra
como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda
os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos
literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel
e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico
e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa
Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e
agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto
desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais
destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre
literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura
do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem
que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash
um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto
Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos
27
para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a
percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser
selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados
Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra
um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que
considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees
brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de
fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)
diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades
de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo
de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias
elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura
especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o
Finnegans wake de James Joyce (2009)
Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de
Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente
conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto
e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento
imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem
relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo
muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo
tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua
parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua
esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que
tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas
as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns
momentos
14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano
28
A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece
ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de
preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um
livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada
aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O
que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro
complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse
tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma
maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez
mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando
tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo
atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees
agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e
acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das
consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo
marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa
compreensatildeo algo produtivo
Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho
acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre
literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido
ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em
primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou
natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave
literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No
entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu
caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute
diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash
desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente
conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de
recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de
julgar
29
Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute
nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas
medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva
encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as
produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de
cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que
foi criada frente ao Finnegans wake
O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos
normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de
Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de
julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja
talvez no molde
CAPIacuteTULO I
WAKE EM PAUTA
31
1 Algo parecido com nada
A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos
foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo
que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando
ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas
Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma
recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em
uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos
Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter
pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia
mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas
acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma
seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria
32
No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi
o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que
natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela
convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de
eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a
perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute
o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo
(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos
entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees
controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria
conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda
maiores do que em suas produccedilotildees anteriores
Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha
contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia
entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda
sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta
muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para
alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo
e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe
parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado
demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo
irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo
nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto
Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter
a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua
vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou
verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The
first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura
modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico
para a literatura
33
Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)
Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de
Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de
James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a
atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais
velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs
livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash
ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da
literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz
que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa
poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente
balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada
vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as
pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no
entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que
demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da
literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou
ficaria agrave margem dela
Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente
envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil
compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de
que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele
sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado
na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se
algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid
p 729)
34
Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe
expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao
contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que
trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso
pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura
toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre
Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente
inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem
relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante
das acusaccedilotildees de ininteligibilidade
Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)
Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que
tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph
Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da
publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel
aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na
obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada
ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por
Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do
Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo
ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem
negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam
explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem
fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os
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obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto
a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um
estudo de alguma maneira democratizador
O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)
Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte
da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua
biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira
foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que
tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu
ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na
outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce
lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo
registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que
fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)
O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de
um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque
natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que
formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes
uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um
molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler
qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras
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dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos
entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei
guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e
investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega
agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o
ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O
meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo
antimetoacutedico
Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta
e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o
meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989
p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo
ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras
apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de
necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e
que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser
incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de
leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)
Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas
outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo
somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi
escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou
apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez
ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma
pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de
significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja
a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou
ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que
trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o
compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos
aqui
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O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do
tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica
perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a
concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha
desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre
como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do
italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade
constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a
problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute
possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim
pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o
que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra
obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras
tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como
qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um
livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido
como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se
perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro
defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria
literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil
compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie
de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como
acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses
Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel
uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode
ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio
de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo
apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de
literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno
Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer
no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash
sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo
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(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura
interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual
afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural
em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute
realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma
facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma
especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se
sempre novo
2 Sui generis
O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee
constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de
antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse
tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso
das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em
que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha
de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de
categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente
superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro
consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma
e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo
de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso
ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente
anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras
da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que
deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute
na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria
15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James
39
que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a
gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais
longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a
normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake
pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel
inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da
publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress
Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com
sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus
caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo
claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia
inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou
talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra
Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria
com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)
tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por
faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-
riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia
para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da
letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento
nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre
dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por
Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)
Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James
Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel
afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero
o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat
language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a
afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a
de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute
16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo
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linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)
ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller
como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha
uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e
sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite
que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto
espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo
fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em
nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-
linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado
como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos
oniacutericos
De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com
Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias
raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo
merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm
Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco
anos antes
lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-
americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William
York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a
frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much
17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
41
ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada
em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma
estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte
em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a
relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall
aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro
ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia
de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila
As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake
ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo
tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele
Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou
para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como
exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos
uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade
sua ameaccedila
Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se
encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que
conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na
segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer
cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de
duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma
interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os
perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se
pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa
autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala
entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que
natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso
mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra
18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo
42
de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se
facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto
o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura
absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma
descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que
ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake
aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e
ameaccediladores do seacuteculo XX
Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina
O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto
um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos
sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a
um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu
aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar
com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em
diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido
reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo
se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue
como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob
diferentes olhos
Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo
da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna
No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a
separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou
qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria
sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam
por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como
lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre
aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo
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Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua
projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma
interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados
a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um
caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das
ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o
mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras
para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e
atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato
teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse
sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente
Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De
forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e
consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o
texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade
e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes
quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles
relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre
haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias
fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas
Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash
ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de
prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira
sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo
Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma
seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e
possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito
dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente
decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma
categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a
respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e
semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema
44
tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto
temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito
do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante
Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como
um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa
tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como
profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para
fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras
Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de
defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram
para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por
preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras
com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do
ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta
diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno
Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)
Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer
seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e
defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos
personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as
categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente
berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com
planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o
comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta
45
respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos
que o infinito
Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo
Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)
Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo
descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos
arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de
ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a
primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave
maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de
verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra
se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e
diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida
considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos
uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo
de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila
Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos
a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da
caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho
platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que
pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar
cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a
cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce
estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques
Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo
46
em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de
temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake
3 Fluidez vida-morte
A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de
Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas
assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando
numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo
denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o
desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso
segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo
natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute
nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de
narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o
de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty
existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller
Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de
Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se
morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem
por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome
de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur
(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos
ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que
retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua
ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee
e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como
Caim e Abel Rocircmulo e Remo)
Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o
tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou
mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen
47
underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo
somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de
definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute
seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide
Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece
ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake
garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden
Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres
que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo
mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua
continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as
necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu
direcionamento
Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas
maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente
distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo
nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que
todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de
maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as
chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com
significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem
nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto
literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo
Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas
do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a
enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que
frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia
palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos
aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele
demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que
19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
48
rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm
confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos
lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar
categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos
concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo
pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo
estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que
permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se
desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento
Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa
que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de
que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que
nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de
leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o
contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em
subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar
qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria
essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina
Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de
instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita
de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do
intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto
que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute
anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da
morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz
novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo
Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans
wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas
sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal
O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso
natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes
49
recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente
explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente
perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da
audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz
recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz
alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo
da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo
como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua
exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave
simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos
caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto
de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz
de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta
A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou
espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma
autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente
agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que
Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao
leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo
primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer
um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita
certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada
ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo
comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um
multiverso em detrimento de um universo
Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras
fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se
propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho
meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute
o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas
tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando
Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna
50
caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for
colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro
ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake
No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta
pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem
acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta
como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor
eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-
problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar
possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou
que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho
e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e
nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie
de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que
sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco
narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se
estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de
como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute
necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de
outras consequecircncias
A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute
vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para
qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco
Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do
ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo
interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido
um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado
do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por
conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute
(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica
inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de
Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico
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apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de
arte moderna
Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que
podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um
acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade
simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada
narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena
eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena
ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao
leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista
objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em
primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique
de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar
a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria
possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto
mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse
acompanhamento
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica
A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que
permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem
autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro
acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos
sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas
natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra
o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na
concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas
natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro
de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao
contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que
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o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista
como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro
A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)
Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se
vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do
enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo
possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e
limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o
texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de
formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio
Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor
do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e
Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans
wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo
XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do
que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma
ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa
na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo
cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico
proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo
semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O
leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel
mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos
sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como
em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que
21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo
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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se
acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico
natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da
negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um
outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo
que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans
wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se
o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta
A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em
afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce
dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha
tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e
chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos
psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans
wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento
da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca
Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit
on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como
muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a
citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser
encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em
duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando
ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra
sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold
sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen
certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico
ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce
respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce
quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN
1989 p 853)
Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma
simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras
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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela
[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo
ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora
do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado
Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia
percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus
poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma
exemplificaccedilatildeo de insanidade
Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a
Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos
elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo
de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a
relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos
distintos e simultacircneos na obra de Joyce
Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)
Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo
maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com
Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior
Ulysses
Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)
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Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma
que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas
possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se
entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer
paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas
caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem
paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente
disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode
ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para
outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo
III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda
inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e
ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey
Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub
Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o
Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em
portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia
desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave
condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho
feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna
criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto
formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida
em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No
entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse
um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo
para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto
ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada
tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento
do Wake
A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo
bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma
importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute
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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do
aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que
os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe
apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a
muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A
aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o
autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber
Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente
meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias
(como eacute conhecido) de Ulysses
Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a
respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era
uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence
White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce
respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de
entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma
composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em
muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa
forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees
persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas
de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha
recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira
executiva
O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo
3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in
feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em
cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou
sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo
tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA
identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se
fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a
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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio
que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate
casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente
barulhento
Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22
For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23
Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24
Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas
bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de
pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir
palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo
do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute
consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado
22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)
58
previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que
continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais
musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui
unido a Shem
Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans
wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria
como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a
leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como
muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona
diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva
e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente
mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa
comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo
Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)
A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto
a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura
em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando
decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua
evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e
natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A
essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte
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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais
do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas
que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo
aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um
princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica
Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a
obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o
seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto
joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os
quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia
temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas
satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao
contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem
destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas
de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim
como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas
executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na
promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do
papel
Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos
fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de
elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma
delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator
inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons
mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor
deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)
intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor
em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de
entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as
consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem
subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de
60
qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees
preacute-existentes
O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto
a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa
sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha
A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que
tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros
que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos
faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans
wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes
caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a
figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade
wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos
iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a
circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou
Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois
engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas
repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que
acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance
com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da
mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado
A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de
relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a
operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece
comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da
nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen
Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se
61
voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)
Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo
obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa
interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam
evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma
oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo
receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade
tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto
na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute
dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave
Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como
operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como
transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a
posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)
Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura
semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees
de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua
leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem
fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das
formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo
foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que
seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de
frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem
a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente
o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a
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comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos
foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em
uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute
criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica
ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional
de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25
Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade
semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa
a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que
jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica
implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo
capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee
Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as
possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral
tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por
mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura
hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de
um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do
horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez
Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem
necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos
oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho
cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a
melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez
ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute
necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em
questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha
diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira
25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo
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homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando
ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente
decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de
assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo
Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura
do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que
flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel
Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de
algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo
precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim
destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa
ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil
de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do
texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente
colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees
criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua
complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel
CAPIacuteTULO II
FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO
65
No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na
seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des
Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos
a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p
179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como
traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto
traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou
a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo
receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave
visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora
do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio
sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua
existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa
relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos
66
A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo
produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do
idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a
exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em
detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em
literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto
expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida
inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro
evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute
perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente
por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios
notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas
e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida
bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou
sintaacuteticas
Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo
sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas
inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum
ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma
mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada
em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor
tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que
assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo
inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um
sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria
demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a
qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto
Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do
ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave
leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto
se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de
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ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e
similaridade
ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como
ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo
poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de
enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores
Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista
austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo
idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse
conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo
platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a
ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante
quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se
Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como
traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo
Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma
vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a
correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical
mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas
tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical
engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de
consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma
escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste
do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e
nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma
forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias
do que traduz
Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo
se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda
outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do
tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com
68
o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste
procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que
percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito
das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa
natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo
joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo
(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga
agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto
destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira
literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de
transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto
ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido
ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo
(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non
serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)
Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo
entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a
traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve
ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento
de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser
tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a
deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-
formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo
(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a
ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois
planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de
mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)
semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma
mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que
caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana
69
Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um
leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto
adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro
Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode
vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do
texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para
ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem
valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma
sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia
O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor
ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito
eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor
tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo
somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot
juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo
Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se
rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de
qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa
forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao
originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash
Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff
Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo
regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria
como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se
considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um
regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A
concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a
necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja
servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica
aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas
nacionais
70
A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua
autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de
forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos
que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo
Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans
wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a
intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves
no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para
um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar
engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES
1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James
Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido
elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que
Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da
proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo
mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas
especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute
submetido
Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e
qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente
expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e
qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer
que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda
menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender
destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo
os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo
de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma
equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo
traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence
a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de
literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem
proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma
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liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do
texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz
necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor
se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda
que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela
transcriaccedilatildeo
A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito
a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de
certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas
Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash
Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash
encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de
que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua
ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum
recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua
traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade
para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso
deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo
(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na
coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir
James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica
com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o
aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)
Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do
Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans
wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas
e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto
de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva
(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical
do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar
alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que
em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta
72
voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo
(CAMPOS 2001 p 21)
Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo
integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e
Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de
Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto
debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente
gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto
oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)
Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor
afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se
submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos
somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim
inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)
Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um
esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que
percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo
predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da
traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo
aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a
pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para
que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou
desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto
desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute
entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em
vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs
o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada
invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a
linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas
ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras
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Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans
wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto
tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos
consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de
serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por
brasileiros Na primeira linha por exemplo
riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)
Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento
direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto
temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto
espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve
em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma
impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar
o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos
semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas
possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro
periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar
agrave ideia temporal
riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)
Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo
prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se
referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo
esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja
especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso
de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato
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pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois
personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de
forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto
de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)
Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma
outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura
mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute
a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula
rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos
Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo
ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila
uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi
a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da
ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito
das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin
uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute
em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das
primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O
marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera
nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a
traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico
uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por
todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa
mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em
Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos
os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-
se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um
possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas
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a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com
ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em
inglecircs
A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo
Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas
superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu
fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal
extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do
tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo
apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada
entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul
Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do
tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura
um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio
ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees
de tempo linguiacutestico
Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)
De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida
contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as
referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por
Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais
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Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou
perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um
impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada
O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu
desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver
mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para
qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se
contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por
mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros
que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente
entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade
como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no
entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de
fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que
existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os
diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas
de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona
Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma
(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como
uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de
vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto
de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou
um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas
sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos
Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes
resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a
pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma
disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo
pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a
traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma
metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma
pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio
77
A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo
afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas
respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de
ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda
que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto
literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de
partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais
pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de
partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e
funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e
concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que
havia outrora no texto de partida
Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do
trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning
and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that
signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell
lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma
relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre
a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na
distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo
o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em
determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma
combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova
As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se
fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode
oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido
produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas
tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo
Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como
tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce
26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo
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escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de
rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas
pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce
em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do
portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso
prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que
diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts
itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto
a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma
(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como
reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo
Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas
afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido
executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado
tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura
considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado
como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para
exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de
intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio
em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema
etc independentemente do gecircnero literaacuterio
A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma
dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo
o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para
que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes
sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em
frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por
variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e
Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus
e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo
ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma
das personagens no que estiver acontecendo a cada momento
79
Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver
uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em
uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado
Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria
igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo
natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio
entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la
como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes
tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem
toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)
especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando
discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo
como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela
pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela
mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa
uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime
uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra
literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a
traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee
com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou
visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa
tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto
Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto
de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios
compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos
escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou
menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por
isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as
extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas
de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio
Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala
sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel
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What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27
Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao
Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos
trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo
mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de
qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em
seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da
linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur
lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das
liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo
pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio
Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em
fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando
no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que
contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto
feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da
proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de
confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais
estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que
ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos
explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake
nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua
27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo
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Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal
de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira
de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da
traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como
eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e
olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a
definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a
cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo
do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo
ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura
hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo
apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado
ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash
no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar
ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo
Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar
destrinchaacute-lo
CAPIacuteTULO III
LEITURA LUTO ELIPSE
83
Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante
fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo
da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade
continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse
texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos
dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o
previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma
leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma
leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro
eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante
do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura
fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa
84
Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos
supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se
findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela
Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que
algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando
de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as
implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente
possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua
concepccedilatildeo
Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que
indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de
relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que
determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala
necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de
percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute
claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute
certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos
oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho
linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado
que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer
seu terreno
Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que
concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura
desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do
sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash
consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal
natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e
que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de
interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve
esse ponto com as seguintes observaccedilotildees
85
Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)
Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em
consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake
demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o
texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo
se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa
posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva
Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo
necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao
contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite
que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder
acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo
observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada
consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco
continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura
perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice
Merleau-Ponty
A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)
86
Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de
leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma
estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que
se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma
leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a
obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o
nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada
ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura
ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas
possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os
fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando
dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler
qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute
o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo
desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer
como obra una e total
Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os
fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash
ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o
acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam
tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o
fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por
satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que
aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe
confere coerecircncia como obra
As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No
entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina
ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta
em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila
crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica
necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa
abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um
87
meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura
mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e
algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui
nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as
possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas
as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas
e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo
Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de
acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em
conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se
saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria
se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro
jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse
sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem
O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe
de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de
que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se
daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se
eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de
suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake
eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like
the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos
hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants
a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma
geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake
tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro
partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma
geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo
28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo
88
em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de
ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente
enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um
ponto
A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da
aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que
nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno
ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel
Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima
frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem
que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)
retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no
entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim
se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como
modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens
haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que
estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute
retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai
e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca
circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao
movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio
texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado
explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW
1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras
obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em
linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto
originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em
Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do
protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a
estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila
29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo
89
Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York
Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece
considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas
causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura
Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o
uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar
o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em
sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento
de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma
espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo
muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a
incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and
a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel
methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)
No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o
uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo
4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que
formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem
mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto
eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles
dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que
fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos
moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso
mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma
leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa
estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo
haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos
poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o
mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma
30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo
90
sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a
tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia
A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia
tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas
em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de
trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se
intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma
compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a
possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto
agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language
Laurent Milesi diz
This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31
A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos
histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells
irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake
certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo
histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria
a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando
voz perspectiva contexto
31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo
91
Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se
sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma
partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto
inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo
de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem
niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode
vir a ser em mais de uma possibilidade
A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute
operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo
entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do
Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso
pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do
texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl
Jaspers (1883-1969) diz
O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)
A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao
livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do
tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente
mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos
desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga
mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia
que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa
afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a
voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de
certa maneira aiacute jaacute natildeo existe
92
O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se
opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento
ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica
no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na
histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma
volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo
presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se
faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo
que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo
ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do
lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)
O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute
sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica
senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo
cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo
linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo
acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake
circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo
fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo
somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que
natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um
assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo
ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas
A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente
por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual
se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo
linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo
passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico
se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do
tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui
a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para
explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico
93
A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia
moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a
positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria
que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a
respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o
fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o
mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a
uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO
mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma
no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar
eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo
(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)
A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do
leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun
awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees
silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete
em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida
da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na
narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun
a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada
Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em
mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin
ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou
mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido
talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash
mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem
podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)
e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro
ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao
nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que
despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake
94
substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no
geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)
Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse
ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping
and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and
appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter
of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra
como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his
human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu
livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim
a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake
knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)
O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital
em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que
Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim
como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem
correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica
em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender
e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que
lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a
Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que
podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash
que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita
Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com
uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens
nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na
incontornaacutevel indefiniccedilatildeo
32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo
95
Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos
mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao
desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um
dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to
complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo
contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na
ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual
poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute
tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin
surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um
cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo
para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se
demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta
demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos
pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem
cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no
parque em questatildeo
They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36
35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo
96
Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no
espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin
of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker
fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos
tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante
Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na
expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse
mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se
desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente
abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido
Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall
pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as
absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do
texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com
clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se
em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos
e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que
apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix
Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim
como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de
conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma
Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por
indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz
em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama
wakiana
Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall
contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a
ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo
ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they
took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que
37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo
97
se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees
parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da
personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual
mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se
apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar
com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado
Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como
seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que
compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no
rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto
permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os
ausentes
Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como
pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco
cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua
determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se
possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais
uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda
Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma
divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em
que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo
Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho
do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como
origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute
uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees
de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar
o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em
que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois
estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam
em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da
autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto
98
Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)
Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai
por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a
perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o
que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido
precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute
desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura
para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um
resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente
livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)
De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de
concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute
alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na
necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na
busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da
libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto
racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo
normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo
proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam
homenagens seu enterro e seu descanso
Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough
99
Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38
Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo
apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro
subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos
egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do
que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos
poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais
de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos
que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram
chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que
haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte
experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do
percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao
contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um
caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de
barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na
verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia
38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo
100
No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey
Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade
satildeo numerosas
Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39
all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40
But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41
As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam
tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-
se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos
divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake
natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no
luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras
realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais
ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se
dissolvem
O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e
entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade
de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que
isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim
como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga
39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
101
no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute
o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o
mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha
de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger
Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no
que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um
significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais
Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve
considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas
eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que
diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-
los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de
Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado
partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure
No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)
Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam
ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer
para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com
significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais
102
parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo
portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a
materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns
momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual
O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma
concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund
Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer
regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou
ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia
de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera
as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui
invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce
uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas
para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo
produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo
seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente
que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente
irrecuperaacutevel
Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu
ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado
de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao
menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da
obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por
uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura
o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida
Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter
103
nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42
A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio
de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans
wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor
irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no
The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da
dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in
allrdquo como em Finnegans wake
Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques
Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz
solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear
portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo
em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo
discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa
apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por
mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito
mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja
reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse
modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos
textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma
ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva
42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo
104
vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas
escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A
conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque
comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra
maneirardquo (Ibid)
Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao
sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo
fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-
se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans
wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e
organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar
dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de
qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma
numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao
desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo
e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a
certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso
arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra
Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le
sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques
Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos
Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que
diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel
Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa
mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz
Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)
105
Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em
uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras
linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte
supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz
profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute
nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo
semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito
alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras
distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa
medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de
uma barreira temporal
Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do
iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando
univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo
de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau
chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que
se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem
por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na
escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na
linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido
diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca
por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o
maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no
entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do
alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se
farta dela
Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao
leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de
suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores
como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar
algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria
idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo
106
estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma
Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)
e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de
comunicaccedilatildeo
Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43
No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo
assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem
um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento
pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto
literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior
especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre
todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia
de remetimentos infinita
Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na
passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao
mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em
articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria
na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente
43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo
107
por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro
sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011
p 385)
Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela
liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase
concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de
escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura
talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e
do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade
CAPIacuteTULO IV
FLUIR E RETORNO
109
O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um
problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da
existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar
as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do
sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica
de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da
tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda
de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da
mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se
podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da
cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)
110
Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria
profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso
aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees
O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de
temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que
Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase
cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do
que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue
poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam
a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a
personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash
que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou
deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma
pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da
realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil
ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos
rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis
No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo
surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as
primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal
e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a
mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz
respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho
In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44
44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo
111
O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua
chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que
seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu
lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e
apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e
sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome
derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente
como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu
lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na
medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma
comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo
haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de
polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade
Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como
uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente
islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave
antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando
e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas
podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna
Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete
a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a
Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo
A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica
quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que
reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma
posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de
repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah
the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de
termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar
que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica
meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis
112
Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA
fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa
loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo
com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como
habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou
ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA
2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de
maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha
especificidade
No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo
relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de
leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias
tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou
dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa
previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o
passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia
novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto
matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade
Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura
remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um
acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria
mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)
textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em
que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou
ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se
revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente
monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute
visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus
processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato
alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake
considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto
113
Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial
maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os
adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento
especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo
conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo
foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se
entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos
servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as
ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute
equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por
detraacutes da mulher-Liffey
A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala
islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito
Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo
natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo
da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem
humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida
pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo
nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra
quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem
the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e
Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como
mensageiro
Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda
essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e
hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de
Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com
professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma
conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954
publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do
uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos
114
posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu
interlocutor
A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)
Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a
encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e
essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia
espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the
name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee
deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho
indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos
remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente
verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu
lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem
mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes
intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que
Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva
possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia
de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse
isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila
em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos
capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos
sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente
caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida
115
Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11
em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala
embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo
de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das
lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo
de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as
sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos
devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por
muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras
pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no
mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo
e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda
ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo
nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais
eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam
assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria
tradicionalmente a voz narrativa central
A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda
na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na
citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da
hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo
ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse
quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na
interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro
dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la
alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio
Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto
Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que
o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell
e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as
luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)
e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma
116
separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de
possibilidade remota
A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em
que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia
Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie
de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo
se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo
dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e
diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo
maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam
personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre
todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e
diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e
passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade
geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares
complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode
caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos
diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de
tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos
o coletivo como histoacuteria e memoacuteria
A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho
anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo
de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute
havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a
mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute
desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel
centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro
intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz
em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados
Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em
fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum
117
da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da
mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia
A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes
temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o
tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro
(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um
caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence
(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas
o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto
de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas
O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro
intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado
nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o
ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades
paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados
futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria
intocada
Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma
porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente
qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente
um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha
em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a
partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria
seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se
apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao
inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma
suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute
chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e
domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a
espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha
a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um
118
narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos
fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior
Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma
incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do
texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo
se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode
definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda
definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a
temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de
Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um
cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do
monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se
trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute
poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo
interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O
final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um
continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que
a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol
que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker
pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo
sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do
Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro
idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o
encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute
de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal
especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos
verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural
child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age
of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita
45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo
119
ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade
a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente
ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o
passado de fato passou
Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey
seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura
centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice
a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua
calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las
conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser
distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de
conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do
acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve
ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter
tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da
ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um
personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos
junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma
sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de
aspecto muacuteltiplo
Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem
sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais
especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a
questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de
Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e
no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem
o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade
Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-
delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido
negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo
nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele
que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin
120
Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch
retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente
trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber
sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer
tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia
Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)
Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo
concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece
em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma
ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de
todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho
interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim
partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis
desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior
possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave
ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela
temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como
aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo
Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que
o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles
mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais
aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento
vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar
desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido
pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-
do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o
121
passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa
permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute
justificada
Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)
O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha
heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga
interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por
fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία
presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de
Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz
respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-
ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-
ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de
Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico
encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente
pois o mesmo eacute pensar e ser
[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
(Frag III)
Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o
natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando
nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois
termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente
presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da
122
discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados
com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado
φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo
O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a
sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia
vocabular
Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash
quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar
um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser
eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)
o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser
esse te indico ser caminho em tudo ignoto
pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel
nem mostraacute-lo []
Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -
[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -
οὔτε φράσαις[]
(Frag II)46
O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no
momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda
assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa
necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se
estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger
46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo
123
tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre
ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa
ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa
definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional
Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas
investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida
em Marges de la philosophie (1972 1991)
O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)
Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que
Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que
seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas
vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que
ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO
ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente
ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)
isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία
significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero
sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na
forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo
que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que
forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia
ausecircncia)
A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta
124
que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)
Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura
entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em
certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto
de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel
e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente
permanecer na presenccedila estar no presente
Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que
o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute
por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a
Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica
Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central
No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um
agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo
O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)
No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro
uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda
que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o
sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se
caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo
125
gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada
entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo
Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47
Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da
coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros
de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras
que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo
instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet
no body is presente here which was not there before Only is order othered
Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada
uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o
que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes
relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit
que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que
algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)
Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o
despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se
cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma
vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma
espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso
tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de
algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia
Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja
47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo
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com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter
fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos
reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia
de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em
que anuncia uma revinda
What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49
No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona
reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade
do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo
nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo
divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra
natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver
lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a
temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste
e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-
tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o
desaparecimentoausecircncia
49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo
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Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)
Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo
ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave
percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta
especiacutefica do tempo
O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)
Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo
de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os
termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a
sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que
perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua
definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo
do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo
sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que
os problemas se iniciam
A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem
compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que
Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do
povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e
respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma
Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala
o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de
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questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo
de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW
40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo
atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo
presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases
O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz
reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o
presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado
temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a
narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma
primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a
inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para
pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade
textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente
de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma
Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que
seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que
fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas
por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade
No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida
tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda
que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute
simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto
eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo
mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente
o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente
do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na
medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem
espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com
futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a
50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo
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presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo
que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute
inevitavelmente permeada
Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como
escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir
da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a
compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans
wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute
equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma
sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da
subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo
objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso
poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na
relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo
vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como
princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo
objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera
pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia
expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu
horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o
Outro do meu tempo
Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra
Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e
que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute
somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que
nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash
menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro
incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque
somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia
ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O
reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de
que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel
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quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia
portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o
humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o
tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o
anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu
tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos
mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o
que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa
memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo
mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se
juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para
essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances
variadas dos aspectos temporais da existecircncia
Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente
adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo
uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e
ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala
tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-
ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no
porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma
outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista
Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual
Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades
viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia
temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se
na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a
caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e
simplesmente caos
Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego
do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades
diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden
Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa
131
fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute
em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of
thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or
reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo
(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel
modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como
visiacutevel
Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem
que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e
fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos
informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e
perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a
paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash
natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que
tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um
momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e
ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas
conversas
Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53
Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o
proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite
quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas
acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e
51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)
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especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash
ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente
mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite
funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite
sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como
se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo
acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma
ou seja qualquer) noite especiacutefica
Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente
fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas
consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para
o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da
eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo
tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode
tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo
teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement
qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo
que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade
que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo
fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo
considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho
esclarecedor entatildeo Levinas explica
Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54
54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo
133
Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para
a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa
para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma
sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo
Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle
qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra
ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como
ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade
como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o
tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica
individual
A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)
Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi
apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de
vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo
complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e
tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes
dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por
rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila
feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que
separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como
essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central
55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo
134
da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben
relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo
do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da
destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do
agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A
marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal
solitaacuteria
Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)
No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de
encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the
pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma
forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente
movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro
da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake
Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se
tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em
eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode
vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no
tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura
expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a
expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos
dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa
fludez de ricorso torrencial
56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)
135
Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo
em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um
fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos
encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no
ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre
inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com
ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute
referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos
Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa
paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da
saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um
significado riquiacutessimo
O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया
pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o
crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da
madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois
opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo
entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem
somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto
de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver
Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais
um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto
iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma
e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por
exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz
em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele
povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente
formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade
fenomecircnica do instante
136
Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna
Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se
compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de
maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou
natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que
o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de
geraccedilotildees com a passagem do tempo
And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58
Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos
Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das
memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes
Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-
1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e
preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao
protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural
que metaforiza o das relaccedilotildees familiares
O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento
circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a
impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim
entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que
natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se
faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que
57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)
137
se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento
desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda
permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel
a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes
A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos
que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de
NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo
antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem
desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da
substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem
aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o
nascer do Sol
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
139
Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una
de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural
Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos
importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto
intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas
Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que
podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo
aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake
Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro
com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo
abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente
140
Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o
problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a
uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute
possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a
uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de
lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a
heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que
podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam
ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um
sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os
guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se
antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende
abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser
dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute
uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura
precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse
Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas
escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem
porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o
Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam
Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma
sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O
ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de
qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso
afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um
livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a
seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e
abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees
de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das
obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo
do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para
ser questionado
141
O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o
excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e
da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a
separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce
A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada
pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo
qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia
(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in
TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em
tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo
eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente
limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa
talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura
tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida
No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na
problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge
para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma
relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume
Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna
Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no
capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento
e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando
o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno
assinala-se que
Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)
60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)
142
Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um
sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego
ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem
citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em
geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)
exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo
que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim
permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos
com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural
Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um
defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa
que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake
eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas
apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como
todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em
hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que
estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida
ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria
um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o
que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que
se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por
mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio
em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da
literatura
Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)
143
Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito
ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao
despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair
do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo
proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele
vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas
palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o
sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se
mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em
nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e
multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e
do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos
polifocircnicos
Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao
texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura
eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na
ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva
a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute
constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e
nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo
escritural
Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)
Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees
diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram
aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece
com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada
irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de
144
uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no
chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana
oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta
uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a
leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do
senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente
dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias
tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada
de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por
conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam
acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo
clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa
Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre
circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos
moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se
tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular
do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu
caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra
a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem
redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade
145
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O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE
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Dr Caetano Waldrigues Galindo
Universidade Federal do Paranaacute mdash Membro Externo
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Dr Henryk Siewierski
Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno
____________________________________________________________________
Dra Cristina Maria Teixeira Stevens
Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno ndash Suplente
aos meus pais
AGRADECIMENTOS
Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria
ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada
First we feel Then we fall
(FW 62711)
Now follow we out by Starloe
(FW 38230)
Resumo
FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p
Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto
como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce
(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial
a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo
Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das
investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu
paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva
compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone
da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de
Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do
proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho
eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos
as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como
abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o
tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de
James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem
como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente
dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur
Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia
Abstract
FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation
Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p
This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well
as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish
author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes
through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The
ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is
reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the
investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova
(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic
vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones
in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake
ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself
its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel
Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the
possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support
of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is
also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for
James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the
investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history
of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin
Heidegger and Paul Ricoeur
Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11
CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30
1 Algo parecido com nada 31
2 Sui generis38
3 Fluidez vida-morte46
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51
CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64
CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82
CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138
BIBLIOGRAFIA145
INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS
Hightime is ups be it down into outs according
Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1
(FW 23916)
1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim
12
Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto
Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo
de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de
repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees
de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos
depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-
lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de
janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de
Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de
tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as
quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas
13
O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por
algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo
de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que
Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua
produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem
natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que
leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no
primeiro contato com o Wake)
Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro
de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de
dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca
de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso
passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar
melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e
ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor
Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo
de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das
figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns
elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus
mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados
por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha
de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs
que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao
ocorrido
Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett
apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles
que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de
sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria
editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The
New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou
ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido
Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito
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concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903
e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o
iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The
Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados
Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo
teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que
comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do
irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante
de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto
Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da
Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de
Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de
Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a
primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da
coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929
Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress
Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas
das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first
that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure
the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos
1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e
simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les
amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila
pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se
somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter
se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que
ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach
se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do
totalitarismo nazista
2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo
15
In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3
Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene
Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em
Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles
em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu
tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de
James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e
artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa
especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene
Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo
norte-americano Richard Ellmann
Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)
Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra
de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que
seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na
proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria
sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva
Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris
3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos
16
contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos
depois de sua fundaccedilatildeo em 1968
Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de
James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915
que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da
rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-
Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-
americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por
um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost
em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria
especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de
famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que
abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta
parceria
Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que
tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A
moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce
contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a
publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook
(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde
1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito
por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo
quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais
durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work
in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio
depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na
Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan
Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma
acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o
proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por
acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido
17
publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros
convites anteriores mas acabou cedendo
Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto
posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute
alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem
negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake
pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da
ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver
que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim
de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava
escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar
pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas
escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente
emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p
728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da
morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash
que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda
da Irlanda
Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais
aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos
finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito
do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe
restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou
a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou
a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure
for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5
(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma
tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound
se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito
5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)
18
elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras
ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a
good poet and without exception the best of the younger prose writers His style
has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of
erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather
overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)
A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a
obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra
coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in
progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work
in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava
nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por
Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que
publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4
de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett
Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot
Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e
William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo
contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de
negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos
extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram
criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby
e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon
ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs
Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e
Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio
Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada
6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)
19
O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na
publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce
Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil
para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando
numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo
ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero
Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e
Eugene Jolas
Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se
conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se
estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade
Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake
especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos
imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal
o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro
de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos
certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo
mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali
nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans
wake esperando uma leitura tradicional
You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8
8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo
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O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a
linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao
remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez
de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do
acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente
ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais
coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo
sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de
palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a
ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem
em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa
argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que
Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do
estudioso Seamus Deane
Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9
Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades
estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios
que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O
leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de
sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se
prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense
ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes
disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em
si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto
9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo
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virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada
termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem
ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma
uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo
textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras
por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo
Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-
lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se
Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e
relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees
oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se
propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to
Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em
1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica
A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall
tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura
do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes
Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela
proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de
Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to
the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to
Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais
amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)
William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e
facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final
de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que
seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas
sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma
maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority
on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969
22
pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre
Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas
William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de
joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa
mesma introduccedilatildeo
Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11
De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans
wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel
Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das
comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre
perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses
ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p
617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake
que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a
caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o
inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da
seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do
que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou
adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar
de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza
10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo
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Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em
Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as
direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer
esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash
Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em
Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem
fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake
e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo
que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma
primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)
Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo
foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e
premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)
teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual
a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas
as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que
compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da
tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um
dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei
descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de
impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as
12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)
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publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por
ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt
entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se
propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall
publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo
para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo
(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao
Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade
um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se
entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas
que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o
momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em
prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das
fronteiras
No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de
grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes
leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e
Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo
foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo
dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os
irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente
natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar
a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como
especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do
Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o
que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute
nos anos 1960
13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som
25
Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)
traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs
alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego
contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os
poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que
traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente
dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos
A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe
consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de
leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou
essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao
seu trabalho de traduccedilatildeo
Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo
de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees
e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi
executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu
Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo
do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em
suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele
acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo
semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos
elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de
James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos
(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante
e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas
a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita
por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as
Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o
livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick
do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia
Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil
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Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans
wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre
as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como
pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo
natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos
maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A
intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as
dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por
contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e
contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria
um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons
Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados
sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute
velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e
ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se
acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal
e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto
impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra
como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda
os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos
literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel
e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico
e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa
Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e
agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto
desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais
destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre
literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura
do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem
que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash
um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto
Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos
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para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a
percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser
selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados
Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra
um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que
considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees
brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de
fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)
diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades
de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo
de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias
elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura
especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o
Finnegans wake de James Joyce (2009)
Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de
Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente
conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto
e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento
imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem
relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo
muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo
tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua
parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua
esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que
tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas
as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns
momentos
14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano
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A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece
ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de
preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um
livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada
aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O
que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro
complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse
tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma
maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez
mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando
tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo
atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees
agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e
acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das
consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo
marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa
compreensatildeo algo produtivo
Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho
acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre
literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido
ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em
primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou
natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave
literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No
entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu
caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute
diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash
desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente
conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de
recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de
julgar
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Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute
nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas
medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva
encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as
produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de
cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que
foi criada frente ao Finnegans wake
O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos
normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de
Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de
julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja
talvez no molde
CAPIacuteTULO I
WAKE EM PAUTA
31
1 Algo parecido com nada
A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos
foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo
que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando
ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas
Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma
recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em
uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos
Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter
pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia
mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas
acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma
seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria
32
No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi
o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que
natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela
convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de
eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a
perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute
o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo
(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos
entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees
controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria
conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda
maiores do que em suas produccedilotildees anteriores
Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha
contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia
entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda
sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta
muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para
alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo
e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe
parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado
demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo
irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo
nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto
Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter
a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua
vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou
verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The
first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura
modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico
para a literatura
33
Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)
Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de
Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de
James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a
atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais
velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs
livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash
ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da
literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz
que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa
poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente
balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada
vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as
pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no
entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que
demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da
literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou
ficaria agrave margem dela
Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente
envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil
compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de
que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele
sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado
na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se
algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid
p 729)
34
Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe
expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao
contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que
trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso
pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura
toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre
Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente
inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem
relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante
das acusaccedilotildees de ininteligibilidade
Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)
Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que
tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph
Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da
publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel
aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na
obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada
ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por
Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do
Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo
ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem
negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam
explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem
fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os
35
obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto
a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um
estudo de alguma maneira democratizador
O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)
Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte
da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua
biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira
foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que
tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu
ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na
outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce
lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo
registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que
fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)
O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de
um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque
natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que
formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes
uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um
molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler
qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras
36
dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos
entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei
guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e
investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega
agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o
ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O
meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo
antimetoacutedico
Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta
e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o
meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989
p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo
ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras
apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de
necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e
que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser
incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de
leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)
Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas
outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo
somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi
escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou
apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez
ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma
pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de
significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja
a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou
ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que
trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o
compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos
aqui
37
O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do
tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica
perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a
concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha
desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre
como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do
italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade
constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a
problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute
possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim
pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o
que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra
obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras
tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como
qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um
livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido
como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se
perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro
defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria
literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil
compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie
de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como
acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses
Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel
uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode
ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio
de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo
apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de
literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno
Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer
no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash
sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo
38
(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura
interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual
afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural
em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute
realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma
facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma
especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se
sempre novo
2 Sui generis
O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee
constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de
antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse
tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso
das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em
que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha
de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de
categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente
superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro
consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma
e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo
de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso
ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente
anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras
da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que
deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute
na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria
15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James
39
que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a
gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais
longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a
normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake
pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel
inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da
publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress
Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com
sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus
caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo
claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia
inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou
talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra
Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria
com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)
tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por
faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-
riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia
para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da
letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento
nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre
dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por
Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)
Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James
Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel
afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero
o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat
language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a
afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a
de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute
16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo
40
linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)
ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller
como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha
uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e
sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite
que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto
espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo
fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em
nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-
linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado
como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos
oniacutericos
De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com
Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias
raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo
merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm
Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco
anos antes
lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-
americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William
York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a
frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much
17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
41
ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada
em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma
estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte
em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a
relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall
aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro
ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia
de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila
As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake
ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo
tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele
Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou
para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como
exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos
uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade
sua ameaccedila
Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se
encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que
conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na
segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer
cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de
duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma
interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os
perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se
pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa
autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala
entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que
natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso
mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra
18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo
42
de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se
facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto
o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura
absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma
descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que
ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake
aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e
ameaccediladores do seacuteculo XX
Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina
O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto
um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos
sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a
um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu
aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar
com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em
diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido
reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo
se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue
como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob
diferentes olhos
Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo
da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna
No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a
separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou
qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria
sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam
por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como
lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre
aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo
43
Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua
projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma
interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados
a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um
caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das
ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o
mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras
para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e
atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato
teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse
sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente
Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De
forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e
consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o
texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade
e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes
quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles
relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre
haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias
fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas
Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash
ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de
prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira
sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo
Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma
seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e
possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito
dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente
decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma
categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a
respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e
semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema
44
tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto
temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito
do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante
Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como
um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa
tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como
profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para
fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras
Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de
defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram
para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por
preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras
com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do
ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta
diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno
Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)
Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer
seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e
defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos
personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as
categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente
berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com
planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o
comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta
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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos
que o infinito
Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo
Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)
Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo
descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos
arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de
ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a
primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave
maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de
verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra
se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e
diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida
considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos
uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo
de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila
Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos
a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da
caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho
platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que
pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar
cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a
cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce
estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques
Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo
46
em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de
temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake
3 Fluidez vida-morte
A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de
Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas
assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando
numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo
denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o
desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso
segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo
natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute
nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de
narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o
de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty
existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller
Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de
Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se
morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem
por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome
de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur
(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos
ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que
retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua
ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee
e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como
Caim e Abel Rocircmulo e Remo)
Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o
tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou
mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen
47
underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo
somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de
definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute
seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide
Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece
ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake
garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden
Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres
que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo
mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua
continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as
necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu
direcionamento
Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas
maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente
distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo
nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que
todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de
maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as
chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com
significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem
nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto
literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo
Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas
do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a
enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que
frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia
palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos
aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele
demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que
19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
48
rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm
confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos
lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar
categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos
concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo
pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo
estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que
permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se
desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento
Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa
que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de
que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que
nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de
leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o
contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em
subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar
qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria
essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina
Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de
instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita
de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do
intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto
que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute
anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da
morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz
novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo
Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans
wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas
sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal
O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso
natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes
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recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente
explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente
perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da
audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz
recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz
alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo
da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo
como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua
exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave
simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos
caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto
de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz
de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta
A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou
espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma
autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente
agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que
Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao
leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo
primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer
um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita
certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada
ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo
comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um
multiverso em detrimento de um universo
Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras
fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se
propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho
meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute
o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas
tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando
Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna
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caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for
colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro
ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake
No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta
pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem
acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta
como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor
eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-
problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar
possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou
que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho
e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e
nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie
de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que
sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco
narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se
estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de
como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute
necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de
outras consequecircncias
A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute
vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para
qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco
Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do
ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo
interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido
um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado
do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por
conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute
(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica
inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de
Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico
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apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de
arte moderna
Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que
podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um
acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade
simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada
narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena
eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena
ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao
leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista
objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em
primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique
de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar
a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria
possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto
mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse
acompanhamento
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica
A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que
permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem
autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro
acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos
sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas
natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra
o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na
concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas
natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro
de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao
contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que
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o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista
como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro
A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)
Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se
vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do
enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo
possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e
limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o
texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de
formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio
Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor
do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e
Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans
wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo
XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do
que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma
ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa
na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo
cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico
proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo
semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O
leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel
mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos
sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como
em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que
21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo
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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se
acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico
natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da
negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um
outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo
que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans
wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se
o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta
A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em
afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce
dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha
tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e
chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos
psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans
wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento
da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca
Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit
on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como
muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a
citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser
encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em
duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando
ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra
sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold
sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen
certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico
ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce
respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce
quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN
1989 p 853)
Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma
simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras
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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela
[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo
ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora
do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado
Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia
percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus
poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma
exemplificaccedilatildeo de insanidade
Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a
Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos
elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo
de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a
relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos
distintos e simultacircneos na obra de Joyce
Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)
Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo
maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com
Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior
Ulysses
Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)
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Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma
que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas
possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se
entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer
paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas
caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem
paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente
disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode
ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para
outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo
III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda
inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e
ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey
Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub
Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o
Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em
portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia
desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave
condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho
feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna
criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto
formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida
em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No
entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse
um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo
para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto
ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada
tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento
do Wake
A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo
bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma
importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute
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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do
aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que
os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe
apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a
muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A
aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o
autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber
Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente
meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias
(como eacute conhecido) de Ulysses
Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a
respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era
uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence
White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce
respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de
entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma
composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em
muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa
forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees
persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas
de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha
recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira
executiva
O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo
3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in
feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em
cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou
sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo
tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA
identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se
fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a
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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio
que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate
casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente
barulhento
Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22
For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23
Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24
Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas
bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de
pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir
palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo
do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute
consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado
22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)
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previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que
continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais
musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui
unido a Shem
Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans
wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria
como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a
leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como
muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona
diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva
e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente
mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa
comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo
Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)
A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto
a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura
em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando
decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua
evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e
natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A
essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte
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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais
do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas
que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo
aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um
princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica
Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a
obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o
seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto
joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os
quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia
temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas
satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao
contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem
destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas
de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim
como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas
executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na
promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do
papel
Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos
fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de
elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma
delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator
inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons
mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor
deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)
intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor
em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de
entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as
consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem
subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de
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qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees
preacute-existentes
O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto
a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa
sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha
A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que
tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros
que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos
faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans
wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes
caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a
figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade
wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos
iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a
circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou
Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois
engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas
repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que
acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance
com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da
mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado
A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de
relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a
operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece
comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da
nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen
Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se
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voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)
Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo
obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa
interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam
evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma
oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo
receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade
tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto
na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute
dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave
Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como
operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como
transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a
posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)
Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura
semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees
de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua
leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem
fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das
formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo
foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que
seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de
frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem
a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente
o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a
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comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos
foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em
uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute
criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica
ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional
de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25
Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade
semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa
a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que
jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica
implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo
capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee
Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as
possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral
tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por
mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura
hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de
um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do
horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez
Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem
necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos
oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho
cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a
melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez
ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute
necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em
questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha
diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira
25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo
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homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando
ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente
decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de
assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo
Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura
do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que
flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel
Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de
algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo
precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim
destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa
ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil
de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do
texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente
colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees
criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua
complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel
CAPIacuteTULO II
FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO
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No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na
seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des
Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos
a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p
179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como
traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto
traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou
a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo
receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave
visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora
do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio
sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua
existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa
relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos
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A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo
produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do
idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a
exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em
detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em
literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto
expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida
inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro
evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute
perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente
por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios
notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas
e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida
bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou
sintaacuteticas
Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo
sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas
inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum
ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma
mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada
em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor
tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que
assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo
inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um
sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria
demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a
qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto
Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do
ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave
leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto
se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de
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ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e
similaridade
ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como
ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo
poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de
enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores
Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista
austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo
idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse
conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo
platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a
ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante
quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se
Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como
traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo
Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma
vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a
correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical
mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas
tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical
engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de
consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma
escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste
do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e
nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma
forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias
do que traduz
Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo
se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda
outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do
tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com
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o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste
procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que
percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito
das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa
natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo
joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo
(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga
agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto
destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira
literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de
transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto
ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido
ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo
(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non
serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)
Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo
entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a
traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve
ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento
de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser
tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a
deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-
formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo
(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a
ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois
planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de
mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)
semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma
mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que
caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana
69
Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um
leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto
adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro
Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode
vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do
texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para
ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem
valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma
sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia
O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor
ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito
eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor
tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo
somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot
juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo
Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se
rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de
qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa
forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao
originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash
Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff
Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo
regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria
como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se
considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um
regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A
concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a
necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja
servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica
aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas
nacionais
70
A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua
autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de
forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos
que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo
Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans
wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a
intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves
no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para
um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar
engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES
1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James
Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido
elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que
Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da
proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo
mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas
especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute
submetido
Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e
qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente
expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e
qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer
que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda
menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender
destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo
os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo
de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma
equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo
traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence
a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de
literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem
proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma
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liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do
texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz
necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor
se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda
que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela
transcriaccedilatildeo
A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito
a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de
certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas
Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash
Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash
encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de
que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua
ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum
recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua
traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade
para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso
deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo
(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na
coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir
James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica
com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o
aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)
Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do
Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans
wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas
e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto
de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva
(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical
do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar
alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que
em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta
72
voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo
(CAMPOS 2001 p 21)
Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo
integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e
Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de
Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto
debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente
gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto
oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)
Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor
afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se
submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos
somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim
inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)
Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um
esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que
percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo
predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da
traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo
aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a
pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para
que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou
desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto
desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute
entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em
vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs
o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada
invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a
linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas
ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras
73
Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans
wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto
tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos
consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de
serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por
brasileiros Na primeira linha por exemplo
riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)
Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento
direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto
temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto
espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve
em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma
impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar
o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos
semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas
possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro
periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar
agrave ideia temporal
riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)
Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo
prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se
referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo
esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja
especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso
de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato
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pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois
personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de
forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto
de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)
Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma
outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura
mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute
a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula
rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos
Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo
ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila
uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi
a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da
ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito
das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin
uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute
em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das
primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O
marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera
nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a
traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico
uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por
todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa
mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em
Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos
os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-
se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um
possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas
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a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com
ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em
inglecircs
A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo
Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas
superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu
fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal
extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do
tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo
apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada
entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul
Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do
tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura
um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio
ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees
de tempo linguiacutestico
Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)
De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida
contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as
referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por
Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais
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Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou
perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um
impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada
O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu
desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver
mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para
qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se
contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por
mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros
que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente
entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade
como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no
entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de
fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que
existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os
diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas
de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona
Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma
(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como
uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de
vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto
de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou
um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas
sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos
Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes
resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a
pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma
disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo
pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a
traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma
metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma
pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio
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A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo
afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas
respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de
ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda
que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto
literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de
partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais
pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de
partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e
funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e
concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que
havia outrora no texto de partida
Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do
trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning
and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that
signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell
lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma
relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre
a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na
distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo
o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em
determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma
combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova
As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se
fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode
oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido
produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas
tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo
Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como
tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce
26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo
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escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de
rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas
pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce
em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do
portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso
prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que
diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts
itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto
a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma
(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como
reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo
Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas
afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido
executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado
tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura
considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado
como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para
exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de
intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio
em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema
etc independentemente do gecircnero literaacuterio
A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma
dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo
o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para
que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes
sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em
frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por
variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e
Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus
e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo
ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma
das personagens no que estiver acontecendo a cada momento
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Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver
uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em
uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado
Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria
igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo
natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio
entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la
como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes
tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem
toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)
especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando
discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo
como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela
pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela
mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa
uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime
uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra
literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a
traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee
com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou
visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa
tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto
Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto
de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios
compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos
escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou
menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por
isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as
extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas
de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio
Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala
sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel
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What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27
Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao
Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos
trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo
mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de
qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em
seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da
linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur
lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das
liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo
pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio
Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em
fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando
no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que
contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto
feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da
proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de
confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais
estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que
ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos
explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake
nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua
27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo
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Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal
de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira
de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da
traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como
eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e
olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a
definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a
cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo
do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo
ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura
hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo
apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado
ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash
no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar
ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo
Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar
destrinchaacute-lo
CAPIacuteTULO III
LEITURA LUTO ELIPSE
83
Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante
fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo
da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade
continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse
texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos
dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o
previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma
leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma
leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro
eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante
do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura
fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa
84
Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos
supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se
findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela
Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que
algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando
de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as
implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente
possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua
concepccedilatildeo
Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que
indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de
relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que
determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala
necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de
percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute
claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute
certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos
oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho
linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado
que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer
seu terreno
Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que
concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura
desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do
sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash
consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal
natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e
que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de
interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve
esse ponto com as seguintes observaccedilotildees
85
Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)
Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em
consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake
demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o
texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo
se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa
posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva
Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo
necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao
contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite
que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder
acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo
observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada
consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco
continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura
perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice
Merleau-Ponty
A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)
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Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de
leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma
estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que
se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma
leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a
obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o
nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada
ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura
ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas
possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os
fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando
dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler
qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute
o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo
desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer
como obra una e total
Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os
fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash
ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o
acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam
tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o
fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por
satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que
aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe
confere coerecircncia como obra
As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No
entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina
ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta
em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila
crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica
necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa
abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um
87
meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura
mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e
algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui
nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as
possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas
as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas
e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo
Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de
acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em
conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se
saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria
se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro
jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse
sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem
O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe
de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de
que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se
daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se
eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de
suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake
eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like
the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos
hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants
a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma
geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake
tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro
partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma
geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo
28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo
88
em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de
ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente
enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um
ponto
A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da
aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que
nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno
ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel
Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima
frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem
que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)
retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no
entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim
se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como
modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens
haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que
estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute
retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai
e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca
circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao
movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio
texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado
explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW
1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras
obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em
linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto
originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em
Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do
protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a
estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila
29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo
89
Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York
Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece
considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas
causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura
Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o
uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar
o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em
sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento
de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma
espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo
muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a
incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and
a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel
methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)
No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o
uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo
4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que
formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem
mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto
eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles
dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que
fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos
moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso
mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma
leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa
estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo
haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos
poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o
mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma
30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo
90
sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a
tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia
A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia
tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas
em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de
trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se
intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma
compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a
possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto
agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language
Laurent Milesi diz
This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31
A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos
histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells
irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake
certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo
histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria
a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando
voz perspectiva contexto
31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo
91
Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se
sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma
partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto
inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo
de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem
niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode
vir a ser em mais de uma possibilidade
A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute
operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo
entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do
Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso
pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do
texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl
Jaspers (1883-1969) diz
O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)
A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao
livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do
tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente
mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos
desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga
mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia
que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa
afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a
voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de
certa maneira aiacute jaacute natildeo existe
92
O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se
opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento
ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica
no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na
histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma
volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo
presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se
faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo
que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo
ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do
lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)
O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute
sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica
senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo
cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo
linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo
acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake
circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo
fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo
somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que
natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um
assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo
ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas
A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente
por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual
se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo
linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo
passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico
se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do
tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui
a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para
explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico
93
A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia
moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a
positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria
que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a
respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o
fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o
mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a
uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO
mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma
no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar
eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo
(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)
A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do
leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun
awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees
silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete
em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida
da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na
narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun
a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada
Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em
mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin
ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou
mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido
talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash
mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem
podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)
e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro
ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao
nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que
despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake
94
substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no
geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)
Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse
ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping
and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and
appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter
of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra
como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his
human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu
livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim
a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake
knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)
O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital
em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que
Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim
como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem
correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica
em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender
e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que
lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a
Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que
podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash
que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita
Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com
uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens
nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na
incontornaacutevel indefiniccedilatildeo
32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo
95
Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos
mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao
desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um
dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to
complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo
contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na
ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual
poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute
tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin
surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um
cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo
para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se
demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta
demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos
pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem
cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no
parque em questatildeo
They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36
35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo
96
Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no
espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin
of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker
fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos
tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante
Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na
expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse
mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se
desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente
abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido
Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall
pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as
absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do
texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com
clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se
em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos
e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que
apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix
Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim
como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de
conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma
Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por
indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz
em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama
wakiana
Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall
contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a
ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo
ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they
took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que
37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo
97
se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees
parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da
personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual
mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se
apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar
com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado
Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como
seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que
compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no
rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto
permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os
ausentes
Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como
pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco
cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua
determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se
possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais
uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda
Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma
divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em
que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo
Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho
do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como
origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute
uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees
de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar
o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em
que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois
estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam
em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da
autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto
98
Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)
Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai
por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a
perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o
que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido
precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute
desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura
para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um
resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente
livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)
De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de
concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute
alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na
necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na
busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da
libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto
racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo
normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo
proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam
homenagens seu enterro e seu descanso
Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough
99
Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38
Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo
apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro
subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos
egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do
que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos
poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais
de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos
que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram
chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que
haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte
experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do
percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao
contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um
caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de
barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na
verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia
38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo
100
No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey
Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade
satildeo numerosas
Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39
all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40
But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41
As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam
tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-
se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos
divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake
natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no
luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras
realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais
ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se
dissolvem
O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e
entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade
de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que
isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim
como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga
39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
101
no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute
o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o
mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha
de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger
Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no
que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um
significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais
Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve
considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas
eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que
diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-
los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de
Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado
partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure
No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)
Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam
ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer
para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com
significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais
102
parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo
portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a
materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns
momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual
O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma
concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund
Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer
regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou
ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia
de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera
as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui
invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce
uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas
para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo
produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo
seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente
que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente
irrecuperaacutevel
Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu
ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado
de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao
menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da
obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por
uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura
o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida
Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter
103
nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42
A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio
de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans
wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor
irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no
The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da
dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in
allrdquo como em Finnegans wake
Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques
Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz
solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear
portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo
em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo
discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa
apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por
mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito
mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja
reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse
modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos
textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma
ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva
42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo
104
vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas
escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A
conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque
comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra
maneirardquo (Ibid)
Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao
sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo
fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-
se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans
wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e
organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar
dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de
qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma
numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao
desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo
e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a
certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso
arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra
Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le
sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques
Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos
Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que
diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel
Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa
mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz
Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)
105
Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em
uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras
linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte
supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz
profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute
nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo
semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito
alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras
distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa
medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de
uma barreira temporal
Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do
iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando
univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo
de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau
chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que
se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem
por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na
escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na
linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido
diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca
por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o
maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no
entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do
alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se
farta dela
Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao
leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de
suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores
como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar
algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria
idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo
106
estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma
Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)
e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de
comunicaccedilatildeo
Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43
No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo
assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem
um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento
pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto
literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior
especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre
todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia
de remetimentos infinita
Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na
passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao
mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em
articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria
na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente
43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo
107
por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro
sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011
p 385)
Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela
liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase
concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de
escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura
talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e
do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade
CAPIacuteTULO IV
FLUIR E RETORNO
109
O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um
problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da
existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar
as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do
sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica
de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da
tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda
de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da
mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se
podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da
cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)
110
Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria
profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso
aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees
O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de
temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que
Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase
cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do
que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue
poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam
a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a
personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash
que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou
deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma
pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da
realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil
ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos
rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis
No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo
surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as
primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal
e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a
mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz
respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho
In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44
44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo
111
O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua
chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que
seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu
lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e
apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e
sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome
derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente
como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu
lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na
medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma
comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo
haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de
polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade
Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como
uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente
islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave
antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando
e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas
podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna
Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete
a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a
Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo
A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica
quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que
reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma
posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de
repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah
the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de
termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar
que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica
meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis
112
Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA
fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa
loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo
com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como
habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou
ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA
2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de
maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha
especificidade
No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo
relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de
leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias
tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou
dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa
previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o
passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia
novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto
matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade
Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura
remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um
acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria
mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)
textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em
que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou
ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se
revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente
monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute
visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus
processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato
alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake
considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto
113
Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial
maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os
adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento
especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo
conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo
foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se
entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos
servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as
ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute
equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por
detraacutes da mulher-Liffey
A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala
islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito
Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo
natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo
da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem
humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida
pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo
nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra
quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem
the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e
Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como
mensageiro
Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda
essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e
hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de
Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com
professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma
conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954
publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do
uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos
114
posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu
interlocutor
A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)
Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a
encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e
essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia
espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the
name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee
deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho
indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos
remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente
verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu
lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem
mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes
intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que
Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva
possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia
de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse
isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila
em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos
capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos
sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente
caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida
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Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11
em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala
embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo
de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das
lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo
de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as
sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos
devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por
muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras
pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no
mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo
e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda
ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo
nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais
eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam
assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria
tradicionalmente a voz narrativa central
A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda
na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na
citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da
hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo
ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse
quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na
interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro
dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la
alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio
Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto
Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que
o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell
e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as
luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)
e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma
116
separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de
possibilidade remota
A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em
que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia
Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie
de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo
se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo
dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e
diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo
maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam
personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre
todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e
diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e
passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade
geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares
complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode
caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos
diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de
tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos
o coletivo como histoacuteria e memoacuteria
A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho
anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo
de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute
havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a
mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute
desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel
centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro
intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz
em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados
Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em
fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum
117
da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da
mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia
A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes
temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o
tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro
(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um
caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence
(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas
o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto
de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas
O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro
intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado
nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o
ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades
paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados
futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria
intocada
Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma
porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente
qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente
um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha
em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a
partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria
seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se
apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao
inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma
suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute
chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e
domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a
espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha
a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um
118
narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos
fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior
Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma
incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do
texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo
se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode
definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda
definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a
temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de
Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um
cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do
monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se
trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute
poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo
interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O
final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um
continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que
a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol
que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker
pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo
sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do
Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro
idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o
encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute
de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal
especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos
verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural
child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age
of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita
45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo
119
ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade
a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente
ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o
passado de fato passou
Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey
seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura
centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice
a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua
calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las
conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser
distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de
conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do
acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve
ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter
tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da
ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um
personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos
junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma
sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de
aspecto muacuteltiplo
Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem
sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais
especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a
questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de
Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e
no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem
o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade
Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-
delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido
negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo
nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele
que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin
120
Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch
retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente
trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber
sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer
tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia
Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)
Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo
concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece
em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma
ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de
todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho
interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim
partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis
desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior
possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave
ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela
temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como
aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo
Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que
o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles
mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais
aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento
vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar
desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido
pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-
do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o
121
passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa
permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute
justificada
Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)
O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha
heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga
interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por
fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία
presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de
Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz
respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-
ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-
ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de
Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico
encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente
pois o mesmo eacute pensar e ser
[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
(Frag III)
Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o
natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando
nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois
termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente
presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da
122
discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados
com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado
φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo
O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a
sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia
vocabular
Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash
quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar
um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser
eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)
o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser
esse te indico ser caminho em tudo ignoto
pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel
nem mostraacute-lo []
Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -
[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -
οὔτε φράσαις[]
(Frag II)46
O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no
momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda
assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa
necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se
estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger
46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo
123
tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre
ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa
ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa
definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional
Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas
investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida
em Marges de la philosophie (1972 1991)
O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)
Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que
Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que
seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas
vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que
ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO
ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente
ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)
isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία
significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero
sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na
forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo
que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que
forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia
ausecircncia)
A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta
124
que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)
Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura
entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em
certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto
de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel
e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente
permanecer na presenccedila estar no presente
Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que
o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute
por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a
Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica
Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central
No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um
agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo
O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)
No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro
uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda
que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o
sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se
caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo
125
gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada
entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo
Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47
Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da
coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros
de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras
que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo
instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet
no body is presente here which was not there before Only is order othered
Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada
uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o
que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes
relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit
que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que
algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)
Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o
despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se
cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma
vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma
espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso
tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de
algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia
Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja
47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo
126
com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter
fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos
reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia
de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em
que anuncia uma revinda
What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49
No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona
reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade
do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo
nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo
divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra
natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver
lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a
temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste
e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-
tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o
desaparecimentoausecircncia
49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo
127
Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)
Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo
ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave
percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta
especiacutefica do tempo
O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)
Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo
de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os
termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a
sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que
perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua
definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo
do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo
sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que
os problemas se iniciam
A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem
compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que
Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do
povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e
respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma
Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala
o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de
128
questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo
de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW
40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo
atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo
presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases
O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz
reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o
presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado
temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a
narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma
primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a
inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para
pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade
textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente
de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma
Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que
seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que
fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas
por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade
No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida
tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda
que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute
simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto
eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo
mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente
o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente
do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na
medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem
espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com
futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a
50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo
129
presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo
que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute
inevitavelmente permeada
Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como
escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir
da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a
compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans
wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute
equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma
sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da
subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo
objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso
poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na
relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo
vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como
princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo
objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera
pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia
expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu
horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o
Outro do meu tempo
Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra
Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e
que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute
somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que
nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash
menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro
incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque
somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia
ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O
reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de
que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel
130
quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia
portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o
humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o
tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o
anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu
tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos
mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o
que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa
memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo
mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se
juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para
essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances
variadas dos aspectos temporais da existecircncia
Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente
adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo
uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e
ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala
tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-
ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no
porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma
outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista
Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual
Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades
viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia
temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se
na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a
caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e
simplesmente caos
Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego
do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades
diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden
Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa
131
fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute
em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of
thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or
reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo
(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel
modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como
visiacutevel
Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem
que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e
fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos
informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e
perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a
paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash
natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que
tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um
momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e
ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas
conversas
Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53
Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o
proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite
quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas
acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e
51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)
132
especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash
ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente
mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite
funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite
sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como
se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo
acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma
ou seja qualquer) noite especiacutefica
Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente
fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas
consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para
o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da
eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo
tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode
tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo
teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement
qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo
que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade
que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo
fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo
considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho
esclarecedor entatildeo Levinas explica
Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54
54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo
133
Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para
a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa
para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma
sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo
Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle
qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra
ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como
ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade
como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o
tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica
individual
A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)
Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi
apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de
vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo
complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e
tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes
dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por
rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila
feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que
separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como
essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central
55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo
134
da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben
relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo
do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da
destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do
agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A
marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal
solitaacuteria
Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)
No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de
encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the
pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma
forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente
movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro
da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake
Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se
tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em
eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode
vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no
tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura
expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a
expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos
dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa
fludez de ricorso torrencial
56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)
135
Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo
em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um
fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos
encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no
ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre
inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com
ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute
referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos
Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa
paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da
saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um
significado riquiacutessimo
O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया
pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o
crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da
madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois
opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo
entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem
somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto
de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver
Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais
um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto
iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma
e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por
exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz
em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele
povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente
formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade
fenomecircnica do instante
136
Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna
Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se
compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de
maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou
natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que
o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de
geraccedilotildees com a passagem do tempo
And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58
Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos
Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das
memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes
Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-
1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e
preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao
protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural
que metaforiza o das relaccedilotildees familiares
O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento
circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a
impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim
entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que
natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se
faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que
57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)
137
se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento
desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda
permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel
a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes
A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos
que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de
NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo
antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem
desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da
substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem
aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o
nascer do Sol
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
139
Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una
de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural
Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos
importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto
intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas
Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que
podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo
aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake
Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro
com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo
abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente
140
Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o
problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a
uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute
possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a
uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de
lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a
heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que
podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam
ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um
sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os
guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se
antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende
abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser
dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute
uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura
precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse
Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas
escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem
porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o
Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam
Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma
sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O
ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de
qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso
afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um
livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a
seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e
abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees
de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das
obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo
do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para
ser questionado
141
O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o
excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e
da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a
separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce
A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada
pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo
qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia
(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in
TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em
tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo
eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente
limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa
talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura
tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida
No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na
problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge
para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma
relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume
Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna
Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no
capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento
e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando
o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno
assinala-se que
Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)
60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)
142
Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um
sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego
ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem
citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em
geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)
exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo
que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim
permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos
com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural
Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um
defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa
que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake
eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas
apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como
todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em
hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que
estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida
ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria
um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o
que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que
se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por
mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio
em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da
literatura
Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)
143
Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito
ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao
despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair
do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo
proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele
vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas
palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o
sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se
mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em
nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e
multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e
do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos
polifocircnicos
Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao
texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura
eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na
ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva
a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute
constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e
nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo
escritural
Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)
Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees
diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram
aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece
com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada
irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de
144
uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no
chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana
oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta
uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a
leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do
senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente
dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias
tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada
de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por
conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam
acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo
clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa
Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre
circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos
moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se
tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular
do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu
caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra
a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem
redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade
145
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Literaacuteria e Literaturas da Universidade de Brasiacutelia aprovada pela banca examinadora
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2014
____________________________________________________________________
Dr Piero Luis Zanetti Eyben
Universidade de Brasiacutelia mdash Presidente
____________________________________________________________________
Dr Caetano Waldrigues Galindo
Universidade Federal do Paranaacute mdash Membro Externo
____________________________________________________________________
Dr Henryk Siewierski
Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno
____________________________________________________________________
Dra Cristina Maria Teixeira Stevens
Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno ndash Suplente
aos meus pais
AGRADECIMENTOS
Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria
ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada
First we feel Then we fall
(FW 62711)
Now follow we out by Starloe
(FW 38230)
Resumo
FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p
Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto
como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce
(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial
a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo
Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das
investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu
paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva
compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone
da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de
Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do
proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho
eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos
as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como
abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o
tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de
James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem
como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente
dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur
Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia
Abstract
FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation
Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p
This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well
as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish
author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes
through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The
ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is
reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the
investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova
(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic
vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones
in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake
ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself
its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel
Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the
possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support
of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is
also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for
James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the
investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history
of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin
Heidegger and Paul Ricoeur
Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11
CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30
1 Algo parecido com nada 31
2 Sui generis38
3 Fluidez vida-morte46
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51
CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64
CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82
CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138
BIBLIOGRAFIA145
INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS
Hightime is ups be it down into outs according
Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1
(FW 23916)
1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim
12
Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto
Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo
de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de
repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees
de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos
depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-
lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de
janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de
Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de
tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as
quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas
13
O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por
algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo
de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que
Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua
produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem
natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que
leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no
primeiro contato com o Wake)
Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro
de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de
dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca
de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso
passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar
melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e
ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor
Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo
de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das
figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns
elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus
mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados
por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha
de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs
que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao
ocorrido
Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett
apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles
que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de
sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria
editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The
New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou
ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido
Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito
14
concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903
e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o
iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The
Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados
Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo
teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que
comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do
irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante
de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto
Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da
Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de
Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de
Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a
primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da
coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929
Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress
Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas
das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first
that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure
the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos
1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e
simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les
amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila
pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se
somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter
se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que
ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach
se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do
totalitarismo nazista
2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo
15
In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3
Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene
Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em
Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles
em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu
tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de
James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e
artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa
especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene
Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo
norte-americano Richard Ellmann
Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)
Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra
de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que
seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na
proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria
sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva
Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris
3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos
16
contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos
depois de sua fundaccedilatildeo em 1968
Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de
James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915
que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da
rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-
Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-
americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por
um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost
em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria
especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de
famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que
abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta
parceria
Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que
tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A
moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce
contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a
publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook
(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde
1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito
por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo
quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais
durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work
in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio
depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na
Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan
Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma
acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o
proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por
acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido
17
publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros
convites anteriores mas acabou cedendo
Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto
posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute
alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem
negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake
pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da
ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver
que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim
de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava
escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar
pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas
escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente
emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p
728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da
morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash
que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda
da Irlanda
Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais
aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos
finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito
do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe
restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou
a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou
a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure
for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5
(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma
tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound
se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito
5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)
18
elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras
ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a
good poet and without exception the best of the younger prose writers His style
has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of
erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather
overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)
A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a
obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra
coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in
progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work
in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava
nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por
Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que
publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4
de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett
Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot
Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e
William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo
contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de
negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos
extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram
criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby
e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon
ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs
Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e
Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio
Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada
6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)
19
O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na
publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce
Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil
para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando
numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo
ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero
Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e
Eugene Jolas
Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se
conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se
estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade
Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake
especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos
imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal
o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro
de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos
certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo
mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali
nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans
wake esperando uma leitura tradicional
You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8
8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo
20
O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a
linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao
remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez
de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do
acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente
ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais
coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo
sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de
palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a
ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem
em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa
argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que
Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do
estudioso Seamus Deane
Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9
Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades
estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios
que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O
leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de
sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se
prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense
ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes
disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em
si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto
9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo
21
virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada
termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem
ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma
uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo
textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras
por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo
Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-
lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se
Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e
relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees
oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se
propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to
Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em
1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica
A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall
tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura
do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes
Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela
proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de
Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to
the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to
Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais
amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)
William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e
facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final
de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que
seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas
sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma
maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority
on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969
22
pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre
Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas
William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de
joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa
mesma introduccedilatildeo
Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11
De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans
wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel
Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das
comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre
perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses
ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p
617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake
que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a
caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o
inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da
seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do
que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou
adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar
de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza
10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo
23
Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em
Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as
direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer
esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash
Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em
Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem
fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake
e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo
que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma
primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)
Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo
foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e
premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)
teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual
a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas
as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que
compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da
tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um
dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei
descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de
impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as
12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)
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publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por
ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt
entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se
propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall
publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo
para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo
(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao
Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade
um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se
entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas
que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o
momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em
prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das
fronteiras
No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de
grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes
leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e
Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo
foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo
dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os
irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente
natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar
a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como
especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do
Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o
que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute
nos anos 1960
13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som
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Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)
traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs
alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego
contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os
poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que
traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente
dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos
A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe
consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de
leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou
essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao
seu trabalho de traduccedilatildeo
Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo
de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees
e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi
executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu
Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo
do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em
suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele
acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo
semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos
elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de
James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos
(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante
e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas
a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita
por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as
Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o
livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick
do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia
Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil
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Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans
wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre
as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como
pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo
natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos
maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A
intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as
dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por
contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e
contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria
um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons
Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados
sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute
velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e
ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se
acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal
e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto
impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra
como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda
os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos
literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel
e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico
e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa
Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e
agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto
desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais
destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre
literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura
do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem
que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash
um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto
Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos
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para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a
percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser
selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados
Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra
um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que
considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees
brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de
fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)
diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades
de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo
de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias
elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura
especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o
Finnegans wake de James Joyce (2009)
Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de
Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente
conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto
e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento
imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem
relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo
muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo
tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua
parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua
esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que
tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas
as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns
momentos
14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano
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A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece
ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de
preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um
livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada
aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O
que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro
complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse
tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma
maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez
mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando
tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo
atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees
agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e
acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das
consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo
marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa
compreensatildeo algo produtivo
Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho
acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre
literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido
ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em
primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou
natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave
literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No
entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu
caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute
diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash
desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente
conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de
recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de
julgar
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Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute
nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas
medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva
encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as
produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de
cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que
foi criada frente ao Finnegans wake
O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos
normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de
Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de
julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja
talvez no molde
CAPIacuteTULO I
WAKE EM PAUTA
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1 Algo parecido com nada
A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos
foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo
que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando
ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas
Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma
recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em
uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos
Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter
pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia
mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas
acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma
seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria
32
No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi
o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que
natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela
convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de
eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a
perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute
o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo
(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos
entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees
controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria
conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda
maiores do que em suas produccedilotildees anteriores
Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha
contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia
entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda
sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta
muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para
alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo
e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe
parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado
demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo
irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo
nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto
Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter
a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua
vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou
verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The
first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura
modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico
para a literatura
33
Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)
Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de
Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de
James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a
atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais
velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs
livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash
ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da
literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz
que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa
poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente
balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada
vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as
pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no
entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que
demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da
literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou
ficaria agrave margem dela
Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente
envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil
compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de
que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele
sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado
na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se
algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid
p 729)
34
Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe
expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao
contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que
trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso
pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura
toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre
Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente
inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem
relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante
das acusaccedilotildees de ininteligibilidade
Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)
Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que
tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph
Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da
publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel
aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na
obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada
ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por
Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do
Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo
ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem
negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam
explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem
fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os
35
obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto
a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um
estudo de alguma maneira democratizador
O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)
Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte
da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua
biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira
foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que
tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu
ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na
outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce
lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo
registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que
fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)
O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de
um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque
natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que
formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes
uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um
molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler
qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras
36
dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos
entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei
guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e
investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega
agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o
ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O
meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo
antimetoacutedico
Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta
e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o
meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989
p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo
ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras
apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de
necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e
que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser
incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de
leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)
Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas
outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo
somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi
escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou
apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez
ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma
pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de
significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja
a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou
ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que
trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o
compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos
aqui
37
O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do
tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica
perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a
concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha
desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre
como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do
italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade
constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a
problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute
possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim
pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o
que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra
obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras
tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como
qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um
livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido
como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se
perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro
defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria
literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil
compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie
de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como
acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses
Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel
uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode
ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio
de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo
apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de
literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno
Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer
no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash
sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo
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(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura
interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual
afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural
em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute
realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma
facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma
especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se
sempre novo
2 Sui generis
O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee
constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de
antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse
tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso
das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em
que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha
de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de
categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente
superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro
consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma
e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo
de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso
ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente
anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras
da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que
deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute
na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria
15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James
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que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a
gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais
longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a
normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake
pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel
inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da
publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress
Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com
sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus
caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo
claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia
inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou
talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra
Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria
com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)
tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por
faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-
riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia
para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da
letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento
nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre
dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por
Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)
Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James
Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel
afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero
o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat
language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a
afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a
de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute
16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo
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linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)
ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller
como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha
uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e
sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite
que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto
espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo
fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em
nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-
linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado
como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos
oniacutericos
De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com
Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias
raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo
merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm
Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco
anos antes
lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-
americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William
York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a
frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much
17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
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ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada
em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma
estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte
em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a
relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall
aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro
ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia
de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila
As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake
ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo
tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele
Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou
para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como
exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos
uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade
sua ameaccedila
Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se
encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que
conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na
segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer
cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de
duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma
interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os
perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se
pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa
autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala
entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que
natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso
mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra
18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo
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de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se
facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto
o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura
absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma
descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que
ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake
aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e
ameaccediladores do seacuteculo XX
Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina
O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto
um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos
sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a
um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu
aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar
com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em
diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido
reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo
se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue
como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob
diferentes olhos
Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo
da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna
No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a
separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou
qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria
sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam
por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como
lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre
aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo
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Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua
projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma
interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados
a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um
caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das
ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o
mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras
para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e
atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato
teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse
sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente
Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De
forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e
consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o
texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade
e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes
quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles
relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre
haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias
fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas
Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash
ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de
prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira
sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo
Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma
seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e
possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito
dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente
decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma
categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a
respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e
semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema
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tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto
temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito
do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante
Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como
um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa
tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como
profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para
fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras
Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de
defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram
para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por
preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras
com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do
ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta
diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno
Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)
Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer
seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e
defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos
personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as
categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente
berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com
planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o
comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta
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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos
que o infinito
Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo
Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)
Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo
descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos
arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de
ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a
primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave
maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de
verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra
se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e
diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida
considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos
uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo
de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila
Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos
a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da
caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho
platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que
pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar
cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a
cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce
estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques
Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo
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em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de
temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake
3 Fluidez vida-morte
A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de
Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas
assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando
numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo
denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o
desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso
segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo
natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute
nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de
narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o
de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty
existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller
Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de
Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se
morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem
por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome
de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur
(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos
ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que
retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua
ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee
e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como
Caim e Abel Rocircmulo e Remo)
Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o
tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou
mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen
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underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo
somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de
definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute
seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide
Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece
ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake
garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden
Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres
que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo
mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua
continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as
necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu
direcionamento
Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas
maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente
distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo
nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que
todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de
maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as
chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com
significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem
nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto
literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo
Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas
do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a
enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que
frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia
palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos
aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele
demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que
19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
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rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm
confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos
lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar
categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos
concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo
pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo
estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que
permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se
desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento
Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa
que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de
que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que
nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de
leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o
contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em
subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar
qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria
essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina
Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de
instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita
de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do
intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto
que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute
anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da
morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz
novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo
Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans
wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas
sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal
O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso
natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes
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recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente
explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente
perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da
audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz
recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz
alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo
da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo
como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua
exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave
simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos
caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto
de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz
de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta
A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou
espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma
autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente
agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que
Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao
leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo
primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer
um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita
certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada
ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo
comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um
multiverso em detrimento de um universo
Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras
fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se
propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho
meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute
o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas
tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando
Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna
50
caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for
colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro
ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake
No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta
pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem
acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta
como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor
eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-
problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar
possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou
que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho
e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e
nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie
de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que
sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco
narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se
estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de
como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute
necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de
outras consequecircncias
A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute
vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para
qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco
Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do
ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo
interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido
um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado
do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por
conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute
(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica
inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de
Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico
51
apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de
arte moderna
Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que
podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um
acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade
simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada
narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena
eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena
ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao
leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista
objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em
primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique
de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar
a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria
possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto
mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse
acompanhamento
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica
A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que
permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem
autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro
acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos
sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas
natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra
o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na
concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas
natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro
de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao
contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que
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o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista
como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro
A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)
Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se
vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do
enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo
possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e
limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o
texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de
formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio
Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor
do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e
Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans
wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo
XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do
que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma
ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa
na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo
cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico
proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo
semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O
leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel
mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos
sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como
em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que
21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo
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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se
acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico
natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da
negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um
outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo
que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans
wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se
o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta
A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em
afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce
dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha
tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e
chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos
psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans
wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento
da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca
Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit
on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como
muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a
citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser
encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em
duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando
ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra
sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold
sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen
certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico
ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce
respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce
quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN
1989 p 853)
Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma
simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras
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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela
[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo
ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora
do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado
Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia
percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus
poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma
exemplificaccedilatildeo de insanidade
Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a
Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos
elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo
de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a
relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos
distintos e simultacircneos na obra de Joyce
Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)
Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo
maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com
Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior
Ulysses
Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)
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Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma
que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas
possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se
entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer
paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas
caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem
paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente
disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode
ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para
outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo
III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda
inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e
ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey
Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub
Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o
Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em
portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia
desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave
condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho
feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna
criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto
formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida
em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No
entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse
um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo
para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto
ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada
tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento
do Wake
A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo
bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma
importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute
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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do
aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que
os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe
apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a
muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A
aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o
autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber
Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente
meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias
(como eacute conhecido) de Ulysses
Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a
respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era
uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence
White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce
respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de
entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma
composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em
muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa
forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees
persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas
de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha
recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira
executiva
O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo
3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in
feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em
cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou
sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo
tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA
identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se
fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a
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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio
que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate
casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente
barulhento
Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22
For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23
Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24
Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas
bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de
pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir
palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo
do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute
consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado
22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)
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previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que
continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais
musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui
unido a Shem
Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans
wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria
como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a
leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como
muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona
diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva
e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente
mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa
comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo
Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)
A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto
a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura
em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando
decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua
evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e
natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A
essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte
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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais
do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas
que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo
aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um
princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica
Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a
obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o
seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto
joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os
quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia
temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas
satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao
contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem
destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas
de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim
como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas
executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na
promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do
papel
Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos
fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de
elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma
delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator
inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons
mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor
deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)
intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor
em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de
entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as
consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem
subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de
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qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees
preacute-existentes
O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto
a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa
sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha
A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que
tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros
que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos
faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans
wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes
caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a
figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade
wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos
iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a
circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou
Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois
engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas
repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que
acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance
com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da
mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado
A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de
relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a
operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece
comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da
nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen
Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se
61
voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)
Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo
obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa
interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam
evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma
oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo
receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade
tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto
na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute
dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave
Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como
operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como
transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a
posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)
Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura
semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees
de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua
leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem
fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das
formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo
foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que
seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de
frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem
a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente
o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a
62
comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos
foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em
uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute
criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica
ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional
de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25
Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade
semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa
a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que
jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica
implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo
capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee
Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as
possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral
tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por
mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura
hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de
um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do
horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez
Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem
necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos
oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho
cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a
melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez
ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute
necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em
questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha
diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira
25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo
63
homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando
ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente
decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de
assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo
Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura
do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que
flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel
Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de
algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo
precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim
destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa
ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil
de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do
texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente
colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees
criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua
complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel
CAPIacuteTULO II
FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO
65
No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na
seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des
Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos
a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p
179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como
traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto
traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou
a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo
receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave
visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora
do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio
sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua
existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa
relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos
66
A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo
produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do
idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a
exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em
detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em
literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto
expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida
inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro
evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute
perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente
por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios
notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas
e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida
bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou
sintaacuteticas
Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo
sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas
inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum
ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma
mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada
em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor
tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que
assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo
inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um
sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria
demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a
qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto
Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do
ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave
leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto
se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de
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ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e
similaridade
ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como
ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo
poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de
enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores
Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista
austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo
idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse
conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo
platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a
ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante
quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se
Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como
traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo
Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma
vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a
correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical
mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas
tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical
engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de
consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma
escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste
do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e
nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma
forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias
do que traduz
Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo
se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda
outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do
tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com
68
o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste
procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que
percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito
das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa
natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo
joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo
(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga
agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto
destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira
literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de
transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto
ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido
ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo
(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non
serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)
Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo
entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a
traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve
ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento
de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser
tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a
deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-
formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo
(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a
ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois
planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de
mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)
semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma
mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que
caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana
69
Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um
leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto
adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro
Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode
vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do
texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para
ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem
valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma
sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia
O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor
ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito
eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor
tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo
somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot
juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo
Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se
rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de
qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa
forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao
originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash
Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff
Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo
regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria
como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se
considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um
regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A
concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a
necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja
servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica
aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas
nacionais
70
A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua
autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de
forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos
que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo
Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans
wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a
intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves
no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para
um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar
engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES
1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James
Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido
elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que
Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da
proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo
mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas
especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute
submetido
Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e
qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente
expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e
qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer
que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda
menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender
destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo
os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo
de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma
equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo
traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence
a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de
literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem
proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma
71
liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do
texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz
necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor
se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda
que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela
transcriaccedilatildeo
A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito
a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de
certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas
Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash
Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash
encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de
que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua
ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum
recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua
traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade
para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso
deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo
(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na
coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir
James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica
com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o
aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)
Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do
Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans
wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas
e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto
de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva
(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical
do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar
alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que
em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta
72
voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo
(CAMPOS 2001 p 21)
Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo
integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e
Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de
Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto
debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente
gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto
oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)
Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor
afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se
submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos
somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim
inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)
Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um
esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que
percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo
predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da
traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo
aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a
pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para
que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou
desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto
desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute
entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em
vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs
o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada
invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a
linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas
ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras
73
Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans
wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto
tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos
consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de
serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por
brasileiros Na primeira linha por exemplo
riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)
Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento
direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto
temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto
espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve
em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma
impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar
o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos
semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas
possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro
periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar
agrave ideia temporal
riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)
Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo
prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se
referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo
esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja
especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso
de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato
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pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois
personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de
forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto
de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)
Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma
outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura
mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute
a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula
rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos
Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo
ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila
uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi
a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da
ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito
das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin
uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute
em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das
primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O
marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera
nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a
traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico
uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por
todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa
mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em
Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos
os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-
se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um
possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas
75
a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com
ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em
inglecircs
A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo
Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas
superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu
fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal
extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do
tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo
apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada
entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul
Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do
tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura
um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio
ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees
de tempo linguiacutestico
Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)
De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida
contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as
referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por
Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais
76
Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou
perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um
impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada
O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu
desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver
mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para
qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se
contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por
mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros
que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente
entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade
como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no
entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de
fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que
existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os
diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas
de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona
Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma
(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como
uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de
vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto
de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou
um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas
sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos
Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes
resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a
pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma
disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo
pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a
traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma
metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma
pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio
77
A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo
afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas
respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de
ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda
que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto
literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de
partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais
pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de
partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e
funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e
concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que
havia outrora no texto de partida
Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do
trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning
and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that
signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell
lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma
relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre
a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na
distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo
o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em
determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma
combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova
As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se
fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode
oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido
produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas
tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo
Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como
tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce
26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo
78
escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de
rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas
pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce
em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do
portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso
prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que
diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts
itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto
a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma
(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como
reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo
Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas
afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido
executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado
tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura
considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado
como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para
exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de
intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio
em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema
etc independentemente do gecircnero literaacuterio
A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma
dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo
o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para
que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes
sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em
frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por
variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e
Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus
e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo
ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma
das personagens no que estiver acontecendo a cada momento
79
Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver
uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em
uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado
Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria
igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo
natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio
entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la
como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes
tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem
toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)
especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando
discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo
como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela
pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela
mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa
uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime
uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra
literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a
traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee
com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou
visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa
tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto
Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto
de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios
compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos
escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou
menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por
isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as
extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas
de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio
Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala
sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel
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What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27
Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao
Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos
trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo
mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de
qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em
seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da
linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur
lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das
liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo
pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio
Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em
fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando
no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que
contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto
feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da
proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de
confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais
estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que
ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos
explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake
nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua
27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo
81
Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal
de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira
de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da
traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como
eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e
olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a
definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a
cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo
do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo
ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura
hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo
apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado
ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash
no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar
ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo
Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar
destrinchaacute-lo
CAPIacuteTULO III
LEITURA LUTO ELIPSE
83
Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante
fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo
da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade
continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse
texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos
dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o
previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma
leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma
leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro
eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante
do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura
fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa
84
Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos
supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se
findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela
Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que
algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando
de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as
implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente
possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua
concepccedilatildeo
Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que
indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de
relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que
determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala
necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de
percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute
claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute
certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos
oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho
linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado
que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer
seu terreno
Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que
concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura
desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do
sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash
consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal
natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e
que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de
interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve
esse ponto com as seguintes observaccedilotildees
85
Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)
Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em
consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake
demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o
texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo
se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa
posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva
Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo
necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao
contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite
que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder
acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo
observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada
consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco
continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura
perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice
Merleau-Ponty
A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)
86
Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de
leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma
estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que
se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma
leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a
obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o
nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada
ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura
ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas
possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os
fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando
dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler
qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute
o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo
desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer
como obra una e total
Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os
fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash
ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o
acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam
tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o
fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por
satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que
aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe
confere coerecircncia como obra
As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No
entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina
ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta
em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila
crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica
necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa
abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um
87
meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura
mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e
algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui
nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as
possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas
as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas
e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo
Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de
acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em
conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se
saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria
se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro
jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse
sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem
O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe
de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de
que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se
daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se
eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de
suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake
eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like
the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos
hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants
a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma
geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake
tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro
partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma
geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo
28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo
88
em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de
ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente
enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um
ponto
A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da
aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que
nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno
ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel
Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima
frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem
que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)
retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no
entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim
se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como
modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens
haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que
estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute
retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai
e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca
circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao
movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio
texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado
explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW
1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras
obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em
linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto
originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em
Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do
protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a
estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila
29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo
89
Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York
Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece
considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas
causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura
Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o
uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar
o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em
sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento
de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma
espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo
muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a
incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and
a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel
methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)
No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o
uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo
4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que
formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem
mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto
eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles
dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que
fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos
moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso
mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma
leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa
estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo
haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos
poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o
mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma
30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo
90
sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a
tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia
A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia
tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas
em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de
trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se
intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma
compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a
possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto
agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language
Laurent Milesi diz
This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31
A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos
histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells
irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake
certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo
histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria
a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando
voz perspectiva contexto
31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo
91
Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se
sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma
partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto
inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo
de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem
niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode
vir a ser em mais de uma possibilidade
A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute
operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo
entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do
Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso
pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do
texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl
Jaspers (1883-1969) diz
O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)
A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao
livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do
tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente
mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos
desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga
mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia
que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa
afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a
voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de
certa maneira aiacute jaacute natildeo existe
92
O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se
opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento
ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica
no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na
histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma
volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo
presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se
faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo
que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo
ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do
lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)
O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute
sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica
senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo
cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo
linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo
acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake
circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo
fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo
somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que
natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um
assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo
ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas
A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente
por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual
se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo
linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo
passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico
se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do
tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui
a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para
explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico
93
A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia
moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a
positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria
que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a
respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o
fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o
mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a
uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO
mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma
no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar
eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo
(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)
A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do
leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun
awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees
silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete
em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida
da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na
narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun
a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada
Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em
mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin
ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou
mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido
talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash
mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem
podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)
e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro
ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao
nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que
despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake
94
substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no
geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)
Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse
ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping
and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and
appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter
of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra
como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his
human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu
livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim
a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake
knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)
O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital
em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que
Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim
como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem
correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica
em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender
e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que
lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a
Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que
podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash
que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita
Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com
uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens
nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na
incontornaacutevel indefiniccedilatildeo
32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo
95
Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos
mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao
desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um
dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to
complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo
contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na
ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual
poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute
tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin
surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um
cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo
para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se
demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta
demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos
pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem
cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no
parque em questatildeo
They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36
35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo
96
Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no
espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin
of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker
fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos
tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante
Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na
expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse
mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se
desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente
abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido
Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall
pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as
absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do
texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com
clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se
em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos
e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que
apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix
Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim
como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de
conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma
Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por
indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz
em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama
wakiana
Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall
contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a
ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo
ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they
took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que
37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo
97
se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees
parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da
personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual
mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se
apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar
com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado
Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como
seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que
compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no
rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto
permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os
ausentes
Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como
pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco
cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua
determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se
possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais
uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda
Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma
divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em
que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo
Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho
do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como
origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute
uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees
de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar
o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em
que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois
estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam
em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da
autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto
98
Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)
Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai
por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a
perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o
que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido
precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute
desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura
para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um
resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente
livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)
De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de
concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute
alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na
necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na
busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da
libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto
racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo
normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo
proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam
homenagens seu enterro e seu descanso
Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough
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Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38
Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo
apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro
subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos
egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do
que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos
poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais
de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos
que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram
chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que
haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte
experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do
percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao
contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um
caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de
barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na
verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia
38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo
100
No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey
Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade
satildeo numerosas
Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39
all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40
But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41
As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam
tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-
se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos
divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake
natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no
luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras
realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais
ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se
dissolvem
O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e
entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade
de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que
isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim
como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga
39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
101
no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute
o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o
mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha
de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger
Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no
que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um
significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais
Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve
considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas
eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que
diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-
los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de
Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado
partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure
No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)
Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam
ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer
para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com
significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais
102
parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo
portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a
materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns
momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual
O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma
concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund
Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer
regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou
ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia
de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera
as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui
invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce
uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas
para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo
produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo
seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente
que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente
irrecuperaacutevel
Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu
ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado
de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao
menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da
obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por
uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura
o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida
Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter
103
nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42
A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio
de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans
wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor
irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no
The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da
dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in
allrdquo como em Finnegans wake
Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques
Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz
solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear
portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo
em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo
discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa
apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por
mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito
mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja
reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse
modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos
textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma
ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva
42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo
104
vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas
escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A
conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque
comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra
maneirardquo (Ibid)
Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao
sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo
fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-
se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans
wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e
organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar
dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de
qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma
numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao
desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo
e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a
certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso
arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra
Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le
sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques
Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos
Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que
diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel
Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa
mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz
Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)
105
Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em
uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras
linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte
supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz
profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute
nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo
semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito
alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras
distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa
medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de
uma barreira temporal
Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do
iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando
univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo
de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau
chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que
se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem
por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na
escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na
linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido
diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca
por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o
maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no
entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do
alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se
farta dela
Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao
leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de
suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores
como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar
algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria
idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo
106
estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma
Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)
e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de
comunicaccedilatildeo
Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43
No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo
assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem
um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento
pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto
literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior
especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre
todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia
de remetimentos infinita
Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na
passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao
mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em
articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria
na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente
43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo
107
por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro
sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011
p 385)
Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela
liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase
concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de
escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura
talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e
do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade
CAPIacuteTULO IV
FLUIR E RETORNO
109
O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um
problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da
existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar
as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do
sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica
de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da
tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda
de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da
mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se
podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da
cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)
110
Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria
profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso
aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees
O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de
temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que
Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase
cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do
que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue
poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam
a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a
personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash
que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou
deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma
pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da
realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil
ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos
rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis
No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo
surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as
primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal
e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a
mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz
respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho
In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44
44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo
111
O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua
chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que
seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu
lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e
apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e
sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome
derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente
como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu
lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na
medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma
comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo
haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de
polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade
Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como
uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente
islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave
antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando
e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas
podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna
Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete
a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a
Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo
A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica
quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que
reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma
posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de
repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah
the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de
termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar
que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica
meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis
112
Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA
fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa
loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo
com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como
habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou
ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA
2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de
maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha
especificidade
No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo
relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de
leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias
tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou
dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa
previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o
passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia
novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto
matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade
Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura
remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um
acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria
mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)
textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em
que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou
ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se
revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente
monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute
visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus
processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato
alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake
considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto
113
Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial
maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os
adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento
especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo
conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo
foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se
entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos
servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as
ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute
equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por
detraacutes da mulher-Liffey
A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala
islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito
Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo
natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo
da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem
humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida
pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo
nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra
quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem
the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e
Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como
mensageiro
Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda
essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e
hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de
Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com
professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma
conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954
publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do
uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos
114
posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu
interlocutor
A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)
Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a
encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e
essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia
espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the
name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee
deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho
indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos
remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente
verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu
lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem
mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes
intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que
Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva
possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia
de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse
isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila
em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos
capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos
sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente
caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida
115
Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11
em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala
embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo
de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das
lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo
de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as
sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos
devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por
muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras
pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no
mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo
e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda
ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo
nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais
eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam
assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria
tradicionalmente a voz narrativa central
A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda
na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na
citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da
hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo
ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse
quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na
interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro
dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la
alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio
Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto
Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que
o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell
e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as
luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)
e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma
116
separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de
possibilidade remota
A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em
que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia
Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie
de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo
se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo
dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e
diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo
maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam
personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre
todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e
diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e
passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade
geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares
complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode
caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos
diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de
tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos
o coletivo como histoacuteria e memoacuteria
A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho
anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo
de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute
havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a
mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute
desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel
centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro
intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz
em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados
Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em
fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum
117
da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da
mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia
A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes
temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o
tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro
(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um
caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence
(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas
o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto
de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas
O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro
intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado
nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o
ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades
paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados
futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria
intocada
Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma
porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente
qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente
um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha
em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a
partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria
seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se
apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao
inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma
suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute
chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e
domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a
espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha
a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um
118
narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos
fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior
Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma
incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do
texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo
se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode
definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda
definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a
temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de
Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um
cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do
monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se
trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute
poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo
interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O
final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um
continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que
a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol
que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker
pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo
sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do
Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro
idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o
encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute
de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal
especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos
verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural
child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age
of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita
45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo
119
ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade
a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente
ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o
passado de fato passou
Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey
seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura
centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice
a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua
calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las
conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser
distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de
conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do
acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve
ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter
tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da
ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um
personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos
junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma
sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de
aspecto muacuteltiplo
Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem
sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais
especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a
questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de
Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e
no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem
o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade
Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-
delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido
negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo
nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele
que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin
120
Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch
retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente
trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber
sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer
tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia
Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)
Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo
concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece
em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma
ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de
todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho
interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim
partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis
desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior
possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave
ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela
temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como
aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo
Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que
o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles
mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais
aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento
vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar
desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido
pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-
do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o
121
passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa
permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute
justificada
Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)
O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha
heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga
interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por
fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία
presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de
Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz
respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-
ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-
ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de
Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico
encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente
pois o mesmo eacute pensar e ser
[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
(Frag III)
Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o
natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando
nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois
termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente
presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da
122
discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados
com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado
φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo
O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a
sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia
vocabular
Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash
quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar
um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser
eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)
o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser
esse te indico ser caminho em tudo ignoto
pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel
nem mostraacute-lo []
Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -
[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -
οὔτε φράσαις[]
(Frag II)46
O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no
momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda
assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa
necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se
estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger
46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo
123
tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre
ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa
ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa
definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional
Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas
investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida
em Marges de la philosophie (1972 1991)
O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)
Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que
Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que
seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas
vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que
ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO
ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente
ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)
isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία
significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero
sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na
forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo
que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que
forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia
ausecircncia)
A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta
124
que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)
Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura
entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em
certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto
de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel
e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente
permanecer na presenccedila estar no presente
Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que
o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute
por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a
Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica
Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central
No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um
agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo
O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)
No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro
uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda
que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o
sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se
caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo
125
gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada
entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo
Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47
Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da
coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros
de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras
que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo
instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet
no body is presente here which was not there before Only is order othered
Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada
uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o
que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes
relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit
que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que
algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)
Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o
despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se
cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma
vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma
espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso
tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de
algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia
Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja
47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo
126
com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter
fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos
reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia
de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em
que anuncia uma revinda
What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49
No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona
reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade
do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo
nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo
divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra
natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver
lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a
temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste
e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-
tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o
desaparecimentoausecircncia
49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo
127
Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)
Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo
ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave
percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta
especiacutefica do tempo
O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)
Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo
de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os
termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a
sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que
perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua
definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo
do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo
sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que
os problemas se iniciam
A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem
compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que
Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do
povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e
respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma
Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala
o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de
128
questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo
de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW
40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo
atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo
presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases
O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz
reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o
presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado
temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a
narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma
primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a
inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para
pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade
textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente
de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma
Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que
seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que
fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas
por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade
No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida
tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda
que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute
simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto
eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo
mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente
o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente
do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na
medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem
espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com
futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a
50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo
129
presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo
que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute
inevitavelmente permeada
Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como
escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir
da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a
compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans
wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute
equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma
sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da
subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo
objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso
poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na
relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo
vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como
princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo
objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera
pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia
expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu
horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o
Outro do meu tempo
Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra
Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e
que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute
somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que
nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash
menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro
incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque
somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia
ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O
reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de
que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel
130
quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia
portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o
humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o
tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o
anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu
tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos
mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o
que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa
memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo
mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se
juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para
essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances
variadas dos aspectos temporais da existecircncia
Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente
adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo
uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e
ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala
tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-
ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no
porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma
outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista
Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual
Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades
viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia
temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se
na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a
caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e
simplesmente caos
Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego
do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades
diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden
Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa
131
fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute
em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of
thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or
reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo
(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel
modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como
visiacutevel
Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem
que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e
fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos
informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e
perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a
paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash
natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que
tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um
momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e
ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas
conversas
Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53
Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o
proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite
quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas
acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e
51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)
132
especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash
ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente
mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite
funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite
sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como
se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo
acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma
ou seja qualquer) noite especiacutefica
Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente
fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas
consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para
o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da
eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo
tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode
tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo
teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement
qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo
que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade
que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo
fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo
considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho
esclarecedor entatildeo Levinas explica
Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54
54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo
133
Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para
a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa
para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma
sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo
Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle
qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra
ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como
ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade
como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o
tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica
individual
A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)
Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi
apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de
vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo
complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e
tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes
dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por
rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila
feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que
separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como
essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central
55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo
134
da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben
relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo
do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da
destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do
agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A
marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal
solitaacuteria
Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)
No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de
encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the
pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma
forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente
movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro
da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake
Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se
tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em
eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode
vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no
tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura
expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a
expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos
dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa
fludez de ricorso torrencial
56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)
135
Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo
em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um
fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos
encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no
ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre
inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com
ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute
referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos
Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa
paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da
saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um
significado riquiacutessimo
O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया
pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o
crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da
madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois
opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo
entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem
somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto
de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver
Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais
um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto
iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma
e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por
exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz
em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele
povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente
formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade
fenomecircnica do instante
136
Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna
Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se
compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de
maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou
natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que
o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de
geraccedilotildees com a passagem do tempo
And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58
Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos
Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das
memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes
Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-
1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e
preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao
protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural
que metaforiza o das relaccedilotildees familiares
O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento
circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a
impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim
entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que
natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se
faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que
57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)
137
se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento
desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda
permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel
a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes
A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos
que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de
NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo
antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem
desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da
substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem
aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o
nascer do Sol
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
139
Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una
de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural
Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos
importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto
intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas
Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que
podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo
aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake
Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro
com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo
abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente
140
Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o
problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a
uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute
possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a
uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de
lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a
heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que
podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam
ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um
sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os
guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se
antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende
abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser
dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute
uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura
precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse
Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas
escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem
porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o
Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam
Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma
sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O
ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de
qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso
afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um
livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a
seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e
abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees
de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das
obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo
do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para
ser questionado
141
O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o
excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e
da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a
separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce
A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada
pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo
qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia
(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in
TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em
tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo
eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente
limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa
talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura
tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida
No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na
problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge
para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma
relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume
Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna
Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no
capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento
e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando
o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno
assinala-se que
Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)
60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)
142
Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um
sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego
ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem
citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em
geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)
exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo
que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim
permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos
com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural
Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um
defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa
que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake
eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas
apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como
todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em
hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que
estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida
ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria
um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o
que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que
se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por
mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio
em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da
literatura
Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)
143
Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito
ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao
despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair
do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo
proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele
vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas
palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o
sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se
mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em
nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e
multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e
do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos
polifocircnicos
Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao
texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura
eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na
ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva
a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute
constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e
nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo
escritural
Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)
Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees
diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram
aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece
com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada
irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de
144
uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no
chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana
oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta
uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a
leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do
senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente
dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias
tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada
de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por
conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam
acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo
clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa
Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre
circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos
moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se
tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular
do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu
caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra
a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem
redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade
145
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aos meus pais
AGRADECIMENTOS
Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria
ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada
First we feel Then we fall
(FW 62711)
Now follow we out by Starloe
(FW 38230)
Resumo
FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p
Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto
como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce
(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial
a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo
Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das
investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu
paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva
compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone
da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de
Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do
proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho
eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos
as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como
abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o
tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de
James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem
como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente
dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur
Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia
Abstract
FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation
Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p
This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well
as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish
author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes
through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The
ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is
reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the
investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova
(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic
vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones
in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake
ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself
its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel
Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the
possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support
of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is
also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for
James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the
investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history
of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin
Heidegger and Paul Ricoeur
Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11
CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30
1 Algo parecido com nada 31
2 Sui generis38
3 Fluidez vida-morte46
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51
CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64
CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82
CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138
BIBLIOGRAFIA145
INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS
Hightime is ups be it down into outs according
Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1
(FW 23916)
1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim
12
Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto
Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo
de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de
repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees
de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos
depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-
lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de
janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de
Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de
tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as
quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas
13
O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por
algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo
de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que
Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua
produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem
natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que
leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no
primeiro contato com o Wake)
Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro
de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de
dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca
de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso
passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar
melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e
ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor
Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo
de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das
figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns
elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus
mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados
por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha
de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs
que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao
ocorrido
Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett
apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles
que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de
sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria
editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The
New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou
ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido
Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito
14
concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903
e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o
iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The
Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados
Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo
teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que
comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do
irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante
de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto
Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da
Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de
Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de
Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a
primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da
coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929
Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress
Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas
das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first
that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure
the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos
1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e
simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les
amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila
pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se
somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter
se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que
ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach
se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do
totalitarismo nazista
2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo
15
In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3
Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene
Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em
Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles
em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu
tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de
James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e
artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa
especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene
Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo
norte-americano Richard Ellmann
Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)
Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra
de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que
seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na
proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria
sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva
Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris
3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos
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contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos
depois de sua fundaccedilatildeo em 1968
Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de
James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915
que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da
rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-
Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-
americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por
um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost
em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria
especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de
famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que
abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta
parceria
Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que
tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A
moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce
contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a
publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook
(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde
1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito
por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo
quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais
durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work
in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio
depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na
Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan
Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma
acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o
proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por
acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido
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publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros
convites anteriores mas acabou cedendo
Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto
posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute
alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem
negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake
pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da
ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver
que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim
de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava
escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar
pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas
escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente
emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p
728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da
morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash
que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda
da Irlanda
Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais
aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos
finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito
do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe
restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou
a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou
a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure
for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5
(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma
tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound
se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito
5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)
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elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras
ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a
good poet and without exception the best of the younger prose writers His style
has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of
erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather
overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)
A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a
obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra
coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in
progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work
in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava
nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por
Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que
publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4
de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett
Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot
Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e
William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo
contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de
negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos
extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram
criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby
e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon
ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs
Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e
Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio
Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada
6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)
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O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na
publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce
Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil
para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando
numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo
ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero
Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e
Eugene Jolas
Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se
conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se
estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade
Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake
especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos
imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal
o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro
de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos
certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo
mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali
nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans
wake esperando uma leitura tradicional
You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8
8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo
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O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a
linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao
remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez
de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do
acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente
ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais
coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo
sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de
palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a
ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem
em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa
argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que
Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do
estudioso Seamus Deane
Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9
Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades
estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios
que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O
leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de
sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se
prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense
ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes
disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em
si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto
9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo
21
virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada
termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem
ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma
uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo
textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras
por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo
Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-
lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se
Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e
relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees
oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se
propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to
Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em
1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica
A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall
tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura
do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes
Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela
proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de
Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to
the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to
Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais
amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)
William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e
facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final
de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que
seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas
sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma
maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority
on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969
22
pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre
Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas
William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de
joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa
mesma introduccedilatildeo
Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11
De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans
wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel
Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das
comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre
perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses
ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p
617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake
que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a
caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o
inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da
seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do
que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou
adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar
de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza
10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo
23
Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em
Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as
direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer
esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash
Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em
Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem
fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake
e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo
que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma
primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)
Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo
foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e
premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)
teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual
a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas
as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que
compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da
tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um
dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei
descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de
impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as
12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)
24
publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por
ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt
entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se
propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall
publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo
para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo
(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao
Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade
um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se
entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas
que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o
momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em
prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das
fronteiras
No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de
grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes
leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e
Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo
foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo
dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os
irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente
natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar
a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como
especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do
Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o
que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute
nos anos 1960
13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som
25
Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)
traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs
alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego
contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os
poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que
traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente
dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos
A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe
consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de
leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou
essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao
seu trabalho de traduccedilatildeo
Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo
de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees
e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi
executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu
Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo
do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em
suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele
acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo
semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos
elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de
James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos
(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante
e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas
a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita
por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as
Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o
livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick
do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia
Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil
26
Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans
wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre
as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como
pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo
natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos
maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A
intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as
dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por
contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e
contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria
um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons
Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados
sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute
velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e
ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se
acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal
e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto
impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra
como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda
os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos
literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel
e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico
e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa
Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e
agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto
desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais
destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre
literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura
do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem
que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash
um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto
Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos
27
para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a
percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser
selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados
Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra
um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que
considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees
brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de
fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)
diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades
de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo
de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias
elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura
especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o
Finnegans wake de James Joyce (2009)
Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de
Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente
conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto
e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento
imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem
relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo
muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo
tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua
parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua
esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que
tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas
as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns
momentos
14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano
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A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece
ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de
preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um
livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada
aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O
que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro
complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse
tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma
maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez
mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando
tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo
atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees
agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e
acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das
consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo
marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa
compreensatildeo algo produtivo
Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho
acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre
literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido
ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em
primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou
natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave
literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No
entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu
caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute
diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash
desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente
conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de
recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de
julgar
29
Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute
nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas
medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva
encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as
produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de
cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que
foi criada frente ao Finnegans wake
O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos
normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de
Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de
julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja
talvez no molde
CAPIacuteTULO I
WAKE EM PAUTA
31
1 Algo parecido com nada
A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos
foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo
que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando
ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas
Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma
recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em
uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos
Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter
pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia
mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas
acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma
seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria
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No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi
o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que
natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela
convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de
eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a
perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute
o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo
(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos
entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees
controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria
conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda
maiores do que em suas produccedilotildees anteriores
Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha
contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia
entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda
sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta
muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para
alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo
e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe
parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado
demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo
irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo
nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto
Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter
a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua
vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou
verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The
first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura
modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico
para a literatura
33
Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)
Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de
Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de
James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a
atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais
velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs
livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash
ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da
literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz
que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa
poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente
balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada
vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as
pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no
entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que
demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da
literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou
ficaria agrave margem dela
Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente
envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil
compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de
que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele
sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado
na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se
algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid
p 729)
34
Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe
expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao
contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que
trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso
pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura
toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre
Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente
inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem
relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante
das acusaccedilotildees de ininteligibilidade
Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)
Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que
tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph
Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da
publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel
aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na
obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada
ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por
Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do
Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo
ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem
negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam
explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem
fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os
35
obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto
a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um
estudo de alguma maneira democratizador
O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)
Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte
da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua
biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira
foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que
tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu
ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na
outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce
lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo
registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que
fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)
O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de
um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque
natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que
formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes
uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um
molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler
qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras
36
dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos
entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei
guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e
investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega
agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o
ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O
meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo
antimetoacutedico
Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta
e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o
meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989
p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo
ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras
apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de
necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e
que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser
incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de
leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)
Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas
outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo
somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi
escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou
apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez
ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma
pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de
significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja
a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou
ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que
trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o
compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos
aqui
37
O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do
tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica
perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a
concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha
desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre
como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do
italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade
constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a
problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute
possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim
pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o
que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra
obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras
tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como
qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um
livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido
como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se
perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro
defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria
literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil
compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie
de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como
acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses
Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel
uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode
ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio
de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo
apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de
literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno
Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer
no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash
sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo
38
(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura
interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual
afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural
em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute
realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma
facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma
especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se
sempre novo
2 Sui generis
O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee
constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de
antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse
tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso
das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em
que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha
de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de
categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente
superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro
consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma
e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo
de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso
ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente
anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras
da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que
deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute
na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria
15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James
39
que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a
gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais
longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a
normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake
pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel
inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da
publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress
Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com
sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus
caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo
claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia
inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou
talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra
Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria
com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)
tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por
faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-
riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia
para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da
letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento
nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre
dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por
Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)
Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James
Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel
afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero
o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat
language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a
afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a
de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute
16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo
40
linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)
ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller
como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha
uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e
sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite
que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto
espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo
fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em
nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-
linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado
como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos
oniacutericos
De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com
Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias
raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo
merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm
Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco
anos antes
lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-
americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William
York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a
frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much
17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
41
ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada
em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma
estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte
em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a
relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall
aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro
ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia
de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila
As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake
ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo
tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele
Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou
para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como
exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos
uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade
sua ameaccedila
Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se
encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que
conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na
segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer
cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de
duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma
interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os
perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se
pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa
autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala
entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que
natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso
mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra
18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo
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de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se
facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto
o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura
absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma
descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que
ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake
aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e
ameaccediladores do seacuteculo XX
Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina
O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto
um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos
sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a
um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu
aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar
com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em
diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido
reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo
se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue
como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob
diferentes olhos
Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo
da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna
No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a
separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou
qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria
sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam
por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como
lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre
aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo
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Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua
projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma
interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados
a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um
caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das
ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o
mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras
para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e
atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato
teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse
sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente
Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De
forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e
consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o
texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade
e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes
quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles
relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre
haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias
fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas
Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash
ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de
prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira
sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo
Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma
seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e
possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito
dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente
decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma
categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a
respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e
semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema
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tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto
temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito
do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante
Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como
um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa
tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como
profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para
fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras
Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de
defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram
para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por
preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras
com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do
ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta
diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno
Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)
Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer
seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e
defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos
personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as
categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente
berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com
planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o
comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta
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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos
que o infinito
Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo
Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)
Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo
descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos
arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de
ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a
primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave
maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de
verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra
se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e
diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida
considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos
uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo
de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila
Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos
a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da
caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho
platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que
pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar
cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a
cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce
estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques
Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo
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em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de
temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake
3 Fluidez vida-morte
A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de
Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas
assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando
numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo
denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o
desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso
segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo
natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute
nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de
narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o
de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty
existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller
Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de
Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se
morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem
por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome
de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur
(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos
ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que
retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua
ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee
e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como
Caim e Abel Rocircmulo e Remo)
Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o
tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou
mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen
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underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo
somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de
definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute
seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide
Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece
ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake
garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden
Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres
que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo
mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua
continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as
necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu
direcionamento
Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas
maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente
distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo
nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que
todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de
maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as
chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com
significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem
nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto
literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo
Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas
do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a
enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que
frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia
palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos
aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele
demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que
19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
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rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm
confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos
lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar
categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos
concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo
pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo
estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que
permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se
desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento
Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa
que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de
que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que
nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de
leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o
contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em
subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar
qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria
essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina
Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de
instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita
de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do
intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto
que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute
anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da
morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz
novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo
Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans
wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas
sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal
O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso
natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes
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recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente
explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente
perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da
audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz
recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz
alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo
da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo
como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua
exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave
simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos
caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto
de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz
de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta
A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou
espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma
autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente
agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que
Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao
leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo
primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer
um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita
certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada
ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo
comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um
multiverso em detrimento de um universo
Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras
fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se
propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho
meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute
o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas
tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando
Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna
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caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for
colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro
ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake
No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta
pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem
acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta
como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor
eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-
problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar
possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou
que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho
e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e
nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie
de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que
sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco
narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se
estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de
como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute
necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de
outras consequecircncias
A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute
vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para
qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco
Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do
ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo
interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido
um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado
do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por
conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute
(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica
inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de
Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico
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apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de
arte moderna
Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que
podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um
acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade
simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada
narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena
eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena
ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao
leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista
objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em
primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique
de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar
a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria
possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto
mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse
acompanhamento
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica
A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que
permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem
autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro
acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos
sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas
natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra
o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na
concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas
natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro
de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao
contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que
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o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista
como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro
A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)
Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se
vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do
enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo
possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e
limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o
texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de
formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio
Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor
do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e
Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans
wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo
XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do
que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma
ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa
na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo
cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico
proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo
semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O
leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel
mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos
sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como
em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que
21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo
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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se
acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico
natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da
negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um
outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo
que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans
wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se
o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta
A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em
afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce
dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha
tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e
chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos
psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans
wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento
da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca
Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit
on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como
muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a
citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser
encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em
duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando
ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra
sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold
sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen
certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico
ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce
respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce
quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN
1989 p 853)
Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma
simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras
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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela
[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo
ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora
do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado
Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia
percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus
poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma
exemplificaccedilatildeo de insanidade
Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a
Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos
elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo
de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a
relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos
distintos e simultacircneos na obra de Joyce
Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)
Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo
maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com
Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior
Ulysses
Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)
55
Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma
que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas
possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se
entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer
paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas
caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem
paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente
disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode
ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para
outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo
III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda
inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e
ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey
Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub
Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o
Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em
portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia
desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave
condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho
feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna
criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto
formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida
em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No
entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse
um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo
para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto
ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada
tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento
do Wake
A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo
bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma
importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute
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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do
aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que
os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe
apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a
muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A
aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o
autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber
Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente
meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias
(como eacute conhecido) de Ulysses
Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a
respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era
uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence
White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce
respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de
entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma
composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em
muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa
forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees
persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas
de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha
recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira
executiva
O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo
3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in
feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em
cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou
sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo
tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA
identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se
fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a
57
transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio
que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate
casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente
barulhento
Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22
For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23
Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24
Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas
bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de
pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir
palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo
do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute
consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado
22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)
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previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que
continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais
musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui
unido a Shem
Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans
wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria
como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a
leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como
muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona
diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva
e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente
mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa
comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo
Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)
A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto
a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura
em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando
decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua
evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e
natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A
essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte
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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais
do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas
que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo
aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um
princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica
Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a
obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o
seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto
joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os
quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia
temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas
satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao
contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem
destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas
de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim
como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas
executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na
promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do
papel
Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos
fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de
elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma
delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator
inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons
mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor
deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)
intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor
em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de
entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as
consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem
subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de
60
qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees
preacute-existentes
O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto
a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa
sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha
A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que
tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros
que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos
faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans
wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes
caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a
figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade
wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos
iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a
circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou
Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois
engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas
repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que
acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance
com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da
mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado
A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de
relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a
operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece
comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da
nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen
Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se
61
voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)
Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo
obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa
interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam
evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma
oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo
receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade
tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto
na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute
dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave
Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como
operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como
transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a
posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)
Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura
semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees
de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua
leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem
fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das
formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo
foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que
seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de
frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem
a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente
o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a
62
comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos
foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em
uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute
criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica
ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional
de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25
Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade
semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa
a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que
jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica
implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo
capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee
Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as
possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral
tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por
mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura
hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de
um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do
horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez
Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem
necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos
oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho
cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a
melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez
ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute
necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em
questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha
diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira
25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo
63
homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando
ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente
decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de
assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo
Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura
do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que
flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel
Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de
algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo
precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim
destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa
ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil
de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do
texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente
colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees
criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua
complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel
CAPIacuteTULO II
FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO
65
No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na
seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des
Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos
a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p
179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como
traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto
traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou
a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo
receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave
visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora
do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio
sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua
existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa
relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos
66
A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo
produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do
idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a
exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em
detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em
literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto
expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida
inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro
evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute
perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente
por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios
notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas
e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida
bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou
sintaacuteticas
Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo
sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas
inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum
ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma
mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada
em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor
tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que
assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo
inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um
sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria
demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a
qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto
Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do
ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave
leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto
se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de
67
ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e
similaridade
ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como
ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo
poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de
enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores
Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista
austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo
idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse
conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo
platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a
ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante
quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se
Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como
traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo
Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma
vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a
correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical
mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas
tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical
engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de
consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma
escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste
do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e
nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma
forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias
do que traduz
Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo
se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda
outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do
tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com
68
o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste
procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que
percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito
das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa
natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo
joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo
(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga
agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto
destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira
literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de
transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto
ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido
ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo
(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non
serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)
Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo
entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a
traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve
ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento
de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser
tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a
deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-
formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo
(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a
ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois
planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de
mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)
semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma
mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que
caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana
69
Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um
leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto
adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro
Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode
vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do
texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para
ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem
valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma
sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia
O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor
ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito
eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor
tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo
somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot
juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo
Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se
rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de
qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa
forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao
originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash
Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff
Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo
regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria
como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se
considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um
regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A
concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a
necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja
servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica
aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas
nacionais
70
A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua
autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de
forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos
que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo
Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans
wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a
intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves
no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para
um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar
engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES
1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James
Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido
elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que
Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da
proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo
mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas
especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute
submetido
Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e
qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente
expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e
qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer
que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda
menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender
destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo
os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo
de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma
equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo
traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence
a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de
literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem
proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma
71
liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do
texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz
necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor
se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda
que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela
transcriaccedilatildeo
A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito
a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de
certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas
Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash
Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash
encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de
que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua
ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum
recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua
traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade
para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso
deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo
(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na
coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir
James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica
com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o
aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)
Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do
Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans
wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas
e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto
de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva
(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical
do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar
alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que
em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta
72
voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo
(CAMPOS 2001 p 21)
Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo
integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e
Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de
Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto
debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente
gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto
oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)
Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor
afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se
submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos
somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim
inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)
Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um
esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que
percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo
predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da
traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo
aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a
pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para
que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou
desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto
desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute
entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em
vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs
o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada
invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a
linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas
ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras
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Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans
wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto
tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos
consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de
serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por
brasileiros Na primeira linha por exemplo
riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)
Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento
direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto
temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto
espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve
em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma
impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar
o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos
semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas
possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro
periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar
agrave ideia temporal
riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)
Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo
prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se
referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo
esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja
especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso
de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato
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pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois
personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de
forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto
de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)
Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma
outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura
mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute
a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula
rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos
Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo
ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila
uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi
a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da
ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito
das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin
uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute
em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das
primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O
marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera
nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a
traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico
uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por
todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa
mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em
Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos
os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-
se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um
possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas
75
a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com
ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em
inglecircs
A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo
Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas
superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu
fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal
extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do
tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo
apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada
entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul
Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do
tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura
um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio
ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees
de tempo linguiacutestico
Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)
De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida
contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as
referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por
Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais
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Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou
perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um
impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada
O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu
desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver
mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para
qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se
contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por
mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros
que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente
entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade
como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no
entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de
fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que
existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os
diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas
de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona
Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma
(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como
uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de
vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto
de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou
um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas
sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos
Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes
resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a
pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma
disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo
pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a
traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma
metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma
pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio
77
A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo
afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas
respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de
ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda
que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto
literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de
partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais
pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de
partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e
funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e
concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que
havia outrora no texto de partida
Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do
trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning
and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that
signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell
lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma
relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre
a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na
distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo
o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em
determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma
combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova
As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se
fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode
oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido
produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas
tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo
Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como
tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce
26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo
78
escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de
rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas
pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce
em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do
portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso
prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que
diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts
itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto
a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma
(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como
reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo
Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas
afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido
executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado
tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura
considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado
como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para
exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de
intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio
em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema
etc independentemente do gecircnero literaacuterio
A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma
dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo
o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para
que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes
sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em
frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por
variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e
Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus
e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo
ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma
das personagens no que estiver acontecendo a cada momento
79
Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver
uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em
uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado
Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria
igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo
natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio
entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la
como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes
tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem
toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)
especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando
discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo
como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela
pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela
mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa
uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime
uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra
literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a
traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee
com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou
visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa
tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto
Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto
de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios
compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos
escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou
menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por
isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as
extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas
de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio
Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala
sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel
80
What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27
Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao
Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos
trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo
mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de
qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em
seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da
linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur
lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das
liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo
pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio
Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em
fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando
no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que
contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto
feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da
proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de
confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais
estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que
ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos
explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake
nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua
27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo
81
Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal
de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira
de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da
traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como
eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e
olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a
definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a
cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo
do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo
ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura
hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo
apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado
ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash
no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar
ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo
Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar
destrinchaacute-lo
CAPIacuteTULO III
LEITURA LUTO ELIPSE
83
Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante
fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo
da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade
continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse
texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos
dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o
previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma
leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma
leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro
eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante
do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura
fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa
84
Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos
supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se
findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela
Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que
algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando
de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as
implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente
possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua
concepccedilatildeo
Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que
indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de
relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que
determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala
necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de
percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute
claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute
certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos
oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho
linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado
que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer
seu terreno
Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que
concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura
desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do
sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash
consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal
natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e
que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de
interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve
esse ponto com as seguintes observaccedilotildees
85
Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)
Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em
consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake
demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o
texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo
se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa
posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva
Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo
necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao
contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite
que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder
acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo
observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada
consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco
continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura
perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice
Merleau-Ponty
A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)
86
Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de
leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma
estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que
se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma
leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a
obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o
nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada
ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura
ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas
possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os
fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando
dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler
qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute
o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo
desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer
como obra una e total
Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os
fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash
ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o
acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam
tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o
fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por
satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que
aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe
confere coerecircncia como obra
As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No
entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina
ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta
em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila
crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica
necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa
abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um
87
meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura
mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e
algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui
nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as
possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas
as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas
e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo
Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de
acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em
conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se
saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria
se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro
jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse
sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem
O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe
de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de
que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se
daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se
eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de
suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake
eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like
the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos
hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants
a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma
geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake
tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro
partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma
geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo
28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo
88
em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de
ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente
enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um
ponto
A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da
aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que
nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno
ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel
Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima
frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem
que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)
retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no
entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim
se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como
modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens
haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que
estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute
retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai
e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca
circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao
movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio
texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado
explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW
1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras
obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em
linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto
originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em
Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do
protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a
estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila
29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo
89
Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York
Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece
considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas
causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura
Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o
uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar
o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em
sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento
de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma
espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo
muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a
incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and
a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel
methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)
No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o
uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo
4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que
formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem
mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto
eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles
dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que
fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos
moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso
mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma
leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa
estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo
haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos
poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o
mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma
30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo
90
sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a
tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia
A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia
tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas
em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de
trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se
intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma
compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a
possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto
agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language
Laurent Milesi diz
This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31
A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos
histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells
irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake
certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo
histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria
a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando
voz perspectiva contexto
31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo
91
Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se
sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma
partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto
inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo
de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem
niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode
vir a ser em mais de uma possibilidade
A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute
operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo
entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do
Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso
pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do
texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl
Jaspers (1883-1969) diz
O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)
A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao
livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do
tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente
mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos
desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga
mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia
que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa
afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a
voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de
certa maneira aiacute jaacute natildeo existe
92
O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se
opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento
ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica
no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na
histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma
volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo
presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se
faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo
que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo
ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do
lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)
O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute
sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica
senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo
cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo
linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo
acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake
circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo
fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo
somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que
natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um
assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo
ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas
A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente
por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual
se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo
linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo
passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico
se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do
tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui
a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para
explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico
93
A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia
moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a
positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria
que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a
respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o
fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o
mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a
uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO
mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma
no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar
eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo
(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)
A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do
leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun
awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees
silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete
em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida
da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na
narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun
a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada
Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em
mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin
ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou
mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido
talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash
mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem
podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)
e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro
ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao
nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que
despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake
94
substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no
geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)
Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse
ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping
and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and
appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter
of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra
como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his
human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu
livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim
a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake
knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)
O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital
em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que
Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim
como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem
correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica
em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender
e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que
lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a
Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que
podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash
que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita
Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com
uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens
nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na
incontornaacutevel indefiniccedilatildeo
32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo
95
Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos
mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao
desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um
dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to
complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo
contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na
ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual
poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute
tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin
surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um
cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo
para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se
demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta
demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos
pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem
cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no
parque em questatildeo
They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36
35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo
96
Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no
espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin
of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker
fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos
tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante
Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na
expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse
mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se
desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente
abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido
Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall
pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as
absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do
texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com
clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se
em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos
e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que
apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix
Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim
como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de
conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma
Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por
indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz
em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama
wakiana
Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall
contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a
ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo
ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they
took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que
37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo
97
se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees
parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da
personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual
mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se
apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar
com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado
Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como
seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que
compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no
rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto
permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os
ausentes
Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como
pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco
cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua
determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se
possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais
uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda
Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma
divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em
que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo
Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho
do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como
origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute
uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees
de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar
o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em
que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois
estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam
em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da
autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto
98
Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)
Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai
por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a
perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o
que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido
precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute
desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura
para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um
resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente
livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)
De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de
concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute
alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na
necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na
busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da
libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto
racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo
normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo
proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam
homenagens seu enterro e seu descanso
Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough
99
Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38
Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo
apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro
subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos
egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do
que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos
poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais
de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos
que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram
chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que
haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte
experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do
percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao
contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um
caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de
barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na
verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia
38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo
100
No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey
Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade
satildeo numerosas
Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39
all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40
But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41
As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam
tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-
se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos
divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake
natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no
luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras
realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais
ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se
dissolvem
O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e
entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade
de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que
isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim
como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga
39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
101
no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute
o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o
mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha
de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger
Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no
que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um
significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais
Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve
considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas
eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que
diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-
los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de
Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado
partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure
No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)
Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam
ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer
para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com
significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais
102
parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo
portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a
materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns
momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual
O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma
concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund
Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer
regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou
ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia
de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera
as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui
invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce
uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas
para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo
produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo
seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente
que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente
irrecuperaacutevel
Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu
ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado
de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao
menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da
obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por
uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura
o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida
Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter
103
nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42
A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio
de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans
wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor
irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no
The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da
dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in
allrdquo como em Finnegans wake
Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques
Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz
solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear
portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo
em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo
discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa
apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por
mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito
mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja
reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse
modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos
textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma
ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva
42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo
104
vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas
escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A
conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque
comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra
maneirardquo (Ibid)
Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao
sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo
fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-
se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans
wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e
organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar
dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de
qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma
numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao
desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo
e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a
certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso
arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra
Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le
sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques
Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos
Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que
diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel
Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa
mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz
Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)
105
Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em
uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras
linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte
supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz
profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute
nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo
semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito
alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras
distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa
medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de
uma barreira temporal
Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do
iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando
univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo
de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau
chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que
se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem
por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na
escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na
linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido
diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca
por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o
maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no
entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do
alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se
farta dela
Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao
leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de
suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores
como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar
algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria
idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo
106
estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma
Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)
e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de
comunicaccedilatildeo
Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43
No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo
assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem
um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento
pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto
literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior
especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre
todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia
de remetimentos infinita
Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na
passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao
mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em
articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria
na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente
43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo
107
por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro
sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011
p 385)
Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela
liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase
concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de
escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura
talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e
do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade
CAPIacuteTULO IV
FLUIR E RETORNO
109
O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um
problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da
existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar
as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do
sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica
de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da
tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda
de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da
mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se
podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da
cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)
110
Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria
profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso
aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees
O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de
temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que
Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase
cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do
que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue
poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam
a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a
personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash
que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou
deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma
pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da
realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil
ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos
rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis
No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo
surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as
primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal
e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a
mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz
respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho
In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44
44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo
111
O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua
chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que
seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu
lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e
apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e
sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome
derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente
como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu
lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na
medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma
comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo
haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de
polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade
Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como
uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente
islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave
antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando
e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas
podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna
Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete
a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a
Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo
A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica
quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que
reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma
posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de
repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah
the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de
termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar
que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica
meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis
112
Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA
fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa
loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo
com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como
habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou
ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA
2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de
maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha
especificidade
No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo
relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de
leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias
tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou
dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa
previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o
passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia
novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto
matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade
Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura
remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um
acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria
mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)
textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em
que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou
ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se
revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente
monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute
visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus
processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato
alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake
considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto
113
Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial
maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os
adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento
especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo
conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo
foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se
entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos
servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as
ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute
equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por
detraacutes da mulher-Liffey
A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala
islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito
Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo
natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo
da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem
humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida
pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo
nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra
quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem
the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e
Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como
mensageiro
Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda
essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e
hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de
Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com
professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma
conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954
publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do
uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos
114
posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu
interlocutor
A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)
Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a
encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e
essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia
espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the
name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee
deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho
indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos
remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente
verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu
lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem
mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes
intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que
Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva
possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia
de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse
isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila
em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos
capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos
sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente
caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida
115
Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11
em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala
embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo
de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das
lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo
de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as
sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos
devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por
muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras
pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no
mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo
e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda
ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo
nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais
eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam
assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria
tradicionalmente a voz narrativa central
A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda
na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na
citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da
hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo
ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse
quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na
interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro
dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la
alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio
Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto
Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que
o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell
e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as
luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)
e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma
116
separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de
possibilidade remota
A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em
que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia
Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie
de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo
se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo
dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e
diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo
maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam
personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre
todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e
diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e
passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade
geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares
complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode
caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos
diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de
tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos
o coletivo como histoacuteria e memoacuteria
A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho
anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo
de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute
havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a
mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute
desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel
centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro
intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz
em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados
Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em
fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum
117
da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da
mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia
A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes
temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o
tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro
(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um
caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence
(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas
o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto
de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas
O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro
intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado
nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o
ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades
paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados
futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria
intocada
Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma
porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente
qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente
um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha
em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a
partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria
seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se
apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao
inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma
suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute
chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e
domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a
espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha
a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um
118
narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos
fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior
Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma
incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do
texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo
se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode
definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda
definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a
temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de
Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um
cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do
monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se
trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute
poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo
interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O
final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um
continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que
a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol
que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker
pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo
sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do
Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro
idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o
encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute
de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal
especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos
verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural
child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age
of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita
45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo
119
ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade
a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente
ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o
passado de fato passou
Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey
seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura
centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice
a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua
calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las
conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser
distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de
conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do
acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve
ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter
tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da
ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um
personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos
junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma
sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de
aspecto muacuteltiplo
Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem
sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais
especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a
questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de
Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e
no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem
o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade
Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-
delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido
negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo
nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele
que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin
120
Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch
retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente
trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber
sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer
tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia
Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)
Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo
concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece
em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma
ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de
todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho
interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim
partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis
desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior
possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave
ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela
temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como
aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo
Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que
o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles
mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais
aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento
vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar
desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido
pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-
do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o
121
passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa
permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute
justificada
Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)
O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha
heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga
interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por
fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία
presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de
Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz
respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-
ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-
ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de
Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico
encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente
pois o mesmo eacute pensar e ser
[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
(Frag III)
Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o
natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando
nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois
termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente
presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da
122
discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados
com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado
φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo
O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a
sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia
vocabular
Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash
quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar
um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser
eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)
o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser
esse te indico ser caminho em tudo ignoto
pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel
nem mostraacute-lo []
Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -
[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -
οὔτε φράσαις[]
(Frag II)46
O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no
momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda
assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa
necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se
estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger
46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo
123
tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre
ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa
ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa
definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional
Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas
investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida
em Marges de la philosophie (1972 1991)
O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)
Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que
Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que
seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas
vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que
ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO
ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente
ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)
isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία
significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero
sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na
forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo
que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que
forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia
ausecircncia)
A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta
124
que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)
Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura
entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em
certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto
de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel
e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente
permanecer na presenccedila estar no presente
Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que
o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute
por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a
Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica
Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central
No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um
agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo
O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)
No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro
uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda
que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o
sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se
caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo
125
gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada
entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo
Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47
Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da
coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros
de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras
que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo
instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet
no body is presente here which was not there before Only is order othered
Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada
uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o
que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes
relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit
que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que
algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)
Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o
despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se
cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma
vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma
espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso
tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de
algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia
Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja
47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo
126
com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter
fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos
reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia
de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em
que anuncia uma revinda
What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49
No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona
reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade
do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo
nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo
divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra
natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver
lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a
temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste
e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-
tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o
desaparecimentoausecircncia
49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo
127
Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)
Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo
ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave
percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta
especiacutefica do tempo
O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)
Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo
de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os
termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a
sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que
perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua
definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo
do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo
sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que
os problemas se iniciam
A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem
compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que
Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do
povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e
respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma
Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala
o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de
128
questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo
de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW
40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo
atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo
presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases
O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz
reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o
presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado
temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a
narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma
primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a
inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para
pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade
textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente
de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma
Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que
seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que
fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas
por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade
No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida
tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda
que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute
simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto
eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo
mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente
o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente
do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na
medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem
espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com
futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a
50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo
129
presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo
que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute
inevitavelmente permeada
Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como
escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir
da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a
compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans
wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute
equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma
sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da
subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo
objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso
poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na
relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo
vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como
princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo
objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera
pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia
expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu
horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o
Outro do meu tempo
Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra
Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e
que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute
somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que
nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash
menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro
incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque
somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia
ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O
reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de
que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel
130
quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia
portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o
humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o
tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o
anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu
tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos
mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o
que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa
memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo
mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se
juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para
essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances
variadas dos aspectos temporais da existecircncia
Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente
adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo
uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e
ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala
tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-
ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no
porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma
outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista
Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual
Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades
viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia
temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se
na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a
caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e
simplesmente caos
Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego
do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades
diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden
Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa
131
fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute
em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of
thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or
reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo
(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel
modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como
visiacutevel
Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem
que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e
fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos
informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e
perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a
paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash
natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que
tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um
momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e
ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas
conversas
Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53
Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o
proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite
quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas
acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e
51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)
132
especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash
ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente
mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite
funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite
sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como
se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo
acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma
ou seja qualquer) noite especiacutefica
Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente
fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas
consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para
o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da
eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo
tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode
tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo
teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement
qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo
que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade
que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo
fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo
considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho
esclarecedor entatildeo Levinas explica
Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54
54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo
133
Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para
a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa
para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma
sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo
Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle
qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra
ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como
ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade
como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o
tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica
individual
A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)
Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi
apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de
vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo
complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e
tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes
dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por
rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila
feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que
separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como
essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central
55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo
134
da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben
relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo
do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da
destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do
agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A
marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal
solitaacuteria
Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)
No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de
encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the
pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma
forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente
movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro
da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake
Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se
tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em
eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode
vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no
tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura
expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a
expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos
dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa
fludez de ricorso torrencial
56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)
135
Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo
em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um
fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos
encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no
ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre
inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com
ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute
referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos
Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa
paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da
saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um
significado riquiacutessimo
O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया
pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o
crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da
madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois
opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo
entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem
somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto
de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver
Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais
um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto
iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma
e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por
exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz
em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele
povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente
formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade
fenomecircnica do instante
136
Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna
Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se
compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de
maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou
natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que
o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de
geraccedilotildees com a passagem do tempo
And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58
Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos
Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das
memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes
Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-
1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e
preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao
protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural
que metaforiza o das relaccedilotildees familiares
O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento
circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a
impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim
entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que
natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se
faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que
57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)
137
se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento
desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda
permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel
a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes
A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos
que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de
NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo
antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem
desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da
substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem
aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o
nascer do Sol
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
139
Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una
de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural
Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos
importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto
intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas
Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que
podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo
aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake
Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro
com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo
abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente
140
Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o
problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a
uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute
possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a
uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de
lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a
heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que
podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam
ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um
sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os
guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se
antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende
abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser
dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute
uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura
precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse
Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas
escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem
porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o
Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam
Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma
sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O
ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de
qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso
afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um
livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a
seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e
abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees
de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das
obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo
do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para
ser questionado
141
O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o
excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e
da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a
separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce
A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada
pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo
qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia
(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in
TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em
tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo
eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente
limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa
talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura
tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida
No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na
problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge
para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma
relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume
Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna
Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no
capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento
e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando
o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno
assinala-se que
Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)
60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)
142
Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um
sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego
ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem
citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em
geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)
exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo
que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim
permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos
com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural
Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um
defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa
que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake
eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas
apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como
todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em
hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que
estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida
ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria
um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o
que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que
se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por
mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio
em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da
literatura
Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)
143
Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito
ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao
despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair
do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo
proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele
vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas
palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o
sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se
mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em
nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e
multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e
do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos
polifocircnicos
Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao
texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura
eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na
ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva
a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute
constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e
nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo
escritural
Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)
Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees
diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram
aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece
com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada
irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de
144
uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no
chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana
oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta
uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a
leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do
senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente
dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias
tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada
de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por
conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam
acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo
clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa
Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre
circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos
moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se
tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular
do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu
caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra
a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem
redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade
145
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AGRADECIMENTOS
Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria
ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada
First we feel Then we fall
(FW 62711)
Now follow we out by Starloe
(FW 38230)
Resumo
FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p
Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto
como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce
(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial
a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo
Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das
investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu
paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva
compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone
da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de
Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do
proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho
eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos
as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como
abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o
tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de
James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem
como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente
dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur
Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia
Abstract
FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation
Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p
This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well
as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish
author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes
through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The
ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is
reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the
investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova
(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic
vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones
in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake
ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself
its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel
Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the
possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support
of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is
also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for
James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the
investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history
of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin
Heidegger and Paul Ricoeur
Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11
CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30
1 Algo parecido com nada 31
2 Sui generis38
3 Fluidez vida-morte46
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51
CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64
CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82
CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138
BIBLIOGRAFIA145
INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS
Hightime is ups be it down into outs according
Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1
(FW 23916)
1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim
12
Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto
Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo
de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de
repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees
de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos
depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-
lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de
janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de
Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de
tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as
quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas
13
O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por
algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo
de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que
Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua
produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem
natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que
leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no
primeiro contato com o Wake)
Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro
de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de
dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca
de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso
passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar
melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e
ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor
Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo
de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das
figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns
elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus
mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados
por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha
de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs
que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao
ocorrido
Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett
apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles
que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de
sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria
editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The
New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou
ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido
Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito
14
concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903
e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o
iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The
Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados
Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo
teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que
comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do
irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante
de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto
Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da
Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de
Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de
Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a
primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da
coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929
Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress
Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas
das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first
that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure
the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos
1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e
simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les
amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila
pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se
somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter
se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que
ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach
se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do
totalitarismo nazista
2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo
15
In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3
Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene
Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em
Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles
em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu
tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de
James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e
artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa
especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene
Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo
norte-americano Richard Ellmann
Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)
Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra
de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que
seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na
proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria
sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva
Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris
3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos
16
contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos
depois de sua fundaccedilatildeo em 1968
Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de
James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915
que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da
rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-
Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-
americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por
um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost
em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria
especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de
famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que
abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta
parceria
Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que
tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A
moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce
contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a
publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook
(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde
1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito
por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo
quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais
durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work
in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio
depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na
Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan
Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma
acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o
proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por
acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido
17
publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros
convites anteriores mas acabou cedendo
Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto
posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute
alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem
negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake
pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da
ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver
que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim
de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava
escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar
pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas
escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente
emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p
728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da
morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash
que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda
da Irlanda
Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais
aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos
finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito
do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe
restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou
a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou
a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure
for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5
(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma
tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound
se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito
5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)
18
elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras
ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a
good poet and without exception the best of the younger prose writers His style
has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of
erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather
overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)
A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a
obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra
coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in
progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work
in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava
nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por
Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que
publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4
de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett
Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot
Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e
William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo
contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de
negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos
extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram
criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby
e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon
ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs
Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e
Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio
Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada
6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)
19
O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na
publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce
Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil
para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando
numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo
ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero
Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e
Eugene Jolas
Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se
conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se
estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade
Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake
especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos
imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal
o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro
de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos
certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo
mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali
nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans
wake esperando uma leitura tradicional
You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8
8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo
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O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a
linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao
remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez
de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do
acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente
ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais
coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo
sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de
palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a
ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem
em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa
argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que
Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do
estudioso Seamus Deane
Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9
Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades
estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios
que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O
leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de
sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se
prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense
ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes
disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em
si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto
9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo
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virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada
termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem
ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma
uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo
textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras
por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo
Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-
lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se
Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e
relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees
oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se
propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to
Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em
1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica
A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall
tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura
do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes
Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela
proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de
Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to
the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to
Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais
amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)
William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e
facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final
de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que
seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas
sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma
maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority
on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969
22
pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre
Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas
William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de
joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa
mesma introduccedilatildeo
Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11
De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans
wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel
Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das
comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre
perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses
ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p
617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake
que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a
caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o
inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da
seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do
que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou
adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar
de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza
10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo
23
Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em
Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as
direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer
esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash
Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em
Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem
fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake
e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo
que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma
primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)
Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo
foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e
premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)
teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual
a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas
as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que
compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da
tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um
dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei
descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de
impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as
12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)
24
publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por
ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt
entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se
propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall
publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo
para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo
(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao
Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade
um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se
entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas
que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o
momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em
prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das
fronteiras
No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de
grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes
leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e
Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo
foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo
dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os
irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente
natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar
a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como
especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do
Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o
que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute
nos anos 1960
13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som
25
Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)
traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs
alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego
contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os
poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que
traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente
dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos
A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe
consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de
leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou
essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao
seu trabalho de traduccedilatildeo
Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo
de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees
e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi
executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu
Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo
do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em
suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele
acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo
semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos
elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de
James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos
(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante
e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas
a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita
por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as
Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o
livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick
do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia
Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil
26
Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans
wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre
as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como
pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo
natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos
maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A
intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as
dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por
contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e
contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria
um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons
Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados
sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute
velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e
ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se
acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal
e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto
impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra
como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda
os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos
literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel
e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico
e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa
Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e
agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto
desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais
destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre
literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura
do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem
que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash
um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto
Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos
27
para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a
percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser
selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados
Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra
um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que
considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees
brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de
fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)
diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades
de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo
de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias
elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura
especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o
Finnegans wake de James Joyce (2009)
Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de
Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente
conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto
e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento
imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem
relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo
muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo
tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua
parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua
esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que
tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas
as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns
momentos
14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano
28
A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece
ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de
preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um
livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada
aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O
que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro
complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse
tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma
maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez
mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando
tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo
atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees
agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e
acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das
consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo
marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa
compreensatildeo algo produtivo
Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho
acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre
literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido
ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em
primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou
natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave
literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No
entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu
caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute
diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash
desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente
conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de
recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de
julgar
29
Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute
nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas
medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva
encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as
produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de
cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que
foi criada frente ao Finnegans wake
O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos
normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de
Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de
julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja
talvez no molde
CAPIacuteTULO I
WAKE EM PAUTA
31
1 Algo parecido com nada
A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos
foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo
que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando
ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas
Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma
recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em
uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos
Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter
pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia
mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas
acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma
seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria
32
No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi
o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que
natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela
convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de
eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a
perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute
o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo
(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos
entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees
controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria
conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda
maiores do que em suas produccedilotildees anteriores
Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha
contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia
entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda
sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta
muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para
alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo
e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe
parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado
demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo
irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo
nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto
Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter
a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua
vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou
verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The
first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura
modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico
para a literatura
33
Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)
Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de
Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de
James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a
atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais
velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs
livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash
ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da
literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz
que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa
poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente
balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada
vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as
pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no
entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que
demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da
literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou
ficaria agrave margem dela
Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente
envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil
compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de
que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele
sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado
na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se
algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid
p 729)
34
Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe
expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao
contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que
trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso
pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura
toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre
Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente
inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem
relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante
das acusaccedilotildees de ininteligibilidade
Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)
Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que
tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph
Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da
publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel
aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na
obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada
ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por
Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do
Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo
ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem
negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam
explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem
fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os
35
obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto
a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um
estudo de alguma maneira democratizador
O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)
Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte
da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua
biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira
foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que
tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu
ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na
outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce
lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo
registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que
fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)
O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de
um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque
natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que
formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes
uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um
molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler
qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras
36
dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos
entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei
guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e
investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega
agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o
ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O
meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo
antimetoacutedico
Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta
e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o
meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989
p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo
ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras
apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de
necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e
que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser
incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de
leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)
Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas
outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo
somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi
escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou
apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez
ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma
pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de
significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja
a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou
ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que
trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o
compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos
aqui
37
O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do
tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica
perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a
concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha
desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre
como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do
italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade
constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a
problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute
possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim
pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o
que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra
obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras
tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como
qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um
livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido
como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se
perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro
defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria
literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil
compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie
de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como
acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses
Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel
uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode
ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio
de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo
apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de
literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno
Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer
no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash
sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo
38
(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura
interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual
afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural
em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute
realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma
facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma
especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se
sempre novo
2 Sui generis
O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee
constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de
antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse
tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso
das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em
que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha
de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de
categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente
superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro
consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma
e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo
de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso
ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente
anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras
da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que
deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute
na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria
15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James
39
que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a
gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais
longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a
normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake
pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel
inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da
publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress
Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com
sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus
caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo
claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia
inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou
talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra
Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria
com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)
tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por
faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-
riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia
para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da
letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento
nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre
dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por
Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)
Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James
Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel
afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero
o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat
language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a
afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a
de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute
16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo
40
linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)
ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller
como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha
uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e
sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite
que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto
espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo
fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em
nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-
linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado
como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos
oniacutericos
De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com
Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias
raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo
merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm
Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco
anos antes
lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-
americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William
York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a
frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much
17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
41
ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada
em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma
estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte
em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a
relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall
aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro
ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia
de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila
As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake
ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo
tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele
Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou
para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como
exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos
uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade
sua ameaccedila
Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se
encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que
conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na
segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer
cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de
duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma
interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os
perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se
pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa
autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala
entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que
natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso
mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra
18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo
42
de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se
facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto
o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura
absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma
descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que
ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake
aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e
ameaccediladores do seacuteculo XX
Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina
O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto
um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos
sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a
um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu
aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar
com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em
diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido
reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo
se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue
como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob
diferentes olhos
Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo
da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna
No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a
separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou
qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria
sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam
por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como
lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre
aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo
43
Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua
projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma
interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados
a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um
caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das
ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o
mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras
para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e
atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato
teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse
sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente
Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De
forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e
consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o
texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade
e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes
quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles
relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre
haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias
fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas
Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash
ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de
prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira
sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo
Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma
seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e
possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito
dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente
decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma
categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a
respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e
semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema
44
tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto
temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito
do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante
Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como
um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa
tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como
profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para
fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras
Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de
defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram
para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por
preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras
com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do
ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta
diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno
Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)
Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer
seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e
defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos
personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as
categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente
berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com
planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o
comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta
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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos
que o infinito
Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo
Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)
Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo
descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos
arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de
ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a
primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave
maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de
verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra
se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e
diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida
considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos
uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo
de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila
Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos
a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da
caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho
platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que
pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar
cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a
cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce
estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques
Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo
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em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de
temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake
3 Fluidez vida-morte
A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de
Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas
assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando
numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo
denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o
desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso
segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo
natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute
nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de
narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o
de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty
existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller
Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de
Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se
morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem
por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome
de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur
(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos
ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que
retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua
ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee
e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como
Caim e Abel Rocircmulo e Remo)
Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o
tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou
mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen
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underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo
somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de
definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute
seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide
Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece
ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake
garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden
Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres
que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo
mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua
continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as
necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu
direcionamento
Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas
maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente
distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo
nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que
todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de
maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as
chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com
significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem
nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto
literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo
Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas
do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a
enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que
frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia
palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos
aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele
demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que
19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
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rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm
confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos
lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar
categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos
concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo
pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo
estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que
permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se
desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento
Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa
que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de
que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que
nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de
leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o
contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em
subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar
qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria
essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina
Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de
instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita
de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do
intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto
que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute
anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da
morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz
novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo
Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans
wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas
sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal
O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso
natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes
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recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente
explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente
perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da
audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz
recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz
alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo
da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo
como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua
exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave
simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos
caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto
de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz
de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta
A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou
espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma
autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente
agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que
Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao
leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo
primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer
um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita
certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada
ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo
comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um
multiverso em detrimento de um universo
Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras
fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se
propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho
meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute
o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas
tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando
Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna
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caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for
colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro
ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake
No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta
pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem
acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta
como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor
eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-
problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar
possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou
que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho
e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e
nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie
de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que
sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco
narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se
estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de
como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute
necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de
outras consequecircncias
A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute
vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para
qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco
Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do
ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo
interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido
um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado
do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por
conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute
(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica
inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de
Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico
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apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de
arte moderna
Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que
podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um
acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade
simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada
narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena
eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena
ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao
leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista
objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em
primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique
de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar
a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria
possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto
mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse
acompanhamento
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica
A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que
permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem
autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro
acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos
sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas
natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra
o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na
concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas
natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro
de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao
contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que
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o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista
como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro
A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)
Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se
vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do
enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo
possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e
limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o
texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de
formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio
Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor
do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e
Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans
wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo
XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do
que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma
ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa
na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo
cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico
proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo
semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O
leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel
mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos
sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como
em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que
21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo
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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se
acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico
natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da
negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um
outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo
que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans
wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se
o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta
A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em
afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce
dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha
tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e
chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos
psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans
wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento
da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca
Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit
on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como
muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a
citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser
encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em
duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando
ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra
sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold
sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen
certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico
ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce
respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce
quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN
1989 p 853)
Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma
simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras
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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela
[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo
ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora
do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado
Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia
percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus
poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma
exemplificaccedilatildeo de insanidade
Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a
Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos
elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo
de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a
relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos
distintos e simultacircneos na obra de Joyce
Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)
Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo
maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com
Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior
Ulysses
Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)
55
Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma
que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas
possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se
entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer
paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas
caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem
paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente
disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode
ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para
outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo
III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda
inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e
ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey
Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub
Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o
Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em
portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia
desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave
condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho
feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna
criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto
formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida
em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No
entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse
um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo
para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto
ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada
tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento
do Wake
A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo
bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma
importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute
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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do
aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que
os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe
apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a
muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A
aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o
autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber
Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente
meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias
(como eacute conhecido) de Ulysses
Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a
respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era
uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence
White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce
respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de
entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma
composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em
muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa
forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees
persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas
de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha
recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira
executiva
O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo
3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in
feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em
cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou
sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo
tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA
identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se
fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a
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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio
que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate
casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente
barulhento
Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22
For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23
Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24
Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas
bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de
pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir
palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo
do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute
consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado
22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)
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previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que
continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais
musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui
unido a Shem
Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans
wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria
como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a
leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como
muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona
diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva
e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente
mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa
comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo
Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)
A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto
a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura
em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando
decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua
evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e
natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A
essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte
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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais
do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas
que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo
aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um
princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica
Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a
obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o
seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto
joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os
quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia
temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas
satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao
contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem
destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas
de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim
como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas
executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na
promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do
papel
Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos
fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de
elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma
delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator
inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons
mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor
deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)
intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor
em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de
entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as
consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem
subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de
60
qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees
preacute-existentes
O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto
a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa
sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha
A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que
tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros
que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos
faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans
wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes
caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a
figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade
wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos
iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a
circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou
Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois
engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas
repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que
acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance
com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da
mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado
A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de
relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a
operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece
comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da
nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen
Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se
61
voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)
Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo
obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa
interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam
evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma
oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo
receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade
tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto
na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute
dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave
Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como
operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como
transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a
posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)
Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura
semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees
de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua
leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem
fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das
formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo
foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que
seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de
frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem
a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente
o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a
62
comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos
foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em
uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute
criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica
ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional
de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25
Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade
semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa
a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que
jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica
implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo
capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee
Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as
possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral
tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por
mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura
hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de
um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do
horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez
Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem
necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos
oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho
cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a
melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez
ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute
necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em
questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha
diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira
25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo
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homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando
ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente
decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de
assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo
Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura
do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que
flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel
Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de
algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo
precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim
destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa
ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil
de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do
texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente
colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees
criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua
complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel
CAPIacuteTULO II
FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO
65
No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na
seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des
Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos
a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p
179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como
traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto
traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou
a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo
receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave
visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora
do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio
sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua
existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa
relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos
66
A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo
produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do
idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a
exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em
detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em
literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto
expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida
inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro
evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute
perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente
por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios
notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas
e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida
bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou
sintaacuteticas
Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo
sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas
inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum
ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma
mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada
em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor
tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que
assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo
inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um
sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria
demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a
qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto
Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do
ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave
leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto
se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de
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ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e
similaridade
ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como
ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo
poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de
enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores
Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista
austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo
idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse
conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo
platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a
ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante
quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se
Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como
traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo
Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma
vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a
correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical
mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas
tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical
engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de
consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma
escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste
do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e
nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma
forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias
do que traduz
Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo
se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda
outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do
tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com
68
o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste
procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que
percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito
das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa
natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo
joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo
(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga
agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto
destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira
literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de
transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto
ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido
ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo
(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non
serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)
Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo
entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a
traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve
ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento
de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser
tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a
deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-
formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo
(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a
ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois
planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de
mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)
semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma
mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que
caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana
69
Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um
leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto
adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro
Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode
vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do
texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para
ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem
valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma
sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia
O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor
ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito
eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor
tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo
somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot
juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo
Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se
rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de
qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa
forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao
originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash
Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff
Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo
regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria
como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se
considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um
regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A
concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a
necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja
servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica
aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas
nacionais
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A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua
autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de
forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos
que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo
Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans
wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a
intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves
no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para
um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar
engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES
1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James
Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido
elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que
Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da
proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo
mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas
especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute
submetido
Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e
qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente
expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e
qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer
que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda
menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender
destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo
os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo
de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma
equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo
traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence
a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de
literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem
proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma
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liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do
texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz
necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor
se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda
que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela
transcriaccedilatildeo
A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito
a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de
certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas
Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash
Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash
encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de
que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua
ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum
recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua
traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade
para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso
deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo
(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na
coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir
James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica
com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o
aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)
Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do
Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans
wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas
e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto
de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva
(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical
do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar
alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que
em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta
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voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo
(CAMPOS 2001 p 21)
Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo
integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e
Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de
Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto
debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente
gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto
oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)
Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor
afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se
submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos
somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim
inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)
Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um
esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que
percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo
predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da
traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo
aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a
pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para
que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou
desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto
desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute
entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em
vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs
o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada
invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a
linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas
ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras
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Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans
wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto
tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos
consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de
serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por
brasileiros Na primeira linha por exemplo
riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)
Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento
direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto
temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto
espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve
em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma
impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar
o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos
semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas
possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro
periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar
agrave ideia temporal
riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)
Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo
prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se
referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo
esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja
especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso
de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato
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pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois
personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de
forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto
de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)
Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma
outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura
mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute
a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula
rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos
Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo
ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila
uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi
a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da
ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito
das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin
uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute
em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das
primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O
marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera
nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a
traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico
uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por
todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa
mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em
Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos
os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-
se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um
possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas
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a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com
ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em
inglecircs
A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo
Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas
superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu
fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal
extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do
tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo
apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada
entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul
Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do
tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura
um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio
ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees
de tempo linguiacutestico
Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)
De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida
contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as
referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por
Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais
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Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou
perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um
impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada
O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu
desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver
mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para
qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se
contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por
mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros
que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente
entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade
como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no
entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de
fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que
existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os
diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas
de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona
Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma
(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como
uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de
vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto
de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou
um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas
sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos
Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes
resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a
pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma
disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo
pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a
traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma
metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma
pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio
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A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo
afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas
respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de
ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda
que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto
literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de
partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais
pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de
partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e
funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e
concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que
havia outrora no texto de partida
Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do
trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning
and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that
signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell
lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma
relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre
a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na
distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo
o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em
determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma
combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova
As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se
fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode
oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido
produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas
tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo
Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como
tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce
26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo
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escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de
rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas
pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce
em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do
portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso
prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que
diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts
itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto
a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma
(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como
reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo
Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas
afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido
executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado
tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura
considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado
como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para
exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de
intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio
em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema
etc independentemente do gecircnero literaacuterio
A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma
dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo
o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para
que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes
sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em
frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por
variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e
Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus
e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo
ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma
das personagens no que estiver acontecendo a cada momento
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Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver
uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em
uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado
Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria
igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo
natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio
entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la
como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes
tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem
toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)
especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando
discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo
como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela
pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela
mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa
uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime
uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra
literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a
traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee
com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou
visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa
tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto
Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto
de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios
compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos
escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou
menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por
isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as
extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas
de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio
Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala
sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel
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What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27
Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao
Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos
trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo
mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de
qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em
seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da
linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur
lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das
liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo
pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio
Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em
fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando
no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que
contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto
feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da
proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de
confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais
estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que
ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos
explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake
nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua
27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo
81
Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal
de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira
de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da
traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como
eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e
olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a
definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a
cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo
do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo
ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura
hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo
apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado
ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash
no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar
ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo
Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar
destrinchaacute-lo
CAPIacuteTULO III
LEITURA LUTO ELIPSE
83
Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante
fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo
da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade
continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse
texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos
dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o
previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma
leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma
leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro
eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante
do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura
fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa
84
Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos
supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se
findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela
Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que
algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando
de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as
implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente
possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua
concepccedilatildeo
Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que
indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de
relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que
determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala
necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de
percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute
claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute
certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos
oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho
linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado
que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer
seu terreno
Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que
concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura
desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do
sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash
consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal
natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e
que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de
interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve
esse ponto com as seguintes observaccedilotildees
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Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)
Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em
consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake
demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o
texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo
se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa
posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva
Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo
necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao
contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite
que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder
acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo
observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada
consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco
continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura
perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice
Merleau-Ponty
A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)
86
Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de
leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma
estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que
se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma
leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a
obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o
nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada
ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura
ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas
possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os
fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando
dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler
qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute
o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo
desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer
como obra una e total
Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os
fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash
ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o
acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam
tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o
fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por
satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que
aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe
confere coerecircncia como obra
As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No
entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina
ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta
em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila
crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica
necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa
abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um
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meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura
mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e
algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui
nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as
possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas
as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas
e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo
Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de
acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em
conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se
saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria
se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro
jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse
sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem
O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe
de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de
que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se
daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se
eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de
suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake
eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like
the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos
hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants
a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma
geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake
tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro
partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma
geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo
28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo
88
em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de
ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente
enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um
ponto
A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da
aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que
nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno
ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel
Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima
frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem
que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)
retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no
entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim
se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como
modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens
haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que
estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute
retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai
e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca
circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao
movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio
texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado
explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW
1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras
obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em
linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto
originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em
Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do
protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a
estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila
29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo
89
Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York
Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece
considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas
causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura
Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o
uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar
o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em
sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento
de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma
espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo
muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a
incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and
a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel
methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)
No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o
uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo
4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que
formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem
mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto
eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles
dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que
fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos
moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso
mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma
leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa
estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo
haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos
poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o
mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma
30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo
90
sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a
tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia
A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia
tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas
em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de
trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se
intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma
compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a
possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto
agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language
Laurent Milesi diz
This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31
A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos
histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells
irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake
certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo
histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria
a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando
voz perspectiva contexto
31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo
91
Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se
sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma
partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto
inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo
de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem
niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode
vir a ser em mais de uma possibilidade
A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute
operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo
entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do
Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso
pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do
texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl
Jaspers (1883-1969) diz
O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)
A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao
livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do
tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente
mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos
desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga
mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia
que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa
afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a
voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de
certa maneira aiacute jaacute natildeo existe
92
O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se
opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento
ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica
no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na
histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma
volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo
presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se
faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo
que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo
ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do
lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)
O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute
sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica
senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo
cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo
linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo
acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake
circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo
fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo
somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que
natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um
assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo
ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas
A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente
por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual
se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo
linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo
passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico
se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do
tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui
a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para
explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico
93
A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia
moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a
positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria
que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a
respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o
fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o
mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a
uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO
mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma
no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar
eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo
(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)
A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do
leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun
awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees
silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete
em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida
da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na
narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun
a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada
Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em
mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin
ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou
mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido
talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash
mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem
podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)
e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro
ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao
nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que
despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake
94
substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no
geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)
Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse
ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping
and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and
appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter
of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra
como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his
human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu
livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim
a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake
knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)
O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital
em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que
Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim
como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem
correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica
em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender
e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que
lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a
Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que
podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash
que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita
Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com
uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens
nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na
incontornaacutevel indefiniccedilatildeo
32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo
95
Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos
mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao
desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um
dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to
complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo
contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na
ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual
poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute
tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin
surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um
cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo
para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se
demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta
demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos
pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem
cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no
parque em questatildeo
They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36
35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo
96
Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no
espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin
of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker
fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos
tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante
Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na
expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse
mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se
desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente
abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido
Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall
pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as
absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do
texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com
clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se
em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos
e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que
apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix
Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim
como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de
conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma
Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por
indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz
em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama
wakiana
Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall
contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a
ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo
ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they
took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que
37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo
97
se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees
parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da
personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual
mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se
apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar
com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado
Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como
seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que
compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no
rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto
permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os
ausentes
Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como
pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco
cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua
determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se
possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais
uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda
Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma
divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em
que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo
Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho
do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como
origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute
uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees
de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar
o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em
que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois
estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam
em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da
autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto
98
Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)
Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai
por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a
perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o
que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido
precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute
desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura
para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um
resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente
livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)
De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de
concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute
alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na
necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na
busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da
libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto
racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo
normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo
proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam
homenagens seu enterro e seu descanso
Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough
99
Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38
Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo
apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro
subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos
egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do
que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos
poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais
de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos
que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram
chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que
haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte
experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do
percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao
contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um
caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de
barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na
verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia
38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo
100
No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey
Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade
satildeo numerosas
Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39
all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40
But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41
As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam
tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-
se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos
divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake
natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no
luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras
realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais
ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se
dissolvem
O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e
entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade
de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que
isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim
como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga
39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
101
no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute
o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o
mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha
de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger
Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no
que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um
significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais
Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve
considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas
eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que
diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-
los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de
Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado
partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure
No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)
Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam
ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer
para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com
significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais
102
parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo
portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a
materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns
momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual
O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma
concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund
Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer
regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou
ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia
de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera
as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui
invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce
uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas
para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo
produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo
seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente
que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente
irrecuperaacutevel
Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu
ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado
de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao
menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da
obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por
uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura
o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida
Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter
103
nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42
A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio
de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans
wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor
irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no
The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da
dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in
allrdquo como em Finnegans wake
Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques
Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz
solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear
portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo
em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo
discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa
apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por
mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito
mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja
reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse
modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos
textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma
ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva
42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo
104
vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas
escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A
conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque
comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra
maneirardquo (Ibid)
Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao
sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo
fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-
se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans
wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e
organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar
dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de
qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma
numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao
desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo
e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a
certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso
arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra
Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le
sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques
Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos
Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que
diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel
Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa
mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz
Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)
105
Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em
uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras
linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte
supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz
profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute
nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo
semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito
alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras
distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa
medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de
uma barreira temporal
Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do
iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando
univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo
de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau
chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que
se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem
por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na
escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na
linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido
diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca
por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o
maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no
entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do
alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se
farta dela
Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao
leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de
suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores
como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar
algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria
idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo
106
estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma
Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)
e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de
comunicaccedilatildeo
Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43
No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo
assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem
um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento
pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto
literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior
especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre
todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia
de remetimentos infinita
Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na
passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao
mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em
articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria
na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente
43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo
107
por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro
sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011
p 385)
Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela
liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase
concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de
escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura
talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e
do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade
CAPIacuteTULO IV
FLUIR E RETORNO
109
O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um
problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da
existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar
as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do
sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica
de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da
tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda
de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da
mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se
podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da
cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)
110
Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria
profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso
aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees
O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de
temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que
Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase
cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do
que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue
poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam
a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a
personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash
que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou
deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma
pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da
realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil
ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos
rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis
No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo
surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as
primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal
e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a
mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz
respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho
In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44
44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo
111
O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua
chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que
seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu
lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e
apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e
sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome
derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente
como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu
lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na
medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma
comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo
haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de
polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade
Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como
uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente
islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave
antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando
e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas
podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna
Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete
a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a
Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo
A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica
quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que
reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma
posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de
repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah
the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de
termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar
que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica
meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis
112
Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA
fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa
loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo
com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como
habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou
ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA
2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de
maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha
especificidade
No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo
relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de
leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias
tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou
dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa
previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o
passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia
novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto
matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade
Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura
remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um
acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria
mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)
textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em
que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou
ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se
revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente
monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute
visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus
processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato
alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake
considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto
113
Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial
maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os
adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento
especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo
conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo
foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se
entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos
servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as
ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute
equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por
detraacutes da mulher-Liffey
A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala
islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito
Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo
natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo
da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem
humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida
pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo
nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra
quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem
the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e
Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como
mensageiro
Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda
essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e
hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de
Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com
professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma
conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954
publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do
uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos
114
posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu
interlocutor
A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)
Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a
encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e
essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia
espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the
name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee
deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho
indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos
remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente
verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu
lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem
mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes
intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que
Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva
possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia
de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse
isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila
em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos
capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos
sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente
caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida
115
Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11
em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala
embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo
de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das
lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo
de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as
sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos
devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por
muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras
pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no
mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo
e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda
ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo
nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais
eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam
assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria
tradicionalmente a voz narrativa central
A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda
na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na
citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da
hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo
ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse
quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na
interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro
dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la
alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio
Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto
Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que
o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell
e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as
luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)
e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma
116
separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de
possibilidade remota
A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em
que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia
Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie
de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo
se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo
dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e
diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo
maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam
personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre
todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e
diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e
passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade
geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares
complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode
caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos
diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de
tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos
o coletivo como histoacuteria e memoacuteria
A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho
anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo
de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute
havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a
mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute
desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel
centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro
intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz
em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados
Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em
fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum
117
da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da
mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia
A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes
temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o
tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro
(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um
caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence
(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas
o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto
de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas
O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro
intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado
nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o
ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades
paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados
futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria
intocada
Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma
porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente
qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente
um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha
em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a
partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria
seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se
apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao
inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma
suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute
chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e
domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a
espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha
a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um
118
narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos
fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior
Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma
incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do
texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo
se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode
definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda
definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a
temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de
Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um
cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do
monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se
trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute
poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo
interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O
final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um
continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que
a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol
que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker
pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo
sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do
Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro
idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o
encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute
de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal
especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos
verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural
child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age
of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita
45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo
119
ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade
a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente
ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o
passado de fato passou
Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey
seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura
centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice
a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua
calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las
conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser
distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de
conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do
acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve
ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter
tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da
ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um
personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos
junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma
sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de
aspecto muacuteltiplo
Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem
sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais
especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a
questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de
Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e
no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem
o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade
Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-
delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido
negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo
nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele
que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin
120
Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch
retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente
trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber
sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer
tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia
Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)
Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo
concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece
em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma
ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de
todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho
interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim
partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis
desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior
possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave
ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela
temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como
aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo
Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que
o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles
mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais
aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento
vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar
desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido
pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-
do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o
121
passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa
permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute
justificada
Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)
O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha
heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga
interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por
fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία
presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de
Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz
respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-
ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-
ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de
Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico
encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente
pois o mesmo eacute pensar e ser
[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
(Frag III)
Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o
natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando
nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois
termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente
presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da
122
discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados
com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado
φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo
O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a
sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia
vocabular
Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash
quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar
um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser
eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)
o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser
esse te indico ser caminho em tudo ignoto
pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel
nem mostraacute-lo []
Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -
[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -
οὔτε φράσαις[]
(Frag II)46
O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no
momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda
assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa
necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se
estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger
46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo
123
tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre
ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa
ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa
definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional
Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas
investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida
em Marges de la philosophie (1972 1991)
O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)
Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que
Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que
seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas
vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que
ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO
ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente
ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)
isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία
significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero
sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na
forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo
que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que
forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia
ausecircncia)
A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta
124
que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)
Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura
entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em
certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto
de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel
e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente
permanecer na presenccedila estar no presente
Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que
o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute
por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a
Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica
Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central
No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um
agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo
O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)
No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro
uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda
que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o
sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se
caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo
125
gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada
entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo
Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47
Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da
coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros
de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras
que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo
instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet
no body is presente here which was not there before Only is order othered
Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada
uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o
que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes
relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit
que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que
algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)
Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o
despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se
cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma
vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma
espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso
tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de
algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia
Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja
47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo
126
com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter
fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos
reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia
de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em
que anuncia uma revinda
What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49
No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona
reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade
do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo
nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo
divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra
natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver
lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a
temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste
e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-
tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o
desaparecimentoausecircncia
49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo
127
Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)
Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo
ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave
percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta
especiacutefica do tempo
O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)
Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo
de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os
termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a
sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que
perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua
definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo
do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo
sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que
os problemas se iniciam
A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem
compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que
Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do
povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e
respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma
Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala
o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de
128
questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo
de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW
40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo
atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo
presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases
O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz
reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o
presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado
temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a
narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma
primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a
inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para
pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade
textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente
de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma
Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que
seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que
fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas
por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade
No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida
tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda
que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute
simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto
eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo
mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente
o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente
do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na
medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem
espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com
futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a
50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo
129
presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo
que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute
inevitavelmente permeada
Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como
escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir
da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a
compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans
wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute
equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma
sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da
subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo
objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso
poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na
relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo
vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como
princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo
objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera
pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia
expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu
horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o
Outro do meu tempo
Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra
Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e
que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute
somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que
nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash
menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro
incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque
somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia
ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O
reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de
que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel
130
quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia
portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o
humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o
tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o
anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu
tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos
mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o
que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa
memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo
mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se
juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para
essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances
variadas dos aspectos temporais da existecircncia
Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente
adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo
uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e
ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala
tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-
ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no
porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma
outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista
Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual
Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades
viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia
temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se
na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a
caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e
simplesmente caos
Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego
do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades
diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden
Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa
131
fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute
em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of
thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or
reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo
(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel
modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como
visiacutevel
Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem
que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e
fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos
informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e
perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a
paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash
natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que
tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um
momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e
ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas
conversas
Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53
Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o
proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite
quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas
acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e
51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)
132
especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash
ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente
mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite
funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite
sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como
se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo
acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma
ou seja qualquer) noite especiacutefica
Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente
fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas
consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para
o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da
eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo
tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode
tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo
teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement
qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo
que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade
que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo
fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo
considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho
esclarecedor entatildeo Levinas explica
Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54
54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo
133
Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para
a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa
para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma
sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo
Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle
qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra
ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como
ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade
como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o
tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica
individual
A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)
Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi
apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de
vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo
complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e
tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes
dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por
rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila
feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que
separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como
essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central
55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo
134
da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben
relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo
do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da
destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do
agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A
marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal
solitaacuteria
Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)
No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de
encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the
pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma
forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente
movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro
da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake
Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se
tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em
eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode
vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no
tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura
expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a
expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos
dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa
fludez de ricorso torrencial
56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)
135
Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo
em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um
fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos
encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no
ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre
inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com
ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute
referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos
Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa
paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da
saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um
significado riquiacutessimo
O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया
pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o
crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da
madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois
opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo
entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem
somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto
de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver
Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais
um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto
iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma
e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por
exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz
em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele
povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente
formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade
fenomecircnica do instante
136
Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna
Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se
compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de
maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou
natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que
o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de
geraccedilotildees com a passagem do tempo
And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58
Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos
Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das
memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes
Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-
1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e
preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao
protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural
que metaforiza o das relaccedilotildees familiares
O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento
circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a
impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim
entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que
natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se
faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que
57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)
137
se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento
desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda
permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel
a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes
A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos
que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de
NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo
antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem
desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da
substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem
aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o
nascer do Sol
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
139
Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una
de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural
Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos
importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto
intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas
Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que
podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo
aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake
Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro
com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo
abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente
140
Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o
problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a
uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute
possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a
uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de
lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a
heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que
podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam
ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um
sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os
guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se
antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende
abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser
dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute
uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura
precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse
Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas
escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem
porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o
Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam
Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma
sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O
ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de
qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso
afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um
livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a
seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e
abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees
de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das
obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo
do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para
ser questionado
141
O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o
excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e
da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a
separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce
A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada
pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo
qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia
(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in
TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em
tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo
eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente
limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa
talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura
tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida
No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na
problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge
para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma
relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume
Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna
Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no
capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento
e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando
o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno
assinala-se que
Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)
60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)
142
Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um
sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego
ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem
citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em
geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)
exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo
que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim
permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos
com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural
Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um
defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa
que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake
eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas
apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como
todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em
hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que
estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida
ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria
um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o
que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que
se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por
mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio
em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da
literatura
Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)
143
Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito
ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao
despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair
do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo
proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele
vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas
palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o
sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se
mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em
nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e
multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e
do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos
polifocircnicos
Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao
texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura
eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na
ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva
a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute
constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e
nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo
escritural
Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)
Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees
diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram
aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece
com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada
irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de
144
uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no
chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana
oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta
uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a
leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do
senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente
dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias
tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada
de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por
conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam
acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo
clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa
Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre
circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos
moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se
tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular
do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu
caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra
a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem
redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade
145
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ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada
First we feel Then we fall
(FW 62711)
Now follow we out by Starloe
(FW 38230)
Resumo
FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p
Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto
como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce
(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial
a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo
Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das
investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu
paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva
compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone
da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de
Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do
proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho
eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos
as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como
abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o
tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de
James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem
como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente
dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur
Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia
Abstract
FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation
Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p
This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well
as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish
author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes
through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The
ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is
reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the
investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova
(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic
vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones
in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake
ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself
its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel
Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the
possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support
of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is
also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for
James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the
investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history
of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin
Heidegger and Paul Ricoeur
Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11
CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30
1 Algo parecido com nada 31
2 Sui generis38
3 Fluidez vida-morte46
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51
CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64
CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82
CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138
BIBLIOGRAFIA145
INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS
Hightime is ups be it down into outs according
Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1
(FW 23916)
1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim
12
Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto
Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo
de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de
repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees
de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos
depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-
lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de
janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de
Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de
tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as
quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas
13
O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por
algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo
de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que
Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua
produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem
natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que
leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no
primeiro contato com o Wake)
Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro
de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de
dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca
de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso
passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar
melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e
ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor
Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo
de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das
figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns
elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus
mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados
por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha
de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs
que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao
ocorrido
Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett
apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles
que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de
sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria
editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The
New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou
ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido
Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito
14
concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903
e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o
iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The
Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados
Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo
teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que
comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do
irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante
de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto
Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da
Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de
Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de
Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a
primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da
coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929
Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress
Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas
das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first
that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure
the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos
1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e
simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les
amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila
pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se
somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter
se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que
ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach
se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do
totalitarismo nazista
2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo
15
In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3
Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene
Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em
Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles
em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu
tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de
James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e
artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa
especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene
Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo
norte-americano Richard Ellmann
Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)
Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra
de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que
seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na
proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria
sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva
Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris
3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos
16
contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos
depois de sua fundaccedilatildeo em 1968
Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de
James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915
que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da
rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-
Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-
americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por
um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost
em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria
especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de
famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que
abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta
parceria
Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que
tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A
moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce
contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a
publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook
(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde
1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito
por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo
quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais
durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work
in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio
depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na
Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan
Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma
acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o
proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por
acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido
17
publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros
convites anteriores mas acabou cedendo
Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto
posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute
alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem
negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake
pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da
ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver
que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim
de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava
escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar
pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas
escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente
emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p
728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da
morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash
que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda
da Irlanda
Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais
aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos
finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito
do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe
restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou
a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou
a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure
for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5
(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma
tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound
se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito
5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)
18
elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras
ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a
good poet and without exception the best of the younger prose writers His style
has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of
erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather
overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)
A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a
obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra
coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in
progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work
in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava
nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por
Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que
publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4
de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett
Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot
Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e
William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo
contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de
negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos
extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram
criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby
e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon
ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs
Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e
Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio
Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada
6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)
19
O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na
publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce
Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil
para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando
numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo
ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero
Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e
Eugene Jolas
Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se
conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se
estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade
Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake
especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos
imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal
o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro
de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos
certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo
mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali
nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans
wake esperando uma leitura tradicional
You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8
8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo
20
O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a
linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao
remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez
de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do
acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente
ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais
coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo
sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de
palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a
ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem
em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa
argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que
Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do
estudioso Seamus Deane
Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9
Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades
estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios
que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O
leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de
sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se
prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense
ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes
disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em
si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto
9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo
21
virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada
termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem
ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma
uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo
textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras
por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo
Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-
lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se
Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e
relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees
oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se
propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to
Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em
1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica
A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall
tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura
do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes
Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela
proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de
Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to
the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to
Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais
amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)
William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e
facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final
de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que
seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas
sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma
maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority
on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969
22
pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre
Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas
William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de
joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa
mesma introduccedilatildeo
Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11
De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans
wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel
Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das
comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre
perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses
ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p
617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake
que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a
caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o
inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da
seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do
que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou
adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar
de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza
10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo
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Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em
Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as
direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer
esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash
Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em
Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem
fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake
e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo
que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma
primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)
Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo
foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e
premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)
teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual
a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas
as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que
compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da
tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um
dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei
descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de
impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as
12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)
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publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por
ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt
entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se
propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall
publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo
para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo
(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao
Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade
um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se
entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas
que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o
momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em
prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das
fronteiras
No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de
grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes
leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e
Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo
foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo
dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os
irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente
natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar
a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como
especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do
Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o
que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute
nos anos 1960
13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som
25
Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)
traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs
alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego
contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os
poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que
traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente
dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos
A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe
consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de
leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou
essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao
seu trabalho de traduccedilatildeo
Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo
de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees
e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi
executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu
Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo
do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em
suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele
acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo
semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos
elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de
James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos
(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante
e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas
a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita
por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as
Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o
livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick
do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia
Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil
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Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans
wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre
as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como
pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo
natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos
maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A
intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as
dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por
contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e
contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria
um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons
Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados
sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute
velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e
ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se
acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal
e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto
impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra
como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda
os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos
literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel
e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico
e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa
Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e
agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto
desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais
destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre
literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura
do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem
que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash
um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto
Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos
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para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a
percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser
selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados
Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra
um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que
considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees
brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de
fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)
diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades
de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo
de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias
elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura
especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o
Finnegans wake de James Joyce (2009)
Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de
Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente
conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto
e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento
imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem
relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo
muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo
tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua
parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua
esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que
tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas
as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns
momentos
14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano
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A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece
ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de
preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um
livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada
aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O
que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro
complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse
tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma
maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez
mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando
tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo
atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees
agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e
acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das
consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo
marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa
compreensatildeo algo produtivo
Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho
acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre
literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido
ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em
primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou
natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave
literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No
entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu
caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute
diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash
desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente
conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de
recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de
julgar
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Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute
nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas
medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva
encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as
produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de
cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que
foi criada frente ao Finnegans wake
O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos
normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de
Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de
julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja
talvez no molde
CAPIacuteTULO I
WAKE EM PAUTA
31
1 Algo parecido com nada
A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos
foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo
que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando
ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas
Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma
recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em
uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos
Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter
pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia
mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas
acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma
seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria
32
No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi
o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que
natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela
convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de
eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a
perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute
o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo
(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos
entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees
controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria
conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda
maiores do que em suas produccedilotildees anteriores
Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha
contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia
entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda
sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta
muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para
alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo
e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe
parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado
demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo
irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo
nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto
Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter
a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua
vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou
verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The
first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura
modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico
para a literatura
33
Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)
Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de
Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de
James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a
atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais
velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs
livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash
ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da
literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz
que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa
poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente
balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada
vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as
pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no
entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que
demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da
literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou
ficaria agrave margem dela
Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente
envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil
compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de
que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele
sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado
na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se
algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid
p 729)
34
Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe
expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao
contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que
trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso
pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura
toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre
Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente
inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem
relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante
das acusaccedilotildees de ininteligibilidade
Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)
Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que
tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph
Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da
publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel
aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na
obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada
ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por
Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do
Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo
ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem
negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam
explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem
fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os
35
obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto
a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um
estudo de alguma maneira democratizador
O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)
Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte
da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua
biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira
foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que
tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu
ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na
outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce
lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo
registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que
fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)
O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de
um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque
natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que
formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes
uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um
molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler
qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras
36
dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos
entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei
guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e
investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega
agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o
ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O
meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo
antimetoacutedico
Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta
e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o
meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989
p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo
ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras
apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de
necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e
que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser
incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de
leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)
Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas
outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo
somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi
escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou
apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez
ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma
pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de
significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja
a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou
ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que
trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o
compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos
aqui
37
O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do
tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica
perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a
concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha
desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre
como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do
italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade
constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a
problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute
possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim
pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o
que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra
obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras
tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como
qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um
livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido
como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se
perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro
defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria
literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil
compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie
de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como
acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses
Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel
uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode
ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio
de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo
apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de
literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno
Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer
no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash
sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo
38
(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura
interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual
afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural
em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute
realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma
facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma
especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se
sempre novo
2 Sui generis
O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee
constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de
antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse
tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso
das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em
que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha
de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de
categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente
superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro
consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma
e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo
de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso
ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente
anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras
da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que
deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute
na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria
15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James
39
que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a
gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais
longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a
normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake
pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel
inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da
publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress
Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com
sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus
caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo
claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia
inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou
talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra
Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria
com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)
tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por
faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-
riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia
para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da
letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento
nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre
dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por
Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)
Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James
Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel
afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero
o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat
language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a
afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a
de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute
16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo
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linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)
ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller
como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha
uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e
sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite
que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto
espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo
fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em
nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-
linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado
como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos
oniacutericos
De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com
Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias
raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo
merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm
Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco
anos antes
lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-
americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William
York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a
frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much
17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)
41
ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada
em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma
estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte
em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a
relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall
aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro
ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia
de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila
As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake
ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo
tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele
Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou
para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como
exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos
uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade
sua ameaccedila
Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se
encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que
conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na
segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer
cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de
duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma
interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os
perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se
pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa
autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala
entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que
natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso
mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra
18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo
42
de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se
facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto
o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura
absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma
descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que
ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake
aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e
ameaccediladores do seacuteculo XX
Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina
O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto
um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos
sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a
um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu
aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar
com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em
diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido
reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo
se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue
como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob
diferentes olhos
Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo
da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna
No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a
separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou
qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria
sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam
por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como
lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre
aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo
43
Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua
projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma
interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados
a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um
caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das
ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o
mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras
para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e
atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato
teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse
sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente
Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De
forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e
consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o
texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade
e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes
quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles
relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre
haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias
fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas
Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash
ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de
prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira
sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo
Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma
seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e
possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito
dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente
decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma
categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a
respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e
semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema
44
tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto
temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito
do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante
Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como
um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa
tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como
profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para
fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras
Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de
defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram
para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por
preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras
com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do
ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta
diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno
Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)
Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer
seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e
defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos
personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as
categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente
berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com
planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o
comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta
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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos
que o infinito
Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo
Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)
Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo
descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos
arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de
ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a
primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave
maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de
verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra
se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e
diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida
considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos
uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo
de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila
Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos
a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da
caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho
platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que
pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar
cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a
cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce
estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques
Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo
46
em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de
temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake
3 Fluidez vida-morte
A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de
Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas
assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando
numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo
denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o
desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso
segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo
natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute
nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de
narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o
de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty
existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller
Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de
Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se
morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem
por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome
de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur
(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos
ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que
retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua
ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee
e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como
Caim e Abel Rocircmulo e Remo)
Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o
tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou
mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen
47
underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo
somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de
definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute
seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide
Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece
ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake
garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden
Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres
que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo
mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua
continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as
necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu
direcionamento
Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas
maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente
distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo
nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que
todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de
maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as
chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com
significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem
nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto
literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo
Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas
do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a
enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que
frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia
palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos
aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele
demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que
19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
48
rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm
confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos
lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar
categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos
concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo
pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo
estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que
permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se
desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento
Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa
que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de
que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que
nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de
leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o
contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em
subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar
qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria
essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina
Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de
instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita
de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do
intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto
que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute
anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da
morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz
novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo
Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans
wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas
sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal
O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso
natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes
49
recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente
explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente
perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da
audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz
recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz
alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo
da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo
como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua
exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave
simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos
caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto
de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz
de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta
A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou
espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma
autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente
agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que
Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao
leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo
primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer
um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita
certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada
ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo
comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um
multiverso em detrimento de um universo
Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras
fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se
propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho
meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute
o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas
tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando
Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna
50
caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for
colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro
ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake
No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta
pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem
acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta
como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor
eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-
problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar
possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou
que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho
e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e
nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie
de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que
sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco
narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se
estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de
como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute
necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de
outras consequecircncias
A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute
vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para
qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco
Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do
ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo
interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido
um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado
do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por
conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute
(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica
inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de
Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico
51
apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de
arte moderna
Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que
podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um
acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade
simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada
narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena
eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena
ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao
leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista
objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em
primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique
de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar
a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria
possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto
mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse
acompanhamento
4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica
A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que
permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem
autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro
acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos
sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas
natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra
o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na
concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas
natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro
de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao
contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que
52
o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista
como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro
A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)
Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se
vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do
enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo
possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e
limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o
texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de
formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio
Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor
do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e
Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans
wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo
XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do
que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma
ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa
na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo
cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico
proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo
semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O
leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel
mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos
sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como
em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que
21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo
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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se
acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico
natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da
negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um
outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo
que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans
wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se
o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta
A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em
afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce
dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha
tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e
chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos
psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans
wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento
da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca
Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit
on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como
muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a
citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser
encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em
duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando
ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra
sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold
sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen
certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico
ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce
respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce
quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN
1989 p 853)
Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma
simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras
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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela
[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo
ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora
do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado
Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia
percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus
poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma
exemplificaccedilatildeo de insanidade
Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a
Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos
elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo
de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a
relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos
distintos e simultacircneos na obra de Joyce
Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)
Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo
maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com
Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior
Ulysses
Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)
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Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma
que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas
possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se
entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer
paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas
caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem
paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente
disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode
ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para
outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo
III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda
inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e
ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey
Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub
Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o
Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em
portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia
desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave
condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho
feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna
criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto
formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida
em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No
entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse
um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo
para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto
ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada
tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento
do Wake
A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo
bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma
importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute
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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do
aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que
os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe
apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a
muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A
aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o
autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber
Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente
meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias
(como eacute conhecido) de Ulysses
Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a
respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era
uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence
White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce
respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de
entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma
composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em
muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa
forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees
persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas
de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha
recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira
executiva
O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo
3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in
feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em
cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou
sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo
tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA
identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se
fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a
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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio
que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate
casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente
barulhento
Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22
For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23
Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24
Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas
bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de
pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir
palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo
do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute
consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado
22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)
58
previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que
continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais
musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui
unido a Shem
Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans
wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria
como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a
leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como
muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona
diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva
e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente
mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa
comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo
Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)
A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto
a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura
em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando
decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua
evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e
natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A
essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte
59
de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais
do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas
que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo
aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um
princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica
Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a
obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o
seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto
joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os
quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia
temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas
satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao
contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem
destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas
de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim
como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas
executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na
promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do
papel
Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos
fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de
elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma
delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator
inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons
mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor
deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)
intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor
em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de
entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as
consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem
subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de
60
qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees
preacute-existentes
O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto
a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa
sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha
A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que
tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros
que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos
faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans
wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes
caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a
figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade
wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos
iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a
circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou
Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois
engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas
repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que
acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance
com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da
mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado
A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de
relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a
operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece
comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da
nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen
Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se
61
voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)
Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo
obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa
interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam
evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma
oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo
receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade
tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto
na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute
dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave
Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como
operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como
transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a
posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)
Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura
semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees
de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua
leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem
fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das
formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo
foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que
seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de
frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem
a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente
o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a
62
comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos
foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em
uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute
criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica
ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional
de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25
Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade
semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa
a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que
jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica
implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo
capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee
Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as
possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral
tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por
mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura
hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de
um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do
horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez
Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem
necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos
oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho
cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a
melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez
ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute
necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em
questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha
diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira
25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo
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homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando
ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente
decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de
assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo
Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura
do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que
flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel
Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de
algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo
precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim
destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa
ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil
de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do
texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente
colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees
criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua
complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel
CAPIacuteTULO II
FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO
65
No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na
seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des
Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos
a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p
179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como
traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto
traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou
a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo
receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave
visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora
do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio
sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua
existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa
relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos
66
A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo
produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do
idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a
exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em
detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em
literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto
expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida
inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro
evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute
perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente
por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios
notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas
e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida
bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou
sintaacuteticas
Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo
sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas
inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum
ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma
mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada
em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor
tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que
assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo
inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um
sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria
demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a
qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto
Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do
ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave
leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto
se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de
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ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e
similaridade
ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como
ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo
poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de
enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores
Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista
austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo
idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse
conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo
platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a
ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante
quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se
Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como
traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo
Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma
vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a
correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical
mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas
tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical
engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de
consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma
escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste
do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e
nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma
forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias
do que traduz
Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo
se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda
outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do
tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com
68
o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste
procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que
percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito
das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa
natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo
joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo
(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga
agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto
destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira
literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de
transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto
ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido
ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo
(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non
serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)
Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo
entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a
traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve
ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento
de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser
tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a
deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-
formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo
(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a
ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois
planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de
mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)
semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma
mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que
caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana
69
Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um
leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto
adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro
Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode
vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do
texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para
ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem
valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma
sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia
O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor
ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito
eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor
tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo
somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot
juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo
Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se
rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de
qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa
forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao
originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash
Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff
Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo
regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria
como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se
considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um
regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A
concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a
necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja
servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica
aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas
nacionais
70
A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua
autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de
forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos
que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo
Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans
wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a
intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves
no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para
um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar
engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES
1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James
Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido
elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que
Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da
proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo
mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas
especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute
submetido
Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e
qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente
expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e
qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer
que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda
menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender
destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo
os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo
de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma
equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo
traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence
a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de
literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem
proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma
71
liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do
texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz
necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor
se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda
que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela
transcriaccedilatildeo
A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito
a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de
certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas
Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash
Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash
encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de
que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua
ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum
recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua
traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade
para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso
deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo
(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na
coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir
James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica
com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o
aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)
Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do
Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans
wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas
e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto
de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva
(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical
do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar
alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que
em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta
72
voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo
(CAMPOS 2001 p 21)
Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo
integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e
Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de
Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto
debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente
gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto
oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)
Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor
afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se
submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos
somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim
inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)
Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um
esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que
percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo
predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da
traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo
aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a
pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para
que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou
desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto
desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute
entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em
vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs
o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada
invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a
linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas
ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras
73
Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans
wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto
tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos
consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de
serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por
brasileiros Na primeira linha por exemplo
riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)
Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento
direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto
temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto
espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve
em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma
impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar
o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos
semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas
possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro
periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar
agrave ideia temporal
riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)
Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo
prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se
referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo
esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja
especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso
de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato
74
pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois
personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de
forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto
de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)
Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma
outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura
mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute
a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula
rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos
Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo
ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila
uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi
a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da
ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito
das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin
uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute
em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das
primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O
marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera
nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a
traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico
uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por
todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa
mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em
Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos
os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-
se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um
possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas
75
a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com
ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em
inglecircs
A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo
Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas
superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu
fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal
extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do
tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo
apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada
entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul
Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do
tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura
um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio
ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees
de tempo linguiacutestico
Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)
De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida
contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as
referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por
Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais
76
Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou
perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um
impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada
O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu
desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver
mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para
qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se
contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por
mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros
que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente
entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade
como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no
entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de
fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que
existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os
diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas
de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona
Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma
(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como
uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de
vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto
de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou
um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas
sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos
Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes
resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a
pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma
disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo
pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a
traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma
metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma
pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio
77
A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo
afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas
respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de
ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda
que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto
literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de
partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais
pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de
partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e
funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e
concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que
havia outrora no texto de partida
Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do
trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning
and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that
signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell
lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma
relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre
a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na
distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo
o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em
determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma
combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova
As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se
fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode
oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido
produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas
tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo
Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como
tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce
26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo
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escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de
rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas
pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce
em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do
portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso
prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que
diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts
itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto
a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma
(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como
reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo
Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas
afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido
executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado
tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura
considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado
como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para
exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de
intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio
em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema
etc independentemente do gecircnero literaacuterio
A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma
dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo
o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para
que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes
sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em
frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por
variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e
Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus
e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo
ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma
das personagens no que estiver acontecendo a cada momento
79
Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver
uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em
uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado
Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria
igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo
natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio
entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la
como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes
tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem
toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)
especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando
discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo
como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela
pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela
mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa
uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime
uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra
literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a
traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee
com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou
visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa
tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto
Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto
de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios
compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos
escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou
menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por
isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as
extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas
de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio
Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala
sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel
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What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27
Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao
Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos
trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo
mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de
qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em
seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da
linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur
lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das
liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo
pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio
Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em
fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando
no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que
contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto
feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da
proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de
confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais
estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que
ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos
explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake
nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua
27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo
81
Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal
de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira
de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da
traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como
eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e
olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a
definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a
cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo
do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo
ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura
hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo
apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado
ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash
no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar
ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo
Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar
destrinchaacute-lo
CAPIacuteTULO III
LEITURA LUTO ELIPSE
83
Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante
fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo
da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade
continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse
texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos
dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o
previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma
leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma
leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro
eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante
do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura
fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa
84
Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos
supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se
findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela
Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que
algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando
de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as
implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente
possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua
concepccedilatildeo
Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que
indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de
relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que
determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala
necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de
percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute
claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute
certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos
oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho
linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado
que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer
seu terreno
Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que
concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura
desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do
sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash
consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal
natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e
que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de
interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve
esse ponto com as seguintes observaccedilotildees
85
Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)
Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em
consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake
demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o
texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo
se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa
posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva
Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo
necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao
contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite
que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder
acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo
observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada
consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco
continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura
perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice
Merleau-Ponty
A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)
86
Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de
leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma
estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que
se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma
leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a
obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o
nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada
ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura
ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas
possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os
fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando
dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler
qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute
o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo
desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer
como obra una e total
Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os
fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash
ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o
acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam
tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o
fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por
satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que
aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe
confere coerecircncia como obra
As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No
entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina
ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta
em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila
crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica
necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa
abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um
87
meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura
mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e
algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui
nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as
possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas
as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas
e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo
Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de
acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em
conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se
saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria
se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro
jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse
sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem
O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe
de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de
que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se
daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se
eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de
suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake
eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like
the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos
hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants
a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma
geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake
tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro
partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma
geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo
28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo
88
em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de
ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente
enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um
ponto
A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da
aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que
nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno
ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel
Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima
frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem
que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)
retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no
entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim
se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como
modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens
haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que
estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute
retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai
e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca
circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao
movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio
texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado
explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW
1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras
obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em
linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto
originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em
Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do
protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a
estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila
29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo
89
Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York
Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece
considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas
causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura
Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o
uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar
o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em
sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento
de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma
espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo
muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a
incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and
a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel
methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)
No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o
uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo
4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que
formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem
mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto
eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles
dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que
fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos
moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso
mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma
leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa
estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo
haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos
poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o
mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma
30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo
90
sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a
tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia
A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia
tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas
em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de
trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se
intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma
compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a
possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto
agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language
Laurent Milesi diz
This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31
A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos
histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells
irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake
certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo
histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria
a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando
voz perspectiva contexto
31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo
91
Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se
sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma
partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto
inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo
de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem
niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode
vir a ser em mais de uma possibilidade
A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute
operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo
entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do
Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso
pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do
texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl
Jaspers (1883-1969) diz
O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)
A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao
livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do
tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente
mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos
desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga
mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia
que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa
afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a
voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de
certa maneira aiacute jaacute natildeo existe
92
O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se
opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento
ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica
no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na
histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma
volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo
presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se
faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo
que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo
ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do
lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)
O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute
sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica
senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo
cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo
linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo
acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake
circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo
fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo
somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que
natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um
assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo
ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas
A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente
por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual
se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo
linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo
passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico
se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do
tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui
a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para
explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico
93
A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia
moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a
positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria
que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a
respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o
fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o
mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a
uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO
mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma
no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar
eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo
(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)
A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do
leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun
awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees
silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete
em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida
da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na
narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun
a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada
Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em
mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin
ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou
mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido
talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash
mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem
podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)
e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro
ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao
nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que
despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake
94
substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no
geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)
Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse
ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping
and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and
appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter
of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra
como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his
human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu
livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim
a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake
knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)
O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital
em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que
Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim
como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem
correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica
em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender
e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que
lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a
Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que
podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash
que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita
Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com
uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens
nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na
incontornaacutevel indefiniccedilatildeo
32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo
95
Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos
mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao
desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um
dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to
complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo
contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na
ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual
poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute
tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin
surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um
cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo
para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se
demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta
demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos
pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem
cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no
parque em questatildeo
They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36
35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo
96
Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no
espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin
of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker
fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos
tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante
Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na
expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse
mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se
desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente
abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido
Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall
pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as
absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do
texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com
clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se
em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos
e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que
apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix
Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim
como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de
conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma
Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por
indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz
em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama
wakiana
Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall
contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a
ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo
ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they
took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que
37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo
97
se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees
parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da
personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual
mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se
apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar
com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado
Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como
seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que
compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no
rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto
permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os
ausentes
Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como
pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco
cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua
determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se
possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais
uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda
Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma
divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em
que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo
Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho
do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como
origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute
uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees
de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar
o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em
que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois
estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam
em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da
autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto
98
Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)
Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai
por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a
perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o
que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido
precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute
desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura
para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um
resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente
livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)
De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de
concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute
alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na
necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na
busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da
libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto
racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo
normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo
proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam
homenagens seu enterro e seu descanso
Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough
99
Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38
Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo
apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro
subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos
egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do
que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos
poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais
de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos
que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram
chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que
haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte
experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do
percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao
contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um
caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de
barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na
verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia
38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo
100
No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey
Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade
satildeo numerosas
Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39
all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40
But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41
As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam
tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-
se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos
divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake
natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no
luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras
realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais
ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se
dissolvem
O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e
entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade
de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que
isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim
como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga
39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo
101
no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute
o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o
mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha
de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger
Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no
que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um
significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais
Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve
considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas
eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que
diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-
los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de
Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado
partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure
No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)
Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam
ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer
para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com
significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais
102
parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo
portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a
materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns
momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual
O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma
concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund
Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer
regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou
ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia
de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera
as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui
invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce
uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas
para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo
produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo
seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente
que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente
irrecuperaacutevel
Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu
ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado
de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao
menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da
obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por
uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura
o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida
Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter
103
nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42
A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio
de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans
wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor
irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no
The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da
dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in
allrdquo como em Finnegans wake
Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques
Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz
solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear
portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo
em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo
discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa
apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por
mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito
mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja
reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse
modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos
textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma
ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva
42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo
104
vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas
escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A
conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque
comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra
maneirardquo (Ibid)
Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao
sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo
fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-
se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans
wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e
organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar
dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de
qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma
numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao
desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo
e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a
certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso
arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra
Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le
sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques
Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos
Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que
diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel
Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa
mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz
Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)
105
Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em
uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras
linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte
supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz
profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute
nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo
semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito
alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras
distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa
medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de
uma barreira temporal
Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do
iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando
univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo
de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau
chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que
se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem
por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na
escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na
linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido
diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca
por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o
maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no
entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do
alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se
farta dela
Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao
leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de
suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores
como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar
algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria
idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo
106
estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma
Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)
e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de
comunicaccedilatildeo
Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43
No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo
assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem
um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento
pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto
literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior
especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre
todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia
de remetimentos infinita
Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na
passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao
mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em
articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria
na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente
43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo
107
por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro
sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011
p 385)
Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela
liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase
concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de
escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura
talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e
do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade
CAPIacuteTULO IV
FLUIR E RETORNO
109
O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um
problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da
existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar
as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do
sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica
de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da
tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda
de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da
mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se
podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da
cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)
110
Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria
profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso
aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees
O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de
temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que
Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase
cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do
que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue
poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam
a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a
personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash
que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou
deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma
pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da
realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil
ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos
rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis
No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo
surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as
primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal
e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a
mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz
respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho
In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44
44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo
111
O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua
chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que
seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu
lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e
apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e
sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome
derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente
como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu
lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na
medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma
comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo
haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de
polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade
Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como
uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente
islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave
antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando
e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas
podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna
Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete
a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a
Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo
A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica
quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que
reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma
posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de
repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah
the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de
termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar
que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica
meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis
112
Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA
fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa
loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo
com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como
habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou
ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA
2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de
maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha
especificidade
No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo
relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de
leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias
tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou
dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa
previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o
passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia
novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto
matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade
Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura
remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um
acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria
mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)
textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em
que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou
ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se
revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente
monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute
visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus
processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato
alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake
considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto
113
Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial
maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os
adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento
especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo
conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo
foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se
entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos
servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as
ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute
equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por
detraacutes da mulher-Liffey
A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala
islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito
Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo
natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo
da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem
humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida
pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo
nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra
quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem
the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e
Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como
mensageiro
Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda
essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e
hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de
Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com
professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma
conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954
publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do
uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos
114
posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu
interlocutor
A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)
Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a
encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e
essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia
espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the
name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee
deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho
indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos
remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente
verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu
lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem
mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes
intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que
Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva
possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia
de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse
isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila
em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos
capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos
sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente
caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida
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Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11
em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala
embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo
de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das
lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo
de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as
sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos
devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por
muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras
pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no
mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo
e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda
ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo
nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais
eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam
assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria
tradicionalmente a voz narrativa central
A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda
na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na
citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da
hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo
ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse
quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na
interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro
dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la
alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio
Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto
Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que
o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell
e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as
luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)
e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma
116
separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de
possibilidade remota
A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em
que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia
Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie
de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo
se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo
dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e
diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo
maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam
personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre
todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e
diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e
passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade
geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares
complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode
caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos
diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de
tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos
o coletivo como histoacuteria e memoacuteria
A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho
anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo
de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute
havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a
mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute
desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel
centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro
intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz
em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados
Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em
fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum
117
da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da
mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia
A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes
temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o
tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro
(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um
caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence
(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas
o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto
de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas
O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro
intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado
nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o
ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades
paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados
futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria
intocada
Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma
porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente
qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente
um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha
em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a
partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria
seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se
apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao
inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma
suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute
chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e
domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a
espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha
a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um
118
narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos
fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior
Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma
incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do
texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo
se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode
definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda
definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a
temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de
Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um
cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do
monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se
trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute
poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo
interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O
final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um
continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que
a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol
que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker
pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo
sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do
Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro
idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o
encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute
de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal
especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos
verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural
child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age
of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita
45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo
119
ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade
a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente
ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o
passado de fato passou
Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey
seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura
centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice
a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua
calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las
conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser
distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de
conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do
acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve
ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter
tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da
ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um
personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos
junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma
sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de
aspecto muacuteltiplo
Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem
sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais
especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a
questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de
Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e
no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem
o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade
Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-
delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido
negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo
nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele
que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin
120
Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch
retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente
trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber
sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer
tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia
Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)
Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo
concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece
em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma
ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de
todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho
interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim
partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis
desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior
possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave
ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela
temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como
aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo
Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que
o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles
mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais
aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento
vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar
desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido
pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-
do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o
121
passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa
permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute
justificada
Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)
O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha
heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga
interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por
fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία
presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de
Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz
respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-
ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-
ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de
Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico
encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente
pois o mesmo eacute pensar e ser
[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
(Frag III)
Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o
natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando
nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois
termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente
presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da
122
discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados
com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado
φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo
O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a
sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia
vocabular
Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash
quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar
um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser
eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)
o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser
esse te indico ser caminho em tudo ignoto
pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel
nem mostraacute-lo []
Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -
[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -
οὔτε φράσαις[]
(Frag II)46
O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no
momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda
assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa
necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se
estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger
46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo
123
tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre
ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa
ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa
definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional
Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas
investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida
em Marges de la philosophie (1972 1991)
O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)
Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que
Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que
seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas
vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que
ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO
ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente
ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)
isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία
significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero
sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na
forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo
que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que
forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia
ausecircncia)
A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta
124
que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)
Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura
entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em
certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto
de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel
e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente
permanecer na presenccedila estar no presente
Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que
o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute
por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a
Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica
Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central
No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um
agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo
O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)
No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro
uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda
que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o
sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se
caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo
125
gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada
entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo
Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47
Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da
coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros
de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras
que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo
instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet
no body is presente here which was not there before Only is order othered
Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada
uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o
que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes
relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit
que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que
algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)
Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o
despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se
cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma
vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma
espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso
tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de
algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia
Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja
47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo
126
com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter
fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos
reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia
de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em
que anuncia uma revinda
What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49
No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona
reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade
do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo
nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo
divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra
natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver
lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a
temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste
e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-
tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o
desaparecimentoausecircncia
49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo
127
Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)
Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo
ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave
percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta
especiacutefica do tempo
O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)
Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo
de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os
termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a
sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que
perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua
definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo
do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo
sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que
os problemas se iniciam
A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem
compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que
Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do
povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e
respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma
Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala
o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de
128
questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo
de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW
40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo
atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo
presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases
O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz
reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o
presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado
temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a
narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma
primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a
inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para
pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade
textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente
de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma
Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que
seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que
fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas
por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade
No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida
tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda
que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute
simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto
eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo
mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente
o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente
do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na
medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem
espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com
futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a
50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo
129
presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo
que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute
inevitavelmente permeada
Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como
escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir
da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a
compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans
wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute
equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma
sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da
subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo
objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso
poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na
relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo
vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como
princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo
objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera
pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia
expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu
horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o
Outro do meu tempo
Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra
Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e
que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute
somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que
nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash
menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro
incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque
somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia
ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O
reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de
que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel
130
quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia
portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o
humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o
tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o
anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu
tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos
mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o
que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa
memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo
mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se
juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para
essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances
variadas dos aspectos temporais da existecircncia
Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente
adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo
uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e
ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala
tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-
ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no
porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma
outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista
Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual
Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades
viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia
temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se
na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a
caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e
simplesmente caos
Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego
do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades
diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden
Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa
131
fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute
em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of
thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or
reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo
(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel
modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como
visiacutevel
Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem
que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e
fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos
informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e
perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a
paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash
natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que
tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um
momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e
ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas
conversas
Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53
Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o
proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite
quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas
acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e
51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)
132
especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash
ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente
mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite
funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite
sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como
se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo
acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma
ou seja qualquer) noite especiacutefica
Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente
fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas
consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para
o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da
eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo
tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode
tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo
teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement
qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo
que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade
que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo
fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo
considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho
esclarecedor entatildeo Levinas explica
Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54
54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo
133
Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para
a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa
para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma
sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo
Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle
qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra
ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como
ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade
como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o
tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica
individual
A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)
Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi
apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de
vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo
complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e
tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes
dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por
rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila
feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que
separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como
essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central
55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo
134
da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben
relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo
do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da
destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do
agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A
marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal
solitaacuteria
Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)
No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de
encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the
pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma
forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente
movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro
da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake
Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se
tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em
eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode
vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no
tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura
expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a
expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos
dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa
fludez de ricorso torrencial
56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)
135
Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo
em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um
fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos
encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no
ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre
inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com
ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute
referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos
Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa
paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da
saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um
significado riquiacutessimo
O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया
pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o
crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da
madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois
opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo
entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem
somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto
de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver
Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais
um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto
iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma
e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por
exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz
em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele
povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente
formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade
fenomecircnica do instante
136
Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna
Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se
compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de
maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou
natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que
o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de
geraccedilotildees com a passagem do tempo
And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58
Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos
Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das
memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes
Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-
1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e
preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao
protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural
que metaforiza o das relaccedilotildees familiares
O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento
circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a
impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim
entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que
natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se
faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que
57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)
137
se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento
desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda
permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel
a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes
A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos
que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de
NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo
antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem
desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da
substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem
aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o
nascer do Sol
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
139
Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una
de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural
Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos
importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto
intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas
Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que
podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo
aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake
Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro
com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo
abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente
140
Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o
problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a
uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute
possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a
uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de
lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a
heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que
podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam
ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um
sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os
guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se
antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende
abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser
dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute
uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura
precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse
Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas
escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem
porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o
Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam
Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma
sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O
ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de
qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso
afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um
livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a
seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e
abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees
de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das
obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo
do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para
ser questionado
141
O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o
excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e
da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a
separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce
A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada
pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo
qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia
(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in
TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em
tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo
eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente
limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa
talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura
tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida
No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na
problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge
para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma
relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume
Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna
Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no
capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento
e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando
o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno
assinala-se que
Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)
60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)
142
Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um
sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego
ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem
citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em
geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)
exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo
que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim
permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos
com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural
Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um
defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa
que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake
eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas
apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como
todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em
hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que
estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida
ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria
um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o
que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que
se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por
mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio
em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da
literatura
Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)
143
Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito
ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao
despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair
do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo
proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele
vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas
palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o
sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se
mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em
nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e
multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e
do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos
polifocircnicos
Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao
texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura
eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na
ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva
a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute
constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e
nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo
escritural
Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)
Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees
diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram
aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece
com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada
irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de
144
uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no
chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana
oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta
uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a
leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do
senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente
dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias
tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada
de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por
conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam
acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo
clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa
Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre
circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos
moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se
tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular
do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu
caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra
a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem
redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade
145
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