o guerrilheiro luther blisset: criação de táticas antimidiáticas contra o biopoder
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Trabalho de conclusão de curso de Comunicação Social/Hab. Jornalismo da UFSM, por Dairan Paul.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO
O GUERRILHEIRO LUTHER BLISSETT: CRIAÇÃO
DE TÁTICAS ANTIMIDIÁTICAS CONTRA O
BIOPODER
MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO
Dairan Mathias Paul
Santa Maria, RS, Brasil
2013
O GUERRILHEIRO LUTHER BLISSETT: CRIAÇÃO DE
TÁTICAS ANTIMIDIÁTICAS CONTRA O BIOPODER
Dairan Mathias Paul
Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social – Jornalismo da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo
Orientador: Prof. Aline Roes Dalmolin
Santa Maria, RS, Brasil
2013
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Departamento de Ciências da Comunicação
Curso de Comunicação Social – Jornalismo
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Monografia
O GUERRILHEIRO LUTHER BLISSETT: CRIAÇÃO DE TÁTICAS
ANTIDIMIÁTICAS CONTRA O BIOPODER
elaborada por
Dairan Mathias Paul
como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________________
Profª. Dra. Aline Roes Dalmolin (UFSM)
(Presidente/Orientadora)
_____________________________________________
Prof. Me. Leonardo Feltrin Foletto (UFRGS)
_____________________________________________
Profª. Dra. Liliane Dutra Brignol (UFSM)
Santa Maria, 19 de dezembro de 2013.
Este trabalho, bem como os últimos quatro anos de faculdade,
são dedicados à memória de Diogo Augusto Paul.
AGRADECIMENTOS
Se a linguagem não é capaz de apreender o todo de uma realidade, essa lista de
agradecimentos já admite, de antemão, que não dá conta de contemplar todos que fizeram
parte dos meus últimos quatro anos. No entanto, sinto-me na obrigação de citar pelo menos
alguns nomes em meio a essas breves palavras, que se mostram tão difíceis de serem escritas
quanto o restante dessa monografia.
À dona Dori e ao seu Darci, por compreenderem o silêncio, o mau humor e o estresse
que as últimas semanas de escrita provocaram. Por acreditarem e por me apoiarem em todos
os momentos da minha vida. Por me deixarem sem palavras suficientes para agradecer vocês.
À minha orientadora Aline Dalmolin, uma vez que esse trabalho não teria sido
completado sem a sua ajuda e disposição inigualáveis (que o digam as traduções do italiano!).
Obrigado por ter acreditado no tema desse TCC muito mais do que eu, em certos momentos –
especialmente no começo. Tenho muito orgulho de ter sido orientado por ti e espero que, ao
fim das contas, eu não tenha feito você cair num prank caótico à lá Blissett.
Ao quadro docente da FACOS e, em especial, às professoras Veneza, Márcia e
Viviane. À Laura Wottrich, Laura Storch e Gisele Reginatto pelas aulas e, principalmente,
pela amizade. Obrigado por serem pessoas inspiradoras em quem eu me espelho para
continuar na pesquisa, futuramente.
Aos professores Holgonsi Soares e Francis de Almeida, do curso de Ciências Sociais,
e Janyne Sattler, do curso de Filosofia, por me proporcionarem novas perspectivas e olhares
na comunicação, e pela receptividade com que fui recebido em suas aulas.
À Otacilio Neto, uma das pessoas mais generosas que conheci na FACOS.
Aos integrantes do grupo de pesquisa Comunicação, Identidade e Fronteiras,
coordenado pela professora Ada. Agradeço, em especial, à minha colega Mariana, pelos
inúmeros almoços, sonhos, lamentações e Faixas Novas, claro.
Aos meus colegas de curso, por todas as decepções que se tornaram piadas e por todas
as piadas que se tornaram alguns dos melhores momentos da minha vida. À Carolina Barin e
ao Jean, por tudo.
Aos amigos de sempre, pelas histórias que levaremos pelo resto de nossas vidas. À
Milena e ao Tex, por estarem por perto sempre que precisei e por serem os irmãos errantes
que eu tive a sorte de encontrar por aí.
Por fim, a ideia desse TCC nasceu a partir de uma canção. Naturalmente, a música foi
a principal companheira nos últimos dias solitários de escrita. Devo agradecer, portanto, à
dança dos dias, aos peixes mortos, às musas, às abóboras esmagadas, aos fogos, ao lúpulo. À
toda e qualquer forma de expressão artística que arrepia e deixa a nossa vida um pouco
melhor.
(e ao Diogo, quando disse que eu”devia mesmo” ser jornalista porque passava a infância de
pijama, em casa, com preguiça de trocar de roupa. Bem, aqui estamos nós, maninho)
Hão de ser benditos os dias que não me lembro mais,
e os passos perdidos registrados estão
nos rastros que deixei,
ranhuras que forjei
na palma da minha mão.
Os calos doem.
Resta, então, só resistir,
e continuar
a ser mais um ciclano que o tempo constrói
(Os dias morrem – Lupe de Lupe)
A busca não para.
Nunca deve parar.
Porque a gente sempre tem que buscar mais, aprender mais, ser mais do que é. E nessa busca
por eu mesmo acabei enfim descobrindo o que realmente sou.
Eu sou um vampiro de juventude.
E preciso de alimento, de vida, de faíscas gritando dos olhos. Preciso de gente boa por perto,
de gente que quer vida, de gente que faz planos, de gente que não aceita o império da
tristeza. Essa é a minha dança dos dias. E ela é tudo o que sou.
(Fabio Altro)
RESUMO
Trabalho de Conclusão de Curso
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Departamento de Ciências da Comunicação
Universidade Federal de Santa Maria
O GUERRILHEIRO LUTHER BLISSETT: CRIAÇÃO DE TÁTICAS
ANTIMIDIÁTICAS CONTRA O BIOPODER AUTOR: DAIRAN MATHIAS PAUL
ORIENTADORA: ALINE ROES DALMOLIN
Data e local da defesa: Santa Maria, 19 de dezembro de 2013.
O trabalho tem como objeto Luther Blissett, uma identidade aberta, livre para ser utilizada por
qualquer pessoa que decidisse adotar o seu nome. Ao longo da década de 1990, na Itália, as
ações dos indivíduos sob a alcunha de Blissett desenvolveram uma série de críticas à mídia da
época, através da criação de notícias falsas que foram divulgadas pelos jornais do país. O
objetivo dessa monografia é identificar quais são as táticas utilizadas por Blissett na criação
dessas ações, a fim de construir um modelo de resistência frente ao biopoder midiático. Como
referencial teórico, utilizamos Hardt e Negri, que, por sua vez, partem de Foucault, Deleuze e
Guattari para conceituar biopoder e biopolítica. Compreendemos também que Blissett se trata
de uma multidão constituída por trabalhadores imateriais. Por fim, destacamos as influências
do neoísmo e do situacionismo na organização do nome múltiplo. Em nossa análise,
caracterizamos Luther Blissett como mídia tática – em oposição à mídia alternativa - a partir
das categorias propostas por Mazetti, e também utilizamos a distinção de Charaudeau a
respeito do acontecimento jornalístico.
Palavras-chave: Mídia tática. Biopolítica. Multidão. Luther Blissett.
ABSTRACT
Trabalho de Conclusão de Curso
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Departamento de Ciências da Comunicação
Universidade Federal de Santa Maria
THE GUERRILLA LUTHER BLISSETT: CREATION OF TACTICS
AGAINST THE BIOPOWER AUTHOR: DAIRAN MATHIAS PAUL
ADVISER: ALINE ROES DALMOLIN
Data e local da defesa: Santa Maria, 19 de dezembro de 2013.
The object of this work is Luther Blisset, an open identity, free to be used by anyone who
decides to take his name. Throughout the 1990s, in Italy, the actions of individuals under the
name Blissett developed a critical series of the media of the time, through the creation of false
reports that were published by the newspapers of the country. The purpose of this monograph
is to identify the tactics used by Blissett in the creation of these actions in order to build a
model of resistance against the media biopower. As a theoretical, we used Hardt and Negri,
both of them rely on Foucault, Deleuxe and Guattari to conceptualize biopower and
biopolitics. We also understood that Blisset is a multitude constituted of immaterial workers.
Finally, we highlighted the influences of neoism and situationism in the multiple name
organization. In our analysis, we characterized Luther Blissett as tactical media – in
opposition to alternative media - from the categories proposed by Mazetti, and also used the
distinction of Charaudeau about journalistic event.
Key words: Tactical media. Biopolitic. Multitude. Luther Blissett.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Resumo do prank contra o Padre Gelmini ....................................................... 78
Tabela 2 – Resumo do prank da prostituta soropositiva .................................................... 84
Tabela 3 – Resumo do prank da missa negra ...................................................................... 98
Tabela 4 – Resumo do prank contra Quem o Viu? ........................................................... 106
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - retrato oficial de Luther Blissett. ............................................................. 13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12
1. “ONDE HÁ PODER, HÁ RESISTÊNCIA”....................................................... 17
1.1. Biopolítica no Império: indústria da comunicação, produção de subjetividades e
trabalho imaterial ................................................................................................................... 19
2. A MULTIDÃO SOB O SIGNO DE LUTHER BLISSETT ...................... 30
2.1. “Muito dinheiro porque eu sou muitos” ........................................................................ 32
2.2. Reapropriação da informação: a figura do guerrilheiro midiático ........................... 40
3. O OPERÁRIO DA ARTE: CONTEXTO POLÍTICO, ARTÍSTICO E
SOCIAL DA ITÁLIA A PARTIR DA DÉCADA DE 1950 .......................... 46
3.1. Sobre os Centros Sociais e a formação do Projeto Luther Blissett ............................. 51
3.2. A influência dos movimentos artísticos ......................................................................... 55
3.2.1. Heranças situacionistas e neoístas: détournement, psicogeografia e nome múltiplo ..... 60
4. ANÁLISE DAS TÁTICAS ANTIMIDIÁTICAS ....................................... 71
4.1. Dimensão espaço-temporal ............................................................................................. 73
4.2. Dimensão midiática ......................................................................................................... 78
4.3. Dimensão política ............................................................................................................ 84
4.4. Dimensão discursiva ..................................................................................................... 106
CONCLUSÃO ................................................................................................. 108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 112
12
INTRODUÇÃO
(...) por exemplo, o dia 28 de dezembro, dia dos Santos Inocentes (pelo menos na
Espanha). Nesse dia, pode-se passar trotes à vontade e a mídia pode transmitir uma
notícia falsa. Mas isso não questiona a credibilidade da mídia, porque a audiência
conhece, de antemão, essa suspensão parcial do contrato pragmático fiduciário e a
proposta de um pequeno contrato lúdico. O jogo proposto consiste em sermos capazes
de adivinhar qual seria a notícia falsa.
Miquel Rodrigo Alsina, em ―A construção da notícia‖
Uma nova construtora imobiliária chega à Porto Alegre em outubro de 2013. A
Compagnia Luther Blissett1 existe desde 1972, ano em que Enzo Blissett (o neto de
Blissett) transformou em uma construtora de silos o antigo galpão de seu avô. Os
negócios expandem-se e os levam ao ramo da construção civil. Após se firmarem como
um dos maiores empreendimentos da Europa, o grupo chega à América Latina e tem
como primeiro projeto a implantação do Rédemption Parc, complexo de três torres
residenciais, em meio ao Parque da Redenção, na capital de Porto Alegre, Rio Grande
do Sul.
―As redes sociais emplacaram mais uma brincadeira nesta segunda-feira‖,
escreve Zero Hora2 (2013), abrindo a matéria que desmente as informações elencadas
acima, repercutidas nas redes. O jornal desvenda a farsa do projeto, que supostamente
destruiria um dos símbolos da cidade de Porto Alegre. Revela que Luther Blissett (L.
B.) não existe: trata-se de um nome múltiplo, uma identidade aberta que foi criada na
década de 1990 na Itália e disseminada pelo restante do mundo, até o momento de seu
―suicídio‖ declarado em 1999. Uma construção coletiva de um mito de luta, onde
qualquer pessoa poderia ser Blissett, bastando se declarar como tal.
O Projeto Luther Blissett (PLB) nasce no ano de 1994, em Bolonha, e sua
primeira fase compreendeu um período de cinco anos3, indo até 1999. É nesse período
1 Site do grupo disponível em: <http://redemptionparc.com.br/?page_id=138>. Acesso em: 6 dez 2013.
2 Disponível em: < http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2013/10/site-falso-mostra-projeto-
de-construcao-de-predios-no-parque-da-redencao-4300683.html>. Acesso em: 6 dez 2013. 3 Trata-se do plano qüinqüenal estabelecido pelos idealizadores do Projeto, em Bolonha. Roberto Bui, um
dos membros originais, explica a diferença entre o Projeto Luther Blissett e o nome Luther Blissett, além
de discorrer sobre a sua duração de 5 anos: ―desde o começo, em 1994, nós decidimos que Luther Blissett
seria um plano qüinqüenal, de 1994 a 1999. Não exatamente Luther Blissett, mas o Projeto Luther
Blissett. São duas coisas diferentes. O Projeto Luther Blissett era a network original, a network das
pessoas que começaram a usar o nome no meio dos 90. Enquanto, por exemplo, as pessoas que usam o
nome Luther Blissett agora não são parte do Projeto Luther Blisset, elas simplesmente são Luther Blissett.
O Projeto Luther Blissett era uma das possíveis organizações de Luther Blissett. De qualquer maneira, o
Projeto Luther Blissett estava planejado para terminar em 1999. Era uma paródia, uma caricatura da
13
que se formou o nome múltiplo Luther Blissett, junto com a ideia de utilizá-lo para criar
situações abertas – o que logo se disseminou para muito além dos membros iniciais do
Projeto. Dentre os usos da identidade coletiva de L. B., foram marcantes as ações de
psicogeografia (uma pseudociência que estuda os efeitos da cidade no indivíduo), do
Teatro Situacionista4 de Luther Blissett e da criação de notícias falsas implantadas na
mídia italiana da época. É neste último ponto que vamos nos deter em nosso trabalho.
Figura 1: o retrato oficial de Luther Blissett, que resulta de uma imagem virtual constituída pela fusão de
fotografias de rostos masculinos e femininos. Fonte: http://www.lutherblissett.net/img/luther-blissett-
300.jpg.
Em 1999, o grupo que originou o Projeto realiza uma espécie de suicídio
simbólico, renunciando o nome e formando o coletivo de escritores Wu Ming
Foundation. Estes, por sua vez, lançam romances de cunho histórico e passam a travar
uma luta contra os direitos autorais. Seus membros são Roberto Bui, Giovanni
Cattabriga, Luca Di Meo, Federico Guglielmi (que também participaram do PLB), e
Riccardo Pedrini. Depois que revelaram suas identidades, os membros originais do
economia soviética, com os planos de cinco anos. E também porque cinco anos era tempo suficiente para
se conseguir resultados, conquistas concretas, e não era tempo demais‖ (SALVATTI, 2002, s/p). 4 Há dois vídeos que documentam as ações de rua do teatro situacionista. Segundo suas descrições, foram
filmados em 1996. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=QNiP3p5a9nI> e
<http://www.youtube.com/watch?v=akTOFSgH1e0>. Acesso em 6 dez 2013.
14
Projeto concederam diversas entrevistas, inclusive para veículos brasileiros, como
Extra5, Carta Maior
6 e Folha Ilustrada
7.
No entanto, este trabalho se foca na primeira fase do Projeto, de 1994-1999, pois
é nesse período que se inserem os pranks de Blissett contra a mídia italiana da época.
Prank significa um trote ou golpe que rompe com ordens autoritárias e hierárquicas,
utilizando-se de aspectos artísticos, políticos e humorísticos (SALVATTI, 2010). Em
suma, o que pretendemos estudar são as histórias falsas que Luther Blissett cria e que a
mídia veicula, tomando-as como verdadeiras. Mais especificamente, nos debruçamos
sobre a análise das táticas que L. B. utiliza durante seus pranks.
A escolha pela delimitação deste tema se justifica pela falta de estudos do
campo, apesar de existirem trabalhos acadêmicos sobre Luther Blissett. Estes, no
entanto, tratam muito mais de citar L. B. como um exemplo histórico de ativismo do
que propriamente analisá-lo. Foram poucas as produções em que encontramos mais de
dois ou três parágrafos dedicados a Blissett. Dentre essas, é necessário destacarmos a
tese de Oliveira (2006) que trata do biopoder e das resistências culturais que emergem
frente a ele; e a dissertação de Salvatti, que analisa o prank como modo performático de
resistência. Fora do Brasil, temos Bazzichelli (2008; 2010), que analisa Blissett a partir
do prisma das networks (sua organização em rede), e, por fim, Deseriis (2010, 2012).
Este dedica um artigo inteiro a L. B., analisando a sua relação com o trabalho imaterial
e a criação dos mitos. Esboça, também, algumas palavras a respeito dos pranks contra a
mídia.
Deste modo, pretendemos analisar em profundidade as táticas que Blissett
realiza para implantar as suas ações. O corpus de nosso trabalho foi construído a partir
de um critério simples: reunimos as ações que tivessem o maior número de informações
disponíveis. A base principal são os textos postados no site do Projeto Luther Blissett8 e
também no livro Guerrilha Psíquica9 (2001). Ainda, conseguimos acessar algumas
notícias da época através de arquivos históricos dos jornais italianos.
5 Disponível em: <http://www.wumingfoundation.com/italiano/rassegna/extraclasse.html>. Acesso em 6
dez 2013. 6 Disponível em: <http://www.wumingfoundation.com/italiano/rassegna/cartamaior.html>. Acesso em 6
dez 2013. 7 Disponível em: < http://www.wumingfoundation.com/italiano/rassegna/folha_q.html>. Acesso em 6 dez
2013. 8 Disponível em: < http://www.lutherblissett.net/>. Acesso em: 6 dez 2013.
9 Carvalho (2011) identifica dois grupos em relação à literatura sobre resistência midiática no Brasil. ―Há
trabalhos acadêmicos em produção sobre o tema, o que consideramos como tentativa de produção de
teoria minoritária no campo da comunicação. (...) Outro grupo reúne teorias produzidas por coletivos ou
indivíduos que têm afinidade direta com esse tipo de resistência, que criam território em que teoria e
15
Os relatos das ações são comuns entre ativistas midiáticos justamente pela ideia
de disseminar as táticas entre outros grupos, além de justificar e refletir sobre as ações
feitas. Como nosso objetivo é compreender as ações de Blissett a partir da sua
perspectiva e do que o Projeto entende por tática, a utilização destes textos pessoais não
parece ser um empecilho à pesquisa. Assis (2006), em sua dissertação que analisa as
lógicas midiáticas de grupos como Adbusters e Yomango, justifica a utilização direta do
relato em primeira pessoa dos ativistas justamente por atender ao problema do
pesquisador em tentar compreender estes grupos a partir de observação interna dos seus
processos.
O relato, por suas características, está carregado de marcas ideológicas e de
uma coerência entre fato e registro do fato que não está presente no relato
objetivo. Assim, o relato possibilita uma perspectiva interna dos processos de
formulação e implementação das ações que serve ao teste da hipótese do
trabalho: as lógicas midiáticas, mesmo que aparentes ou não
conscientemente, estariam inseridas na concepção do ato de protesto. Esta
possibilidade de entrar em contato com o processo de criação só se amplia
nos relatos que incluem algum trecho de reflexão e busca de justificativas
pela opção midiatizada.
Deve entrar em consideração, é claro, a hipótese de forja de fatos e
características do ato. Para os fins deste trabalho, porém, estas hipóteses
perdem relevância: importa mais o pensamento, a ideologia, o processo
criativo descrito pelo ativista do que detalhes factuais sobre sua
implementação (ASSIS, 2006, p. 101).
A análise segue , portanto, uma lógica própria das mídias táticas ao valorizar o
processo de suas ações em detrimento dos fins. Não nos interessa, portanto, analisar se
os pranks de Blissett ―deram certo‖. As categorias analíticas que elencamos buscam
tanto conceituar o que é uma mídia tática, como, conjuntamente, demonstrar através dos
pranks de Blissett de que maneira as táticas se inserem nestes processos. Enumeramos
essas características a partir de quatro dimensões10
propostas por Mazetti (2008a):
espaço-temporal, midiática, política e discursiva. Outra distinção que trabalharemos é a
do acontecimento. Para isso, vamos apreender o fenômeno em seu estado bruto que
Blissett apresenta à mídia e, posteriormente, o significado que esta atribui ao prank de
L. B. Utilizamos, portanto, o acontecimento bruto e o acontecimento significado
(CHARAUDEAU, 2012), para captarmos o olhar e o sentido que tornam inteligíveis as
farsas de Blissett ao público receptor.
ativismo não são identificáveis como unidades isoladas, mas que não estão vinculados ao mundo
acadêmico‖. Guerrilha Psíquica, o livro de Blissett, faz parte desse segundo grupo. 10
A categoria ―espaço-temporal‖ é originalmente denominada por Mazetti de ―perspectivas derivadas de
Certeau‖. A modificação foi apenas estilística. Já a dimensão discursiva chamava-se ―entre o moderno e o
pós-moderno‖, mas, mesmo que o autor não aprofunde um debate entre esses dois momentos históricos,
preferimos trocar o nome da categoria para evitarmos possíveis equívocos ou confusões.
16
O caminho que percorremos para chegar até a análise inclui três capítulos. No
primeiro, consideramos o contexto do Império e o paradigma do biopoder como fatores
essenciais à compreensão de Blissett. Voltaremos a essa explicação quando analisarmos
alguns pranks, onde a mídia atua como intensificadora de um processo de cruzada moral
a favor do ―direito à vida‖. Este capítulo também abrange as relações entre trabalho
imaterial e produção do comum, pois, a partir do biopoder, também emergem
resistências biopolíticas.
Essas formas de contrapoder encontram lugar no conceito de multidão, expresso
por Hardt e Negri (2012). O segundo capítulo dedica-se à explicação das demandas que
o programa político delineado pelos autores infere. Isto porque tais pontos ligam-se
diretamente à Blissett: a demanda por um salário social e a reapropriação dos meios a
partir da autogestão.
No terceiro capítulo, realizamos uma contextualização política do nascimento de
L. B. nos Centros Sociais italianos do início da década de 1990. Além disso,
consideramos a contribuição das vanguardas artísticas, a exemplo do Neoísmo e do
Situacionismo, na forma da psicogeografia e do nome múltiplo – dois aspectos centrais
para a compreensão de Blissett.
Por fim, o quarto capítulo dedica-se à análise de quatro pranks que Luther
Blissett realiza: um trote contra um padre italiano, a carta de uma prostituta soropositiva
que infecta seus clientes, a onda de satanismo alastrado na cidade de Viterbo e a busca
de um reality show por um desaparecido que não existe.
17
1. “ONDE HÁ PODER, HÁ RESISTÊNCIA”
A citação que dá título a este capítulo provém de Foucault (1988, p. 91), em A
História da Sexualidade I. Se o poder está por toda a parte – de modo que absorve por
completo nossa vida, nosso bio -, as resistências também são múltiplas. É por isso que
resistências, no século XX e XXI, são resistências biopolíticas, e não tem seu foco em
um único centro.
Império11
, obra de Michael Hardt e Antonio Negri (2012), tornou-se
emblemática por apresentar uma nova ordem global (o próprio conceito de Império),
articulado às lógicas de subversão do paradigma dominante – o biopoder. Este último
termo refere-se ao domínio sobre a vida, um deslocamento observado por Foucault
(1988; 1999) que ocorre nos mecanismos e nas tecnologias de poder. Se outrora o
direito do soberano sobre seu súdito era um direito de morte, a partir da época clássica,
ao longo do século XVIII, o poder passa a gerir a vida do indivíduo12
. Passa, também, a
defasar um grupo em relação a outros no interior das populações, fragmentando o
campo biológico. É daí, por exemplo, que emerge o racismo, legitimado nesse contexto
por se tratar da eliminação de um perigo biológico, ao passo que fortalece determinada
raça. Essa justificativa – que, paradoxalmente, toma a vida como objeto de lutas
políticas para se exercer a morte – é mascarada pela alcunha dos ―direitos‖, travando
guerras em nome de populações inteiras sob o signo da necessidade de viver. O
exemplo mais óbvio que ilustra o racismo como braço direito do biopoder é a ascensão
nazista que causa a II Guerra Mundial.
Deleuze (1992) ―atualiza‖ o pensamento de Foucault através da sociedade de
controle13
. Os dispositivos disciplinares são substituídos por mecanismos cada vez mais
11
Império, em itálico, trata-se da obra, não do conceito. O livro inicia uma trilogia, seguida por Multidão
e Commonwealth - a última, ainda sem tradução no Brasil. 12
Uma primeira tomada de poder ocorre através da disciplina. Busca-se tirar o máximo de proveito do
corpo individual, entendido como máquina, através de mecanismos de vigilância. Este modelo panóptico
(Foucault, 2012) é característico de instituições como escolas, prisões e hospícios. Já a segunda tomada
de poder identificada por Foucault (1988; 1999) ocorre a partir da segunda metade do século XVIII e se
aplica à vida do homem – não ao homem-corpo, mas ao homem-vivo, ao corpo-espécie. Trata-se de um
novo mecanismo que compreende a multiplicidade dos indivíduos como massa global. Neste contexto, ela
é afetada por processos de vida – nascimento, morta, doença -, de modo que a natalidade e o óbito são os
primeiros alvos de controle da biopolítica. 13
Se Foucault escreve sobre a fábrica, que ―adestrava seus corpos pela força o mais alto possível para a
produção, o mais baixo possível para os salários‖, Deleuze (1992) trata das empresas, cuja alma é o
serviço de vendas. Ao passo que na sociedade disciplinar as instituições constituíam o indivíduo em um
corpo único, a fim de poder vigiá-lo com mais eficácia, a empresa introduz uma rivalidade que busca
dividir os indivíduos e contrapô-los. É um aprofundamento do ―sistema de prêmios‖ e do salário por
mérito que os coloca em constante instabilidade. Neste contexto, o marketing torna-se o novo instrumento
18
fluidos e flexíveis. É aqui que emergem as redes de comunicação, a fim de ampliar o
alcance do poder para além das instituições sociais. O autor também enfatiza a
dimensão biopolítica da sociedade de controle, a saber, não apenas a aspecto punitivo
do poder, mas também a sua função de reproduzir a vida em sua totalidade, tornando-a
seu objeto. Isto significa que o poder deve, necessariamente, ser uma função vital ao
indivíduo, de modo que este o abrace por vontade própria.
Esse esboço brevíssimo a respeito da ―origem histórica‖ do termo biopoder
torna-se necessário, pois é de Foucault e Deleuze que os autores de Império se
apropriam para desenvolver seu raciocínio. A diferença é que Hardt e Negri enfatizam
ainda mais o aspecto da biopolítica, concebendo, por fim, a ideia da multidão como
resistência.
O Império constitui-se como uma nova soberania que não possui um centro
territorial de poder, ao contrário do imperialismo - daí o fato de não se basear em
fronteiras, por sua característica desterritorializada que incorpora o mundo inteiro, em
constante expansão. A forma paradigmática do Império, como já dissemos, é o
biopoder, uma vez que a vida social passa a ser seu objeto de governo (HARDT E
NEGRI, 2012; OLIVEIRA, 2006). Sendo assim, o comando imperial não é exercido
pelas modalidades disciplinares do Estado, mas pelo controle biopolítico.
A ―guerra justa‖, exemplificada na Guerra do Golfo por Hardt e Negri, é uma
das primeiras consequências do surgimento do Império. O conceito envolve a
banalização do inimigo, reduzido a um status de ação policial14
. Também infere que a
luta é um instrumento que pode exercer funções éticas por meio do conflito. A eficácia
da ação militar a fim de conquistar a ordem e a paz lembra o que Foucault (1988) já
dizia sobre o racismo como propulsor da guerra, ou seja, a sua dimensão biológica
mascarada na ―luta pelos direitos‖. Desta forma, Hardt e Negri acertadamente concluem
que o Império não se forma com base na força, mas na capacidade de mostrá-la ―como
algo a serviço do direito e da paz‖ (2012, p. 33). Isto nos leva a um aspecto importante:
de controle social da sociedade de controle, situada no pós-Segunda Guerra Mundial (DELEUZE, 1992;
OLIVEIRA, 2006). 14
Em Multidão, Hardt e Negri (2005, p. 41) concluem que a guerra aponta para dois caminhos
aparentemente contraditórios: ―por um lado, ela é reduzida a formas de ação policial, e por outro, elevada
a um nível absoluto, ontológico, por tecnologias‖, sendo que a última observação refere-se aos
genocídios. No entanto, os dois movimentos não se anulam, pois ―a redução da guerra à ação policial não
a priva de sua dimensão ontológica, e na verdade a confirma. O definhamento da função guerreira e o
espessamento da função policial mantêm os estigmas ontológicos da aniquilação absoluta: a polícia de
guerra preserva a ameaça de genocídio e destruição nuclear como seu derradeiro fundamento‖. Outro
caminho notado pelos autores é o biopoder exercido através da violência individual (como a tortura),
exemplificado principalmente na sociedade de controle projetada por George Orwell em sua obra 1984.
19
o Império se apresenta como algo que é eterno e necessário; ele é ―convocado‖ a nascer,
porque sua capacidade de resolver conflitos é a base que o constitui. Logo, uma de suas
primeiras tarefas é ampliar o domínio do consenso que apoia seu poder.
1.1. Biopolítica no Império: indústria da comunicação, produção de subjetividades
e trabalho imaterial
No momento em que o trabalho imaterial15
e a cooperação - ou, em outras
palavras, a linguagem e a comunicação - tornam-se a força produtiva dominante, a nova
ordem do Império é formada (HARDT E NEGRI, 2012, p. 407). Neste sentido,
podemos apontar que, para os autores, o biopoder está muito mais relacionado ao
universo do trabalho - daí o novo avanço em nossa retomada conceitual. Hardt e Negri o
descrevem o biopoder como o termo que se utiliza para nomear as capacidades
produtivas da vida que são tanto intelectuais quando corpóreas. É a submissão da
sociedade ao capital; o momento em que as relações e as reproduções também se
constituem como agentes produtivos. Essa produção, por sua vez, circula por meio do
trabalho, dos afetos e da linguagem, tendendo ao imaterial. A produção e a vida
coincidem, ―porque a vida não é outra coisa senão a produção e reprodução do conjunto
de corpos e cérebros‖ (HARDT E NEGRI, 2012, p. 387). Na esfera biopolítica,
escrevem os autores, ―a vida é levada a trabalhar para a produção e a produção é levada
a trabalhar para a vida‖ (2012, p. 51).
No contexto biopolítico, emergem as corporações transnacionais que são a base
do Império. Estas produzem não somente mercadorias como também subjetividades, ou
seja, necessidades, relações sociais, corpos e mentes; produzem produtores. Isto se dá
especialmente pelo desenvolvimento de redes que se comunicam, bem como a
globalização que multiplica e estrutura as interconexões dessas redes. Partindo dessa
lógica, Hardt e Negri consideram as redes16
como responsáveis por canalizar o
15
A expressão ―trabalho imaterial‖ é ambígua, uma vez que a produção continua sendo material.
Imaterial é o seu produto. Hardt e Negri (2005, p. 150) refletem que ―trabalho biopolítico‖ talvez fosse
uma conceituação melhor, já que o trabalho também cria relações e, ―em última análise, a própria vida
social‖. Os autores não optam por esse termo porque o adjetivo ―biopolítico‖ abrange uma demasiada
complexificação do conceito, de modo que ―trabalho imaterial‖ apresenta-se como algo mais simples de
se entender, a despeito de suas ambigüidades. 16
―Rede‖ é o local tanto de circulação quanto de produção das mercadorias (HARDT E NEGRI, 2012, p.
319). Ela pode ser vista como uma estrutura que se caracteriza por um modelo democrático e oligopolista,
ao mesmo tempo. O primeiro ponto se refere à Internet, que é, para Hardt e Negri, um modelo
―completamente horizontal e desterritorializado‖. Já a segunda observação aponta para a rede de
oligopólios que caracteriza a indústria cultural: ―existe um ponto único e relativamente fixo de emissão,
20
imaginário dentro das máquinas de comunicação, controlando a sua direção e sentido,
de forma imanente às relações produtivas e sociais. A mediação ocorre dentro da
própria máquina produtiva.
Desse modo, podemos entender o papel central que as indústrias de
comunicação ocupam: elas ajudam a legitimar a máquina imperial através de uma
repetitiva linguagem de autovalidação que constrói a sua imagem autoritária, ao mesmo
tempo que tornam imanente a sua própria justificativa (HARDT E NEGRI, 2012, p. 52).
Comunicação e Império ―marcham lado a lado‖ (2012, p. 53), são inseparáveis. É dessa
forma que a máquina imperial sobrevive, produzindo um ―contexto de equilíbrios‖ que
reduz problemáticas complexas em detrimento de um projeto de cidadania universal - a
justificativa para os exercícios da força legítima, conforme vimos antes. Essa
permissividade intensifica as intervenções nas relações comunicativas, ―ao mesmo
tempo que dissolve identidade e história de forma completamente pós-modernista‖
(2012, p. 53). Hardt e Negri criticam que, ao contrário do que almejavam os relatos pós-
modernos com o fim das ―narrativas principais‖17
, a máquina imperial produz e
reproduz continuamente as narrativas ideológicas, de forma a celebrar o seu próprio
poder.
Portanto, a comunicação é o elemento que estabiliza as relações de produção,
orienta o desenvolvimento do capitalismo e transforma as forças18
. O direito imperial,
por sua vez, baseia-se na justaposição da produção de linguagem, da produção
mas os pontos de recepção são potencialmente infinitos e territorialmente indefinidos‖ (HARDT E
NEGRI, 2012, p. 320). Neste modelo, um pequeno número de empresas, ou, ainda, empresários (como
Silvio Berlusconi, na Itália), dominam os meios de comunicação. Apesar da visão utópica em relação à
Internet, os autores colocam que as novas tecnologias de informação também criaram linhas de
desigualdade dentro dos países dominantes e, especialmente, fora deles. É a chamada infoexclusão.
A rede também é a forma comum que caracteriza o atual paradigma – não que antes ela inexistisse, mas,
agora, ela exerce sua hegemonia no sentido de organizar desde movimentos sociais e empresas até
relações pessoais (HARDT E NEGRI, 2005, p. 191). 17
Hardt e Negri parecem se dirigir diretamente à Lyotard, que considera o contexto pós-moderno como
aquele em que os metarrelatos perdem sua credibilidade (1988). Os metarrelatos, ou metanarrativas, são
as visões totalizantes que buscam apreender o todo de uma determinada época da história, como o
iluminismo e o marxismo. Segundo Lyotard, na pós-modernidade, essas grandes narrativas se
fragmentariam em diversos jogos de linguagem. Hardt e Negri ponderam que o Império serve como o
reprodutor das narrativas ideológicas de nosso tempo. 18
Em certa medida, a teorização de Hardt e Negri acerca da sociedade contemporânea e do trabalho
imaterial atualiza a crítica ao espetáculo proposta por Debord, uma vez que o autor francês ―via o
espetáculo atingir profundamente a linguagem enquanto meio da comunicação humana‖ (RICARDO,
2012, p. 113). Debord (1997) concerne o espetáculo integrado como o espetáculo totalmente imerso na
realidade, onde tudo foi transformado pela indústria moderna. Tal ideia assemelha-se também a uma das
críticas principais de Fredric Jameson (2006) em relação ao pós-modernismo, a saber, a colonização sobre
a natureza (psiqué) do homem por parte da mídia. Jameson trata do conceito de capitalismo tardio, que
engloba a natureza colonizada em todas as suas dimensões e a dominação do capitalismo em todas as
áreas do globo.
21
linguística e da linguagem de autovalidação. Os próximos pontos que trataremos estão
intrinsecamente ligados à comunicação, pois tratam da produção de novas
subjetividades e da emergência do trabalho imaterial, ambos também correlatos.
Hardt e Negri observam que, na passagem da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle, há também uma mudança na formação das subjetividades.
Conforme vimos, para Foucault, as ―zonas de eficácia‖ das disciplinas eram as
instituições. Mas estes espaços são separados das forças sociais produzidas, servindo
como uma espécie de ―instância‖ ou ―ponto de mediação‖ com a soberania (HARDT E
NEGRI, 2012, p. 351). Isto não quer dizer que a instituição é, por si só, soberana, mas
exatamente o contrário: os indivíduos é quem se disciplinam, através das estratégias dos
dispositivos19
. A disciplina é interna, ―imanente à nossa própria subjetividade‖
(HARDT E NEGRI, 2012, p. 351). A vitória da soberania está justamente em
transcender a subjetividade do indivíduo, de modo que a disciplina não é algo ―ditado‖
pelo soberano, mas intrínseco ao próprio sujeito.
Com a transição para a sociedade de controle, a autodisciplina alarga-se ainda
mais. O colapso das instituições é a principal mudança nessa passagem, pois assim os
dispositivos disciplinares estão menos vinculados a espaços limitados. Isto significa que
a disciplina na prisão, na escola, na fábrica e assim por diante coexistem, entrelaçando-
se de tal maneira que formam uma produção híbrida de subjetividade (HARDT E
NEGRI, 2012, p. 352). Os papeis antes eram rígidos e desempenhavam tarefas
específicas, como o detento, a mãe, o operário e o estudante, agora. Não quer dizer que
as identidades eram únicas, mas que elas eram definidas por diferentes lugares, em
diferentes épocas da vida. Por exemplo, a pessoa é pai ou mãe em casa, operário na
fábrica, estudante na escola, paciente mental no asilo, e assim por diante. Na sociedade
de controle, tais lugares tendem a perder suas delimitações, de modo que a pessoa é
―operário fora da fábrica, detento fora da prisão, insano fora do asilo - tudo ao mesmo
tempo‖ (HARDT E NEGRI, 2012, p. 353). O desenvolvimento dessas novas
subjetividades mistas e móveis acontece porque as antigas identidades fixas eram um
obstáculo ao progresso, que rumava para uma maior flexibilidade do capital.
As novas produções de subjetividade contra a sociedade disciplinar foram
responsáveis por modificar o valor do trabalho. Para Hardt e Negri, esta mudança se deu
19 O conceito de dispositivo perpassa boa parte da obra de Foucault. De maneira simplificada, podemos
entendê-lo como estratégias pelo qual as sociedades disciplinares - ou de controle, em Deleuze - se
ancoram, ―apoiadas em instrumentos de saber, produzindo efeitos de subjetivação e sujeição‖, de modo
que o poder seja plenamente exercido (STASSUN e ASSMAN, 2010, p. 73).
22
nos anos 1960 e 1970 através da contracultura, movimento americano que geralmente é
considerado inútil pelos políticos mais tradicionais devido ao seu caráter ―meramente‖
cultural - seus efeitos, contudo, rescaldam tanto no âmbito político como no econômico.
Se outrora o regime regulado de entrar em uma fábrica e manter um emprego estável era
considerado sonho, a nova perspectiva dos jovens americanos antevia esse futuro como
uma verdadeira morte. A recusa em massa do regime disciplinar, segundo Hardt e
Negri, foi um momento de criação que Nietzsche chama de ―transvaloração de valores‖.
Ela sugere uma valorização de formas de produção mais criativas, imateriais, em
detrimento da produção material do regime disciplinar e das fábricas em massa. Estes
novos valores acentuam a importância tanto da cooperação como da comunicação, e
abrem espaço a transformações dentro da força de trabalho. Hardt e Negri (2012, p.
296) sublinham que as análises desses movimentos culturais geralmente ignoram as
consequências econômicas que eles implicam.
Essa mudança também implica a destruição de um regime de subjetividade e a
invenção de um novo, conforme discutíamos anteriormente. Conforme escrevem Hardt
e Negri,
a reestruturação da produção, do fordismo ao pós-fordismo, da modernização
à pós-modernização, foi antecipada pelo surgimento de uma nova
subjetividade. A passagem da fase de aperfeiçoamento do regime disciplinar
à fase sucessiva de mudança do paradigma de produção foi impulsionada, de
baixo para cima, por um proletariado cuja composição já tinha mudado. O
capital não precisou inventar um novo paradigma (mesmo que fosse capaz
disso) porque o momento realmente criativo já tinha ocorrido. O problema
do capital era, antes, o de dominar uma nova composição que já fora
produzida autonomamente e definida dentro de uma nova relação com a
natureza e o trabalho, uma relação de produção autônoma (2012, p. 296-297).
Os autores atribuem a modificação do capital aos movimentos feministas, às
revoltas operárias e estudantis dos anos 60, o movimento de maio de 1968. Eles
anteviram, em uma espécie de consciência capitalista, as mudanças paradigmáticas que
aconteceriam na produção, de modo que puderam ditar a sua nova forma e natureza.
Estamos falando de uma nova configuração: ao passo que o processo de
modernização transitava do campo para a indústria (setor primário ao secundário), a era
informatizada migra desta última para o setor terciário de serviços - ou seja, assistência
médica, educação, publicidade, entre outros. ―O novo imperativo administrativo é ‗trate
o fabril como se fosse um serviço‘‖ (HARDT E NEGRI, 2012, p. 307). Neste contexto,
que ocorre nos países capitalistas dominantes a partir da década de 197020
, os empregos
20
Embora pareça lógico, consideramos importante ressaltar que o contexto pós-moderno não se dá de
forma igualitária em todos os continentes, especialmente na América Latina. A corrente pós-moderna é
23
passam a exigir uma flexibilidade de aptidões e caracterizam-se pelo papel central do
conhecimento, informação, afeto e comunicação.
Na transição para a economia informacional ocorrem mudanças quanto à
qualidade e natureza do trabalho. Um dos primeiros aspectos pode ser observado nas
modificações do trabalho fabril: do modelo fordiano ao toyotiano21
. Esse contexto
industrial pode servir de primeiro exemplo em que comunicação e informação
desempenham papel central no processo produtivo. A reorganização da qualidade do
trabalho em torno da imaterialidade é exemplificada por Lazzarato e Negri (2001, p. 25)
na transformação do trabalho operário em trabalho de controle – a substituição do
operário-massa pelo operário-social22
, ―dos macacões azuis aos colarinhos brancos, do
trabalho manual aos trabalhadores do conhecimento e da inteligência, da era fordista à
pós-fordista (...)‖ (VASAPOLLO, 2003, p. 139-140). Neste contexto, predomina a sua
capacidade de tomar decisões, gerir informações e controlar equipes, ainda que isso
ocorra de maneiras diferentes conforme a hierarquia do trabalhador na empresa. Tudo é
organizado em torno da subjetividade do trabalhador.
No entanto, para Hardt e Negri (2012) o modelo onde a comunicação é utilizada
de forma mais produtiva reside nos setores de serviço que se baseiam na troca de
informação e conhecimento. Essa produção não resulta em um bem material durável:
portanto, podemos chamá-lo de imaterial, pois produz bens imateriais, como produtos
culturais, serviços, ideias, conhecimento, afetos. Naturalmente, há uma divisão de
trabalho dentro dessa esfera, uma vez que o crescimento do número de trabalhos
hegemônica na maioria dos países quando se trata do campo das artes, da arquitetura e da filosofia, mas
―na economia e na política latino-americanas prevalecem os objetivos modernizadores‖, escreve Canclini
(2008, p. 24). O antropólogo argentino ainda questiona, ironicamente: ―para que vamos ficar nos
preocupando com a pós-modernidade se, no nosso continente, os avanços modernos não chegaram de
todo nem a todos?‖. 21
A mudança entre os dois modelos inclui a importância crucial da comunicação no relacionamento
produção-consumo, uma vez que o toyotismo se baseia essencialmente no feedback rápido como forma de
decidir a demanda exata de produção para o mercado (HARDT E NEGRI, 2012, p. 310). Vale ressaltar
que a passagem do fordismo ao pós-fordismo (onde se insere o toyotismo) é concomitante à transição do
trabalho industrial ao imaterial e do moderno ao pós-moderno – ―uma série de passagens que dão nome às
diferentes faces da mesma mudança‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p. 190). 22
Ou seja, da lógica padronizada da reprodução (operário-massa) à lógica cooperativa amparada na
criatividade (operário-social). O operário-social (cujo termo posteriormente é substituído por trabalhador
imaterial, na obra de Negri e Lazzarato) é figura central do capitalismo cognitivo e começa a surgir a
partir do movimento de Maio de 68, na França, que contesta as inúmeras formas de disciplina e dilui aos
poucos a imagem do operário-massa. Caracteriza-se pela constituição de novas subjetividades, tanto
negativas, por refutarem ordens disciplinares, como positivas, por privilegiarem a criatividade e a força da
invenção, comunicação e afetos. ―Assim, o capital torna-se dependente dessa gama de produção de
subjetividade - quer dizer, da própria vida - que se encontra fora dos seus mecanismos de apropriação do
valor, das suas redes de comando sobre o trabalho‖ (MALINI, 2007, p. 51). Sobre a transição do
operário-massa para o operário-social, ver também o artigo de Mendes (2012).
24
baseados no conhecimento implica empregos de baixo valor e pouca qualificação23
.
Hardt e Negri (2012: 312) exemplificam estes trabalhos no ―manuseio rotineiro de
símbolos‖, como os ―arquivamentos de dados e processamento de textos‖.
Passamos agora às consequências que surgem em decorrência do trabalho
imaterial. A primeira é a homogeneização dos processos laborais. Para explicar este
ponto, Hardt e Negri recorrem à perspectiva de Marx no século XIX, quando as práticas
laborais eram heterogêneas e envolviam ações concretas imensuráveis, como as artes de
costura e a tecelagem, por exemplo. Estas práticas só poderiam ser vistas de maneira
homogênea quando entendidas como trabalho abstrato24
, ou seja, o gasto da força
humana para além das especificidades de cada função. Na informatização da produção,
o trabalhador tende a ser afastado do seu objeto de trabalho e este, por sua vez, torna-se
cada vez menos heterogêneo. Hardt e Negri continuam no exemplo da costura e da
tecelagem. Estas, informatizadas, envolvem as mesmas práticas concretas, a saber, o
manuseio de símbolos e de informações. Se antes as ferramentas relacionavam-se de
maneira inflexível a determinadas tarefas - a correspondência de diferentes ferramentas
para diferentes tarefas -, agora elas economizam a força de trabalho do objeto. O
computador passa a ser a ferramenta central, por onde perpassam toda e qualquer
atividade. ―Só de olhar para uma pessoa no computador, não se sabe que trabalho ela
realiza: pode ser um advogado, um designer, um professor, um digitador‖ (FONSECA,
23
Cocco (2001, p. 12) pensa o trabalho imaterial em termos contraditórios. Segundo o autor, ―a
reestruturação industrial, a emergência de um regime de acumulação globalizado, baseado na produção de
conhecimentos e num trabalho vivo (cada vez mais intelectualizado e comunicativo), podem (e devem)
ser pensadas como processos contraditórios, onde a contradição não é a que as opõem ao passado das
homogeneidades fabris, mas a que se encontra no presente das novas formas de exploração e da
composição técnica do trabalho, nas novas lutas do proletariado e, em particular, do proletariado urbano‖.
Da mesma forma, Vasapollo (2003, p. 137) reitera que a nova organização capitalista do trabalho
―caracteriza-se cada vez mais pela explosão, pela precariedade, pela flexibilidade, pela
desregulamentação, pela superexploração, sob formas sem precedentes para os assalariados em atividade.
É o mal-estar do trabalho, junto ao medo de perder o emprego, de não ter uma vida social, é mais de
empregá-la ao e pelo trabalho, com a angústia ligada ao conhecimento de uma evolução tecnológica que
não resolve as necessidades sociais‖. 24
O debate sobre trabalho abstrato e as apropriações que Hardt e Negri fazem de Marx não nos
interessam tanto a ponto de nos aprofundarmos demasiadamente no assunto. Reiteramos que as
discussões sobre trabalho imaterial estão presentes porque, mais à frente, encontraremos alguns pontos
nas reivindicações de Blissett. Sobre este trecho de Hardt e Negri a respeito da homogeneização dos
processos laborais, Prado (2006, pp. 112-113, grifos do autor) escreve a seguinte crítica: ―note-se,
entretanto, que o conceito de trabalho abstrato de Hardt e Negri não é o de Marx. Antes de tudo, porque
trabalho abstrato em Marx não é trabalho em geral, ou seja, o gênero de muitos trabalhos concretos, mas
trabalhos concretos reduzidos a trabalho abstrato. Hardt e Negri tratam o trabalho abstrato no registro da
abstração subjetiva, portanto, como gênero: ‗Só quando abstraídas..., as atividades laborais poderiam ser
reunidas e vistas..‘. Mas, de um modo amplo, qual seria a qualidade comum que define o gênero? Eles o
dizem: o gasto de força humana. Ao passo que Marx o faz no registro da abstração objetiva: ‗Um valor de
uso ou bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano
abstrato‘‖.
25
2013, p. 7). Nesse sentido, também podemos concluir que a divisão do trabalho não
desaparece, apesar da homogeneização expressa por Hardt e Negri.
Outra conseqüência do trabalho imaterial envolve a produção de afetos: o
contato da interação humana e do trabalho afetivo. Para Hardt e Negri, este tipo de
trabalho é imaterial ―mesmo quando físico e afetivo, no sentido de que seus produtos
são intangíveis, [e produzem] um sentimento de conforto, bem-estar, satisfação,
excitação ou paixão‖ (2012, pp. 313-314). O trabalho afetivo relaciona-se
principalmente com o corpo e a mente. Neste caso, são especialmente os serviços que se
baseiam no cuidado, como os de saúde. Por outro lado, os afetos também podem ser
manipulados. Hardt e Negri identificam essa faceta no que chamam de ―serviço com
sorriso‖ (2005, p. 149), ou seja, comissários de bordo, atendentes de lanchonete,
assessores jurídicos. Capacita-se o trabalhador de modo que ele tenha personalidade,
atitude e ―traquejo social‖.
O trabalho imaterial geralmente imbrica-se a partir de duas formas: a produção
de afetos, que explicamos anteriormente, e a abordagem do trabalho mais ligada à área
linguística, que lida com o intelecto na solução de problemas e produz ideias, imagens,
textos. Essa combinação pode ser exemplificada nas indústrias da comunicação, que se
valem tanto da produção de afetos como de operações lingüísticas e intelectuais
(HARDT E NEGRI, 2005, p. 150). Não basta apenas transmitir a informação: ela
precisa ter algo de atraente e desejável, de modo a criar afetos e formas de vida.
Por fim, Hardt e Negri (2012, p. 380), também relacionam o trabalho imaterial
com o poder comum de agir. Este constitui-se de ―trabalho, inteligência, paixão e afeto
num lugar de todos‖ e ocorre em duas instâncias: é singular, pois o trabalho é domínio
do cérebro e corpo da multidão; é universal, uma vez que o movimento da multidão é a
expressão de um desejo de todos. Sendo que a multidão não se constitui de identidades
fixas e únicas, o comum serve como uma espécie de ponto de encontro interno entre
essas multidões; é o que ―lhe permite comunicar-se e agir em conjunto‖ (HARDT E
NEGRI, 2005, p. 14), produzindo cooperação comum.
O ―comum‖ a que os autores se referem não é sinônimo da noção de público; vai
além dela e do privado. Na acepção de Dal Rosso (2006), esse conceito compreende que
muitos dos bens da vida são o que há de mais comum ao indivíduo e que somente
26
podem ser produzidos em comunidade, tal qual a comunicação, a subjetividade, a
linguagem, os afetos e as relações sociais – em suma, o trabalho imaterial25
.
Quando a linguagem é de nós retirada, ou seja, a ―expropriação do comum numa
sociedade do espetáculo‖ como a expropriação da linguagem, atingimos o ponto
máximo do niilismo (PELBART, 2009, p. 38)26
. Como combater as instâncias que
expropriam a linguagem, o bem mais comum de todos? Pelbart (2009, p.39) cita
Agamben para compreender que a melhor maneira de resistir a esse desafio é constituir
singularidades: uma singularidade qualquer, sem identidade específica, que constitua
uma ―multiplicidade inconstante‖. É isso o que o Estado não tolera, uma singularidade
―que o recusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio Estado na figura de uma
formação reconhecível‖ (PELBART, 2009, p. 39).
Dessa maneira, o comum também se mostra como potência de vida da multidão,
indo além da linguagem. As subjetividades, necessariamente atreladas à linguagem na
sua capacidade de comunicação e relacionamento, são postas a trabalhar em comum
(PELBART, 2009, p. 29). Esse ―misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de
produção de laço, de capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças (...)‖
também é a própria fonte do capitalismo, constituindo a relação paradoxal que
caracteriza o comum. Ou seja, ―mesmo em suas versões mais rizomáticas‖ (PELBART,
2009, p. 29), o comum pode muito bem ser vampirizado por empresas, estados e
instituições.
Citamos anteriormente Hardt e Negri para situarmos o comum como o ponto de
encontro interno das multidões. Pelbart (2009: 86) coloca essa proposta em xeque, ao
questionar como se pode construir um sentido comum para tantos corpos e cérebros
―num momento na qual a forma em que o político poderia ser expresso em
subjetividade ainda não é clara?‖ A fase anárquica a qual Pelbart se refere - sem deuses,
mestres ou homens - traz à tona a ideia de vida. Daí a importância do prefixo bio,
ressaltado nas seguintes distinções que retomamos agora:
Biopoder como um regime geral de dominação da vida, biopolítica como
uma forma de dominação da vida que pode também significar, no seu avesso,
25
Quando cria redes, a cooperação também produz o comum – sendo que ela própria se baseia
essencialmente nele. Um exemplo citado por Hardt e Negri (2005, pp. 14-15): ―todo aquele que trabalha
com a informação ou o conhecimento – dos agricultores que desenvolvem propriedades específicas em
determinadas sementes aos criadores de software – dependem do conhecimento comum recebido de
outros e por sua vez criam novos conhecimentos comuns. Isto se aplica particularmente a todas as formas
de trabalho que criam projetos imateriais, como ideias, imagens, afetos e relações‖. 26
Pelbart (2009, p. 140) considera a mídia como um ―espectro do comum‖, assim como a encenação
política, os consensos econômicos, ―a militarização da existência para defender a ‗vida‘ supostamente
‗comum‘ (...)‖. Esses seqüestros do comum, da linguagem, ocorrem num processo de espetacularização.
27
uma resistência ativa, e biopotência como a potência de vida da multidão,
para além das figuras históricas que até há pouco tentaram representá-la. A
biopotência inclui o trabalho vital, o poder comum de agir, a potência de
autovalorização que se ultrapassa a si mesma, a constituição de uma
comunialidade expansiva - enfim, trata-se de um dispositivo ontológico (pois
não é material apenas, nem só imaterial, nem objetivo nem subjetivo, nem
apenas linguístico, ou apenas social). Por isso mesmo, ele não é suscetível de
nenhuma mensuração: é uma virtualidade desmedida, é um poder expansivo
de construção ontológica e de disseminação... Para usar uma concepção mais
nietzschiana, embora a base de Negri seja mais espinosista, pode-se pensar
numa vontade de poder, que na sua expansividade tem por efeito a
transvaloração dos valores e criação de novos valores, e sobretudo tem o
poder de apropriar-se das condições de produção de valor. Poder positivo,
poder constituinte (PELBART, 2009, p. 86-87, grifos do autor).
A primeira associação entre Marx e Nietzsche já se dava pelo paradigma pós-
fordista do trabalho: ―a ontologia marxista se une à nietzschiana, pois como crê a
primeira ainda é o trabalho o que demarca o ser humano, mas, como reputa a segunda, é
a força expressiva que o singulariza‖ (MALINI, 2007, p. 51). Agora, essa associação
também pode ser vista em termos positivos, de biopotência.
Na perspectiva de Hardt e Negri, a associação entre trabalho e poder comum
resulta na construção de uma comunidade. É uma relação recíproca, pois o trabalho
constrói o que é comum e o comum torna-se singularizado pelo trabalho. ―Podemos,
portanto, definir o poder virtual do trabalho como um poder de autovalorização que
excede a si próprio, derrama-se sobre o outro e, por meio deste investimento, constitui
uma comunalidade expansiva‖ (HARDT E NEGRI, 2012, p. 380). Este processo se dá
por um poder expansivo, construído pelo poder de agir de baixo para cima, pela
multidão, transformando valores de acordo como o que é comum a todos e apropriando-
se das condições materiais de sua própria realização (HARDT E NEGRI, 2012, p. 381).
Nesse sentido, a nova dimensão dada pelos autores busca compreender o caráter
positivo dessa ação, pois ela ―demonstra a criatividade do que está além da medida‖
(HARDT E NEGRI, 2012, p. 381). Tal definição se assenta em uma base filosófica
nietzschiana da transvaloração, a saber, a destruição e a criação de novos valores.
Antes de concluirmos o capítulo, consideramos importante elucidar alguns
pontos que Hardt e Negri observam a respeito de possíveis críticas que o conceito de
trabalho imaterial pode receber. Para os autores (2005, p. 100), essa emergência não faz
desaparecer a classe operária industrial. Tal produção ainda desempenha papel
importante na ordem econômica, mesmo que o seu domínio sobre as outras economias
não seja tão intenso quanto anteriormente. Na verdade, Hardt e Negri admitem que os
28
trabalhadores imateriais são uma minoria27
- ―quando afirmamos que o trabalho
imaterial tende para a posição hegemônica, não estamos dizendo que a maioria dos
trabalhadores do mundo atualmente produz primordialmente bens imateriais‖ (HARDT
E NEGRI, 2005: 150). A tese dos autores é de que esse novo trabalho é hegemônico
―em termos qualitativos‖28
(HARDT E NEGRI, 2005: 151) porque ele transforma as
outras formas de trabalho e própria sociedade, ainda que algumas dessas características
não sejam desejáveis. Como exemplo, Hardt e Negri citam novas formas de alienação e
violação postas ao trabalhador que lida com ideias, emoções e afetos. O esfacelamento
da divisão trabalho/lazer também é posto em xeque. Retomaremos este último ponto
mais à frente, quando tratarmos das reivindicações da multidão.
Também não devemos entender a hegemonia do trabalho imaterial como algo
dado e, muito menos, que ela torna ―agradáveis ou compensadoras todas as formas de
trabalho‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p. 153). Os autores buscam no trabalho agrícola
uma das chaves para se compreender como o conhecimento, característico do imaterial,
era essencial à produção. Por exemplo, combinar diferentes tipos de solos a
determinadas culturas, conhecer as especificidades de cada terra e mesmo acompanhar
as flutuações do mercado, para saber o melhor momento de vender seu produto. Hardt e
Negri chamam a agricultura de ―ciência aberta‖ (2005, p. 152), pois ela acompanha as
mudanças imprevisíveis da natureza. Neste contexto, o conhecimento passa a ser
central, diferentemente do modelo mecanicista fabril. Da mesma forma, temos também
o ―trabalho de mulher‖ – especialmente o doméstico -, mas, desta vez, ligando-se à
produção de afetos. Isto porque, além de cozinhar e limpar, a mulher também produz
relações entre crianças e dentro da própria família (HARDT E NEGRI, 2005, p. 152).
É importante salientarmos que, apesar destes dois exemplos serem ―prodígios‖
na utilização de características do trabalho imaterial, hoje eles não se encontram em
uma posição muito melhor do que outrora. Os agricultores, ―não obstante toda a sua
27
―(...) o trabalho imaterial encontra-se hoje na mesma posição em que estava o trabalho industrial há 150
anos, quando respondia apenas por uma pequena fração da produção global e se concentrava numa
pequena parte do mundo, mas exercia hegemonia sobre todas as outras formas de produção. Assim como
naquela fase todas as formas de trabalho e a própria sociedade tinham de se industrializar, hoje o trabalho
e a sociedade têm de se informatizar, tornar-se inteligentes, comunicativos e afetivos‖ (HARDT E
NEGRI, 2005, p. 151). 28
―Quando os marxistas ortodoxos nos dizem hoje que a quantidade de membros da classe operária
industrial não diminuiu em todo o mundo, e que portanto o trabalho industrial e a fábrica devem continuar
sendo o núcleo central de toda análise marxista, devemos lembrá-los do método marxiano da tendência. A
quantidade é importante, mas o principal é apreender a direção do presente, aprender a identificar quais
sementes germinarão e quais fenecerão. O grande esforço de Marx no meado do século XIX foi no
sentido de interpretar a tendência e projetar o capital, então em sua infância, como uma forma social
completa‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p. 190).
29
inteligência e os seus conhecimentos, continuam presos ao solo e (...) sofrem formas
ainda mais brutais de exploração na economia global‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p.
152). O trabalho afetivo ainda é produzido por mulheres, em sua maioria, além de ter
menos autoridade e ser menos pago. A produção afetiva também pode ser alienante:
―estou vendendo minha capacidade de estabelecer relações humanas, algo
extremamente íntimo, manipulado pelo cliente e o patrão‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p.
153).
Neste sentido, o trabalho imaterial não deve ser entendido como a utopia de uma
economia que assegura a democratização das riquezas através da tecnologia e da
globalização. No entanto, a sua hegemonia, hoje, modifica tanto as formas de produção
como as condições de trabalho.
Em uma breve retomada, podemos caracterizá-lo de três modos. O trabalho
imaterial é biopolítico, pois cria relações sociais e formas de vida social ao lidar com
conhecimentos e afetos. Não se limita ao âmbito econômico, mas aglutina também
forças culturais, sociais e políticas. Ele também produz subjetividades na sociedade
através dessa produção biopolítica. Deste modo, nossas crenças, nosso modo de encarar
o mundo e nos relacionarmos uns com os outros são modificados. Por fim, o trabalho
imaterial assume a forma de redes que se baseiam na comunicação, na colaboração e
nas relações afetivas, buscando a realização do comum (HARDT E NEGRI, 2005, p.
101). Estas observações nos auxiliarão a compreender o que os autores entendem por
multidão e como ela age e resiste ao Império. Por consequência, os tópicos poderão ser
articulados em nossa análise sobre Luther Blissett.
30
2. A MULTIDÃO SOB O SIGNO DE LUTHER BLISSETT
Hardt e Negri partem para uma compreensão das resistências no contexto do
Império. Estamos falando das lutas biopolíticas, que são unificadas pelo poder comum
através da criação de comunidades. A diferença dessas lutas, neste contexto, é que elas
não são fechadas – são econômicas, políticas e culturais, ao mesmo tempo; são lutas que
decidem formas de viver (HARDT E NEGRI, 2012).
Quando falam de multidão, Hardt e Negri estão se referindo a um conceito que
difere daquilo antes denominado povo29
. Multidão é conceito de resistência
(CARVALHO, 2011). Ela constitui uma relação paradoxal com o Império, pois ao
mesmo tempo que é por ele governada, também apresenta-se como uma biopotência que
pode transformar a multidão numa ―massa autônoma de produtividade‖ (HARDT E
NEGRI, 2012, p. 366). Essa autonomia, naturalmente, não é desejável ao Império. A
relação contraditória deste com a multidão se dá porque o Império necessita dela,
devido à sua cooperação produtiva que o mantém, de modo que os poderes da multidão
―precisam ser controlados, mas não destruídos‖ (HARDT E NEGRI, 2012, p. 366).
A multidão pode ser entendida como um conceito de classe (HARDT E NEGRI,
2005). Os autores partem de uma análise que considera o significado de classe
determinado a partir da resistência coletiva ao poder, deixando de tratá-la apenas como
uma noção empírica. Ela é ―um conceito político, em suma, na medida em que uma
classe é e só pode ser uma coletividade que luta em comum30
‖ (HARDT E NEGRI,
2005, p. 144). Neste sentido, Hardt e Negri buscam demonstrar que a multidão não opta
entre a unidade marxista ou a pluralidade liberal, já que ―as diferenças sociais singulares
que constituem a multidão devem sempre ser expressas, não podendo ser aplainadas na
uniformidade, na unidade, na identidade ou na indiferença‖ (HARDT E NEGRI, 2005,
p. 145).
29
Virno busca em Hobbes e Espinosa as origens de povo e multidão, respectivamente. ―O conceito de
povo, segundo Hobbes, está estreitamente associado à existência do Estado; não é um reflexo, uma
reverberação: se for Estado, é povo. Se faltar o Estado, não pode haver povo‖ (VIRNO, 2003, p. 5). Hardt
e Negri seguem a tradição filosófica de Espinosa, que concebe a multidão como a representação de uma
―pluralidade que persiste com tal na cena pública, na ação coletiva, na atenção dos assuntos comuns, sem
convergir no Uno, sem evaporar-se em um movimento centrípeto. A multidão é a forma de existência
política e social dos muitos enquanto muitos: forma permanente, não episódica nem intersticial‖ (VIRNO,
2003: 4). 30
Em entrevista a Nicholas Brown e Imre Szeman, Hardt e Negri comentam: ―pensemos apenas em
termos das atuais lutas políticas concretas de resistência. Seriam realmente mais efetivas se estivessem
unificadas? O poder de algumas delas não está diretamente ligado à diversidade interna e suas expressões
de liberdade? Pelo conteúdo, aquilo que o conceito de multidão indica (e vemos isso emergir em
movimentos por toda a parte) é uma organização social definida pela capacidade de agir em conjunto sem
qualquer unificação‖ (HARDT E NEGRI, 2006: 100).
31
A primeira conceituação dos autores quanto à multidão, portanto, reside nas
singularidades que agem em comum. Ela seria formada por ―todos aqueles que
trabalham sob o domínio do capital, e assim, potencialmente, como a classe daqueles
que recusam o domínio do capital‖ (2005, p. 147). Hardt e Negri buscam ampliar o
significado de proletariado, partindo da ideia de que todos produzem. Essa concepção
difere da classe operária, ―pelo menos tal como este veio a ser usado nos séculos XIX e
XX‖ (2005, p. 147). Isto porque tal conceito, segundo Hardt e Negri, põe no centro o
trabalho industrial (ou, de modo mais amplo, os trabalhadores assalariados) e acaba
tanto excluindo as formas de trabalho não-assalariadas como diferindo o trabalho
industrial masculino do trabalho feminino reprodutivo, o industrial do camponês, os
operários dos pobres, os empregados dos desempregados (2005, p. 147). Para os
autores, não existe mais um privilégio político da classe operária em relação às outras,
no sentido de que, se todas produzem, todas têm um potencial de resistência ao capital.
O conceito de multidão é, portanto, um conceito aberto.
Neste contexto, a função da teoria de classe é propor um programa que reflita o
potencial de luta das classes, reapropriando o projeto político lançado por Marx. Hardt e
Negri esboçam um programa político para a multidão e, a partir dele, traçam três
demandas principais: a) o direito à cidadania global; b) o direito a um salário social e c)
o direito à reapropriação. As duas últimas reivindicações, em especial, se fazem
presentes nas ações de Luther Blissett e serão analisadas com maior atenção. Por ora,
vamos passar brevemente ao direito de cidadania global, antes de partirmos para o
próximo subcapítulo.
As migrações em massa são necessárias à produção capitalista, pois grande parte
da mão-de-obra ilegal de setores diversos (desde a agricultura dos Estados Unidos à
produção imaterial da moda ou da eletrônica) é formada pelas multidões. O Império,
mesmo necessitando destes movimentos, criminaliza e isola as migrações31
, de modo a
impedir a legitimidade política da multidão. No entanto, é no confronto direto com a
força opressiva do Império que a multidão torna-se sujeito político.
Ainda que seja difícil delinear um projeto político, pode-se dizer que a primeira
demanda da multidão refere-se a sua circulação, visando constituir uma nova geografia,
reapropriar-se dos espaços e se constituir como sujeito (HARDT E NEGRI, 2012, p.
31
Essas restrições são expressas através do poder militar do Império ou em divisões dentro do próprio
país. No primeiro caso, as ações acontecem pelo patrulhamento de fronteiras e mares. Já a segunda
explicação alude às divisões de raça, gênero, linguagem e cultura dos imigrantes dentro de seus trabalhos.
32
421). A cidadania global é ―o direito geral de controlar seu próprio movimento‖
(HARDT E NEGRI, 2012, p. 424). Os autores citam como exemplo as manifestações de
1996 na França32
, onde estrangeiros exigiam documentos de residência para todos – ou
seja, direitos plenos de cidadania no país onde vivem e trabalham. É uma demanda
conseqüente das transformações econômicas nos últimos anos, reflexo da exigência de
mobilidade da força de trabalho por parte do capital.
2.1. “Muito dinheiro porque eu sou muitos”
A segunda demanda política da multidão diz respeito ao salário social e a uma
renda garantida para todos. Para explicar este tópico, Hardt e Negri recorrem às
transformações do conceito de tempo, ligado também à emergência do trabalho
imaterial. Aristóteles compreende o tempo a partir de uma experiência coletiva –
separada da experiência individual e espiritual -, porém reduzido a uma medida
transcendente que prende o ser dentro desse padrão, vigorando até a modernidade. No
entanto, o paradigma pós-moderno rompe com a transcendência. O tempo ainda é
coletivo, mas diz respeito a uma existência coletiva voltada à cooperação - em suma, ele
não transcende.
Essa reapropriação do tempo tem seus efeitos na fenomenologia do trabalho da
multidão, uma vez que a cooperação é central. Neste aspecto, a produção da multidão
irá constituir o tempo para além de sua medida (HARDT E NEGRI, 2012, p. 426), uma
vez que o contexto biopolítico ressalta a ―incomensurabilidade do tempo e do valor‖, ou
seja, o trabalho fora dos muros das fábricas torna cada vez mais inseparável o tempo de
32
―(...) durante as décadas de 80 e 90 (séc. XX), diversos imigrantes não conseguiram regularizar sua
situação e se viram na clandestinidade. Tais dificuldades legais nos ajudam a entender por que a metade
da década de 90 (séc. findo) constituiu um período de intensas manifestações.8 A série de atos teve início
em 18 de março de 1996, quando uma delegação com cerca de trezentos africanos em situação irregular e
provenientes do Senegal, de Mali e da Mauritânia e com estatutos administrativos distintos, ocuparam a
igreja Saint Ambroise em Paris. Na sua análise sobre a categoria sans-papiers, Salih Akin (1999 apud
Vieira, 2012) interpreta esse momento como um marco no processo de autonomização dos sans-papiers.
Para ele, o ano de 1996 foi a instalação definitiva dos sans-papiers na mídia e, pouco a pouco, esses dois
termos deixaram de ser palavras qualitativas para se transformarem em um substantivo. Os imigrantes
manifestantes intervêm publicamente para reivindicar a regulação diante do Estado e, também, para
chamar a atenção da sociedade civil. A visibilidade na mídia contribuiu para uma mudança na forma
como eles eram chamados, deixaram de ser necessariamente associados ao termo clandestinos, e
passaram a ser tratados de sans-papiers‖ (VIEIRA, 2012, pp. 201-202).
33
produção do tempo de reprodução - o tempo do trabalho do tempo de lazer33
(HARDT
E NEGRI, 2012, pp. 426-427).
A nova configuração do tempo identificada por Hardt e Negri nos leva a
entender o trabalho como uma atividade fundamental e que é impossível de ser medida,
uma vez que todos produzem. Desse modo, é ―a própria capacidade universal de
produzir - a atividade social abstrata e seu poder inclusivo - que passa a ser objeto de
exploração e dominação‖ (LEITE, 2004, 46). A dificuldade de separar os termos
trabalho produtivo/reprodutivo/improdutivo implica a exploração tanto do trabalho
material como imaterial, em todos os âmbitos. Isto porque o trabalho, como dissemos,
vai além das fábricas, de modo que a exploração não tem um local específico e
dificilmente pode ser quantificada. Neste contexto, também o desemprego toma maiores
proporções, sustentado ―pelo espetacular desenvolvimento tecnológico34
das últimas
décadas associado à lógica da busca da rentabilidade do capital a qualquer custo social‖
(LEITE, 2012, p.12).
A discussão entre trabalho e avanços tecnológicos vem desde Marx, que
considerava que a fonte da riqueza no capitalismo avançado deixaria de ser o trabalho
do homem ou o tempo gasto, dando lugar ao conhecimento e ao intelecto humano por
meio da aplicação da ciência na produção. No entanto, Leite (2004, p. 13), prosseguindo
em sua leitura marxiana, adverte que ―o capitalista irá insistir em reduzir a força social
do desenvolvimento do intelecto humano aos limites do valor do tempo de trabalho,
num movimento que levará o capitalismo a consumir a si próprio‖.
33
Debord (1997, p. 23) entende que a mercadoria domina totalmente o tempo, desvalorizando-o e
tornando-o espetacular, feito para o consumo de imagens. O autor se refere à fabricação de ―pseudobens‖
e ―pseudonecessidades‖ – como as televisões e automóveis -, selecionados pelo sistema espetacular de
modo a reforçar as condições de isolamento do que Debord chama de ―multidões solitárias‖. A
abundância desses ―bens alienados‖ implicaria o estranhamento do tempo e espaço por parte do
espectador; logo, o guia do homem passa a ser o espetáculo. Esse sistema baseado na solidão e que
reforça a supressão tanto do espaço como do tempo também é intensificado pelo fenômeno da
urbanização e das condições de trabalho. Indivíduos são isolados em conjunto - pois o isolamento serve
como um eficiente meio de controle -, em pseudocoletividades, tais quais condomínios e clubes. Nestas
condições, as imagens dominantes adquirem força plena. Mesmo as férias, o suposto lazer para apreciar a
―vida real‖, não passaria de mercadoria, já que a realidade do tempo é substituída pela publicidade do
tempo. As férias, na verdade, são consideradas por Debord como o ápice do espetáculo, pois ―nesses
momentos concedidos à vida, ainda é o espetáculo que se mostra e se reproduz‖ (1997, p. 106). Portanto,
a crítica do autor avança para um domínio econômico em todas as esferas da vida, de modo que, mesmo
nas férias, o trabalhador faz parte do espetáculo e consome. 34
O que não significa que a inovação tecnológica seja por si só a causa do desemprego. Leite (2004, p.
13) se preocupa mais com a forma com que serão destinados esses avanços, divididos entre
―trabalhadores (aumento do poder de compra e/ou redução do tempo de trabalho), empresários (maior
margem de lucro), consumidores (redução dos preços) ou Estado (elevação da carga tributária)‖. Sendo
assim, o progresso técnico também pode resultar em mais emprego, consumo ou tempo livre: ―trata-se de
uma ‗escolha social‘, historicamente determinada pelas formas de regulação do sistema produtivo e de
distribuição dos ganhos de produtividade‖.
34
Desse modo, o salário social provém de uma crítica à produção generalizada - na
multidão, todos são produtores -, mas também assentada em uma justificativa
econômica, a saber, a ―própria tendência do capitalismo contemporâneo de depender
menos do trabalho‖ (LEITE, 2004, p. 13). A proposta do salário social serve de
contraponto à distribuição de riqueza baseado no tempo de trabalho como referência de
valor. O trabalho que não é mercantil, por exemplo, não é reconhecido, a exemplo da
dona-de-casa35
.
André Gorz (apud Leite, 2004, p. 54) considera o pagamento de um salário
social suficiente a todos os cidadãos como um meio de libertá-los das restrições do
mercado de trabalho. Não é uma forma de assistência ou um modo de tornar as pessoas
dependentes do Estado, mas um meio de transferência aos indivíduos para que eles
adquiram autonomia. ―Não se trata de dispensar o trabalho, mas de restabelecer o direito
ao trabalho concreto, que se faz sem que seja necessário ser pago, sem valor de troca‖
(LEITE, 2004, p. 54). Esse compartilhamento de riquezas - entre todos, do que é de
todos e, por consequência, de ninguém - desmancha a lógica econômica do valor
individual do trabalho para cada um.
O modelo que tratamos aqui é a visão da renda mínima ―suficiente‖. Tal
proposta tem embasamento nas utopias comunistas, embora Leite (2004) considere que
os fundamentos do salário social também se aproximam da tese neoliberal e reformista
de uma renda mínima de subsistência, baseada no assistencialismo que reforça o modelo
capitalista36
. Algumas críticas da esquerda marxista direcionadas a Negri e Império
tratam justamente de apontar para o programa político da multidão como utopias
35
Como outro exemplo, Szaniecki (2012, p. 6) cita um fenômeno recente, articulado à lógica das redes: a
proliferação das mídias sociais, ―onde nosso trabalho alimenta o sistema capitalista sem trazer
necessariamente benefícios a nós mesmos. Essa nova forma de produção - produção em redes - pode
acomodar, e acomoda efetivamente, diversas formas de trabalho sem remuneração e sem proteção social
garantidas: trabalho em tempo parcial ou pago por tarefa, trabalho em casa ou doméstico, trabalho free
lance entre outras formas de trabalho 'free' que mais se assemelham a atividade explorada do que a ação
livre. Nas redes, trabalho sem renda e sem garantias proliferam‖. 36
O modelo reformista ampara-se no que os neoliberais da escola de Chicago - dentre outras correntes
conservadoras - chamam de ―renda mínima insuficiente‖, colocada como uma substituição ao seguro
desemprego, vale-alimentação, entre outros modelos de redistribuição. Essa renda inferior ao salário
mínimo forçaria o desempregado a trabalhos de baixa remuneração. Tal escolha se deve à visão
conservadora de que o salário ―suficiente‖ do trabalho de baixa qualificação e produtividade não é
rentável para as empresas (LEITE, 2004, p. 53). Uma renda social insuficiente, somada a uma renda de
trabalho também insuficiente, protege o mercado tanto dos direitos trabalhistas, fadados ao
desaparecimento, como também da competição entre países com os salários mais baixos. A renda mínima
é exemplificada por Gorz (apud Leite, 2004, p. 53) no sistema do ‗workfare‘ norte-americano, que
associa o direito a uma renda baixa à obrigação de realizar trabalho de ‗utilidade social‘.
35
impraticáveis37
, ou mesmo como um tímido modelo reformista que deturpa o
pensamento marxiano ―original‖.
Portanto, o salário social opõe-se à produção biopolítica generalizada. Como o
trabalho não pode mais ser medido individualmente – porque todos produzem, porque
ele se estende para além dos locais próprios de trabalho, porque ele é imaterial e difícil
de ser quantificado, porque ele considera esferas ignoradas, como a doméstica -, não se
torna possível sequer falar no que Hardt e Negri chamam de slogan do ―salário igual
para trabalho igual‖ (2012, p. 427). Busca-se uma renda garantida, uma compensação
igualitária que reconheça essa demanda como necessária à própria sobrevivência do
capital. E ―uma vez que a cidadania se estende a todos, podemos chamar essa renda
garantida de renda de cidadania, devida a cada um como membro da sociedade‖
(HARDT E NEGRI, 2012, p. 427).
São exatamente estes termos que ecoam na Declaração dos Direitos, um
manifesto escrito por Luther Blissett (2001, p. 129-130) publicado na Revista Mundial
de Guerra Psíquica, em 1995:
A indústria do espetáculo e da ordem imaterial me deve dinheiro. Não vou
fazer acordos com ela até eu ter o que me é devido. Por todas as vezes em
que apareci na TV, no cinema ou no rádio, como transeunte casual ou como
elemento da paisagem, e minha imagem nunca foi paga; por todas as vezes
em que meus rastros, inscrições, grafites, fotografias, disposição de objetos
no espaço (como em acidentes catastróficos ou espetaculares, atos de
vandalismo, fraudes imobiliárias etc.) foram utilizados sem o meu
conhecimento em shows e telejornais; por todas as palavras e expressões de
impacto comunicativo que eu criei nos bares da periferia, nas praças, nos
muros, nos centros sociais, que passaram a ser siglas de programas,
poderosos slogans publicitários ou nomes de sorvetes embalados, sem eu ver
um tostão; por todas as vezes nas quais meu nome e dados pessoais foram
colocados para trabalhar de graça dentro de cálculos estatísticos, para adequar
à demanda, definir estratégias de marketing, aumentar a produtividade de
empresas que não poderiam me ser mais alheias; pela publicidade que faço
continuamente usando camisetas, mochilas, meias, casacos, sungas, toalhas
com marcas e slogans comerciais, sem que meu corpo receba uma
remuneração como outdoor publicitário; por tudo isso, e muito mais ainda, a
indústria do espetáculo integrado me deve dinheiro!
Entendo que seria difícil calcular singularmente o quanto me devem. Mas
isso não é de jeito nenhum necessário, pois eu sou Luther Blissett, o múltiplo
e multíplice. E tudo que a indústria do espetáculo me deve, deve aos muitos
que eu sou, e me deve porque eu sou muitos. Nesse sentido, podemos fechar
um acordo para uma remuneração por empreitada geral. Vocês não terão paz
até eu ter o dinheiro! MUITO DINHEIRO PORQUE EU SOU MUITOS:
RENDA DE CIDADANIA PARA LUTHER BLISSETT!
37
Sobre a proposta do salário social visto como utópico e irrealista, ver os argumentos de Leite (2004, p.
55) baseados em Vercellone a respeito da legitimidade e viabilidade da demanda.
36
Nesta Carta, ecoam reivindicações de Blissett a respeito de sua tomada pela
Indústria Cultural sem nenhum pagamento. Naturalmente, a intenção de L. B. é, sim,
adentrar a esfera mídia e se infiltrar no mainstream cultural (BLISSETT, 2001, p. 41).
O que se contesta é a utilização da mídia a seu bel-prazer, ganhando dinheiro em cima
de Blissett. Nesse sentido, L. B. não fala somente de si: ele é a personificação da própria
multidão que produz riquezas imensuráveis, de modo que não se sabe quanto se deve a
ela e nem a quem, exatamente. Mas sabe-se que são muitos, senão todos. E Luther
Blissett é todos.
Para Deseriis (2010, p. 78), L. B. é a figura do comum e da capacidade de
autovalorização38
dos operários imateriais, que reside na cooperação e produção do
comum. Blissett recupera o caráter imensurável e excessivo do condivíduo39
, porque
trabalho e valor agora são variáveis independentes na estrutura do capital. Toda
atividade social pode ser contestada, o que significa que a produção biopolítica do
trabalho imaterial é 1) imensurável, porque não pode ser quantificada em unidades fixas
de tempo e 2) excessiva, a respeito do valor que o capital extrai do trabalho, porque ele
nunca consegue capturar toda a vida. Para entendermos estes aspectos, devemos
retroceder brevemente a uma discussão de Hardt e Negri sobre Marx.
Marx sustenta que o valor e a riqueza provêm do trabalho - mas o trabalho
produzido em colaboração com outros, e não a partir de indivíduos isolados. Os
trabalhos são comensuráveis e também equivalentes, se utilizarmos como comparação o
seu elemento comum, a saber, o trabalho abstrato. Este, por sua vez, refere-se ao
trabalho em si, aquilo que independe da sua forma específica (por exemplo, um pedreiro
e um comerciante, mesmo exercendo funções diferentes, têm em comum o trabalho
abstrato). Uma vez que o trabalho é a fonte da riqueza, o trabalho abstrato deve ser
também a fonte do valor. O dinheiro, portanto, é a abstração do valor capitalista.
Nesse sentido, trabalho e valor podem ser quantificados: determinada quantidade
de trabalho abstrato corresponde a determinada quantidade de valor. É por isso que o
valor também é mensurável. Essa análise será somada por Marx à jornada de trabalho e
à mais-valia, de modo a justificá-las.
Porém, já observamos anteriormente que, sob a égide do trabalho imaterial, o
conceito de tempo mudou. Tempo de trabalho e tempo de vida tornam-se
38
Autovalorização refere-se à constituição de subjetividades coletivas que são alternativas e autônomas,
contra a sociedade capitalista (LIBERATO, 2009). 39
Condivíduo é o sinônimo para Blissett do nome múltiplo, a ―identidade aberta‖ que o constitui como
network.
37
progressivamente indivisíveis, o que os torna biopolíticos. Um exemplo são empresas
como a Microsoft, cujos escritórios almejam parecer um lar para o funcionário, a fim de
que ele lá permaneça o maior tempo possível. Noutro extremo, o trabalho também toma
a vida das pessoas que sobrevivem com mais de um emprego ao dia. É por isso que
falamos de um contexto biopolítico incomensurável, pois já não se pode mais
quantificar o trabalho e o valor em unidades fixas de tempo.
Sendo assim, deve-se atualizar o pensamento de Marx, para quem o capital era
considerado uma relação social. Ora, hoje o capital é a própria produção da vida. Nesse
sentido, Marx evocava o conceito de ―trabalho vivo‖, o ―fogo modelador de formas de
nossas capacidades criativas‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p. 194). O trabalho vivo seria a
própria capacidade de enfrentar criativamente o mundo e produzir a vida social. Ele
pode, e é, encurralado pelo capital, reduzido à força de trabalho. Mas o conceito de
trabalho vivo transcende isto, pois nossas capacidades de inovação são sempre maiores
que nosso trabalho produtivo de capital. Nesse sentido, a produção biopolítica é
excessiva quanto ao valor que o capital dela extrai: ele não apreende, não captura toda a
vida.
Malini (2007) também observa essa possível resistência no contexto do que
denomina de capitalismo cognitivo. A produção material cria os meios da vida social,
ou seja, automóveis, televisões, roupas, alimentos. São meios de vida porque sem eles a
própria vida social, ao menos agora, em sua forma moderna, não seria possível. Já o
imaterial, que gera imagens, ideias, conhecimentos, comunicação, cooperação e relações
afetivas, produz a própria vida social. O tempo, ao se sobrepor à vida, modifica o valor-
mercadoria: ele não se baseia mais no tempo do trabalho, mas no tempo da formação do
trabalho (MALINI, 2007, p. 119), ou seja, tudo aquilo que estimula o conhecimento e
impulsiona decisões e atos. Essa produção baseada na força-cérebro é incomensurável,
porém passível de ser capturada. No entanto, a captura nunca é completa, ―porque o
capital não pode controlar por inteiro a inteligência, as capacitações afetivas, a produção
de linguagem e os conhecimentos técnicos da multidão‖ (MALINI, 2007, p. 119). É,
portanto, uma produção biopolítica excessiva.
A chave para que se possa compreender a relação entre valor e trabalho, na
contemporaneidade, está no comum. Em Marx, a organização da relação entre os
trabalhadores era feita pela cooperação (no sentido de que os operários eram
―ordenados‖ a colaborarem e a se comunicarem, com seus devidos meios). Já no
paradigma imaterial, tal relação é intrínseca ao trabalho. Ela nasce a partir da própria
38
cooperação, o que pode ser exemplificado através do trabalho afetivo, que,
necessariamente, produz relações (uma enfermeira cuidando de um paciente, um
jornalista se comunicando com seu público). A construção de novas ideias e
conhecimentos geram ciclos que estimulam mais e mais cooperações. Estas, por sua
vez, tornam-se elementos internos do trabalho e externos ao capital40
.
Se a teoria do trabalho e do valor já não são mais equivalentes e agora se
baseiam no comum, o conceito de exploração também se transforma. Hardt e Negri
falam da expropriação do comum - nada mais que o novo local da mais-valia (2005).
Um exemplo de expropriação citado pelos autores é a privatização do conhecimento,
desde o que é produzido em comunidades indígenas até os fechados em universidades41
.
Outro caso que pode ser citado é o Wu Ming Foundation, o coletivo que sucede o
Projeto Luther Blissett após seu suicídio simbólico. O grupo reivindica a questão dos
direitos autorais, ou seja, a expropriação do comum, e são favoráveis ao copyleft42
.
Voltando nosso olhar à comunicação – que, como já vimos, é um dos exemplos
mais básicos de produção comum -, também temos sua expropriação pelo capital.
Estamos falando de conglomerados midiáticos e grupos hegemônicos que capitalizam a
40
Isto porque a riqueza se dá fora do processo produtivo direto, mas é comum à produção econômica
como um todo. Exemplo citado por Hardt e Negri (2005, p. 196): ―uma empresa situada em Michigan, no
nordeste da Itália ou no sul da Índia beneficia-se do sistema educacional, da infra-estrutura pública e
privada de rodovias, ferrovias, linhas telefônicas e cabos de fibra ótica, assim como do desenvolvimento
cultural geral da população. Do ponto de vista dos negócios, a inteligência, as capacitações afetivas e os
conhecimentos técnicos dessas populações são externalidades positivas. O capital não precisa pagar por
essas fontes externas de riqueza, mas tampouco pode controlá-las inteiramente‖. 41
―Cada vez mais (...) constatamos hoje que a propriedade privada que limita o acesso a ideias e
informações sufoca a criatividade e a inovação. Os teóricos e os promotores das tecnologias da Internet há
muito insistem em que, embora a criatividade inicial da revolução cibernética e o desenvolvimento da
Internet tivessem sido possibilitados por extraordinária abertura e facilidade de acesso a informações e
tecnologias, tudo isto está atualmente sendo aos poucos fechado em todos os níveis: conexões físicas,
códigos e conteúdos. A privatização do 'comum' eletrônico tornou-se um obstáculo para a inovação.
Quando a comunicação é a base da produção, a privatização imediatamente impede a criatividade e a
produtividade. Os cientistas dos campos da microbiologia, da genética e de outros afins também
argumentam que as inovações científicas e o avanço do conhecimento baseiam-se na colaboração aberta e
no livre intercâmbio de ideias, técnicas e informações. Os cientistas não costumam ser incitados a inovar
pela expectativa de enriquecimento com direitos de patente, mas é isto com certeza o que move as
corporações e universidades que os empregam. A propriedade privada do conhecimento e da informação
é apenas um obstáculo à comunicação e à cooperação que estão na base da inovação social e científica‖
(HARDT E NEGRI, 2005, pp. 241-242).
42 O copyleft utiliza o direito que está na base do copyright mas vira-o do avesso de modo a servir o
oposto do seu objetivo habitual. Em vez de fomentar a privatização, torna-se numa garantia de que todos
têm a liberdade de utilizar, copiar, distribuir e modificar software ou qualquer outro tipo de obra. A sua
única "restrição" é precisamente aquela que assegura a liberdade ― os utilizadores não estão autorizados
a limitarem a liberdade de qualquer outro, uma vez que as cópias e derivações devem ser redistribuídas
nos termos da mesma licença. O copyleft requer a posse legal apenas para renunciar na prática a esta ao
autorizar que todos façam o uso que desejarem da obra, desde que o copyleft seja transmitido. A mera
exigência formal da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá colocar um copyright em cima de
uma obra copyleft e tentar limitar o seu uso (NIMUS, 2006, pp. 34-35.
39
riqueza incomensurável do comum da comunicação, tanto pelas mídias sociais como
por empresas privadas (SZANIECKI, 2012, p.10).
No entanto, Szaniecki questiona: como podemos pensar a relação do comum
com o espaço público, em oposto à privatização? Essa dicotomia é inexistente, ao
menos no que concerne à produção do comum. Isto porque ele ―se distingue tanto da
esfera estatal quanto do espaço da comunidade onde o individual se dissolve‖
(SZANIECKI, 2012, p. 10). Nesse sentido, o comum é a maneira que a multidão
encontra para se comunicar através de múltiplas singularidades.
Ora, se a expropriação do comum concerne às novas formas de exploração, e se
o comum (como resultado da produção de conhecimentos, relações e afetos) é a mais-
valia no contexto biopolítico do trabalho imaterial, Luther Blissett torna-se a própria
figura de uma produção comum (DESERIIS, 2010). Isto porque Blissett é
primordialmente formado por trabalhadores imateriais que, através da cooperação e da
produção em comum, constituem novas formas de subjetividade. Estas, por sua vez,
ligam-se ao caráter imensurável e excessivo do condivíduo expresso por Blissett em sua
Carta, sobre o qual a indústria do espetáculo integrado parasita e manipula afetos.
Imensurável, porque Blissett são todos os que produzem; excessivo, porque se baseia na
força-cérebro, na criatividade, naquilo que o espetáculo vampiriza, mas não consegue
capturar por completo. Daí as formas de resistência que residem na cooperação em
comum e na figura da autovalorização dos trabalhadores imateriais.
Essa produção de Blissett baseia-se no princípio da Gemeinwesen, termo de
Marx que designa a ―dimensão coletiva da verdadeira comunidade humana‖
(BLISSETT: 2001, p. 24) e significa ―ser comum‖, em alemão. Ela precede a
compreensão do que seriam grupos ou comunidades que já existem - as Gemeinschaft -,
ligando-se à essência do comum relativo às formas de produção pré-capitalistas43
, ou
seja, formas de vida que não levavam em conta valor, mercadoria, trabalho abstrato,
dinheiro (JAPPE, 2009).
Segundo Blissett (2001, p. 24), ―a Gemeinwesen é o princípio comunitário que
não se ‗aglutina‘ em uma Gemeinschaft existente, pois a comunidade é comunidade dos
humanos, e há de ser descoberta na espécie inteira‖. Há aqui uma diferenciação entre a
Gemeinwesen, que seria a produção do comum, e o termo ―comunidade‖
(Gemeinschaft), dado que o último termo ―frequentemente é usada para se referir a uma
43
No entanto, para Marx, o abandono da Gemeinwesen é necessário para o ―desenvolvimento de uma
individualidade mais rica‖ (JAPPE, 2009, s/p).
40
unidade moral que se posiciona acima da população e de suas interações, como um
poder soberano‖ (HARDT E NEGRI, 2005, p. 266). Sendo assim, o comum não provém
das noções de ―público‖ ou ―comunidade‖, porque elas dissolvem o valor individual.
Ele tem seu cerne na ―comunicação‖ e opera através de processos colaborativos entre
singularidades. Neste sentido, segundo Blissett (2001: 25), a figura do trabalhador
imaterial, no contexto de difusão de tecnologias, que produz em rede e
colaborativamente, tem sido a experiência mais próxima de uma Gemenweisen. Logo,
Blissett também pode ser considerado uma, justamente por ser formado por
trabalhadores imateriais44
.
Entendendo a comunicação como fator central na produção biopolítica, podemos
passar para a última demanda da multidão. Esta se refere à reapropriação das redes de
comunicação, concebendo novos usos das tecnologias.
2.2. Reapropriação da informação: a figura do guerrilheiro midiático
A terceira demanda política da multidão é uma reivindicação de raízes
socialistas e comunistas: o direito a reapropriar-se dos meios de produção. No entanto,
dado o contexto biopolítico e de produção imaterial, o termo ―reapropriação‖ não se
refere somente às máquinas que produzem. Isto porque estamos falando da imbricação
vida-trabalho, homem-máquina, à progressiva integração dos meios de produção nas
mentes e corpos da multidão (HARDT E NEGRI, 2012). Os autores reiteram que essa
integração não significa o controle sobre as máquinas, mas uma alienação ainda mais
perigosa. A reapropriação refere-se ao autocontrole e à autoprodução autônoma. É o
direito de acesso aos meios primários da produção biopolítica: o conhecimento, a
informação e os afetos. Daí a centralidade da comunicação nas pautas da multidão e do
próprio Luther Blissett.
Hardt e Negri buscam constituir um telos (meta ou finalidade, em grego) para a
multidão a fim de formar um programa político coerente que faça emergir uma nova
sociedade. Para isso, os principais aspectos são: 1) conhecimento e comunicação como
pontos centrais na constituição de novos modos de vida; 2) um novo uso das máquinas e
tecnologias, de modo que a multidão seja autônoma, e não subordinada; 3) a
constituição do telos como uma criação coletiva; 4) o tecido biopolítico da multidão -
44
A origem de Blissett nos centros sociais italianos e os trabalhadores imateriais que formaram o nome
múltiplo também serão detalhados no capítulo seguinte.
41
que compreende os âmbitos políticos, sociais, econômicos -, que também se abre para
que ela possa constituir seu poder e lutar pelos sentidos de linguagem e tecnologia e 5)
o poder constituinte da multidão, a força criadora e imaginativa que acontece
paradoxalmente na captura do biopolítico e da produção imaterial, mas que também
desenvolve formas de resistência.
A produção autônoma na reapropriação dos meios é um dos aspectos
fundamentais no programa de Hardt e Negri e tem relação com o termo posse. Ela se
refere ―ao poder da multidão e seu telos, um poder personificado de conhecimento e de
ser, sempre aberto para o possível‖ (HARDT E NEGRI, 2012). Os autores se referem às
subjetividades de cada singularidade que compõe a multidão, de modo que cada um
detém sua posse, seu modo de produção que resiste à expropriação do comum e
reapropria-se do conhecimento - tudo isso mediante a cooperação.
É importante sublinharmos que Blissett não busca retomar os meios de produção
da indústria midiática – trata-se do que apontam Hardt e Negri, uma autoprodução
autônoma, e não a passagem de um cetro de poder para outro. Conforme a análise de
Downing (2002, p. 115), apropriando-se das ideias de Bakunin, qualquer nova ideologia
é passível de ser utilizada por uma nova elite, inclusive o marxismo – ―governando em
nome dos explorados e reivindicando o manto da ciência‖.
Umberto Eco (1984), em um texto chamado Guerrilha Semiológica, argumenta
de forma semelhante à Bakunin ao tratar dos meios de comunicação enquanto meios de
produção - para o autor, mesmo que eles mudassem de dono, a situação de sujeição do
receptor perante o emissor continuaria a mesma45
. Eco escreve que é necessário uma
―solução de guerrilha‖ cujo enfoque recaia no receptor e não no emissor – afinal, ―a
batalha da sobrevivência do homem como ser responsável na Era da Comunicação não é
vencida lá onde a comunicação parte, mas aonde ela chega‖ (ECO, 1984, p. 173). É
neste contexto que emerge a figura utópica (conforme o próprio autor admite) dos
guerrilheiros semiológicos, que ―reintroduziriam uma dimensão crítica na recepção
passiva‖ (ECO, 1984, p. 175), e tomariam proveito das ambigüidades presentes nos
meios de comunicação de massa para preenchê-los de novos significados.
45
Eco (1967, p. 173) aplica um exemplo baseado nos meios de comunicação da Itália, onde se insere
Blissett: ―a solução estratégica resume-se na frase: ‗é preciso ocupar a cadeira do presidente da RAI‘, ou:
‗é preciso ocupar a cadeira do ministro das Informações‘, ou ainda: ‗é preciso ocupar a cadeira do diretor
do Corriere‘. Não nego que essa colocação estratégica possa dar resultados a quem aspire ao sucesso
político e econômico, mas começo a temer que dê resultados bastante magros a quem espera poder dar
novamente aos seres humanos uma certa liberdade diante do fenômeno total da Comunicação‖.
42
O aparente pessimismo de Eco foi o ponto de partida para as primeiras reflexões
acerca da guerrilha comunicacional. O coletivo alemão Autonome a.f.r.i.k.a. gruppe46
questiona a crença radical na informação: para os autores, ela, por si mesma, não possui
nenhuma consequência. Deve-se focar em uma recepção ativa da audiência que crie
estes significados. A guerrilha comunicacional, escrevem os autores, não almeja a
destruição dos códigos e signos de poder, mas, sim, a subversão das suas mensagens –
através das ambigüidades que Eco citou. Não à toa, a imagem do guerrilheiro
semiológico é constantemente utilizada pelos ativistas de mídia (MAZETTI, 2008a),
uma vez que a distorção de significados é uma prática típica de culture jamming. Como
exemplo, podemos pensar na adulteração de outdoors.
A atitude de Blissett parece ser justamente a de fomentar uma maior participação
do público, no sentido de que o monopólio da fala por jornalistas pode ser quebrado. A
ideia é buscar certa autonomia em relação aos meios de comunicação – não
necessariamente tomar posse deles, mas algo além, a prática de novos meios de se
relacionar com eles:
A guerrilha midiática não é somente uma maneira de se apropriar novamente
da informação, no sentido de roubar espaço ao sistema midiático ―oficial‖, ou
de demonstrar a deformação das notícias por ele exercida. Ela é a realização
de um jogo de artimanhas recíprocas, uma forma de envolvimento da mídia
em um trauma impossível de se captar e de se entender, uma trama que
provoca a queda da mídia, vítima de sua própria prática. Arte marcial pura:
utilizar a força (e a estupidez) do inimigo, voltando-a conta ele [grifo nosso]
(BLISSETT, 2001, p. 28).
Note-se que a posse é da informação, e não dos meios. O questionamento central
parece estar mais voltado ao jornalismo enquanto mediação de notícias – daí a série de
―trotes‖ midiáticos que utilizam a mediação (o jornalista) para criar factóides
inexistentes.
Para Hardt e Negri, a figura expressiva da multidão é o militante, em
contraponto ao povo.
A militância atual é uma atividade positiva, construtiva e inovadora. Esta é a
forma pela qual nós e todos aqueles que se revoltam contra o domínio do
capital nos reconhecemos como militantes. Militantes resistem criativamente
ao comando imperial. Em outras palavras, a resistência está imediatamente
ligada ao investimento constitutivo no reino biopolítico e à formação de
aparatos cooperativos de produção e comunidade. Eis a grande novidade da
militância atual: ela repete as virtudes da ação insurrecional de duzentos anos
de experiência subversiva, mas ao mesmo tempo está ligada a um lado de
46
O texto citado se chama What is communication guerrilla? e faz parte de uma organização de Joanne
Richardson compilada no livro Anarchitexts. No entanto, o mesmo texto pode ser encontrado com um
diferente título – What about communication guerilla? -, sendo, por sua vez, creditado à Luther Blissett e
Sonja Bruenzels. Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/373_en.html>. Acesso em: 27
nov 2013.
43
dentro, uma participação vital e inevitável no conjunto de estruturas sociais,
sem possibilidade de transcendê-las. Esse lado de dentro é a cooperação
produtiva da intelectualidade das massas e das redes afetivas, a produtividade
da biopolítica pós-moderna. Essa militância faz da resistência um
contrapoder e da rebelião um projeto de amor47
(HARDT E NEGRI, 2012:
436-437).
Oliveira (2006) diverge da retomada ao militante feita por Hardt e Negri,
considerando uma manutenção das figuras tradicionais e uma vontade ―não claramente
explícita [dos autores] de resgatar lideranças e vanguardas‖. A crítica de Oliveira não
parece muito consistente, visto que a figura militante proposta pelos autores dá conta da
dimensão criativa das novas formas de resistência. O que talvez Oliveira insinue é uma
suposta hierarquização na busca de um líder aos moldes modernistas, o que, de fato,
acaba até mesmo sendo ridicularizado em determinados movimentos, a exemplo do
subcomandante Marcos do Exército Zapatista e o próprio Blissett.
Em sua tese de doutorado, Oliveira (2006) analisa intervenções feitas por
coletivos como o Reclaim The Streets e Critical Art Ensemble, além de L. B, e parte da
compreensão de que a atual resistência, como a desses grupos, se guia por uma ação
cultural, e não política. A dissociação entre as duas esferas já tinha sido reivindicada
antes por Hardt e Negri e parece não fazer sentido, especialmente num contexto
biopolítico. No entanto, quando a autora (2006, p. 20) explica o motivo de escolha dessa
abordagem, podemos entender outros pontos que serão articulados com Blissett:
A cultura parece-me o modo de entrada possível para dar conta da fluidez do
objeto, de sua multiplicidade. A partir da perspectiva cultural a apreensão da
contemporaneidade pode ser ampliada. O espaço da política tem como
elemento referencial o poder. A cultura, por não ter um porto único onde
ancorar, está em toda parte, é, ela também, nesses tempos globais, fluida,
móvel, mutante, não mais um objeto duro mas composta de diferenças,
contrastes, comparações, tendências, impermanências (...) Cabe pontuar que
cultura é entendida aqui como o feixe de relações que permite a conversa
entre partes distintas, aproximando-as.
Para Oliveira (2006, p. 18), ―ação cultural é aposta‖. A atual resistência não teria
mais como guia a tomada pelo poder, mas, sim, a ênfase no processo, o que a
inscreveria na esfera cultural. A autora não explicita em sua tese, mas as características
que ela adota para englobar suas intervenções são semelhantes às da mídia tática – em
47
―O amor, para Espinosa, está baseado num reconhecimento duplo: reconhecimento do outro como
diferente e reconhecimento de que a relação com esse outro aumenta nosso próprio poder. Assim, para
Espinosa, o amor é o aumento de nosso próprio poder acompanhado do reconhecimento de uma causa
externa. Notem que isso não é uma noção de amor na qual toda a diferença se perde ao abraçar uma
unidade que amarra seus movimentos — uma noção comum para a maior parte dos teólogos cristãos.
Não. Esse é um amor baseado na multiplicidade. E isso é exatamente como concebemos a multidão:
singularidade somada a cooperação, reconhecimento da diferença e do benefício de uma relação comum.
É nesse sentido que dizemos que o projeto da multidão é um projeto do amor‖ (HARDT E NEGRI, 2006,
p. 108).
44
especial, ao aspecto de não se levar muito a sério. Isto porque a mídia alternativa, por
sua vez, ―trabalha por uma missão política, uma causa suprema, que não deve ser
retirada dos trilhos‖ (MAZETTI, 2008a, p. 73). Já a tática ri de si mesma por não apelar
a uma verdade oposta ao mainstream. Conforme Lovink e Richardson (2003, p. 187,
tradução nossa) escrevem,
a mídia tática cria um sistema de desinformação, que questiona
implicitamente o poder e a importância dos signos. A informação se torna
risível, é exposta como uma fraude. A verdade não é uma base de dados cheia
de ―fatos‖, mas aparece apenas como um breve momento de revelação,
surgindo do (coletivo) inconsciente.
No entanto, e agora podemos contrapor Oliveira, o fato da mídia tática
(entendida aqui como a ação cultural que a pesquisadora propõe) expor fraudes e tornar
a informação digna de risos não significa que ela deixe de ser uma mídia de oposição ou
que não tenha apelo político. Ela pode até ter um público reduzido e não lidar com a
―massa‖, mas isso não significa que seja apolítica. Ao contrário: estamos falando de
novas formas de tratar a perspectiva política em movimentos e manifestações, em
especial, no resgate de vanguardas históricas. Busca-se mudar a consciência política de
uma minoria de novas maneiras48
.
Uma crítica que pode ser feita refere-se ao deslocamento da luta coletiva e das
alianças políticas para uma extrema fragmentação em diversas lutas por direitos e
liberdade - a substituição de macropolíticas por micropolíticas. Best e Kellner (1998
apud Mazetti, 2008a, p. 140) questionam se essa ênfase nas lutas locais e cotidianas não
seria um "fechar de olhos para alguns dos grandes alvos da política moderna, que
continuam a oprimir e exercer o poder, como o capital, o estado, o imperialismo e o
patriarcalismo". A resposta de Mazetti (2008a) a este argumento, e que pode estender-se
a Blissett, compreende que tais iniciativas não necessariamente remontam a uma
resignação destes atores em reforçar as estruturas e as instituições sociais vigentes. No
caso de L. B., trata-se muito mais de apontar diversas dúvidas, diversas interrogações,
sobre o papel da mídia, do que decretar o seu fim.
Portanto, a explicação de Oliveira é interessante justamente por apreender o
aspecto cultural das manifestações e movimentos sociais. No entanto, reiteramos nossa
discordância de que tais resistências estariam dissociadas da esfera política, mesmo que
elas não visem a tomada de poder – este pensamento já havia sido corroborado
48
Estamos antecipado alguns aspectos que serão tratados na análise do capítulo 4, dedicado ao debate
teórico sobre a mídia tática e a mídia alternativa. Nosso breve esboço visou demonstrar que as resistências
culturais não deixam de englobar aspectos políticos.
45
anteriormente por Hardt e Negri, quando citavam os movimentos contraculturais da
década de 1960.
No próximo capítulo, demonstraremos que o Projeto Luther Blissett está
associado tanto à esfera política – pois se origina nos Centros Sociais da Itália – quando
da esfera cultural, uma vez que seus fundadores participavam dos movimentos artísticos
do Neoísmo e da mail art. Os CSOA (Centros Sociais Operários Autônomos) nascem
ao final do movimento operariado italiano da década de 1970, paralelo ao
desenvolvimento das vanguardas artísticas. Essa fusão entre arte e política culmina na
expressão das táticas de guerrilha do Projeto Luther Blissett, no início da década de
1990.
46
3. O OPERÁRIO DA ARTE: CONTEXTO POLÍTICO, ARTÍSTICO
E SOCIAL DA ITÁLIA A PARTIR DA DÉCADA DE 1950
Império, um de nossos livros-base, foi lançado em 2000 na esteira dos protestos
em Seattle (1999), perpassando uma década de lutas49
. Este ciclo de movimentos que
coincide com o lançamento da obra acaba por legitimar os conceitos de Negri (a
formação do ―comum‖, a multidão, os trabalhadores imateriais), legando ao autor e a
Hardt a alcunha de ―teóricos do movimento‖ (LIBERATO, 2009, p. 55). As ideias de
ambos que utilizamos aqui já estão lapidadas, mas vale notar que Negri, em especial, as
desenvolve no mínimo desde os anos 196050
, através do Operaísmo.
Em linhas gerais, o Operaísmo abrange um conjunto de trabalhos teóricos de
neomarxistas italianos que data desde o final da década de 1950 e vai até a primeira
metade da década de 1970 (COCCO, 2001, p. 16). Não foi apenas uma corrente de
pensamento, pois esteve também envolvida em diversos movimentos sociais e políticos,
a exemplo de uma série de greves que atravessaram a Itália neste período. O Operaísmo
se dissolve após discussões internas a respeito de uma nova organização de classe,
gerando dois novos grupos. Os primeiros entram para o Partido Comunista Italiano,
visando construir o operaísmo do sindicato; já os segundos (onde Negri se insere)
fundam a Autonomia Operaia (autonomia operária), uma ―experiência político-
organizacional original‖ (COCCO, 2001, p. 16) que se desenvolve ao longo dos anos
1970.
A primeira fase que citamos (o operaísmo) preocupa-se em aplicar conceitos
marxistas à realidade italiana. Este contexto se dá na década de 1960. Ao seu final,
ocorre o ―Maio de 68‖ na Itália, que dura praticamente uma década. Até 1979,
aproximadamente, o país vivenciou uma série de lutas operárias51
que marcaram o
desenvolvimento do Operaísmo e da Autonomia Operária.
49
A revolta zapatista, de 1994, e o Movimento de Ação Global, em 1998, foram uma clara inspiração
para as ações de Seattle (ORTELLADO E RYOKI, 2004). 50
Embora Negri já fosse filiado ao Partido Socialista Italiano, seu primeiro contato com a política
acontece apenas em 1958, quando tinha 25 anos. A partir da década de 1960, o autor inicia suas leituras
em Marx (LIBERATO, 2009). 51
Essas lutas tiveram seu estopim alavancado graças à revolta estudantil, tanto na Itália como em outros
países. Porém, a característica particular do movimento italiano foi a ligação dos estudantes com a classe
operária, porque era nela que os jovens enxergavam um ―verdadeiro potencial revolucionário‖
(LIBERATO, 2009, p. 21). Dessa forma, as demandas e os protagonistas do movimento eram os
trabalhadores - não apenas operários, mas agricultores, funcionários de escritórios e estabelecimentos
comerciais, técnicos. Tais lutas ligam-se diretamente à recusa disciplinar do operário-massa ao trabalho.
Segundo Rocha (2013, p. 56), ―operário-massa‖ referia-se ao operário desqualificado, oposto ao
profissional, que o antecedia. Ele se caracteriza por ser ―subordinado às técnicas tayloristas no trabalho
47
As releituras que a teoria Operaísta fez de Marx foram publicadas em diversas
revistas. A primeira fundada pelo grupo foi Classe Operaia. Entre suas características,
estavam ―a identificação da classe operária com o trabalho subordinado ao processo da
produção; ênfase para a luta salarial como terreno do conflito político; a insistência da
classe operária como força motriz no interior da sociedade capitalista‖ (ROCHA, 2013,
p. 45). Classe Operaia acaba em 1967 e seus fundadores traçam caminhos distintos:
Asor Rosa e Mario Tronti entram para o Partido Comunista Italiano, enquanto que
Antonio Negri inicia uma organização operária autônoma denominada Potere Operaio.
Este movimento, por sua vez, teve o diferencial de abrir-se a uma maior participação de
outros sujeitos políticos que não apenas operários. Potere Operaio reuniu mulheres –
com a aproximação do movimento Lotta Femminista52
-, agregou o movimento
estudantil – envolvendo jovens na causa operária – e também contou com os
―trabalhadores intelectuais‖. Estes últimos faziam parte de uma mão de obra mais
qualificada, encontrada principalmente nos pólos industriais tecnológicos – um em
Milão, no setor eletrônico, e outro no Norte e Centro da Itália, com pesquisas industriais
(ROCHA, 2013, p. 49). A natureza ―intelectual‖ desse trabalho acendeu questões acerca
de uma nova composição de classe.
Tais reflexões colocaram em xeque a demanda comum a todo movimento Potere
Operaio, ou seja, o emprego. ―A subjetividade revolucionária era vista como estando
fora e contra o capital, já não tendo relação necessária como processo de trabalho‖
(LIBERATO, 2009, p. 25). Estamos falando de uma demanda por salário político – a
renda garantida para todos. Negri enfatiza esse alargamento da noção de proletariado
em trabalhos teóricos escritos no começo da década de 1970. Naturalmente, ocorreram
críticas a essa tomada de posição, acusada de abandonar a ―centralidade dos operários
da fábrica; sujeitado à organização da vida cotidiana e às relações salariais de tipo fordista; e submetido
às relações político-econômica keynesianas‖. Uma vez que está sob o domínio do capital, a figura do
operário-massa, portanto, não deve existir. As lutas da classe operária surgem como forma de destruí-lo;
por isso, ―a recusa ao trabalho coletivamente organizada representava uma expressão de poder para o
‗operário-massa‘ que se manifestava através de greves, sabotagens, absenteísmo, redução de
produtividade, etc‖ (ROCHA, 2013, p. 56). Para mais detalhes sobre as diversas greves que aconteceram
neste período – Piazza Statuto, Porto Marghera e Outono Quente, para citar alguns -, ver Liberato (2009)
e Rocha (2013). 52
É daí que provém a contribuição teórica a respeito do trabalho feminino em serviços e cuidados
domésticos como também sendo produtor de mais-valia – um modo de reduzir os ―custos de mão de obra
necessária para a produção capitalista‖ (ROCHA, 2013, pp. 47-48). Essa teorização feita por Mariarosa
Dalla Costa, do Lotta Femminista, é um dos pilares no conceito de trabalho imaterial desenvolvido por
Negri, conforme vimos anteriormente.
48
de fábrica‖53
(LIBERATO, 2009, p. 26). Discussões internas quanto à organização
política e o comportamento de classe levaram à dissolução do Potere Operaio em 1973.
A maioria dos ex-integrantes do Potere (dentre eles, o próprio Negri) juntou-se a
um novo grupo - Autonomia Operaia. Com o fim da Potere, Negri deixa de se
denominar operaísta (LIBERATO, 2009, p. 37) e passa a estudar a organização de uma
nova subjetividade do trabalhador. É o que Negri identifica como operário social,
―inseparável da Autonomia Operaia como nova tendência política‖ (LIBERATO, 2009,
p. 37). Essa nova figura do operário social é uma espécie de esboço do que seria o
futuro conceito de multidão, em Negri – é a figura do operário sob a hegemonia do
intelecto, resultado de uma ―crescente abstração e socialização do trabalho‖
(LIBERATO, 2009, p. 38). Segundo Cocco (2001, p. 20), a noção de operário social
inspira-se na teorização neomarxista dos anos 1950 e 1960, e também em pesquisas que
buscam apreender as ―transformações do regime de acumulação do ponto de vista das
mudanças que caracterizam os conflitos de classe a partir de 1973-1974‖.
Outra característica a respeito do operário social é a rejeição à separação entre
setores produtivos e improdutivos. Todos estão colocados dentro da esfera produtiva,
independente de terem salário ou não – daí as reivindicações feministas quanto à
exploração fora das fábricas e daí também o embrião da demanda por uma renda
garantida a todos os cidadãos. Essa renda também é um modo de unificar o proletariado,
demanda que Negri almejou durante a década de 1970, a fim de recompor uma
organização de luta e ―neutralizar as tentativas de divisão salarial (...) entre assalariados,
estudantes, mulheres e desempregados‖ (LIBERATO, 2009, p. 40).
Para Negri, a luta por uma renda garantida veio na forma das auto-reduções
feitas durante a década de 1970. Essa prática consistia na recusa de pagar tarifas
impostas pelo governo, tornando-se uma forma de resistência amplamente difundida nos
anos de 1974 e 1975 entre jovens, trabalhadores e delegados de conselhos de fábrica,
bairro, sindicatos. Conseguiu, portanto, reunir uma diversidade de sujeitos políticos.
As auto-reduções passaram a ser organizadas em grupos da juventude proletária
da época (1975), articulando trabalhadores de pequenas empresas lutando em diferentes
firmas (LIBERATO, 2009). Essa prática é um prelúdio do que viriam a ser os Centros
Sociais. O ano de 1977 foi o estopim de uma série de ocupações em universidades por
53
Em resposta, o Potere Operaio escreve que a crítica ao ―fabriquismo‖ não significa que os
trabalhadores operários perderam sua posição hegemônica como referência aos demais. O argumento
assemelha-se às futuras defesas de Negri e Hardt em relação à hegemonia dos trabalhadores imateriais.
49
estudantes, começando pela de Roma. O ―movimento de 77‖, como ficou conhecido, foi
majoritariamente jovem, mas não deixava de lado a questão dos conflitos fabris. Como
observa Liberato (2009, p. 32), ela ―unia a contracultura a um imaginário comunista e
proletário‖, caracterizando-se por um forte viés político, ao contrário da Inglaterra, por
exemplo, onde emerge o punk, resultado de expressões culturais.
O movimento de 77 possuía um espírito fortemente anti-hierárquico e anti-
sexista (LIBERATO, 2009) – dado que o movimento feminista ganhava cada vez mais
força. As auto-reduções englobavam não somente contas de energia elétrica, como
observa o autor, mas também ―tarifas de transporte, entradas para cinema e
apresentações musicais‖. As diversas ocupações feitas em imóveis abandonados
buscavam um local para que os jovens pudessem não apenas morar, mas organizar-se
em atividades políticas e culturais. Essa movimentação política faz surgir os Centros
Sociais, abarcando milhares de pessoas54
, especialmente os jovens.
O Partido Comunista Italiano, onde foi parte do movimento operaísta nos anos
1960 (lembrando que a outra fundou o Potere Operaio), se opunha ao movimento de 77
e chegou até mesmo a repreendê-lo. Seu discurso buscava opor, de um lado, a classe
formal e trabalhadora versus os estudantes desempregados do movimento - o trabalho
produtivo contra os setores marginalizados e parasitários. Essa separação55
, provinda de
um discurso conservador, ―buscava legitimar a existência do partido e das burocracias
sindicais e cumprir o papel de combater ideologicamente o movimento‖ (Red Notes,
1978 apud Liberato, 2009, p. 35). Negri e os autonomistas não consideravam o
movimento de 77 como um resultado primordialmente de setores improdutivos ou
marginalizados, mas como ―um fenômeno resultante de uma nova composição de
classe‖ que estaria se tornando produtiva à medida que desenvolvia sua inteligência
técnico-científica e formas de cooperação social (LIBERATO, 2009). O autor se refere
ao operário social, que, ao longo dos anos 1980, terá sua noção desenvolvida até tornar-
se o trabalhador imaterial.
É importante entendermos o caso único da Itália quanto à passagem do operário
massa ao operário social. Tal mudança ocorre com um atraso de quase dez anos, pelo
menos em relação aos EUA e Alemanha. Se nesses dois países, os eventos de 68 já
54
Somente em Milão havia 55 Centros Sociais, no ano de 1977 (LIBERATO, 2009). 55
Uma teorização a respeito dessa separação foi feita por Asor Rasa, integrante do PCI e fundador do
operaísmo, à época do Classe Operaia. Rosa concebe duas sociedades. A primeira é formada por uma
classe trabalhadora representadas pelos sindicatos e pelo PCI, sendo o setor produtivo da sociedade. A
segunda refere-se à juventude desempregada – os autônomos que iam contra o PCI, classificados como
improdutivos (LIBERATO, 2009, p. 41.
50
teriam sido conduzidos pelo operário social, na Itália isto só ocorrem em 77. A
diferença é que, ―ao contrário do que ocorrera em outros países, a passagem do operário
massa ao operário social [na Itália] não teria se dado dentro de uma derrota política, mas
dentro da continuidade do movimento‖ (LIBERATO, 2009, p. 39). Isto porque esse
deslocamento ocorre no ínterim das revoltas da década de 1970, aglutinando o ―operário
social tardio‖ à ―contracultura tardia italiana‖, evitando divisões.
Em fins dos anos 1970, o movimento autonomista é derrotado. Cerca de 60
lideranças operárias são demitidas da Fiat em outubro de 1979 e milhares de operários
que participavam ativamente da política seriam também demitidos no ano seguinte. A
retomada de poder pela Fiat é consagrada quando gerentes, supervisores e trabalhadores
de escritório marcham nas ruas de Turim demandando o direito de trabalho, ou seja, em
oposição aos operários grevistas. Foi a vitória política da empresa (LIBERATO, 2009).
Negri e milhares de militantes são presos entre 1979 e 1980. O teórico-militante
italiano é exilado na França e só voltará a seu país de origem em 1997. Durante esse
tempo, Negri refina seus conceitos e desenvolve a noção de multidão, quando volta a ler
Spinoza. Na Itália, a década de 1980 é marcada por um declínio dos movimentos sociais
(LIBERATO, 2009). A classe trabalhadora volta à defensiva, ―ao mesmo tempo que o
peso numérico dos trabalhadores de fábrica diminuía frente ao aumento do terciário‖.
Ainda neste contexto, o modelo de produção pós-fordista expande-se pelo país,
seguindo a tendência que ocorria na maioria dos outros países mais desenvolvidos.
O movimento autonomista passa a sobreviver apenas marginalmente, reduzido
aos Centros Sociais originados na década de 1970. No entanto, os anos 1990 trazem
uma enorme expansão desses Centros, considerados resquícios do movimento de 77.
São neles que confluem as ideias pós-movimento Operaísta, onde conceitos como
―trabalho imaterial‖ e ―multidão‖ encontram grande receptividade. Essas teorias ―iam
ao encontro do perfil e subjetividade dos que formavam os Centros Sociais: em sua
maioria jovens desempregados, precarizados com trabalhos temporários e que
desenvolviam atividades culturais e comunicativas‖ (LIBERATO, 2009, p. 56).
É neste espaço – de movimentações políticas, culturais e de trocas de
experiência -, sob a influência teórica e prática dos anos 1970, que nasce um projeto
chamado Luther Blissett.
51
3.1. Sobre os Centros Sociais e a formação do Projeto Luther Blissett
Os Centri Sociali Ocuppati e Autogestiti (CSOA ou simplesmente Centros
Sociais) são centros de comunidade com duas características específicas: a autogestão e
o autofinanciamento. Eles se desenvolveram ao longo de uma série de ocupações ilegais
em propriedades públicas abandonadas – hospitais, escolas, fábricas. Segundo
estimativas de Klein (2001), há 150 Centros Sociais na Itália, sendo o maior e mais
antigo situado em Milão, o Leoncavallo. Estes espaços foram compostos, em sua
maioria, por pessoas jovens e ativistas de esquerda, servindo como locais de promoção
de eventos culturais e políticos. Eram constantemente referenciados como
―laboratórios‖ ou spazi liberati (espaços livres) - uma espécie de quartel-general para
um novo movimento de oposição que crescia no país.
Segundo Caporale (2006), os CSOA italianos eram uma resposta à progressiva
exclusão social em detrimento da prioridade de um planejamento urbano. À medida que
a metrópole crescia, sob a lógica do lucro econômico, penalizavam-se as relações
sociais fora do mercado. Dessa forma, os CSOA tornaram-se uma espécie de símbolo de
resistência social ao modelo Ocidental de desenvolvimento, com sua conotação
específica de especulação de bens e corrupção financeira. Os Centros respondiam a esse
contexto metropolitano ao reafirmar as necessidades de socialização e participação,
reunindo gerações de pessoas jovens para discutir questões globais e preparar iniciativas
políticas relacionadas a seus bairros.
As construções ocupadas (chamadas de squats) eram dirigidas por uma comissão
de gestão (os comitati di gestione) sem lideranças ou delegados, composto por pessoas
envolvidas na ocupação. Decisões são tomadas através de assembléias, onde todos
participantes tinham direitos iguais em qualquer discussão. Estas, por sua vez,
aconteciam uma vez por semana, como forma de dividir informações e coordenar a
extensa lista de atividades dos CSOA, que iam desde shows de bandas underground até
projeção de filmes e oficinas de workshop. Todas eram financiadas pelos participantes,
sendo que alguns eventos tinham o intuito único de arrecadar orçamento para a
realização de projetos específicos – eram as iniziative di auto-finanziamento, iniciativas
de autofinanciamento.
Uma importante observação de Klein (2001, s/p) relaciona os Centros Sociais a
esferas políticas paralelas. Isto porque os CSOA italianos, ―mais do que tentar ganhar
poder estatal, provêm serviços estatais alternativos – como creches e advocacia para
52
refugiados – ao mesmo tempo em que confrontam o estado através da ação direta‖.
Lembramos que o contexto em questão refere-se ao biopoder, que se alarga para toda a
vida social do cidadão, moldando papeis sociais e noções de identidade. Nesse sentido,
o desafio dos Centros Sociais é criar uma identidade autônoma e subversiva que
confronte o poder metropolitano – porque o poder se reproduz ―através das relações
sociais e dos modos com que as pessoas experimentam o tempo e o espaço da cidade‖
(CAPORALE, 2006, p. 5, tradução nossa). Sendo assim, os CSOA, através das
ferramentas da autogestão e produção independente, promovem usos alternativos de
espaços e ressignificam locais onde a vida social se reproduz.
Para Deseriis (2010), a compreensão do Projeto Luther Blissett deve levar em
conta os meios culturais, sociais e ativistas que a maioria dos jovens participantes
pertencia. O autor argumenta que Luther Blissett nasce a partir de dois fatos históricos:
a peculiaridade da situação sócio-política italiana no começo dos anos 1990 e a
emergência da Internet como meio de comunicação de massa.
A década de 1980 tem na Itália (e em uma série de outros países) a influência
política do neoliberalismo - mesmo que o país estivesse no comando do primeiro-
ministro Bettino Craxi, de centro-esquerda. A Fiat volta a ter controle sobre seus
trabalhadores após as revoltas da década de 1970. Essa turbinada no desenvolvimento
econômico do país ocorre em paralelo a um processo de corrupção, ligado a ―poderes e
negócios ‗ocultos‘ que assola a Itália inteira (MANZINI-COVRE, 1997, p. 94).
No contexto mundial, a queda do ―socialismo real‖ acaba por deslegitimar um
sistema baseado na oposição entre regimes democráticos e comunistas (MORO, 2004).
A política pós-guerra da Itália amparava-se nessa separação: havia a Democracia Cristã,
de direita, e o Partido Comunista, de esquerda. Com a derrocada do socialismo russo,
expõe-se as ―fragilidades do sistema partidário‖ (MORO, 2004, p. 57) e uma série de
acusações de corrupção vem à tona, sob o nome de Operação Mãos Limpas (Mani
Pulite).
Em 1992, a prisão de Mario Chiesa (diretor de uma instituição filantrópica de
Milão) deu início à operação Mãos Limpas. Essa ação ―revelou que a vida política e
administrativa de Milão, e da própria Itália, estava mergulhada na corrupção‖ (MORO,
2004, p. 57). Chiesa, que tinha relações com Bettino Craxi, confessou o pagamento de
propina em contratos de sua instituição filantrópica, utilizando o dinheiro no
financiamento do seu Partido. Mais do que isso, Chiesa revela uma série de relações
corruptas por toda a cidade de Milão. A descoberta de pagamento de propina para a
53
concessão de diversos contratos públicos expediu 2.993 mandados de prisão. Ao total,
6.059 pessoas estavam sob investigação, entre empresários, administradores locais,
parlamentares e primeiros-ministros. Dez suspeitos cometeram suicídio.
A deslegitimação política56
foi uma das principais consequências da operação, e
também, o que a fez continuar. Isto porque Giuliano Amato, primeiro-ministro em
1993, tentou descriminalizar as doações ilegais feitas a partidos políticos. A pressão da
opinião pública, em forma de greves e passeatas estudantis, rejeitou a medida
legislativa. Esse foi apenas um caso de como os protestos populares conseguiram
revidar manobras políticas durante a operação. Outro exemplo, de 1994, é o do
primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que tenta abolir a prisão pré-julgamento para
determinados crimes, como corrupção ativa e passiva. Neste caso, ―a equipe de
procuradores da operação Mani Pulite ameaçou renunciar coletivamente a seus cargos.
Novamente, a reação popular, com vigílias perante as Cortes judiciais milanesas, foi
essencial para a rejeição da medida‖ (MORO, 2004).
Apesar de suas limitações57
, a magnitude da operação Mani Pulite consegue
frear o avanço crescente da corrupção na Itália. O importante, aqui, é percebermos o
contexto de descrença política que abate o país, somado ainda a uma série de dívidas
públicas e um mercado estagnado que exclui a geração jovem (DESERIIS, 2010).
Sendo assim, os Centros Sociais aparecem como uma oportunidade para que estudantes
e jovens possam praticar suas habilidades com as novas tecnologias midiáticas que
surgem, bem como se reunir para organizações políticas e também prover serviços
sociais autofinanciados, como vimos anteriormente. Contribui para a vontade de realizar
experimentos midiáticos uma certa insatisfação com a imprensa da época58
. Isso nos
56
Segundo Moro (2004, p. 57), ―as investigações Mani Pulite minaram a autoridade dos chefes políticos
– como Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes da Democracia Cristã e do Partido Socialista Italiano‖.
Isto se reflete claramente nas eleições de 1994, onde esses dois partidos, que dominaram a Itália durante
todo o pós-guerra, tiveram uma margem de votos pouco expressiva – 2,2% para o Socialista e 11,1%,
para a Democracia. 57
Silvio Berlusconi, por exemplo, foi primeiro-ministro na Itália até 2011. Sobre ele, Moro (2004, p. 60)
escreve: ―(...) grande empresário da mídia local, ingressou na política em decorrência do vácuo de
lideranças provocado pela ação judicial e mediante a constituição de um novo partido político, a Forza
Itália. Não obstante, o próprio Berlusconi figurou desde 1994 entre os investigados pelos procuradores
milaneses por suspeita de corrupção de agentes fiscais. Além disso, era amigo próximo de Craxi (este foi
padrinho do segundo casamento de Berlusconi). Tendo ou não Berlusconi alguma responsabilidade
criminal, não deixa de ser um paradoxo que ele tenha atingido tal posição na Itália mesmo após a
operação Mani Pulite‖. 58
Esse tópico mereceria estudos mais aprofundados. No entanto, podemos apontar dois autores que
tratam brevemente do caráter da mídia italiana. Segundo Garcia (2011, p. 119), ―é importante lembrar que
na Itália não há uma distinção entre imprensa de qualidade e imprensa 'popular' de tipo sensacionalista,
entre ‗broadsheet’ e tablóide‖. Já Stalder (2000, s/p) observa que ―na Itália há uma distinção mais baixa
entre jornais ‗sérios‘ e tabloides ‗desprezíveis‘ do que nos outros países da Europa, em parte porque
54
leva ao segundo ponto de Deseriis (2010), a saber, a utilização de novas mídias e a
prática do faça-você-mesmo.
O segundo ponto de Deseriis (2010) refere-se à utilização de novas mídias. A
década de 1990 é marcada pela difusão em massa dos primeiros celulares e também da
Internet. Da mesma forma, o custo de aparelhos eletrônicos decresce, o que aproxima a
produção amadora da profissional. É assim que muitos dos integrantes do Projeto
Luther Blissett - originalmente universitários de Roma, Viterbo e Bolonha dos cursos de
comunicação, sociologia, artes, literatura e filosofia – tornam-se ―profissionais da
mídia‖ (DESERIIS, 2010). Poucos já são jornalistas formados, de modo que a produção
é eminentemente amadora.
Ao adquirir câmeras digitais e celulares, esses Centros Sociais acabam por
montar uma infraestrutura independente de comunicação, baseada nos princípios da
autoprodução e autodistribuição de vídeos, textos críticos e músicas – especialmente hip
hop, punk/hardcore e bandas de reggae. Também contribui para esse crescimento a
criação da Cybernet, uma network eletrônica que abrigava cerca de 30 BBS (Bulletin
Board Systems). O BBS era um software que funcionava como uma forma embrionária
da Internet. Atuando tal qual um provedor, o Bulletin Board System era configurado no
computador e, em seguida, ligado a uma rede telefônica através de um modem. Dentre
suas funções, a mais útil para os CSOA da época era, sem dúvida, a troca de mensagens.
No caso de Blissett, muitos membros do Projeto de Roma eram envolvidos com
o coletivo AvaNa, um laboratório de mídia do CSOA de Forte Prenestino, de BBS
homônimo. Na lista de e-mails trocadas entre AvaNa e Cybernet debateu-se a respeito
de constituir uma espécie de empreendimento autônomo a partir dos Centros Sociais,
com a ideia de expandir o alcance da autoprodução dos CSOA para o mercado. O
objetivo seria criar cooperativas e negócios geridos coletivamente (DESERIIS, 2010, p.
75), funcionando simultaneamente como entidades econômicas e projetos ativistas.
A sugestão de ―sair do underground‖, naturalmente, recebeu diversas críticas
por muitos ativistas que acusaram a ideia de ser uma reconciliação com o mercado,
desencorajando as lutas sociais59
. Não era o caso de Luther Blissett. Os membros do
políticos, notícias de crime e fofoca se misturam em um único espetáculo integrado, um eterna escândalo
como o Watergate. Da mesma maneira, eventos peculiares da história italiana embaçaram a distinção
entre ‗cultura séria‘ e ‗cultura popular‘ muito antes do pós-modernismo e sua cultura de pastiche
tornarem-se conversa de intelectuais‖. 59
―(...) os que aceitam o modelo de empresa social como instrumento de criação de espaços de liberdade
dentro do mercado e contra o mercado, aderem em geral a uma análise das transformações produtivas no
que foi definido como pós-fordismo; entendem que o pós-fordismo, as transformações produtivas,
55
Projeto apoiaram a decisão, baseados no princípio de que toda atividade social, como as
geradas nos CSOA, eram também atividades econômicas e, portanto, deveriam ser
remuneradas. Esta é a demanda da renda social garantida, que, conforme vimos, ecoa
nas Declarações de Direito de Luther Blissett e torna evidente as influências pós-
operaístas no Projeto. Tal tomada de posição também reafirma o entendimento de seus
membros como trabalhadores imateriais que enxergam na comunicação, na linguagem e
no conhecimento a formação do comum – ou seja, sua expropriação, sua exploração,
deve ser paga.
3.2. A influência dos movimentos artísticos
O último ponto a ser levado em consideração é a estética dos Centros Sociais.
Segundo Caporale (2006), os CSOA reelaboram o conceito ―catastrófico‖ do punk
aliado a uma tecnologia de guerrilha provinda dos hackers. Ao mesmo tempo, os
Centros também desenvolvem uma série de novas estéticas e performances, bebendo na
fonte de movimentos avant-garde do último século que se preocupavam em abolir a
separação entre ―alta‖ e ―baixa‖ cultura. O mais antigo desses movimentos, escreve
engendraram um novo sujeito social e produtivo, que foi chamado de diversas maneiras: general intellect,
trabalhador imaterial ou trabalhador autônomo heterodirigido.
(...) Por outro lado, há companheiros que criticam a proposta de empresa social, porque dizem que em vez
de libertar o trabalho e criar zonas de no-market, serão criadas apenas formas de auto-exploração que se
verão integradas no mercado. Esses companheiros, contrariamente aos outros, não acreditam que a
característica do novo sujeito seja a autoempresariedade, nem uma maior capacidade comunicativa e
cooperativa. Crêem, pelo contrário, que a característica desse novo sujeito é a precarização. (....) propõem
um modelo um pouco clássico, que é o da auto-organização sobre a base das necessidades e direitos
(sobre habitação, saúde...) para criar assim, dentro de todos os âmbitos sociais, núcleos de auto-
organização e de conflito com o capital, sem tentar construir zonas separadas de libertação do mercado.
Entre os companheiros que quiseram inovar a proposta política e portanto optaram pela empresa social e a
participação nas eleições, se sustenta que deve-se inovar também as formas de luta, as formas de lutar na
rua. Por exemplo, não se procura sair à rua com capacetes e paus para enfrentar a polícia, mas praticar
formas de luta que chamam de ―desobediência civil‖. Desobediência civil significa que sais à rua para
alcançar um objetivo (por exemplo, chegar ao lugar no qual queres protestar), mas para chegar não
enfrentas com instrumentos ofensivos, mas somente instrumentos defensivos. Enfrentas assim a polícia,
mas sem formas de resistência ativa. Qual é o objetivo? Tentar manter juntas formas de ilegalidade de
massa com formas de não-violência, para criar frentes mais amplas de luta. Pressupõe-se que com a
desobediência civil consegue-se não apenas praticar formas subversivas e ilegais, mas ao mesmo tempo
implicar muitas outras pessoas que não apoiariam formas de luta baseadas na resistência ativa. Os outros
companheiros acreditam que a desobediência civil não consegue construir uma forma de luta nova,
apenas se limita a agüentar cinco minutos de confrontação permitida pela polícia, que deixa fazer porque
é um mal menor. Não se chega assim ao que se pretende, que seria essa forma de ilegalidade de massa
mais ampla e compartilhada por mais gente. Ao contrário, se entra de maneira ainda mais forte numa
lógica de institucionalização. Isso é o que nos últimos tempos foi discutido durante semanas, inclusive
pela internet, depois de cada manifestação. Para esses companheiros que criticam a desobediência civil,
esta não só é um enfrentamento permitido pela polícia, mas que inclusive serve para pacificar a rua, já
que evita que se suceda algo pior‖ (BIBLIOTECA VIRTUAL REVOLUCIONÁRIA, 2000, s/p).
56
Caporale (2006), foi o Dadá. Ele se desenvolveu especialmente na Europa e nos Estados
Unidos, durante a I Guerra Mundial, e expressava certa desilusão com os valores
tradicionais da arte. Sua ênfase no absurdo e no nonsense eram um prelúdio do que viria
a ser a atitude antirracional típica do Surrealismo, na década de 1920, França. O Dadá
acabou por definir uma série de práticas contestatórias ao final do século XX. A
influência de Marcel Duchamp, por exemplo, que utilizava técnicas de colagem e
montagem para provocar o público, será posteriormente revisitada no culture jamming.
Essas práticas artísticas podem ser aproximadas de Blissett se as pensarmos em
termos de network, da forma com que são organizadas. Networks são redes de difusão,
de relacionamento. Um exemplo são os Bulletin Board Systems citados anteriormente,
ou seja, as formas embrionárias de Internet nos CSOA. Portanto, dentro da cultura dos
BBS, um networker seria ―qualquer pessoa capaz de gerar áreas de discussão e
compartilhamento sem censura (ao menos, aparentemente)‖ (BAZZICHELLI, 2010, p.
70, tradução nossa). Em suma, a rede funciona como uma ferramenta para compartilhar
conhecimentos e experiências, tendo importância crucial na organização de coletivos.
Bazzichelli (2010) analisa Blissett à luz do conceito de network, mas
adicionando ainda uma dimensão artística. Desse modo, as networks seriam, então,
práticas de arte com um viés crítico no imaginário político. São justamente essas
experimentações nos anos 1980 e 1990 que darão origem às atuais redes sociais da
Internet. Segundo a autora (2010), práticas avant-garde de arte, como a mail art, o
Neoísmo e o Projeto Luther Blissett foram um prelúdio do que seria a estrutura das
plataformas Web 2.0 – ou seja, aquelas que se baseiam no conhecimento compartilhado,
tais quais as comunidades wiki60
. Desse modo, prossegue a autora, devemos entender
que as networks citadas não são determinadas primordialmente pela tecnologia, mas
pela ―criação de plataformas de compartilhamento e de contextos de troca entre
indivíduos e grupos‖ (BAZZICHELLI, 2010, p. 68, tradução nossa), o que torna
possível a definição de networking como ―uma prática de criar nets (ninhos, em
tradução literal) de relações e como uma estratégia cultural que objetiva gerar
conhecimento compartilhado (...)‖ (BAZZICHELLI, 2010, p. 68, tradução nossa).
60
Freire (2009, p. 44) também relaciona as práticas de Blissett com o conhecimento compartilhado,
embora desconsidere a importância do grupo naquela época: ―o terrorismo midiático do coletivo Blissett
pode não ser sido muito útil para a sociedade, entretanto, outras intervenções coletivas tais como a
Wikipédia, criada em 2001 por Jimmy Wales, tem se tornado um repositório de conhecimentos gerado
pelos próprios usuários e pesquisadores, sendo um dos portais mais visitados do mundo‖.
57
As outras duas networks citadas pela autora – o Neoísmo e a mail art – possuem
uma série de características em comum com Blissett. Elas incluem: 1) a sua criação
assentada em movimentos de grupos61
; 2) o objetivo de redefinir o conceito de arte
através de intervenções coletivas; 3) oposição a uma identidade rígida; 3) a substituição
da ―alta arte‖ através de práticas cotidianas que se utilizam da ironia; 4) a difusão de
uma filosofia compartilhada que questione a instituição midiática e o sistema de artes,
evidenciando suas falhas e vulnerabilidades ou colocando-os em crise. Ademais,
Deseriis (2010) também identifica na mail art e no Neoísmo importantes influências
estéticas no Projeto Luther Blissett, tendo, inclusive, participantes em comum nos
grupos. Traçaremos um breve panorama sobre essas duas networks, a fim de
identificarmos as semelhanças com Blissett.
A mail art, ou arte de correio, nasceu ao longo da década de 196062
e é
considerada a mãe das networks (BAZZICHELLI, 2008). Chega a ser denominada de
―network eterna‖ pelo artista e sociólogo francês Robert Filliou devido à circulação de
suas mensagens e também pelo seu mote principal – as relações. Isto porque a mail art
enfatiza o aspecto do ―presente‖, uma vez que a arte é postada pelo correio e enviada a
alguém. Dessa forma, criam-se relacionamentos espontâneos que se tornam centrais,
posteriormente, para o entendimento da network. É nesse sentido que Bazzichelli se
refere à mail art como ainda viva nos dias de hoje, se pensarmos nela como um
mecanismo de relacionamento na nossa vida cotidiana.
Diversos ―trabalhadores culturais‖, conforme denomina Home (1999)
constituíam a rede de mail art. Através do correio, com baixo custo, trocavam
anotações, ideias, fotografias e notícias. Já nos anos 1970, pequenas listas de
interessados nessas trocas cresciam, de modo que, progressivamente, milhares de
indivíduos – da América do Norte, da Europa, do Japão – passaram a se engajar nessa
―nova forma cultural‖ (HOME, 1999, p. 113) de distribuição de arte.
Tal rede de correspondência abrangeu também boa parte de pessoas oriundas do
movimento Fluxus, que viam um senso estético no sistema de trocas da mail art e
passaram a desenvolver selos e carimbos, enfeitando seus envelopes. Segundo Home
(1999), o conteúdo da rede era diverso, embora defendesse predominantemente ideias
61
A autora fala em ―grassroots networking structure‖ (BAZZICHELLI, 2010, p. 70). Grassroots é um
termo sem tradução no português e se refere a movimentos populares, de grupos ou comunidades, com
uma causa em comum. No caso de Blissett, sua origem remonta aos Centros Sociais italianos, conforme
vimos anteriormente. 62
O fundador da mail art é Ray Johnson (HOME, 1999; DESERIIS, 2010). Seu trabalho era enviado por
correio para a uma lista fixa de amigos e consistia em desenhos e mensagens carimbadas
58
liberais e de esquerda. Exemplos vão desde campanhas a favor da libertação de
prisioneiros políticos e contra armas nucleares até trabalhos performáticos que
parodiavam documentos oficiais e representavam o lado humorístico da rede, como o
―diploma de Mestrado em Bananologia‖, de Anna Banana.
No entendimento de Home (1999), o mail art, enquanto sistema de rede
totalmente aberto, possui um enorme potencial. Contudo, para que todas as
possibilidades dessa network fossem realizadas, seria preciso ―que a maioria dos
participantes torne-se totalmente consciente da corrente subversiva da qual suas
correspondências são uma parte incoerente‖. O autor sublinha que a mail art conseguiu
atingir um considerável sucesso devido à perda de uma rigidez teórica característica das
vanguardas anteriores, como o Dadá. Desse modo, Home não caracteriza a mail art
como arte porque seu elevado número de membros impede o reconhecimento formal
pelos críticos – embora a abertura democrática coloque-a em oposição ao elitismo desse
campo63
.
A despeito da discussão sobre o mail art ser considerado arte ou não, o aspecto
que mais nos interessa nesse movimento é a origem dos nomes múltiplos. Embora a
primeira utilização não tenha ocorrido nesse meio, foi a criação de Monty Cantsin por
um grupo de mail artists que popularizou a ideia de criar uma ―personalidade
compartilhada‖.
Monty Cantsin foi criado por Al Ackerman e David Zack, dois mail artists que
tinham o objetivo de cunhar um nome que funcionasse como um popstar aberto
(BAZZICHELLI, 2010; DESERIIS, 2010). Home (1999) explica brevemente a história
de Cantsin:
A ideia era que todo mundo pudesse usar o nome para shows e que, se um
número suficiente de pessoas o fizesse, Cantsin se tornaria famoso; e, então,
performers desconhecidos poderiam apropriar-se dessa identidade, tendo
63
Isto se a perspectiva adotada for a de arte como a ―cultura da classe dominante‖ (HOME, 1999, p. 116).
Para o autor, o que impede a mail art de ser reconhecida como um movimento da alta cultura é a sua
ampla escala. ―A maior parte dos movimentos artísticos (Pré-Rafaelitas, Impressionistas, Cubistas, etc.)
parece ter um número de membros variando entre cinco e cinqüenta; a mail art, em oposição, tem
milhares de membros. Se pelo menos um movimento artístico formal e organizado tivesse centenas de
membros já seria uma ameaça ao status da elite: os críticos de arte resistiram em elevar tal massa de
indivíduos ao panteon de gênios, simplesmente porque tal elevação colocaria em xeque a categoria de
‗gênio‘ em si‖. Bazzichelli (2008, p. 37) tem um posicionamento diferente. Para a autora, a mail art não
se propunha a entrar no universo de museus e galerias, o que pode ser visto no próprio nome da network
(‗mail art‘, em italiano, soa como ‗mai l‘art‘, que significa ‗never art‘ – ‗arte nunca‘). A mail art era então
denominada ―Cinderela da arte‖, conforme escreve Bazzichelli, justamente por permanecer fora desse
circuito artístico. No entanto, foi exatamente essa exclusão a ―fortuna‖ maior da network. Isto porque
ninguém nunca se preocupou em tornar histórica a mail art, o que ―preservou seu caráter de originalidade
e novidade que hoje a torna única e sempre atual‖ (BAZZICHELLI, 2008, p. 37, tradução nossa). Para a
autora, portanto, a mail art é uma forma de arte aberta a todos.
59
assim um público garantido. Através da cortina de álcool e maconha que
permeava a academia, Zack converteu pessoas ao seu plano de democratizar
o star system. A primeira pessoa a se apresentar sob o nome de Monty
Cantsin foi o punk acústico Maris Kundzin. Depois que Kundzin havia feito
alguns shows como Cantsin, a ideia pegou e, enquanto a academia continuou
a existir, muitos de seus associados usaram o nome para suas performances.
Zack e Kundzin mandaram cartões-postais a trabalhadores culturais do
mundo todo, convidando-os a tornar-se Monty Cantsin; e Ackerman manteve
os Catorze Mestres Secretos do Mundo (seus contatos priorizados na rede de
mail art) informados do que estava acontecendo (HOME, 1999, p. 119).
A criação de Cantsin guarda algumas similaridades com Blissett, como, por
exemplo, o desejo de torná-lo famoso64
. Aqui entra a figura de L. B. como um mito pop
comum a todos que deve ser alastrado; um vírus que deve infectar. Esse processo é
definido como mitopoese, ou seja, a construção de um mito, de modo a ―utilizar as
lendas urbanas, as técnicas de intelligence, as estratégias publicitárias, mas se desviando
de tudo isso com o intento de criar uma reputação, um personagem – no começo
‗virtual‘, depois, cada vez mais ‗real‘‖ (BLISSETT, 2001, p. 17). A mitopoese consiste
basicamente em aproveitar-se da figura antiga do mito e inseri-la na cultura pop de
massa. Constrói-se uma reputação comum, uma narrativa que pode ser constantemente
remanipulável, ―baseada no maior número possível de ‗retoques‘ e intervenções
subjetivas‖ (BLISSETT, 2001, p. 17). Essa mitologia aberta, interativa e nômade nos
lembra da busca pelo comum a que Hardt e Negri recorrem como uma forma de
enfrentar o biopoder, a saber, a cooperação de trabalhadores imateriais amparados no
poder comunicativo de um nome múltiplo. Tal estrutura (tanto de Blissett como de
Cantsin) funciona como uma network por seguir dois princípios (BAZZICHELLI,
2010): 1) o de abertura (openness, situações abertas), em que os processos de decisões
que levam às ações dos nomes múltiplos são feitos coletivamente e não por uma
autoridade central; e 2) o faça-você-mesmo (do-it-yourself ou DIY), a atitude de criar e
construir de forma independente. O segundo termo é emprestado do movimento punk
nos anos 1970, tido como uma forte subcultura underground.
Monty Cantsin, portanto, foi um nome múltiplo criado por mail artists, nascido
nesse ―meio‖ e espalhado principalmente por Montreal, no Canadá, e Baltimore, nos
Estados Unidos. Cantsin foi também, simbolicamente, o ―fundador‖ do Neoísmo
64
Essa vontade é explícita em uma fala de Wu Ming 1, ex-participante do Projeto Luther Blissett e atual
membro do coletivo Wu Ming (todos os cinco membros se identificam por números). Em entrevista ao
pesquisador Henry Jenkins, Wu Ming 1 declara: ―Blissett tinha uma atitude mais positiva [em relação a
coletivos como o Critical Art Ensemble e o Adbusters]; o propósito principal era criar uma comunidade
em torno do mito de Blissett. Pranks, campanhas na mídia e culture jamming eram mais meios de
espalhar o mito do que os fins do projeto. O aspecto mais importante de nossas atividades não era a
sabotagem, mas o modo como a sabotagem aumentava o status mítico de Blissett‖ (JENKINS, 2013, s/p,
tradução nossa).
60
(BAZZICHELLI, 2008). Isto porque, segundo Home (1999), esse movimento surge
quando Istvan Kantor tem contato com o conceito de Monty Cantsin, em 1978, e passa a
desenvolvê-lo na sua volta à Montreal. Desde então, a mail art serve como canal de
propaganda do Neoísmo, difundindo-o pela América, Europa e Austrália
(BAZZICHELLI, 2010; 2008).
3.2.1 Heranças situacionistas e neoístas: détournement, psicogeografia e nome múltiplo
O Neoísmo – cujo nome é uma brincadeira com as vanguardas artísticas,
juntando o prefixo neo com o sufixo ismo - passa a ser conhecido principalmente
pelos textos de Stewart Home65
, mesmo que eles estivessem muito relacionados a sua
experiência pessoal com o movimento, de acordo com outros Neoístas
(BAZZICHELLI, 2008). Desse modo, não há exatamente uma definição ou história
linear do movimento artístico.
Em entrevista, Home (2004), explica que o Neoísmo era propagado para as
pessoas através da mail art, como já citamos, mas também por amigos que divulgavam
os chamados Festivais de Apartamento. Essa prática consistia em ―eventos em que
artistas sem público se juntavam e faziam performances uns para os outros‖ (HOME,
2004, p. 74), acontecendo, geralmente, na casa das próprias pessoas, com duração de
uma semana. Apesar das performances e conferências, o propósito principal, segundo
Bazzichelli (2008), era simplesmente criar encontros pessoais entre os colaboradores. O
cunho desses eventos, portanto, refere-se mais à celebração do que à performance em si.
Outro modo de divulgação era a revista Smile, que continha os manifestos
neoístas. Os escritos eram criados ―a partir de frases de vanguardas clássicas, mas
subvertidas para se criar um efeito cômico‖ (HOME, 2004, p. 73). Como exemplo, o
autor cita a frase ―cantaremos o amor ao perigo‖, contida no manifesto do movimento
Futurismo. Os Neoístas a transformaram em ―cantaremos o amor à água quente e à 65
Stewart Home, autor britânico, escreveu dois livros que utilizamos aqui: Assalto à cultura e Manifestos
neoístas. De fato, Home participou do Neoísmo durante certo tempo, até romper com o movimento. Em
1994, funda a Aliança Neoísta, sua própria network que, na verdade, é constituída somente pelo próprio
Home. Foi com a Aliança que o autor colaborou com o Projeto Luther Blissett, escrevendo textos sobre o
Neoísmo e participando de pranks, como o que foi feito contra o programa Quem o Viu?. Sobre Blissett,
Home destaca: ―eu comecei a escrever como Luther Blissett enquanto articulava uma crítica do
anarquismo. Isso significa que Luther Blissett conseguiu uma reputação bizarra na Inglaterra, onde estava
mais associado à ultra-esquerda metaleira do que com a subcultura do punk rock, como aconteceu no
resto da Europa. Eu também estive envolvido na tradução inglesa da crítica da facção debordista da
Internacional Situacionista, Guy Debord Está Realmente Morto. Assim, para nós da Inglaterra, Luther
Blissett tinha uma íntima relação com o processo de refazer a passagem entre teoria e prática‖ (2004, p.
77)
61
televisão a cores‖. Sobre essa vertente humorística, Home (2004) comenta que o intuito
é levar o humor a sério e tratar a vanguarda como piada.
Stewart Home produzia cerca de 200 cópias da revista Smile e depois as vendia
em livrarias radicais de Londres, além de enviar cópias para outras pessoas interessadas.
Segundo o autor, cerca de 150 pessoas estavam envolvidas na produção das
publicações. Smile também serviu como nome múltiplo à época, como evidenciado em
um dos manifestos contidos na revista chamado ―Viva o Neoísmo!‖66
(HOME, 2004,
pp. 44-45). Reproduzimos a seguir um trecho:
O Neoísmo é uma metodologia para produzir história da arte. A ideia é gerar
interesse pelo trabalho e pelas personalidades de diversos indivíduos que
dizem constituir o movimento. Os Neoístas querem escapar da ―prisão da
arte‖ e ―mudar o mundo‖. Com esse objetivo em mente, eles apresentam a
sociedade capitalista com uma imagem angustiada de si mesma.
Qualquer um pode se tornar um Neoísta simplesmente se declarando parte do
movimento e adotando o nome Monty Cantsin. No entanto, os Neoístas não
se limitam a usar o nome Monty Cantsin, eles também usam o nome Smile.
Os Neoístas chamam seus grupos pop de Smile, seus grupos performáticos de
Smile – até mesmo suas revistas se chamam Smile.
(...) Por estarem cansados do mundo fragmentário em que vivem, os Neoístas
concordam em adotar um nome comum. Toda ação carregada sob a bandeira
de Monty Cantsin é um gesto de desafio contra a Ordem do Poder – e a
demonstração de que os Neoístas são ingovernáveis. Monty Cantsin é um
indivíduo verdadeiro em um mundo onde a individualidade real é um crime!
A adoção de pseudônimos coletivos caracterizou a estética neoísta (além de
Monty Cantsin havia vários outros, como Karen Eliot – utilizado frequentemente por
Stewart Home -, Coleman Healy, tENTATIVELY a cONVENIENCE). Mas há ainda a
importância do plágio, elemento estético que funcionava como uma ―forma de atacar a
propriedade privada‖ (HOME, 2004, p. 47). Para o autor, o plágio é um exercício
criativo que ressignifica e dá novos sentidos ao trabalho plagiado. A sua vantagem em
relação ao trabalho artístico ―normal‖ é prescindir do talento, pois ―tudo o que
realmente se precisa fazer é selecionar o que plagiar‖ (HOME, 2004, p. 48). Desse
modo, o plágio economizaria tempo e esforço, além de melhorar os resultados finais da
obra. Home (2004, p. 47) ampara-se em alguns exemplos históricos de plágio, como
Shakespeare e Marlowe, que ―comumente plagiavam roteiros e ideias de escritores
anteriores‖, além de trabalhos de William Burroughs e George Orwell.
66
―Viva o Neoísmo!‖ é um manifesto neoísta contido no livro Manifestos neoístas, de Stewart Home
(2004). Não tem autoria, embora se pressuponha que seja do próprio Home. No livro Mind invaders
(1997), que compila diversos textos sob a organização de Home, o mesmo manifesto também aparece, em
inglês (Viva Neoism), mas creditado à Luther Blissett. Uma vez que Home participou do Projeto, pode-se
concluir previamente que o texto foi escrito por ele sob o nome de L. B.
62
Pode-se entender a noção de plágio como oriunda do détournement, uma técnica
criada pela Internacional Letrista (IL). Posteriormente, esse movimento se dissolve67
(dura de 1952 à 1957) e origina a Internacional Situacionista (IS), o que leva à alcunha
do détournement, da deriva e da psicogeografia (as últimas duas também criadas pela
IL) como práticas situacionistas. Nestes dois movimentos artísticos, certamente seu
representante mais famoso é Guy Debord. A influência do IL e do IS é perceptível no
Neoísmo, como, por exemplo, no manifesto que transcrevemos onde se lê críticas ao
universo artístico (―os Neoístas querem escapar da ‗prisão da arte‘‖). De fato, para
Jappe (2011), o Neoísmo seria uma tentativa de revitalizar a Internacional Situacionista.
O situacionismo, quando passa a ser conhecido, é pouco lembrado pelas técnicas
que citamos. Isto porque Guy Debord escreve a obra A sociedade do espetáculo, na
esteira do Maio de 68. Após, a IS caracteriza-se por uma nova fase (RICARDO, 2012),
onde suas ideias se difundem por serem consideradas a influência do movimento
francês. Os membros da IS passam por uma série de divergências internas (nem todos
concordavam com as ideias de Debord), o que resultou em expulsões ou pessoas que
saíam voluntariamente. Os membros desligados, por sua vez, constituíram outros
grupos, como a Segunda Internacional Situacionista, o que denota que eles ainda se
consideravam situacionistas. À custa de seu autoritarismo, Guy Debord, juntamente
com Gianfranco Sanguinetti, foram os dois únicos membros que restaram ao fim da IS,
dissolvida em 1972.
Luther Blissett, apesar de reaproveitar técnicas da IS, não deixa de criticar
Debord. Em seu texto Guy Debord está realmente morto (escrito em 1994, logo após o
suicídio de Debord, e traduzido em inglês no ano de 1995), Blissett comenta que a
palavra ―situacionismo‖ passa a ser banalizada pela imprensa. O que é niilista torna-se
sinônimo de situacionismo. Isto se daria devido à ―involução‖ que a IS experimenta
após expulsar diversos membros, desprendendo a teoria da prática. O termo
―situacionismo‖ passa a ser tratado como sinônimo de espetáculo, devido à ênfase dada
por Debord a essa análise após o lançamento de Sociedade. A subversão da vida
cotidiana, através do détournement, da psicogeografia e da deriva, acaba sendo deixada
de lado ou pouco considerada.
67
Não é de nosso interesse aqui desenvolver um histórico acerca desses movimentos, bem como as
críticas específicas de cada um à arte e às escolas anteriores. Buscamos especificamente contextualizar as
falas de Blissett contra Debord, bem como a retomada que o nome múltiplo faz das práticas
originariamente situacionistas, a saber, o détournement e a deriva. Para mais detalhes sobre a
Internacional Letrista e a Internacional Situacionista, ver Home (1999), Ricardo (2012), Jappe (2011) e
Aquino (2006).
63
Em Guerrilha Psíquica (2001, p. 44), Blissett escreve sobre a tentativa de
enquadrá-lo sob uma perspectiva da teoria situacionista, ―em particular, as revistas mais
radicais-chiques e pseudo-intelectuais‖68
que ―citaram em várias ocasiões Guy Debord
como inspirador das práticas de Luther Blissett‖. De fato, L. B. não nega que toma
emprestado técnicas do movimento: ―algumas ideias de Blissett referiam-se claramente
a esse movimento, mas de um jeito que teria agradado aos desertores da Internacional
Situacionista, como Asger Jorn, mais do que a ‗Guy, o tedioso‘ (Guy The Bore)‖. Mas o
sentido de aplicar tais ideias tem uma conotação mais positiva do que a do movimento
de Debord, conforme explica Wu Ming 1 (Roberto Bui, um dos fundadores do Projeto
Luther Blissett):
Nós viemos de outro movimento, Centri Sociali Occupati, na Itália, viemos
do Movimento Autonomia, da cultura underground. Não temos muito a ver
com a visão aristocrática e elitista da Internacional Situacionista de Guy
Debord. Por exemplo, todas as coisas de que falamos até agora seriam
trabalhadas por Guy Debord como manifestações do Espetáculo, como
reificação de coisas inúteis. Porque o Situacionismo nunca olhou para o lado
positivo da produção da cultura. Eles sempre tiveram uma visão apocalíptica.
É essa coisa da reificação! Tudo o que você fizer será reificado pelo capital.
Uma teoria que fica te dizendo que tudo o que você faz é inútil é uma teoria
reacionária. Nós achamos que uma teoria radical, uma teoria revolucionária,
devia mostrar-lhe que as coisas são possíveis de se fazer. Mas o
Situacionismo não é assim. O Situacionismo é herdeiro da dialética
negativista da Escola de Frankfurt. A maioria dos situacionistas eram pessoas
muito ricas, não estavam em contato com o dia-a-dia dos trabalhadores, de
pessoas que dependiam dos resultados concretos da batalha. Então eles
tinham essa idéia dândi e estética da batalha, ela deveria ser pura, não deveria
ter um resultado concreto, porque todo resultado seria reificado pelo capital,
incorporado no espetáculo, e usado contra você. Na Europa, o Situacionismo
teve 30 anos de existência e nenhuma aplicação prática. Porque as pessoas
que leram a teoria situacionista e gostaram, simplesmente passaram a
escrever teoria situacionista. Então era só escrita, escrita, escrita... e nenhum
envolvimento em conflitos reais, porque os conflitos reais seriam reificados...
Eu estou pouco me fodendo para isso. Conflitos reais devem alcançar
resultados que pessoas possam usar para viver melhor. Estou pouco me
fodendo para a visão purista, aristocrática e apocalíptica.
Por isso, acho que Luther Blissett e Wu Ming não são pós-Situacionistas.
Porque é um outro jeito de se olhar a realidade. Nós colocamos a ênfase no
lado positivo da produção cultural, e não no lado negativo. Há uma frase de
Adorno que é incrivelmente reacionária, e está em um de seus trabalhos mais
famosos, ―Mínima Moralia‖, é uma coletânea de aforismos. Ele diz que nessa
sociedade repressora, a emancipação do indivíduo é uma ameaça para o
próprio indivíduo. É uma camisa de força, você não pode escapar. Então é
68
À época do lançamento do romance histórico Q - último livro escrito por Luther Blissett e o pontapé
inicial do Wu Ming Foundation -, Carta Capital fez uma resenha da obra. O texto foi postado na íntegra
como parte do arquivo de materiais sobre o grupo no seu site. Porém, ao texto do jornalista Antonio Luiz
M. C. Costa segue uma nota do Wu Ming reiterando que eles não têm relação com a IS, conforme lemos
no seguinte trecho: ―a Operação Q foi a ação mais bem-sucedida desses herdeiros da Internacional
Situacionista [this is not correct, N. d. WM] dos anos 60 e início dos 70‖ (WU MING FOUNDATION,
2002). ―N. d. WM‖ significa Nota de Wu Ming. Disponível em:
<http://www.wumingfoundation.com/italiano/rassegna/cartacapital_Q.htm>. Acesso em 7 dez 2013.
64
completamente inútil. E o Situacionismo começou muito bem no final dos 50
e começo dos 60, falando de ―construção de situações‖, ―reapropriação do
dia-a-dia‖, mas depois de 1962, começou a falar de ―reificação‖ e
―espetáculo‖ e se tornou o oposto da intenção inicial. Hoje em dia eu acho
que é uma teoria que não tem utilidade prática (SALVATTI, 2002, s/p).
A fala de um dos antigos membros do Projeto Luther Blissett é confluente com a
ideia geral do nome múltiplo em organizar um mito que seja positivo, o que difere das
críticas direcionadas a Debord, pois consideram este um teórico excessivamente
negativo, para quem tudo seria espetáculo. O deslocamento que se percebe é do emissor
para o receptor, na busca por uma atitude positiva em relação à audiência.
Das técnicas oriundas do situacionismo que o Neoísmo e Luther Blissett tomam
para si, temos o détournement e a psicogeografia. O primeiro termo é francês e significa
algo como ―desvio‖. Consiste basicamente em dar novos sentidos a algo, em subverter
as formas cotidianas de comunicação, como pôsteres, cartazes, frases e assim por diante.
Debord, junto de Gil Wolman, escreveram uma espécie de manual sobre o assunto – ―A
user’s guide to détournement‖ (1956) – e classifica os desvios em duas categorias: os
détournements menores e os détournements enganadores.
O primeiro caso abrange o desvio de elementos que por si só já não possuem
certa importância, de modo que o détournement incorpora um novo significado ao
material69
. Já os enganadores desviam a proposta de um elemento significativo, dando-
lhe um significado diferente, em um novo contexto. Por exemplo, a manipulação de
slogans publicitários.
Na década de 1980, Stewart Home reelabora o conceito de détournement a partir
do plágio (BAZZICHELLI, 2008). Após se afastar do Neoísmo e fundar a sua própria
network - a Aliança Neoísta -, Home, junto de Graham Hardwood, cria os Festivais do
Plágio e realiza a primeira edição em Londres, no ano de 1988. Estes eventos eram
derivados dos Festivais de Apartamento do Neoísmo, com a diferença que nos últimos o
plágio era apenas um elemento da discussão – nos festivais da Aliança Neoísta, eles são
o tema principal. Discutia-se questões como autoria e originalidade.
Esses tópicos serão evidenciados mais fortemente no Wu Ming Foundation, o
coletivo de escritores que sucede Luther Blissett e trata exclusivamente de temas como
69
Essa prática se assemelha aos readymades do dadaísta Marcel Duchamp – a recontextualização de
determinados objetos tornados artísticos. No entanto, Debord procurou ir além do que Duchamp
praticava, pois, segundo Ricardo (2012, p. 24), ―mais do que desviar através da colagem ou do plágio de
trechos de outros autores como ação meramente artística‖, o que pretendia o teórico da IS era ―atingir a
lógica da propriedade (no caso específico do desvio, a propriedade intelectual)‖. Dessa maneira,
considera-se que o détournement tem uma vertente mais politizada do que os readymades.
65
direitos autorais. No entanto, o debate dessas ideias já era caro à L. B., como podemos
atestar no seguinte trecho: ―é evidente que toda a produção textual (...) outra coisa não
é, nem pode ser, do que o produto de cruzamentos intertextuais, de sínteses entre
produtos culturais diferentes (...) e que não podemos mais pretender ser ‗autores‘ de
nada, exatamente porque somos autores de tudo‖ (BLISSETT, 2001, p. 70). A ideia por
trás da linha de raciocínio expressa por L. B. relaciona-se com a renúncia do nome
próprio, da identidade – em outras palavras, a formação do nome múltiplo. Mas há uma
diferença entre ele e o plágio, conforme sublinha Nimus:
A diferença significativa é que enquanto que o plágio pode ser facilmente
recuperado como uma forma de arte - atente-se na vedetização de plagiadores
como Kanthy Acker ou Sherrie Levine -, a utilização de nomes múltiplos
limitaram a tornar explícito o que há muito deveria ser óbvio - não existem
'gênios' e, por isso, não existem 'proprietários legítimos', existe apenas troca,
reutilização e aperfeiçoamento de ideias (NIMUS, 2006, pp. 32-33)
A crítica do nome múltiplo, no contexto de fala da autora, refere-se ao universo
artístico. Mas não seria difícil estendermos essa compreensão ao jornalismo. A ideia de
que ―não há gênios‖ serve como metáfora para uma crítica ao monopólio da fala por
jornalistas, questão cara à Luther Blissett.
A segunda técnica empregada refere-se à psicogeografia, que teve seu primeiro
esboço nos anos 1950 pelos Letristas, que viam na arquitetura uma ferramenta para a
transformação da vida. Tal linha de pensamento inspirou Debord a desenvolver, dentro
da Internacional Situacionista, as críticas à geografia urbana. Resulta daí o conceito de
psicogeografia, que, em linhas gerais, desconstrói áreas metropolitanas através da
exploração da cidade. Debord (2007, pp. 35-36) a concebe como um ―estudo das leis
precisas e dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não,
em função de sua influência direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos‖. De
acordo com Bennaton (2009, p. 71), o que os situacionistas almejavam era a
transformação do espaço urbano de um amontoado de corpos para um campo de
possibilidades que permitisse ―a criação e relação das emoções dos sujeitos deste
espaço‖.
Para tanto, os situacionistas buscaram traçar novos mapas das cidades através de
uma técnica exploratória chamada deriva, cuja origem remonta ao flâneur e às
deambulações surrealistas70
. Debord (2007) explica que esse método consistia em vagar
70
Jacques (2005) faz uma divisão das ―errâncias urbanas‖ em três fases. A primeira refere-se à figura do
flâneur, criada por Baudelaire e posteriormente analisada por Walter Benjamin. Este último também
praticou as ―flanâncias urbanas, a investigação do espaço urbano pelo flâneur‖ (JACQUES, 2005, pp. 21-
22). Passa-se então às deambulações dadaístas e surrealistas que seriam ―excursões urbanas por lugares
66
livremente pela cidade, guiando-se por caminhos desconhecidos e refletindo sobre os
usos do seu espaço social. Pretende-se compreendê-la de maneira diferente e quebrar
―seus códigos de relacionamento impostos pelos mecanismos de controle‖ (RICARDO,
2012, p. 73).
Isto porque, no entendimento dos situacionistas, uma compreensão primária da
cidade tende a tomá-la pelo seu viés funcionalista, ou seja, o que conhecemos dela são
os espaços familiares atrelados ao trabalho. Esse desconhecimento impediria uma maior
movimentação pela cidade e, por consequência, as lutas políticas71
, já que os
situacionistas a viam especialmente no lugar do cotidiano. ―Nesse sentido, a deriva era
uma forma de imposição das pessoas ante o tempo do espetáculo‖ (RICARDO, 2012, p.
77), buscando modificar tanto a ideia de cotidiano como de cidade. Dentre as propostas
situacionistas oriundas dos estudos psicogeográficos, após a etapa de deriva, temos a
demolição de igrejas e reutilização de seus espaços (para que crianças brincassem, por
exemplo), o livre acesso às prisões e sua transformação em pontos turísticos, a remoção
de museus e distribuição de suas obras por bares, entre outros (BENNATON, 2009;
BLISSETT, 2001).
Ao longo dos anos 1980, a psicogeografia será renovada pela Associação
Psicogeográfica de Londres72
(APL), que tinha membros em comum com o Projeto
Luther Blissett, como, por exemplo, Stewart Home. No entanto, atualiza a versão
situacionista da deriva adicionando um outro componente: a transmissão ao vivo de
informações através de radiodifusão e telefones (DESERIIS, 2010).
banais‖ a fim de experimentar a errância no espaço urbano. A última fase corresponde às derivas. Jacques
sublinha que ―tanto Baudelaire quanto os dadaístas e surrealistas, ou ainda os situacionistas, estavam
praticando errâncias urbanas - e relatando essas experiências através de escritos ou imagens explícita ou
implicitamente críticas - em uma mesma cidade, Paris, mas em três momentos distintos‖ (JACQUES,
2005, p. 22). 71
Sobre a imbricação política e arte na cidade, Bennaton (2009, p. 62) escreve: ―nos movimentos
artísticos vanguardistas do início do século XX o espaço urbano emerge como área de construções
estratégicas poéticas, que demonstram uma noção da relação existente entre arte e política, arte e
transformação. Durante a modernidade, o período das vanguardas históricas, e o pós-modernismo, uma
combinação de modernidade e pré-moderno, através da ação, da velocidade, do questionamento do poder,
da valorização da abstração, da mudança da experimentação, e a recusa das convenções tradicionais,
existe o ambiente para o deslocamento do flâneur, verificado por Walter Benjamin ao analisar Baudelaire,
de enfrentamento ao biopoder de Foucault, que pode emergir na prática da investigação do espaço
urbano‖. 72
A Associação Psicogeográfica de Londres (APL) foi uma invenção de Ralph Rumney durante a
conferência que formou a Internacional Situacionista, a partir da unificação de duas vanguardas
(Internacional Letrista e Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista). ―O nome foi inventando
durante a própria convenção para aumentar o internacionalismo do evento‖, escreve Home (1999, p. 52),
já que Rumney seria o único inglês no local. No entanto, a APL, com a dissolução da IS, passa a ter vida
própria e ganha força especialmente a partir dos anos 1990, tendo como principal membro o próprio
Stewart Home. Uma vez que este também participava do Projeto Luther Blissett, podemos entender que
as influências da psicogeografia no nome múltiplo partem do teórico e ativista inglês.
67
Podemos exemplificar isso através da Rádio Blissett, uma rádio comunitária de
Bolonha em que todos os redatores se chamavam Luther Blissett ―e utilizavam a
primeira pessoa do singular para se referir, sem distinção, às façanhas próprias e às dos
outros, o que chamou a atenção também da imprensa nacional‖ (BLISSETT, 2001, p.
36). A rádio transmitia ao vivo o ―patrulhamento‖ de diversos Blissetts, a pé, que
praticavam a deriva e ligavam para o estúdio por cabines telefônicas. Os ouvintes
também poderiam ligar para o programa e direcionar o que a patrulha deveria fazer, e
em qual local. Chamavam a atenção especialmente as festas de rua provocadas pelo
nome múltiplo.
A experiência deu certo e foi levada até Roma, onde, devido ao tamanho da
cidade, foi necessário o uso simultâneo de celulares e carros patrulheiros pelos Blissetts
na rua (DESERIIS, 2010). Em um caso específico do dia 17 de junho de 1995, dezenas
de Blissetts (artistas e performers) entraram em um ônibus noturno carregando confetes,
bebidas e sons portáteis. Uma verdadeira festa rave móvel foi armada e transmitida ao
vivo pela Rádio Blissett73
através das pessoas que realizavam a cobertura pelo celular. O
acontecimento dura até que a polícia bloqueia a passagem e obriga os participantes a
descerem do ônibus. Eles discutem com os policiais e um deles chega a disparar tiros
para o alto, que são ouvidos por milhares de pessoas devido à transmissão pela Rádio
Blissett74
. Devido às discussões, dezoito pessoas são detidas. Quatro acabam sendo
processadas por desacato à autoridade e só serão absolvidas em 2002 (WU MING
FOUNDATION, 2008)
Essa história, posteriormente, obteve ampla divulgação, o que fez com que
Blissett fosse reconhecido como um coletivo de resistência oriundo dos centros sociais.
No entanto, a performance da rave móvel foi deturpada pela mídia internacional.
Conforme escreve o coletivo Wu Ming Foundation (em seu site oficial, o grupo contém
uma breve biografia de Blissett), alguns textos em inglês acabaram contando outra
versão: as quatro pessoas anteriores foram presas por não pagarem a passagem do
ônibus e, durante seu julgamento no tribunal, todas declararam se chamar Luther
Blissett. De fato, essa é a versão nas matérias dos jornais britânicos The Guardian75
,
73
O programa se chamava Saturday Night Show e era levado ao ar pelas freqüências da Rádio Città
Futura. 74
Um trecho de áudio com os tiros dos policiais pode ser ouvido no site oficial da Wu Ming Foundation,
em <http://www.wumingfoundation.com/bus17061995.mp3>. Acesso em: 14 novo 2013. 75
Transcrição da matéria disponível em <http://www.lutherblissett.net/archive/192_en.html>. Acesso em:
14 nov de 2013.
68
The Express76
, The European77
, The Daily Mail, The Daily Telegraph e The Observer78
.
O coletivo Wu Ming (2008, s/p) atribui esse fato à ―preguiça de certos jornalistas
londrinos e aos estereótipos sobre a Itália de que eles se nutrem (e com os quais nutrem
seu público)‖.
A performance da rave móvel ficou conhecida como Ônibus Neoísta (Neoist
Bus). Não foi à toa, certamente, uma vez que algumas características do Neoísmo são
evidentes, como a ênfase no humor. Esse tipo de resistência ―divertida‖ cria zonas de
libertação cuja essência ―é a intensificação da existência compartilhada por uma
multidão de singularidades‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 118). A rave79
, mais
especificamente, tem por característica principal a fugacidade e a intensidade radical.
―Viver para festejar implica uma forma própria de estar no mundo que não se coaduna
com empregos formais, em que o foco está no horário de trabalho e não no horário
reservado ao lazer‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 119).
Estes momentos de fuga da realidade são uma tática relacionada por Oliveira
(2006) às Zonas Autônomas Temporárias (conhecidas como TAZ – Temporary
Autonomous Zone), conceito desenvolvido por teórico libertário Hakim Bey em fins dos
anos 1980 e amplamente divulgado no meio underground.
TAZ são zonas de libertação que necessitam de um meio concreto para que
possam existir, de modo que não são utópicas. É um modelo de rebelião, embora não
confronte o Estado de forma direta (BEY, 2011), e vale-se de um constante processo de
reterritorialização: quando a TAZ é nomeada, ela deve desaparecer80
. Isto porque a
76
Disponível em <http://www.lutherblissett.net/archive/257_en.html>. Acesso em 14 nov 2013. 77
Disponível em <http://www.lutherblissett.net/archive/193_en.html>. Acesso em 14 nov 2013. 78
Os três últimos jornais têm suas matérias reunidas em
<http://www.lutherblissett.net/archive/229_en.html>. Acesso em 14 nov 2013. 79
Segundo Oliveira (2006, p. 119), as raves ilegais surgem na Inglaterra ao final da década de 1980,
―época em que Margareth Thatcher proclamou que não existe essa coisa de sociedade, apenas conjuntos
de indivíduos (there is no such thing as society, just collections of individuals). O individualismo, levado
ao extremo pelos ideais neoliberais que se espalhavam mundo afora, era contrariado pela cultura rave,
com seu compartilhamento intenso de experiências e o ideal de viver para dançar loucamente‖. As raves
ilegais buscavam fugir de uma legislação rígida de bares e casas noturnas que regiam a Inglaterra, a fim
de criar zonas incontroláveis. ―Estratégias eram criadas para burlar o controle oficial e transformar a festa
em uma aventura que tem início na descoberta do local de sua realização. Flyers anunciaram apenas um
telefone, não o endereço de realização da festa. Um banco de voz – por exemplo, da British Telecom –
informava uma série de lugares a serem atualizados via celular no decorrer do percurso até a festa. Os
participantes dirigiam-se aos locais de encontro designados e lá eram informados aonde ir. O comboio
dirigia-se ao local final onde a rave teria lugar. Só quando um número significativo de pessoas já estava
no local – garantindo a inibição da ação da polícia – o endereço da festa era informado pela secretária
eletrônica do telefone impresso nos flyers‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 120). 80
A falta de um lugar próprio ―possibilita uma articulação política que foge de uma posição defensiva‖
(MAZETTI, 2005, p. 7) – pois não há o que se defender - e é característico das mídias táticas, conforme
69
principal característica dessas zonas é prescindir da mediação, pois deseja
―experimentar a existência de forma imediata‖ (BEY, 2011, p. 34). Se fizermos um
comparativo com Blissett, podemos entender que este explora a mediação – e a
mediação, aqui, refere-se aos jornalistas, donde que a própria instituição midiática pode
ser vista como TAZ, uma zona de experimentação.
De acordo com Bey (2011), TAZ é levante, e não revolução, pois estas teriam
caráter conservador – no sentido de que desejam manter o poder. Podemos, então,
compreendê-la como ―rápidos momentos de suspensão‖ que mostram ―como a vida
pode ser vivida de forma diferente‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 46). Quando discute a criação
da TAZ, Bey, aparentemente, parece estimular certa autonomia. Daí a recusa pela
mediação que citamos anteriormente:
A mediação é difícil de ser superada, mas a remoção de todas as barreiras
entre artistas e ‗usuários‘ da arte tenderá a uma condição na qual (como AK.
Commaraswamy [historiador da arte indiana] escreveu) ―o artista não é um
tipo especial de pessoa, mas toda pessoa é um tipo especial de artista‖ (BEY,
2011, p. 69).
A última ação de Blissett que destacamos, do Ônibus Neoísta, pode ser
entendida como a criação de uma TAZ. O próprio Bey também identifica a
característica festiva dos levantes, mesmo que estes sejam permeados por armas e
violência. ―O levante é como um bacanal que escapou (ou foi forçado a desaparecer) de
seu intervalo intercalado e agora está livre para aparecer em qualquer lugar ou a
qualquer hora‖ (BEY, 2011, p. 25). O autor recorre a exemplos históricos para
demonstrar que os bacanais e as festas existiam ―fora do tempo‖ da História. Na Idade
Média, por exemplo, um terço do ano era composto de feriados e dias santos,
preenchendo espaços vazios no calendário. ―Talvez os protestos contra a reforma no
calendário tenham tido menos a ver com os ‗onze dias perdidos‘ do que com a sensação
de que a ciência imperial estava conspirando para preencher esses espaços vazios dentro
do calendário (...)‖ (BEY, 2011, p. 25). Não seria exagero lembrarmos aqui do que
Bakhtin (1987, p. 8) fala a respeito das festas européias medievais, onde o carnaval
também aparece como uma libertação, um questionamento de normas: ―era o triunfo de
uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de
abolição provisória das relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus (...)‖.
Dentro desse contexto, Oliveira (2006, p. 45) classifica a TAZ como uma forma
de resistência frente ao biopoder:
veremos no capítulo seguinte. Esse ponto é evidente no Projeto Luther Blissett, por se tratar de uma
network anônima e aberta.
70
A ideia de criar uma zona autônoma em que se suspenda, mesmo que
momentaneamente, o controle sobre a vida, que fuja à égide do biopoder é
uma forma de resistência que tem sido largamente utilizada. A desordem não
prevista, a indisciplina dos corpos, abala as estruturas da sociedade de
controle (...). A oposição, tal como proposta, exige uma renovação constante
de táticas e ações já que o capitalismo atual apresenta, como uma de suas
características mais latentes, a capacidade de incorporação de suas partes
dissidentes.
Podemos, portanto, considerar a ação de Blissett também como resistência. É
ativismo, mas não no sentido ―clássico‖ do termo. Luther Blissett não é a figura de uma
pessoa ou de um grupo de ativistas que investem ataques contra determinado alvo.
Conforme o próprio define, ―L. B. é apenas um nome, uma marca adotada por centenas
de pessoas que muitas vezes sequer se conhecem ou se comunicam umas com as outras.
L. B. não é um grupo ou um movimento, mas um pop star coletivo‖ (BLISSETT, 2003,
p. 93). A diferença do protesto de Blissett em relação a outros é que este não se dá
diretamente contra o sistema, porque ―ele/ela trabalha dentro da mídia de massa,
produzindo notícias falsas, lendas urbanas e tentando colocar em curto-circuito as
contradições internas do espetáculo‖.
Dessa forma, concordamos com a caracterização de Oliveira (2006) em relação
às resistências: ao passo que os Zapatistas, por exemplo, confrontam o sistema de forma
direta, temos também as resistências que se situam em uma esfera paralela, como as
raves, os CSOA, a criação das TAZ. Blissett é resistência híbrida: há confronto –
indireto – com o sistema, pois se dá dentro dele, e há criação de esferas paralelas fora
dele, como no caso do Ônibus Neoísta. Há a influência do movimento operaísta dos
anos 1970, através da colaboração entre trabalhadores imateriais e a utilização dos
meios de comunicação. Mas há também as vanguardas artísticas, que buscam
experimentos e derrubam a seriedade da militância política. Luther Blissett, portanto, é
um operário da arte.
O ponto em comum entre essas resistências é a criação de um antipoder, e não
contrapoder: não se pretende tomá-lo. O objetivo é derrubar formas autoritárias e
fomentar a autonomia entre as pessoas. Esta é uma das principais características das
mídias táticas, o que nos leva à discussão seguinte.
71
4. ANÁLISE DAS TÁTICAS ANTIMIDIÁTICAS
Ser subjetivo significa também ser um pouco pessoal. Assim, descobrirão que cada
Luther Blissett, inclusive vocês, desenvolve a cada vez seu próprio método. Não
considerem minhas afirmações como teorias, porque tentar teorizar sobre as causas e
os mecanismos de Luther Blissett é uma das formas mais rápidas que eu conheço para
se enfiar em uma enrascada.
Tom Graves, em ―Guerrilha psíquica‖
Mídia tática é um termo conceitualmente vago. Mazetti (2008a) não considera
isso como o resultado de uma construção intelectual inferior por parte de seus teóricos,
mas, sim, uma característica fluida que é proposital, com o objetivo de não delimitar
fronteiras e manter espaços abertos a recontextualizações e transformações. Para
Caetano (2006), o conceito de mídia tática engloba práticas de culture jamming,
hacktivismo, artivismo e ativismo na Internet. Essas noções, no entanto, são utilizadas
por diferentes pessoas, em diferentes contextos, para nomear as mesmas atividades.
Luther Blissett é um exemplo disso: ao passo que Caetano (2006) o considera um
artivista, Santos (2011) o relaciona ao culture jamming. O próprio L. B. utiliza o termo
―guerrilha midiática‖ para tratar de suas ações – ―um momento da comunicação-
guerrilha, que por sua vez é só uma parte da mais extensa guerrilha cultural‖
(BLISSETT, 2001, p. 27).
Para Mazetti (2008a), dentro dessa série de termos, ―mídia tática‖ e ―culture
jamming‖ são os conceitos que possuem maior grau de desenvolvimento. A primeira,
oriunda da Europa, abrigou inúmeras experimentações de mídia que pretendiam fundir
arte e política através da apropriação de tecnologias digitais81
. Já a segunda, nos Estados
Unidos, utiliza suas experiências de sabotagem midiática a fim de buscar novos usos
para os meios de comunicação. É uma espécie de ―atualização‖ do détournement que os
situacionistas realizavam desde a década de 1960 (KLEIN, 2009). Os dois conceitos não
nos parecem excludentes, mas, sim, se complementam mutuamente. No entanto, para os
fins desta análise, consideraremos o culture jamming como uma vertente, uma prática
de mídia tática, tal qual o entendimento de Caetano (2006). Isto porque essa noção
parece-nos mais ligada às práticas de modificação dos signos da propaganda do que os
textos jornalísticos, tendo, portanto, uma especificidade própria.
81
A origem da mídia tática remonta aos festivais holandeses denominados Next Five Minutes, que
reuniam adeptos da mesma, entre ativistas e grupos culturais. As primeiras tentativas de se construir um
conceito para a mídia tática enfatizam a ética do it yourself (faça você mesmo) estimulada pelas mídias
baratas (CRITICAL ART ENSEMBLE, 2001; GARCIA E LOVINK, 1997). Esses processos históricos já
foram tratados por nós em um artigo. Ver Paul e Dalmolin (2013).
72
O corpus de nossa análise foi construído a partir de um critério simples:
reunimos os pranks que tivessem o maior número de informações possíveis. Nossa base
principal são os textos disponíveis no site do Projeto Luther Blissett. Também
conseguimos reunir algumas notícias da época através de arquivos históricos dos jornais
italianos.
Os relatos das ações são comuns entre ativistas midiáticos justamente pela ideia
de disseminar as táticas entre outros grupos, além de justificar e refletir sobre as ações
feitas. Como nosso objetivo é compreender as ações de Blissett a partir da sua
perspectiva e do que o Projeto entende por tática, a utilização destes textos pessoais não
parece ser um empecilho à pesquisa. Assis (2006), em sua dissertação que analisa as
lógicas midiáticas de grupos como Adbusters e Yomango, justifica a utilização direta do
relato em primeira pessoa dos ativistas justamente por atender ao problema do
pesquisador em tentar compreender estes grupos a partir de observação interna dos seus
processos.
O relato, por suas características, está carregado de marcas ideológicas e de
uma coerência entre fato e registro do fato que não está presente no relato
objetivo. Assim, o relato possibilita uma perspectiva interna dos processos de
formulação e implementação das ações que serve ao teste da hipótese do
trabalho: as lógicas midiáticas, mesmo que aparentes ou não
conscientemente, estariam inseridas na concepção do ato de protesto. Esta
possibilidade de entrar em contato com o processo de criação só se amplia
nos relatos que incluem algum trecho de reflexão e busca de justificativas
pela opção midiatizada.
Deve entrar em consideração, é claro, a hipótese de forja de fatos e
características do ato. Para os fins deste trabalho, porém, estas hipóteses
perdem relevância: importa mais o pensamento, a ideologia, o processo
criativo descrito pelo ativista do que detalhes factuais sobre sua
implementação (ASSIS, 2006, p. 101).
A própria mídia tática valoriza o processo de suas ações, em detrimento dos fins
e da eficácia – o que caracteriza a mídia alternativa. Também seguiremos essa lógica em
nossa análise. Para tanto, nossas categorias analíticas buscarão tanto conceituar o que é
uma mídia tática, como, conjuntamente, demonstrar através dos pranks de Blissett de
que maneira as táticas se inserem nestes processos. Vamos enumerar essas
características a partir de quatro dimensões82
propostas por Mazetti (2008a): espaço-
temporal, midiática, política e discursiva. Outra distinção que trabalharemos é a do
acontecimento. Para isso, vamos apreender o fenômeno em seu estado bruto que Blissett
82
A categoria ―espaço-temporal‖ é originalmente denominada por Mazetti de ―perspectivas derivadas de
Certeau‖. A modificação foi apenas estilística. Já a dimensão discursiva chamava-se ―entre o moderno e o
pós-moderno‖, mas, mesmo que o autor não aprofunde um debate entre esses dois momentos históricos,
preferimos trocar o nome da categoria para evitarmos possíveis equívocos ou confusões.
73
apresenta à mídia e, posteriormente, o significado que esta atribui ao prank de L. B.
Utilizamos, portanto, o acontecimento bruto e o acontecimento significado
(CHARAUDEAU, 2012), para captarmos o olhar e o sentido que tornam inteligíveis as
farsas de Blissett ao público receptor.
4.1. Dimensão espaço-temporal
Mídia tática é assim denominada em oposição à mídia alternativa, consolidada
como estratégica. A estratégia desenvolve-se a partir de um centro de poder circunscrito
em determinado lugar. Necessita de um espaço próprio, isolado de outros, a fim de que
nele se possam administrar relações exteriores com inimigos, concorrentes ou clientes
(CERTEAU, 2012). A elaboração desses discursos teóricos tem como objetivo articular
lugares por onde as forças serão distribuídas. Como consequência da conquista de um
espaço próprio, a estratégia obtém seu domínio sobre o tempo.
Para exemplificar a mídia alternativa, Mazetti (2008a) cita o jornal Le Monde
Diplomatique. No entanto, esse modelo pode ser estendido a publicações do Brasil,
como Carta Capital e Caros Amigos. Tais mídias são estratégicas por se valerem de um
lugar de fala: o espaço do jornal são as próprias páginas do veículo. É por isso, também,
que elas atuam sob o seu próprio tempo, de acordo com sua periodicidade, e não
necessitam de oportunidades para que possam emitir críticas.
A tática, por sua vez, tensiona o terreno ―inimigo‖ na falta de um lugar para si e
acaba dependendo de ocasiões. Joga com insights; atua em momentos de surpresa. É,
portanto, efêmera e oportuna – a ―arte do fraco‖, nas palavras de Certeau (2012, p. 95),
que ―utiliza‖ o tempo, quando pode, a seu favor, por não ter sua total posse. Estes
momentos de irrupção da ordem que as táticas causam são identificados pelo coletivo
alemão autonome a.f.r.ik.a. gruppe (2003, p. 88) através do termo ―comunicação de
guerrilha‖, que já citamos anteriormente quando relacionamos à figura do guerrilheiro
semiológico citado por Eco. Instantes breves, porém intensos, ―que nos mostram que
tudo poderia ser completamente diferente: uma utopia fragmentada como uma semente
de mudança‖. Este posicionamento também demonstra a despreocupação do modelo
tático em ―capitalizar as vantagens que adquire‖, ou seja, a sua recusa por estratégias de
longo prazo, priorizando ―adulterações em outdoors, que ficarão expostos por pouco
tempo e sem grande abrangência de público‖ ou ―a infiltração de notícias falsas em
jornais da ‗grande mídia‘‖ (MAZETTI, 2005, p. 8).
74
Como consequência da falta de um lugar próprio, as táticas possuem grande
potencial de mobilidade e invisibilidade. Luther Blissett, neste caso, é a própria
personificação de um ―exército invisível‖ (MAZETTI, 2005, p. 8). Da mesma forma,
referindo-se justamente ao que Certeau descreve como ―próprio‖, Deseriis (2012)
designa o termo nome impróprio para se referir aos nomes múltiplos que fogem à
designação rígida de um domínio ―próprio‖, de uma identidade rígida e circunscrita.
Segundo o autor, são três as funções principais dos nomes impróprios:
a) Empoderam um grupo social subalterno, fornecendo uma mídia para a
identificação e reconhecimento mútuo de seus usuários;
b) Permitem àqueles que não tinham voz própria que adquiram um poder
simbólico para além das fronteiras de práticas institucionais e;
c) Expressam processos coletivos e singulares de subjetivação
caracterizados pela proliferação da diferença (DESERIIS, 2012, p. 141,
tradução nossa).
O autor frisa que a utilização dos nomes impróprios implica certa perda de
controle, pois é na circulação pela esfera pública que as apropriações dos nomes acabam
tendo efeitos imprevistos. No entanto, é essa mesma disseminação que será responsável
por desenvolver processos de subjetivação ―através do qual aqueles que não têm sua
própria voz buscam adquirir um poder simbólico fora dos ritos oficiais da instituição e
de procedimentos institucionais‖ (DESERIIS, 2012, p. 144). Como exemplo da
confusão em torno dos nomes impróprios, o autor cita Monty Cantsin, cuja intensa
distribuição ao longo da década de 1980 pela mail art não veio com ―instruções de uso‖.
Isto acarretou uma incoerência interna quanto aos usos do nome, especialmente quanto
Cantsin foi apropriado por artistas britânicos que já realizavam experimentações com
nomes múltiplos (a exemplo de Stewart Home e sua Karen Eliot). Luther Blissett, no
entanto, obteve mais sucesso, pois
[suas aparições públicas] eram frequentemente discutidas e coordenadas
pelos seus usuários. (...) embora o apelido tivesse sido lançado como um
nome múltiplo, muitas intervenções autorizadas por Blissett foram
coordenadas por três coletivos localizados nas cidades de Bolonha, Roma e
Viterbo. A tensão entre o uso coletivo e idiossincrático do apelido era
evidente pelo fato de que alguns textos ―sobre Blissett‖ eram autorizados
pelo Projeto Luther Blissett, o que sugere uma operação sintética entre e
sobre os usos espontâneos. Embora a existência do Projeto tenha sido
extremamente contestada por alguns usuários do nome, a tensão entre a
estratégia centralizada e descentralizada perpassa a experimentação, como
exemplificado pela decisão final de diversos membros do Projeto Luther
Blissett de anunciar um ―ritual suicida‖ da múltipla personalidade em 31 de
Dezembro de 1999 (DESERIIS, 2012, p. 144, tradução nossa).
Portanto, Luther Blissett, como network, organiza-se em não-lugar com certa
coerência interna entre seus membros – ou, ao menos, entre os Blissett italianos. As
75
indeterminações pela qual um nome próprio está sujeito – a sua falta de controle, em
suma -, se referem à gama de textos teóricos produzidas pelo Projeto Luther Blissett.
Uma vez que boa parte destes trabalhos concerne a temas políticos e artísticos, é
compreensível que certa quantidade de membros que adotavam o nome múltiplo sequer
teria conhecimento do que se tratavam os assuntos – seja por descaso ou por
simplesmente não se envolverem com o Neoísmo, por exemplo83
. No entanto, para a
articulação das táticas antimidiáticas, Luther Blissett consegue emergir como um eficaz
nome impróprio adotado por seus membros, conforme observaremos nas organizações
dos pranks.
Agora, para exemplificarmos o aspecto tático derivado de Certeau a partir das
características que enumeramos, analisaremos um dos pranks de Blissett – o que foi
feito contra o padre Gelmini (BLISSETT, 1997a).
Em dezembro de 1996, a polícia italiana prendeu um homem cambojano de
meia-idade, considerado suspeito de tráfico de crianças. Ele ia em direção à Bélgica
pelo aeroporto internacional de Fiumicino, em Roma. Viajava com o homem outras três
crianças tailandesas, que, segundo ele, eram seus filhos adotivos.
Blissett contextualiza o furor em torno do fato. Segundo o relato, a mídia, na
época, explorou o tema em demasia devido à histeria que dominava a Europa em
relação ao abuso infantil, especialmente após a prisão de Marc Dutroux. Este, por sua
vez, assassinou e abusou sexualmente de seis meninas entre 1995 e 1996. Dutroux era
belga, o que contribuiu para a desconfiança dos policiais italianos em relação ao
cambojano que viajava em direção ao país.
Tal pânico moral alastrado pela polícia e noticiado pela mídia, que supostamente
estaria utilizando o pretexto do abuso infantil para repreender pessoas inocentes,
motivou Blissett a realizar um prank. O alvo escolhido foi o padre católico Don Pierino
Gelmini, líder e fundador das Comunità Incontro, espécie de centro de reabilitação para
viciados em drogas – nas palavras de Blissett (1997a, s/p), ―mais propriamente descrito
como um campo de trabalhos forçados e de lavagem cerebral‖. Gelmini também
realizava em Roma diversas marchas a favor da proibição das drogas. Ainda, as
83
Uma vez que, para se tornar Luther Blissett, bastava que o indivíduo assim se proclamasse. O acesso ao
nome múltiplo não era restrito aos círculos neoístas ou dos Centros Sociais italianos, embora fosse lá o
seu berço de origem. Essa influência, no entanto, é observada nos textos teóricos do Projeto, os quais,
devido à abrangência do nome múltiplo, podem não ser aceitos por todos os membros da network Luther
Blissett.
76
Comunità Incontro tinham um escritório na Tailândia, o que serviu de gancho para o
trote de Blissett.
No dia 4 de Janeiro de 1997, Blissett liga para o escritório romano da agência de
notícias ANSA. A conversa que segue é transcrita por L. B., em um texto postado no
site84
do nome múltiplo intitulado ―1997: well begun is half done – a phone prank
pulled by Luther Blissett in January 1997‖:
LB: Olá, aqui é Aldo Curiotto. Como o porta-voz oficial da Comunità
Incontro, não posso deixar de negar as últimas notícias da prisão de Don
Pierino Gelmini. Os Carabinieri [polícia militar da Itália] NÃO prenderam
ele, eles estão apenas o interrogando. Don Gelmini AINDA NÃO FOI
acusado de tráfico de vídeos de abuso infantil.
ANSA: ... desculpa? Nós não recebemos nenhum release da imprensa sobre a
prisão!
LB: Eu já te disse que não é uma prisão. Eles estão detendo ele em custódia
temporariamente!
ANSA: Isso é muito estranho, ninguém nos informou! Que acusação você
mencionou? Abuso infantil?
LB: Estão supondo que Don Gelmini produziu filmes pornôs de pedofilia na
Tailândia, mas NÃO há acusação, eles o estão examinando. Eles estão apenas
segurando ele por um tempo.
ANSA: Meu Deus! [vira para seus colegas] Ei! Os Carabinieri detiveram
Don Gelmini! [vozes ao fundo: ―quê?‖] Sim, eles estão interrogando ele
sobre um tráfico de vídeos de pedofilia! [falando comigo] Você quer declarar
mais alguma coisa?
LB: Por favor, tenha em mente que eu liguei para n-e-g-a-r! Não há provas da
conexão entre Don Gelmini e o homem de Camboja preso em Fiumicino.
ANSA: [para os colegas] Deus! Uma conexão com o cara de Camboja!
[falando comigo] Obrigado, senhor Curiotto. Por favor, nos dê o número do
seu telefone, isso vai gerar uma grande comoção, nós precisamos manter
contato com você!
LB: Sim, é claro. O número do escritório é 3725580. Isso é tudo por agora.
Por favor, tenha respeito ao trabalho de Don Gelmini. Tchau (BLISSETT,
1997a, s/p, tradução nossa)
Aldo Curiotto é, de fato, o assessor de imprensa da Comunità Incontro de Roma.
O número de telefone que Blissett fornece ao jornalista da ANSA também é verdadeiro.
Dando continuidade ao relato, L. B. escreve ter esperado o telefonema da agência de
notícias ao assessor da Comunità – no entanto, a história tratava-se de ―um assunto
perfeito para ser explorado (Sudeste da Ásia, abuso infantil, a vida secreta de um
benfeitor notório que também era padre...). Uma bizarra tentativa de difamar Don
Gelmini mereceria ser coberta, de qualquer forma‖ (BLISSETT, 1997a, s/p).
84
Disponível em <http://www.lutherblissett.net/archive/222_en.html>. Acesso em: 27 nov 2013.
77
A tática é efetuada com sucesso e, no dia 5 de janeiro de 1997, o jornal
L’Avvenire noticia: ―Don Gelmini detido. Difamado como vingança? O padre: ‗eu me
acostumei com ataques‘‖ (BLISSETT, 1997a, s/p). Já o jornal Corriere Della Sera85
coloca em dúvida o fato, com a manchete ―Pedofilia, tráfico sexual: campanha de
difamação contra Don Gelmini‖ e o subtítulo ―Alguém telefonou para a televisão e para
agências de notícia explicando que o padre já fora detido‖. O restante da matéria
defende Gelmini e escreve não se tratar da primeira vez que o padre recebe insultos
devido a suas atividades contra as drogas. La Repubblica86
também desmente, no dia 5
de janeiro, as acusações contra o Gelmini e informa que as ligações aconteceram no dia
anterior, às 10h da manhã, disseminando-se rapidamente.
Nos dias seguintes, entrevistas de Curiotto e Gelmini são feitas à imprensa e
transmitidas na TV. O assessor também lança um release, onde esclarece ter sofrido um
ataque pessoal de alguém que ―espalhou delírios nonsenses‖ utilizando seu nome.
Jornais também passam a se questionar sobre o fenômeno do abuso infantil e a sua
demasiada exposição na mídia, o que talvez tornasse o assunto um motivo para boatos e
explorações gratuitas. Curiosamente, Gelmini passa a ser investigado novamente em
2007 e, no ano de 2010, é acusado de abuso sexual87
. A revista Terni, ao noticiar o fato,
relembra que em 1997 o padre sofrera um ataque anônimo e credita ao próprio Luther
Blissett a ―antecipação‖ das acusações de 200788
.
Podemos apreender algumas características táticas neste prank. É
eminentemente oportuno: se o cambojano não tivesse sido preso, a relação feita com
Gelmini não teria como ser feita por Blissett. Trata-se de uma ação circunstancial. Da
mesma forma, observa-se que ela só se concretiza quando a informação passa a ser
disseminada na agência de notícias e, em seguida, noticiada nos jornais. É, portanto,
uma tática que atua no lugar do outro: ela não existiria se não fosse a própria mídia a
propagá-la. Por fim, a efemeridade é destacada pelo fato de que, no dia seguinte, ao
mesmo tempo em que L’Avvenire ainda colocava como manchete a prisão de Gelmini,
outros dois jornais já desmentiam a notícia. O prank funcionou rápido, mas
85
Disponível em:
<http://archiviostorico.corriere.it/1997/gennaio/05/Pedofilia_porno_traffici_campagna_calunnie_co_0_97
01052521.shtml>. Acesso em: 28 nov 2013. 86
Disponível em: <http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/1997/01/05/fermato-don-
gelmini-il-corvo-colpisce-al.html>. Acesso em: 28 nov 2013. 87
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/bbc/2010/06/18/ex-padre-italiano-e-indiciado-por-abuso-
sexual.jhtm>. Acesso em: 28 nov 2013. 88
Disponível em: <http://www.ternimagazine.it/58146/il-fatto/terni-nuovamente-rinviato-il-processo-a-
don-pierino-gelmini-per-motivi-di-salute.html>. Acesso em: 28 nov 2013.
78
intensamente, desde a manhã de 4 de janeiro até a disseminação dos rumores e a
confirmação de que era uma mentira.
Por fim, de acordo com as distinções de Charaudeau quanto ao acontecimento, e
de Salvatti quanto aos pranks, juntamente com o que já tratamos de Mazetti na
dimensão derivada de Certeau, caracterizamos o trote a Gelmini da seguinte forma:
Distinção de Charaudeau
Acontecimento bruto
Dom Gelmini não foi acusado de traficar
material pornô de menores e não possui
qualquer conexão com o cambojano preso.
Acontecimento significado
Dom Gelmini foi detido pela polícia italiana,
que o interroga sobre tráfico de vídeos de
pedofilia. O padre possui conexões com o
cambojano preso.
Distinção de Mazetti
Tempo
A ação foi oportunista e dependeu da prisão
do homem cambojano para que pudesse ser
feita a ligação do tráfico com Gelmini.
Espaço
Atuou no lugar do outro ao disseminar
rumores dentro de uma agência de notícias,
utilizando-se da mídia para efetuar o prank. Tabela 1: resumo do prank contra o padre Gelmini
4.2. Dimensão midiática
Essa categoria abrange três pontos elucidados por Mazetti (2008a): as
competências, a relação com os meios e a relação com a mídia convencional. A mídia
tática preza pela experimentação, herança provida dos movimentos artísticos como o
Neoísmo e o Dadaísmo. É por isso que, diferentemente da mídia alternativa, a tática não
confere demasiada importância para a eficiência de suas ações. Daí também deriva a
crítica à fala especializada, questionando quem pode fazer o quê, de modo a valorizar e
incentivar a produção amadora.
No caso de Blissett, tais características já foram observadas quando do seu
nascimento, nos Centros Sociais. Isto porque o Projeto Luther Blissett é formado por
estudantes de graduação de Sociologia, Artes e Filosofia, além de jornalistas
(DESERIIS, 2010). Não eram todos, portanto, que estudavam a comunicação. Mas a
facilidade de adquirir novas mídias – câmeras de vídeo, softwares de edição –, graças à
gradual difusão de aparelhos eletrônicos nos anos 1990, quebra a barreira entre
produções amadoras e profissionalizantes, possibilitando que os membros do Projeto
pudessem executar suas ações.
A mídia alternativa tende a se profissionalizar, uma vez que isto contribui tanto
para a sua credibilidade perante o público-leitor e para que seu lugar de fala não seja
questionado. É por isso que ela valoriza a eficiência do seu conteúdo e preza por um
79
padrão de qualidade. Derivam daí os chamados ―pré-requisitos para a participação no
universo midiático – da expressão corporal frente a uma câmera de vídeo ao domínio da
técnica do lead no jornalismo, por exemplo‖ (MAZETTI, 2008a, p. 31). Em geral, a
ênfase da mídia alternativa está no seu conteúdo, de maneira que contraponha o que é
veiculado pelos meios de comunicação tradicionais. Isto denota uma visão instrumental
dos meios de comunicação. É por isso que Mazetti (2008a, p. 84) chama essa tomada de
posição em relação à mídia convencional de reativa, pois ela, a mídia alternativa, busca
―oferecer um modelo ‗melhor‘‖.
Tal preocupação não perpassa a mídia tática, pelo fato de que ela enfatiza a
forma em detrimento do conteúdo de sua mensagem. Sua relação com os meios de
comunicação é reflexiva e não instrumental, procurando questionar e implantar dúvidas
quanto aos usos da mídia. No entanto, a tática não pretende consolidar-se como uma
alternativa concreta em relação à hegemônica, justamente por se colocar fora da
―disputa‖ de conteúdos entre mídia alternativa vs. mídia hegemônica. Esse
deslocamento no modo como a tática enxerga o meio de comunicação – da importância
do conteúdo à importância da forma, privilegiando experimentações – acaba por anular
qualquer pretensão que ela teria de se legitimar como ―melhor‖.
Exemplificaremos a dimensão midiática das táticas de L. B. analisando o prank
contra o jornal Il Resto del Carlino, que é, segundo Deseriis (2010, p. 85), ―o tablóide
mais popular da Bolonha‖. Blissett (1995a, s/p, tradução nossa) inicia seu relato com a
seguinte explicação:
essa peça é sobre um prank feito contra um jornal de direita italiano de
Bolonha, o Il Resto del Carlino, em novembro de 1995. Discursos racistas e
homofóbicos contra gays, prostitutas africanas e transexuais levaram Luther
Blissett (um conhecido terrorista cultural transexual) a atacar a equipe
editorial com uma emocionante lenda metropolitana.
A motivação do prank, portanto, reside em supostas matérias racistas e
homofóbicas que o jornal tem continuamente feito. Para ridicularizar Il Resto del
Carlino, Blissett cria uma história fantasiosa de uma prostituta soropositiva que
contamina seus clientes furando suas camisinhas. A ideia é criar uma onda de pânico
moral e observar até que ponto a mídia especula a respeito do fato sem sequer checá-lo.
No dia 19 de outubro de 1995, o jornal publica a carta enviada por Blissett, com
o seguinte título: ―Carta alarmante para o nosso jornal. Começam as investigações
oficiais‖. O artigo é assinado pela jornalista Nicoletta Rossi, que, antes de transcrever na
íntegra o texto, informa se tratar de um envelope ―normal‖, em uma folha ―normal‖
80
digitada em computador. Segundo Rossi, o conselho editorial normalmente recusa
cartas anônimas, mas decidiu publicar esta devido ao seu conteúdo chocante. Ainda
adiciona que a notícia será publicada ―sem nenhum comentário, pois não é nosso dever
verificar a verdade. Antes, é dentro da competência da polícia, para o qual nós já
entregamos a carta original‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução nossa). A seguir, a carta
na íntegra é transcrita pelo jornal:
Eu sou uma garota de 24 anos, nascida em uma pequena cidade do Norte da
Itália, crescida em uma família normal. Há alguns anos atrás, minha vida era
parecida com a da maioria das meninas da minha idade: eu estudava com
bolsa na universidade e tinha em mente que seria uma jornalista. Dois anos
atrás, depois de um acidente de carro, eu fui hospitalizada e me submeti a
uma transfusão de sangue. Mais tarde, um teste de sangue provou que eu
tinha pegado o vírus HIV. Uma vez que meu estilo de vida sempre foi normal
e eu costumava me manter longe de comportamentos perigosos, como o vício
em drogas e relações sexuais casuais, eu presumi que eles fizeram a
transfusão em mim com sangue infectado. Essa descoberta surpreendeu a
minha vida e a de meus pais, que rejeitaram minha situação. Fui aos postos
públicos de saúde, que não fizeram nada a respeito. Então eu tive um colapso
nervoso do qual eu ressurgi quando encontrei um modo de descarregar minha
raiva desesperada em uma sociedade culpada por me infectar e me rejeitar.
Eu me mudei para Bolonha, onde ninguém me conhecia, e comecei a me
prostituir, recebendo meus clientes em um flat no centro da cidade. Esse
negócio permitiu que eu juntasse dinheiro suficiente e melhorasse meu
padrão de vida, e ainda mais, permitiu que eu descarregasse meu ódio. De
fato, desde o ano passado, estou usando camisinhas furadas para infectar
essas pessoas viciadas que, por falta de alguma coisa melhor, costumam
pagar uma garota para fazer sexo. Eu ouvi dizer que esse hábito é mais
comum do que se poderia pensar. Isso me iluminou e me convenceu a
escrever minha história a um jornal popular como o Il Resto del Carlino, para
que outras pessoas não passem pelos problemas que eu passei depois que
descobri ter contraído AIDS. Me desculpe se eu não assino meu nome, é
muito fácil entender a razão dessa escolha.
L. B. (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução nossa)
A jornalista apenas comenta que, se a história for verdadeira, a autora é uma
―disseminadoras de pragas‖ consciente disso, e relaciona a outros casos, como um
garoto de programa brasileiro que se prostituía em Rimini (comuna italiana) e foi
repatriado pela polícia por se tratar de ―uma verdadeira bomba bacteriológica‖. A
seguir, o jornal publica a opinião de três especialistas: um grafologista (pessoa que
observa traços da escrita para analisar a personalidade do indivíduo), um psicólogo e um
imunologista. A opinião do último não é transcrita no texto de Blissett (1995a, s/p) por
―não ser interessante‖.
Para Aurelio Valletta, especialista em grafologia forense e conselheiro na corte
criminal de Bolonha, a carta foi escrita por uma autora educada que possui boa sintaxe.
No entanto, há diversos erros de digitação, ―o que pode significar que tenha sido escrito
às pressas, em um estado de ansiedade, e pode não ter sido relida, como se a autora (...)
81
estava com pressa de fechar o envelope e postá-lo‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução
nossa). Outras observações do grafologista incluem dizer que a carta foi escrita por
alguém que ―aprendeu a fundo a informática e sabe como configurar parágrafos89
‖.
Ainda, Valetta destaca que o endereço foi escrito no envelope em cima, à direita –
―escrever na direita implica um desejo de extroversão de uma pessoa solitária. Escrever
acima implica auto-estima e um ‗eu‘ profundo Em geral, eu diria que toda carta
comunica uma necessidade de se revelar para outros‖ (BLISSETT, 1995a, s/p). Por fim,
o grafologista aponta para o selo que fora colado à esquerda do envelope, e diz que ―até
isso pode significar ansiedade‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução nossa).
Renzo Canestrari, psicólogo e professor, atenta para uma contradição na carta:
um desejo de vingança e um aviso. ―O fato antecedente, que é a transfusão infectada,
pode ser verdade. Mas a vingança merece uma análise mais complexa‖ (BLISSETT,
1995a, s/p, tradução nossa), escreve. Canestrari considera as últimas linhas do texto
como uma espécie de apelo, ―algo como ‗se a família e a sociedade perseguem pessoas
como eu, estas devem ser as consequências...‘‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução
nossa).
Um dia após a publicação da carta, Blissett divulga um comunicado à imprensa.
Um dos pontos do texto se refere ao grafologista, ao psicólogo e ao imunologista: ―sim,
nenhum desses ‗especialistas‘ pode entender alguma coisa, mas não se esqueça que eles
têm uma graduação e uma reputação!‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução nossa). Em
outro trecho, L. B. critica o discurso do jornal em relação a prostitutas, transexuais e
soropositivos, dizendo que Il Resto del Carlino os denigre frequentemente e que o
veículo publicaria qualquer notícia referente a estes temas, a fim de difamá-los. Outro
apelo do comunicado destaca que ―qualquer um pode inventar o próximo furo do
Carlino‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução nossa), bastando ler um livro de grafologia,
fazer certos erros de digitação e criar situações cotidianas banais. Por fim, a carta
desafia o jornal a tentar provar que Blissett está mentindo e pede que encontre a
prostituta ―verdadeira‖: ―eles poderiam pagar um idiota alegando que foi ele quem
escreveu a carta, enquanto Blissett alegaria um salário do jornal, uma vez que ele/ela é o
seu repórter mais produtivo e de maior sucesso‖ (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução
nossa). L. B. também diz que esteve monopolizando a coluna de carta dos leitores,
através de diferentes pseudônimos – daí a sua reivindicação por um salário.
89
O texto postado no site possui um comentário de Blissett (1995a, s/p, tradução nossa) nesse trecho,
desdenhando da observação de Valetta: ―[que dificuldade! Ha ha ha ha ha!]‖.
82
Esse comunicado não foi publicado no momento em que saiu, pois os jornais
acabavam de entrar em greve, à época. No entanto, quando ela acaba, La Repubblica,
concorrente de Carlino, noticia na edição de 27 de outubro de 1995: ―a garota
soropositiva era falsa – NÓS, BLISSETT, ZOMBAMOS DO CARLINO‖. Trechos da
fala de L. B. são transcritos e comentados pelo jornal, que relaciona os ataques a
práticas oriundas do situacionismo:
os caras chamados Luther Blissett (...) estão investigando a
credulidade/ingenuidade dos jornais diários: eles costumam contar histórias
sociologicamente complexas, então eles riem da ingenuidade durante a
‗Rádio Blissett‘, aquela rádio em tempo real transmitida em qualquer quarta-
feira à noite na Rádio Città del Capo. Não há nada de acidental na
provocação situacionista deles: ―qualquer um pode inventar o próximo furo
do Carlino (...)‖. Umberto Eco ficaria louco com eles [que tedioso! – nota de
L. B.] (BLISSETT, 1995a, s/p, tradução nossa)
Esse artigo, que desmente o prank, acaba ampliando a discussão. Isto porque
Carlino reage à matéria do La Repubblica e enumera uma série de ciladas que o jornal
caiu e ficou em silêncio – tal qual fez posteriormente, mesmo após o fim da greve.
Dois meses após o ocorrido, descobre-se um dos efeitos do prank de Blissett.
No dia 27 de janeiro de 1996, a edição nº 256 do jornal de esquerda Cuore publica uma
matéria sobre Andrea Riffeser Monti, editora do Il Resto del Carlino. Em determinado
trecho, é revelado que o então redator-chefe do jornal fora colocado sob fiscalização
após a fraude:
Luther Blissett é um monstro de várias cabeças. Grupo situacionista de nome
coletivo (todos os terroristas semânticos que a ele pertencem assinam Luther
Blissett), ocupa-se de psicogeografia e loucuras várias. Ama especialmente
jogar areia nas engrenagens da informação. Para o Resto del Carlino, o velho
Luther é um bicho-papão: Luther joga o anzol e pode ficar certo de que o
glorioso jornal o abocanhará. Com certeza. Duas são as mais recentes
besteiras, recolhidas e divulgadas como verdadeiras, que levaram à
―fiscalização‖ do cronista-chefe do jornal, Fabio Raffaelli, colocado sob
tutela pelo vice-diretor, Mauro Tedeschini e, posteriormente, promovido a
redator-chefe por Riffeser. Primeiramente, o Carlino publica a carta de uma
(inexistente) estudante soropositiva, forçada a se prostituir e feliz em se
vingar furando as camisinhas dos fregueses. Essa carta é anunciada em
cartazes nas bancas de jornal. Ninguém desconfia do fato de a carta estar
assinada por L. B. (ou seja, Luther Blissett). E ninguém verifica a fonte ou se
preocupa em procurar a coitada da moça. Mico do século. Depois, outra
escorregada. Chega em todas as redações dos jornais de Bolonha um furo: a
top model Naomi Campbell está na cidade para ser ―retocada‖ por um
cirurgião. Os jornais verificam a veracidade do fato através de alguns
telefonemas e descobrem que a linda Naomi nunca saiu de Nova York. Ao
contrário, o Carlino cai nessa e dá a notícia, com foto colorida na primeira
página. Gol contra. Luther Blissett, em algum lugar, gargalha (BLISSETT,
2001, pp. 241-242).
A absoluta irresponsabilidade do jornal, isentando-se de investigar a veracidade
da carta - delegando esse papel à polícia, mas publicando a fala da prostituta e
83
alarmando a população sem qualquer justificativa - exemplifica bem a tática de Blissett
em querer jogar a mídia contra ela mesma. Vimos que a motivação inicial para a
realização do prank foram os discursos preconceituosos de Carlino. Para contornar essa
situação, L. B. não se foca no conteúdo. Uma mídia alternativa, por exemplo, poderia
escrever uma matéria denunciando as falhas da cobertura feita pelo jornal contra as
prostitutas ou, ainda, enviar uma carta ao jornal reivindicando as matérias
preconceituosas que eram feitas. A carta de Blissett, no entanto, não diz como se deve
tratar a cobertura de casos de pânico moral. Pelo contrário: deixa-se que a mídia aja por
si mesma e assuma a importância de um conteúdo sem sequer checá-lo, chamando a fala
de especialistas. Não se trata de uma ação prescritiva que forneça ao público um manual
de cobertura jornalística ―correta‖, mas uma tática que visa desconstruir os processos
que levam à formação de uma notícia – e que estimule, também, que cada um explore a
mídia a seu modo.
A revelação da farsa ridiculariza toda a notícia e, é claro, o próprio jornal.
Atribui-se um sentido completamente nonsense à interpretação de Carlino quanto ao
caso da prostituta, visto que, se num primeiro momento a análise da colagem dos selos à
esquerda que representavam ansiedade, por exemplo, poderiam soar sérias, após a
revelação elas se tornam absurdas. Isso acaba levando ao questionamento de quem pode
dizer o quê num jornal, o que reafirma a posição da mídia tática como eminentemente
amadora, questionando quem pode adentrar no universo midiático. A gargalhada de
Blissett é exatamente esta: a ridicularização do acontecimento provocado por Carlino
com base em um relato fictício. Por ―acontecimento provocado‖, entenda-se um espaço
de debate midiático a partir de falas convocadas – que, no caso, são os especialistas,
representantes do saber (CHARAUDEAU, 2012).
Diferentemente da mídia alternativa, Blissett não se interessa em ―provar‖ as
―deformações‖ na cobertura de atores sociais marginalizados – pelo menos não de
forma direta, como a finalidade última do prank. A conclusão da farsa parece querer
demonstrar quão fácil é ludibriar os jornalistas do Carlino, ávidos por histórias que
causem sensações – ―qualquer um pode construir o furo de amanhã‖, lembra Blissett
(1995a, s/p). A relação de L. B. com a mídia é exploratória, ao valorizar os aspectos
que constroem e dão significado à notícia – todos feitos pelo próprio Carlino, de modo
que Blissett, na verdade, pouco trabalho tem a fazer. Conforme as distinções de
Charaudeau e Mazetti, concluímos o prank da seguinte forma:
84
Distinção de Charaudeau
Acontecimento bruto
L. B. envia uma carta à redação de Il Resto
del Carlino contando a história de uma
prostituta soropositiva que fura a camisinha
de seus parceiros, infectando-os com o vírus.
Acontecimento significado
Jornalista: a prostituta é uma disseminadora
de pragas consciente disso.
Grafologista: é uma pessoa educada, pois tem
uma boa sintaxe. É ansiosa porque comete
erros de digitação e porque colou o selo do
envelope no seu lado esquerdo. É uma pessoa
solitária, mas que quer ser extrovertida,
porque escreveu o endereço na parte à direita
da carta. E, por ter escrito ele acima, possui
uma boa auto-estima
Psicólogo: seu desejo de vingança é
explicado pela perseguição da sociedade e da
família a pessoas marginalizadas como ela
Distinção de Mazetti
Competência
A produção é amadora, visto que qualquer
pessoa poderia enviar a carta para a redação
se passando pela personagem.
Relação com os meios
Não se preocupou com o conteúdo da carta,
mas com o processo que se daria a partir dela
feito pelo jornal. Enfatizou a forma em
detrimento do conteúdo.
Relação com a mídia
convencional
Explorou Il Resto del Carlino, deixando que
o próprio jornal construísse o restante da
farsa; não pretendeu se consolidar como uma
alternativa à cobertura preconceituosa do
veículo. Tabela2: resumo do prank da prostituta soropositiva.
4.3. Dimensão política
Quando se trata da dimensão política das mídias táticas, Mazetti (2008a)
enumera quatro distinções: relação com o poder, amplitude, ideologia e artifícios. No
primeiro ponto, as mídias alternativas buscam tomar o poder e por isso almejam
alcançar o maior número possível de leitores, o que torna suas ações universais. O que
as legitima perante o público é, justamente, a crença em uma ideologia que se opõe,
geralmente, a de veículos mais tradicionais. Por fim, a mídia alternativa opera através
do logocentrismo, ou seja, de argumentos racionais embasados na seriedade.
Para tratarmos dos aspectos da mídia tática quanto à dimensão política, vamos,
primeiramente, descrever o prank realizado em Viterbo entre 1996 e 1997. Esta é,
certamente, a peça mais complexa de Blissett, o que demanda uma descrição detalhada
das ações. Ao final, discutiremos as distinções que enunciamos anteriormente e também
trataremos de algumas questões relativas ao acontecimento jornalístico.
85
A descrição deste prank é baseado no relato de Blissett (1997b) intitulado
―Viterbo: um anno vissuto satanicamente‖ (Viterbo: um ano vivido satanismo)90
. O
início da peça acontece em dezembro de 1995, quando L. B. picha as paredes da cidade
de Viterbo com duas mensagens: ―cidade, satanistas maçons: sabemos de tudo!‖ e
―Luthero está te observando‖. Ambas estavam assinadas com ―L. B.‖. Os escritos são
feitos diversas vezes até chamar a atenção de um jornal, o que acontece no dia 4 de
fevereiro de 1996, quando Il Messaggero publica um artigo denominado ―Caccia al
misterioso Luther Blissett‖ (Caça ao misterioso Luther Blissett)91
. O texto comenta as
ligações que um cidadão (o próprio Blissett) faz à polícia reclamando das pichações nas
paredes da cidade. Também destaca o conteúdo das mensagens que acusam o prefeito
de Viterbo de ser maçom e satanista. É interessante observarmos que, nessa época, o
Projeto Luther Blissett já é conhecido da imprensa italiana. O último parágrafo do texto
questiona quem seria Blissett, no que o próprio jornal responde: ―pode ser qualquer um,
é um nome múltiplo, uma abreviatura coletiva, difundida na esfera da cultura alternativa
de extrema-esquerda, popular, por exemplo, em alguns círculos acadêmicos de
Bolonha‖92
. A matéria ainda comenta alguns pranks exercidos por Blissett em Bolonha,
como o que enganou a equipe do programa Quem o Viu?, que analisaremos no
subcapítulo seguinte. Finaliza dizendo que o Blissett de Viterbo parece ser mais
modesto e se contenta em pichar mensagens nos muros da cidade, ao invés de pregar
peças contra a mídia.
Vendo que não bastava escrever mensagens nos muros, Blissett decide realizar
ações mais concretas. Sua ideia inicial foi deixar restos de missa negra em uma
montanha próxima a Viterbo, a Palanzana. No entanto, mesmo avisando a polícia sobre
o material deixado no local, a mesma acaba por não levar o acontecimento aos jornais.
Blissett então lê uma notícia no jornal informando que uma associação ambiental
limparia nos próximos dias a floresta do Valle Spina e decide deixar lá os resquícios da
missa negra, na noite entre 4 e 5 de maio. Dentre os objetos, estão duas velas negras
postas ao lado de uma mesa de piquenique, um pentagrama mal desenhado com gesso,
lama terapêutica, luminárias de cemitério e uma caixinha contendo fotografias
queimadas.
90
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/173_it.html>. Acesso em: 2 dez 2013. 91
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/147_it.html>. Acesso em: 2 dez 2013. 92
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/187_it.html>. Acesso em: 2 dez 2013.
86
Os ambientalistas encontram os restos na segunda-feira. No dia seguinte,
Corriere di Viterbo, Il Tempo e Il Messaggero noticiam o fato de diferentes maneiras. Il
Messaggero não descreve detalhadamente os materiais deixados na floresta e tampouco
tentam interpretar o que seria um ritual de missa negra. Já Corriere di Viterbo palpita
que a lama terapêutica deixada por Blissett era cálcio, enquanto que para Il Tempo trata-
se de cimento. Corriere ainda entrevista um especialista brasileiro de macumba, o
―Mago del Brasile‖, cujas declarações dão conta de que o ritual foi feito por uma pessoa
experiente no assunto. O jornal também observa que um cinto foi deixado próximo a
uma mesa, perto do local do ritual, e acrescenta outro detalhe à história: o acessório é
um item pessoal de alguém que teria sido vítima do rito.
Il Tempo, por sua vez, tenta explicar o ritual: o cimento representaria a força da
terra e fora usado a fim de reforçar a magia que tem sido efetuada na floresta. Para
ambos os jornais, a vela encontrada no local é parcialmente consumida devido ao vento
da noite de sábado e representa uma súbita interrupção da cerimônia ritualística. Uma
outra matéria, dessa vez extremamente racista, foi feita pelo jornal local Il Corriere di
Pietro Morelli com o título de Troppi 666 (666 demais). O texto compara Tuscia (região
da Itália onde se situa Viterbo) à África e considera que os rituais foram feitos pelos
africanos – ―e o fazem porque são incivis, ignorantes e sem religião. O demônio não
pode existir se na outra parte não existe Deus, e esse último serve para bater nas portas
do inferno‖ (BLISSETT, 1997b, tradução nossa).
Aproveitando o êxito do prank, Blissett deixa mais restos de rituais, dessa vez
em uma floresta próxima ao lago Vico. Corriere di Viterbo é avisado por telefone, mas
não encontra os traços de missa negra no local. No entanto, o jornal afirma que a seita é
a mesma que fora realizada em Valle Spina.
A onda satanista em Viterbo também é intensificada por mais um motivo: no
mesmo período, Blissett envia cartas a outras duas publicações, a semanal Sotto Vocce e
o quinzenal La Cittá. Assinando como o inexistente universitário Stefano Molinari, L.
B. utiliza como pretexto as mensagens satânicas pichadas nos muros e acusa a prefeitura
de direita de ser relacionada ao satanismo. A carta é publicada no mesmo período da
cobertura da missa negra no Valle Spinna. No entanto, algum tempo após a publicação,
um jornalista de Sotto Vocce, ataca a mensagem do estudante. Stefano Molinari
(Blissett) envia uma nova carta, onde acusa o jornalista de tratar o tema da política e do
satanismo de forma leviana, e relembra que, no passado, jornalistas também ironizavam
87
os Astarottiani. Essa seita existiu em 1995 e agiu em várias cidades italianas
distribuindo dinheiro às pessoas com o slogan de ―o que Deus tira, o diabo dá‖93
.
Vittoria Baroni, mais um nome inventado por L. B., envia cartas ao jornal Diario
Viterbese pedindo notícias da identidade de Blissett, uma vez que parece ser ele o
responsável pelas mensagens satânicas nos muros. Após uma sucessiva troca de cartas
(visto que as primeiras foram publicadas com cortes), o jornal responde que Luther
Blissett é um nome inventado para um personagem que não existe e que, por ter sido
projetado nos Centros Sociais Italianos, de cunho esquerdista, é natural que acusem a
prefeitura de Viterbo de maçonaria satânica, visto que ela é de direita.
Por fim, outra carta falsa é endereçada ao Il Messaggero e publicada em 25 de
junho de 1996 com o título de ―Messe nere: la Germania come la Tuscia‖ (―Missas
negras: a Alemanha como a Tuscia‖). Escrita por um Luther Blissett da Alemanha
identificado como Florian Cramer, a carta traça um paralelo entre o país e a região
italiana de Tuscia. Informa que há um grupo alemão chamado Luther que escreve frases
nos muros da cidade de Tubinga contra os adoradores de Satanás, o que fez com que a
polícia prendesse um conhecido político local que participava de missas negras junto
com skinheads. Novamente, Blissett sugere relações entre a prefeitura de Viterbo e o
satanismo.
Junto das cartas falsas, outra tática feita por Blissett é a criação de um Comitê
para a Salvaguarda da Moral para contrapor as ações satanistas. A Co.Sa.Mo, como fica
conhecida, lança diversos comunicados à imprensa e se define como um grupo de
vigilantes, de verdadeiros caçadores de satanistas. A sua posição ideológica, no entanto,
é violenta, com uma certa dose de fanatismo religioso.
A primeira ação do Comitê acaba sendo fracassada: Blissett envia uma carta (em
nome da Co.Sa.Mo) para o Corriere di Viterbo alertando sobre a presença de cultos
satânicos na cidade, mas o texto não é publicada. No entanto, após o êxito do prank em
Valle Spina que torna credíveis as ações satanistas, mais uma carta é enviada ao jornal
e, dessa vez, ela encontra espaço em suas páginas. O conteúdo é postado na íntegra na
edição de 14 de maio do Corriere e começa com um sermão contra o próprio veículo:
―vocês, escravos da vossa absurda realidade, escravos do ceticismo. Advertimos vocês,
mas vocês não deram bola para isso. Agora basta!‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução
93
Uma notícia de 28 de novembro de 1995 do Corriere de la Sera informa que o dinheiro era distribuído
em 8 cidades: Cagliari, Roma, Viterbo, Florença, Viareggio, Udine, Verona e Caserta. Disponível em:
<http://archiviostorico.corriere.it/1995/novembre/28/Setta_satanica_regala_soldi_co_0_9511285970.shtm
l>. Acesso em: 2 dez 2013.
88
nossa). Em seguida, o Comitê revela que encontrou satanistas realizando rituais em
Poggino, uma zona industrial de Viterbo, e quase conseguiu apanhá-los – mas, por
pouco, eles fugiram. A publicação dessa carta é considerada por Blissett como um ato
de total irresponsabilidade do Corriere, visto que o jornal deu espaço a um grupo de
fanáticos religiosos aparentemente violentos.
Para simular uma das ações da Co.Sa.Mo, Luther Blissett vai novamente até a
floresta próxima ao lago de Vico, onde efetuou o prank dos restos de missa negra. O
mesmo material é colocado no lugar - velas, luminárias, fotografias queimadas – com o
adicional de um velho gravador de fita cassete contendo uma gravação satânica. Blissett
simula uma briga violenta e quebra todos os materiais com dois bastões, além de
revolver de terra uma mesa.
No dia seguinte, um esportista que costuma realizar seus treinos nas
proximidades do bosque telefona para o Corriere (trata-se de outro disfarce de Blissett)
e informa a presença do rito em Vico. A edição do jornal estampa a notícia, mas ignora
a briga simulada por L. B. Ao invés disso, escreve que ―a descoberta de ontem, de
acordo com as primeiras impressões, parece confirmar uma hipótese que há tempos
circula nos ambientes de investigação: o envolvimento nesses ritos negros de pessoas
relacionadas a Ronciglione [cidade próxima a Viterbo]‖ (BLISSETT, 1997b, s/p,
tradução nossa). O próprio Blissett, em seu relato, desdenha da explicação do jornal,
escrevendo que ―com toda probabilidade, o cronista de Corriere não encontrou nada
melhor do que inventar uma pista improvável que leva à Ronciglione, a cidade mais
próxima da zona do rito‖.
Uma vez que Corriere não noticia a briga e tampouco a fita cassete que Blissett
deixa no local, a Co.Sa.Mo envia um novo comunicado para o veículo. Nele, o Comitê
explica que vem organizando rondas noturnas em florestas e que, no dia 17 de janeiro
de 1997, encontrou no lago Vico um grupo satânico realizando um ritual. No
comunicado, Blissett informa que a Co.Sa.Mo bateu nos satanistas com bastões.
Outro ponto importante do texto revela que, na noite entre 14 e 15 de julho de
1996, o Comitê conseguiu filmar às escondidas uma missa negra onde se comete um
estupro – que só não é interrompido pelos membros da Co.Sa.Mo devido ao número
superior de satanistas que estavam no local. O Comitê, então, propõe uma colaboração
com Corriere, pois o jornal ―demonstrou grande sensibilidade sobre o fenômeno do
satanismo‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa). A ideia é que o material enviado
ao jornal seja confidencial e exclusivo.
89
Corriere não cumpre o acordo. No dia seguinte, 30 de janeiro, a primeira página
do jornal estampa: ―Golpes na missa negra. Aberta a caça contra os satanistas‖. A
matéria comenta o ataque de bastões do Comitê no lago Vico, e também o vídeo amador
que fora enviado pela Co.Sa.Mo, descumprindo o pedido de confidencialidade do
material. Corriere descreve o quarto onde fora realizado o ritual, bem como os
satanistas, que estavam encapuzados, e uma mulher que parecia fora de si – talvez
embebida por uma poção especial, acrescenta o periódico. O Comitê entra em contato
com o jornal e avisa: ―se tens a intenção de continuar a receber, COM
EXCLUSIVIDADE, o nosso material, deves publicar inclusive um artigo sobre nossa
filmagem, no qual deverá fazer referência explícita ao local do rito indicando-o como ‗o
sinistro casario‘‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa). Um mapa com a localização
da casa é enviado para a redação do periódico.
A reportagem do jornal vai até o local da cerimônia e encontra um imenso
pentagrama desenhado no chão. Nomes de quatro demônios também estão escritos na
parede. Corriere supõe que foram entidades invocadas durante a missa negra. Essas
pistas foram deixadas propositalmente por Blissett após ter feito as filmagens da
cerimônia. Conforme o relato de L. B. (1997b), elas aconteceram entre 14 e 15 de julho
de 1996, em uma fazenda abandonada há alguns quilômetros de Viterbo, em Castel
d‘Asso. A operação envolveu diversos Blissett, divididos entre seis atores – cinco
satanistas e uma vítima -, além de motoristas e operadores de vídeo. A imagem captada
era de baixa qualidade, devido à fumaça das tochas, mas o áudio estava impecável, de
modo que se podia distinguir o grito da ―vítima‖ em meio ao coro dos satanistas.
Depois que Corriere publica suas impressões acerca do local da missa negra,
uma série de reportagens são feitas na semana de 6 a 13 de fevereiro de 1997.
Começando pelo dia 6, o jornal estampa na primeira página a manchete ―os gritos
agonizantes de uma menina estuprada durante ritual satânico‖. Fotografias da casa e do
quarto onde foi feita a cerimônia acompanham o texto, que, dessa vez, respeita o acordo
do Comitê e nomeia o local como ―casario sinistro‖. No entanto, pela primeira vez, a
publicação coloca em dúvida a veracidade dos fatos: ―quando e por que foi filmado esse
vídeo? Ele é autêntico? Ou é apenas um jogo (possivelmente perigoso)?‖ (BLISSETT,
1997b, s/p, tradução nossa). O jornal também retoma o acontecimento de maio de 1996
em Valle Spina e infere que poderia ser obra de um brincalhão, alguém que sabia que os
ambientalistas estariam naquele local no dia seguinte.
90
No dia 7, a manchete do Corriere é ―moça ‗sacrificada‘: aberto um inquérito‖. A
reportagem atenta para a data da filmagem que aparece no vídeo (julho/96) e relaciona a
um crime que ocorreu em agosto, na mesma região (Castel d‘Asso). Outro artigo da
edição é assinado por Don Salvatore del Ciuco, pároco de Viterbo. Sobre o texto,
Blissett (1997b) comenta que ele não tem nenhuma outra intenção senão a de agigantar
ainda mais o fenômeno, visto que não revela nada de novo sobre as seitas satânicas. Ele
reflete a preocupação do pároco da influência que os ritos podem ter nos jovens, além
de expor alguns dados historiográficos sobre ocultismo. Ainda no mesmo dia, o repórter
do Corriere que cobre o caso é entrevistado por Fausto Pace, do telejornal Lazio.
Enquanto que o conteúdo do vídeo da missa negra é descrito, correm imagens de uma
―sombra satânica‖ sobre um muro, em um lugar qualquer que L. B. nunca tinha sido
visto. ―Essa é a prova de que o telejornal Lazio, assim como o Corriere, Il Resto del
Carlino e quem sabe quantos outros, são experts na prática da desinformação-
espetáculo‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa).
O caso vai ao ar em rede nacional no dia 8 de fevereiro, quando o vídeo da
cerimônia – apresentado como um ―documento excepcional‖ - chega até o Studio
Aperto, noticiário do Italia 1. No mesmo dia, Corriere entrevista o bispo Tagliaferri, da
Tuscia. Ele declara que o satanismo de Viterbo não é religioso, ―porque a alternativa no
que diz respeito à atitude em relação à religião é a crença e a descrença. Ora, inventar
uma religião sobre Satanás parece-me patológico‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução
nossa). O bispo ainda acrescenta que a excessiva publicidade que a cobertura dos jornais
vem fazendo em relação ao fenômeno acaba por validá-lo, sendo que ele ―não merece o
alarde que tem‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa). Ainda nesse dia, um artigo do
jornal local Il Tempo também coloca dúvidas em relação à veracidade do vídeo.
Em 9 de fevereiro, a manchete do Corriere é ―o mapa dos satanistas. O exorcista
se confessa‖; na página interna, ―sexo, droga e álcool. São uns pobres diabos‖. O jornal
entrevista Don Angelo Bissoni, exorcista oficial da Diocese de Viterbo, que fala sobre a
difusão da cultura satanista. Na Tuscia, descreve Don Bissoni, o satanismo pouco se
parece com o de grupos em Milão e Turim. Isto porque ele se liga aqui a uma
combinação de sexo, drogas e álcool, donde que seus praticantes não são satanistas
―verdadeiros‖, mas ―pobres endiabrados‖, nas palavras do exorcista (BLISSETT,
1997b, s/p, tradução nossa). Bissoni também descreve uma espécie de ―mapa dos
satanistas‖, onde cada aldeia de Viterbo corresponderia a diferentes missas negras,
realizadas em casas abandonadas.
91
Eis que, ao dia 10 de fevereiro, Blissett (1997b) relata em seu texto que Corriere
pouco ou nenhum argumento mais tem para continuar a cobertura. Na falta de assunto, o
jornal tenta interpretar as motivações da Co.Sa.Mo em filmar as cerimônias. Para o
periódico, uma explicação possível é de que os membros do Comitê ―em um passado
distante, sofreram subitamente violência moral, senão física, durante uma missa negra
(...)‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa). O fanatismo religioso evidenciado nos
textos da Co.Sa.Mo, novamente, não é questionado.
Ainda no dia 10, Il Tempo publica o artigo ―Ritos satânicos: Digos sabia‖. O
texto argumenta que a Digos (Divisione Investigazioni Generali e Operazioni Speciali –
uma operação especial da Polícia que investiga terrorismo e crime organizado) recebeu
um telefonema de Blissett, em julho de 1996, se passando por um cidadão incomodado
com o barulho de reuniões noturnas em uma fazenda de Castel d‘Asso (local da missa
negra). Os policiais foram até lá e apenas tiraram algumas fotos, deixando de voltar a
visitar a local por acharem que se tratava de um trote. Esse fato é comprovado por
Blissett (1997b) porque, nas fotos do Corriere em fevereiro de 1997, os restos de missa
negra utilizados estão no mesmo lugar desde o ano anterior. No entanto, se os policiais
da Digos realmente foram até a casa para tirar as fotos e começar uma investigação,
certamente as velas e os outros materiais da cerimônia seriam apreendidos. Blissett
(1997) questiona se haveria alguma ―troca de favores‖ entre a Divisão de Investigação e
o Corriere di Viterbo.
Como forma de ―castigar‖ o Corriere, Blissett resolve inventar mais um
personagem e envia outra carta para o jornal. A edição do dia 12 de fevereiro traz o
texto na íntegra de uma estudante que teria sido vítima de estupro em um ritual satânico.
Antes de publicar a carta, Corriere comenta que ―se trata de um documento humano
que, por força da verdade, tem poucos precedentes. Somente uma pessoa sofrida,
querendo dar vida a uma experiência imaginária, seria capaz de concebê-la. Difícil que
se trate de uma brincadeira‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa)94
. O relato da
―moça desafortunada‖ (sua assinatura na carta) conta que seu namorado tentou
convencê-la a praticar o swing, ou seja, a troca de casais, para quebrar a monotonia da
relação. Ele leva a moça até uma casa de campo, sob o pretexto de introduzi-la à prática,
e no caminho oferece vinho, acrescido de sonífero. A garota apenas se recorda de estar
em um quarto mal iluminado, sendo abusada sexualmente por três pessoas que
94
O relato postado no site ainda desdenha do conteúdo postado pelo jornal: ‗Blissett, uma pessoa sofrida?
Sofrida sim, só se for de dor de barriga, em razão das risadas!‖
92
murmuravam cânticos estranhos. Após, ela é levada para casa pelo ex-namorado, que a
pede que mantenha o caso em segredo senão contaria para a família da moça que ela
concordara em praticar a troca de casais. A garota ainda informa ao jornal que decidiu
enviar a carta quando notou a coincidência entre a data do estupro e a data em que
supostamente o vídeo da missa negra teria sido gravado, sugerindo que os gritos
ouvidos na gravação poderiam ser dela.
Segundo Blissett, Il Tempo foi mais cético ao noticiar a carta, embora sua
manchete apelasse para o espetacular: ―assim me sacrificaram a Satanás‖. Já Il
Messagero mostra-se mais prudente, pois coloca em dúvida a veracidade da carta e
ainda critica, sem citar nomes, ―um certo jornalismo sensacionalista local‖ (BLISSETT,
1997b, s/p, tradução nossa).
No dia seguinte, em 13 de fevereiro, o Corriere publica a manchete de capa
―tem gente que protege os satanistas‖, uma alusão à nova carta enviada pela Co.Sa.Mo.
O Comitê critica as declarações do exorcista Dom Angelo Bissoni, anteriormente
publicadas pelo jornal, em que ele distingue os satanistas de Viterbo e os satanistas
―originais‖, sendo os primeiros ―inferiores‖ aos outros. A declaração da Co.Sa.Mo
ironiza a expressão de Bissoni e alerta: ―devemos deixar livres esses ‗pobres diabos‘
para que estuprem nossas filhas?‖ (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa).
Para acirrar a desavença que Il Messagero esboçou contra o Corriere di Viterbo,
Blissett envia outras duas cartas ao primeiro jornal. Uma delas é assinada pela ―moça
desafortunada‖, que reclama da desconfiança que o veículo demonstrou perante seu
caso. O outro texto é assinado por Alessia Negro. A garota lamenta a parca cobertura
realizada pelo Corriere e questiona se é possível exercer jornalismo sem sequer checar
as fontes – dado que o jornal frequentemente publica toda carta que lhe é enviada.
A fase final do prank toma forma na metade de fevereiro, quando Blissett
contata anonimamente a jornalista e especialista em contracultura Loredana Lipperini,
do Repubblica. L. B. explica que pretende revelar publicamente a farsa do satanismo.
Além de enviar as provas materiais para a jornalista, uma entrevista ainda é marcada, ao
vivo, para aquele domingo, no programa TV7. Blissett também envia um comunicado
para os jornais viterbenses anunciando que a fraude será desvelada ao vivo pela TV. Il
Manifesto, Il Messaggero e Il Giornale destacam o anúncio.
Finalmente, no dia 2 de março de 1997, os jornalistas Gianluca Nicoletti e
Loredana Lipperini exibem a versão completa do vídeo que fora enviado ao Corriere.
Enquanto que a missa negra acontece, a câmera aproxima-se gradualmente dos Blissett
93
encapuzados. Até que, de repente, todos – dos atores se passando por satanistas até a
moça que estava sendo estuprada – orquestram uma desenfreada tarantela, dança típica
da cultura popular italiana. O prank é encerrado com a exibição de um pôster de L. B.
(BLISSETT, 2001).
No entanto, Il Corriere não reconhece que foi enganado e, em sua defesa,
entrevista novamente padres com opiniões vagas e de conteúdo teológico vazio. Na
sequência, o jornal publica um novo artigo onde defende seu trabalho e parabeniza
Blissett, caso tudo ―realmente‖ tenha sido uma fraude. Sublinha que não foi o único
veículo a acreditar na história e, por fim, defende-se das acusações de sensacionalismo
que partiram de Il Messaggero, reiterando que os fatos devem ser separados das
opiniões. Dessa forma, o jornal deixa implícito que Messaggero, por interpretar as
cartas anônimas e expressar dúvidas quanto a elas, praticava um jornalismo incorreto –
ao passo que Corriere, que se atrelou somente aos fatos, realizou uma boa cobertura.
Por fim, o periódico de Viterbo sugere que a Co.Sa.Mo foi desmentida por
satanistas a fim de confundir a opinião pública. L. B., cansado da insistência do
Corriere, liga para a redação:
Corriere: Alô?
Luther: Alô. Sou Luther Blissett.
Corriere: Ah... [10 segundos de silêncio] ehm... o que deseja?
Luther: Por quanto tempo vocês têm intenção de publicar esses enganos?
Vocês conseguem entender que esse Comitê para a Salvaguarda da Moral
não existe?
Corriere: Ah! Ah! Com nosso jornal, podemos demonstrar que ele existe.
Luther: Sim? Muito bem! Ah! Ah! Ah! Deveriam então saber que cada
comunicado do Comitê publicado por vocês tem referências retiradas de
outro texto. Nos escritos do Comitê tem palavras retiradas de um texto
preexistente. Em qualquer momento podemos mandar tudo para os outros
jornais, colocando um ponto final nisso tudo. E os asseguramos que esse
texto é muito ridículo [se trata de um roteiro de um filme splatter, ―O
bosque‖ de Andrea Marfori].
Corriere: Ah, ehm... talvez seria melhor que eu lhe passe o telefone do
diretor. Sabe, não me ocupo diretamente desse assunto.
[Luther Blissett telefona ao diretor do ―Corriere di Viterbo‖]
Diretor: Alô?
Luther: Alô Sou Luther Blissett.
Diretor: Ah... [10 segundos de silêncio] ehm... o que queres?
Luther: Mas vocês não se dão conta que, ao continuarem a escrever essas
cretinices, estão se metendo sozinhos nessa merda?
94
Diretor: Pra dizer a verdade... no artigo, demos os parabéns a Luther Blissett.
Luther: NÃO! VOCÊS DISSERAM QUE O COMITÊ PARA A
SALVAGUARDA DA MORAL EXISTE! Tínhamos a intenção de mandá-
los o material para tirar uma onda também com os outros jornais, mas agora,
não sei se o faremos [seguem as explicações sobre as relações entre as cartas
e os textos preexistentes] Se nos próximos dias continuarem nesse tom,
usaremos as outras provas para desacreditá-los definitivamente.
Diretor: Não... não... por favor!
Luther: Bom, mandaremos as provas das cartas falsas aos outros órgãos de
imprensa de Viterbo. Confiamos em uma utilização proveitosa, em nossa e
vossa vantagem (BLISSETT, 1997b, s/p, tradução nossa).
Il Corriere di Viterbo, no entanto, não comentou mais nada a respeito do caso e
tampouco utilizou o material enviado por Blissett, temendo se tratar de um novo prank.
Já o jornal Il Tempo (1997)95
publica uma notícia sobre a farsa e descreve brevemente o
processo de como se deu a construção da fraude. O periódico ainda traz um pequeno
histórico de outras peças de Blissett e cita o caso contra o padre Gelmini e a história da
prostituta soropositiva.
Um comunicado96
feito por L. B. logo após a transmissão da TV7 delatando o
prank também enfatiza características interessantes. Blissett (1997b) destaca que dois
objetivos foram provados: demonstrar que as investigações criminais a respeito de
seguidores de Satanás não se amparam em uma apuração completa; demonstrar que o
poder exercido mediante esses casos deve ser atacado, e não temido. L. B. cita o caso de
Marco Dimitri, fundador da seita Bambini di Satana (crianças de Satanás), que atua
abertamente no país desde 1982. Dimitri tem sido alvo de uma constante cruzada
moral97
tanto por parte do poder público como da própria mídia e, em 1996, foi acusado
pelo jornal Il Resto del Carlino de ter abusado sexualmente de uma garota de 16 anos,
durante uma missa negra.
Embora, mais uma vez, a imprensa nacional foi rápida para entrar na onda do
pânico moral aprovando as acusações infundadas e pressionados pela
promotora pública Lucia Musti, os réus não demoraram a demonstrar que
Dimitri, que é notoriamente gay, nunca esteve envolvido em abusos de
crianças, e que o Bambini di Satana era, na verdade, um culto consensual de
adultos que não tinha quaisquer conexões com pedófilos‖ (DESERIIS, 2010,
p. 85, tradução nossa).
A cruzada moral contra Dimitri nos remete à figura do biopoder, que, no caso do
prank, é exemplificado pelo Comitê para a Salvaguarda da Moral. Essa tática de Blissett
95
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/187_it.html>. Acesso em: 2 dez 2013. 96
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/188_it.html>. Acesso em: 2 dez 2013. 97
Em uma entrevista de 2005, o satanista declara que o Vaticano utiliza a ideia do diabo como tática para
disseminar o medo pelo país. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI477189-
EI312,00-Satanista+italiano+acusa+Igreja+de+espalhar+o+medo.html>. Acesso em 2 dez 2013.
95
configura-se como antipoder, uma vez que a Co.Sa.Mo é fictícia e, portanto, não deseja
tomá-lo de fato. Na verdade, o Comitê representa a própria paródia do biopoder, a partir
de uma matriz extremamente violenta.
Para Oliveira (2006, p. 185), o antipoder configura-se como uma mudança
circunscrita na esfera cultural, nas relações cotidianas e no desenvolvimento de uma
nova potência de vida, de forma que ―anule todas as formas de autoritarismo e ative a
participação‖. Um antipoder que não almeja qualquer forma de poder. Aplicado à
Blissett, essa relação estende-se aos meios de comunicação e aos seus regimes de
verdade que são esvaziados e não substituídos por outros – visto que não há uma busca
por uma nova verdade e tampouco por outro poder. Essa questão, no entanto, será
enfatizada na nossa análise da dimensão discursiva.
A análise da relação de Blissett com o poder também se liga à sua ideologia. De
acordo com Mazetti (2008a), a mídia tática é incerta quanto a esse aspecto: por vezes,
sua postura ideológica não é clara, pois ela busca mais confundir do que denotar um
ponto de vista explícito. De certa forma, essa consideração é aplicável à Blissett, pois,
tal qual o prank da prostituta soropositiva, não é lançado uma crítica formal que detalhe
maneiras corretas de ―como‖ cobrir alguma notícia relativa a minorias (lembrando que
a motivação desta peça nasce a partir dos discursos racistas e homofóbicos do Il Resto
del Carlino). No entanto, nos parece inegável que há uma postura ideológica pelo
simples fato de que Blissett se opõe a determinadas práticas – o sensacionalismo, a
histeria em torno da pedofilia como motivo de repressão -, o que, em geral, motiva seus
pranks. A diferença é que estes aspectos podem ser apreendidos nos seus relatos ou
comunicados posteriores à realização das peças, e não nas ações propriamente ditas.
Entendemos que a finalidade das fraudes reside muito mais no seu processo de
experimentar narrativas coletivas e ridicularizar o regime de verdade da instituição
midiática do que apresentar-se propriamente como uma alternativa a ela, pregando uma
nova moral, uma nova verdade. Há motivações ideológicas em Blissett, mas elas não
transparecem e não são os fins dos pranks.
Quanto à amplitude, as ações dos pranks são localizadas, o que é facilmente
distinguível se pensarmos nas inúmeras cartas falsas endereçadas a veículos de
comunicação específicos. Não se pretendiam universais, portanto. Neste ponto, é válido
pensarmos na construção do acontecimento. Por exemplo, diversas ações de Blissett
falham no decorrer do prank porque não são percebidas pela mídia, como os restos de
missa negra deixados em Palanzana ou as cartas de Vittoria Baroni publicadas com
96
demasiados cortes. Um caso mais extremo inclui a briga que a Co.Sa.Mo simula às
margens do lago Vico para mostrar que ―apreendeu‖ alguns satanistas. Mesmo deixando
restos da luta e ligando para que o Corriere vá até o local, o jornal se limita a concluir
uma hipótese totalmente diversa da que era prevista por Blissett (a de que pessoas da
cidade de Ronciglione estão envolvidas nos ritos). Por não atingir seus feitos, L. B. se
vê na obrigação de enviar uma carta assinada pelo Comitê explicando passo-a-passo
como a briga tinha sido armada.
Essa preocupação de Blissett em adentrar o espaço midiático perpassa o
entendimento de que 1) a mídia tática necessita de um lugar de fala, e, para tanto,
utiliza-se da mídia hegemônica e 2) um acontecimento, para que se torne jornalístico,
deve necessariamente ser comunicável. Isto porque a instituição midiática lhe confere
sentidos e o ―embala‖ em forma de notícia – ―o que não é comunicável não se publica‖,
lembra Alsina (2009, p. 143). Essa condição se restringe, reiteramos, à dimensão
comunicativa do acontecimento; enquanto fenômeno social, ele pode prescindir da sua
comunicabilidade, bastando que seja perceptível.
Sobre a constituição dos acontecimentos no prank de Viterbo, Blissett (1997b,
s/p, tradução nossa) escreve:
Uma última consideração: Luther Blissett jamais quis demonstrar que em
Viterbo não existiram satanistas. A mídia, no entanto, no período que vai de
fevereiro de 1996 a fevereiro de 1997 somente reportou os engodos
divulgados por Blissett. Ao cabo desse tempo, à parte as ―opiniões‖ (e não os
fatos) de qualquer padre, os jornais não reportaram nenhum evento satânico
que não fosse arquitetado por Luther Blissett. Não obstante no passado, com
uma certa periodicidade, apareciam notícias sobre o satanismo na Tuscia, a
exemplo da misteriosa seita satânica chamada E.A. e os seus rituais a base de
lama, os relatórios bancários que os satanistas faziam para questionar sobre o
patrimônio dos novos adeptos, os astarottianos em Viterbo, etc...
A nossa opinião, portanto, é de que o material divulgado por Luther Blissett
tenha de qualquer forma saciado uma certa sede sobre informação satânica.
Em poucas palavras, é legítimo suspeitar que durante o período de engodos
blissetianos o Corriere di Viterbo não tenha tido o trabalho de inventar
engodos por iniciativa própria.
De fato, a duração de um ano do prank é significativa e pode ser creditada à
constante utilização de novas táticas que prolongam e dão novo fôlego à narrativa.
Podemos dividi-las em dois momentos: as ações que originam a onda de satanismo em
Viterbo e, após, a criação da Co.Sa.Mo, a fim de intensificar o pânico moral nos jornais.
No primeiro grupo, estão as pichações nos muros da cidade, com mensagens satânicas e
nazistas; as cartas falsas de Stefano Molinari, Vittoria Baroni e Florian Cramer,
alimentando a polêmica e pedindo explicações para os estranhos acontecimentos; os
97
primeiros restos de missa negra deixados na floresta de Valle Spina. Com a criação do
Comitê para a Salvaguarda da Moral, temos novas táticas: a briga simulada contra os
satanistas, no lago de Vico; as cartas ao Corriere que firmam um pacto com o jornal; o
vídeo da missa negra; as cartas falsas da ―moça desafortunada‖ e de Alessia Negro,
questionando a cobertura jornalística do Corriere. Por se tratarem de diversas táticas
―menores‖ inseridas dentro de um prank ―maior‖, e também por terem um caráter
fortemente espetacular, o acontecimento, que normalmente possui data de validade
(ALSINA, 2009), não perde o seu caráter de anormal. Em outras palavras, ―um fato
pode manter sua categoria de acontecimento em função das novas variações que sejam
introduzidas sobre o primeiro acontecimento‖ (ALSINA, 2009, p. 141).
Esses acontecimentos funcionam num processo de diegese evenemencial, ou
seja, trata-se ―de uma ação ou de uma sucessão de atos dos quais não se conhecem nem
a intencionalidade nem a finalidade‖ (CHARAUDEAU, 2012, p. 153). Nesse contexto,
o papel do jornalismo é o de transformar a diegese evenemencial em diegese narrativa,
de modo que se enquadre no esquema narrativa/narrador/ponto de vista. ―É por isso que
a narrativização dos fatos implica a descrição do processo da ação (‗o quê?‘, dos atores
implicados (‗quem?‘), do contexto espaço-temporal no qual a ação se desenrola ou se
desenrolou (‗onde?‘ e ‗quando?‘)‖ (CHARAUDEAU, 2012, p. 153).
Blissett ―ajuda‖ na apuração do Corriere, interligando acontecimentos
aparentemente isolados e construindo uma narrativa junto com o jornal. Como exemplo,
temos a carta falsa de Florian Cramer que traça um paralelo entre os eventos satânicos
na Alemanha e na Tuscia, insinuando a ligação de políticos locais com as missas negras.
Ou, ainda, a também falsa carta de Vittoria Baroni que pede notícias sobre a identidade
de Blissett. As ―sugestões‖ deixadas por L. B. trazem o acontecimento ao campo dos
significados, onde os jornalistas utilizam os seus próprios mapas culturais na
identificação, classificação e contextualização do que será a notícia. Esse processo de
significação constrói consensos na sociedade, conhecimentos compartilhados e comuns
(HALL et al, 1999). Não seria exagero concebermos a construção da onda alarmante de
satanismo como a tentativa de criar um consenso em Viterbo, devido à enxurrada de
notícias sobre o tema (tendo ainda como pano de fundo a prisão de Marco Dimitri).
Nota-se também, ao final do prank, a desvinculação que Corriere faz entre
―fato‖ e ―opinião‖ (ver p. 9) em resposta às críticas de Il Messaggero sobre a publicação
da carta da ―moça desafortunada‖. Para o último, Corriere realiza um jornalismo
sensacionalista quando publica integralmente a mensagem. Enquanto isso, o outro
98
veículo critica Messaggero por duvidar da veracidade do relato, dizendo que, ao
interpretar a carta e expressar dúvidas, praticava um jornalismo incorreto. O
posicionamento de Corriere está atrelado à objetividade, conceito canonizado no
jornalismo. O que o jornal não vê é que, por ter sido refém de basicamente uma fonte
(Blissett simulando diversos personagens), o veículo acabou servindo de porta-voz para
L. B. Da mesma forma, a objetividade não está expressa apenas no conteúdo do texto
jornalístico, mas, também, na sua forma, o que é ignorado por Corriere. As aspas nas
falas da Co.Sa.Mo, a escolha por publicar cartas na íntegra e não questioná-las, ou,
ainda, a seleção de fontes entrevistadas com discursos semelhantes (exorcista, pároco,
padre) evidenciam, sim, uma tomada de posição por parte do veículo.
De acordo com as distinções que trabalhamos até então, o prank em
Viterbo pode ser assim dividido:
Distinção de Charaudeau
Acontecimento bruto
Blissett deixa um material que simula restos de missa negra na
floresta de Valle Spina: velas negras, o desenho de um
pentagrama, lama terapêutica, luminárias e uma caixa contendo
fotos queimadas.
Acontecimento significado
Corriere di Viterbo: não era lama, mas cálcio. Um cinto
encontrado no local era acessório pessoal da vítima do rito.
Segundo um especialista brasileiro de macumba, a cerimônia
foi preparada por uma pessoa experiente no assunto.
Il Tempo: não era lama, mas cimento. Ele representa a força da
terra e foi utilizado para reforçar a magia que tem sido efetuada
na floresta.
Acontecimento bruto Blissett deixa restos de missa negra no próximo ao lago Vico.
Acontecimento significado Corriere di Viterbo: trata-se da mesma seita que foi realizada
em Valle Spina.
Acontecimento bruto Blissett simula uma briga da Co.Sa.Mo contra satanistas no
lago Vico e quebra restos de missa negra.
Acontecimento significado Corriere di Viterbo: o rito negro é feito por pessoas que moram
em Ronciglione
Acontecimento bruto Blissett envia ao Corriere o vídeo da missa negra, com a data
de julho de 1996.
Acontecimento significado
O jornal insinua ligações com um crime que ocorreu em Castel
d‘Asso, região próxima do local do rito, em agosto de 1996,
quando um cadáver foi achado.
Distinção de Mazetti
Relação com o poder Antipoder – não deseja tomá-lo.
Amplitude Suas ações não são universais, mas localizadas. Não pretendem
abranger um grande público.
Ideologia É incerta e não é o fim de suas ações.
Artifícios Utiliza-se do humor; rejeita o racionalismo e a seriedade. Tabela 3: resumo do prank da missa negra
A série de reportagens feitas na semana de 6 a 13 de fevereiro não está na tabela,
pois constitui um acontecimento provocado. Elas são noticiadas após a publicação de
Corriere acerca das suas impressões do local da missa negra - grosso modo, este já seria
99
um acontecimento significado a partir de um acontecimento bruto (a fita de vídeo da
missa negra). As matérias da semana em questão incluem as entrevistas com o pároco, o
bispo e o exorcista. Estas constituem um acontecimento provocado pois referem-se a
um debate no espaço midiático, donde que qualquer declaração dessas fontes, ainda que
nada acrescente à discussão, torna-se acontecimento. É justamente essa série de
acontecimentos provocados que constituem a onda histérica de pânico moral alastrada
pelas missas negras - e provavelmente era esse o objetivo que Blissett gostaria de
chamar a atenção quanto aos usos da mídia.
4.4. Dimensão discursiva
Nesse último ponto, trataremos da produção de discursos com efeitos de
verdade. A mídia tática opõe-se a essa prática por estimular ações de desinformação –
isto porque ela questiona seu lugar de fala e não precisa se legitimar. Já a mídia
alternativa, baseada em práticas jornalísticas, necessita dessa legitimação perante o seu
público-leitor. Portanto, ampara-se em uma concepção de verdade.
Cada época da História possui um discurso dominante que demarca a verdade de
seu tempo – como a Igreja na Idade Média, por exemplo (GOMES, 2003). A produção
dos regimes de verdade, como característica inerente a diferentes sociedades, vincula-se
ao exercício do poder. Nas palavras de Foucault (2007, p. 12), ―a verdade é deste
mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder‖, que são transmitidos, finalmente, através de aparelhos
políticos e econômicos. Dentre eles, estão os meios de comunicação, responsáveis por
construir a realidade social.
No entanto, é necessário lembrarmos que isso se dá por um reconhecimento do
receptor do discurso, de modo que não se trata de um ―processo unilateral‖ (ALSINA,
2009, p. 95) de ―cima‖ para ―baixo‖. Trata-se primeiramente de levarmos em
consideração o contrato entre a mídia e o seu público, denominado por Alsina (2009, p.
48) de ―contrato pragmático fiduciário‖ (ou seja, que envolve confiança). Para tanto, o
jornalista atua no esforço de angariar credibilidade, pois é este o capital que o legitima
(BOURDIEU, 1997)98
. Os efeitos de verdade estão baseados na convicção do leitor, e,
portanto, funcionam quando o ―direito à palavra‖ do jornalista é validado
(CHARAUDEAU, 2012).
98
Para o autor, o campo jornalístico é tensionado pela concorrência econômica - a informação exclusiva,
o furo - e a reputação do profissional - a credibilidade (BOURDIEU, 1997).
100
Dentre as estratégias para se construir um discurso credível ao público, constam
conhecidas técnicas jornalísticas, como a consulta a especialistas e a utilização de dados
e aspas. Charaudeau (2012) enumera três procedimentos pelas quais os profissionais
recorrem a fim de obter um efeito de autenticidade ou verossimilhança: a) designação
identificadora, b) analogia e c) visualização. O primeiro é o mais direto possível:
consiste em mostrar as provas dos fatos, seja através de testemunhas, seja através de
documentos (como a fita de vídeo de Viterbo ou a transcrição da carta da prostituta
soropositiva). A imagem, em especial, eleva o grau de realidade das provas. No caso da
analogia, utiliza-se a reconstituição dos fatos quando estes não são possíveis de serem
mostrados, com detalhamentos e comparações. Por fim, a visualização mostra o que é
invisível a olho nu ou o que geralmente não é audível. Previsões meteorológicas são um
exemplo cotidiano de visualização.
Os procedimentos que visam mostrar as ―provas dos fatos‖ são inerentes à
prática jornalística, pois fazem parte de suas atividades cotidianas – estas,
constantemente orientadas pela dúvida. No entanto, acabam também por funcionar
como um constante processo de autolegitimação. É por isso que a recorrência às fontes
serve tanto para sanar essas questões como para ―constituir [o jornalismo] enquanto
campo autônomo de fazer, ser e compreender a realidade‖ (CHRISTOFOLETTI, 2008,
p. 210).
Neste subcapítulo, vamos analisar o prank realizado contra Quem o Viu? (no
original, Chi l’ha visto?), um reality show que existe desde 1989 e é transmitido até os
dias atuais99
. O programa passa em horário nobre na Rai 3, canal pertencente à empresa
estatal RAI100
. Quem o Viu? conta com a ajuda dos telespectadores que enviam
informações à redação na busca de pessoas desaparecidas, indo desde adolescentes que
fugiram de casa a pacientes que escaparam do hospício. No relato de Blissett (1995b, p.
4, tradução nossa)101
, a apresentadora do programa Giovana Milella é considerada a
personificação da classe média, representando ―tudo o que os indivíduos que valorizam
a liberdade desprezam‖. Ainda segundo Blissett (2001),
99
Site oficial: <http://www.chilhavisto.rai.it/dl/clv/index.html>. Acesso em: 01 dez 2013. 100
Radiotelevisione Italiana. Segundo Capparelli (s/d), o sistema televisivo do país se constitui pela RAI
– rede pública – e pelo grupo privado Mediaset, detentora de três canais de grande audiência. Um
duopólio, portanto. 101
Utilizamos o texto How Luther Blissett hoaxed the TV cops, encontrado na coletânea organizada por
Stewart Home. Ele também está postado no site do Projeto, mas com algumas pequenas alterações (a
começar pelo título, por exemplo) que serão apontadas no decorrer da análise. Disponível em:
<http://www.lutherblissett.net/archive/033_en.html>. Acesso em: 01 dez 2013.
101
no programa Quem o Viu? celebra-se, de forma até aberta, uma das
características do Poder: a capacidade de espionar qualquer um. O predador
demonstra sua superioridade sobre todos os animais que consegue espionar,
alcançar e agarrar. Quanto maior o número de pessoas que se consegue
controlar, tantas são as que podem ser potencialmente agarradas. Um Estado
democrático e paternalista não pode segurar todos nas garras carcerárias.
Porém, conseguindo determinar a posição de qualquer cidadão, lembra a
todos que a distância entre potencialidade e ato é, frequentemente, questão de
oportunidade política (BLISSETT, 2001, p. 45).
Para a realização do prank, foi inventado o personagem Harry Kipper102
, nome
que virou lenda no underground italiano devido à fama que a tática obteve. O golpe
contra Quem o Viu? é considerado o impulsionador do Projeto Luther Blissett, pois foi o
primeiro que testou as habilidades de se formar uma network em torno do nome
múltiplo (BLISSETT, 1995b; DESERIIS, 2010).
Harry Kipper, na criação de Blissett, é um artista britânico que recentemente
visita a Itália e desaparece ao realizar uma performance psicogeográfica. Para explicar a
história, um release via fax é enviado no dia 3 de janeiro para agência de notícias
ANSA, no seu escritório em Udine (capital de Friuli, região nordeste da Itália). No dia
seguinte a história já se espalha pelos jornais locais, sendo publicada, inclusive, sem
nenhuma mudança em relação à mensagem original. Um exemplo de Il messaggero
veneto, no dia 1º de abril de 1995:
UM ARTISTA DESAPARECE: S.O.S. DE LONDRES PARA FRIULI
Última aparição em Bertiolo. Ele estava fazendo uma tour pela Europa de
bicicleta. Será que ele dirigia em direção à Bósnia? Artistas da Bolonha e de
Londres estão em busca de informações quanto ao paradeiro de um homem
inglês chamado Harry Kipper, que desapareceu em Friuli. Ele tinha 33 anos,
cabelo ruivo escuro e olhos azuis magnéticos. Kipper, também conhecido
como Luther Blissett, era um artista de rua e um ilusionista. Não há notícias
dele há dez semanas. O artista bolonhês Federico Guglielmi diz que Kipper
foi visto pela última vez deixando Bertiolo indo a Trieste. No meio de
Outubro, Kipper telefonou para seu amigo Stewart Home, um novelista
londrino, e disse que estava na Bósnia. Esta foi a última vez que alguém
ouviu falar dele. Alguns artistas Italianos que conheciam Kipper revelaram
que ele estava viajando pela Europa em uma mountain bike, ligando
diferentes cidades com uma linha imaginária que eventualmente soletraria a
palavra ―ART‖.
Foi o artista Friuliano Piermario Ciani que originalmente veio com a ideia de
ligar diferentes cidades para soletrar a palavra ART. No último verão, Kipper
ficou na casa de Ciani, uma vez que estes dois amigos estavam ansiosos para
ver o projeto sendo concluído com sucesso. No começo de Setembro, Kipper
saiu para Trieste, mas parece que ele nunca chegou lá. Kipper começou sua
102
Dois Harry Kipper, de fato, existiram. Eles formavam uma dupla de body-art na Inglaterra, conhecidos
pelo nome de Kipper Kids. Suas performances inspiraram a criação da lenda de Kipper na Itália e, em
1994, algumas pessoas decidiram criar um retrato para Harry, metamorfoseando rostos masculinos e
femininos. Essa imagem, mais tarde, se tornaria o ícone de Luther Blissett disseminado por todo o
mundo. Portanto, considera-se Kipper uma espécie de ―fundador imaginário‖ do Projeto L. B.
(BLISSETT, 1995b, p.5).
102
―viagem psicogeográfica‖ em 1991, quando traçou o ―A‖ de Madri a Londres
e Roma. Levou os próximos dois verões para completar o ―R‖, através de
Brussels, Bonn, Zurich, Geneva e Ancona. Em 1994, Kipper começou o ―T‖.
De Trieste, ele planejou visitar Salzburg, Berlim e Varsóvia, antes de retornar
ao Amsterdam.Ao invés disso, ele aparentemente fez um inexplicável desvio
para Bósnia, onde desapareceu (BLISSETT, 1995b, pp. 6-7, tradução nossa).
Neste comunicado podemos notar a presença de três membros do Projeto Luther
Blissett. Federico Guglielmi e Piermario Ciani estiveram envolvidos desde a fase inicial
do Projeto, sendo que o último foi um conhecido mail artist italiano, já experiente com
os usos do nome múltiplo desde os anos 1980. Já Guglielmi é um dos fundadores do
Projeto e, posteriormente, integra o coletivo de escritores Wu Ming Foundation, junto
de outros três membros. Stewart Home, por sua vez, participou do Neoísmo até o início
da década de 1990, quando fundou a Aliança Neoísta, sua própria network. Interessa
aqui percebermos a articulação que se dá no Projeto Luther Blissett com membros de
outros países, afinal, Ciani e Guglielmi são italianos, enquanto que Home é londrino.
O fax enviado à ANSA continha ainda o retrato de Kipper (que era o de Blissett)
e contatos com ―artistas‖ Bolonheses e Friulianos que hospedaram Kipper durante sua
viagem (ou seja, outros membros do Projeto). Também foram enviados mapas
psicogeográficos com o traçado da palavra ―ART‖. O intuito era soltar pistas
propositais, ―meias verdades‖, de que o desaparecimento talvez fosse uma ―peça
artística‖ de Kipper. No dia 6 de janeiro, a equipe de Quem o Viu? liga para Bolonha,
onde fora enviado o fax. ―Eles disseram que estavam fascinados pela história de
Kipper‖, relata Blissett (1995b, p. 7, tradução nossa) e desejavam cobrir o
desaparecimento do artista. Antes de aceitar o convite de Quem o Viu?, o Blissett de
Bolonha diz ter consultado outros membros de Londres e Friuli103
.
Quatro dias depois, a equipe de TV chega à cidade e consulta o Blissett que
enviou o fax. Ele relata a seguinte história. Kipper esteve em Bolonha de 29 de junho a
8 de julho, até partir para Ancona e Adriatic Riviera. No dia 10 de agosto, chega em
Udine e encontra Piermario Ciani, que sugere ao artista a ideia de traçar a palavra ART
na região de Friuli. Após três dias, Kipper parte de Bertiolo a Pordenone, desenhando o
―A‖. O relato de Blissett à equipe do programa finaliza da seguinte forma:
Duas semanas se passaram antes de ele voltar a Bertiolo, dizendo que tinha
completado a palavra. Entretanto, ao invés de ver isto como um triunfo, ele
parecia triste. No começo de setembro, ele se dirigiu a Trieste. Nós não
103 Os Blissett que entram em contato com a ANSA e com a equipe de Quem o Viu? se passam por
artistas, o que, à época, era credível, visto que tanto o Projeto Luther Blissett quanto a Associação
Psicogeográfica de Bolonha ainda eram desconhecidos do público.
103
ouvimos nada dos movimentos de Kipper até um mês depois que ele ligou
para Stewart Home. Foi então que Stewart ligou para Ciani e para a
Associação Psicogeográfica de Bolonha, e nós começamos a busca pelo
nosso amigo desaparecido (BLISSETT, 1995b, pp. 7-8, tradução nossa)
Ao mesmo tempo em que investiga o desaparecimento, a equipe do programa
passa a suspeitar de que o desaparecimento seja uma performance artística de Kipper,
conforme conta um dos membros, Fiore di Rienzo, a Blissett. A seguir, Quem o Viu?
viaja até Udine, onde outros Blissett confirmam a mesma história já relatada sobre
Kipper. A chegada dos jornalistas à cidade é noticiada pelo Gazzettino de Friuli
(1995)104
em 12 de janeiro.
Após dois dias, a equipe de Quem o Viu? viaja até Londres e entrevista Stewart
Home e Richard Essex105
, membros da Associação Psicogeográfica local. Os jornalistas
também filmam a casa velha de Kipper. No entanto, é nesse momento, quando o
programa estava prestes a ir ao ar, que a farsa é descoberta:
Infelizmente, um correspondente freelancer de Quem o Viu?, vivendo em
Udine, ouviu por acaso uma conversa bêbada106
e concluiu que não apenas o
desaparecimento era uma piada, mas também a existência de Kipper. A
equipe editorial decidiu não arriscar sua reputação e substituiu o programa
anunciado no último minuto. Entretanto, esse movimento foi sem sentido,
porque nós já tínhamos informado a imprensa sobre a pegadinha. O resultado
foram manchetes como Cyber Prank on Chi l’há Visto?, They Made a Fool
of Milella, Searching for Kipper Who Doesn’t Exist!, etc (BLISSETT, 1995b,
p. 8, tradução nossa).
Como dito, apesar da revelação do prank ter acontecido antes do programa ir ao
ar, o caso toma conta dos jornais e acaba ridicularizando o processo de apuração da
equipe de Quem o Viu?. Algumas notícias incluíam a do jornal Il Gazzettino (1995)107
,
de 19 de janeiro, tratando da farsa do reality show e clamando que o Projeto Luther
Blissett é inspirado por teorias situacionistas. Um trecho interessante diz que ―é
impossível encontrar uma mente única por trás dessa fraude‖ (IL GAZZETTINO, 1995,
s/p), o que atesta a dificuldade de se compreender o nome múltiplo, sem saber
exatamente qual identidade culpar. ―Assim, todos nós somos vítimas e acessórios de
Luther Blissett, e ninguém em particular é responsável. É uma coisa que faz você
pensar, Blissett quase penetrou a televisão...‖ (BLISSETT, 1995c, s/p, tradução nossa).
104
Com a manchete ―Chi l‘há visto? in Friuli sulle tracce di Kipper‖, a notícia trata da equipe do
programa chegando à cidade em busca do artista. Informa que uma rádio local também tentou levantar
pistas sobre o paradeiro de Kipper e considera a possibilidade de que o desaparecimento do artista possa
ser uma peça conceitual dele. Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/032_it.html>.
Acesso em: 01 dez 2013. 105
O relato do prank que consta no site inclui o nome de Fabian Tompsett no lugar de Essex. 106
O relato do prank que consta no site não cita ―uma conversa bêbada‖, mas que o freelancer ―ouviu
alguns boatos‖. 107
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/039_it.html>. Acesso em: 01 dez 2013.
104
Da mesma forma, o jornal ressalta que alguns detalhes da história eram verdadeiros,
como as performances psicogeográficas de Piermario Ciani, o que contribui ainda mais
para aumentar a confusão em torno do que é fraude e do que não é.
Dentre outras publicações, a edição do Il Resto del Carlino (1995)108
de 20 de
janeiro chama atenção para o fato de que o programa já tinha sido anunciado para a
semana seguinte e estava prestes a ir ao ar. A reportagem nomeia Blissett de ―hackers‖ e
―jovens piratas‖. Da mesma forma, L’unità (1995) escreve que os Blissett de Bolonha
são pessoas de cerca de 25 anos, especialistas em informática e praticantes de atos de
pirataria. O jornal chega a considerar que enganar Quem o Viu? é uma tarefa
relativamente fácil, dado que o próprio mecanismo do programa é suscetível à
exposição de mitos.
Corriere della Sera109
(1995) informa que é quase impossível de rastrear quem
fez a brincadeira com o reality show, mas que ―há um grupo de jovens que têm um
programa à noite na Rádio‖ que saberiam dizer quem foram os autores. O jornal se
refere à Rádio Blissett e entrevista David, um dos integrantes, que fala sobre as ações
psicogeográficas noturnas realizadas ao vivo com a ajuda dos ouvintes (como a ação do
Ônibus Neoísta). Por fim, declara que seu intuito com os pranks é eliminar a diferença
entre a comunicação e a expressão artística. A reportagem finaliza dizendo que Kipper é
o pai do Projeto Luther Blissett e que em breve eles lançarão uma revista em
quadrinhos. Blissett comenta a notícia publicada no arquivo do site, sublinhando que a
matéria se torna preciosa devido à quantidade de erros absurdos que ela contém e que é
evidente que Giancarlo Martelli (o jornalista que a escreveu) pouco entendeu do
Projeto.
Finalmente, após uma semana de diversas publicações a respeito da fraude nos
jornais italianos, Giovanna Milella, a apresentadora de Quem o Viu?, envia um
comunicado110
à ANSA (1995) no qual reitera que o programa não foi enganado –
embora alguém estivesse tentando fazer isso. A jornalista também afirma que o release
do reality apareceu nos jornais porque é enviado 20 dias antes de ser exibido.
Para Blissett (1995b), este prank é a melhor prova do quão efetivo a tática do
nome múltiplo pode ser. De fato, a sua articulação em rede com os membros de
Bolonha, Udine e Londres mostra-se eficaz, visto que o programa estava prestes a ser
108
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/035_it.html>. Acesso em: 01 dez 2013. 109
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/037_it.html>. Acesso em: 01 dez 2013. 110
Disponível em: <http://www.lutherblissett.net/archive/038_it.html>. Acesso em: 01 dez 2013.
105
veiculado. Ao percorrer as cidades atrás dos amigos de Kipper, Quem o Viu? recorre ao
procedimento de designação do qual trata Charaudeau (2012), a saber, aquele em que se
exibem provas da existência do fato – ou de Kipper, no caso. Isso inclui testemunhas (a
entrevista com fontes) e a utilização, em especial, de imagens (a filmagem da antiga
casa do artista, em Londres). Tal processo legitima a atividade jornalística ao mesmo
tempo em que é inerente a ela. Essa dupla faceta advém de uma matriz racional-
iluminista, ―de onde se origina o habitus profissional do jornalista‖ e que está ―inserida
na cultura popular com ideologias políticas de corte iluminista‖, pautando-se
essencialmente na razão e no progresso (AMARAL, 2005, p. 7).
A postura do rigor científico aplicado ao jornalismo emerge no conceito de
objetividade oriundo dos anos 1930, nos Estados Unidos. A aplicação de um método
que ―comprove a verdade‖111
toma forma devido às desconfianças do público após as
estratégias de propaganda adotadas na Primeira Guerra Mundial. Benedeti (2009, p. 42)
elenca uma série de procedimentos utilizados pelos jornalistas para testar a veracidade
das informações: a seleção dos fatos (através dos critérios de noticiabilidade), a
investigação das informações (através das fontes), a construção dos relatos jornalísticos
(utilização de aspas, detalhamentos, verbos que sugiram impessoalidade), a
apresentação do produto jornalístico (logocentrismo). Como já dissemos, no jornalismo
moderno, esse ideal atrela-se à construção imaginária do profissional jornalista.
Na classificação de Charaudeau, podemos observar que o acontecimento
significado não constrói nenhum exagero em cima do bruto – a equipe de Quem o Viu?
simplesmente apurou as informações e foi atrás de fontes. Ao desvelar o prank, no
entanto, o processo de apuração e os significados atribuídos acabam tornando-se piada e
constituem o acontecimento provocado, quando outros jornais comentam a fraude feita
por L. B.
111
―Tomando o termo objetividade como sinônimo de verdade, criou-se uma verdadeira confusão
semântica, mas que tem raízes bem mais profundas. Essa confusão é produto de uma separação radical
entre o subjetivo e o objetivo. Cada um desses pólos foi tomado como independente e autosuficiente,
numa existência contraditória sem nenhuma unidade, numa mera contradição lógico-formal. Então,
informação objetiva passou a ser aquela que supostamente ‗se atém exclusivamente aos fatos‘, enquanto
que informação subjetiva passou a significar uma adição: os fatos, mais opinião pessoal. Como se as
coisas fossem tão simples. Como se apreensão dos fatos e a formulação abstrata deles na cabeça do
homem, por si só, já não fosse um processo subjetivo. Como se fosse possível ao homem entender (ou
apreender) alguma coisa sem totalizar a partir de conceitos pré-existentes, nos quais a realidade adquire
‗sentido‘, numa complexa atividade subjetiva‖ (GENRO FILHO, 2005, p. 176).
106
Distinção de Charaudeau
Acontecimento bruto
Harry Kipper, artista inglês, desaparece em
Friuli após traçar a palavra ―ART‖ na região
nordeste da Itália.
Acontecimento significado
A equipe de Quem o Viu? entrevista amigos
pessoais de Kipper, que contam em detalhes a
rota feita pelo artista, e chegam a filmar a sua
casa em Londres.
Distinção de Mazetti
Verdade
Não necessita de um discurso para se
legitimar; prescinde da racionalidade para
embasar seus argumentos. Tabela 4: resumo do prank contra Quem o Viu?
Todos os casos analisados tratam-se de pranks de simulação (SALVATTI,
2010), uma vez que imitam determinados aspectos da realidade para enganar seus alvos
(ou seja, a mídia). Blissett se passa pelo assessor da Comunità Incontro, por uma
prostituta soropositiva, por uma dezena de cidadãos que enviam cartas falsas aos jornais
de Viterbo, por um Comitê de fanáticos religiosos e por um mágico ilusionista que não
existe. Outra modalidade de prank citada por Salvatti é o de situação. Neste caso, cabe a
ação do Ônibus Neoísta, uma vez que foi criada uma rave de modo a subverter o que se
espera de determinado ambiente.
Mazetti (2008a, 2008b) considera que a crítica feita pela mídia tática enquadra-
se no que os pesquisadores franceses Cardon e Granjon denominam de crítica
expressivista. Ela se dá em oposição à crítica contra-hegemônica, típica da mídia
alternativa, que se preocupa com questões ideológicas e políticas dos meios de
comunicação. Dentre as pautas dessa corrente, estão a denúncia da função
propagandista da mídia tradicional, questionamentos acerca de alianças da imprensa
com grandes corporações, perseguição das empresas jornalísticas ao lucro.
A crítica expressivista, por sua vez, encontra lugar nas ações de Blissett, e
rechaça o monopólio da fala por especialistas ou profissionais. Sua abordagem quanto à
mídia é processual, uma vez que enfatiza não os resultados concretos das ações, mas o
caminho percorrido. ―O objetivo se torna redistribuir e generalizar a capacidade dos
atores sociais de tomar posse dos meios de simbolização e de representação do seu
mundo social‖ (MAZETTI, 2008b, p. 10). Não se almeja uma reforma do sistema
midiático ou uma transformação do jornalismo para que represente mais fielmente a
realidade, mas, sim, o estímulo à apropriação coletiva da mídia. De acordo com Candon
e Granjon (2003 apud MAZETTI, 2008a, p. 63), o conceito de multidão, desenvolvido
por Hardt e Negri, encontra seu lugar neste tipo de crítica, uma vez que ―se opõe à
arquitetura de dominação e resistência definida pela tradição marxista que dá base à
107
crítica contra-hegemônica‖. Trata-se de singularidades múltiplas que não se vêem
representadas em nenhum formato – e Luther Blissett é, justamente, uma
multiplicidade; uma multidão ao mesmo tempo individualizada pelo anonimato e unida
pela figura comum de L. B.
108
CONCLUSÃO
“Eu sou ele assim como você é ele assim como você sou eu e nós somos todos
juntos” (L. B.)
Neste trabalho, ao identificarmos as táticas antimidiáticas de L. B.,
compreendemos que ele próprio se trata de uma espécie de modus operandi para
subverter a mídia. De tal maneira que o nome Luther Blissett se estrutura enquanto
mídia tática e, para se fazer uso dela, há uma série de operações evidenciadas em nossa
análise – o abandono do lugar de fala, a postura antipoder, o uso do humor, as ações
localizadas.
Ao perpassar conceitos advindos de diferentes matrizes teóricas, mas com
confluências evidentes, podemos perceber as várias dimensões de Blissett. Pode-se
nomeá-lo de inúmeras formas: multidão, trabalhador imaterial, figura do comum,
resistência biopolítica, neoísta, guerrilheiro semiológico.
É multidão, pois se trata de uma identidade aberta que abrange múltiplas
singularidades sob uma figura única. É trabalhador imaterial, uma vez que se baseia na
força da comunicação como modo de organização e articulação. É figura do comum,
pois escapa ao biopoder quando se utiliza da criatividade como forma de resistência
biopolítica. É neoísta, porque se organiza em torno de uma network, permitindo a força
cooperativa entre os trabalhadores imateriais. É guerrilheiro semiológico, uma vez que
não pretende tomar o lugar de fala dos meios de comunicação, mas questioná-los e
experimentá-los através de narrativas que esvaziem o regime de verdade midiático.
Conforme demonstramos na análise dos pranks – o padre Gelmini, a prostituta
soropositiva, a seita satânica e o desaparecimento do mágico ilusionista -, a matriz
racional do jornalismo é posta abaixo. Esse jogo de armadilhas proposto por Blissett
acontece através de ―meias verdades‖, a exemplo da história da peça psicogeográfica de
Harry Kipper no programa Quem o Viu?. Piermario Ciani e Stewart Home realmente
eram artistas que estudavam psicogeografia. Conforme Blissett (2001) escreve, a tática
da desinformação deve se basear em um mínimo de verdade, pois o jornalista precisa
ser atraído pela notícia e entender que chegou até ela por conta própria. ―É preciso
deixá-lo acreditar que tem controle absoluto sobre o material disponível. É necessário,
enfim, explorar sua própria arrogância profissional‖ (BLISSETT, 2001, p. 33).
109
Para tanto, L. B. identifica duas áreas na notícia: o núcleo verificável e a zona de
penumbra. A primeira garante um mínimo de credibilidade para que o jornalista seja
atraído por ela. A segunda, constituída de lendas urbanas, é onde o guerrilheiro
midiático joga com a mídia. É por isso que a ―guerrilha midiática‖ (um modo que
Blissett encontra para nomear o que denominamos de mídia tática) pressupõe que ―é
possível agir dentro do sistema dos meios de comunicação de massa, lutando com suas
próprias armas‖. Portanto, ela não pretende se firmar como uma ―alternativa a‖
(BLISSETT, 2001, p. 27), mas na criação de mitos, de heróis imaginários, de ―Robin
Hoods‖ da informação.
Em um panfleto escrito no ano de 1995 e reproduzido no livro Guerrilha
Psíquica (2001, p. 107), Blissett traz 29 teses sobre o mito da verdade. No item 28,
afirma que brincar com ela e com a realidade significa enganar quem neles crê e,
principalmente, ―estourar uma crise dos critérios que cada um acredita serem infalíveis
a priori‖. L. B. cita como exemplo verdades que são justificadas por serem
racionalmente coerentes e por serem ditas por filósofos ou aparecerem nos jornais.
Blissett, seguindo a outra tradição, a pragmática, pensa, ao contrário, que as
verdades/crenças/visões do mundo não são para serem olhadas, mas para
serem criadas através da recombinação múltipla de fato, teorias, valores (....).
A racionalidade não existe. Nossa análise/ação sempre tem uma pincelada do
que o iluminista anacrônico chamaria de ―irracionalidade‖. É marcada por
crenças, preconceitos culturais, emotividade e escolhas arbitrárias entre
teorias. Entender isso não significa estarmos dispostos a aceitar tudo, a nos
deixar levar pelo ―instinto puro‖, ou pela indiferença generalizada externa a
qualquer análise. Aceitar a nossa contingência e complexidade, abandonando
os dualismos clássicos, não implica uma condenação à imprevisibilidade.
Muito pelo contrário. Simplesmente significa que estaremos interessados na
articulação das formas de vida e da própria vida, na globalidade de seus
aspectos. Significa o oposto: que não estaremos interessados em hipostasiar a
distinção entre ação racional e ação irracional de maneira a isolar a
racionalidade, como se ela fosse um bicho-papão que deve ser abatido com o
fuzil, ou um obstáculo no caminho para a autoconsciência da história. Não é
isso. Negar um componente importante de nossa experiência nos leva a
esconder atrás do dedo reacionário de uma ideologia absolutista.
Estrategicamente, isso é equivalente à pretensão de recusar a religião
substituindo Deus pela Deus Razão (Robespierre ensina...) (BLISSETT,
2001, pp. 110-112).
É necessário reiterar que Blissett não constrói uma nova verdade para contrapor
o sistema midiático: ele abandona o que chama de teoria do Grande Irmão (da obra
1984, de Orwell), refutando a ideia de que os jornalistas seriam os ―desinformantes do
regime‖ (BLISSETT, 2001, p. 28). Vale-se aqui de um novo modo exploratório em
relação à mídia, que culmina na única verdade imposta por Blissett: a mitopoese, a
criação do mito e de figuras que desafiam o racional como modo de se reapropriar da
110
informação e tecer uma narrativa que provoque a queda da mídia a partir dela mesma. O
que se valoriza é o processo percorrido, tal qual enfatiza a crítica expressivista.
A busca por um ―rigor científico‖ na hora de apurar as notícias está ligada à
característica logocêntrica da mídia, ou seja, a ―convicção na ideologia que assume
como própria e a divulga com seriedade, por meio de argumentos racionais e
articulados‖ (MAZETTI, 2008a, p. 86). Em contrapartida, Blissett (2001, p. 108)
articula suas ações de forma bem humorada e considera que ―pessoas racionais não se
permitem brincar‖. Isso, no entanto, não quer dizer que os pranks de L. B. são
puramente nonsenses. Conforme o próprio escreve,
a acusação de querer somente rir é totalmente deslocada, e só demonstra o
grande medo do adversário, que procura de todas as formas sentir-se seguro.
(....) Luther quer preferivelmente infectar a todos, envolver em sua própria
gargalhada também as vítimas, convidando-as a se levar menos a sério e a
mudar suas posturas doentias. Trata-se de uma risada taumatúrgica, de um
vírus que infecta para curar (BLISSETT, 2001, pp. 48-49).
Tal utilização despreocupada do humor também se dá pela falta de um lugar de
fala, de modo que Blissett não precisa se legitimar constantemente. Não é o caso da
mídia alternativa, que busca difundir seus argumentos de forma racional, e, portanto,
apela para a seriedade. Até mesmo a figura do biopoder é ridicularizada por Blissett na
versão extrema e violenta do Comitê para a Salvaguarda da Moral. O pano de fundo
deste prank, bem como o da prostituta soropositiva e o ataque ao padre Gelmini,
originou-se de uma cruzada moral típica do contexto do Império (HARDT E NEGRI,
2012), nos remetendo ao biopoder e suas intervenções justificadas pelo ―direito à paz‖.
Os meios de comunicação (bem como grupos religiosos) auxiliam este processo, em
uma constante retroalimentação que legitima e caracteriza a ―violência consensual‖ do
biopoder. A decorrência dessa natureza parte da defesa pela vida:
para um poder deste tipo, a pena capital é, ao mesmo tempo, o limite, o
escândalo e a contradição. Daí o fato de que não se pôde mantê-la a não ser
invocando, nem tanto a enormidade do crime quanto a monstruosidade do
criminoso, sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São mortos
legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para
os outros (FOUCAULT, 1988, p. 130)
No caso de Viterbo, os caçadores de satanistas representam perfeitamente a ideia
da defesa pela vida, e o apoio midiático é notório pelo fato de que Corriere não
questiona as contradições ideológicas e o fanatismo religioso evidentes do grupo. Além
disso, o veículo publica praticamente todas as cartas que são enviadas pela Co.Sa.Mo e
acredita na existência do Comitê mesmo depois que a peça é desvelada.
111
Um aspecto que pudemos observar nos pranks foi a constante dúvida dos
jornais: afinal, quem é Luther Blissett? Como cobrir um caso em que não se sabe quem
punir? A renúncia à identidade própria – todos e ninguém são Blissett – funciona
justamente porque L. B. compreende a necessidade da cobertura midiática em dar nome
aos bois. E, na falta de uma classificação, criam-se ainda mais nomenclaturas para a já
vasta coleção de Blissett: piratas da Internet, terroristas midiáticos, hackers.
O suicídio coletivo que finaliza o Projeto ocorre em 1999, ano dos protestos em
Seattle. No entanto, Blissett não deixa de existir e ainda ganha novos nomes: os
manifestantes que foram às ruas passam a ser denominados ciberpunks pelo ―jornalismo
das velhas mídias‖ (MALINI E ANTOUN, 2013). Quase 20 anos depois, no auge dos
protestos de junho de 2013 no Brasil, os detentores deste mesmo espírito foram
rotulados de vândalos, baderneiros, punks, black blocks.
Trata-se de manifestações em redes, descentralizadas, sem líderes. Elas não
foram feitas por um inimigo imaginário chamado Facebook. Tampouco pela figura
invisível de Luther Blissett. Foram feitas por pessoas, simplesmente. Por muitas e
variadas singularidades. Eis um desafio pré-Luther Blissett, com mais de 20 anos, que
volta com ainda mais ênfase ao jornalismo em 2013: como enquadrar tantas diferenças
sem cair na armadilha de procurar o nome perfeito (ou a acusação perfeita) para
caracterizar um fenômeno que constitui-se, eminentemente, contra a imposição de
identidades?
Portanto, deveríamos falar, mais corretamente, de nome expropriado. As
recaídas reais são as de não podermos ser outros a não ser nós mesmos (nós
mesmos quem? Aqueles com nome e sobrenome, obviamente), quando, na
realidade, é cada vez mais necessário escancarar as identidades próprias para
colocá-las em comunicação entre si: é o sistema midiático que impõe isso,
sob pena de ficarmos excluídos do mundo. Deve ser fortemente reivindicada
a possibilidade do uso de um nome impróprio, um nome do qual se apropriar
ocasionalmente, com uma finalidade específica (justamente como uma arma
imprópria). Considerar a possibilidade de um nome que, como as nossas
identidades, seja externo a nós, objeto fluido de posse de alguém – somente
de quem o quer – mesmo que só por um instante, mesmo que só por uma vida
(BLISSETT, 2001, p. 71, grifo do autor).
E se essa capacidade de nomear – que é uma forma de exercer o controle através
do poder – pode também gerar cruzadas morais, o jornalismo precisa estar atento à
importância de sua palavra. Ainda existem muitos ―caçadores satanistas‖ a serviço das
artimanhas do biopoder. Mas, em contrapartida, também há prostitutas, rituais
comicamente satânicos e artistas desaparecidos. Há vida, enfim.
112
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