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“Hoje mesmo ouvi os evóréhj assoviando”:
O lugar dos espíritos na socialidade Ikólóéhj após 50 anos de adesão
ao cristianismo protestante1
Lediane Fani Felzke PPGAS/DAN/UnB/Brasília
Palavras-chave: Ikólóéhj-Gavião; cosmologia; cristianização.
Conversa inicial
Minha proposta neste texto é compartilhar dados etnográficos de treze meses de
pesquisa de campo entre os Ikólóéhj a partir de um recorte específico, qual seja, a
presença, na vida ordinária, de alguns dos seres intangíveis que povoam às dezenas sua
cosmologia, a despeito do virtual desaparecimento das festas e dos rituais xamânicos
que invocavam outrora a presença de alguns deles. Outros rituais estão atualmente em
andamento na terra dos Ikólóéhj. Trata-se das festas da Igreja Evangélica Gavião que há
cerca de dez anos associou as danças, antes circunscritas às festas tradicionais – como
meus interlocutores nomeiam os rituais ancestrais – aos cultos cristãos.
Em janeiro de 2015 houve uma grande festa na igreja que se estendeu por vários
dias para comemorar os cinquenta anos de evangelização dos Ikólóéhj pelos
missionários protestantes da New Tribes Mission (NTM)/Missão Novas Tribos do
Brasil (MNTB). Os momentos mais esperados pelos presentes – além dos Ikólóéhj, os
convidados Arara, Zoró, Suruí, Wari’ e também brancos2 – eram as danças quase
ininterruptas ao som de guitarras, violões e teclados e de vocalistas cantando hinos
cristãos compostos nas línguas nativas. Tais danças, executadas em círculos, com
coreografias similares às festas tradicionais, se estenderam, por vários dias, até o
amanhecer.
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. Agradeço à FAP-DF ao financiamento para participar deste evento.
2 Missionários de outras regiões do país e representantes dos órgãos públicos que atuam nas aldeias, tais como FUNAI e SESAI.
“Somos um povo festeiro”, me explicou um antigo líder da igreja e um dos
principais promotores das danças. Depois de quarenta anos de condenação da ibala3
(festa/dança) pelos missionários, o festejar com danças nas datas cristãs mais
importantes, como o Natal, repercutiu no crescimento exponencial dos frequentadores
da igreja, ao menos nas épocas próximas aos festejos. A festa deixou o terreiro da aldeia
e passou a ser executada no templo. Tal deslocamento provocou outros dois
movimentos, de um lado, a majoritária adesão ao circuito da igreja com conversões
abundantes e de outro, o desinteresse pela manutenção das festas tradicionais que desde
então não foram mais praticadas. Dito de outra maneira, apesar de cinquenta anos de
pregação protestante, foi a transferência das festas do terreiro – com a presença do xamã
e o consumo de ì sòhn4 – para o templo – sem xamã e sem bebida – que possibilitaram
nos últimos dez anos, após inúmeras fases de conversão e abandono, característico da “inconstância” ameríndia (VIVEIROS DE CASTRO, 2011), uma ascendência
significativa da atuação da igreja na vida dos Ikólóéhj.
Se Vilaça (2000) fala da escolha do corpo como lugar de expressão de uma
dupla identidade, branca e indígena, eu acrescentaria que além do corpo, que ocupa
posição central na concepção de humanidade dos ameríndios (SEEGER et.al., 1979), as
organizações que atuam com os indígenas constituem um importante locus de expressão
dessa dupla identidade. Ou ainda, de uma gradação de posições entre o “ser branco” e o
“ser índio” como observou Kelly (2005) em relação ao aparato estatal de saúde entre os
Yanomami do Orinoco. Neste termos, a igreja, tal como a saúde indígena, a educação
escolar, e outros espaços, é um destes locus. Poderíamos pensar então que esta festa
constitui um espaço-tempo de experimentação ou “laboratório” como chamam Calávia
Sáez e Arisi (2013), em que os Ikólóéhj estabelecem os limites do que eles estão
dispostos a abrir mão na sua indianidade para acessar aspectos do “ser branco”.
A presença dos habitantes dos planos cósmicos (celeste, terreno e subaquático)
no quotidiano é outro aspecto do qual os Ikólóéhj não estão dispostos a abrir mão, a
despeito do esforço missionário em associar estes seres a demônios. Este tempo de
convivência e aprendizado sobre o cristianismo; a atribuição, pelos missionários, de
estatuto diabólico aos seres intangíveis do universo Ikólóéhj; e a demonização do
3 Ibala: em Gavião significa ao mesmo tempo dança e festa. Para os Ikólóéhj são sinônimos, não existe festa sem dança e, até as festas terem sido inseridas no contexto da igreja, não havia ibala sem a bebida alcoólica feita de mandioca, milho ou cará.
4 Ì sòhn: também chamada de macaloba azeda, bebida alcoólica produzida com milho, mandioca ou cará. É considerada o vetor da alegria nas festas tradicionais e proibida nas festas da igreja por ser considerada pecaminosa.
2
xamanismo e seus agentes, os vaváhéj5; não conseguiram obliterar a presença e a
interferência desta gente – como chamam os espíritos – na sua vida ordinária, como
veremos na sequência de forma mais detalhada. Antes apresento um pouco sobre os
Ikólóéhj e seu universo cosmológico.
Um breve histórico dos Ikólóéhj
Os Ikólóéhj, habitantes seculares das bacias dos rios Aripuanã, Roosevelt e
Branco (MT e AM) vivem, a partir dos primórdios do contato com os brancos, nos anos
1940, entre a Serra da Providência e o rio Machado (RO). Não há como precisar, mas há
centenas de anos, os grupos familiares empreenderam um deslocamento pra o sul depois
de serem impedidos pelos povos do médio Rio Madeira de seguirem ao norte. Os
deslocamentos encerraram-se quando atingiram a margem esquerda do rio Machado,
tributário do rio Madeira.
Desde 1976, quando teve início a demarcação, a terra que habitam e dividem
com o povo Arara6, é chamada Terra Indígena Igarapé Lourdes, constituída por 185.533
hectares e homologada pelo decreto nº. 88.609 de 09/08/1983. Atualmente são 742
pessoas que residem em 17 aldeias, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (SESAI) de 2016, embora nem todas sejam Ikólóéhj, pois são inúmeros os
casamentos com Zoró e Arara7. Falantes de uma língua do tronco linguístico Tupi, da
família Mondé, compõem juntamente com Aruá, Cinta-Larga, Suruí e Zoró, além dos
grupos Salamãy e Mondé hoje extintos, o que é conhecido na literatura especializada
como povos tupi mondé.
Pouco conhecidos da literatura etnológica ainda hoje, os Ikólóéhj entraram para
o rol de indígenas do Brasil como povo Digüt a partir em um artigo de autoria de Harald
Schultz, primeiro etnógrafo a visitá-los, publicado em 1955 no “Journal de la societé
des Americanistes”, periódico francês. Tal etnônimo constituiu-se em mais um
equívoco, como os milhares que grassam as fontes históricas e etnológicas sobre os
indígenas desde a colonização, mas que foi corrigido nos anos subsequentes. Schultz
nomeou o grupo acampado próximo aos seringais do rio Machado com o nome de seu
5 Vaváhéhj: xamãs, pajés no coletivo. Individualmente são chamados vaváh.
6 Povo da família linguística Ramarama, do tronco Tupi, perfazem um total de 358 pessoas que habitam
11 aldeias. 7 Mais recentemente, através das atividades da igreja, vários casamentos tem se constituído entre Ikólóéhj e Paiter Suruí.
3
chefe, Digüt (Sorabáh Diguhr), embora os regionais já identificassem aqueles índios
como Gavião. Desde então, raras foram as pesquisas a seu respeito.
Os “mais velhos”8 explicam que suas malocas se localizavam, desde tempos
imemoriais, à margem esquerda do rio Branco (MT) e seus tributários. Eram vizinhos
dos Pangyjej (Zoró) e próximos dos locais de perambulação dos Paiter Suruí e Cinta
Larga. A aproximação com estes grupos, e as consequentes guerras provenientes daí,
fez com que os Ikólóéhj se afastassem do rio Branco e procurassem locais mais seguros
no vale entre este rio e a Serra da Providência. Estima-se que este deslocamento tenha
se iniciado nas décadas iniciais do século XX. Quando principiaram sua inserção no
mundo dos brancos, suas aldeias estavam estabelecidas na face leste da Serra da
Providência, região que hoje é conhecida como Vale da Providência.
Às visitas constantes aos seringais nas margens do Machado seguiram-se visitas
de seringueiros, caucheiros e forasteiros às aldeias na Serra da Providência. O contato
com os brancos se intensificou nos anos seguintes e com ele se avolumaram os casos de
sarampo e tuberculose. Muitas mortes são relatadas neste período, entre os anos 1940 e
1960. As desejadas mercadorias dos brancos foram obtidas inicialmente pelos trabalhos
realizados no Seringal Santa Maria. Até que algumas famílias foram convencidas a sair
da Serra da Providência para se estabelecer nas proximidades do rio Machado, mais
próximo aos seringais, com a promessa de acesso fácil às mercadorias dos brancos,
inclusive remédios.
As famílias dos Zavidjajéhj9 abriram e fizeram suas malocas às margens do
igarapé Lourdes, tributário do rio Machado. Foram nessas aldeias que em 1965 os
missionários da NTM encontraram algumas famílias. Em uma entrevista concedida a
Nóbrega (2008), um destes missionários relembrou esta viagem:
Em janeiro de 1965 fizemos a primeira visita ao povo Gavião, que contavam naquele tempo com 97 pessoas, no total. Hoje é seis vezes esse tanto, mais ou menos. Multiplicou seis vezes. Antes
desse tempo, foi um povo dizimado pela gripe, sarampo, tuberculose. Matou muito. Realmente
chegamos tarde. Mas pelo menos a tribo não foi extinta e está crescendo muito hoje10
.
A data 25 de janeiro é comemorada todos os anos pela igreja indígena como o
dia que a palavra de Deus chegou até nós. Por mais de quarenta anos um mesmo casal
8 “Mais velhos” trata-se de uma categoria nativa que diz respeito aqueles que detém os conhecimentos ancestrais. Fui orientada pelos Ikólóéhj a buscar informações junto aos “mais velhos” durante minha pesquisa de campo.
9 Chefes/donos de maloca.
10 Entrevista concedida à pesquisadora da UNICAMP, Renata Nóbrega, em 2007, por ocasião da sua pesquisa sobre a construção da barragem P-14 no Rio Machado que foi impedida pelos índios. Sua pesquisa resultou na Dissertação de Mestrado em Sociologia, “Contra as invasões bárbaras, a humanidade” defendida em 2008.
4
de missionários pregou a palavra de Deus para os Ikólóéhj. Na maioria dos casos houve
uma acolhida amistosa das missões protestantes que se estabeleceram entre os indígenas
no Brasil desde a década de 1940 e entre os Ikólóéhj não foi diferente. Diante da
fragilidade que este povo se encontrava em decorrência dos surtos de sarampo e
tuberculose causados pelo contato interétnico, a possibilidade de cuidados por parte de
brancos que conheciam as doenças frente as quais os rituais do xamã, o vaváh não surtia
o efeito desejado, foi bem recebida.
Não estou sugerindo que a “conversão” ao cristianismo tenha ocorrido por
motivos unicamente conjunturais. Vilaça (2008, p.190) chama atenção para isso ao
afirmar que “os modelos explicativos da conversão, que entendem o interesse pelo
cristianismo como consequência das perturbações na visão de mundo decorrentes do
contato com o Ocidente [não são] adequados para se pensar essa questão”. No caso
Ikólóéhj, outros fatores, como o desejo de aproximação do mundo dos brancos, a
possibilidade de acessar os códigos deste mundo através dos ensinamentos dos
missionários, as homologias entre o cristianismo e sua mitologia, entre outros,
interferiram a permanência da missão. Esta permanência, no entanto, não foi
ininterrupta.
O cosmos e os vaváhéj (xamãs)
O universo dos Ikólóéhj é fascinante, além do plano terreno, é composto por
outros dois planos, o celeste e o subaquático, que, assim como a terra, são povoados por
muita gente, demiurgos, espíritos-donos, espíritos auxiliares dos xamãs e pelas almas
dos mortos. Nos tempos míticos, havia livre trânsito dos humanos entre a terra e o
mundo celeste, mas a quantidade de pessoas que desejavam ir para o céu era muito
grande e Gorá, o criador, receoso de que a terra se esvaziasse, cortou a escada que fazia
esta ligação. A partir daquele momento apenas os vaváhéj e seus aprendizes passaram a
viajar para estes lugares estabelecendo e atualizando relações com seus habitantes.
Os xamãs “são os viajantes por excelência” (CUNHA, 2009, p.106) e esta
propriedade está relacionada a “um aspecto mais amplo do xamanismo” como nos
informa Langdon (1996, p.42) “que consiste numa particular concepção da
comunicação entre as diferentes esferas do universo”, concepção esta da qual os Ikólóéhj compartilham. Nestas esferas, que chamo de planos, os xamãs buscavam as
almas roubadas dos doentes, convidavam para festas, apresentavam reivindicações,
5
tantos dos seus parentes para os demiurgos e espíritos-donos quanto destes aos
humanos. Utilizo os verbos no pretérito porque, segundo algumas pessoas, não há neste
momento vaváhéj dispostos a cumprir seu papel. Os poderosos xamãs partiram para
morar com suas famílias celestes e o único que ainda vive e completou seu aprendizado
tornou-se crente11
e não realiza mais rituais, ao menos publicamente. Em função disso,
as festas tradicionais que demandam a intermediação do vaváh estão em suspenso.
No plano subaquático (chamado de I) fica a morada dos Gojánéhj, os “espíritos
das águas”, seres materializados pela chuva, pelos trovões, pelo arco-íris, pelos lagos,
pelos rios, pelos igarapés, pelas águas subterrâneas, pelo mar e por alguns animais que
vivem ou possuem alguma relação com ambientes aquáticos (grandes peixes de pele,
jacarés, antas, capivaras, entre outros). “Tudo isso é Goján” afirmou Sebirop, cacique
dos Ikólóéhj e um de meus principais interlocutores.
Conta o mito que uma jovem indígena engravidou de um ovo de pássaro
gojánéhj e pariu o arco-íris e Maloloa, o Goján, que passou a ser o chefe. Os Gojánéhj
são, portanto, afins dos Ikólóéhj. Devido a sua relação com uma mulher humana, Goján
criou o milho para alimentar sua mãe/mulher e seu irmão/filho. As grandes águas (o
mar, os lagos e os rios caudalosos) se formaram a partir do dilúvio provocado por
Maloloa. Este ao visitar seus genros, humanos casados com suas filhas, fora maltratado
pelas outras pessoas da aldeia. Deste dilúvio salvaram-se apenas suas filhas e os genros
humanos que se recusaram a falar mal dele. Goján provocou o dilúvio primordial e
poderá voltar a fazê-lo e por isso é especialmente temido. Ao mesmo tempo, por ser ele
o doador do milho, a fartura deste grão está diretamente relacionada à frequência de
contra-dádivas oferecidas pelos índios através da festa dos Gojánéhj que se realizava
quando da primeira colheita do milho verde, entre dezembro e janeiro. “Goján sempre
quer ver como estão seus filhos [o milho]”, me disseram.
A aliança dos Ikólóehj com os Gojánéhj é carregada de ambiguidades. Ao
mesmo tempo que os espíritos das águas são importantes e necessários para a vida, são
temidos pois podem provocar o fim da humanidade. Muitas doenças também são
atribuídas ao não cumprimento das regras de etiqueta em relação a eles. Um exemplo
muito citado é o das mulheres que, estando menstruadas, banham-se nos igarapés. Esta
era, e continua sendo, uma ofensa gravíssima ao senhor das águas, podendo gerar, além
11
Embora não constitua objeto de análise deste texto, gostaria de registrar que há um equívoco
(VIVEIROS DE CASTRO, 2004), ou mesmo, um não entendimento interétnico (RAMOS, 2014), em torno das categorias “crente” e “conversão”. O que os Ikólóéhj entendem sobre ser “crente” e ser “convertido” distingue-se sensivelmente do entendimento missionário.
6
de doenças, crianças mal formadas. Os Gojánéhj desejam as mulheres Ikólóéhj e podem
manter relações sexuais com aquelas que, por alguma razão, de descuidam e ferem as
regras. Tais relações resultam em filhos dos outros, dos espíritos.
Crianças pequenas, até dois anos aproximadamente, cujo tìh, que traduzo aqui
por alma12
, ainda não está suficientemente afixado ao corpo também não devem ter
contato com os igarapés. Interdições alimentares como comer surubim, “a poltrona de Gojánéhj”, e outros peixes de grande porte, devem ser seguidas por crianças e jovens.
O plano terreno, onde residem os Ikólóéhj, é conhecido como goj (terra) ou gala
(floresta) e é local potencialmente perigoso. A floresta é habitada por muitos seres que,
assim como os Gojánéhj, podem fazer mal aos humanos, mas também é a casa do
grande aliado dos índios, Zagapóhj, conhecido como o supremo xamã, guia e protetor
dos vaváhéj e das pessoas comuns13
.
Quando alguém adoecia, uma longa negociação do vaváh com Goján tinha lugar
nas profundezas das águas, com intermediação de Zagapóhj, para trazer o tìh do
enfermo de volta. É ele que conhece o caminho e é considerado como “Ikólóéhj néákin [aquele que Gavião vê] porque é conhecido nosso desde tempos antigos”.
Por fim, o plano celeste (Garpi) é a morada dos Garpiéhj Tìh, os espíritos-donos;
dos Olixixia, espíritos auxiliares dos vaváhéj; de Gorá, o demiurgo criador que se
afastou de sua criação e mora na aldeia mais distante do céu, praticamente inacessível;
de Goján Gihr, o Goján celeste, grande peixe que luta para não ser derrubado na terra
pelos páhxoéhj; e dos Páhxoéhj, almas dos mortos que vivem em sua aldeia celestial e
sobre as quais falaremos adiante. O vaváh, que atualmente é crente, explicou como os
Garpiéhj Tìh agem em favor dos humanos contra os povos sor, (lit. feios) do mundo
subaquático e do plano terrestre:
O vaváh não andava só em um lugar, o vaváh viajava para o Djàvpè Tìh, depois viajava para o
Ìhv Ákabéa, Ìhv Kósòhr, estes são maus. Gojánéhj [espíritos das águas], Djàvpè Tìh [espírito da
taboca], Ìhv Ákabéa [espírito da árvore], Ìhv Kósòhr [espírito gago que balança nas árvores],
Zagapóhjóhv, são estes que são maus [sor] mesmo, e outros. Só tinha uns bons, nossos
conhecidos de antigamente, são os Garpiéhj, são eles que vinham se manifestar contra eles [os
maus], chegavam e diziam [para eles]: ‘o que vocês estão fazendo? Vivam quietos’. Acontece
mesma coisa com a gente hoje, nós não sabemos, não percebemos o que acontece com a gente
hoje, ontem eu ouvi assovio dos evòréhj [os protetores, Olixixía], só pessoa que sabe é que
entende, sabe o que está acontecendo.
12 Que está relacionado com “princípio vital”, “consciência”, “grandeza”, “grandiosidade”, “capacidade especial”, “dom”. Por fim, é algo do universo do intraduzível, tal qual o Iwa dos Yudjá (LIMA, 2005) que se assemelha a tradução “dono”, uma aplicação possível para o Tih dos Ikólóéhj e que incorpora algo como “capacidade criadora e organizadora”.
13 Como meus interlocutores chamam todos que não possuem dons xamânicos.
7
Emblemática é esta última frase do vaváh, que nos informa que estes espíritos
protetores ainda vigiam e cuidam dos Ikólóéhj. Retomaremos este aspecto adiante. Por
ora é interessante registrar que, enquanto conversávamos sobre as viagens do vaváh em
um fim de tarde, sob as árvores do terreiro de sua casa, um trovão retumbou ao longe, e
ele avisou, “é Goján Gíhr”, lutando com os páhxoéhj que querem derrubá-lo à terra para
provocar o dilúvio derradeiro.
Além das viagens dos xamãs, era através das festas que os humanos mantinham
relações com alguns dos seres habitantes dos outros planos. A festa dos Gojánéhj, que
tinha lugar na primeira metade da estação chuvosa garantia a fartura de milho e
acalmava Goján, assegurando, assim que o tempo chuvoso, do dono das águas, seria
breve. O Garpiéhj Náe – a festa dos seres do céu – por sua vez, era realizada em
princípios da estação seca para reivindicar aos donos das queixadas, os Garpiéhj Tìh14
que trouxessem suas “criações” para os humanos. Estes seres compareciam na aldeia
para beber, comer, cantar e dançar com os Ikólóéhj. Se as regras de etiqueta fossem
seguidas a contento, haveria caça abundante durante o período seco, “o ano dos
Ikólóéhj” como informou o professor Iram Kahv Sona15
(2015) contrapondo este
período ao tempo chuvoso, “o tempo em que os Gojánéhj estão por toda a parte”.
Os xamãs viajavam até o Garpi igualmente acompanhados por Zagapóhj. Lá,
assim como nos Gojánéhj, há muitas festas. As ibala com ì sòhn, comidas e mulheres
sedutoras estão disponíveis nas inúmeras aldeias que compõem o céu, mas em especial
na aldeia Ixía Népo Tóhr, onde vivem os Olixixia, espíritos auxiliares dos rituais de
cura. Estes espíritos passaram a compor o cosmos depois que os vaváhéj aprenderam a
conhecê-los com os xamãs Arara e a aproximação foi tão intensa que alguns vaváhéj
casaram-se com mulheres Olixixia. O caso mais emblemático que me foi relatado é o do
vaváh póhj (grande xamã) Xípo Ségóhv. Ele casou com uma mulher-espírito chamada
Nabùv e com ela teve dois filhos homens Djerén e Raeg e uma filha chamada Vivino.
Os quatro visitavam a aldeia para curar os doentes durante as sessões de pajelança que
ocorriam frequentemente entre os anos de 1970 e 1980. Dezenas são os depoimentos de
pessoas que viram e foram curadas pela família Olixixia de Xípo Ségóhv. A inovação
deste vaváh reforça “a capacidade aparentemente inesgotável do xamanismo de
incorporar elementos oriundos de outros horizontes culturais e de transformá-los
14
Nome genérico de diversos donos, tais como: Korkoróh Tìh (espírito do gavião real), Bebeéhj Tìh (espírito das queixadas), Majakóh Tìh (espírito do urubu rei), todos eles criadores das queixadas celestes. 15
O professor Iram Kav Sona Gavião formou-se em Licenciatura em Ensino Básico Intercultural pela Universidade Federal de Rondônia com o TCC intitulado “Festas tradicionais do povo Ikólóéhj Gavião”.
8
segundo seus critérios, e neste processo, de autotransformar-se também” (BRUNELLI,
1996, p.253).
Em diálogo com o cacique Sebirop, ele revelou que recentemente havia
conversado (em sonho) com o falecido Xípo Ségóhv e confirmou que “ele nem foi pro Gojánéhj e nenhum outro lugar, ele tá lá no Ixía Népo Tóhr com o filho dele, o Djérén,
ele não pensou de viajar pra nenhum outro lugar, ele é o chefe lá no Ixía Népo Tóhr”.
Além desta gente, inserida em tempos mais recentes no arcabouço cosmológico
ikólóéhj, os Zerebajéhj, entes terrenos, considerados outrora feiticeiros maléficos,
tornaram-se os espíritos auxiliares de outro importante xamã, Alamàh, e de seus
aprendizes quando da sua iniciação xamanística nos anos 1980. Estes mesmos xamãs,
de capacidade ilimitada para se relacionar com quaisquer seres da natureza,
encontraram, durante suas viagens ao Garpi, o próprio Jesus Cristo que se tornou assim
ikólóéhj néákin, aquele que os Ikólóéhj veem, enxergam.
Ainda no Garpi está a aldeia dos mortos, Páhxoéhj. Para esta aldeia se
transferem uma das almas do falecido, o páhxo. Para compreendermos melhor é preciso
saber como meus interlocutores entendem o mundo dos mortos. A pessoa, enquanto
viva, possui tìh, de difícil tradução como sublinhei acima. Quando o tíh deixa o corpo
(pazérégáhv), também traduzido como “couro”, se divide em três “almas”: uma delas é
o espectro que permanece no plano terrestre (páhxo á ou dindìnà) e que é
potencialmente maléfico; outra é alma considerada verdadeira (pàágóhkàhv) que alguns
dizem ser o próprio tìh do falecido e que passa a habitar o plano subaquático, na aldeia
dos Gojánéhj onde há festas e danças ininterruptas; e, por fim, a alma que vai habitar o Garpi, páhxo (que não deve ser confundido com o páhxo á ou dindìnà) e cujo propósito
é arrancar Goján Gihr do seu lago como já apontamos. “Tudo é alma”, ou “é a mesma
alma” explicaram várias pessoas adeptas ao protestantismo. De fato, “tudo é alma”, mas
foram nas conversas detalhadas com os especialistas, o vaváh, seus aprendizes e os “mais velhos”, que compreendi não se tratar de uma mesma alma e que seus destinos
póstumos são distintos.
Mas voltemos aos páhxo. Como aludimos brevemente acima, estes,
inconformados com a separação do mundo dos vivos e saudosos dos parentes, tentam,
em vão, “pescar” Goján Gihr e derrubá-lo ao chão. As tentativas provocam reações
violentas de Goján. Tais reações são vistas pelos humanos como trovoadas e
relâmpagos como havia alertado nosso interlocutor.
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O pàágóhkàhv, por sua vez, parece viver tranquilo e conformado no mundo
subaquático. O ambiente paradisíaco, afinal repleto de danças, os fez esquecer dos
parentes que ficaram na terra. Por fim, o páhxo á, também chamado de dindìnà, é um
ente muito temido pelos Ikólóéhj. É a sombra do falecido que fica aqui na terra, junto às
suas coisas, aos seus parentes, aos seus lugares, conforme nos ensinou o vaváh:
O páhxo de verdade vai lá pra cima, o páhxo á fica aqui, esse é ruim, não presta mesmo, fica por
aqui, é perigoso, a gente anda na escuridão, na chuva, aí a gente passa no lugar onde dindìnà
passou, a gente pega choque dele, aí adoece, qualquer doença, febre. Ele entra lá dentro da casa e
pega comida. Se ele pegou macaloba [bebida] antes da gente tomar, a noite, e a gente toma
macaloba na manhã seguinte, fica ruim. Se seu marido morre e se você quiser ficar na casa dele,
você mora, porque o pajé chega lá e fala com dindìnà do seu marido, ‘você não pode fazer mal
não’. Você mora lá e o pajé manda ele embora, ele fica andando com você onde você for,
quando for dormir, quando for na casa do outro. O pajé acha ruim e manda o dindìnà embora, aí
ele não faz mal. Antigamente a gente não enterrava parente no mato quando morria, não
enterrava fora da casa, no mato, no terreiro, enterrava na maloca mesmo, a gente comia, tomava
macaloba, não fazia mal porque o pajé já conversou com ele pra não fazer mal ... a mulher fica
tranquila, não adoece. Era assim que a gente fazia antigamente porque o pajé cuidava da gente.
Hoje em dia não tem isso não. Era o pajé que cuidava o páhxo á e o dindìnà pra não fazer mal
pras pessoas, filho, mulher, pai, mãe, irmãs, ele falava pra não fazer mal pros parentes e páhxo á
respeitava o pajé. Mas os parentes também não podem falar nome de quem faleceu, tem que
esquecer... o páhxo á escuta a gente falar o nome dele, e ele pensa ‘eu vou lá’, já que ele tá
falando meu nome, ‘pra eu levar ele comigo’. Por isso mesmo que Gavião não fala o nome do
finado. A gente tem medo, respeita.
Entendi, durante esta explicação, que a insistência em enterrar os mortos na
cidade, longe da aldeia, está relacionada a atual ausência de xamãs capazes de lidar com
o páhxo á do falecido. A presença do corpo na aldeia, no ambiente em que a pessoa
circulava, deixaria a todos mais suscetíveis. A mesma razão leva aos familiares do
falecido e deixar a antiga residência, desmanchá-la e destruir seus pertences. Sebirop já
havia explicado que em tempos pregressos a maloca era destruída apenas por ocasião da
morte de seu zavidjaj. Os demais moradores eram enterrados no chão da própria zav e,
como confirmou nosso entrevistado, era o vaváh que mantinha o lugar em segurança
controlando a agência do páhxo á.
Espero ter conseguido, em poucas linhas, embora de forma um tanto quanto
simplificada, expor alguns dos principais tópicos da cosmologia que, como veremos a
seguir, ainda operam na socialidade Ikólóéhj.
Os ensinamentos protestantes e a cosmologia
A partir da instalação dos missionários na aldeia, os Ikólóéhj passaram por
diferentes fases de relacionamento com eles e com o próprio evangelho. Estas fases se
alternaram entre a conversão quase unânime (anos 1960) e o abandono igualmente
10
quase consentâneo (década de 80) após a expulsão dos missionários (1979); a
solicitação para seu retorno à aldeia (1992) e a adesão massiva depois da implantação
das festas na igreja (ente 2006 e 2007); a alta frequência nos dias que antecedem as
festas e a sensível redução de participantes nos dias seguintes aos festejos; ou seja,
relações dinâmicas operam desde o princípio da atuação da NTM/MNTB.
Os atuais missionários indicam os anos de 2006/2007 como o “divisor de águas”
do trabalho evangelístico. E foi de fato. Como apontamos acima, neste período as
danças – bem como as pinturas corporais, os adornos plumários e os colares de contas
de tucumã – que a princípio eram vistos como inapropriados e pecaminosos, por
estarem associados aos Gojánéhj e Garpiéhj Tìh, foram introduzidas nas celebrações
mais importantes como uma manifestação de adoração ao Deus cristão. Os cultos da
igreja nas datas especiais passaram a ser chamados de festas.
No Natal de 2013, entre os dias 21 e 26 de dezembro, cerca de oitocentos índios,
não apenas Gavião, mas Zoró, Arara, Suruí e cinquenta Wari’ da aldeia Rio Sotério (Terra Indígena Pacaás Novos) de Guajará Mirim reuniram-se na aldeia Ikólóehj.
Naqueles dias cantaram, oraram e dançaram todas as noites ao som dos “grupos de
louvor” indígenas. As canções foram entoadas nas línguas Gavião, Zoró, português e Wari’. As danças em círculo e o chocalho no tornozelo de alguns homens se
assemelham às danças realizadas com as flautas totorav, instrumento utilizado nas
festas tradicionais. Ao comentar com alguns indígenas a semelhança com as danças das
festas tradicionais recebi a afirmativa: “é isso mesmo, essa é a ideia”.
Se em um sentido, os Ikólóéhj passaram a se relacionar com o Deus cristão em
seus próprios termos, ou seja, dançando, homologamente ao que faziam com os Garpiéhj Tìh e com os Gojánéhj, em outro sentido, a ausência de ì sòhn configura-se no
principal diacrítico entre as festas. Na última de que participei, em comemoração aos
cinquenta anos de evangelização, as pregações dos missionários e indígenas enfatizaram
a ruptura dos Ikólóéhj com o modo de vida “de antigamente”, com os rituais dos
vaváhéj. Um dos pregadores indígenas afirmou que seu povo vivia sob o domínio de
Satanás e de seu servo, o vaváh, quando a palavra de Deus chegou. Diferente das
entrevistas dirigidas a mim em particular, que valorizavam os vaváhéj, este discurso,
realizado para um grande público, com várias etnias e brancos presentes, demarcou o
posicionamento de alguns crentes, especialmente daqueles que ocupam posições de
prestígio na igreja, que são líderes. No decorrer da festa, várias falas associaram os
11
espíritos Gojánéhj e outros seres ao diabo. “Hoje os Gavião sabem que não precisam ter
medo dos Gojánéhj” porque “Deus é mais forte”, repetiram os oradores.
A identificação dos entes das cosmologias ameríndias, dos xamãs e dos rituais a
entidades e práticas diabólicas é o padrão da empresa evangelizadora, tanto das missões
católicas anteriores ao Concílio Vaticano II, quanto dos protestantes. Nas situações de
contato sob influência missionária são incontáveis as situações homólogas, que vão
desde o desprezo sistemático até a perseguição odiosa aos xamãs. Em um recorte
limitado aos grupos alcançados pelo proselitismo protestante nas terras baixas sul-
americanas, temos as experiências dos Waiwai (HOWARD, 2002; QUEIROZ, 1999),
dos Baniwa (WRIGHT, 1999), dos Tiriyó (FAJARDO, 1999), dos Waiãpi (GALLOIS
& GRUPIONI, 1999) dos Palikur (CAPIBERIBE, 2006) entre outros, cujos rituais e
xamãs constituíram o alvo preferencial da demonização dos missionários protestantes de
diferentes agências e denominações religiosas.
Os pregadores Ikólóéhj, por sua vez, adotaram este argumento maniqueísta, da
existência de um ser eminentemente bom – embora pareça muitas vezes vingativo aos
olhos dos indígenas – o Deus cristão, e outro identificado com o mal absoluto, Satanás.
Este maniqueísmo desdobrou-se na concepção, igualmente reforçada pelos oradores, de
que a adesão ao cristianismo trouxe uma “vida boa”, “sem medo”, em oposição ao
tempo anterior da evangelização, constituído de uma “vida de escuridão, de pecado”,
uma vida pregressa que era “o caminho para o inferno”, argumento central das missões
cristãs.
Ao enfatizar a ruptura com aspectos da cultura que, na perspectiva dos
missionários, não são dignos, a pregação protestante tenta inaugurar aquilo que Wright
(2004) chama de “um novo social”. Este “novo social” se objetivaria em uma vida de
moral muito rígida, sem pecados ou conflitos, e com forte ênfase escatológica como
observara Cloutier (1988) junto aos Zoró16
, grupo vizinho, e que aparece nos discursos
atuais, “quando Jesus voltar”.
Um olhar mais atento, no entanto, indicou que em relação aos seres espirituais e
ao xamanismo, uma disjunção muito grande – abismal, diria eu – paira entre os
discursos proferidos na igreja e o quotidiano, bem como entre estes discursos públicos e
as conversas privadas. Na vida ordinária e nas conversar pessoais, os seres intangíveis
16
O conhecimento da cultura e da língua Gavião contribuiu para o missionário converter os Pangueyen
(Zoró), pertencentes, igualmente, à família linguística Tupi Mondé. Foi a conversão mais fácil operada pela missão, a ponto do missionário duvidar de sua profundidade (CLOUTIER, 1988, p.16).
12
estão presentes e não podem ser negados, na medida em que são conhecidos, vistos,
experienciados e ouvidos. Os Ikólóéhj acreditam neles porque eles fazem parte de sua
experiência sensorial. Vilaça (1999) já havia percebido que, no caso dos Wari’, é
exatamente a noção de “crença” que distancia a comunicação dos missionários do
entendimento indígena. O significado de “crença” para os Wari’ é o oposto do que
significa para o mundo ocidental. Enquanto que para os missionários, crer está
relacionado a algo que não se vê e não se experimenta, para os índios, crer significa ver,
conhecer e experimentar.
Sendo assim, o que leva os Ikólóéhj a participar de cultos/festas cujas pregações
nem sempre são coerentes com seu pensamento? Em conversas informais, durante os
momentos de descanso, após cada noite de danças, os visitantes contaram sobre suas
motivações para virem até a festa enfrentando chuva e atoleiros. “Ah, a gente veio
brincar um pouco, né” explicou um jovem de outra aldeia da TI Igarapé Lourdes que fez
duas viagens com seu carro para deslocar toda sua família. “A gente veio encontrar os
parentes” explicou sorrindo um homem de uma aldeia distante. Já um morador local
resumiu assim: “a gente participa da festa pra dançar e pra se alegrar com Deus”.
Brincadeira, encontro e alegria são as palavras-chave que sumarizaram as
intencionalidades de muitos dos presentes, não apenas ikólóéhj, mas também de outras
etnias que complementaram: “conhecer outras pessoas, outros irmãos”, “dar uma olhada
no movimento”, “encontrar o pessoal”. Enquanto as pessoas comuns justificavam assim
sua presença, os indígenas mais envolvidos com a igreja, a diretoria e os pregadores,
davam outras respostas. Um líder da igreja Zoró, citando a bíblia, explicou assim:
O salmo 150 fala que podemos louvar ao Senhor com danças, a gente dança para Deus, os
cocares e os enfeites que a gente usa, antigamente eram dos Gojánéhj, hoje são de Deus. Essa
festa dos Gojánéhj a gente não tem mais porque Deus não gosta, tem macaloba azeda que deixa
bêbado, Deus não quer. Ano passado teve uma festa dos Gojánéhj lá nos Zoró. Era um vídeo
para o pessoal da associação, o pessoal tocou flauta. Eu sei tocar flauta dos Gojánéhj, mas não
toco mais porque não é pra Deus, hoje nossa festa é outra.
Para este prestigiado líder da igreja, o objetivo desta festa é outro, não é festa
para Gojánéhj – ou qualquer outra festa tradicional que demanda, necessariamente, o
consumo de macaloba azeda – é festa para Deus e por isso prescinde do ì sòhn. Para
outros, no entanto, é uma antecipação do paraíso celeste, na Ixía Nepo Tóhr, a aldeia
dos Olixixia no céu17
, como contou um aprendiz de xamã que se converteu:
17
Uma das transformações mais visíveis na cosmologia Ikólóéhj sob influência do cristianismo é a
inversão da localização do “paraíso”. Ao invés do mundo subaquático, terra dos Gojánéhj, muitos hoje entendem que o Garpi (céu) é destino do pàágohvkáhv, a alma verdadeira, em especial a aldeia dos Olixixia. Inversão semelhante, Vilaça (1999) observou entre os Wari’.
13
Lediane: Mas você acha bom dançar nas festas de Natal? Interlocutor: Isso, eu acho. Eu gosto, eu acho bem bonito. L: É assim que dançava nas festas antigamente? I: É sim, é assim mesmo que dançava no Ixía Népo Tóhr também. L: É? I: Ih, demais. [...] L: E a dança na igreja? I: Eu acho bom, é igual que a gente dança lá no Ixía Népo Tóhr também. Pois então. Eu não vejo mais o Ixía Népo Tóhr. L: Agora você dança aqui na igreja? I: É. [...] L: Tu achas que ainda existe Ixía Népo Tóhr? I: Ah, existe sim, não acaba nunca não. De jeito nenhum. L: E quando a pessoa morre, vai pra lá? I: Ah, vai. Vai sim, quando morre vai.
L: Tu esperas ir pra lá quando morrer? I: Isso. Quando morrer eu vou pra lá, Ixía Népo Tóhr, só tomar macaloba azeda, dançar e tudo. Só coisa boa, só dança, não tem briga. Outra coisa não vi nada lá. Só macaloba azeda, não come outra coisa, nem caça, só dança, muita gente, homem, mulheres e moças bonitas, muita moças e
mulheres bonitas.
Suspeito que nem todos estão convencidos de que se trata de “outra” festa, e até
mesmo que o Deus cristão seja “outro”, diferente dos seus demiurgos. Em um sentido,
no entanto, posso afirmar que é a “mesma” festa, na medida em que reúne os parentes,
instaura uma socialidade ampliada e, desta forma, é um instrumento para tornar afins
potenciais em reais, tal como tem acontecido entre Ikólóéhj e Suruí, antigos inimigos
que passaram a casar-se entre si a partir das atividades da igreja.
Em tempos de cristianismo, os outros
O esforço missionário em convencer os Ikólóéhj de que todos os seres de sua
cosmologia são demoníacos e que os xamãs são “servos de Satanás” parece não ter sido
suficiente. Diferentemente dos missionários, meus interlocutores não veem disjunção
entre o Deus, Jesus e o Espírito Santo e os seres de sua cosmologia ancestral. Como
vimos, o próprio Jesus foi localizado no Garpi pelos xamãs. Sem falar que o Deus
cristão é um “antigo conhecido”18
, o demiurgo Gorá ou Pádjaj (nosso dono), ou ainda
Pázov (nosso pai). Portanto, como não poderia deixar de ser, são incontáveis as
manifestações destes seres em sua vida ordinária, afinal fazem parte da natureza.
Comecemos pelos Olixixia, espíritos auxiliares dos vaváhéj que se manifestam
aqui no plano terreno como evòréhj, utilizando a forma corpórea de garça. Embora o
missionário que atuava na aldeia à época que Xipo Ségóhv trazia sua família para curar,
18
Como se referem aos espíritos – ou gente – com quem estabelecem relações desde tempos ancestrais.
14
insistisse que os rituais eram mentira do vaváh póhj, os próprios crentes consideram que
os Olixixia são os anjos de que fala a bíblia, como informou uma liderança da aldeia Igarapé Lourdes, “os Olixixia são um tipo de anjos de Deus, eles têm uma espada tipo
fogo que corta rapidinho, essas espadas eles tem pra defender o povo deles [os Gavião],
matar os Zerebaj [...], são os protetores do povo”.
E eles continuam presentes, vigiando “o povo deles” mesmo sem ter com quem
conversar, já que nenhum vaváh se apresenta para realizar esta intermediação. Não foi
apenas o vaváh – como reproduzimos na fala acima – que escutou os evòréhj
assoviando. Ouvi pela primeira vez sobre estes seres quando estava na aldeia Igarapé
Lourdes. Ao perguntar para um dos professores indígenas sobre a relação dos Ikólóéhj
com os espíritos em tempos de adesão ao cristianismo ele respondeu que eles continuam
presentes e que é possível saber disso porque seguidamente ele escuta os evòréhj.
Cacique Sebirop explica em detalhes, “é Djéren que fica vigiando direto, não
abandona a gente não, é gente mesmo, não é espírito. Com seu assovio ele está dizendo ‘nós estamos aqui perto de vocês, nós estamos vigiando vocês’”. Para Sebirop todos
sabem que são os Olixixia desejando de aproximar, “mas hoje não tem ninguém que
possa chamar para vir conversar com a gente, Xípo Ségóhv chamava e Djéren vinha”. Quando evòréhj assovia, todos comentam no outro dia, “vocês ouviram os evòréhj nesta
noite?”. São os espíritos aliados insistindo em manter as relações com seus amigos e
afins, mas aparentemente, ninguém está apto para responder.
Se sua manifestação é discreta e tomei conhecimento apenas nos últimos meses
de pesquisa de campo, outras são mais evidentes e se apresentaram a mim nos meus
primeiros dias na aldeia. Uma delas é o balìav, leve trovejar distante que aparece em
dias muito quentes e abafados.
Você está ouvindo? Não é trovão de verdade. Não é Gorá, nem Gojánéhj, é balìav mesmo. É um
trovão triste, não é forte. O trovão forte é que se chama Gojánéhj. Ele é também Gojánéhj só que
ele está triste. Tá vendo [pede para eu prestar atenção ao som]. Trovões ao longe. Quando isso
acontece, a gente lembra dos parentes que morreram. Rosa está triste hoje, Teresa e Cecília
também. Vasa Séhv também porque o irmão dele morreu. Xapi também. Os mais velhos sabem
o que está acontecendo. Na verdade, o que a gente chama de balìav é a pessoa morta que está
conversando. É o parente morto dizendo pra nós: ‘lembra de mim’. Ah, é minha mãe falando
comigo. [...] Aí todo mundo fica quietinho na sua casa. É isso.
Se este leve trovejar é balìav, as fortes trovoadas e os raios são Goján Gíhr
como havia adiantado o vaváh acima. São os estrondos e “choques” resultantes do Goján celeste se debatendo em seu lago no Garpi para evitar ser derrubado pelos
páhxoéhj. A imagem das almas “puxando” Goján Gíhr é uma da mais popular entre os
Ikólóéhj, independente da idade. Não é preciso nenhum conhecimento especializado
15
para conhecer esta história. Mesmo os mais jovens sabem que os páhxoéhj e Goján Gíhr
travam uma disputa acirrada no Garpi e que esta “batalha” pode ser ouvida nos dias de
trovoada.
Além destas manifestações atmosféricas que foram me reveladas prontamente,
outras informações fui obtendo aos poucos, como aquelas que dizem respeito aos
lugares interditos na floresta. Lugares que possuem “donos” e demandam deferência
dos passantes. A maioria das pessoas, no entanto, prefere evitá-los. Um destes donos é o Djàvpè Tìh, o dono das tabocas das quais se faz a ponta da flecha chamada djàvpè. Ele
habita os tabocais do alto das serras e das margens dos igarapés. Dois locais interditos
me foram apresentados, uma cachoeira localizada adiante da aldeia Teleron e a serra nas
proximidades da aldeia Final da Área, já na divisa com o estado de Mato Grosso.
Uma rigorosa etiqueta deve ser seguida para retirar as tabocas sem que ninguém
seja molestado. Quando havia vaváh atuante, este devia ser avisado para intermediar a
negociação com o espírito dono do djàvpè. Atualmente, espera-se uma atitude
cerimoniosa do caçador que inclui falar baixo e não pronunciar o nome do dono das
tabocas, mesmo depois de deixar o local. As tabocas que são retiradas não são
manipuladas imediatamente, pelo contrário, são depositadas em um lugar afastado da
aldeia, o bekàh19
, para secar. Enquanto seca, Djàvpè Tìh esquece sua localização.
Somente depois de alguns meses será manuseado e se tornará em pontas de flechas
letais (BENTO, 2013). “É preciso ter respeito”, disseram meus interlocutores, “senão o Djàvpè Tìh pode fazer mal pra alguém, alguma criança pode ficar doente”.
Especialmente os recém-nascidos, com as almas em suspensão e com corpos frágeis,
ainda em construção, são atingidos pelo mau proceder dos adultos em relação ao djàvpè.
Um terceiro lugar respeitado é Ixía Adòh (lit. rocha em pé), formação rochosa de
certa de aproximadamente cinquenta metros em meio à mata densa, também na divisa
com o estado do Mato Grosso, embora mais distante. Fui conhecê-la junto a dois
amigos aproveitando uma expedição de coleta de castanha de suas famílias. A despeito
da beleza cênica do lugar, a experiência foi tensa. Durante a exploração da rocha, um de
nossos companheiros, exímio caçador e conhecedor da floresta, foi atraído para longe
por uma “caça” e perdeu-se do grupo. Com a proximidade da noite e de um forte
19
Espaço de trabalho dos homens, afastado da aldeia, onde ensinam os jovens a confeccionar arcos,
flechas e cocares, onde os homens se preparam para as festas, entre outras funções. Sobre este tema, o professor Zacarias Kapiaar Gavião (2015) desenvolveu seu TCC do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, intitulado “Bekàh: o lugar da educação tradicional Gavião”.
16
temporal o aparente descuido passou a tomar dimensões dramáticas. Não foi nada
agradável, especialmente para mim, voltar ao acampamento sem o terceiro membro do
grupo. A aflição tomou conta de todos, menos de dois homens mais velhos. Um deles,
nosso reputado vaváh, tomou uma lanterna e partiu em busca do desaparecido.
Horas depois ambos chegaram. O segundo homem que havia ficado tranquilo
esclareceu: “é comum se perder na Ixía Adòh, a pedra faz o caminho mudar de lugar, eu
mesmo já me perdi aqui”. Soube depois de um espírito morador das grandes rochas,
trata-se de Ixía Tìh o dono dos animais (MINDLIN et.al., 2001, p.118). O homem que
se perdeu explicou que um veado vermelho chamou sua atenção e o distraiu, quando
deu por si não havia nem caça, nem o caminho de volta. Depois do ocorrido compreendi
porque nenhum dos homens mais experientes quis nos levar até lá. Não é um lugar para
ser visitado, ou como disse, quase chorando, a irmã do desaparecido para o outro
companheiro de expedição, “o que vocês foram fazer lá, por que foram atrás dessa djála
(branca)”? Aprendi, por experiência própria, aquilo que até então só havia escutado, a
floresta deve ser respeitada, seus moradores estão atentos.
Mesmo experientes caçadores são suscetíveis a interferência dos espíritos. Um
deles contou sobre outro caso de desorientação induzida, desta vez, pelos Zagapóhjóhv,
outros donos das matas, e como conseguiu encontrar o caminho de volta:
Caçador: Foi três vezes que me perdi. Aí eu andei né, caçando, era de manhã. Andei, andei,
matei jacu, jacamin, o paneiro estava cheio já. Aí andei, andei e nada. Eu estava sozinho. Saía no
mesmo lugar que passei. Fiz um ‘negocinho’ que meu cunhado ensinou fazer. Fiz como ele
falou, trancei um cestinho de palha e coloquei ali. Aí passei ali e cheguei ao mesmo lugar. Já
estava tarde, quase chorei. Pensei, ‘eu vou subir aqui, já fui pra cá, eu já passei aqui, já passei ali,
agora vou aqui’. Subi a serrinha e vi a tocaia, ‘ah agora eu estou em casa’ e cheguei de noite.
Não tinha lanterna, não tinha nada. Lediane: O que que fez você se perder? Caçador: Não sei né, não sei se é Zagapohjóhv. Dizem que o Zagapohjóhv vai atrás da gente e
desvia a gente do caminho certo e rodeia de novo. Quando a gente trança a palha ele fica ali distraído e aí a gente consegue achar o lugar.
Relatos de encontros, audições e visões com seres de outra natureza na floresta
são corriqueiros. Ao perguntar para uma amiga muito ativa na igreja se Gojánéhj
continua atacando agora que muitas mulheres são crentes, ela respondeu: “agora a gente
se cuida, não vai menstruada pro rio, por isso ele não ataca mais”. Ao que parece, mais
do que o poder de Jesus Cristo, é o cuidado, a obediência às regras de etiqueta que
mantém os Gojánéhj afastados.
Especulo, no entanto, que as longas festas que começam em dezembro e se
estendem até o início de fevereiro, em que muitas famílias permanecem acampadas nos
tapiris ao redor da Igreja Evangélica Gavião, período que coincide com o auge das
17
chuvas na região, e que, portanto, “os Gojánéhj estão por todos os lados” tenham
propósito semelhante às ancestrais festas de Gojánéhj. Além da evidente ampliação da
socialidade e de poder vivenciar momentos alegres, os Ikólóéhj estão, ao mesmo tempo,
obedecendo a etiqueta do demiurgo, mantendo-se resguardados em torno da igreja, e
buscando proteção do Deus cristão. Não por acaso, repetiram várias vezes durante a
festa que não é preciso temer Gojánéhj porque Deus é mais forte.
Teria muito a falar ainda sobre a presença dos espíritos na vida dos Ikólóéhj,
encerro, no entanto, por aqui, falando do páhxo á ou dindínà, o espectro terrestre.
Mesmo que tenha havido uma importante influência cristã que mudou o paraíso
póstumo para o céu, ao invés do mundo subaquático; e que criou um lugar para o
inferno, inexistente na cosmologia Ikólóéhj, o respeito ao espectro terrestre continua
inalterado e sugiro que o temor a ele tenha se ampliado.
A morte de dois prestigiados idosos na aldeia central Ikólóehj, pouco menos de
dois meses antes da minha chegada, me permitiu observar os acontecimentos. Um
destes homens era um respeitado líder que lutava incansavelmente pelos direitos
indígenas. Seu falecimento causou consternação não somente entre os Ikólóéhj, mas
também nos Arara, Zoró e dos brancos que o conheciam.
Com o intuito de prestar uma homenagem a ele, a ONG responsável por uma
oficina de revisão do Plano de Gestão da TI Igarapé Lourdes ocorrida na aldeia,
elaborou dois grandes banners com sua foto em destaque, para instalar no local do
encontro. A homenagem surtiu um efeito contrário, os presentes ficaram chocados e os
parentes próximos evitaram participar do evento. O cacique Sebirop explicou:
Causou um mal estar em todos ver as fotos do cunhado na oficina, não quisemos ficar com os cartazes na aldeia, a gente só deixou nos três dias porque era reunião e sabemos que os brancos não entendem, mas no nosso dia a dia não aceitamos. Foi chocante pra todo mundo ver a foto dele, até os mais novos ficaram com medo.
Nos meses seguintes acompanhei sua casa de madeira com telhas de barro ser
desmanchada. Seu nome passou a ser tabu, pronunciá-lo atrairia seu páhxo á. Desde o
começo da pesquisa fui instruída a jamais perguntar o nome dos mortos, é preciso
esquecê-los para que o seu páhxo á esqueça seu lugar e seus parente e deixe todos em
paz. Mesmo os nomes das pessoas gravemente enfermas não eram revelados.
O outro idoso faleceu em um hospital em Porto Velho onde se encontrava em
coma há certo tempo. Foi sepultado em Ji-Paraná com a anuência da família. Mesmo
assim, logo que sua morte foi confirmada, sua mulher e os parentes próximos saíram
imediatamente da aldeia e ficaram cerca de 20 dias na sua antiga morada, na Serra da
18
Providência. A casa onde vivia foi desmanchada e uma nova casa, distante da primeira, foi
construída por essa família. Em ambos os casos tratam-se de famílias que frequentam a
igreja, em uma delas, o filho é um dos mais proeminentes lideres da igreja.
À guisa de conclusão
“Xípo Ségóhv era crente” dizem os Gavião. “Ele trabalhava com Olixixia e com
Deus”, afirmam as pessoas que foram curadas por ele. Talvez por este motivo foi
considerado o mais poderoso dos xamãs. Nenhuma incompatibilidade havia, na
perspectiva dos Ikólóéhj, entre ambos os seres, afinal, adicionar elementos de outros
arcabouços cosmológicos para compor os mitos e os ritos de um grupo, é um expediente
utilizado pelas socialidades ameríndias e no qual os Ikólóéhj são experts. Foi com os
Zoró que aprenderam sobre os Gojánéhj e sua festa, foi com os xamãs Arara que
assimilaram sobre os Olixixia, foi com os brancos que aprenderam sobre Jesus e um ser
pouco comentado, Xíhxo Sarùhr (Espírito Santo).
Quanto ao Deus Pai, o criador, meus interlocutores afirmam que já o conheciam.
Há muito tempo que os vaváhéj visitavam Gorá no Garpi, e assim que soube da
existência do filho de Gorá, Jesus Cristo, parece ter sido necessário encontrá-lo em
algum lugar nas suas viagens espirituais para torna-lo crível, pois como seria possível
crer sem ver?
Por mais que as pregações da igreja insistam que são duas expressões espirituais
incompatíveis, esta não é a opinião de uma parcela considerável dos crentes que ainda
hoje escutam os evòréhj assoviando. Na maior parte das vezes que entabulei diálogos
sobre a relação entre xamanismo e cristianismo, foram os ensinamentos de Xípo Ségóhv
que despontaram. A fluidez deste vaváh diante de mundos tão distintos quanto o dos
Ikólóéhj e o dos brancos impacta ainda hoje e faz com que, mesmo diante de discursos
tão duros contra os xamãs e os espíritos, os Ikólóéhj afirmem: “esse pessoal não sabe o
que está dizendo, eles não viram o que eu vi, eles não conheceram Xípo Ségóhv”20
.
Os mais de sessenta anos de contato interétnico oficial e os cinquenta anos de
evangelização protestante permitiram que os preceitos do cristianismo tomassem uma
dimensão importante. Atualmente os jovens conhecem em mais detalhes as histórias da
bíblia do que as histórias dos vaváhéj. Mas não houve uma substituição, antes uma
20
Resposta de um crente à minha pergunta sobre o que ele pensava a respeito dos discursos proferidos na festa da igreja que compararam os vaváhéj a “servos de Satanás”.
19
ampliação das possibilidades de se relacionar com o cosmos a partir de novos
elementos. Mesmo que as festas que traziam os Gojánéhj e Garpiéhj Tìh fossem
colocadas em suspenso e haja uma tentativa do vaváh de substituir suas capacidades
xamanísticas por uma relação exclusiva com Jesus Cristo, o que se escuta nas conversas
que correm em segredo é que, alguém “ainda faz pajelança”, que os Ikólóéhj não vão
deixar a sabedoria “dos antigos”, que “a gente continua respeitando Gojánéhj, Zagapóhj
e os Garpiéhj” e, além disso, Xípo Ségóhv e Alamàh são citados como exemplos de
vaváhéj que conheciam Jesus Cristo. Alguém me explicou da seguinte forma: “Não tem
esses pastores que fazem milagres, que fazem paralítico andar? Pois é, Xípo Ségóhv era
desse jeito, era como um pastor poderoso”. A analogia entre o vaváh e o pastor que cura
indica que ambos são reconhecidos como intermediadores entre os homens e habitantes
de outros planos.
Uma parcela significativa dos Ikólóéhj sabe que os espíritos estão aqui, ao redor,
atuando, protegendo contra aqueles que são sor, traduzido pelo meu intérprete como “má conduta, má educação, sem ética” e como “feio” pelo dicionário experimental da
MNTB. Toda proteção sobre o mundo perigoso é bem-vinda, desde os evòréhj até o
Deus cristão.
É neste registro que posso compreender a fala de um líder Ikólóéhj sobre o papel
da igreja. Ele usou o seguinte argumento para me explicar como percebia os efeitos do
cristianismo no seu povo e que os Ikólóéhj, embora crentes, não renunciariam seus
conhecimentos do cosmos: “Quando você casa com uma segunda mulher, você não
abandona sua primeira esposa, pelo contrário, continua cuidando dela até o fim, assim
como da segunda. É assim que é!”.
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