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O MARCO DAS TRÊS DIVISAS: APONTAMENTOS SOBRE IMPLICAÇÕES DA
PROMOÇÃO À GRADUAÇÃO DE TERCEIRO SARGENTO DO EXÉRCITO
BRASILEIRO
ALAÉVERTON MAICON DE ANDRADE1
Introdução
O objetivo do presente trabalho é estudar pela perspectiva interdisciplinar elementos
inerentes à natureza material, simbólica e afetiva da realidade profissional após à promoção à
graduação de terceiro sargento tomando como objeto de análise um grupo de terceiros
sargentos do Exército Brasileiro que servem atualmente no 2º Batalhão de Infantaria
Motorizada (Escola) (2º BI Mtz (Es)), localizado na Vila Militar do Rio de Janeiro – RJ.
Frente a tal objetivo de estudo, buscou-se contemplar os seguintes objetivos
específicos:
- Analisar a realidade sócio espacial assim como a autopercepção social dos terceiros
sargentos do 2º BI Mtz (Es)
- Estudar dados e informações refrentes à promoção à graduação de terceiro sargento
do Exército através dos militares em questão.
- Traçar um breve levantamento sobre transformações ocasionadas pela promoção
supramencionada assim como potenciais dificuldades e sucessos alcançados pelo grupo
entrevistado.
Diversos estudos foram realizados sobre as instituições militares e sobre militares em
geral, contudo poucos se pautaram em estudar as especificidades e particularidades dos
segmentos que compõe as divisões internas de classe, principalmente os segmentos menos
graduados e mais distantes da estrutura com poder decisório dentro das corporações como os
sargentos e praças em geral. Tomando como referência e ponto de partida alguns dos
principais trabalhos existentes sobre a temática, ressalvando a limitação citada, alguns autores
são fundamentais para o embasamento teórico de uma análise antropológica sobre militares
no Brasil, sendo dois dos mais conhecidos, Celso Castro e Piero de Camargo Leirner.
1 Possui Especialização em Antropologia Brasileira pela Universidade Candido Mendes - UCAM /RJ
(2020) e graduação em História (Licenciatura) pela Universidade Castelo Branco – UCB / RJ (2017), atualmente
cursa Especialização em Ensino de História pelo Colégio Pedro II - CP II / RJ. Realiza pesquisas em História do
Brasil República, História militar e História dos militares subalternos. É sargento do Exército Brasileiro formado
pela Escola de Sargentos das Armas (2014). Email: [email protected]
Castro aponta que “A combinação de Antropologia e História sempre pautou minha
trajetória acadêmica, gerando livros voltados para a compreensão do papel do Exército e das
Forças Armadas no cenário político nacional”. (CASTRO, 2003, Versão para Kindle Posição
27)
Levando em consideração a formação acadêmica em História do autor da presente
pesquisa e o estudo realizado no campo da antropologia, a citada referência dialoga
perfeitamente com as pretensões de pesquisa do presente trabalho.
Como técnica de pesquisa foi adotada a entrevista (MARCONI; PRESSOTO, p. 14-
15) com um questionário previamente elaborado e aplicado a todos os entrevistados
individualmente apoiada em uma análise bibliográfica em obras de referência sobre a
temática.
A principal hipótese aventada e a ser testada sobre os objetivos anteriormente citados
é de que os terceiros sargentos do 2º BI Mtz (Es) são em sua maioria indivíduos oriundos
socialmente dos segmentos menos favorecidos da sociedade que tiveram na promoção a
graduação de terceiro sargento do Exército Brasileiro um fator de ascensão social, arcando
também com responsabilidades e desafios enfrentados devido à promoção.
Militares, Exército, Sargentos e 2º BI Mtz (Es): Fundamentos
Ao longo de toda a história republicana do Brasil os militares constituíram um grupo
de atores políticos e sociais de grande importância. Tal participação despertou interesses de
pesquisadores de diversas áreas do conhecimento em estudá-los sob os mais variados
aspectos, entre trabalhos mais conhecidos cabe mencionar Castro (2003) cujo trabalho realiza
uma abordagem antropológica da formação militar e Leirner (1997) que analisa
antropologicamente a hierarquia militar, ambos no Exército; Carvalho (2005) com uma
abordagem política e histórica das Forças Armadas; Sodré (2010) realiza apontamentos sobre
a participação militar em diversos períodos e processos históricos brasileiros; Parucker (2009)
faz um profundo estudo sobre a participação de praças nos processos históricos brasileiros no
início da década de 1960, embora sejam esses trabalhos históricos, sociológicos, políticos,
antropológicos e outros, contudo em tais estudos permanecem pouco explorados como objeto
de estudo os militares subalternos e praças, particularmente os sargentos.
Integrando as Forças Armadas Brasileiras, instituições permanentes e regulares
tipificadas no artigo 142 da Constituição Federal Brasileira, os militares são divididos em
círculos hierárquicos conforme prevê o Estatuto dos Militares, sancionado através da Lei
Federal 6.880, de 09 de Dezembro de 1980. Pautados em relações de hierarquia e disciplina,
pressupostos basilares das Forças Armadas, os círculos hierárquicos são âmbitos de
convivência descritos no artigo quinze do Estatuto dos Militares que distribuem os militares
inicialmente entre oficiais e praças com as subdivisões dentro dos mesmos. Os sargentos
compõem o círculo hierárquico das praças e são escalonados hierarquicamente entre
subtenentes ou suboficiais, primeiros sargentos, segundos sargentos e terceiros sargentos,
respectivamente daqueles com graduação superior para estes com graduação inferior.
Assim como as outras duas Forças Armadas, a Marinha do Brasil e Força Aérea
Brasileira, o Exército Brasileiro é organizado sobre os princípios da hierarquia e disciplina,
ambas definidas no Artigo 14 do Estatuto dos Militares. Os militares do Exército, tanto
oficiais quanto praças compõem as diversas guarnições presentes no território brasileiro
divididas em comandos militares de área, regiões militares, brigadas e organizações militares
com subordinações, atribuições e características específicas.
Após concluírem seus processos de formação, nos quais ingressam através de
concursos, processos seletivos para militares técnicos temporários ou através do serviço
militar obrigatório e posteriores reengajamentos, os sargentos de acordo com as qualificações
técnicas e vagas disponíveis, são direcionados para as organizações militares onde passam a
desempenhar suas funções profissionais.
Uma dessas organizações militares de corpo de tropa do Exército Brasileiro é o 2º
Batalhão de Infantaria Motorizado (Escola) (2º BI Mtz (Es)), OM que possui ainda as
denominações históricas de Regimento Avaí e Dois de Ouro. Localizado na Vila Militar,
bairro de Deodoro na cidade do Rio de Janeiro, o 2º BI Mtz (Es) está atualmente inserido no
contexto operacional da 9ª Brigada de Infantaria Motorizada , subordinada à 1ª Divisão de
Exército e ao Comando Militar do Leste, autointitula-se como herdeiro de tradições de
diversas organizações militares que remontam ás tropas portuguesas estabelecidas na Baía da
Guanabara ainda no século XVII, apesar de ter mudado de denominação algumas vezes,
ocupa a atual sede desde a construção da Vila Militar do Rio de Janeiro, no início do século
XX.
Particularidades do campo de pesquisa e atuação do pesquisador nativo
A principal característica do 2º Batalhão de Infantaria Motorizado (Escola) já se
destaca no nome da organização militar, a Infantaria. Apontando de forma simplificada, o
Exército Brasileiro é composto basicamente por cinco armas combatentes, respectivamente
Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações; Pelo quadro de Material Bélico
que se divide em Manutenção de Viaturas, Manutenção de Armamentos e Mecânicos
Operadores; Pelos serviços de Intendência e Saúde que inclui segmentos médicos,
odontológico, psicológico, farmacêutico, enfermagem e outros; Além de quadros específicos
como capelania militar, quadros complementares voltados para a administração, assistência
jurídica, magistério, músicos e outros. Tomando como referência CASTRO (2003), cuja
análise do “espírito das armas”, salienta algumas características da Infantaria:
A Infantaria dispõe-se ao longo de todo o front, dividida em pequenos grupos. O
infante é quem está no “centro do fogo”, quem tem um contato físico, direto, com as
tropas adversárias, conquistando e mantendo as posições: é quem vai “ver o branco
dos olhos do inimigo”. Para desempenhar suas missões o infante precisa, em primeiro lugar, ter uma ótima resistência física, para suportar as condições
extremamente adversas com que se defronta. Ele tem de superar a pé todos os
obstáculos naturais, andar muito, correr, rastejar para escapar aos tiros inimigos.
Precisa também conviver com a falta de sono, de comida, de conforto: é quem “pega
a batata quente”. Ele também convive intimamente com o cansaço e a morte; por
isso, deve ter “desprendimento”, coragem e vibração: “São os destemidos, os caras
que...Vamos lá! Infantaria! Tudo pela Pátria!” (CASTRO, 2003, Versão para kindle
Posição 910)
As características apontadas por Castro não são a definição conceitual de Infantaria,
são referenciais importantes a serem observados sobre a arma combatente em questão. A
presença da Infantaria no 2º BI Mtz (Es) compõe o ponto nevrálgico da existência da
organização militar em questão determinando a forma de atuação e emprego operacional da
mesma assim como direcionando e determinando de forma objetiva e subjetiva a formação e
adestramento dos militares das mais diversas qualificações que compõe a unidade.
A imensa maioria dos integrantes do 2º BI Mtz (Es) são qualificados na arma de
Infantaria. Compõe a organização militar em questão 752 militares, dentre eles 76 terceiros
sargentos, incluindo militares de carreira e temporários, os quais foram selecionados para esta
pesquisa e se encontram distribuídos conforme as tabelas abaixo:
Quantidade e situação de 3º Sargentos do 2º BI Mtz (Es)
Graduação Quantidade Situação
3º Sargento 36 Militares Temporários*
3º Sargento 40 Militares de carreira
Tabela 1: Quantidade de 3º Sargentos do 2º BI Mtz (Es). Elaborada pelo autor.
*Inclui terceiros sargentos temporários e terceiros sargentos técnicos temporários.
Qualificação dos 3º Sargentos do 2º BI Mtz (Es)
Graduação Quantidade Qualificação / Arma
3º Sargento 43 Infantaria
3º Sargento 8 Comunicações
3º Sargento 1 Manutenção de Comunicações
3º Sargento 4 Material Bélico – Manutenção de viatura
3º Sargento 1 Material Bélico – Manutenção de armamento
3º Sargento 6 Intendência
3º Sargento 4 Saúde / Tec. Enfermagem
3º Sargento 3 Tec. Temporário Administração
3º Sargento 6 Músico
Tabela 2: Qualificação dos 3º Sargentos do 2º BI Mtz (Es). Elaborada pelo autor.
Entre os terceiros sargentos qualificados na arma de comunicações encontra-se o
autor dessa pesquisa, tratando-se assim de um pesquisador nativo (MALINOWSKY, 1978,
p.15) partindo do pressuposto inaugurado por Malinowsky, portanto participante diretamente
envolvido na dinâmica das relações e do ambiente estudado, tal fato traz para a análise uma
dimensão de observação diferenciada capaz de penetrar determinados nuances do objeto de
estudo invisíveis aos olhos do pesquisador não nativo, contudo traz também a necessidade de
uma observação e análise criteriosa o suficiente para separar a dimensão subjetiva do mesmo
e se ater aos critérios científicos e verificáveis de pesquisa. Cabe ressaltar ainda sobre a
observação participante do autor na elaboração da pesquisa em questão que o pesquisador já
era um nativo, ou seja, militar antes de buscar os meios acadêmicos para se tornar estudioso e
pesquisar sobre a temática em questão.
A condição militar do pesquisador torna diferenciado o acesso ao campo de pesquisa
e aceitação dos entrevistados, caso fosse “paisano” conforme classificação pejorativa imposta
informalmente aos civis pelos militares mencionada principalmente entre militares, alguns
obstáculos adicionais teriam que ser transpostos, como aponta Leirner citando a pesquisa de
Celso Castro na Academia militar das Agulhas Negras:
Talvez o dado que mais salte aos olhos nessa pesquisa venha do fato de ser a
“identidade militar” construída em sua plenitude em oposição ao civil — razão
suficiente para que, já num primeiro momento, seja possível desconfiar da
adaptabilidade de categorias do mundo civil na explicação da conduta militar[...]. ( LEIRNER, 1997, p. 12)
Leirner aponta ainda uma ampliação do entendimento apresentado por Castro:
No entanto, um lado não explorado por Castro — seguramente porque sua pesquisa
abarcou o universo de cadetes — permanece em aberto: por mais que os militares
cotidianamente realizem e reatualizem essa elaboração de sua identidade em
oposição aos paisanos (Castro, 1990), especialmente na Academia Militar, há o fato
de que essa construção tem que ser “negociada” politicamente com a sociedade;
afinal, por mais que a instituição tenda, como mecanismo de construção da sua
identidade social, a se fechar numa micrototalidade e se tornar um “mosteiro
beneditino”, ela tem uma face pública, por ser uma instituição nacional, pertencente
portanto ao mundo da polis. (LEIRNER, 1997, p. 13)
Conforme apontado, a barreira da identidade construída em oposição ao mundo civil
é em parte superada pelo fato da origem militar do pesquisador, contudo outras questões
foram levantadas como a preocupação do comandante da Organização Militar que serviu de
campo de pesquisa com a preservação da imagem do Exército Brasileiro e com a natureza das
questões a serem realizadas, fatores que dialogam diretamente com a negociação e
reafirmação da instituição militar frente a sociedade mostrando que em uma sociedade na qual
as instituições são reguladas pelos dispositivos legais, a opinião pública é um fator bastante
considerado inclusive pelas Forças Armadas brasileiras, vide o investimento e preocupação
com resultados de pesquisas de opinião sobre a confiabilidade da população nas instituições.
Após a apresentação formal da solicitação para realizar a pesquisa, assim como as perguntas
que seriam realizadas aos terceiros sargentos, tal barreira foi superada a pesquisa foi
autorizada pelo comandante em questão.
A hierarquia: Distinção, poder simbólico e docilização dos corpos.
Constituem elementos basilares do militarismo no Exército Brasileiro a relação entre
disciplina e hierarquia, bem estudada por Piero Leirner na obra Meia volta, Volver: um estudo
antropológico sobre a hierarquia militar. A abordagem da hierarquia realizada pelo autor parte
da ideia de marcas de distinção que constituem
[...]fronteiras de pertencimento à comunidade militar. Essas fronteiras “enquadram”
aqueles que comandam e obedecem de acordo com uma ordem na hierarquia, e
descartam os que simplesmente não estão nesse conjunto. Assim, o conjunto das
relações escalonadas entre militares traça os limites da hierarquia militar, o campo
onde se definem simultaneamente o pertencimento à Força e as relações peculiares a
ela. Desse modo é que as condutas no Exército, mantidas por indivíduos que se
encontram em posições diferenciadas de acordo com um rol de segmentos
específicos, como as patentes, têm como parâmetro a hierarquia enquanto fato
coletivo capaz de ordenar a ação individual, de modo que ela esteja em consonância
com a conduta geral, tornando assim a própria idéia de coletividade viável.
Portanto, a hierarquia constitui um fenômeno em que o coletivo pode ser “lido” através da ação individual, decorrendo daí a sua pertinência enquanto ângulo
privilegiado de abordagem da identidade militar. (LEIRNER, 1997, p. 72)
Sendo assim, o patamar hierárquico ocupado pelos terceiros sargentos do Exército, o
que inclui aqueles que integram o 2º BI Mtz (Es), faz parte de um conjunto mais amplo de
relações de mando e obediência previstas nos regulamentos castrenses. Quanto mais próximo
da base da pirâmide hierárquica, o que é o caso dos terceiros sargentos, ou mais próximos
funcionalmente dos soldados, os quais são os elementos executantes finais das atividades,
como é o caso dos tenentes e também dos terceiros sargentos, maiores são as atribuições de
exercício da hierarquia através da liderança, do exemplo e menos pelas atribuições de chefia
como bem demonstra a fala de um ex-soldado entrevistado por Castro e Cinelli:
“Cada pelotão tem um sargento responsável e um oficial. O meu pelotão, pela graça,
foi muito bem escolhido porque pegou um sargento maravilhoso, que fazia todas as
missões junto, pegava as missões junto com você [...] Tudo que tinha que fazer, ele
pegava e fazia junto. Então, até te dava mais estímulo para fazer.” (CASTRO; CINELLI, 2006, p. 8)
Dentro de um ambiente de trabalho armado e adestrado para atuar em situações de
variados graus de complexidade e risco, o Exército e outras instituições militares, detentoras
exclusivas da outorga pelo Estado do exercício oficial da violência, utilizam sofisticados e
eficazes mecanismos de disciplinação e docilização dos corpos de seus integrantes. Tais
mecanismos se fazem presentes desde o momento que o indivíduo ingressa nas fileiras da
instituição através do processo de formação militar, e permanecem de forma aparentemente
um pouco menos totalizante (CASTRO, 2007, p.1-7) após tal período levando em
consideração principalmente fatores como mobilidade social através de promoções, cursos de
aperfeiçoamento e especialização e até mesmo a mobilidade geográfica proporcionada por
transferências de guarnições no caso dos militares de carreira.
Levando em consideração tais questões, Celso Castro realizou alguns estudos sobre
instituições militares utilizando o conceito de Instituição Total cunhado pelo canadense
Erving Goffman que estudou principalmente manicômios, conventos e presídios, contudo
salvas limitações, o conceito pode ser estendido também às instituições militares. Castro
percebeu que no último caso, seria mais correta uma releitura adaptada do conceito:
A mudança de caracterização — de total para totalizante — pretende caracterizar melhor uma experiência totalizadora e básica para a identidade militar,
que engloba e fundamenta as características diferenciais entre militares e paisanos: a
da preeminência da coletividade sobre os indivíduos. O resultado é a representação
da carreira militar como uma “carreira total” num mundo coerente, repleto de
significação e onde as pessoas “têm vínculos” entre si. O militar é, assim, produto de
um desenvolvimento especial do individualismo moderno, posto que profundamente
marcado tanto por ideais meritocráticos quanto pela hierarquia – uma espécie de
“individualismo hierárquico”. (CASTRO, 2007, p. 5)
O terceiro sargento nesse contexto tem um duplo papel, ou seja, é também um
elemento responsável por adestrar, instruir e cobrar a execução das prescrições
regulamentares dos cabos e soldados representando a face da “instituição total”, ao mesmo
tempo que sofre cobranças dos superiores hierárquicos, praças e oficiais, se deparando com a
face total da instituição. A visão com relação à instituição militar “ser mais ou ser menos”
totalizante varia de acordo com a experiência, ou seja, antiguidade ou tempo na graduação,
sendo que variam a forma, a intensidade e principalmente conteúdo das cobranças realizadas
tanto sobre eles, quanto daquelas realizadas por eles.
Tais ações cumprem o papel de manutenção do status quo vigente na instituição,
reafirmando e preservando a hierarquia que funciona como um marcador social da diferença e
consequentemente da distinção presente entre os militares, agindo principalmente sobre o
círculo hierárquico com mais militares, o de cabos e soldados, ao passo que a hierarquia não
possui um fim em si mesma, como afirma Leirner, na verdade ela constitui um fundamento
para a manutenção do pilar principal das instituições militares, a disciplina. Isso implica no
considerável papel de controle e disciplinação dos corpos principalmente dos soldados que
constituem a maioria do efetivo das Organizações Militares de Corpo de tropa, como é o caso
do 2º BI Mtz (Es), sobre essa questão uma abordagem do ponto de vista de indivíduos que
foram soldados é apresentada no trabalho de Castro e Cinelli (CASTRO; CINELLI, 2006).
Entrevistas realizadas : Apontamentos
Foram realizadas oito entrevistas para essa pesquisa o que representa cerca de
10,52% do efetivo de terceiros sargentos do 2º BI Mtz (Es), levando em consideração que não
foi possível entrevistar todos os terceiros sargentos da unidade militar, priorizou-se uma
distribuição de entrevistados que abrangesse uma boa representação quanto à qualificação
militar, a representação de militares temporários e militares de carreira, sendo todos os
entrevistados voluntários. Não foi destacado o componente de gênero nas entrevistas para a
presente pesquisa, pois tal questão no contexto analisado merece uma pesquisa exclusiva
tendo em vista as especificidades.
O questionário base possui vinte e cinco questões elaboradas previamente. Optou-se
ainda por não identificar os entrevistados no trabalho, visando preservá-los e permitir que
emitissem suas respostas com mais liberdade e tranquilidade com relação a possíveis
constrangimentos futuros.
A primeira questão aplicada à todos os entrevistados trata da idade dos mesmos.
Sete entrevistados possuem entre vinte e trinta anos, abrangendo a maioria absoluta dos
entrevistados especialmente os sargentos de carreira de ambos os sexos e os temporários que
ingressaram no Exército Brasileiro pelo serviço militar obrigatório, o militar que possui idade
acima de trinta anos é sargento técnico temporário. A explicação para isso reside nos limites
para ingresso no Exército. No caso dos concursos para sargento de carreira o limite máximo
para ingresso são vinte e quatro anos incompletos e no caso da área de saúde e música, vinte e
seis anos incompletos, já aqueles sargentos temporários oriundos do serviço militar
obrigatório ingressam logo após completar dezoito anos podendo permanecer até oito anos
como militares da ativa, para os sargentos técnicos temporários existe um limite de idade mais
alto para ingresso, trinta e oito anos incompletos.
Outro elemento investigado por essa pesquisa foi o nível de escolaridade dos
terceiros sargentos do 2º BI Mtz (Es). A exigência para ingresso em cursos de formação de
sargentos de carreira é o ensino médio completo, assim como a instituição busca na medida
do possível conscritos com ensino médio completo no caso do serviço militar obrigatório,
porta de entrada dos sargentos temporários, já se tratando dos sargentos técnicos temporários
os editais de processos seletivos cobram além do ensino médio, formação técnica específica
nas áreas de interesse do Exército. Três entrevistados disseram estar cursando o nível superior
de ensino e três, disseram já tê-lo concluído e dois mencionaram possuir ensino médio
completo.
Na sequência, a próxima pergunta do questionário tratou da cor de pele que o
entrevistado declarava possuir. Seis entrevistados autodeclararam-se negros ou pardos e dois
entrevistados autodeclararam-se brancos. Segundo o IBGE através do censo de 2017, o estado
do Rio de Janeiro possui 8.266.776 de pessoas negras ou pardas, o que representa mais da
metade da população total do estado e isso é refletido na cor da pele dos sargentos do 2º BI
Mtz (Es). O terceiro sargento na maioria dos casos está próximo da realidade social dos
segmentos menos favorecidos da sociedade, em uma realidade social ainda profundamente
marcada pelos efeitos da escravidão e após a abolição, por políticas de branqueamento e ações
que empurraram a população negra para posições desfavorecidas política, econômica e
socialmente, dentro de uma realidade de dificuldades para encontrar emprego e se qualificar
profissionalmente, muitos indivíduos veem nas Forças Armadas uma oportunidade de
ascensão social, seja ela temporária ou até mesmo uma carreira, contudo isso se faz presente
no universo das praças, no universo dos oficiais a esmagadora maioria é branca, mesmo no
Rio de Janeiro, cabe ressaltar que alguns estamentos da dinâmica social são diferentes para os
mesmos.
Sobre o estado civil, três entrevistados disseram ser casados ou viver em união
estável e três declararam serem solteiros. Já sobre serem pais ou mães, um entrevistado
informou possuir filho. Levando em consideração a idade do grupo entrevistados, a maioria
que alegou ser casada está nessa situação a menos de dez anos e aqueles que possuem filhos,
os mesmos possuem menos de dez anos de idade.
As quatro questões seguintes trataram da origem social e geográfica dos
entrevistados. A primeira delas era sobre a profissão dos pais dos mesmos, as respostas
apontaram as seguintes profissões: lavradores, donas de casa, domésticas, pedreiro,
motoristas, seguranças, pensionistas e profissionais autônomos mostrando que a imensa
maioria dos terceiros sargentos do 2º BI Mtz (Es) entrevistados pela pesquisa são filhos de
trabalhadores e basicamente, trabalhadores braçais, inseridos nos segmentos menos
favorecidos economicamente da sociedade. Um dado interessante a ser observado é a ausência
da prática de recrutamento endogâmico, nenhum entrevistado disse ser filho de militares do
Exército Brasileiro, prática comum entre oficiais.
Tratando das profissões que os terceiros sargentos entrevistados exerciam antes de se
tornarem militares, cinco indivíduos disseram que eram estudantes, um indivíduo disse que
era lavrador, dois indivíduos alegaram que trabalhavam como assistentes administrativos ou
auxiliares de administração, um indivíduo disse que já trabalhou como atendente de cinema,
como recenseador, comerciário, funcionário de fábrica e um entrevistado apontou que já
trabalhou como auxiliar de mecânico de automóveis e também auxiliar de pedreiro sendo que
dois dos entrevistados apontaram ter exercido quatro profissões diferentes antes do ingresso
no Exército.
Sobre a naturalidade dos entrevistados foram citados os seguintes estados e cidades:
Minas Gerais - Juiz de Fora, Miradouro; Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, Nilópolis, Nova
Iguaçu, Mesquita. Apesar do 2º BI Mtz (Es) estar localizado na Vila Militar do Rio de
Janeiro, compõe seus quadros terceiros sargentos tanto temporários quanto de carreira
originários de outros estados além do Rio de Janeiro.
Perguntados sobre bairro e cidade em que residiam as respostas foram as seguintes:
Rio de Janeiro – Realengo, Anchieta, Vila Militar, Costa Barros; São João de Meriti – Vilar
dos Teles; Duque de Caxias – Vila Rosário; Nova Iguaçu - Bandeirantes. Cabe destacar o
número considerável de entrevistados que residem em bairros pobres na zona oeste do Rio de
Janeiro e em cidades da Baixada Fluminense, segundo o IBGE, cidades com Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) consideravelmente mais baixo se tomado como referência a
capital, que apresentava em 2017 IDH 0,799.
Dando continuidade às entrevistas foi perguntado aos terceiros sargentos qual foi o
primeiro contato dos mesmos com o Exército Brasileiro. Um ponto importante de confluência
entre várias falas de diversos entrevistados, principalmente aqueles do sexo masculino, está
relacionado ao serviço militar obrigatório. Por ser lei federal, todos os indivíduos do sexo
masculino no ano em que completam dezoito anos precisam se alistar para o serviço militar e
aqueles que são aprovados nas fases da seleção, prestam o serviço militar obrigatório e daí
vem os primeiros contatos de muitos dos entrevistados com a instituição, seja do próprio
indivíduo ou de parentes próximos como pais, irmãos, tios e primos. Outro ponto de
confluência importante nas falas de entrevistados com relação ao primeiro contato com a
instituição são os processos seletivos conduzidos pelo Exército, tanto para militares
temporários quanto para o Concurso de Admissão à Escola de Sargentos das Armas, concurso
nacional esse que conta anualmente com milhares de inscritos que buscam se tornarem
sargentos de carreira, os quais muitas das vezes frequentam cursinhos preparatórios, caso de
alguns dos entrevistados.
A questão seguinte abordava as expectativas e o forma com que os terceiros
sargentos do grupo entrevistado viam no Exército Brasileiro no momento em que ingressaram
na instituição. Quatro os entrevistados ressaltaram uma visão positiva inicial sobre a
instituição, três entrevistado disse que não tinha qualquer tipo de visão sobre a instituição
antes de ingressar nela, outro entrevistado destacou que via a instituição como um trampolim
para uma melhoria de condições de vida. Sobre as expectativas que possuíam no período em
questão apenas alguns entrevistados mencionaram-nas, sendo a possibilidade de adquirir
melhores condições financeiras e consequentemente melhoria da qualidade de vida familiar, a
expectativa citada.
Prosseguindo no questionário, a pergunta seguinte era sobre o ano de incorporação
do entrevistado ao Exército Brasileiro. Os anos citados pelos entrevistados foram os
seguintes: um entrevistado - 2009; uma entrevistada - 2012; três entrevistados – 2013; um
entrevistado 2014; um entrevistado – 2015; um entrevistado – Cumpriu apenas serviço militar
obrigatório em 2004 e retornou como sargento técnico temporário em 2015. Cabe ressaltar
que a maioria dos entrevistados tem pelo menos cinco anos de experiência como militares.
As experiências profissionais são também impregnadas por percepções da vivência
pessoal e social do indivíduo que costumam destacar alguns marcos e eventos. Marcadores
(marcos) importantes da realidade brasileira são eventos ritualizados, os quais foram
analisados por Roberto Da Mata na obra Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia
do dilema brasileiro, importante análise etnográfica de eventos públicos presentes no país. O
autor destaca a parada militar, se referindo ao dia da pátria como um evento desse tipo no
qual:
O povo faz seu papel de assistente, e, junto com os soldados, prestigia o ato de
solidariedade e respeito às autoridades e aos símbolos nacionais (a bandeira e as
armas da República), por meio do sinal paradigmático da continência. A forma
assumida desse gesto é uma parada militar, termo que, em português, vem do verbo
parar e que tem alto conteúdo simbólico. De fato o desfile militar (e desfilar é andar
em fila) aponta simbolicamente para um congelamento ou uma “parada” da estrutura
social, e não poderia ser de outro modo. Isso porque as corporações desfilam
seguindo uma rigorosa ordem interna (com oficiais na frente, acompanhando a
bandeira da corporação e da bandeira nacional) e uma rigorosa ordem de desfile. A
cerimônia segue, pois, atualizando em todos os seus níveis atualizando as distinções
hierárquicas, estando organizada numa cadeia de comando que vai das autoridades civis e militares, isoladas no palanque (as autoridades que recebem, como a
bandeira, as saudações ou continências), para as tropas que desfilam (ordenadas
segundo sua hierarquia interna), até o povo que participa da solenidade como
assistente. (DA MATA, 1997, p. 56-57.)
Algumas atividades militares muito semelhantes à descrição acima, com presença de
autoridades, símbolos nacionais e simbolismos militares compõe a passagem de todos os
integrantes pelo Exército e não é diferente no 2º BI Mtz (Es). Foi perguntado aos
entrevistados quais foram os eventos e cerimônias marcantes no primeiro ano dos mesmos na
condição de militares, e as respostas tiveram como pontos de convergência alguns eventos
específicos que são realizados anualmente nas mais diversas organizações militares, alguns
com a presença de familiares, entre eles a cerimônia de incorporação com a entrada simbólica
pelos portões da organização militar, a cerimônia de entrega da boina realizada após a
conclusão do primeiro acampamento do período de formação básica, tanto de militares
temporários quanto de carreira, a cerimônia de compromisso à bandeira nacional e a
formatura de conclusão do período básico no caso dos sargentos de carreira
A pergunta seguinte tratou sobre cursos de formação e especialização que os
terceiros sargentos entrevistados realizaram no Exército Brasileiro. As respostas apontaram os
seguintes cursos e especializações: Curso de Formação de Sargentos – todos os sargentos de
carreira entrevistados; Formação de soldado, Curso de Formação de Cabos e Curso de
Formação de Sargentos Temporários – Todos os sargentos temporários entrevistados; Estágio
Básico de Sargentos Técnicos Temporários – todos os sargentos técnicos temporários
entrevistados; Formação de soldado – um sargento técnico temporário que cumpriu serviço
militar obrigatório; Curso Básico Paraquedista – dois sargentos de carreira entrevistados.
Continuando o questionário foi perguntado aos terceiros sargentos quanto tempo
servem no 2º BI Mtz (Es), Regimento Avaí. As respostas foram as seguintes: Um entrevistado
– oito anos; dois entrevistados - seis anos; dois entrevistados - cinco anos; um entrevistado –
quatro anos; um entrevistado – três anos; um entrevistado – dois anos e meio. Levando em
consideração o grupo entrevistado foi possível perceber que mesmo alguns militares de
carreira, que podem se transferir para outras guarnições após três anos de permanência em
guarnição comum, caso do Rio de Janeiro, permanecem por mais tempo na organização
militar, já no caso dos militares temporários e técnicos temporários, a possibilidade de
movimentação é bastante limitada e restrita, ocorrendo em situações bastante específicas,
podem ser transferidos de organização militar dentro da mesma guarnição, salvo raríssimas
exceções.
Foi perguntado aos entrevistados por quais organizações militares os mesmos haviam
passado antes do 2º BI Mtz (Es). As respostas foram as seguintes: dois entrevistados – 57º
Batalhão de Infantaria Motorizada (Escola); um entrevistado – Batalhão Escola de
Comunicações, ambos na Vila Militar do Rio de Janeiro; um entrevistado - Escola de
Sargentos das Armas, Três Corações – MG; um entrevistado – 20º Regimento de Cavalaria
Blindado, Campo Grande – MS; três entrevistados - Escola de Sargentos de Logística, Rio
de Janeiro – RJ; um entrevistado - 3ª Companhia de Fronteira/ Forte Coimbra – MS. A
passagem dos militares temporários por outras organizações militares no caso da maioria dos
militares entrevistados destinou-se a realizar cursos de formação centralizados em Batalhões
específicos de determinadas qualificações militares (QM) com militares de outras
Organizações Militares (OM), retornando na sequência para a OM de origem, no caso de um
técnico temporário entrevistado a passagem por outra OM foi para cumprir serviço militar
obrigatório em um período anterior, no caso dos sargentos de carreira existe um incentivo do
Exército Brasileiro para que os mesmos adquiram vivência nacional servindo em diversas
guarnições no país, ao passo que o próprio processo de formação dos mesmos os obriga a
realizar o período básico inicial do curso de formação de sargentos em algumas Organizações
Militares de Corpo de Tropa (OMCT) espalhadas pelo país, e na segunda etapa do curso
concentra os em três escolas de formação, sendo elas: Escola de Sargentos das Armas – Três
Corações - MG; Escola de Sargentos de Logística – Rio de Janeiro - RJ e Centro de Instrução
de Aviação do Exército – Taubaté –SP e após concluída a formação são designados para as
diversas organizações militares do Exército espalhadas pelo Brasil.
Questionados sobre o ano de promoção à graduação de terceiro sargento, os
entrevistados citaram os seguintes anos: 2011 – um entrevistado, 2013 – uma entrevistada -
2014 – dois entrevistados, 2015 - dois entrevistados, 2016 – um entrevistado e 2019 – um
entrevistado. Levando em consideração o tempo que os terceiros sargentos permanecem na
graduação, pela legislação atual oito anos, apenas os sargentos de carreira são promovidos à
graduação de segundo sargento, tendo em vista que os temporários e técnico temporários já
terão esgotado os oito anos de tempo de serviço e terão dado baixa do serviço ativo.
Indagados sobre a qualificação militar (QM) as respostas foram as seguintes: Dois
entrevistados - Comunicações; Um entrevistado – Técnico temporário administrativo; Dois
entrevistados – Infantaria; Um entrevistado – Intendência; Uma entrevistada – Saúde/ Tec.
Enfermagem; Um entrevistado -Material Bélico / Manutenção de armamento. Conforme já
mencionado, para a presente pesquisa foi priorizado a variedade de qualificações militares e
situações dos terceiros sargentos do 2º BI Mtz (Es) que se voluntariaram para as entrevistas.
Foi perguntado aos terceiros sargentos quais impressões eles tiveram sobre suas as
atividades que passaram a exercer e sobre a instituição após serem promovidos. Alguns
entrevistados destacaram a crescente responsabilidade que passaram a assumir após a
promoção e ressaltou no ganho de espaço e autoridade de fala, contudo alguns mencionaram
também as limitações desse espaço que mesmo sendo maior que aquele gozado pelos cabos e
soldados possui ainda limitações consideráveis, dois entrevistado mencionaram de forma vaga
que conseguiu atingir objetivos após serem promovidos, um entrevistado mencionou que após
a promoção passou a ser sentir mais profissional, um entrevistado mencionou que tem a
percepção que exerce uma atividade extremamente relevante, destacou também a experiência
tendo em vista que exerce a mesma função desde quando foi promovido, mesmo em
organizações militares diferentes.
A pergunta subsequente, na mesma direção era sobre a visão que os terceiros
sargentos tiveram sobre as novas responsabilidades que passaram a assumir após serem
promovidos. Um entrevistado destacou que por exercer uma função vital para o cumprimento
dos pagamentos das contas do 2º BI Mtz (Es) seu trabalho é importante para o bom
funcionamento da organização militar, um entrevistado mencionou que houve certa
continuidade com relação às responsabilidades tendo em vista que anteriormente já assumia
encargos que em tese seriam de militares com graduações superiores, dois entrevistados
destacaram as responsabilidades inerentes à formação militar e cidadã dos jovens recrutas que
ingressam anualmente no 2º BI Mtz (Es) para cumprirem o serviço militar obrigatório assim
como nos processos de formação e adestramento de soldados do efetivo profissional, cabos e
sargentos temporários quem compõe os quadros da organização militar.
Ao serem questionados acerca de mudanças na vida social e familiar após a
promoção alguns terceiros sargentos, mais especificamente cinco destacaram mudanças na
parte financeira de suas vidas e os impactos disso na realidade social em que viviam, assim
como abertura de novas possibilidades, entre elas cursar o ensino superior no caso de um
entrevistado, outro sargento destacou as mudanças que ocorreram devido à transferência para
a guarnição de Forte Coimbra, no Estado de Mato Grosso do Sul, sendo que a família do
mesmo e a namorada na época residiam no Rio de Janeiro, o mesmo cita ainda que o
relacionamento afetivo com a agora ex-namorada não resistiu à distância, apontou também
que teve dois casamentos que acabaram se findando devido às transferências de localidade
destacando que são riscos de perda inerentes à carreira militar.
Tratando ainda de mudanças ocorridas após a promoção à graduação de terceiro
sargento do Exército, foi questionado aos entrevistados o que mudou na relação com os
antigos companheiros militares após sua promoção. Os sargentos temporários destacaram
terem de lidar com certo incômodo dos militares que ingressaram na mesma condição que os
mesmos no Exército e não obtiveram o mesmo êxito, um entrevistado ressaltou o uso das
prerrogativas adquiridas após a promoção para se impor sobre alguns dos antigos
companheiros e preservar o status quo institucional. Os sargentos de carreira não destacaram
mudanças significativas na relação com os antigos companheiros militares tendo em vista que
ingressaram na instituição na condição de aluno do curso de formação de sargentos e foram
promovidos ao mesmo tempo à graduação de terceiro sargento, seguindo cada um para a
organização militar de corpo de tropa previamente escolhida de acordo com a classificação no
curso, um entrevistado apontou também uma relação bastante profissional com os
companheiros.
Abordando as relações envolvidas no exercício profissional, foi indagado aos
entrevistados quais mudanças eles perceberam no tratamento dos superiores hierárquicos após
a promoção. As respostas dos sargentos temporários e dos sargentos de carreira assumiram
variações consideráveis, no caso dos temporários foi destacada a grande diferença de
tratamento que recebiam como soldado para o tratamento que passaram a receber ao serem
promovidos à graduação de terceiro sargento, obtendo voz ativa e maior consideração dos
superiores no processo de tomada de decisão e sugestões para execução de atividades diversas
assim como o fato de assumir maiores responsabilidades, um entrevistado mencionou que
baseado nisso, procura dar maior espaço de fala para os subordinados. No caso dos sargentos
de carreira as mudanças destacadas apontam um tratamento mais profissional após a
promoção.
Foi perguntado aos entrevistados como ficou a relação dos mesmos com outros
militares que anteriormente eram superiores hierárquicos ou equiparados a eles e a promoção
tornou os entrevistados mais antigos que os citados militares. Alguns sargentos temporários
destacaram reações como descontentamento em alguns militares e também reconhecimento
do esforço e do mérito em outros militares na mesma situação, um entrevistado mencionou
que essa reviravolta é algo natural dentro da instituição e não altera o exercício profissional de
ambos os militares, no caso dos sargentos de carreira foram apontadas diferentes reações,
destacando opostos onde um entrevistado mencionou a prevalência do profissionalismo e a
preservação da hierarquia, já outro entrevistado deu ênfase aos companheiros de turma que
conseguiu ultrapassar na classificação e fez questão de zombar dos mesmos e tripudiar sobre a
situação.
Finalizando o questionário com as perguntas aplicada à todos os entrevistados, a
vigésima quinta questão abordou os entrevistados se os mesmos chegaram a pensar em sair do
Exército ou a se imaginar trabalhando em outra área após ser promovido e em caso afirmativo
em qual área e por quê. A variação entre as respostas de sargentos de carreira e temporários
cabe ser destacada. Os sargentos temporários tem pleno conhecimento que após oito anos de
serviço encerram as possibilidades de renovação de reengajamentos como militares
temporários, frente a isso os que foram entrevistados por essa pesquisa destacaram estar se
preparando para a transição para a vida civil, inclusive cursando nível superior de ensino ou
formações técnicas, um entrevistado inclusive mencionou que já concluiu sua graduação em
Análise e desenvolvimento de Sistemas, outro entrevistado disse estar cursando Radiologia.
Quanto aos sargentos de carreira, o militar que serviu em Forte Coimbra por dois anos e dois
meses, alegou que devido às inúmeras dificuldades de deslocamento, distância e isolamento
por inúmeras vezes pensou em abandonar a carreira militar, contudo permaneceu e atualmente
se sente cômodo e caso venha algum dia a investir em outra área pensa em abrir um negócio
próprio na área de mecânica de automóveis, outro militar de carreira disse que o interesse
maior atualmente é servir em seu estado natal, e caso não consiga pensa em prestar concurso
para o Corpo de Bombeiros Militares, frente a isso cabe observar que os sargentos de carreira
entrevistados apresentaram falas apontando que estão bem estabilizados na situação em que se
encontram e na carreira militar.
Considerações finais
Analisando as respostas do grupo de terceiros sargentos ao questionário aplicado
para essa pesquisa foi possível traçar um perfil social dos mesmos, assim como apontar
transformações, desafios e novas situações e responsabilidades adquiridas mediante a
promoção à graduação de terceiro sargento do Exército Brasileiro.
Oriundos em sua maioria de uma realidade social pobre, filhos de trabalhadores
braçais na maioria dos casos, os entrevistados demonstraram através de suas falas que a
mencionada promoção tanto para militares de carreira quanto temporários representou um
marco para os mesmos implicando em inúmeras mudanças, tanto de caráter financeiro e
pessoal quanto mudanças no exercício profissional. Tal análise contempla ainda as limitações
dessas mudanças ao mostrar que os entrevistados tiveram melhorias financeiras, contudo
ainda residem em locais menos privilegiados da capital fluminense e região metropolitana.
Foram elaboradas questões que permitissem aos entrevistados expor de forma
consideravelmente ampla a autopercepção como indivíduos e autoconstrução como
profissionais, ambas ligadas ao grupo profissional de praças e terceiros sargentos destacando
principalmente a formação do Habitus, conceito criado por Pierre Bourdieu para dar conta das
características intrínsecas e relacionais dos indivíduos. O trabalho levou ainda em
consideração e apresentou elementos caracterizantes do condicionamento dos indivíduos
produzido tanto durante a formação militar inicial dos mesmos, quanto pelas práticas e
peculiaridades do militarismo produzidas e praticadas diariamente nas mais diversas
organizações militares do Exército Brasileiro, entre elas o 2º Batalhão de Infantaria
Motorizada (Escola), campo de pesquisa usado para realização do presente trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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academia militar das Agulhas Negras. 2ª Edição. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
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MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental: Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia.
2ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARCONI, Marina de Andrade; PRESSOTO, Zélia Maria Neves. Antropologia:
Uma introdução. 7ª Ed. 3ª Reimpressão. São Paulo: Atlas, 2010.
ANEXOS
ENTREVISTA
REGIMENTO AVAÍ (2º BI Mtz (Es))
Código de identificação:_________
1) Qual a sua idade?
2) Qual é o seu grau de escolaridade?
3) Qual cor de pele você declara possuir?
4) Qual é o seu estado civil?
5) Você possui dependentes (caso possua, quantos)?
6) Qual é a profissão dos pais?
7) Qual profissão você exercia antes da sua incorporação ao Exército?
8) Qual a sua naturalidade?
9) Em qual bairro e cidade você reside?
10) Qual foi seu primeiro contato com o Exército Brasileiro?
11) Quais eram suas expectativas e visão sobre a instituição que possuía nesse momento?
12) Qual foi seu ano de incorporação ao Exército?
13) Quais foram as cerimônias e eventos marcantes no seu primeiro ano de Exército?
14) Quais cursos militares entre formação e especialização você realizou?
15) Está servindo no Avaí á quanto tempo?
16) Por quais Organizações Militares já passou além do Avaí?
17) Quando foi promovido á 3º Sargento?
18) Qual á sua QM (Arma, quadro, serviço)?
19) Quais suas impressões sobre suas novas atividades e sobre a instituição após ser
promovido?
20) Qual sua visão sobre as novas responsabilidades que passou a assumir?
21) Algo mudou na sua vida social e familiar após a promoção?
22) O que mudou na sua relação com os antigos companheiros militares após sua
promoção?
23) Quais mudanças você percebeu no tratamento dos superiores hierárquicos com
relação a você após sua promoção?
24) Como ficou sua relação com outros militares que eram mais antigos ou equiparavam
a você e você se tornou mais antigo que eles após ser promovido?
25) Você chegou a pensar em sair do Exército ou a se imaginar trabalhando em outra
área após ser promovido? Qual área e por quê?