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Virgílio Franceschi Neto
O PAPEL DO FUTEBOL NA PROMOÇÃO DOS
REGIMES MILITARES DO BRASIL E DA
ARGENTINA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais
Orientador: Professor Dr Manoel Neto
Belo Horizonte
200
3
“Hay quienes sostienen que el fútbol no tiene nada que ver con la
vida del hombre, com sus cosas más esenciales.
Desconozco cuánto sabe esa gente de la vida. Pero de algo estoy
seguro: no saben nada de fútbol.”
Eduardo Sacheri
4
RESUMO
O objetivo deste trabalho é tentar demonstrar que, além de vários outros instrumentos de
promoção política, os regimes autoritários também dispõem dos esportes para fazer valer seus
interesses. Dessa maneira foi abordada a forma como os regimes militares do Brasil (1964-1985)
e da Argentina (1976-1983) - através de símbolos, canções, textos e discursos de autoridades -
transformaram o futebol nas Copas do Mundo de 1970 e 1978, respectivamente, em uma
ferramenta para se manterem no poder.
Palavras chave: Esporte e poder; Copas do Mundo; Futebol
5
ABSTRACT
The goal of this work is try to bring into evidence that besides having many instruments for
political promotion, authoritarian regimes also have sports to support and contribute with their
interests. In this way, the work deals how, beyond symbols, jingles, texts and speeches of
authorities, the Military governments from Brazil (1964-1985) and Argentina (1976-1983)
potentially used sports and specifically football in the World Cup Finals of 1970 and 1978,
respectively, as a tool to remain in power.
Key words: Sports and Power; World Cup Finals; Football
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 7
2 ESPORTE E POLÍTICA: EXEMPLOS HISTÓRICOS .............................................................. 9
2.1 Análise Geral ......................................................................................................................... 9
2.2 Estados Unidos versus União Soviética: a Guerra Fria no Plano Esportivo ....................... 10
2.3 Uma Nação, Dois Países, Dois Sistemas: a Disputa entre as Alemanhas Federal e
Democrática ............................................................................................................................... 12
2.4 O Esporte nos Regimes Nazista e Fascista .......................................................................... 14
2.5 O Futebol e o Regime de Franco ......................................................................................... 18
2.6 Futebol e o Salazarismo em Portugal .................................................................................. 21
2.7 Brasil e Argentina: uma Introdução ao Estudo dos Casos .................................................. 22
3 OS REGIMES MILITARES NO BRASIL E NA ARGENTINA .............................................. 25
3.1 O Golpe Militar de 1964 no Brasil ...................................................................................... 25
3.2 Os Preparativos para a Copa do Mundo do México ............................................................ 31
3.3 O Período Posterior à Copa de 1970 ................................................................................... 32
3.4 A Argentina e o Golpe Militar de 1976 ............................................................................... 33
3.5 A Copa do Mundo como Política de Estado ....................................................................... 37
3.6 Os Preparativos e a Militarização da Seleção Argentina .................................................... 38
3.7 A Copa de 1978 ................................................................................................................... 40
4 FUTEBOL, NACIONALISMO E IDENTIDADE NACIONAL .............................................. 42
4.1 Identidade Nacional ............................................................................................................. 42
4.2 Futebol e Identidade Nacional na Argentina ....................................................................... 45
4.3 Futebol e Identidade Nacional no Brasil ............................................................................. 47
4.4 O Futebol e as Multidões ..................................................................................................... 49
5 O FUTEBOL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO: ABORDAGEM TEÓRICA, ANÁLISE
DE SÍMBOLOS E DISCURSOS .................................................................................................. 54
5.1 O Construtivismo e as Relações Internacionais .................................................................. 54
5.2 Estado Nacional, Nacionalismo e Identidade ...................................................................... 57
5.3 O Futebol como Instrumento Político na Argentina e a Copa de 1978 ............................... 61
5.4 O Futebol como Instrumento Político no Brasil e a Copa de 1970 ..................................... 73
6 CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 80
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................... 83
ANEXOS ....................................................................................................................................... 88
7
1 INTRODUÇÃO
Esporte e política andam de mãos dadas, já disse Eduardo Galeano (1995). Isso é
constatado pelos acontecimentos do século XX em que foram verificadas relações entre esses
dois elementos: nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, sede de um governo nazista alemão; as
Olimpíadas como palco simbólico do embate político na Guerra Fria, com capitalistas de um lado
(Estados Unidos) e socialistas do outro (União Soviética). A vitória de um dos lados simbolizava
a vitória de um regime. Assim como foi o futebol para as Alemanhas, Ocidental e Oriental, com
governos de orientações distintas, na Copa do Mundo de 1974. O mesmo esporte também fora
instrumento de promoção de regimes ditatoriais como o de Franco na Espanha e o de Salazar em
Portugal. E Isso não ficou restrito apenas ao hemisfério norte. Dizem que o Brasil é o país do
futebol. Talvez seja mesmo, mas a Argentina também é. Por isso que essa modalidade também
foi usada nesses países como um instrumento político. É justamente nisso que este trabalho
pretende se ater: na relação entre esporte, e mais especificamente o futebol, e a política, buscando
entender como os regimes militares, brasileiro (1964-1985) e argentino (1976-1983), usaram o
futebol como um meio para atingirem objetivos políticos.
Na primeira parte do trabalho, serão descritos exemplos históricos dessa relação, como os
Jogos Olímpicos durante a Guerra Fria e durante o regime nazista de Hitler; o futebol com o
fascismo de Mussolini e também com os governos ditatoriais de Franco e Salazar; o futebol
também na Guerra Fria, no caso do enfrentamento entre as duas Alemanhas. Em seguida, para
que seja possível a compreensão do contexto em que o esporte foi trabalhado pelos regimes
militares do Brasil e da Argentina, será preciso fazer uma abordagem histórica separadamente das
duas ditaduras e entender como foi o golpe militar, seus atores e a situação da época em cada país
(política, econômica e social). Feito isso, o trabalho passa a ter como propósito entender os
8
motivos ou razões pelos quais o futebol foi intensamente usado por esses regimes militares como
um instrumento de manutenção no poder. Essa análise será feita no capítulo três, em que serão
abordadas questões acerca do Estado-nação, do nacionalismo e da identidade nacional com o
intuito de se entender como o esporte – mais precisamente o futebol – faz parte da identidade
nacional desses dois países, do cotidiano das duas populações e com isso deixar mais claro as
motivações que levaram os regimes militares a se promoverem através dele.
Como sendo a última parte, o conteúdo do quarto capítulo propõe uma análise da relação
entre esporte e poder a partir da perspectiva Construtivista das Relações Internacionais, assim
como das ações dos governos. Ou seja, pretende-se discutir como se deram as apropriações do
futebol por cada uma das duas ditaduras – do Brasil e da Argentina -, através da análise das
políticas e das interpretações dos discursos feitos pelos presidentes dos dois países e dos símbolos
utilizados nos períodos das copas do mundo.
9
2 ESPORTE E POLÍTICA: EXEMPLOS HISTÓRICOS
2.1 Análise Geral
A política, tanto nos níveis nacional e inter-estatal, é marcada por inúmeras
demonstrações de poder. Estas manifestações têm como objetivo principal difundir princípios e
ideais de um regime político; fazer valer e mostrar a grandiosidade de um governo; propagar
novos valores; demonstrar o quão completa e eficiente é uma ideologia (GALEANO, 1995).
Como exemplos disso podemos citar a invasão da Polônia pela Alemanha de Hitler, o que foi o
estopim para a II Grande Guerra; a invasão das Ilhas Falkland (Malvinas) no Atlântico Sul,
pertencentes ao Reino Unido, pela Argentina em 1982; a construção de estradas, pontes, obras de
infra-estrutura monstruosas, como foi marcado o período militar da década de 1970 no Brasil e
em outros regimes autoritários latino-americanos. Na Inglaterra e nos Estados Unidos tais
demonstrações se dão principalmente no âmbito econômico, com prescrições Conservadoras ou
Trabalhistas, de Republicanos e Democratas, respectivamente.
O esporte, como não poderia deixar de ser, também é um meio de demonstração,
legitimação de poder. É clara a idéia de que futebol e política andam de mãos dadas (GALEANO,
1995). Desde os tempos em que o esporte começa a atrair a atenção das multidões o ambiente dos
jogos também se torna palco de diferentes manifestações, entre elas as religiosas, as econômicas,
as sociais, as étnicas e, como não poderiam faltar, as políticas.
Como já é sabido, o esporte é capaz de mexer com centenas de milhares de pessoas ao
mesmo tempo, sendo, portanto, um canal muito eficiente para poder lidar com a população. Por
isso, ele possui uma enorme dimensão política. Muitas vezes a política chega a depender do
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esporte e vice-versa e, como não poderia deixar de ser, os políticos se sentem no direito de
interferir nele (GALEANO, 1995). Uma vez isso posto, como se daria – e se deu – historicamente
tais interferências? Para que possamos fazer um aprofundamento sobre aquilo a que se propõe
este trabalho, detalhamos, a seguir, alguns exemplos do exposto acima.
2.2 Estados Unidos versus União Soviética: a Guerra Fria no Plano Esportivo
Durante os anos da Guerra Fria, o esporte foi palco de enfrentamento entre o mundo
“capitalista” e o “socialista”. O desempenho dos atletas de cada um desses mundos significava
qual deles seria o melhor para viver, qual deles poderia proporcionar ao ser humano uma situação
mais confortável. Com isso, os governos utilizavam os êxitos de seus atletas para auspiciar o seu
“mundo” e desmerecer o “mundo” oposto. Nesse cenário, os Jogos Olímpicos, por serem o maior
evento esportivo mundial, foram extremamente usados para o confronto entre esses dois sistemas.
Isso ficou marcado também com a disputa entre a Alemanha Federal (capitalista) e a Alemanha
Democrática (socialista). Embora este processo também tenha ocorrido entre a Alemanha Federal
(capitalista) e a Alemanha Democrática (socialista), neste momento abordaremos a disputa entre
Estados Unidos e a União Soviética.
Esses dois países despontaram como os vencedores da Segunda Grande Guerra,
juntamente com os ingleses. Dois países com regimes políticos e econômicos antagônicos, mas
com a pretensão de aumentar a sua esfera de influência em nível global. Com isso, os
estadunidenses viam os soviéticos como uma ameaça e vice-versa. É possível fazer uma relação
entre a política anti-comunista do governo norte-americano durante a década de 1950 e o início
da participação da União Soviética nos Jogos Olímpicos a partir de Helsinque, em 1952. Tal fato
acentuava ainda mais esse choque entre as duas potências, cuja disputa agora entraria
11
definitivamente no âmbito esportivo. O espírito Olímpico de união dos povos do globo perdia seu
fundamento: o mundo estava dividido entre dois sistemas (VAREJÃO, 2003).
Nesse caminho, os Jogos Olímpicos e seus atletas levavam juntos uma significação que ia
muito além da competição esportiva. Estes últimos não eram apenas desportistas, mas antes,
representantes de um povo, de um sistema. A rotina de um competidor no mundo socialista era a
de um militar, o que o levava, não raramente, à exaustão. Atletas que eram conduzidos para a
perfeição, cobrados por dirigentes e treinadores – geralmente e extremamente – rígidos, que
estavam sob observação do aparelho estatal, obcecado por bons resultados. Do lado capitalista, o
Estado e a iniciativa privada bancavam a preparação de seus desportistas. Todo esse empenho
teve como fundo a idéia de que o bom resultados nos esportes significava o sucesso desse sistema
e, conseqüentemente, de uma ideologia. O que dizer do jogo final do torneio de basquetebol
masculino nos jogos de Munique em 1972? Essa conquista dos soviéticos frente aos
estadunidenses não significou apenas a hegemonia mundial nesse esporte – seria um equívoco
pensar dessa forma. Era também o êxito, simbólico, do socialismo (CARDOSO, 1996).
A organização dos Jogos também refletiu tal embate entre esses mundos. Em 1980, os
soviéticos organizaram as Olimpíadas; quatro anos mais tarde, foi a vez dos norte-americanos. Na
de Moscou, os estadunidenses não compareceram e obtiveram a adesão de vários países de sua
esfera de influência; em Los Angeles, a União Soviética e a maioria dos países da sua esfera de
influência não compareceram. Os jogos de 1980 foram integralmente financiados pelo aparelho
estatal, mostrando o poder e a força governamental. A competição de Los Angeles, pela primeira
vez na historia, foi completamente realizada através de recursos vindos da iniciativa privada.
Dizer qual país foi o melhor organizador e anfitrião é demasiadamente difícil. A União
Soviética superou os Estados Unidos no quadro de medalhas, mas isso jamais chegou a significar
a eficiência de um regime político, apesar de seus governos usarem isso para tal (VAREJÃO,
12
2003). Em uma coisa a opinião pública converge: os Jogos com a ausência de uma dessas duas
potências não possuíam a mínima graça; não chegavam a despertar tanto interesse.
2.3 Uma Nação, Dois Países, Dois Sistemas: a Disputa entre as Alemanhas Federal e
Democrática
A constante disputa pelo primeiro lugar no quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos
evidencia o embate entre os sistemas capitalista e socialista não só com o enfrentamento – no
plano das competições esportivas – entre a União Soviética e os Estados Unidos. A Alemanha
Ocidental (RFA) e a Alemanha Oriental (RDA) também faziam parte do mesmo duelo, afinal de
contas era a disputa entre dois países pertencentes a uma mesma nação (a alemã), mas seguidores
de diferentes sistemas políticos.
Ao término da Segunda Grande Guerra, a Alemanha foi dividida em duas: a Ocidental
(RFA) e a Oriental (RDA). Esta seguia uma política orientada por Moscou; aquela, por sua vez,
tinha nos ingleses, franceses e estadunidenses, seus apoiadores. A Alemanha também irá servir de
exemplo de como a política (principalmente no lado alemão-oriental, o socialista) se envolve com
o esporte, em um relacionamento tanto exitoso, às vezes, quanto polêmico.
O reconhecimento por parte do Comitê Olímpico Internacional de algum Comitê
Olímpico de um país significa, por conseqüência, o reconhecimento, a “aceitação” de um Estado
no sistema internacional. Assim sendo, esse Estado, em nome e em defesa do nacionalismo, não
economizará esforços para obter os melhores resultados possíveis (VAREJÃO, 2003).
No caso alemão, a nação estava dividida entre dois Estados, dois sistemas. O desempenho
no âmbito esportivo poderia indicar qual desses sistemas seria o mais viável, mais eficaz, enfim,
qual desses dois sistemas seria melhor. Através do esporte, portanto, o mundo seria capaz de
13
compará-los. Inicialmente, as duas Alemanhas competiram sob uma mesma bandeira, mas à
medida em que o tempo foi passando, os dois lados passaram a competir separadamente. A partir
dos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México, a Alemanha Federal e a Alemanha
Democrática disputaram separadamente. Nas competições que vieram posteriormente – durante a
existência desses dois países – a Oriental (RDA) obteve uma ampla vantagem nos resultados
(quadro de medalhas, classificação geral, quebra de recordes). Um êxito da Alemanha Oriental
nos esportes significava simbolicamente o triunfo do regime socialista. Conquistas como o da
nadadora Kornelia Ender1 ou do futebolista Jürgen Sparwasser
2 eram usados como propaganda
política. Movidos por esse sentimento, ou melhor, por tais questões, o governo da Alemanha
Oriental investiu maciçamente na formação de seus atletas, que eram funcionários do Estado. Tal
investimento não se deu apenas na construção de praças esportivas ou complexos olímpicos.
Houve muita pesquisa na área médica, na farmacologia e na de alimentação, para se construir
“super-atletas”, pessoas que mais tarde – muito depois da reunificação alemã (1991) - mostrar-se-
iam como tendo sido cobaias dessa guerra ideológica entre o capitalismo e o socialismo. Atletas
tão saudáveis, mas que hoje andam de cadeira-de-rodas devido a alguns medicamentos que
tomaram para melhorar o rendimento (VAREJÃO, 2003. OROZCO, 2004).
Para deixar clara a obsessão por bons resultados e provar a eficiência de um regime
político, nas Olimpíadas de Munique em 1972 (cidade alemã-ocidental à época) os orientais
ficaram à frente dos ocidentais no quadro de medalhas. No Campeonato Mundial de Futebol de
1974, também realizado em território alemão-ocidental, os alemães do leste (orientais) venceram
os mesmos ocidentais em uma partida que significou para alguns o maior embate simbólico no
1 Campeã Olímpica nos Jogos de Montreal 1976;
2 Autor do gol sobre os alemães-ocidentais na Copa de 74 e Campeão Olímpico nos Jogos de 1976;
14
futebol entre o socialismo e o capitalismo3. Em entrevista a uma revista brasileira, Jürgen
Sparwasser, jogador autor do gol alemão-oriental sobre os ocidentais na Copa de 74 foi
perguntado sobre sua posição frente ao sistema político da RDA e assim respondeu:
Olha, quando você nasce num país, cresce, vai à escola e obtém sucesso nele, é natural
que queira defendê-lo. Além disso, devo tudo o que conquistei em minha carreira ao
Magdeburg e à seleção. Não tenho culpa de ter nascido naquele país. (OROZCO,
2004, p.53).
Em uma outra pergunta, ele respondeu enfaticamente sobre se houve algum tipo de
pressão do governo para vencer a Alemanha Federal:
Não! Ainda estou para ver alguém que entre em campo sem a vontade de querer
vencer. Principalmente numa partida entre seleções nacionais. (OROZCO, 2004, p.53).
Por último, Sparwasser comentou sobre a repercussão do jogo na imprensa alemã-
ocidental:
Se você der uma olhada nos jornais da época, vai ver que o sentimento (na Alemanha
Ocidental) foi quase catastrófico. Sabíamos que podíamos vencê-los na natação e no
atletismo; no futebol, éramos fregueses. Por isso é que a imprensa ocidental ficou um
pouco frustrada.(OROZCO, 2004, p.53).
2.4 O Esporte nos Regimes Nazista e Fascista
O esporte também é trabalhado como meio de sustentação no poder por vários governos
autoritários. Hitler obteve muito êxito ao fazer isso. No começo os nazistas consideravam os
Jogos Olímpicos como um “infame festival promovido pelos judeus” (CARDOSO, 1996, p.100).
Com a escolha de Berlim em 1931 para ser sede dos jogos de cinco anos mais tarde e com a
3 Jogo realizado na cidade de Hamburgo, em 22 de junho de 1974;
15
ascensão de Hitler ao poder em 1933, a opinião pública pensava que o novo governo alemão
condenaria tal evento. Aconteceu o oposto: baseado no ideal nazista de superioridade da raça
alemã, os Jogos Olímpicos seriam uma grande oportunidade para se demonstrar tal pressuposto,
um grande palco para se comprovar a inferioridade das demais etnias.
Sob a ameaça de um boicote pelos Estados Unidos, Hitler tolerou a participação de atletas
negros e judeus na delegação norte-americana. Aliás, foi um atleta negro estadunidense (Jesse
Owens) que tiraria a paciência do “Führer” ao conquistar quatro medalhas de ouro, concorrendo
com um atleta do país anfitrião. Como de costume, Hitler deveria entregar a medalha ao
vencedor. Entretanto, sempre que percebia que o provável vencedor poderia ser de uma “raça
inferior”, ele tinha o hábito de se retirar do estádio com antecedência.
O regime nazista proporcionou a seus atletas as melhores condições para que eles
atingissem a liderança no quadro geral de medalhas. A população alemã garantia o apoio aos
esportistas da casa. De fato a Alemanha de Hitler obteve o êxito necessário para ocupar a
primeira posição na classificação geral dos jogos de 1936. Vale dizer também que pela primeira
vez foi feito um filme, encomendado pelo governo do país anfitrião, em que as Olimpíadas, o
esporte e mais precisamente a raça ariana eram extremamente exaltados. Um filme que, aliás,
revolucionou a história do cinema: “Os Deuses dos Estádios”, de Leni Riefenstahl.
Segundo um ditado popular, o futebol é uma caixinha de surpresas. Por mais intrigante
que isso possa soar, esse ditado serve para explicar o fato da seleção alemã de futebol durante a
era de Hitler jamais ter obtido um momento de glória. Para começar, nos mesmos jogos de 1936,
os anfitriões – sob os olhos de seu líder – foram eliminados pelos noruegueses por 2 a 0 em um 7
de agosto. Aliás, os dois gols dos noruegueses foram anotados por um jogador cujo nome revela a
sua origem judaica: Isaaksen. Essa mesma data é rememorada todos os anos na Noruega, como o
dia em que eles venceram a Alemanha nazista (AGOSTINO, 2002, p. 72). Em um outro caso nos
16
mesmos jogos, mas que não envolvia o país-sede, e sim a Áustria (que viria mais tarde a ser
anexada por Hitler e cuja população também é de origem alemã), perdia para o Peru por 2 a 0. No
meio da partida houve uma invasão – seguramente pré-determinada - do campo, o que provocou
o cancelamento do jogo. Àquele tempo, quando isto acontecia uma nova partida deveria ser
realizada. Os peruanos não aceitaram e o presidente daquele país, Oscar Benavides,
inconformado com a decisão tomada pela organização dos Jogos Olímpicos, ordenou a retirada
da delegação incaica das competições. Naquela noite, a embaixada alemã em Lima fora
completamente apedrejada (AGOSTINO, 2002, p. 72).
No Campeonato Mundial de Futebol de 1938, na França, os nazistas queriam se
aproveitar do “Anschluss”4 e formar uma seleção com jogadores austríacos e alemães. Tal união,
entretanto, não foi bem sucedida. Do lado austríaco havia uma resistência: Sindelar, o “Homem
de Papel”, um anti-nazista, considerado o melhor jogador austríaco do século, recusou disputar a
Copa de 1938 por uma seleção que não era a de seu país. Ele cometeu suicídio em janeiro de
1939. Meses antes do Mundial de futebol na França (1938), em uma demonstração da política de
boa vizinhança, a Inglaterra foi a Berlim disputar um amistoso contra o selecionado local.
Göebbels, ministro de Propaganda do chamado Terceiro Reich, considerava a partida como o
embate futebolístico mais importante da história alemã. Cento e dez mil pessoas lotavam o
estádio Olímpico. Nas primeiras notas do hino inglês, os jogadores da Rainha estenderam os
braços em direção aos camarotes onde Hitler deveria estar. No decorrer do jogo, a Inglaterra
venceu por 6 a 3. Meses depois, na Copa do Mundo, os alemães foram eliminados pelos suíços.
Há quem diga que o “Führer” estraçalhou o rádio após o término partida e ainda teve a idéia de
tentar transferir a sede da F.I.F.A. (Federação Internacional de Futebol Associado) de Zurique
4 Anexação da Áustria pela Alemanha;
17
para Berlim, alegando o favorecimento dos suíços devido a isso. Se não fosse a neutralidade
desse pequeno país europeu, talvez hoje não existiria tal instituição.
O mesmo Göebbels afirmava que o futebol era capaz de envolver multidões. Foi
principalmente por esse motivo que a Alemanha continuou entrando em campo durante a
Segunda Grande Guerra. Além disso, tais jogos transmitiam a sensação de normalidade e
poderiam mexer com o sentimento patriótico do país. Nesse sentido, o futebol teve um papel
importante: a partir do momento em que os nazistas passaram a ter reveses nos campos de
batalha, o noticiário deveria ser preenchido com futebol, de preferência com vitórias obtidas nos
amistosos realizados pela sua seleção. Göebbels chegou a afirmar em 1942 que:
Cem mil pessoas deixaram o estádio em um estado depressivo. Vencer uma partida é
mais importante para o povo do que capturar uma cidade em algum lugar do
leste.(AGOSTINO, 2002, p. 55)
Demasiadamente parecido é o caso italiano a partir de 1922, ano em que Benito
Mussolini, “Il Duce”, sobe ao poder. Desde então, o Partido Fascista se esforça para conseguir
obter o máximo de aproveitamento das competições esportivas, uma vez que – e como já foi dito
– mobilizam as massas. Por sua vez, a cultura física era uma característica básica de uma
concepção guerreira, algo muito estimado em um regime totalitário, como naquele em que a Itália
estava vivendo. Assim sendo, o “Duce” não economizou recursos na construção de praças
esportivas (AGOSTINO, 2002).
O futebol foi deixado de lado pelos fascistas que patrocinavam a “volata”5, inventada por
uma das principais personalidades do regime Fascista. Apesar de um respaldo maior aos esportes
de guerra, como a ginástica, a natação, a esgrima, o pugilismo e o tiro, o Mundial de Futebol de
1930 no Uruguai obteve grande repercussão entre os italianos, ao mesmo tempo em que a
5 Modalidade que era uma mescla entre o rúgbi e o futebol;
18
“volata” caía no esquecimento. Com isso, o governo do “Duce” percebeu a dimensão do futebol e
de como ele representava a coragem e o espírito combativo, idéias relacionadas àquele regime,
como já foi escrito. Mais uma vez, o governo italiano não mediu esforços e conseguiu junto à
F.I.F.A. (Federação Internacional de Futebol Associado) o direito de organizar a segunda Copa
do Mundo, em 1934. A Itália arcaria com todos os gastos. O cartaz de propaganda trazia um
jogador com uma bola no pé e fazendo a tradicional saudação fascista.
O Fascismo concedeu amplos poderes à Federação Italiana de Futebol (FIGC6) e ao seu
técnico, Vittorio Pozzo (que havia sido treinador durante as Olimpíadas de 1912), que veio
buscar na Argentina, Brasil e Uruguai os “oriundi”7, que seriam a base da “squadra azzurra”
8.
Mussolini compareceu a todos os jogos que a Itália realizou naquela Copa de 1934. Os italianos
venceram e tal conquista foi vista como um reflexo dos ideais de um Estado corporativista, de um
país forte e preparado para vencer os inimigos: a invasão da Etiópia estava para acontecer
(AGOSTINO, 2002). Por várias vezes, o futebol foi usado pelo Fascismo como uma medida de
aproximação com outros regimes, como o Nazista. A susceptibilidade nacional estava mais do
que definitivamente colocada nas competições esportivas, ao passo em que acompanhar tudo isso
pelo rádio – inclusive a incursão italiana na Etiópia – significava lealdade nacional. Na Itália do
Fascismo, a prática desportiva confundia-se em muito com os ideais políticos daquela época,
como por exemplo, o nacionalismo, a moralidade nacional, os costumes e tradições.
2.5 O Futebol e o Regime de Franco
6 Federazione Italiana Giuoco Cálcio;
7 Ítalo-descendentes;
8 Esquadrão Azul, maneira com que a seleção italiana de futebol é conhecida;
19
O futebol, por ser a prática esportiva mais popular do mundo, não fica de fora no que diz
respeito ao seu uso com cunho político. É possível afirmar que a ditadura do “Generalíssimo”
Franco, teve como um dos meios de sustentação política os dois principais clubes da capital, o
Atlético e o Real Madri. Em primeiro lugar, a história do futebol na Espanha jamais deixou de ser
vinculada às diferentes identidades e regionalismos existentes naquele país, de tendência ao
centralismo madrilenho ou de autonomia regional como a Catalunha, o País Basco e a Galícia.
Alguns clubes, tendo em vista o seu vínculo com o governo central, receberam a chancela real,
como o Madri (atual Real Madri), o Espanyol e o Betis. Outros clubes, ao contrário, representam
a causa da autonomia, como o Athletic Bilbao (País Basco) e o F.C. Barcelona (Catalunha).
A política espanhola durante as décadas de 20 e 30 do século XX foi bastante conturbada:
em primeiro lugar, houve a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930), que declarou Estado de
Guerra e se pronunciou contra a legalidade constitucional. No dia de seu golpe, em 13 de
setembro de 1923, punira o F.C. Barcelona pelo fato de esse clube ter participado do dia nacional
catalão (11 de setembro). Em 1931, após a queda de Primo de Rivera, a instauração da república,
que se caracteriza como um Estado Unitário descentralizado, foi aprovado o estatuto de
autonomia catalã: “Estat Catalá”.
Em 1936 tem-se início a Guerra Civil, depois da vitória da Frente Popular9 nas eleições.
A direita espanhola (Falange Espanhola, de tendência pró-Monarquia), liderada pelo General
Franco, assume o poder por um Golpe-de-Estado e um conflito armado, que durará até 1939, é
deflagrado. Com a vitória da Falange, Franco mantém-se no poder, apoiado pela Monarquia, até a
sua morte, em 1975.
9 Partido espanhol de orientação socialista;
20
O que se via durante a república espanhola era a propagação de ideais de autonomia, uma
vez que o governo era descentralizado. Por sua vez, o futebol aguçava o regionalismo: era o
madridismo, o “biscaysmo” (País Basco), a causa catalã, ou seja, todos contra os princípios de
Franco que, ao conquistar Madri, criou o famoso diário esportivo “Marca”, que era um meio de
divulgação dos ideais franquistas. Depois da tomada da Catalunha (janeiro de 1939), a Guerra
Civil já estava quase terminada. O General Franco, então, resolveu eliminar todos os resquícios
do republicanismo, até mesmo no futebol. O F.C. Barcelona recebeu intervenção estatal; o Erral
Futbol Elkaerta, de San Sebastián, no País Basco, passou a se chamar “Real Sociedad”.
Em 1920, o Madrid C.F. recebeu a chancela da Monarquia espanhola e passou a se
chamar Real Madrid C.F. Durante a república, tal denominação foi-lhe retirada e o clube ficou
conhecido como “El Madrid”. Com a conquista da capital por Franco, o clube voltou a receber o
título real e juntamente com o Atlético Aviación (atual Atlético de Madrid), foram os difusores
de um governo centralizado espanhol.
Em um primeiro momento, no âmbito interno, durante a década de 40, o Atlético
Aviación dominou o futebol na Espanha. Suas conquistas davam um maior significado à cidade
de Madrid, conseqüentemente ao governo de Franco, que contribuía financeiramente com os dois
clubes. Ao mesmo tempo, o Real Madrid também foi acumulando glórias e, durante a década de
50 – época em que formou um quadro quase que imbatível, com Di Stéfano, Puskas e uma legião
de ótimos jogadores - obteve inúmeros títulos em torneios disputados no continente europeu,
torneios estes que hoje representam a Copa dos Campeões da Europa10
. O time madrilenho, com
as suas apresentações em gramados do exterior e com seu plantel impecável, foi acumulando
adeptos e simpatia de outros povos e nações que antes sentiam “ódio” ou repulsa do regime
franquista e da população espanhola, pelo fato de, por exemplo, Franco ter apoiado as potências
10
Principal torneio que reúne os clubes de todo o continente europeu;
21
do eixo durante a Segunda Grande Guerra. O que havia com isso era um isolamento espanhol nas
relações internacionais. O processo de ruptura desse isolamento (1953-1959) coincidiu com o
sucesso do Real Madrid C.F. em terras alheias. Por esse motivo é possível enxergar a utilização
do clube “Real Madrid” e suas conquistas internacionais como uma maneira de inserção da
Espanha tanto no nível europeu como mundial. Isso fica claro a partir da declaração de José Solís
Ruiz, membro do governo franquista, em uma audiência aos jogadores do Real Madrid:
Vocês têm feito mais pela Espanha do que muitas embaixadas espalhadas por esses
povos de Deus. Gente que nos odiava agora nos compreende graças a vocês, porque
foram capazes de romper muitas barreiras...Podem ter certeza que nós, juntamente
com nossas mulheres e nossos filhos, seguimos seus triunfos que há muito engrandecem
o pavilhão espanhol. (AGOSTINO, 2002, p.55).
2.6 Futebol e o Salazarismo em Portugal
Apesar de não gostar de futebol, Antônio de Oliveira Salazar, comandou um governo
autoritário em Portugal de 1932 a 1974 e valeu-se do futebol para a criação de uma identidade
nacional. Até 1960 esse esporte em Portugal não era profissional e muitos bons jogadores
poderiam ter ido jogar no estrangeiro, mas o próprio Salazar não permitia a saída deles do país. O
Sport Lisboa e Benfica, popularmente conhecido apenas por Benfica, foi essencial para a
formação dessa identidade, não por vontade, mas exclusivamente pelo fato de sempre ganhar. Em
fins da década de 50 já despontava nas Copas Européias e no início dos anos 60 se tornou bi-
campeão europeu de clubes, um fato inédito para um país que acabava de sair do amadorismo.
Porém, Salazar serviu-se muito mais do futebol no que diz respeito à condição de o Benfica - e
posteriormente a da seleção portuguesa de 1966, terceira colocada na Copa do Mundo da
Inglaterra - ser multirracial. Isso conferia legitimidade à política de colonização de Portugal, que
vinha sendo pressionada internacionalmente para a independência das colônias e o futebol
22
amenizava essa questão, deixando entender esse aspecto multirracial e de respeito pelos
colonizados, o que não era de fato verdade. Eusébio, o maior jogador português de todos os
tempos, astro do Benfica e da seleção de Portugal naquele período, era negro da então colônia de
Moçambique, assim como vários outros jogadores.
2.7 Brasil e Argentina: uma Introdução ao Estudo dos Casos
Não há como negar que o futebol é o esporte mais popular desses dois países que, para
muitos, são os melhores do mundo nessa modalidade. Tanto no Brasil como na Argentina, o
futebol mobiliza milhões de pessoas, pára o país nas partidas decisivas, faz parte do folclore
nacional, da religião, das relações sociais. Existiu até Comissão Parlamentar de Inquérito para
investigar derrota em final de Copa do Mundo. Ou seja, o futebol é assunto de Estado.
As décadas de 60 e 70 foram marcadas pelo acontecimento de diversos golpes de Estado
na América Latina. Dentre eles, podemos citar o Brasil (1964), o Chile e o Uruguai (1973) e a
Argentina (1976). Todos os golpes nesses países citados deram início a ditaduras militares
extremamente repressoras a quaisquer formas de subversão, em que era verificada a ausência,
dentre inúmeras coisas, de direitos humanos e direitos políticos.
O Brasil no ano de 1970 vivia sob essa ditadura militar, cuja sustentação se dava pelo
chamado milagre econômico: o Produto Nacional Bruto brasileiro crescia cerca de 10% ao ano -
devido principalmente a uma reestruturação tarifária e fiscal, apoiada por uma forte política de
crédito e financiamento - e o governo possuía todo um aparato de propaganda para enaltecer e
espalhar esse otimismo. Por trás disso tudo, o Exército lutava contra uma guerrilha armada,
ocorriam torturas e mortes a perseguidos políticos. Era comum àquela época, encontrar cartazes
com frases como: “Brasil, conte comigo”; “Ninguém segura este país”; “Brasil, ame-o ou deixe-
23
o”. A canção-tema do campeonato mundial de futebol de 1970, no México, “Pra Frente Brasil”,
se converteu em um hino daquele governo do General Médici. Cartazes em que mostravam o
jogador Pelé, vestindo as cores nacionais, eram afixados nas escolas e em repartições públicas.
Época de obras monstruosas, como as que pretendiam integrar o norte do país com o centro-sul,
desbravando os rincões inóspitos da Amazônia. Para completar esse rol de exaltação, a seleção
brasileira de futebol obteve o tricampeonato mundial ao conquistar a taça Jules Rimet, referente à
Copa do Mundo de 1970. O governo militar, através da AERP (Assessoria Especial de Relações
Públicas), se mobilizou para fazer desse triunfo um meio para a sua sustentação no poder.
Oito anos mais tarde, a Argentina vivencia também uma ditadura militar, porém, muito
mais repressora, muito mais sangrenta. Suas bases e seus preceitos diferenciavam-se dos da do
Brasil. Os militares haviam tomado o poder em 1976, através de um golpe que derrubou a então
presidente Isabel Perón. Dos objetivos traçados pela Junta Militar, até 1978 pouquíssimos haviam
sido cumpridos. A Argentina, portanto, estava bem longe de viver o chamado “Milagre
Econômico” por que o Brasil passara anos antes: a inflação estava alta e os índices de
desemprego também; a insatisfação popular era grande. Além disso, a perseguição política era
cotidiana. Havia os chamados vôos da morte11
e torturas eram cometidas. Nem por isso a F.I.F.A.
cancelou a realização de um mundial de futebol em um país que possuia um governo opressor
que violava os direitos humanos e que, por isso, era acusado internacionalmente. Aproveitando-se
dessa situação, para mostrar a grandeza de uma nação e expor ao mundo todo a sua ordem e sua
normalidade, o governo militar argentino organizou a Copa do Mundo de 1978 em seu país. Para
“compensar” à população o que a Junta não havia realizado no plano sócio-econômico, ela
11
Aviões que levavam opositores políticos que, em pleno vôo, eram lançados ao mar;
24
interveio12
para que a sua seleção obtivesse o campeonato mundial, como uma maneira de deixar
as pessoas eufóricas, fazendo com que se esquecessem daquilo que cada uma delas passava no
dia-a-dia; tendo a imagem de um país forte, unido e vencedor, o que seria uma maneira de se
sustentarem no poder.
É disso que a partir dos próximos capítulos o trabalho vai tratar. Regimes ditatoriais
utilizam inúmeros recursos políticos, econômicos, sociais e ideológicos para permanecerem no
poder. Um desses recursos simbólicos é o esporte, que, como se sabe, mobiliza um grande
número de pessoas em todo o mundo. O estudo pretende analisar especificamente a forma como
o futebol se relaciona com a política a partir da análise de discursos e das circunstâncias em que
Brasil e Argentina venceram os Campeonatos Mundiais de Futebol de 1970 e 1978,
respectivamente. Mas antes disso serão analisados os contextos históricos de cada país e os
recursos simbólicos utilizados com o intuito de dar sustentação aos regimes autoritários.
12
O governo argentino realizou uma manipulação de resultados, como no jogo em que a Argentina derrotou o Peru
por 6 a 0;
25
3 OS REGIMES MILITARES NO BRASIL E NA ARGENTINA
3.1 O Golpe Militar de 1964 no Brasil
Uma característica comum a quase todos os países latino-americanos durante a segunda
metade do século XX foi a de que passaram por ditaduras militares. Algumas duraram pouco
tempo, outras, vários anos, todas elas, porém, sempre usaram de artifícios para permanecer no
poder. É possível afirmar que sem sombra de dúvidas todos eles fizeram uso da força na
perseguição a opositores políticos, outros, construíram grandes obras; alguns regimes autoritários
usaram certos modelos econômicos para alcançar determinado grau de desenvolvimento. Nesse
sentido, Brasil e Argentina possuem um diferencial, uma vez que ambos os governos usaram o
esporte como um meio de sustentação no poder. Para isso, é preciso analisar a situação de cada
país que fez com que esse artifício fosse procurado (contexto histórico, situação política, social e
econômica).
Com a renúncia do então presidente Jânio Quadros, seu vice, João Goulart – que muitos
setores da sociedade viam como simpatizante da esquerda – assume o cargo, porém com poderes
restritos. Ele possuía um grande apoio da classe trabalhadora e mantinha uma relação muito
próxima com os países socialistas. Na tentativa de solucionar o problema da balança de
pagamentos e da inflação, o governo implementou um plano econômico, mas que desagradou o
grupo que suportava Goulart: os próprios trabalhadores. Para isso, ele passa a defender a
aplicação das chamadas Reformas de Base13
. Com a tentativa de colocar em exercício essas
reformas, o presidente desafiava o Congresso e seus adversários. Nos grandes comícios, como o
da Central do Brasil, João Goulart anunciava mais e mais decretos e os sindicatos formavam a
13
Reforma Agrária, educação, impostos e habitação (SKIDMORE, 1988);
26
base de seu apoio. Muitos pensavam que o país, com isso, caminhava para uma situação de
nacionalismo fervoroso que culminaria na implantação de um Estado socialista. Naquela ocasião,
surgiram vários grupos organizados de direita e de esquerda, estudantis e de trabalhadores, como
a Ação Popular, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), o Comando de Caça aos Comunistas
(CCC). A situação econômica também não era das melhores e simultaneamente surgia uma
conspiração civil-militar para derrubar o presidente, articulado pela elite e com o apoio dos
comandos do 1º, 2º e 4º Exércitos. O 3º Exército, do Rio Grande do Sul, foi relutante no início,
mas aderiu ao movimento. Nos últimos dias do mês de março e nos primeiros do mês de abril de
1964, caiu João Goulart e assumiram os militares. Nesses dias, milhares de estudantes,
sindicalistas, líderes estudantis e sindicais foram presos e torturados. Seria o começo de uma
longa ditadura militar (SKIDMORE, 1988).
O primeiro presidente militar depois da queda de João Goulart foi o Marechal Castello
Branco, que de imediato ampliou os poderes do Executivo, com os Atos Institucionais. Tais atos
tinham por objetivo “a reconstrução financeira, econômica, política e moral do Brasil”
(SKIDMORE, 1988, p.49). A conseqüência disso seria a restauração da ordem interna e do
prestígio internacional do país. Segundo o novo governo, essas medidas faziam-se necessárias
devido à crise de autoridade política existente desde meados dos anos 50. Jânio Quadros
queixara-se de que lhe faltavam poderes para lidar com o Congresso. Goulart, por sua vez,
cogitou a implantação de um Estado de Sítio. Os principais objetivos dos conspiradores que
depuseram João Goulart eram frustrar o plano comunista de conquista de poder e defender as
instituições militares e restabelecer a ordem de modo que pudessem executar reformas legais14
(SKIDMORE, 1988).
14
Frases expedidas pelo Chefe do Estado Maior do Exército, Castelo Branco, em 30 de março de 1964;
27
Para se consolidarem ainda mais no poder, os militares fizeram uso da força, não apenas
logo após o golpe, uma vez que os rebeldes, contrários ao regime, não haviam se enfraquecido.
Surgiu então a “Operação Limpeza” de combate aos subversivos, lideres de grupos que
supostamente levariam o Brasil para o comunismo. Como já foi citado, vários foram presos, até
mesmo integrantes de organizações católicas, como a JUC (Juventude Universitária Católica), ou
seja, todos aqueles que levantavam suspeitas de acordo com a inteligência militar ou a DOPS
(Polícia Política). Os alvos principais foram as organizações sindicais, ligas camponesas e os
partidos de esquerda (Partido Comunista Brasileiro, Partido Comunista do Brasil e a Organização
Revolucionária Marxista Política Operária). Muitos presos eram submetidos a torturas e privados
de várias coisas, no intuito de que os mesmos, para escaparem dessa situação, revelassem
segredos vitais dessas organizações e a divulgação de nomes para a desarticulação dos
movimentos de subversivos. No Rio de Janeiro, os centros de torturas eram o CENIMAR (Centro
de Informações da Marinha) e o DOPS (Polícia Política). Em São Paulo, o DOPS era o principal
centro de torturas.
Ao mesmo tempo persistia a crise econômica e foi posto em prática um programa para o
combate à inflação, ao déficit e endividamento público, o chamado PAEG (Plano de Ação
Econômica do Governo). Foram adotadas políticas fiscal e monetária restritivas com corte no
gasto público e “arrocho” (congelamento) salarial. Em 1966, adotou-se a política monetária
restritiva e a correção monetária, o que possibilitava a emissão de títulos da dívida pública, o que
possibilitou a celebração de contratos a longo prazo. A dívida externa diminuiu e o PIB começou
a crescer em um bom ritmo. Ocorreu também a reforma tributária e a criação do Banco Central
do Brasil. Além disso, surgiu o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), que viabilizou
vários investimentos.
28
Em 1967, Castello Branco deixa o poder para dar lugar ao Marechal Costa e Silva,
considerado pelos próprios militares, da ala da “linha dura”. No plano econômico, o PAEG
começava a dar resultado através da viabilização de crédito e uma política monetária
expansionista que permitiu o crescimento grandioso do Produto Interno Bruto (PIB). Era o início
do chamado “Milagre Econômico”, em que houve um avanço vertiginoso da economia, com a
manutenção da inflação constante. Foi também mantido o “arrocho” salarial e houve um
investimento na produção de bens de consumo duráveis. Seria o período dos sonhos da classe
média. Ao mesmo tempo, o novo Ministro da Fazenda, Delfim Netto, promoveu uma política de
controle dos preços, ou seja, o aumento dos preços dependia de uma aprovação do governo.
Como conseqüência, os lucros das empresas diminuíram.
Enquanto isso, os movimentos estudantis ainda não haviam totalmente se entregado. No
início de 1968, no Rio de Janeiro, ações estudantes – quase que totalmente dominadas pela
esquerda – protestam contra o aumento da taxa universitária, as salas de aula inadequadas e os
cortes no orçamento. Em março, um estudante foi morto pela polícia e passou a ser um mártir.
Em seu velório, a polícia agiu novamente, aumentando ainda mais o movimento de protesto e
insatisfação contra o regime militar. Marchas similares dos estudantes ocorreram em Porto
Alegre, Brasília e Salvador. O protesto dos estudantes era legítimo: a educação no Brasil naquela
época não acompanhou o ritmo de desenvolvimento da economia (SKIDMORE, 1988, p. 153).
A partir daí foram mais e mais protestos estudantis. Em 1968, aconteceu, em Contagem, a
primeira greve desde 1964: funcionários ocuparam a fábrica em que trabalhavam exigindo
aumento de salários. Apesar da greve não ter sido um sucesso com relação aos seus objetivos,
estimulou várias outras pelo Brasil, como a de Osasco. Com isso, a polícia entrou em cena e o
que se viu a partir de então foi um aumento da repressão. Até mesmo a Igreja se colocava contra
29
o governo, quando o Cardeal Rossi, de São Paulo, se recusou a celebrar a missa em comemoração
ao aniversário do Presidente Costa e Silva, a ser realizada no 2º Exército, na capital paulista.
Os militares naquele momento vinham perdendo prestígio até mesmo no Congresso
Nacional, composto, em sua maioria, por deputados da ARENA (Aliança Renovadora Nacional),
o partido do governo: um discurso do deputado Márcio Moreira Alves contra a repressão policial
provocou a ira do Executivo, que não tardou a convocar uma reunião do Conselho de Segurança
Nacional e instaurar o Ato Institucional número 5 e o Ato Suplementar número 38, que pôs o
Congresso em recesso por um período indefinido. Com esses atos, a censura também era
instituída, toda a mídia passou a ser submetida à supervisão dos tribunais militares. Como uma
maneira de “defender os princípios democráticos pela preservação do espírito religioso, da
dignidade do ser humano e do amor à liberdade, com responsabilidade sob inspiração de Deus”, o
governo lançou um dispositivo curricular em todas as instituições de ensino que atualmente
corresponderiam do Ensino Fundamental ao Ensino Superior para promover o patriotismo: o
curso de Educação Moral e Cívica. Era um instrumento da Doutrina de Segurança Nacional, com
o intuito também de reformular a mentalidade das gerações que estavam por vir.
O governo Costa e Silva se deparou com o surgimento de movimentos guerrilheiros. O
silêncio forçado da oposição incentivou o aparecimento dessas organizações. Roubos a bancos,
assassinatos, assaltos e seqüestros (inclusive o do Embaixador Norte-Americano) eram realizados
pelas guerrilhas. Isso só fez com que o governo aumentasse o uso da força (repressão), a procura
e o combate aos subversivos (FICO, 1997).
Com a morte de Costa e Silva, em 1969, o General Médici tornou-se presidente em meio a
um ambiente de muita repressão, perseguição política e oposição armada, que não terminaram em
seu mandato. Pelo contrário, aumentaram. Além disso, o governo Médici foi marcado
substancialmente pelas grandes obras (como a Ponte Rio-Niterói) e a Rodovia Transamazônica -
30
que liga nada a lugar algum - ao longo de cerca de 4000km, apoiado no Milagre Econômico: um
crescimento econômico pelo qual o Brasil jamais havia experimentado (SKIDMORE, 1988). Para
isso, a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) teve um determinante papel. Criada no
governo Costa e Silva, o período de Médici é caracterizado por slogans: “Brasil, conte comigo”,
“Ninguém segura mais este país”, sempre apoiado no milagre econômico e nas grandes obras15
.
A imagem do Brasil, devido à sua situação interna, altamente repressora, autoritária e
socialmente desigual, estava abalada no exterior e no interior do país, apesar do sucesso no plano
econômico. Havia, portanto, a necessidade de “melhorar a imagem” (GONÇALVES, 1985) do
país. É aí que entrou o futebol como um instrumento para o governo, segundo Gonçalves. Médici
– diga-se de passagem, um torcedor fanático - assumiu o cargo um ano antes da Copa do Mundo
de 1970, no México. A vitória da seleção traria essa imagem de um Brasil em progresso e em
desenvolvimento, imbatível - que a AERP tanto pregava – aos brasileiros e aos estrangeiros. O
selecionado brasileiro da Copa do Mundo refletiria a imagem do país: ordem, alegria e progresso
(desenvolvimento). Antes mesmo do Campeonato Mundial foi distribuído aos futebolistas
convocados uma cartilha, o “Regulamento do Atleta Convocado”, que proibia os cabelos longos e
declarações políticas, as mesmas que viriam a derrubar João Saldanha do comando da seleção.
Além disso, pela primeira vez na história, a Copa do Mundo foi transmitida ao vivo, via satélite.
Isso foi possível devido à união das emissoras de TV do Brasil que, com a ajuda financeira do
governo, puderam transmitir o torneio. Depois da vitória da seleção, viam-se cartazes por todo o
país com a foto de Pelé dando um “soco” no ar após a marcação de um gol e logo abaixo a frase:
“Ninguém segura mais este país”.
Pensar apenas que o futebol foi usado para “melhorar a imagem do país no exterior” -
como dizem alguns, esquecendo-se do plano interno - seria de certa maneira inocente. Nas
15
O programa de TV “Amaral Netto, Repórter” também colaborou com o regime divulgando suas políticas;
31
campanhas criadas pela AERP, nas frases, nos “slogans”, vê-se claramente a necessidade de se
resgatar a identidade nacional e a idéia de grandeza de um país através do esporte. Havia a
necessidade de enfatizar a identidade do Brasileiro e sua grandiosidade visto que a situação
política da época não era das melhores – perseguições, torturas, guerrilhas urbanas e de selva – e
com isso o governo pegava carona no Milagre Econômico e no esporte. Potencializar o esporte,
mais especificamente o futebol, promovendo a “unidade na diversidade” era o objetivo do
governo autoritário (GONÇALVES, 1985). Cabe lembrar aqui que durante o mesmo período, o
Brasil teve uma de suas melhores equipes de basquete, Éder Jofre brilhava nos ringues e o
automobilismo despontava com Emerson Fittipaldi iniciando sua carreira na Fórmula Um. Com
isso, a população brasileira colocava em segundo plano a condição de cidadãos com direitos e
deveres. José Genoíno, ex-Presidente do Partido dos Trabalhadores, foi um preso político à época
da Copa do Mundo do México, em 1970. Segundo ele, todos os presos faziam questão de torcer
contra a seleção, porque era sabido que a propaganda política através do esporte era uma
estratégia do governo, mas que isso era impossível, uma vez que os jogadores eram muito bons e
o título aos poucos se aproximava.
3.2 Os Preparativos para a Copa do Mundo do México
Para a Copa do Mundo de 1970, o selecionado nacional começou a se preparar cerca de
dois meses antes. Um primeiro encontro entre os jogadores aconteceu no Brasil, mas logo todos
partiram para o México, devido à ambientação com a altitude e ao clima. Tudo isso foi
supervisionado por alguns militares do Primeiro Exército, do Rio de Janeiro. Conforme escrito
anteriormente, foi veiculado o “Regulamento do Atleta Convocado”, que proibia os cabelos
longos e impunha regras curtas: nada de declarações políticas (GONÇALVES, 1985). Além
32
disso, tal cartilha continha informações, como, por exemplo, a letra do Hino Nacional Brasileiro,
para que os jogadores soubessem cantar antes das partidas.
Muito antes da Copa de 70, havia uma Comissão Selecionadora Nacional (COSENA),
bem aos moldes militares, que tinha por objetivo apagar o fracasso do Mundial anterior, em 1966.
João Havelange, então Presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), antecessora
da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), dissolveu a COSENA e convocou João Saldanha
como técnico da seleção. Muitos ficaram perplexos com a escolha, uma vez que Saldanha era tido
como um comunista e polêmico em meio a um período político extremamente turbulento, em que
se via uma “militarização” do futebol nacional. Foi esse treinador quem classificou o Brasil para
o Mundial do México, mas devido a algumas declarações de Saldanha e os palpites que o
presidente Médici dava, que iam contra as intenções do treinador, este acabou sendo dispensado.
Depois de algumas declarações do Presidente da República naquele período, Saldanha disse:
“Pois olha: o presidente escala o ministério dele que eu escalo o meu time” (GONÇALVES,
1985). Temia-se que o treinador chegasse no México e denunciasse diante de jornalistas de todo
o mundo o desrespeito aos direitos humanos e políticos que vinha ocorrendo no Brasil. Além
disso, Médici era a favor da convocação de Dario, do Clube Atlético Mineiro, mas o treinador da
seleção nacional não compartilhava essa idéia. Foram esses e mais outros motivos que levaram a
dispensa de João Saldanha. Para o seu lugar foi escalado Zagallo, bi-campeão mundial pelo
Brasil como jogador em 1958 e 1962.
3.3 O Período Posterior à Copa de 1970
Terminada e conquistada a Copa do Mundo, os jogadores foram recebidos no Brasil como
verdadeiros heróis nacionais e foram presenteados das mais diversas formas: aparelhos de TV,
33
carros populares, comendas e prêmios em dinheiro livres de impostos (HEIZER, 1997). Depois
de tudo isso, uma coisa ficou bem clara: a eficiência da AERP em promover o esporte (futebol)
como símbolo de uma unidade, de uma identidade. A partir da vitória no México, foi pensada a
criação de um campeonato nacional de clubes de futebol, antes restrita às unidades da federação
ou entre os centros mais próximos, como o torneio Rio-São Paulo. Essa idéia seria concretizada
em 1971 e ao longo dos anos foi se desenvolvendo e, é claro, usado para fins políticos. Um
exemplo disso foi a célebre frase: “No estado aonde a ARENA vai mal, mais um time no
Nacional”16
.
3.4 A Argentina e o Golpe Militar de 1976
A Argentina pós-1955 - último ano do primeiro mandato de Juan Domingo Perón – foi
politicamente muito conturbada: de um lado, os peronistas, que tinham o apoio de alguns poucos
oficiais das Forças Armadas; do outro lado, uma forte oposição (Radicais), que por sua vez
contava com a maioria desses oficiais. Golpes, destituições e uma acirrada disputa política entre
esses grupos marcou a vida política desse país até 1973, quando se obtém um consenso e o
mesmo Perón assume a Presidência na tentativa de solucionar o problema político e finalmente
poder conduzir o país ao desenvolvimento. Para isso, ele celebrou uma reconciliação histórica
com os Radicais, concedeu uma autonomia corporativa aos militares, e seu discurso já não era
mais revolucionário e “nacional-socialista” como quando estava no exílio (CAVAROZZI, 1988).
Perón obteve apoio tanto dos Justicialistas (Peronistas) quanto de seus opositores, os Radicais.
Entretanto, nos três anos do segundo mandato de Perón, o que se viu foram os atores políticos
16
Seguindo esse pensamento, o Campeonato Brasileiro de Futebol chegou a ter na primeira divisão, 96 clubes em
1979 (Revista Placar);
34
apressando seus ganhos imediatos e desalojando seus adversários a todo custo. Paralelamente e
simultaneamente um terrorismo guerrilheiro colocava em cheque a viabilidade do governo de
Perón. Os militares conquistavam espaço e ganhavam poderes na medida em que dissipavam tais
movimentos.
Assim sendo, os problemas de uma sociedade mal governada se multiplicavam. Havia
uma paralisia no Parlamento e nos Partidos Políticos. Havia também uma corrida desequilibrada
entre preços e salários: os trabalhadores não querendo que os salários caíssem mais, os líderes
sindicais reivindicando mais e mais aumentos e os empregadores desafiando os controles de
preços que o governo desejava impor. Todos tentavam agir no objetivo de alcançarem resultados
imediatos. A inflação girava em torno de 600% ao ano e o governo perdia o contato com a
sociedade cada vez mais.
A partir desse momento, dois principais grupos passam a criticar severamente o
desgoverno argentino: um deles era a Assembléia Permanente de Associações Patronais; o outro,
as Forças Armadas. Críticas no sentido da incapacidade da administração nacional em controlar a
sociedade (aliados e oposição). Uma crítica ao populismo, que segundo tais grupos, era o
promotor desses maus hábitos da sociedade. As Forças Armadas já não desejavam mais se
envolver com um regime político decadente, com uma sociedade desgovernada e vivenciando um
caos econômico. Em março de 1976, uma Junta Militar encabeçada pelo General Jorge Videla
assumiu, através de um golpe, a Presidência da Argentina com os objetivos de reorganizar a
sociedade, reorganizar as instituições e estabelecer as condições necessárias para o retorno da
democracia.
Em suma, o objetivo principal da Junta Militar era não deixar o poder até que os “valores
Cristãos”, a “tradição nacional” e a “dignidade de ser argentino” fossem resgatados pela
sociedade por completo. Alabarces (1998), enumera mais objetivos desse Golpe-de-Estado, como
35
o de devolver o “sentido da ordem”, “reafirmar o valor da família” e “voltar ao caminho do
progresso”.
Um dos objetivos basilares da política dos militares foi acabar com qualquer resquício do
Peronismo, isto é, do populismo que o Peronismo representava. O Liberalismo era visto como a
única corrente anti-Peronista consistente, apesar de ir contra algumas premissas dos próprios
militares. Dessa maneira, os liberais se concentraram em três ameaças à sociedade Argentina e
cuja erradicação era necessária: todas as formas de subversão, incluindo a atividade guerrilheira,
a agitação popular, o comportamento desafiador nas escolas, nas fábricas, nas famílias, enfim, o
questionamento da autoridade; em segundo lugar, a sociedade política populista (Peronismo e
sindicatos); em terceiro e por último, o setor industrial tido como ineficiente, que formava a base
da economia urbana, com a sua massa “indisciplinada” de trabalhadores. Para isso, as Forças
Armadas foram consideradas como os “principais guardiões do destino nacional”, com poderes
de deter e punir quaisquer formas de comportamento desafiador que surgissem dentro da
sociedade civil. Todas as críticas ao novo regime eram consideradas aberrações. As prescrições
liberais deveriam, em primeiro lugar, disciplinar o próprio Estado, ao maximizar os resultados
minimizando os custos, destruindo os chamados velhos hábitos dos trabalhadores, acomodados
em suas estruturas de representação e seus sindicatos, que seriam destruídos pelas premissas
liberais. O desmantelamento das confederações de trabalhadores era um passo importante para o
fim de um Estado corporativo populista. Houve resultado: o governo de Videla foi, desde 1943, o
que menos teve protestos de trabalhadores. Além disso, os liberais também queriam modificar as
relações sociais. Com isso, as reformas não deviam apenas atingir os trabalhadores, mas também
os patrões: implantou-se o sistema de livre-mercado, com abertura do mercado doméstico à
competição externa. Para combater a inflação, preferiu-se retrair a expansão econômica, sem
prejudicar aquelas classes que sustentavam o regime militar. Com tudo isso, com o liberalismo
36
econômico de Martínez de Hoz, Ministro da Economia, os sindicatos e as organizações de
trabalhadores foram severamente enfraquecidos, diminuindo em muito a atuação dos mesmos.
Ao mesmo tempo em que medidas econômicas colocadas em prática durante o governo
Videla surtiram efeito na sociedade argentina, algo que ficou marcado foi a perseguição aos
opositores políticos: peronistas, sindicalistas, estudantes, religiosos, profissionais liberais,
artistas, enfim, todos aqueles que eram considerados subversivos, sofriam a perseguição que
caracterizou o regime militar naquele país como uma das mais sangrentas ditaduras latino-
americanas. Mortes, torturas, desaparecimentos, os vôos da morte, tudo isso sob o pretexto de
disciplinar a sociedade. A Argentina, com isso, já passava a ser conhecida no mundo todo pelo
seu governo altamente repressivo. Ao mesmo tempo, uma importante organização surgia, a das
“Mães da Praça de Maio”17
, que também passava a ser conhecida em nível mundial. O Congresso
Nacional foi dissolvido, assim como os partidos políticos. A Suprema Corte foi destituída e os
meios de comunicação censurados (CAVAROZZI, 1995).
Temos agora a configuração do cenário político, econômico e social da Argentina em
1978: um regime militar altamente repressor, que, com a equipe econômica de Martínez de Hoz,
não havia ainda colhido os resultados que esperava obter. Com isso, a situação naquele país não
era das melhores: a violência política era constante, o país não vinha obtendo bons resultados na
economia e a sociedade não estava preparada para defrontar tais problemas. Uma situação
diferente da que o Brasil vivia às vésperas do Mundial de Futebol de 1970, com a exceção da
repressão política.
Com o treinador César Luis Menotti assumindo o cargo à frente da seleção argentina após
a Copa do Mundo de 1974, todas as suas conquistas – a começar pelo mundial de 1978 e o
mundial juvenil do ano seguinte, que revelou Maradona ao mundo - foram atribuídas ao estilo
17
Movimento de mães de desaparecidos políticos durante a ditadura militar;
37
argentino, ao estilo “criollo” dos argentinos. Quando isso é levado em conta, por mais que
Menotti tenha assumido anos antes do golpe militar, percebe-se um vínculo com um dos
objetivos do regime de Videla, qual seja, o de resgatar a “dignidade de ser argentino”, conforme
citado anteriormente. A partir dessa idéia, o governo passa a relacionar a sua administração e a
vida esportiva da Argentina como algo conjunto, dando um sentido coletivo, de identidade única,
um poderoso “nós”. Isso não foi apenas no futebol, mas também no Rugby com os Pumas18
e no
automobilismo, com Carlos Reutemann (ALABARCES, 1998).
Muito antes do Golpe Militar, a Argentina já havia sido escolhida para ser a sede do
décimo primeiro campeonato mundial de futebol, em 1978. Dois anos antes dele ainda não havia
sido feito nada e os militares viram na Copa do Mundo um excelente instrumento para promover
a Argentina tanto interna quanto externamente e reforçar ainda mais o sentimento de “nós” entre
a sociedade, de certa maneira fragmentada, que presenciava uma crise política (repressão,
perseguição a opositores, ausência de direitos humanos e políticos) e econômica (baixos salários,
inflação, altos juros).
3.5 A Copa do Mundo como Política de Estado
O governo militar argentino não economizou esforços para a realização da Copa do
Mundo. Em primeiro lugar, em maio de 1976 a FIFA (Federação Internacional de Futebol
Associado) cobrou uma posição dos dirigentes argentinos, que até aquele momento pouco haviam
se mobilizado para a organização do torneio. Como resposta, foi criado o EAM’78 (Ente
Autárquico Mundial 78), a Comissão Organizadora do evento. Para o seu comando foi chamado
o General Omar Actis, que propunha a organização de um “mundial austero” e responsável. Para
18
Como são conhecidos os jogadores da seleção argentina de Rugby (BÚSICO, CLOPPET & MAMMONE, 2002);
38
Vice-Presidente da mesma entidade, foi designado o Capitão Carlos Lacoste. Em julho de 1976, a
Copa do Mundo foi considerada pelo governo como um evento de “interesse nacional”. Em 19 de
agosto do mesmo ano, o General Actis convocou uma conferência de imprensa, que nem chegou
a ser realizada devido ao seu assassinato. Para o lugar de Actis, Videla convocou o General
Merlo, e Lacoste se manteve em seu lugar. No começo, a morte de Actis foi atribuída à guerrilha,
mas as funções e a responsabilidade que Lacoste obteve depois desse assassinato levou muitos a
suspeitarem que o crime fora encomendado.
O custo inicial do Mundial 78 era, segundo a EAM, de 200 milhões de dólares, mas
ultrapassou os 500 milhões. Construíram-se estradas, hotéis, aeroportos e estádios. Cabe ressaltar
que a Copa do Mundo incentivou a instalação da primeira rede de TV em cores da Argentina, a
ATC (Argentina Televisora Color), incluindo sua sede, pessoal e equipamentos. Ao mesmo
tempo, à medida que o Mundial se aproximava, o governo investia em propaganda com frases e
canções, mais uma vez enfatizando o coletivismo e a identidade nacional: “Veinticinco millones
de Argentinos jugaremos el Mundial” e “En el Mundial usted juega de argentino”
(ALABARCES, 1998).
3.6 Os Preparativos e a Militarização da Seleção Argentina
Cerca de dois meses antes do torneio, a seleção argentina ficou concentrada em uma
estância (fazenda), que seguia os moldes de um quartel militar. Os treinamentos eram
supervisionados por membros das Forças Armadas e constantemente os jogadores tinham uma
audiência com o Presidente ou alguém da cúpula do governo os visitava na concentração. Nas
entrevistas coletivas, o treinador Menotti sempre enfatizava a qualidade de seus jogadores, que,
39
segundo ele, tinham um estilo bem diferente dos jogadores europeus, considerados robóticos
(ALABARCES, 1998).
As declarações de Menotti (como a do estilo de jogo do futebolista de seu país)
convergiam, mesmo que ele não tivesse consciência disso, com os objetivos da Junta Militar, que
pretendia, entre outras coisas, resgatar a identidade nacional. Nem que para isso fosse preciso
rebaixar a importância de outros países e de suas culturas: semanas antes do mundial, jornalistas
na imprensa perguntavam, por exemplo, o que os escoceses, da terra do whisky, tinham de bom
se eram todos uns bêbados? Ou o que podiam mostrar de bom os brasileiros, se eram todos
relaxados por viverem em um clima tropical? Os holandeses, como poderiam conquistar uma
Copa, se eram uns drogados? O que dizer dos iranianos, um povo apenas exótico?
(ALABARCES, 1998).
Enquanto isso, as obras estavam a mil: além dos estádios, a autopista de Buenos Aires
também fora inaugurada nesse mesmo período. No exterior, iniciava-se uma campanha de
boicote contra a realização do Mundial na Argentina devido à violação dos Direitos Humanos.
Por esse motivo, Johan Cruyff, jogador holandês, não disputou o torneio19
. Por sua vez, a
Argentina tentava mostrar ao mundo que nada de ruim se passava dentro de seu território, com o
locutor esportivo José María Muñoz como condutor dessa campanha. A FIFA (Federação
Internacional de Futebol Associado) manteve a sua posição e garantiu a realização da Copa do
Mundo naquele país. Além disso, no dia da sua abertura, Henry Kissinger (então Secretário-de-
Estado Norte-Americano), que estava presente no jogo inaugural – e outros jogos mais -,
declarou: “Este país tem um futuro brilhante!” (AGOSTINO, 2002).
19
DUARTE, Orlando. Todas as Copas do Mundo. Makron. São Paulo, 1994;
40
3.7 A Copa de 1978
Os argentinos respiravam o Mundial’78. A opinião pública, a imprensa, a sociedade, o
governo. Todos estavam vivendo o clima da Copa do Mundo e por isso se esforçavam para
receberem bem os convidados, com o intuito de mostrarem para o exterior uma Argentina forte e
unida. Simultaneamente, milhares de opositores políticos eram torturados e mortos nos campos
de concentração. Um deles ficava a menos de um quilômetro do Estádio Monumental de Núñez,
o principal do Mundial, e segundo relatos dos torturados, das celas (onde eram submetidos às
mais cruéis formas de tortura) era possível escutar a torcida cantando ou festejando os gols.
A influência do governo não se manteve apenas fora do campo. Houve o episódio do jogo
entre a Argentina e o Peru. Os donos da casa precisavam ganhar de quatro gols ou mais para
desbancarem o Brasil e alcançarem a final. A questão é que jamais passou pela cabeça de um
torcedor que a seleção peruana – para muitos a melhor de todos os tempos - pudesse perder por 6
a 0, que foi o resultado final. Além disso, os jogos Brasil x Polônia e Argentina x Peru deveriam
ter sido disputados nos mesmos horários, mas não foram: o primeiro foi à tarde e o segundo, à
noite, ou seja, os argentinos jogaram sabendo do resultado que precisavam obter (YALLOP,
2002). Existem muitos indícios da manipulação do resultado desse jogo, como a displicência de
alguns jogadores peruanos, o envolvimento desses jogadores e de funcionários graduados da
Federação Peruana de Futebol em um esquema de suborno, além da doação de cereais ao Peru e
do fornecimento de uma linha de crédito de 50 milhões de dólares do governo argentino ao
peruano. Para não se falar da presença do General Videla e de Henry Kissinger no vestiário da
seleção do Peru antes e depois da partida. Com tudo isso, os donos da casa venceram e
alcançaram a grande final contra os holandeses. Na prorrogação, os anfitriões conquistaram o
título por 3 a 1 e seus jogadores foram considerados heróis nacionais – a trave do gol argentino
41
também deveria, porque “evitara” um gol holandês aos 43 minutos do segundo tempo, que
poderia dar o título aos batavos.
O governo brasileiro, durante a realização do Mundial de 1970 no México, soube
potencializar o futebol, ou seja, aproveitar tudo aquilo que esse esporte poderia proporcionar. O
governo de Videla na Argentina também soube trabalhar da mesma maneira. Não me refiro aqui
a noções de marketing ou venda de direitos de transmissão para a televisão, o que muito se debate
hoje em dia quando o assunto é administração de clubes e entidades que trabalham com o esporte.
A potencialidade aqui citada se relaciona com o poder que o esporte - neste caso o futebol -
possui em mexer com a população, em reunir torcedores, em mobilizar milhares ou milhões de
pessoas ao mesmo tempo. É por isso que hoje muita gente desconfia de regimes autoritários
terem usado o esporte em geral como um instrumento populista.
Para que seja possível analisar o esporte como um instrumento de poder de viés populista,
é preciso antes se fazer uma relação com a identidade. Isso porque o futebol está muito vinculado
às origens de algumas nações modernas, dentre elas o Brasil e a Argentina. Todos sabemos que
esse esporte chama a atenção da maioria da população, mobiliza inúmeras pessoas, como já foi
escrito acima. Mas é preciso saber como que se deu essa interação entre o futebol e a cultura local
para se entender como ele se tornou uma ferramenta para alcançar os objetivos de regimes
autoritários como o brasileiro e o argentino.
42
4 FUTEBOL, NACIONALISMO E IDENTIDADE NACIONAL
4.1 Identidade Nacional
Nos capítulos anteriores foi visto como o esporte se relaciona com a política, como alguns
regimes de governo utilizam o esporte, mais especificamente o futebol, como um instrumento de
manutenção do poder. Para uma maior compreensão sobre esse assunto, principalmente em
países como o Brasil e a Argentina, é preciso abordar as questões identitárias de cada país.
Ambos são países cujas populações possuem uma enorme simpatia e admiração por esse esporte
e, mais do que isso, são nações em que o futebol teve – e tem – um papel muito grande na
formação da identidade nacional.
Segundo Canetti (1995), cada nação possui um símbolo de massa, que se relaciona ao que
existe de singular em cada uma e esse símbolo não pode estar à mercê dos outros. Além disso, os
indivíduos nascidos neste país acreditam nesse símbolo - na sua particularidade -, sobretudo em
situações-limite, como quando estão prestes a partir para uma guerra ou enfrentar uma batalha. É
graças a este símbolo que o membro dessa nação não se enxergará sozinho. Na verdade existe
essa necessidade de não se sentir isolado e o símbolo permite a ele se identificar com o restante
da nação (GUIBERNAU, 1996). É o símbolo de massa de uma nação que mantém a
autoconsciência da mesma.
O símbolo de massa dos franceses é a revolução, a queda da Bastilha em 1789
(CANETTI, 1995). O 14 de Julho é a verdadeira celebração da alegria, em que todos saem às
ruas para cantar e dançar. A Revolução Francesa significou que a massa, antes vítima da justiça
real, faz agora justiça ela mesma. Segundo Canetti, o símbolo de massa dos alemães era o
43
Exército, que por sua vez se traduz simbolicamente na imagem de uma floresta composta de
madeiras rígidas, árvores eretas, eqüidistantes, diferentes das florestas existentes nas zonas
tropicais, que se misturam e crescem em todas as direções. As cascas dos troncos se assemelham
às fardas dos militares e a floresta possui a constância de um guerreiro (CANETTI, 1995). A
partir dessas relações, percebe-se que para os alemães a floresta e o Exército se confundem. No
exército, o alemão não sente medo, pelo contrário, sente-se protegido e cercado de muitos, em
condição de igualdade com os outros, como uma árvore de uma floresta temperada.
Se para os franceses o símbolo de massa é a revolução e para os alemães o símbolo de
massa é o Exército, tendo como base a floresta, entende-se o porquê disso segundo a definição de
Canetti para símbolos de massa. No caso dos franceses, identifica-se a Revolução pelo fato de
que ela foi singular em todo o mundo e é o que distingue os franceses dos demais. É o que os
caracteriza perante o mundo. Além disso, a queda da Bastilha mudou em muito a autoconsciência
da nação e é nesse fato que o nativo francês se apóia para não se sentir só, uma vez que foi um
episódio em prol da massa. Da mesma maneira o alemão, que, no caso, vê o Exército como uma
maneira de não se sentir sozinho; no Exército ele está junto com os demais, com a massa, ele se
sente parte dela e para ele o Exército alemão é o que os difere dos outros, o que há de mais
singular em sua nação. Esse Exército com que o alemão se identifica está muito relacionado com
a floresta típica das zonas temperadas, com a que ele convive cotidianamente.
E no caso do Brasil e da Argentina, quais seriam esses símbolos de massa? O que
significaria o símbolo de massa para o argentino e para o brasileiro? Antes de podermos
responder essas perguntas, é preciso entender como o futebol faz parte da identidade nacional
desses dois países.
O futebol é uma das grandes instituições culturais, juntamente com a educação e os meios
de comunicação de massa, que consolidam identidades nacionais no mundo inteiro
44
(GIULIANOTTI, 2002). O futebol foi difundido pelo mundo a partir do final do século XIX e
início do século XX e foi nessa mesma época que grande parte das nações da América Latina e
da Europa conquistavam ou reafirmavam suas respectivas independências, definiam suas
fronteiras e suas identidades culturais. Os processos de modernização (industrialização,
urbanização e grande migração) se desenrolavam e essas novas nações modernas demandavam
elementos identitários, unificadores. Um sistema educacional, meios de comunicação em massa –
a radiodifusão é um exemplo bem nítido20
- e uma linguagem compartilhada são instrumentos
vitais para a difusão de elementos de unidade e nacionalidade. Cada nação tem a necessidade e
cria os seus heróis e seus mitos, os quais em geral são aqueles que defenderam os compatriotas de
forças inimigas. Os eventos esportivos e em especial as partidas de futebol contribuíram em
muito com isso. Dentro de um país, times podem representar as rivalidades locais, mas nas
partidas internacionais o selecionado nacional incorpora a nação moderna e envolve-se com as
cores e a bandeira nacional. Antes dos jogos os atletas cantam, em uníssono, uma canção comum
entre eles, que é o hino nacional. Os meios de comunicação permitem a todos poderem
compartilhar daquele momento, cantar o hino juntos e apoiar o time, como a televisão e o rádio
permitem. Vale dizer que a nação moderna surgiu ao mesmo tempo em que o futebol se difundiu
pelo mundo e essa contribuição dada pelos esportes à formação de uma identidade nacional se
deve a essa simultaneidade. Além disso, existe o natural relacionamento da pessoa com o lugar de
origem, o apego à sua terra, à localidade. Isso também contribui para que o futebol se transforme
em um símbolo da identidade de uma nação, quando a seleção nacional passa a representar o
indivíduo.
20
É observado por Vidacs (1997) que emissoras de rádio de Camarões transmitem ao vivo partidas que envolvem a
seleção nacional, o que possibilita o surgimento de demanda de unidade nacional;
45
4.2 Futebol e Identidade Nacional na Argentina
A América do Sul possui casos interessantes de relação do futebol com a formação de
uma identidade nacional. Na Argentina esse esporte teve e ainda tem um papel chave para moldar
os primeiros sentidos de identidade nacional tradicional e popular (GIULIANOTTI, 2002). Nesse
país o futebol se tornou profissional em 1931, ao mesmo tempo em que vinha obtendo ótimos
resultados nesse esporte (vice-campeã olímpica em 1928 e mundial em 1930) se estabelecendo
como uma “potência”. Além disso, no que diz respeito à economia, a Argentina durante essa
época atravessava bons momentos. Essa associação (desempenho no esporte com a prosperidade
da época) permitiu que o futebol se colocasse ao lado de outros elementos míticos nacionais
como o gaúcho, o tango, o doce de leite e o churrasco (ARCHETTI, 1994). Durante o período
Peronista (1945-1955) surgia o estilo de jogo argentino, celebrando virtudes latinas, como a
honestidade e o espetáculo, nos mesmos moldes que Menotti procurou estabelecer na Copa do
Mundo de 1978, como será visto mais adiante. Além disso, vale dizer que a seleção nacional
argentina reproduziu o declínio econômico depois da queda do presidente Perón em 1955:
eliminação por 6 a 1 no Mundial de 1958 e desclassificação para a Copa do México em 1970.
Outro motivo - o principal deste trabalho – de como o futebol se relaciona com a identidade na
Argentina é o fato de ele ter sido usado como um instrumento de viés populista em vários
momentos, como, por exemplo, no Mundial do ano de 1978.
Conforme escrito acima, uma nação, um Estado constrói heróis e reinventa mitos para
resgatar ou até mesmo fazer florescer uma identidade entre seus habitantes. O mascote da décima
primeira Copa do Mundo foi “Gauchito”, uma caricatura de um simpático garoto com trajes
típicos de um vaqueiro dos pampas, o “gaucho” que segundo Ricardo Rojas, “representa a vida
46
de todo o argentino”. De acordo com o mesmo autor, que analisa a poesia de “Martín Fierro”, a
vida do argentino está em:
“(...) fundar cidades que começaram sendo fortins; expandir sua ação sobre o deserto
em raio progressivo; lutar com a terra virgem e com o auca21
batalhador; padecer às
injustiças da organização social rudimentar; sobrelevar heroicamente entre essas
forças fatais a fé em si mesmos, na humanidade, na justiça (...)” (BORGES,
2005:p.89).
Com isso, a bravura, a coragem, o espírito empreendedor, o destemor, características
deste personagem do campo, o vaqueiro, refletiam a vida de qualquer argentino, segundo Rojas.
Nada melhor do que resgatar essa imagem durante um Campeonato Mundial de Futebol para
resolver problemas internos, no caso, conter uma situação de conturbação política que a
Argentina vivia em 1978. O mascote, o vaqueiro, viria a refletir a verdadeira imagem do povo
argentino: corajoso, destemido, alegre, forte, saudável; uma figura ideal para a convergência de
uma nação, antes dividida e pressionada, um meio de comunicação de massa que ajudaria a
atingir os propósitos da Junta Militar, que eram, por exemplo, restaurar a ordem e resgatar o valor
da família. Ao resgatar o valor da família, subentende-se redescobrir valores também cívicos,
para construir uma nação. Assim sendo, o futebol associado com a figura mítica do “gaucho”,
espelho do caráter e do homem argentino, seriam ideais para a reconstrução de um país, pois
esses dois elementos causariam a união e comunhão da população. Um dos poemas sobre Martín
Fierro retratava algumas qualidades supracitadas sobre o vaqueiro dos pampas:
“Mientras suene el encordao
mientras encuentre el compás,
yo no he de quedarme atrás
sin defender la parada;
y he jurado que jamás han de llevar robada...
Y seguiremos si gusta
hasta que se vaya el día.
Era la costumbre mia
cantar las noches enteras,
21
Índio do ramo araucano;
47
había entonces, donde quiera,
cantores de fantasía22
”
4.3 Futebol e Identidade Nacional no Brasil
O futebol tornou-se profissional no Brasil em 1933, em um mesmo período em que esse
esporte na Argentina e no Uruguai saía do amadorismo (STORTI; FONTENELLE, 1996).
Processo semelhante ao argentino viveu o Brasil, mas é claro que com algumas diferenças.
Restrito às elites no início do século XX, o futebol foi se tornando mais popular à medida que a
população negra e operária (em sua maioria funcionários das estradas de ferro) o praticava.
No mesmo ano de 1933, como escrito no parágrafo anterior, em que o futebol se torna
profissional no Brasil, publicam-se os estudos de Gilberto Freyre sobre a formação do homem
brasileiro, baseado na mistura das raças23
, um aspecto diferenciador dos outros povos e que,
segundo alguns, viria a formar o estilo de jogo diferenciado da seleção nacional, com muita
ginga, às vezes parecendo displicente ou até mesmo inconseqüente. Dessa forma, o futebol foi se
tornando um instrumento de formação da identidade nacional, como algo próprio do país, ao
mesmo tempo em que vinha obtendo bons resultados internacionais, pelo menos em gramados
sul-americanos. O então presidente Getúlio Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945), que
apregoava a formação de uma Nação fundada em seu caráter multirracial, soube utilizar o futebol
como um instrumento de viés populista, ao incentivar que o país sediasse torneios importantes e,
por exemplo, ao colocar sua filha, Alzira Vargas, como madrinha dos jogadores nacionais. A
junção desses dois fatores – os estudos do respeitadíssimo Freyre e os ideais de Getúlio Vargas, o
22
“Mal soe o encordoado,/ mal eu encontre o compasso,/ não hei de ficar atrás / sem defender a parada; / e até jurei
que jamais / hão de me levar roubada./ E seguiremos, querendo, / até que se esconda o dia./ Era a minha mania /
cantar as noites inteiras, / Havia então, por aí, / cantores de fantasia;
23
FREYRE, Gilberto. Casagrande e Senzala. 1933;
48
da construção de um país com base multirracial – fizeram com que o futebol se constituísse como
parte de uma identidade brasileira, ainda mais com o sucesso no Mundial de 1938, na França, em
que o Brasil, formado por um time de negros e brancos (o que representava uma suposta
harmonia social), conquistara o terceiro lugar, em pleno Estado Novo.
Freyre observa o negro na composição da cultura brasileira como um elemento que
animou a vida doméstica do brasileiro (ANTUNES, 2004, p.32). Os europeus, especialmente os
portugueses, principais colonizadores, segundo ele, eram melancólicos, sorumbáticos, tristonhos.
Em contato com o caboclo do Brasil, desconfiado e pacato, a melancolia se acentuava. O negro
veio para quebrar essa tristeza através da sua risada, segundo Freyre. “Ele que deu alegria aos
são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as
festas de Reis” (FREYRE apud ANTUNES, 2004, p.32). A partir disso, vê-se que o negro, na
cultura brasileira, trouxe alegria, trouxe flexibilidade. O futebol - apesar de a FIFA (Federação
Internacional de Futebol Associado) hoje reconhecer o fato dele ter sido inventado na China –
apareceu no ocidente na Inglaterra. Chegou ao Brasil através de um inglês, Charles Miller24
. O
futebol europeu era e é até hoje de estilo truncado, retranqueiro, em que até mesmo falta a
valorização do objetivo, que é marcar o gol. Ora, assim sendo, o negro, que segundo Freyre,
modificou a sociedade brasileira, ao passar a ter contato com esse esporte europeu também seria
responsável por modificá-lo. Não as regras, mas sim a maneira de ser jogado: mais alegre, mais
desenvolto, mais flexível. A partir dos anos 30 o Brasil viveu uma febre intelectual de
valorização da mestiçagem como aspecto fundador da identidade nacional, com Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda, principalmente. O futebol no Brasil já havia algum tempo deixado de ser
privilégio de uma elite e passou a ser praticado por pessoas de diversas classes e raças. A seleção
brasileira evidenciava a diversidade através da miscigenação que, com suas conquistas e logros,
24
STORTI & FONTENELLE. A História do Campeonato Paulista. São Paulo, Ed. Folha. 1996;
49
só veio a reforçar a idéia posta acima. Sem exageros, se alguém quisesse conhecer o jeito de ser
do brasileiro, deveria antes reparar no quadro nacional de futebol e em seu jogo (ANTUNES,
2004).
Portanto, é a partir do período do Estado Novo que esse esporte atinge ainda mais o status
de algo pertencente à identidade nacional, sobretudo com as conquistas das Copas do Mundo de
1958 e 1962, quando o mundo começa a se render ao “jogo bonito” dos brasileiros, algo único no
mundo do futebol e que até hoje é marca registrada para quem procura ver alguma partida da
seleção brasileira. E uma das respostas para isso permanece como sendo a fusão das raças: a força
e dureza dos brancos (europeus) com a maleabilidade, flexibilidade e alegria dos negros, como o
próprio Gilberto Freyre coloca:
“O mesmo estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um
conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo
tempo de brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo
de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. Os nossos
passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o
alguma coisa de dança e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar futebol,
que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros
europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo
interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e, ao
mesmo tempo, malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil.”
(FREYRE apud RIBEIRO, 2003)
Ao final da Copa de 2002, quando o Brasil se tornou por cinco vezes o campeão mundial
de futebol, um jornal de grande veiculação do país publicou a ficha técnica de cada jogador,
colocando-as em grupos de acordo com a origem da família, ou seja, os negros ficaram de um
lado e os brancos de outro. Não que isso venha a significar uma segregação racial, pelo contrário,
isso demonstra que até hoje o sucesso do futebol nacional é explicado pela mistura das raças.
4.4 O Futebol e as Multidões
50
É sabido que o esporte mexe com milhares de pessoas. Muito disso se deve à associação
de um clube de esportes a uma causa, a um lugar de origem, a uma religião, a uma determinada
classe social, ou seja, os clubes e também as seleções nacionais possuem identidades e por isso
eventos esportivos conseguem reunir e abranger multidões. Muitas vezes não é apenas o time que
está jogando, e sim a sua religião, o seu lugar, ou uma causa.
Orígenes Lessa, em seu conto “O Esperança Football Club” já demonstra que um time de
futebol representa o lugar, é o fator de identificação de uma comunidade: “Era o orgulho de
Buritizal. Resumia-lhe a vida e as aspirações.” (LESSA apud ANTUNES, 2004, p.25). Vários
exemplos podem ser citados, mas nada como o dos trabalhadores ferroviários na América do Sul:
Peñarol (Uruguai), Corinthians (Brasil), Newell’s Old Boys (Argentina) tiveram suas origens
com os operários das estradas de ferro de suas respectivas regiões25
. Quando suas agremiações
entravam em campo, jogava-se não apenas pela equipe, mas por toda a causa dos seus colegas
trabalhadores. Da mesma maneira, temos o caso do atual Argentinos Juniors26
, que se
denominava “1º de Mayo” (dia internacional do trabalhador) para com isso obter apoio da classe
operária das indústrias do entorno de Buenos Aires (AGOSTINO, 2002). No que se refere à
origem social da população, os torcedores do Boca Juniors da Argentina são pertencentes a
classes mais humildes e com isso, as pessoas com uma origem semelhante se identificam com o
clube. Na Europa, o público também tem essa identificação e, sem dúvida, também com a seleção
nacional. As denominações “United” de alguns clubes na Inglaterra, como o Manchester United e
o Newcastle United, se referem ao lugar de origem, o que vem por conquistar vários adeptos. Na
Escócia, o apelo religioso é o mais forte: os protestantes torcem para o Glasgow Rangers e os
católicos, para o Glasgow Celtic. O fato de Liverpool ser uma cidade portuária faz com que a sua
25
GALEANO, Eduardo. El Fútbol a Sol y Sombra. 1995;
26
Clube que revelou Diego Maradona. Revista 10, nº 1, jun. 2004;
51
principal equipe, homônima27
, atraia para as suas arquibancadas milhares de funcionários do
porto da cidade, uma vez que o clube historicamente sempre defendeu a causa dos trabalhadores
desse setor. Na Alemanha, o Borussia, de Dortmund, um grande centro siderúrgico,
tradicionalmente sempre defendeu as questões e causas dos trabalhadores das minas de carvão.
Por esse e outros motivos a equipe possui um grande número de torcedores, muitos deles
possuem algum vínculo com a atividade econômica predominante naquela região, que são as
minas de carvão e as indústrias de aço.
É impossível, quando se fala de futebol e o seu relacionamento com as multidões, deixar
de falar sobre a mídia. A imprensa – rádio, televisão e jornais – contribuiu em muito com a
difusão desse esporte. Foram essas formas de comunicação que em grande parte popularizaram o
futebol e de certa forma o tornou mais acessível à população. Se uma pessoa está em um canto do
país, se ela tiver um aparelho de rádio ou uma televisão, poderá acompanhar o maior clássico de
futebol de seu país que está ocorrendo a milhares de quilômetros de distância ou até mesmo ouvir
a narração de um jogo da seleção de seu país em uma Copa do Mundo de futebol. Nesse caso, os
meios de comunicação não apenas serviriam para difundir o esporte, mas também como um
instrumento de unificação nacional.
Com tudo isso, o futebol se tornou parte da identidade nacional e se transformou em
interesse nacional. Essa afirmação pode ser aplicada tanto no Brasil quanto na Argentina, sem
dúvida alguma, uma vez que os dois países passaram por processos parecidos na difusão do
futebol em seus territórios. Ao mesmo tempo, esse esporte sempre serviu como uma maneira de
demonstrar independência, principalmente para os brasileiros, uruguaios e argentinos frente aos
países europeus, onde supostamente surgiu o futebol. A primeira Copa do Mundo transmitida por
rádio para o Brasil foi em 1938, na França, quando os brasileiros conquistaram o terceiro lugar.
27
As duas principais equipes de Liverpool são o Liverpool F.C. e o Everton F.C.;
52
Na partida que eliminou o Brasil da final, contra os italianos, muitas pessoas pararam suas
atividades para poder acompanhar a partida. Ao final da mesma, com a derrota, sérios distúrbios
ocorreram nos grandes centros, até mesmo porque os italianos se dirigiam aos brasileiros através
de insultos racistas como o de um jornal que justificou a grande vitória da “squadra azzurra”
graças ao “jogo bruto e ilegítimo dos negros” (AGOSTINO, 2002). Ao agirem dessa maneira, os
italianos feriam algo que já fazia parte da identidade brasileira: o jogo, o futebol e também a
mestiçagem. As conseqüências dessa partida foram tão graves que levaram Getúlio Vargas a
escrever em seu diário:
“O jogo monopolizou as atenções. A perda do team brasileiro
para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no
espírito público, como se tratasse de uma desgraça nacional”.
(AGOSTINO, 2002, p.145)
Existem vários momentos na história em que o nacionalismo teve como ferramenta o
esporte. No primeiro capítulo isso ficou explícito nos exemplos do fascismo e do nazismo, além
do franquismo espanhol e do salazarismo português. Nacionalismo e nação possuem significados
muito distintos. Uma nação congrega pessoas com uma tradição psicológica, cultural, territorial,
política e histórica comum, o que lhes confere uma idéia de comunidade, que é fundamental na
preservação de uma sociedade. Nacionalismo é o sentimento de uma pessoa de pertencer a uma
comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilo de
vida. Além disso, o nacionalismo é usado para regenerar uma nação, fazer a cultura florescer,
convergir a população em torno de um projeto coletivo a longo prazo. Regenerar uma nação
envolve o seu próprio renascimento, ou seja, significa lembrar o seu puro e glorioso passado
(GUIBERNAU, 1996). Isso é bem exemplificado no caso argentino, com o resgate dos valores de
um personagem típico e histórico do país, o “gaucho”, que tem como principais características ser
53
empreendedor, bom caráter, valente, corajoso e honrado, segundo as tradições e os poemas de
Martín Fierro.
Já foi visto que o futebol constitui parte da identidade de vários povos e alguns países. Já
foi visto também que o futebol é capaz de envolver e agregar multidões. Isso significa um ótimo
cenário para manifestações políticas ou o próprio uso do esporte como um instrumento para
justificar ações, desviar as atenções, criar determinadas condições, fazer repercutir determinadas
políticas, enfim, fazer do esporte um instrumento político. Viu-se também que existem outros
instrumentos de manutenção no poder por parte de governos autoritários, que justificariam ações
e desviariam a atenção da população ao criar um clima de euforia. Instrumentos esses que são
guerras, aparelhos de repressão e políticas econômicas. Feitas essas considerações, pretendemos
demonstrar a seguir com quais objetivos os governos militares do Brasil (1964-1985) e da
Argentina (1976-1983) fizeram das conquistas no esporte - as Copas do Mundo de 1970 e 1978,
respectivamente - instrumentos de caráter populista e de manutenção no poder.
54
5 O FUTEBOL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO: ABORDAGEM TEÓRICA,
ANÁLISE DE SÍMBOLOS E DISCURSOS
5.1 O Construtivismo e as Relações Internacionais
Os Construtivistas acreditam que as Relações Internacionais baseiam-se em fatos sociais.
Assim sendo, Jon Elster diz que “A unidade elementar da vida social é a ação humana individual”
(ELSTER apud ADLER, 1999, p.209). Na interação dos indivíduos está a compreensão da
sociedade. Para Durkheim, idéias, como, por exemplo, representações religiosas, são
representações coletivas que significam realidades coletivas. Já a Teoria da Estruturação de
Giddens remete ao fato de que os agentes e as estruturas são determinantes para a explicação do
comportamento social. A estrutura é o resultado da prática social e os agentes são os construtores
de tais práticas e conseqüentemente das estruturas, possuem identidades, ideais, direitos e
obrigações; agem de acordo com regras, mas possuem seus próprios interesses. A partir disso, um
dos objetivos do Construtivismo faz-se em entender a sociedade através das suas estruturas e seus
agentes, detentores de valores, imagens, ideais e interesses.
Um outro fator que faz com que os Construtivistas estejam em um meio termo é a
Intersubjetividade. Para se entender a Intersubjetividade, é preciso entender o papel da
interpretação28
para a compreensão das ações sociais. A partir disso, Racionalistas como
Goldstein e Keohane reconhecem a importância do estudo do significado, do que está “na cabeça
das pessoas”, “interpretação do significado pelo entendimento empático e reconhecimento de
padrão por um observador” (GOLDSTEIN & KEOHANE apud ADLER, 1999, p.211). A
interpretação (Verstehen) é a realidade social, de acordo com Adler. Pode ser um entendimento
coletivo, a prática da diplomacia, o controle de armas, enfim, todas as estruturas de conhecimento
28
Também entendido como Verstehen, de acordo com Max Weber (ADLER, 1999, p.210);
55
que são formadas e reproduzidas pelos membros de uma sociedade, de acordo com o seu
comportamento. Os significados intersubjetivos não se constituem apenas do agregado de crenças
individuais que interpretam o mundo em conjunto, mas também de um conhecimento coletivo
que é compartilhado por aqueles capazes de influenciar a prática e a realidade social, ou seja, os
agentes. Ao mesmo tempo, a definição de Intersubjetividade não descarta que os indivíduos
possuem seus próprios pensamentos, propósitos e intenções, mas quando as pessoas atuam em
conjunto, a “intencionalidade de cada um é derivada de uma intencionalidade coletiva de que
compartilha” (SEARLE apud ADLER, 1999, p.212).
Portanto, a realidade social da Intersubjetividade não existiria sem a comunicação social.
As Comunidades de Segurança de Karl Deutch – grupos de pessoas que compartilham valores,
responsabilidades (“sentimento de nós”) e confianças mútuas – podem representar o que seria
uma Nação. Assim como coloca Benedict Anderson, que chama as Nações de “Comunidades
Imaginadas”, já que não são apenas a soma das crenças de um grupo nacional. As Nações
existem em símbolos, práticas, instituições e discursos. O Construtivismo adota uma idéia de
motivações como causas, ou seja, parte do pressuposto de que fazer certas coisas por
determinados motivos, nos leva a crer sobre “o que é requerido”, em determinadas circunstâncias.
Com isso, estabelecer o significado das ações nos dá o conhecimento sobre as causas.
É possível fazer uma relação entre esporte e poder – ou como é proposto neste trabalho, as
ligações entre os regimes militares brasileiro e argentino e as Copas do Mundo de 1970 e 1978,
respectivamente – a partir do Construtivismo. De acordo com a definição de Intersubjetividade
apoiada no significado das Comunidades de Segurança, verifica-se tanto no Brasil quanto na
Argentina, nos períodos especificados acima, valores compartilhados e confianças mútuas por
parte da grande maioria da população, e um sentimento de “nós” – verificado mais precisamente
na Argentina, partindo da hipótese que a Junta Militar usou mais o apelo de união e identidade
56
nacional, ao contrário do Brasil, que fez mais uso da idéia de grandeza. Essa realidade social
edificada durante essa época não seria possível sem a comunicação social - que as ditaduras
utilizaram tão bem, investindo em propaganda e recursos para a sua construção, conforme será
visto adiante, com símbolos, histórias, discursos, mitos, ideais e valores que se difundiam através
dos esforços do governo e eram assimilados pela população. É aí que está a coletivização da
intenção ou a intencionalidade coletiva, ou seja, a construção da Intersubjetividade, um dos focos
da análise Construtivista.
Dentre estes recursos simbólicos é possível citar o mito do vaqueiro na Argentina (um
personagem necessário para a união da população e (re)construção da identidade nacional), usado
como mascote na Copa do Mundo naquele país; os valores de grandeza e crescimento propagados
durante o governo de Médici no Brasil e suas práticas – um dos pontos em que uma Nação se
constitui, de acordo com as “Comunidades Imaginadas” de Anderson - como a construção das
hidrelétricas, da malha rodoviária desbravadora, que coincidiram com o Mundial de futebol do
México em 1970.
Conforme supracitado, o Construtivismo permite-nos compreender as causas através dos
significados das ações, ou seja, os motivos que levaram os regimes militares desses dois países a
empreenderem determinadas ações foram baseados em determinados motivos. Assim sendo, os
Construtivistas afirmam que a análise textual e de discurso são essenciais para o entendimento
das Relações Internacionais que se constituem, de certa maneira, de relações sociais, assim como
coloca Anderson no que diz respeito à existência de uma Nação. Ao partir da hipótese de que a
Junta Militar argentina estabeleceu crenças, ideais e valores para a união da Nação (sentimento de
“nós”) em torno de um objetivo específico (a vitória na Copa do Mundo e a conseqüente
superação de todo um país) e a (re)construção da identidade nacional; e de que o governo Médici,
através de instituições, difundiu valores e crenças baseadas na grandeza, crescimento e futuro
57
próspero do Brasil, atitudes estas que ajudaram a construir realidades sociais - serão analisados
recursos, símbolos e discursos elaborados e formulados aos períodos específicos em cada país:
início da década de 70 no Brasil e final da mesma década na Argentina. Porém, para isso, é
preciso antes entender o porquê desses discursos, dessas imagens e desses símbolos.
5.2 Estado Nacional, Nacionalismo e Identidade
Um Estado Nacional procura unir o povo pela homogeneização, ao criar uma cultura,
símbolos, valores comuns, inventando mitos. Uma Nação se destaca por essa homogeneização
que, como foi exposto anteriormente, significa sentimentos comuns compartilhados
(pertencimento a uma comunidade). A partir dessa inferência, percebe-se que a tarefa principal de
um Estado é a integração, a qual permite conferir uma idéia de Nação ao povo, como um todo
coeso, com um certo grau de identidade cultural, lingüística, religiosa e outras, entre seus
membros. Cabe lembrar que a preservação de uma sociedade depende do sentido de comunidade
(GUIBERNAU, 1996).
O Estado Nacional também possui a necessidade de legitimar o seu poder. Se o poder não
se legitima no âmbito da sociedade, ou ele é exercido de modo precário ou não existe um
sentimento comum de pertencimento a um todo maior (DE SOUZA, 1995). Nesse sentido,
formar uma idéia de Nação significaria romper com as clivagens de classe, de raça, de grupo,
conferindo um sentimento de solidariedade e fidelidade, em que as divergências seriam colocadas
em um segundo plano, bem atrás dos valores coletivos, materiais ou culturais. Pode-se sem
dúvida alguma relacionar tais conceitos com o que é pretendido estudar neste trabalho. Para isso,
faz-se necessário rever os objetivos dos regimes militares do Brasil (1964-1985) e da Argentina
58
(1976-1983) e os contextos pelos quais os dois países passavam à época das Copas do Mundo de
1970 e 1978, respectivamente.
Os objetivos do regime brasileiro eram frustrar o plano comunista de conquista de poder e
defender as instituições militares e restabelecer a ordem de modo que pudessem executar
reformas legais29
(SKIDMORE, 1988).
Em 1969 assume como presidente do Brasil o General Médici, que passa a administrar um
país com inúmeros contrastes. O Nordeste enfrentava um de seus piores períodos de estiagem;
havia uma tremenda desigualdade social (o que não difere dos momentos atuais), além de
seriíssimas greves, como as de Contagem e a de Osasco, que influenciaram várias outras pelo
resto do país, sem falar nos movimentos de esquerda, de guerrilha e para-militares, que
floresciam nos grandes centros e nas áreas mais afastadas, como na região do Araguaia. O
seqüestro do embaixador norte-americano no Brasil é algo representativo das ações desses
movimentos. Era um regime político repressor, com perseguições a opositores, torturas e morte a
todos aqueles que pudessem vir a desestabilizar a ordem. Ao mesmo tempo, o país vivia o
momento mais próspero da sua economia, com índices de crescimento do Produto Interno Bruto
que atingiam os dez pontos percentuais anuais, o que gerava a criação de empregos e mais renda.
Porém o abismo social aumentava: os detentores de capital adquiriam mais e mais rendimentos,
enquanto que os trabalhadores não viam seus salários aumentarem. Esse foi um dos motivos das
greves de Contagem e Osasco.
Por sua vez, vejamos os objetivos do regime militar argentino (1976-1983) - que eram
fundamentalmente os de reorganizar a sociedade, reorganizar as instituições e estabelecer as
condições necessárias para o retorno da democracia – e façamos uma síntese do contexto social,
político e econômico porque aquele país atravessava.
29
Frases expedidas pelo Chefe do Estado Maior do Exército, Castelo Branco, em 30 de março de 1964;
59
Resumidamente, a Junta Militar que assumiu a presidência do país em 1976, encabeçada
pelo Tenente General Videla era não deixar o poder até que os “valores Cristãos”, a “tradição
nacional” e a “dignidade do povo” não fossem resgatados pela sociedade por completo.
Alabarces (1998), enumera mais objetivos do Golpe-de-Estado, como o de devolver o sentido da
ordem, de reafirmar o valor da família e de voltar ao caminho do progresso.
A Argentina às vésperas do Mundial de 1978 convivia com inúmeros problemas. No
âmbito político, um regime militar altamente repressor aos seus opositores ou a qualquer
indivíduo que viesse a ameaçar a ordem vigente, manteve campos de concentração para essas
mesmas pessoas. Os Montoneros, principais opositores ao regime, realizavam inúmeras
investidas armadas contra o governo enquanto outras inúmeras facções, guerrilheiras ou não,
protagonizavam resistência, sendo através ou não de armas. No plano econômico, uma crise
inflacionária e a implementação de um modelo liberal que, além de não dar os resultados
esperados, isolava os trabalhadores. Quem reclamava era preso e corria o risco de ser torturado
ou ir para algum campo de concentração.
Com tudo isso, percebe-se que Brasil e Argentina passavam por épocas conturbadas. Os
dois países estavam bem divididos: ricos e pobres; gente da esquerda e gente da direita;
peronistas e anti-peronistas (no caso argentino); favorecidos pelo crescimento econômico e
aqueles que não eram favorecidos. Se os dois países quisessem cumprir os objetivos listados
acima, era preciso que seus governos e suas administrações entrassem em ação rapidamente. Era
preciso integrar, conferir às suas respectivas populações o sentido de Nação. O Estado precisaria
legitimar o poder e, dentro do quadro observado, brasileiro e argentino, o poder não era
legitimado com eficiência. Torna-se mais fácil governar se houver um senso de comunidade – e
de trabalho para um objetivo em comum - entre as pessoas governadas (GUIBERNAU, 1996). O
Estado tentava legitimar o poder? Sem dúvida alguma. Nos dois países isso fica claro com a
60
repressão e a censura, mas não havia eficiência, não havia esse senso de comunidade. Era preciso
legitimar o poder de maneira com que o regime político se estabelecesse como eficaz e
perdurasse.
Conforme escrito anteriormente, era preciso dar à população a idéia de união, comunhão,
de convívio e de trabalho para uma meta em comum entre todos os seus habitantes. A ordem
nacional estava em cheque com a opinião pública dividida, com distúrbios pelos dois países,
enfim. É nesse momento que os governos buscam reforçar o sentimento nacionalista, tentando
resgatar o sentimento de pertencer a uma comunidade, cujos membros se identificam uns com os
outros através de certos símbolos, crenças e estilo de vida. Segundo Guibernau (1996), o
nacionalismo aparece quando a integridade do Estado Nacional está em perigo ou há a
necessidade de defender certos interesses. O nacionalismo é usado, também, para “regenerar”
uma nação, fazer a sua cultura florescer e isso significa resgatar o seu passado “puro” e de
“glórias”.
Segundo Dallari (1986), para obter maior integração de seu povo e assim reduzir as causas
de conflitos, os Estados Nacionais procuram criar símbolos e uma imagem nacional, com efeitos
emocionais que façam com que os membros de uma sociedade se sintam solidários. Para isso,
procura-se evidenciar e estimular todos os feitos positivos de um grupo como obras de todo um
conjunto. As características nacionais, os símbolos e os mitos seriam também responsáveis pela
criação da consciência de comunidade, necessária para a manutenção de uma sociedade.
Através desses pressupostos, os dois governos procuraram coletivizar políticas, feitos,
conquistas, êxitos para que a população em geral pudesse fazer parte dessas realizações, dessas
conquistas, apresentadas como projetos de grandeza e soberania dos – e nos - dois países (DE
SOUZA, 1995). Com a coletivização dessas ações, dos logros e dos êxitos, o indivíduo também
passava a fazer parte delas e assim dessa maneira contribuía para o crescimento e sucesso do país.
61
A construção da Nação, a partir de uma perspectiva nacionalista, era objetivada pelos regimes
militares, uma vez que era preciso restaurar a sociedade, as instituições, restabelecer e devolver o
“sentido da ordem”, o “valor à família” e voltar ao “caminho do progresso” (ALABARCES,
1998).
Para que fosse possível analisar melhor estas ações dos governos citados acima,
selecionamos discursos, pautas publicitárias e realizações que remetem ao período das conquistas
nas Copas do Mundo, no Brasil em 1970 e na Argentina em 1978. O que se pretende verificar
com todo esse material é a hipótese de que a Junta Militar Argentina se apoiou mais na questão
da união e identidade nacional, enquanto que o regime militar brasileiro, quando da conquista do
tricampeonato mundial do México, usou o referido êxito com o intuito de valorizar o ideal de
grandeza nacional, como parte do ideal de um “Brasil Potência”.
5.3 O Futebol como Instrumento Político na Argentina e a Copa de 1978
A Argentina não poupou esforços para realizar o undécimo Campeonato Mundial de
Futebol. As realizações foram muito além da construção de estádios30
, da recepção de torcedores
e jornalistas31
, da construção de modernas autopistas, o que também foi citado neste trabalho.
Paralelamente aos preparativos para o grande certame, era preciso fazer com que a realização e
organização de uma Copa do Mundo fosse sentida por todos os argentinos, ou seja, fazer com que
cada um sentisse o compromisso da realização de um evento que projetaria a Argentina para o
mundo inteiro, ou seja, levaria ao resto do mundo a imagem de um país trabalhador, em ordem,
30
Os estádios: Mundialista (Mar del Plata), Malvinas Argentinas (Mendoza) e o de Córdoba foram construídos para
a Copa de 78; o Monumental de Nuñez e o Gigante de Arroyito foram reformados para o evento;
31
Vale lembrar que a primeira emissora de TV em cores do país, a ATC (Argentina Televisora Color) foi colocada
no ar semanas antes do início da Copa de 78;
62
unido, aparentemente sem “mágoas” ou quaisquer tipos de constrangimentos. Isso significa e é a
demonstração do próprio objetivo da Junta Militar ao tomar o poder em março de 1976. Era
preciso fazer com que houvesse um sentimento de união e patriotismo que tomasse conta de cada
cidadão. Ainda mais se o selecionado argentino se consagrasse pela primeira vez campeão
mundial.
À época do Mundial de 1978 o governo argentino vivia em constante guerra contra a
subversão. Assim como já foi dito, o país seguia dividido e a economia não ia bem e
conseqüentemente os índices sociais abaixavam de uma maneira nunca vista na sociedade
daquele país. Era preciso, portanto, reconstruir uma nação, reinventar mitos, buscar na identidade
que formou o cidadão argentino e no seu passado glorioso, o sentido da união nacional, união que
culminaria nos trabalhos para a realização desse evento esportivo, união que culminaria mais
ainda com a conquista do título.
Antes da Copa do Mundo, o presidente Jorge Rafael Videla, já dizia:
“Senhores, assim como o Comandante lidera a sua tropa, assim como um Presidente
saúda e despede Embaixadores, assim quero exortá-los para que se sintam e sejam
ganhadores, ganhadores do torneio, ganhadores da amizade, ganhadores da fidalguia
e que demonstrem a qualidade humana do homem argentino”. (SEOANE; MULEIRO,
2001 p. 364).
Nesse discurso do então presidente Videla é possível identificar vários recursos nele
utilizados para enfatizar questões identitárias, símbolos que marcam o estilo de vida do cidadão
argentino. Para isso, ele recorre à tradição do gaucho dos pampas: ganhador, amigo e fidalgo, ou
seja, de índole generosa, de caráter grandioso e ilustre. Nesse caso, o político buscou na história
e/ou em um mito - tão constante em Martín Fierro - o essencial para conferir uma identidade ao
argentino de hoje, em que os receptores da mensagem supracitada foram os vinte-e-dois
jogadores mais comissão técnica da equipe Argentina que estava prestes a disputar aquela Copa
do Mundo.
63
Durante a realização do mundial, Videla declara para um jornal de Buenos Aires: “Eu não
sou um torcedor, não tenho seguido o futebol, não o vivi. O que me interessa do futebol é o que o
motiva: as arquibancadas, todo o renascimento que experimenta o país”. (SEOANE;
MULEIRO, 2001 p. 362).
É possível percebermos, aqui, referências à união e ao processo de transformação que a
Junta Militar desejava observar na sociedade daquele país. Nesse caso, o que motivava Videla
eram as arquibancadas. No caso de uma Copa do Mundo, pressupõe-se que as arquibancadas
estavam cheias e isso conferia uma idéia de união porque não há nada ou algo que possa dividir a
arquibancada e por isso o povo estava, desta maneira, unido, em favor de uma causa, nem que
essa causa fosse em favor de uma vitória dentro do gramado, o que poderia ser convertida mais
posteriormente em uma vitória da própria sociedade - sem dúvida que dentro dos moldes do que
desejava a Junta Militar. A conseqüência da união nas arquibancadas é o renascimento, ou seja, a
vitória que viria dentro do campo sendo levada para a vida cotidiana, provocando mudanças
(“boas”).
Durante a realização da Copa do Mundo, existe um capítulo bem marcante que é motivo
de uma ampla discussão até hoje: a partida Argentina x Peru, disputada em Rosário pela última
rodada da segunda fase do torneio. Essa partida decidiria o finalista e os anfitriões precisavam
vencer os peruanos por no mínimo quatro gols de diferença. Isso realmente aconteceu, e um
pouco mais também. Os brasileiros ainda não “engoliram” aquele jogo e os argentinos o encaram
como se fizesse parte importante da história nacional, como diz a letra da música “Argentinidad
al Palo”, de Bersuit Vergarabat:
“.. la transfusión sangüínea,
el 6 a 0 a Peru,
y muchas otras cosas más,
64
la argentinidad al palo...”32
Conforme citado anteriormente, os anfitriões precisavam ganhar por quatro gols de
diferença, no mínimo, uma vez que o Brasil estava em primeiro lugar dessa segunda fase, depois
de haver vencido a Polônia, no mesmo dia, porém à tarde. Começa por aí: por que os jogos Brasil
x Polônia e Argentina x Peru não foram disputados no mesmo horário, conforme vinha
acontecendo? Com isso, os donos da casa jogaram sabendo do resultado que precisavam obter.
Além disso, uma bomba de fabricação caseira explodiu na casa do então Secretário da Fazenda,
Juan Alemann – que meses antes havia expressado a sua crítica pelos excessivos gastos que a
realização da Copa do Mundo estava trazendo aos cofres públicos – no momento do quarto gol
sobre o Peru. Coincidência ou não, os autores desse atentado sabiam da manipulação do
resultado. Existem vários outros indícios que justificariam o arranjo da partida, como o goleiro
peruano daquele jogo, Ramón Quiroga, argentino naturalizado um ano antes do Mundial; doação
de milhões de toneladas de cereais e fornecimento de uma linha de crédito ao país andino. Porém,
se o jogo fora mesmo arrumado, isso não seria eficiente se essa cadeia de subornos não
atingissem aqueles que fazem o espetáculo, os jogadores. Segundo a jornalista argentina Maria
Laura Avignolo (YALLOP, 2002, p.186), três jogadores peruanos, titulares, receberam cerca de
vinte mil dólares para facilitar a partida. O escândalo veio à tona no início da década de 80,
quando Quiroga, então goleiro, reclamou: “O fato é que eu me sinto roubado. Se tantos dólares
foram pagos, eu não fui incluído. Acho que tenho direito à minha parte na bolada”33
. Comprada,
arranjada, manipulada a partida ou não, o jogo arrancou a seguinte declaração do presidente
Videla:
32
A transfusão sangüínea / os 6 a 0 sobre o Peru / e muitas outras coisas mais / a argentinidade ao máximo;
33
YALLOP, David. Como Eles Roubaram o Jogo. Rio de Janeiro, Record, 2002. p. 168;
65
“Acredito que é possível afirmar que, mais além do Campeonato Mundial de Futebol e
da limpa e legítima vitória da nossa equipe, o povo da República expressou com
autenticidade várias vivências coletivas”. (SEOANE; MULEIRO, 2001 p. 364).
Primeiramente é possível constatar a jactância do presidente argentino nessa declaração:
“limpa e legítima vitória”? Entretanto, não é essa parte que se deseja ou merece ser analisada.
Nesse caso, Videla declara que “o povo da República expressou com autenticidade várias
vivências coletivas” (ALABARCES, 1998). Em suma, a população compartilhou vários
sentimentos durante aquela partida, sentimentos em comum, vivências coletivas. Tudo isso
remete mais uma vez aos objetivos do golpe de março de 1976 que, além dos pontos expostos no
início do capítulo, era o de reconstruir uma nação. Uma nação antes fragmentada, dividida e que
com a administração da Junta Militar, estava receosa e “amordaçada”, estava agora, no decorrer
da realização desse campeonato, unida, expressando e experimentando sensações em comum.
Esse vínculo entre a população seria, portanto a base para volta ao progresso e ao
restabelecimento da ordem. A união fortaleceria os “valores cristãos e familiares”, de “trabalho,
honradez, honestidade e comunhão”, para que o país pudesse novamente viver períodos
prósperos.
Também referente a esta partida contra os sul-americanos, Videla declarou: “Nossos
jogadores mostraram coragem, coração e essas ganas de ganhar que em todos os aspectos tem o
povo argentino”. (SEOANE; MULEIRO, 2001 p. 364).
Na mensagem acima o Presidente ressalta as qualidades do povo de seu país, concebendo-
lhe como um mito, o mito do homem argentino, baseado no mesmo gaucho citado anteriormente:
corajoso, nobre, valente, de coração e com ímpeto vencedor. Se, segundo Videla, a seleção
argentina demonstrou isso dentro do campo e venceu a partida, com as mesmas características
qualquer cidadão argentino seria capaz de vencer. As características comuns de um povo, no
66
caso, conferem-lhe a idéia de uma nação, de uma sociedade organizada, necessária para o
progresso.
Vencida a partida contra o Peru, a Argentina estava pela segunda vez na história34
em uma
final de um Mundial de Futebol. O jogo seria contra os holandeses, time com bom quadro, atuais
vice-campeões mundiais à época...suspeitos holandeses (drogas, homossexualidade, excessos)35
(ALABARCES, 2002). Entre a partida anterior e a final, a conceituada revista “El Gráfico”
publica:
“Chegamos à final. Não apenas os jogadores, mas todos. Se acabaram os “Eus”
refugiados atrás de abafados gritos. Agora somos nós, sem distinções de cores, como
devemos ser sempre. Goleamos o destino e derrotamos as sombras” 36
Ao lermos este discurso, o que se observa claramente é a coletivização das ações. Todos
os argentinos haviam chegado à final, não apenas os jogadores. Todos, sem distinção de cor, de
raça, de classe social, uma só nação havia conseguido chegar à decisão. Esse discurso enfatiza e
deixa entender que se os argentinos quisessem mesmo chegar a todas as finais – não apenas no
esporte, mas também em outras áreas como na economia, na sociedade e na política – era preciso,
portanto, estarem todos juntos, como uma nação, pois dessa maneira atingir-se-ia o resultado
esperado. “Golear o destino e derrotar as sombras” significava driblar o destino a que a Argentina
estava antes condenada, em uma época de turbulência política, desordem, indefinições. A partir
do discurso pressupõe-se que o país atravessava um período de renascimento (conforme discurso
anterior) de construção da ordem e do progresso. Derrotar as sombras era vencer aqueles que não
acreditavam no “grande futuro a todos os níveis”, como declarou Kissinger sobre a Argentina.
34
A primeira vez foi na primeira Copa do Mundo, no Uruguai, quando os argentinos perderam para os uruguaios na
final por 4 a 2;
35
A revista portenha “El Gráfico”, especializada em esportes, durante o mundial, classificava com epítetos as
nacionalidades dos países participantes da Copa do Mundo: os iranianos eram exóticos; os poloneses, conflituosos;
os escoceses, bêbados;
36
El Clarín, 23 jun. 1978;
67
Era vencer aqueles que promoviam a desordem e, com isso, mantinham vivo um passado que a
Junta Militar queria apagar. Coletivizar as ações, mais uma vez, conferia a cada um dos
argentinos uma idéia de nação, de que todos faziam parte, sem distinções, do trunfo obtido pelo
país – no caso, de chegar a uma final -, aspectos positivos para a reconstrução de uma sociedade
anteriormente dividida e que agora deveria rumar ao caminho do progresso, de acordo com os
objetivos da Junta.
A partida final foi realizada em 25 de junho de 1978 no Monumental de Núñez, estádio do
Club Atlético River Plate, em Buenos Aires, completamente lotado e cheio de “papelitos” que a
torcida atirava para dentro do campo. Nas tribunas de honra estava a Junta Militar (Videla,
Massera e Agosti) e Henry Kissinger (!). O jogo terminou na prorrogação, conferindo 3 a 1 aos
donos da casa, graças aos gols dos hábeis jogadores argentinos – vale destacar Mário Kempes - e
graças também ao ato patriota da trave de Fillol, que salvou um chute do holandês Rensenbrink
nos minutos finais do tempo regulamentar, o que poderia tirar o título dos anfitriões. Ao contrário
dos jogadores campeões, essa trave nunca foi motivo de honras militares (GALEANO, 1995).
Argentina campeã. Multidões saem às ruas de cada cidade, de cada vilarejo do país, para
comemorar este feito inédito. O país estava no topo do mundo e milhares se dirigiram à Praça de
Maio, em frente à Casa Rosada37
, em Buenos Aires, para saudar o Presidente Videla. Três dias
após a grande final, o mandatário, durante a cerimônia de congratulação aos jogadores campeões
disse que:
“Foi toda uma nação que triunfou. Quis estar encabeçando todos os argentinos que
enfrentaram este compromisso com o mundo, que é mais que um mero compromisso
com o esporte. Quero estar na linha de frente liderando a minha gente em seu
compromisso com o mundo”. (SEOANE; MULEIRO, 2001, p.364)
37
A Casa Rosada é a sede do Poder Executivo da República Argentina;
68
Mais uma vez, de imediato, observa-se nesse discurso a coletivização das ações, para que
nenhum cidadão argentino ficasse de fora da conquista do mundial de futebol. Era a nação que
triunfara. Cada um triunfou juntamente com os 22 rapazes de Menotti: desde o rico empresário
portenho até aquele humilde pescador da Terra do Fogo ou a senhora de origem indígena de um
remoto vilarejo na província de Jujuy. Pela primeira vez nota-se a palavra “compromisso”. Na
verdade, o compromisso seria de quem e com o que?
É válido dizer que um dos objetivos da organização de um evento como uma Copa do
Mundo de Futebol, no caso argentino, era divulgar aquele país para o mundo, mostrar a cara da
Argentina e a sua “nova” imagem: de ordem, de união, de desenvolvimento, de limpeza, enfim, o
contrário do que a opinião pública internacional vinha dizendo sobre os presos políticos e a
ausência de Direitos Humanos. O compromisso seria o de mostrar uma Argentina unida em torno
de determinados propósitos e um país que vivia em paz e harmonia, o que deveria ser um
exemplo para o mundo todo. A capa da revista semanal “Siete Dias” também retrata bem esse
compromisso e remete à mitificação do comportamento do homem argentino: “Argentina já
ganhou! Vinte e cinco milhões de argentinos já ganharam o mundial: em organização, fidalguia,
hospitalidade, união e irmandade...e em mostrar nossa limpa imagem ao resto do mundo”38
.
Já foi visto que organização, fidalguia, hospitalidade, união e irmandade são as
características essenciais que constituiriam e identificariam o argentino, segundo os propósitos da
ditadura. Isso conferiria a todos eles o sentimento de pertencerem a um mesmo solo, de
pertencerem a um povo, de fazerem parte de uma nação. Mostrar a imagem “limpa” do país ao
resto do mundo seria o compromisso com o planeta, nos mesmos objetivos do discurso de Videla
vistos acima.
38
Siete Dias, 26 jun. – 03 jul. 1978;
69
No editorial “Argentina Campeón”, do diário La Nación de 26 de junho de 1978,
observa-se:
“Depois deste mundial que terminou, devemos seguir nos encontrando e nos
reconciliando em torno dos grandes objetivos comuns da nacionalidade. Existe uma
vocação de grandeza desperta e uma requisitória em todas as bocas...Isso vale muito
mais que a incompreensão de alguns e a tortuosidade com a qual outros insistem em
nos injuriar no estrangeiro. Existe fé suficiente, em suma, para que a Nação persevere
em sua atual direção”. (La Nación, 26 jun. 1978)
Mais uma vez o discurso é focado para a construção de uma Nação, constituída por
indivíduos com objetivos em comum e que visualizam a grandeza, ou seja, o progresso. Cabe
lembrar uma vez mais que o regime militar argentino que tomara posse em março de 1976 tinha
por objetivo o progresso e, uma vez que a população adquirisse objetivos comuns, a idéia de
nacionalidade, a ordem estaria muito próxima.
O treinador da seleção argentina na Copa do Mundo de 1978, César Luís Menotti, foi
extremamente inteligente e bastante hábil na condução da equipe nacional rumo ao título.
Entretanto, não obstante a sua fama de “comunista”, suas declarações a respeito do time e do
clima para o torneio caminhavam juntas com os discursos e objetivos do regime militar. O
treinador em suas falas enfatizava bastante o estilo de jogo criollo, argentino, caracterizado pela
plasticidade, pelo toque de bola, pela astúcia. Um jogo honesto, limpo, valente, corajoso, digno,
muito ao contrário do estilo de jogo robótico dos europeus, segundo o próprio Menotti declarava.
Nota-se mais uma vez a abordagem da questão identitária e a reinvenção de um mito, de um
ícone da cidadania e personalidade argentina, o do vaqueiro: honesto, digno, corajoso e valente.
A partir disso, a abordagem feita por Menotti abraçava os objetivos do regime. Se ele (o treinador
Menotti) sabia disso ou não é impossível dizer, mas suas palavras contribuíram para a construção
de um ideal nacional dentro de cada pessoa, de se identificar com a seleção argentina que, por sua
vez, tinha como base as características e o mito do gaucho. Com isso, construía-se uma Nação,
70
surgia algo em que cada um possuía motivos para se orgulhar de serem argentinos. Através disso,
é possível voltarmos ao que fala Dallari (1986), que para obter uma maior integração de seu povo
e assim reduzir as causas de conflitos, os Estados Nacionais procuram criar símbolos e uma
imagem nacional com efeitos emocionais que façam com que os membros de uma sociedade se
sintam solidários.
Depois da vitória sobre a Holanda, na final do Mundial, Menotti concedeu uma entrevista
à televisão em que disse:
“Neste processo o mais importante de tudo, na minha opinião é a união do povo
argentino, pelo menos é o que eu acho. Já faz muito tempo que uns saem às ruas,
outros ficam em casa, enquanto uns ficam alegres, outros ficavam tristes e eu acho
pessoalmente que é a primeira vez em que toda a Argentina está feliz. Tomara que dure
por muitos anos.” 39
De acordo com a declaração, com o triunfo do país no torneio, todos estariam felizes. Se
antes uns ficavam em casa tristes e outros felizes pelas ruas – isso por si revela uma sociedade
dividida -, naquele dia toda uma nação, unida, não importando a classe social ou a cor da pele
estava nas ruas, comemorando, festejando algo em comum entre todos. Os discursos de Menotti –
por mais que ele fosse tido como um comunista – abraçavam os objetivos do golpe militar:
reorganizavam a sociedade conferindo-lhe um ideal de Nação, de união; por alusão, dessa união,
os valores da família eram fortalecidos; a união por sua vez geraria a ordem e as condições
necessárias para a volta da democracia.
Nada melhor para representar o argentino, com todas as suas qualidades do que a imagem
do vaqueiro gaucho. Era preciso, de acordo com o “compromisso com o mundo” que já foi citado
anteriormente, mostrar a verdadeira imagem da Argentina para todo o planeta, de país forte,
unido, digno e honesto. Para isso, o mascote escolhido para a décima primeira Copa do Mundo
foi o Gauchito. Gauchito é o desenho de um menino, vestindo o uniforme da seleção argentina,
39
Vídeo “La República Perdida”;
71
com o peito estufado, forte, sorridente e com os olhos muito abertos. Em uma das pernas ele
domina uma bola de futebol. São pernas saudáveis e os braços, fortes, se apóiam na cintura. Ele
também leva consigo uma faca típica dos vaqueiros dos Pampas. O porte da faca significa a
valentia, o destemor, a coragem. O peito estufado, os braços fortes e as pernas saudáveis remetem
à imagem de um povo unido, coeso, forte, que pensa adiante e que caminha pra frente, para um
futuro promissor. O sorriso transmite a idéia de alegria, de felicidade, mostrando que o argentino
é um povo feliz. Os olhos bem abertos trazem a idéia de um olhar além, adiante, de um povo que
vê o futuro e que trabalha para fazer dele algo promissor.
O mesmo personagem também aparece em outro contexto - não vinculado à condição de
mascote do Mundial -, o de uma propaganda que enfatiza os valores de uma sociedade e a união
da mesma. Da mesma maneira como ele se apresenta como mascote, ele aparece na campanha
publicitária: forte, de peito estufado, sorridente e com os olhos bem abertos, transmitindo a
imagem de uma sociedade ideal para o país: unida, coesa, firme, alegre e que olha para o futuro.
O filme foi veiculado na época da Copa do Mundo: uma vaca saudável no pasto, se alimentando
com uma indústria aparentemente em atividade ao fundo, enquanto o narrador dizia: “Argentina,
terra de paz e enorme riqueza”. Em seguida, apareciam monstrinhos que sugavam todo o leite da
vaca deixando-a magra e a indústria ao fundo desaparecia. Ao mesmo tempo em que o céu ficava
escuro, o narrador colocava: “Argentina, território desejado pela subversão internacional, que
tentou enfraquecê-la para dominá-la”. Na imagem posterior a vaca se enfurece e coloca os
mesmos monstrinhos para correr, com a fala: “Tempos tristes, de vacas magras, até que dissemos:
basta! Basta de abuso e vergonha, hoje a paz está de volta!”. Nesse momento do filme, entra o
vaqueiro gaucho alimentando a vaca magra, que volta a engordar. A indústria ao fundo reaparece
e retoma as atividades, uma vez que volta a sair fumaça da sua chaminé e a seguinte frase é dita
72
pelo narrador: “Hoje volta a paz à nossa terra, e enfrentamos um novo desafio: o de saber nos
unirmos como irmãos, com o esforço de construir a Argentina que sonhamos. Vamos nos unir!”
Descrita a publicidade, é fácil observar que o apelo da campanha é o da união e do
compromisso do povo em lutar contra a subversão internacional. Porém, da vaca magra
representada na propaganda entende-se também a subversão interna, ou seja, a subversão estava
“destruindo” a Argentina. Assim como nos discursos observados antes, durante e depois da Copa
do Mundo de 1978, o que se vê nessa campanha é o esforço do governo em criar, em reconstruir
uma Nação, uma sociedade forte e coesa, elementos que viriam a garantir o cumprimento da
ordem e o ambiente necessário para o retorno da democracia. O mesmo sentido de união é
observado no refrão da canção oficial da Copa do Mundo: “Vinte e cinco milhões de argentinos
jogarão o mundial”40
.
Declarações de cunho semelhante vieram de Henry Kissinger, Secretário de Estado Norte-
Americano: “A Argentina é um país muito rico e com cidadãos muito talentosos e agora que tem
tranqüilidade social interna existem as possibilidades de progresso e desenvolvimento”.
(Crónica, 26 jun. 1978, p. 22).
Cabe dizer que Kissinger acompanhou muitos jogos do Mundial’78 em companhia de
Jorge Videla. Seus comentários refletiam os objetivos da Junta Militar, pois tocavam nas questões
de reorganização da sociedade (“país rico” e “cidadãos talentosos”), vital para o progresso e para
o desenvolvimento.
Todas essas características também são observadas no símbolo da Copa do Mundo de
1978: em primeiro lugar as cores remetem à seleção argentina de futebol: azul celeste, branco e
preto. As duas primeiras cores, da camisa e das meias; o preto do calção. O emblema se constitui
em dois pilares paralelos cujas pontas possuem curvas, em um pilar convexa e em outro, côncava,
40
A população da Argentina em 1978 era em torno de 25 milhões de pessoas;
73
de maneira com que pudessem abraçar, aderir, englobar algo. Dentro dessas curvas, há uma bola
de futebol. Ao analisar este símbolo, percebe-se que os pilares lembram braços, e suas curvas,
mãos, que abraçam uma causa, no caso o esporte e mais especificamente o futebol, devido à
presença da bola. O uso das cores nacionais identificam todo o país em torno dessa causa, o que
podemos relacionar ao compromisso de toda a Argentina com o mundo, de mostrar ao planeta a
verdadeira imagem do país, algo muito preconizado pelos militares da Junta que estava no poder
à época.
5.4 O Futebol como Instrumento Político no Brasil e a Copa de 1970
Seria incorreto afirmar que o Regime Militar brasileiro e seus responsáveis pela
propaganda política, no caso a AERP (Agência Especial de Relações Públicas), usou apenas o
pretexto de união nacional para poderem se legitimar e perpetuar no poder com a conquista do
tricampeonato mundial de futebol no México. Houve sim campanhas direcionadas à união de
uma Nação, mas acima disso estava o contexto econômico da época, que foi o carro-chefe da
propaganda oficial do “Brasil Potência”.
Devido principalmente a políticas de financiamento postas em vigor em meados dos anos
60, o Brasil viveu períodos de intenso crescimento econômico entre o final dessa década e o
início da de 70. O Produto Interno Bruto crescia cerca de 10 pontos percentuais por ano, o que
impulsionou a indústria nacional e vários setores da atividade econômica. Ao mesmo tempo,
construía-se a rodovia Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, as usinas hidrelétricas - tão
mostradas por Amaral Netto -, o programa rodoviário, planejava-se a usina nuclear, enfim, todas
essas iniciativas tinham como objetivos integrar o Brasil e conferir a ele a idéia de “país grande”.
74
O então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, no final de 1972, deu uma
explicação sobre o período dourado da economia nacional:
“O grau alcançado, nos últimos anos, pelo nosso desenvolvimento, tem induzido, com
freqüência, analistas estrangeiros a qualificar esse fenômeno social como ‘milagre
brasileiro’. A verdade é, no entanto, que não decorre esse fenômeno de nenhum
milagre (...) O milagre brasileiro (...) tem um nome, e esse nome é: trabalho”. (FICO,
1997, p.83)
Na verdade, conforme foi observado neste mesmo trabalho, o grande desempenho
econômico verificado no Brasil entre 1969 e 1973 foi possível devido a uma grande política de
investimentos e financiamentos realizada nos anos anteriores, cujos rendimentos passavam a ser
convertidos dentro do país. Além disso, pode-se destacar a política de substituição de
importações. A euforia do regime militar com o estrondoso crescimento econômico e as grandes
obras coincidiu com a Copa do Mundo do México, em 1970. Um Brasil campeão reforçaria ainda
mais o objetivo da AERP, que era:
“(...) formular e aplicar política capaz de, no campo interno, predispor, motivar e
estimular a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento e, no campo
externo, contribuir para o melhor reconhecimento da realidade brasileira”. (MATOS,
2004, p.6)
Para levar a cabo “o esforço nacional de desenvolvimento”, a Agência Especial de
Relações Públicas trabalhava continuamente, já que o desenvolvimento conduziria ao progresso:
o ótimo desempenho econômico proporcionaria investimentos vitais para o crescimento do país,
para o desenvolvimento e grandeza do Brasil. No campo externo, qual era a imagem do Brasil?
Mais uma vez, de desenvolvimento, de crescimento e de uma pátria forte, grande. Se a seleção
brasileira de futebol conquistasse a Copa, a realidade brasileira pregada pela AERP no exterior
seria reforçada ainda mais - e agora com um novo fundamento: o futebol. Brasil campeão é igual
a Brasil forte, que é igual a Brasil grande, Brasil imbatível, incorruptível, do “ame-o” e que
ninguém mais segurava.
75
A canção oficial da seleção nacional na Copa do Mundo do México deixa essa questão
evidente:
“Noventa milhões em ação / pra frente Brasil / do meu coração / Todos juntos, vamos /
pra frente Brasil / salve a seleção / de repente é aquela corrente pra frente / parece que
todo o Brasil deu a mão / juntos ligados na mesma emoção / tudo é um só coração /
Todos juntos, vamos / pra frente Brasil, Brasil / salve a seleção”.
Ao observarmos a letra da canção-tema do Brasil para o mundial de futebol do México de
1970, verificamos o fator da união sendo abordado. Os 90 milhões em ação, juntos ligados em
uma mesma emoção, todos os brasileiros, sem exceção. União, como já foi visto, é um fator para
a construção ou reconstrução de uma Nação, para conferir a ela uma referência de proximidade,
de identidade. Ainda mais, com um objetivo em comum, que pode ser verificado no verso “na
mesma emoção”, ou seja, todos trabalhando por algo único, a conquista do campeonato mundial.
Sem dúvida alguma que o fator da unidade nacional é enfatizado na música de Miguel Gustavo41
,
mas nela também é possível verificar a importância da grandeza nacional.
O apelo da grandeza na canção começa por “90 milhões”. Obviamente, esta era a
população da época, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Noventa
milhões juntos em uma corrente, uma vez que todos se deram as mãos. Uma imagem de 90
milhões de pessoas, juntas, como uma corrente – que geralmente uma corrente é de ferro, maciça
e pesada – confere uma idéia de grandeza absoluta, de imensidade, de imponência. A letra,
combinada com o ritmo da música, de marcha, cadenciada, nos dá uma idéia de disciplina – tão
ao gosto dos militares - e na medida em que a canção se desenrola, percebe-se que no final o
canto se torna mais forte, por exemplo: no início da música, a cantora faz-se tímida, mas a voz
vai se soltando enquanto o ritmo continua. Isso dá a idéia de progresso, desenvolvimento, que
41
Autor da canção “Pra Frente Brasil”, tema da Copa do México de 1970 (ANTUNES, 2004:289);
76
culmina no refrão “Todos juntos vamos, pra frente Brasil, Brasil, salve a seleção!”. Com isso, a
música atingia o ápice, todos atingiam o ponto máximo.
O regime político vigente no Brasil em 1970 era o militar, como se sabe, porém, era
diferente da Argentina, que buscava no futebol e na Copa do Mundo um fator de unidade
nacional. Sem dúvida alguma o governo Médici também procurava isso, mas diferentemente da
Argentina, o Brasil da Copa de 70 viria a contribuir com a grandeza do país. Assim como já foi
visto, o país crescia bastante, não apenas em termos econômicos, mas em termos de população
também (o maior salto populacional se deu no governo de Emílio Médici)42
. Ao mesmo tempo,
“descobriam-se” as potencialidades do norte do país, agora aberto a uma maior ocupação
humana, com a rodovia Transamazônica e não apenas ela: mais rodovias eram abertas para
integrar o país; era construída sob a Baía de Guanabara a maior ponte do mundo na época, com
quatorze quilômetros; construíam-se hidrelétricas capazes de gerar milhares e milhares de
quilowatts de energia e ainda planejava-se a construção da maior do mundo, que viria a ser a de
Itaipu; cada vez mais cidades passavam a ter mais de um milhão de habitantes e essas mesmas
cidades abrigariam estádios colossais que seriam palco de várias partidas de futebol. O Brasil
crescia a passos largos. Era preciso acompanhar tal ritmo.
Seguindo essa tendência, Médici declarou em primeiro de abril de 1970: “..vocação de
grandeza do país, uma grandeza viável e tangível do Brasil” (FICO, 1997, p.82). Com essa frase
o então presidente deixava claro que a vocação do Brasil era a de ser grande, estar na ponta e na
vanguarda do desenvolvimento e da grandeza. Vocação já sustentada em seu discurso de posse,
em 1969:
“No arrepio de minha sensibilidade, neste momento sou oferta e aceitação! Homem de
meu tempo, tenho fé em que possamos, no prazo médio de meu governo, preparar as
42
disponível em: www.ibge.gov.br
77
bases de lançamento de nossa verdadeira posição nos anos 2000!” (MÉDICI apud
FICO, 1997, p.76)
De acordo com esses pronunciamentos, qual seria a verdadeira posição do Brasil nos anos
2000? Posição de destaque, de grandeza, na vanguarda do progresso. Além disso, o mesmo
presidente declarou no mesmo ano da Copa do Mundo:“O Brasil marcha para o seu grande
destino” (FICO, 1997, p.76).
Mais do que nunca Médici deixa claro que o destino do Brasil era o de ser grande. Grande
em sucesso e em poder – ou pelo menos deveria ser. Grande em números e estatísticas. Por mais
que alguns discursos não remetam propriamente à época da realização do mundial de futebol de
1970, vale a pena analisá-los. Isso porque a vitória em uma Copa do Mundo de futebol concede
ao país um reinado de quatro anos até a organização e realização da próxima (ANTUNES,
2004:41). Além disso, a euforia e a ânsia de grandeza continuavam, como Geisel deixa claro no
início de 1974: “É preciso dar conta da ingente tarefa que nos foi cometida, de impulsionar este
portentoso país (...) para seus grandes destinos” (FICO, 1997, p.85).
Mais uma vez observa-se nesse discurso a idéia de grandeza vivida, propagada e
difundida: impulsionar o portentoso país para seus grandes destinos. A imprensa também fazia o
seu papel. A Revista Manchete, de ampla circulação naquela época, retratava: “O generoso
consenso nacional em torno do decidido e magnífico propósito da criação de uma grande nação,
próspera, soberana e justa”.43
Em 1973 deu-se a primeira crise do petróleo, fruto da iniciativa dos países árabes frente
ao apoio estadunidense a Israel na guerra do Yom Kipur. Não satisfeitos com a ajuda norte-
americana aos israelenses, os árabes elevaram em muito o preço do barril do petróleo, o que
desencadeou uma crise em escala global. O Brasil, com isso, foi atingido e, como resposta à crise
43
Revista Manchete, Set. 1969;
78
do petróleo, além de vários programas que foram adotados mais tarde, como o ProÁlcool44
,
Geisel declarou no mesmo ano:
“O Brasil, por longos meses, se mantinha imune...escudado em um otimismo sem
dúvida sadio e na crença inabalável no futuro desta nação que despertava para seu
destino de grande potência” (FICO, 1997, p.85)
Muito parecido esse discurso de Geisel com os de Médici, principalmente no ponto que
diz respeito ao destino de “grande potência”. É possível através dessas declarações, desses
recortes, perceber que se pensava na grandeza, na imensidão, no que era maior e absoluto.
Mattos (1969) já dizia: “Negar-se a vocação de grandeza da nação seria ignorar a magnitude da
terra e a capacidade de superação do homem” (MATTOS apud FICO, 1997, p.130).
A partir desse discurso, podemos emendar com outro de Médici, que tocava em um ponto
não menos importante, que era o amor à pátria:“O amor à pátria é o silencioso ofício de todo
homem de bem” (FICO, 1997, p.135).
Mas voltemos á Copa do Mundo do México em 1970. Sete jogos, sete vitórias, Brasil
campeão. Na chegada dos jogadores em Brasília, Médici em seu discurso, embalado pelo ritmo
da economia, das grandes obras, dos projetos de integração, declara aos jogadores: “Vocês são o
melhor retrato do Brasil!" (RIBEIRO, 2003, p.1).
Dessa afirmação, depreende-se que a seleção brasileira, através de seu plantel que
compareceu à Copa do Mundo, era o retrato de um país em constante desenvolvimento, em um
ritmo rápido, avassalador – até mesmo os resultados dos jogos eram grandes em favor dos
brasileiros45
-, que transmitia astúcia, vontade, garra e que vencia os mais temidos adversários,
até mesmo aqueles que não viam a sua ascensão com bons olhos. A vitória brasileira era a
44
Programa Nacional do Álcool: o álcool extraído da cana-de-açúcar como sendo combustível alternativo àqueles
derivados do petróleo;
45
4 a 1 contra a ex-Tchecoslováquia, 1 a 0 sobre a Inglaterra, 3 a 2 nos romenos; 4 a 2 nos peruanos, 3 a 1 contra o
Uruguai e 4 a 1 frente aos italianos;
79
grandeza de um país que caminhava para um futuro que prometia muito, que prometia o Brasil-
Potência, para o próprio Médici, na mesma recepção aos jogadores. Para Octávio Costa, chefe da
AERP durante a Copa de 1970, aquilo era só o começo: “Ninguém segura o Brasil. O Brasil time
de futebol virou o Brasil potência”. (FICO, 1997, p.137).
Assim, o êxito esportivo se associou com a idéia de desenvolvimento nacional. Logo após
o término da Copa do Mundo do México, um filme estabeleceu a relação entre a conquista da
seleção brasileira e o desenvolvimento do país. A cena final desse filmete é a celebração do
Mundial feita pelo povo nas ruas: bandeiras, papeizinhos, carros abertos e a voz do narrador se
sobressaindo frente às manifestações populares com os dizeres: “Ninguém segura o Brasil”. Da
mesma maneira, um pôster que trazia a floresta Amazônica, com toda a sua grandeza e
imensidão, juntamente com o soco no ar feito por Pelé quando da comemoração de um gol e
abaixo a mesma frase, impressa: “Ninguém segura o Brasil”. Na publicidade, algumas empresas
contribuíam com o ideal de grandeza e desenvolvimento, como a Villares, indústria do ramo da
siderurgia, que fornecia em suas propagandas números e dados sobre a exportação, a qualificação
de seu corpo de funcionários, enfim, uma empresa que também seguia o ritmo de um país em
tremendo crescimento e que visava o desenvolvimento.
O ex-presidente Médici, antes da partida final da Copa do Mundo do México em 1970,
entre Brasil e Itália, foi indagado por um jornal sobre qual seria o palpite dele para o resultado do
jogo. Ele então pensou e respondeu: “4 a 1 Brasil”. Para muitos entendidos de futebol, um
absurdo, mas foi isso mesmo o que aconteceu. Médici não “chutou” alto. Médici “chutou’
grande.
80
6 CONCLUSÃO
Um certo Tristão escreveu para o jornal anarquista “A Voz”, em maio de 1914 que, na
ocasião de uma reunião de operários de uma indústria apenas poucos compareceram, uma vez
que o restante estava reunido para uma partida de futebol. Para ele, “enquanto o povo se diverte,
não conspira!” (PEREIRA,2002,p.1)46
.
Durante a década de 1950, na Espanha, período do regime de Franco, o Atlético de
Madrid era uma das principais equipes e seu presidente, Vicente Calderón, certa vez disse: “O
futebol é bom para que as pessoas não pensem em outras coisas mais perigosas”. (GALEANO,
1995, p.218).
Logo após vencer uma partida contra os Estados Unidos na Copa de 1998, na França, o
Aiatolá Khemenei, líder religioso do Irã, fez um pronunciamento oficial ao vivo pela televisão
para todo o país, dizendo que o povo iraniano era capaz de derrubar seu grande inimigo.
A justificativa de um pai sérvio à professora de seu filho foi a de que, ao levá-lo para
assistir a uma partida do Estrela Vermelha de Belgrado no exterior, fazendo com que o garoto
perdesse várias aulas, teria sido uma demonstração de nacionalismo e cidadania, o equivalente a
vários dias de escola (AGOSTINO, 2002).
Por mais que o esporte seja tão popular, e, mais especificamente, o futebol, isso não
significa que seja fácil de escrever sobre ele. Conforme dito anteriormente, dizem que o Brasil é
o país do futebol e a Argentina também. Apesar disso, trabalhos acerca da importância política
dessa modalidade esportiva são escassos, mesmo em países com um vasto material e tantas
histórias – e estórias – para serem contadas. O que é uma pena, já que trabalhos assim talvez
46
Disponível em: <http://www.fpa.org.br/td/td51/td51_sociedade_nacao_campos.htm>
81
pudessem fazer com que entendêssemos mais a nossa sociedade, o país em que vivemos, para
aprendermos com os erros e investirmos naquilo que foi acertado.
Seria inocência colocar que o esporte nesses casos observados no presente trabalho foi
usado apenas para a manipulação das pessoas. Creio que a palavra “manipulação” não seria a
mais adequada: talvez o esporte tenha sido usado como uma maneira de despolitização das
massas. Uma vez que as estas massas são “treinadas” para serem obedientes - e não têm um
emprego interessante ou rentável em que elas possam demonstrar sua criatividade, estão sujeitas
a todos os lixos culturais e estão sob o poder de uma elite retrógrada -, o que lhes resta é o
esporte, ao qual dedicam grande parte do seu tempo livre. Talvez esse realmente seja um dos
papéis que o esporte possui dentro de uma sociedade, uma vez que “ocupa” a população e a
mantém distante de se envolver com coisas que realmente importam, como a política.
Se analisarmos a maneira como o futebol foi trabalhado por esses regimes militares como
um instrumento político - as ações, os discursos, os símbolos - verifica-se claramente o intuito da
despolitização. O esporte foi utilizado como um meio de entretenimento, com o objetivo de
desviar a atenção de populações que viviam períodos turbulentos em seus países, com a
perseguição a opositores políticos, crises econômica e social, cenários de insatisfação.
Quando se pensa em estudar o esporte em geral, muitos acreditam que as discussões
ficariam limitadas aos prováveis benefícios que eles podem ou não trazer ao ser humano - ou que
eles se restringem apenas à recreação e à diversão. Ou até mesmo pensar que uma literatura
esportiva busca apenas contar histórias de torneios, heróis, ídolos no esporte ou são meros
manuais de instrução. Ledo engano. Através do esporte, é possível entender a construção e
formação de uma sociedade. Como foi visto neste trabalho, é possível compreender um país ou
um determinado contexto pelo qual ele passava através do esporte.
82
O esporte hoje em dia ainda é um instrumento para a política. George Weah, considerado
o melhor futebolista do mundo pela FIFA em 1995, foi candidato à presidência da Libéria em
uma eleição que ocorreu neste ano. Perdeu o pleito, mas tinha como um de seus projetos unir o
povo liberiano – assolado por quatorze anos de guerra civil – através do futebol que, segundo o
próprio ex-jogador, é um instrumento de formação e união social - e que com isso resgataria o
orgulho de seus compatriotas.
Infelizmente o esporte não é apenas utilizado com bons propósitos, como mostram os
exemplos do Brasil durante a Copa do Mundo do México, em 1970, e da Argentina, no mundial
em que foi a anfitriã, em 1978. Mesmo assim, os dois países atualmente não vivenciam regimes
militares: o brasileiro persistiu até 1985 e o argentino até dezembro de 1983. O nazismo na
Alemanha caiu, fascismo italiano ruiu, Franco e Salazar faleceram faz tempo e com eles, suas
ditaduras. Essa estratégia política ainda vai persistir por muito tempo, mas felizmente o esporte
não vai sustentar regimes autoritários, como nunca sustentou, por muito tempo.
83
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ANEXOS
ANEXO A – “Gauchito”, mascote da Copa do Mundo de 1978
ANEXO B – Símbolo da Copa do Mundo de 1978 na Argentina