o parque do ibirapuera e a construção da identidade paulista*

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9 O Parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista * Paulo César Garcez Marins Doutor em História Social pela FFLCHUSP Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 6/7. p. 9-36 (1998-1999). Editado em 2003. Este trabalho tem por objetivo abordar historicamente a construção dos monumentos erguidos no Parque do Ibirapuera entre as décadas de 30 e 50 do século XX, enfocando-se sobretudo as mutações dos conteúdos simbólicos neles presentes no que tange à representação e forjamento de uma identidade paulista. Ponto privilegiado de lazer da capital paulista a partir da segunda metade desse século, o parque foi escolhido pelas autoridades públicas para acolher três dos maiores empreendimentos artísticos de caráter monumental realizados até o IV Centenário da cidade de São Paulo: o Monumento às Bandeiras, o Monumento e Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932 e as edificações da exposição comemorativa do aniversário da cidade, realizada em 1954. Concentraram-se ali os símbolos de caráter comunitário, propostos ou subsidiados pelo poder público, todos eles diretamente ligados à representação da identidade paulista, do ser paulista, atos afirmativos necessariamente impactantes em anos de grandes transformações demográficas, sociais e culturais não só para a cidade, como para seu estado e para o próprio país. Realizados segundo princípios plásticos característicos de diferentes correntes artísticas ditas modernas, os três conjuntos monumentais permitem também perceber outras distinções, ligadas à concepção do que viria a ser o caráter específico dos paulistas diante dos brasileiros. Mas a busca dessa especificidade identitária, que se organizava nos meios intelectuais e artísticos do estado desde fins do século XIX, é também atravessada por diversas clivagens, conceituais e temporais. As obras de arte erguidas no Ibirapuera, inauguradas entre 1953 e 1955, mas concebidas em décadas diferentes, possibilitam perceber mutações arquiteturais e escultóricas que expressam essa múltipla consciência, ou ainda o caráter ideológico de círculos culturais articulados ao poder público no esforço * Versão final de textos apresentados inicialmente no 25° Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urba- nos,(CERU/USP,São Paulo, 20 maio de 1998) e no XIV Encontro Regional de História (ANPUH-SP, São Paulo, 08 de setembro de 1998). Agradeço as suges- tões oferecidas à primeira versão deste texto por Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, à colaboração fundamental de Silvana Brunelli Zimmermann e de Maria Itália Causin para a localização e acesso a ima- gens deste trabalho e espe- cialmente à generosidade de d. Sandra Brecheret Pellegrini, da Fundação Es- cultor Victor Brecheret e de d. Fiametta Emendabili, pela cessão gratuita do di- reito de uso de imagens para este artigo.

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    O Parque do Ibirapuera e a construo daidentidade paulista*

    Paulo Csar Garcez Marins

    Doutor em Histria Social pela FFLCHUSP

    Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v. 6/7. p. 9-36 (1998-1999). Editado em 2003.

    Este trabalho tem por objetivo abordar historicamente a construo dosmonumentos erguidos no Parque do Ibirapuera entre as dcadas de 30 e 50 dosculo XX, enfocando-se sobretudo as mutaes dos contedos simblicos nelespresentes no que tange representao e forjamento de uma identidade paulista.Ponto privilegiado de lazer da capital paulista a partir da segunda metade dessesculo, o parque foi escolhido pelas autoridades pblicas para acolher trs dosmaiores empreendimentos artsticos de carter monumental realizados at o IVCentenrio da cidade de So Paulo: o Monumento s Bandeiras, o Monumentoe Mausolu ao Soldado Constitucionalista de 1932 e as edificaes da exposiocomemorativa do aniversrio da cidade, realizada em 1954. Concentraram-seali os smbolos de carter comunitrio, propostos ou subsidiados pelo poder pblico,todos eles diretamente ligados representao da identidade paulista, do serpaulista, atos afirmativos necessariamente impactantes em anos de grandestransformaes demogrficas, sociais e culturais no s para a cidade, comopara seu estado e para o prprio pas.

    Realizados segundo princpios plsticos caractersticos de diferentescorrentes artsticas ditas modernas, os trs conjuntos monumentais permitem tambmperceber outras distines, ligadas concepo do que viria a ser o carterespecfico dos paulistas diante dos brasileiros. Mas a busca dessa especificidadeidentitria, que se organizava nos meios intelectuais e artsticos do estado desdefins do sculo XIX, tambm atravessada por diversas clivagens, conceituais etemporais. As obras de arte erguidas no Ibirapuera, inauguradas entre 1953 e1955, mas concebidas em dcadas diferentes, possibilitam perceber mutaesarquiteturais e escultricas que expressam essa mltipla conscincia, ou ainda ocarter ideolgico de crculos culturais articulados ao poder pblico no esforo

    * Verso final de textosapresentados inicialmenteno 25 Encontro Nacionalde Estudos Rurais e Urba-nos, (CERU/USP, So Paulo,20 maio de 1998) e no XIVEncontro Regional deHistria (ANPUH-SP, SoPaulo, 08 de setembro de1998). Agradeo as suges-tes oferecidas primeiraverso deste texto porUlpiano Toledo Bezerra deMeneses, colaboraofundamental de SilvanaBrunelli Zimmermann e deMaria Itlia Causin para alocalizao e acesso a ima-gens deste trabalho e espe-cialmente generosidadede d. Sandra BrecheretPellegrini, da Fundao Es-cultor Victor Brecheret ede d. Fiametta Emendabili,pela cesso gratuita do di-reito de uso de imagenspara este artigo.

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    por dotar a capital de smbolos que evidenciassem, ou unissem os muitos e mltiplospaulistas.

    O mito do bandeirante como essncia paulista, a mais eficiente eduradoura construo simblica operada no estado durante a primeira metadedo sculo XX, ser o eixo que guiar a interpretao da plstica adotada nas trsmanifestaes artsticas escolhidas nesta abordagem, verificando-se os meandrosda afirmao, transformao e diluio dos nexos entre o ser paulista, seu passadoe a formulao de seu futuro.

    Erguer monumentos

    Bastante raros em So Paulo e nas demais cidades brasileiras at osprimeiros anos da Repblica1, os monumentos urbanos esto, entretanto, presentesnas cidades ocidentais com grande destaque desde a Renascena e o Absolutismo,prestando-se desde ento conservao da memria e da glria dos reis e,posteriormente, ao delineamento de expresses cvico-nacionais nas repblicas emonarquias constitucionais surgidas desde a segunda metade do sculo XVIII.

    Esttuas de dirigentes ou monarcas so o exemplo mais lembradode um esforo havido durante o Antigo Regime de se pontuar o espao urbanocom a viso daqueles que coroavam a hierarquia social e que bastavam suaidentificao2. Com o advento das transformaes sociopolticas oriundas dadesagregao do Absolutismo, novos monumentos passaram a substituir aimagem rgia por representaes alegricas do povo, ele prprio definidorde sua personalidade poltica, ou por uma multido de representaesescultricas de indivduos que se projetavam nas transformaes sociais,cientficas e polticas, prceres a serem cultuados por seus pares cidados. Ovis poltico presente na utilizao figurativa dos novos homenageados foiinstrumento til ao esforo empreendido pelas autoridades pblicas empenhadasem construir a coeso de populaes europias, envolvidas pelo nacionalismoe pelo prprio surgimento de estados-nao. Permaneciam, portanto, comomarcos simblicos, pontuando o imaginrio da comunidade, reforando oscontornos de sua individuao e distinguindo-a do externo, do outro, numduplo sentido de caracterizao, diferenciando e ao mesmo tempo cimentandoidentidades que se formavam e se justapunham no cenrio europeu ao longodo sculo XIX3.

    A ampliao das tipologias figurativas e das ambies simblicas presentesnos monumentos oitocentistas esteve tambm associada ao alargamento da prpriaescala das cidades oitocentistas, momento do surgimento das grandes metrpolesindustriais. A expanso abrupta das reas urbanizadas e as reformas urbanas acabariampor promover a diversificao dos locais disponveis para implantao de construesmonumentais, que se tornariam teis marcao e organizao espacial do tecidode cidades imensas. Reforavam-se, pois, as possibilidades de visualizao eidentificao das populaes urbanas, cada vez maiores e mais heterogneas, comos smbolos harmonizadores implantados nos espaos pblicos.

    Aderindo finalmente prtica de adornar praas e ruas commonumentos a partir da aurora republicana, as cidades brasileiras passaram a

    1. Os pelourinhos e cha-farizes formam a quase to-talidade dos equipamen-tos urbanos de cartermonumental implantadosnas cidades brasileiras ata Repblica, sendo exce-o alguns obeliscos co-memorativos (entre osquais o localizado noLargo da Memria, em SoPaulo, inaugurado em1817) e algumas poucasesttuas de metal. Aprimeira esttua eqestreerguida no Brasil, o Monu-mento a D. Pedro I, foiinaugurada apenas em1862, no Rio de Janeiro.

    2. Veja-se, por exemplo, odestaque concedido pelosprncipes renascentistas emonarcas absolutos para aconstruo de esttuas empontos-chave das grandescidades europias. As prin-cipais places royales deParis, por exemplo, foramadornadas com esttuasde Henrique IV (sada daplace Dauphine), Luiz XIII(na atual des Vosges), LuizXIV(des Victoires e Ven-dme) e Luiz XV (na atualde la Concorde), todasdestrudas durante a Revo-luo. ART ou politique?Arcs, statues e colonnesde Paris (G. Bresc-Bautier;X. Dectot). Paris: ActionArtistique de la Ville deParis, 1999, p. 36-45, 64-77.Seguem a mesma vertenteos monumentos eqestresa Pedro, o Grande, em SoPetersburgo ou a Jos I,em Lisboa, que ocupavamespaos articuladores dasnovas cidades setecen-tistas, bem como adedicada a Jorge III, emNova Iorque, destrudanas vsperas da Indepen-dncia.

    3. Ver: Idem, cap. III (LaIIIe Republique), p. 158-207. AGULHON, Maurice.Imagerie civique et dcorurbain. In: HISTOIREvagabonde. Paris: Galli-mard, 1988. Idem. La

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    materializar os ecos da estatuomania da Terceira Repblica francesa, ao mesmotempo em que se davam, tambm aqui, a exploso demogrfica e as cirurgiasnos tecidos urbanos. Como na Europa, os conjuntos escultricos erguidos nasgrandes cidades brasileiras integraram os instrumentos de constituio daconscincia nacional, cvica e cidad sobretudo na capital nacional, o Rio deJaneiro. Ocupando locais-chave surgidos em decorrncia das reformas urbanascariocas, os novos monumentos homenagearam vultos e figuraram alegorias donovo regime poltico, representando sobretudo os articuladores e prceres daProclamao, mais ligados s concepes de um estado nacional centralizador,enraizado politicamente no prprio Rio de Janeiro4.

    Diferentes foram, entretanto, as caractersticas dos primeiros monumentospblicos republicanos na cidade de So Paulo. Polticos homenageados no Riode Janeiro, como Deodoro, Floriano e Constant, nunca chegaram a serrepresentados nos logradouros da capital paulista. Coincidentemente, tambmno o foi a trade de presidentes paulistas Prudente de Moraes, Campos Sallese Rodrigues Alves , responsvel pela implantao da hegemonia poltica dosestados sobre os interesses centralistas dos militares e positivistas figurados naspraas do Rio de Janeiro.

    Os dois maiores monumentos erguidos em So Paulo durante aRepblica Velha desprezaram o advento republicano, como fator cvico deconstituio ou definio da identidade a que se queria promover homenagem e se constituir smbolo nos logradouros paulistanos. O primeiro deles, Glriaimortal aos fundadores de So Paulo, erguido no ento Largo do Palcio, foiconcebido em 1913 e inaugurado em 1925, localizando-se no primitivo Ptio doColgio jesutico, stio de fundao da capital. Em 1922 inaugurava-se oMonumento Independncia, situado s margens do riacho do Ipiranga, grupoescultrico que cumpria funes evocativas originalmente destinadas ao palcioerguido no alto da colina e inaugurado em 1893, que seria destinado a abrigaro Museu Paulista em 18955.

    A fundao da cidade e a Independncia nacional, proclamada notermo da capital, foram os primeiros eventos considerados dignos de memria efigurao pblica pelos dirigentes paulistas, cientes da necessidade poltica dedestacar o papel da cidade nos destinos nacionais. Tal vis de encadeamentohistrico, de sentido glorificador e capaz de evidenciar a predestinao de SoPaulo conduo do pas, vinha sendo enfatizado por diversos integrantes doInstituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, principal centro de produohistoriogrfica do estado e claramente afinado a grupos dirigentes6. No entanto,paralelamente ao enaltecimento geogrfico de um estado que acolhera as primeirasvilas brasileiras na costa e no serto, So Vicente e So Paulo, e acolhera adeclarao de Independncia, surgiam as propostas de ressaltar o papeldesempenhado pelas elites locais e regionais nos destinos paulistas e do prpriopas.

    Erguer o bandeirante

    Vetor e produto da ascenso dos paulistas republicanos, a construomtica do bandeirante emergiu desde fins do sculo XIX, numa representaoherica que se prestava a legitimar historicamente a pujana das elites paulistas

    statuomanie e lhistoire.Ibid. A Esttua da Liberda-de, smbolo privilegiadoda nao norte-america-na, obra do escultor fran-cs Bartholdi inauguradaem Nova Iorque em 1886,, possivelmente, o exem-plo mais significativo doalcance simblico dos mo-numentos oitocentistaspropostos na Europa.

    4. CARVALHO, Jos Murilode. A formao das al-mas o imaginrio daRepblica no Brasil. SoPaulo: Companhia das Le-tras, 1990. espec. cap. 2.

    5. O Monumento da Inde-pendncia, concludo ape-nas em 1926, foi resultadode um concurso de proje-tos, realizado em 1919, noqual saiu vencedor o pro-posto por Ettore Ximenes,italiano como AmadeoZani, autor de Glria Imor-tal. MENEZES, WalterArruda de (Coord.). Obrasde arte em logradourospblicos de So Paulo Regional S. So Paulo:PMSP/SMC/DPH, 1987. p.36-38. Bens culturaisarquitetnicos no muni-cpio e na Regio Metro-politana de So Paulo.So Paulo: SNM/ EMPLASA;SEMPLA, 1984. p. 448. OLI-VEIRA, Ceclia Helena deSalles. O espetculo doIpiranga: reflexes preli-minares sobre o imagin-rio da Independncia.Anais do Museu Paulista Nova Srie, So Paulo, v.3, p. 195-208, 1995.

    6. Sobre as idias do IHGSPdurante a Repblica Velha,ver: FERREIRA, AntonioCelso. A epopia bandei-rante: letrados instituies,inveno histrica (1870-1840). So Paulo: UNESP,2002. cap. 2 (O altar dopassado: o IHGSP).SCHWARCZ, Lilia K. Moritz.Os guardies da nossahistria oficial. So Paulo:IDESP, 1989. p. 45-56.

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    ligadas aos negcios da cafeicultura e ao governo da prpria Repblica, e queestivera unida de alguma forma aos momentos-chave da nao como o incio dacolonizao ou a prpria aclamao ao grito do Ipiranga. Ligavam-se assim aselites triunfantes da Repblica ao patriciado da So Paulo colonial e, medianteesses laos de sangue, uniam-se as gentes prpria Histria. Olhar para o passadoimplicava, entretanto, um complexo jogo de interpretaes distorcidas e mutveis,num jogo elstico que estenderia seu vigor at a dcada de inaugurao dosmonumentos do Ibirapuera7.

    Os vestgios da velha capital erguida em taipas rudes, vindas dostempos coloniais, eram postos abaixo o mais rapidamente possvel, pois constituamtestemunho inegvel e incmodo da precariedade material da capitania e daprovncia paulista. O aparelhamento constitudo pelas edificaes e instituieserguidas j na primeira dcada republicana almejava a adequao da cidadede So Paulo ao triunfo dos fazendeiros e polticos republicanos, que guardavammuito pouco do cotidiano tosco, semi-isolado e sertanejo de seus ancestraisquinhentistas, seiscentistas e setecentistas. Novas e amplas construes de tijoloscomo a Estao da Luz, o Instituto Caetano de Campos e o Quartel da Luzpontuaram o aspecto renovado da capital. A prpria populao alterou-seradicalmente mediante a fixao de dezenas de milhares de imigrantes estrangeiros,exticos s tradies da terra8.

    Correspondendo s transformaes materiais e tnicas da cidade,transformavam-se tambm as relaes histricas com o passado colonial. A criaodo Museu Paulista9 e do prprio Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulometabolizaram a recuperao idealizada das elites ancestrais de So Paulo, sobreas quais pesava a ignorncia documental e fatual e pairava o espectro damiscigenao e do obscurantismo de linhagem.

    Ao mesmo tempo em que se destruram os vestgios materiais, foramsendo reconstrudos os feitos bandeirantes, enaltecidos pelo pioneirismo que legaraao pas a configurao geogrfica arrancada Coroa espanhola. louvaodos feitos sertanistas correspondeu ainda o enaltecimento da raa, sntese entre ogentio e o colonizador, que exclua naturalmente o negro africano. Estavam distantes e era bem necessrio que estivessem as rusgas setecentistas entre Pedro Taquesde Almeida Paes Leme e frei Gaspar da Madre de Deus no tocante ascendnciagentlica das elites paulistas de ento10.

    Diversos trabalhos foram publicados durante as primeiras dcadasrepublicanas visando a promover o orgulho da ascendncia colonial das elitescafeicultoras. A prpria questo sobre uma possvel ascendncia tapuia e portantobrbara e escrava de muitos paulistanos quinhentistas, que provocara veementesdebates na inteligncia de ento11, foi atenuada pela publicao da gigantescaobra genealgica de Luiz Gonzaga da Silva Leme, a Genealogia paulistana.

    Silva Leme atualizou e expandiu a Nobiliarquia paulistana de PedroTaques, enfatizando a ascendncia tapuia de grande parte das famlias paulistasmais proeminentes dos tempos das bandeiras, bem como da cafeicultura, ao mesmotempo em que, mediante as linhas genealgicas, estabelecia nexos temporais eidentitrios entre os velhos sertanistas e as elites emergentes do caf12. Permitiuainda uma referncia comum a milhares de famlias e indivduos (especialmente doOeste cafeeiro) que se defrontavam com a presena sempre maior de forasteirosmigrantes e sobretudo imigrantes, que no tardariam a ascender socialmente,ameaando a proeminncia dos fazendeiros e seus parentes remediados. O bastio

    7. Sobre a mutao do ban-deirante como smboloagregador e segregadordos paulistas, e desses emrelao aos demais brasilei-ros, ver os textos funda-mentais de: QUEIROZ, Ma-ria Isaura Pereira de. Ufanis-mo paulista: vicissitudes deum imaginrio. RevistaUSP, So Paulo, v. 13, p. 78-87, 1992. ABUD, Katia Ma-ria. O sangue intimoratoe as nobilssimas tradi-es: a construo de umsmbolo paulista, o bandei-rante. 1986. Tese (Doutora-do) Faculdade de Filoso-fia, Letras e Cincias Huma-nas, Universidade de SoPaulo, So Paulo, 1986.espec. cap. 3.

    8. MARINS, Paulo CsarGarcez Marins. Nos tem-pos da fundao. In: REIS,Maria Cndida Delgado(Org.). Caetano de Cam-pos: fragmentos da hist-ria da instruo pblicaem So Paulo. So Paulo:AEAIECC, 1994. p. 13-20.

    9. Sobre o Museu doIpiranga e a atuao deTaunay na transformaodo museu em centro dereferncia histrica a par-tir de 1917, bem como so-bre os critrios nor-teadores de suas enco-mendas artsticas, ver:MORETTIN, EduardoVictorio. Quadros emmovimento: uso das fon-tes iconogrficas no filmeOs Bandeirantes (1940),de Humberto Mauro. Re-vista Brasileira de Hist-ria, So Paulo, v. 18, n. 35,p. 116-122. 1998. BREFE,Ana Cludia Fonseca. Umlugar de memria paraa nao o MuseuPaulista reinventado porAffonso dEscragnoleTaunay (1917-1945).1999. 304 f. Tese (Douto-rado) Instituto de Filo-sofia e Cincias Humanas,Universidade Estadual de

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    genealgico de Silva Leme, alis, assemelhava-se quelas pesquisas de Pedro Taques,realizadas em meio chegada de levas de portugueses na segunda metade dosculo XVIII, forasteiros que acabariam se casando nas antigas famlias e impondoseus sobrenomes nas camadas dirigentes de So Paulo13.

    O orgulho de ser paulista permaneceu restrito, em um primeiro momento,ao grupo de pesquisadores que se metiam nos velhos papis da Cmara, daCria e do arquivo estadual. Algumas das principais famlias cafeicultoras chegavammesmo a desprezar os laos com as antigas famlias de sertanistas, apegando-seao prprio sucesso como comerciantes ao tempo do acar e como fazendeirosde caf14. Mas as atividades de historiadores e genealogistas como Toledo Piza,Taunay e Silva Leme foram pouco a pouco semeando e fazendo vicejar atransformao dos paulistas sertanejos, de passado rstico e empobrecido, nosmticos, hericos e intrpidos bandeirantes de que se orgulhariam inicialmenteapenas seus descendentes cafeicultores. Estavam, portanto, ultimadas as basespara a reconciliao ideolgica entre as elites e o passado paulista, lanandomo de uma construo simblica elstica, capaz no s de permitir a coesodas camadas dirigentes mas tambm a clivagem entre elas e os demais paulistasdo sculo XX bem como entre estes e os demais brasileiros15.

    O IV Centenrio de So Paulo seria o ponto culminante da materializaona paisagem urbana das alegorias bandeirantes e, simultaneamente, o momentoem que se entreveria o esgotamento do passado como formulador de um futuro jincontornavelmente liderado por novos agentes sociais e expresses culturaiscosmopolitas, cujos liames com os velhos smbolos paulistas se esgarariamrapidamente no decorrer da segunda metade do sculo XX.

    Erguendo o Monumento s Bandeiras: bandeirantes do passado

    A busca de contedos simblicos nos conjuntos monumentais assentadosno Parque do Ibirapuera, entre 1936 e 1955, permite a montagem de um painelda transformao dos discursos visuais propostos ou acolhidos pelas elites e pelopoder pblico, em relao direta com as propostas de construo identitria relativasao ser paulista do mito do bandeirante at seu abandono.

    Examinando-se o primeiro deles, o Monumento s Bandeiras, percebe-se o ntido vnculo temporal com o momento de consolidao do mito dobandeirante. O primeiro projeto de construo do monumento, ainda sem localdefinido, foi elaborado por Victor Brecheret j em 1920, com vistas scomemoraes do Centenrio da Independncia. A iniciativa partira de um grupode intelectuais que, dois anos depois, teria alguns de seus integrantes muito ativosna Semana de Arte Moderna, como Menotti del Picchia e Oswald de Andrade,alm de Monteiro Lobato. Atribui-se a Menotti del Picchia a responsabilidade pelasugesto temtica do monumento ao escultor Brecheret, o italiano Vittorio Brecheret,considerado poca como brasileiro16.

    Na maquete de 1920, realizada sob forte impacto de sua formaoitaliana entre 1913 e 1919, as figuraes apresentavam uma plstica estilizada,numa sntese entre certas heranas Art-Nouveau e Secesso, e uma plsticadesfigurante ps-Rodin (FIGURA 1). Tais caractersticas, herdadas possivelmentedo contato com o escultor esloveno Ivan Mestrovic17, estavam presentes ainda em

    Campinas, Campinas,1999. CHRISTO, Maralizde Castro Vieira. Bandei-rantes na contramo daHistria: um estudoiconogrfico. Projeto His-tria, So Paulo, v. 24, p.307-335, jun. 2002.

    10. Sobre a polmica en-tre Frei Gaspar, queenfatizava o mameluco, ePedro Taques, avesso mestiagem, ver: ABUD, K.M. op. cit., p. 87-98.

    11. MONTEIRO, John Ma-nuel. Tupis, tapuias e a his-tria de So Paulo. NovosEstudos, So Paulo, v. 34,esp. p. 128-131, 1992.

    12. Referindo-se anni-ma tapuya, que se casarapor cativeiro com PedroAffonso, Silva Leme pro-curou ressaltar sua des-cendncia entre os netosde Ferno de Camargo, oclebre Tigre das disputascontra os Pires e seus ali-ados e que em nada des-mereceu de seu sangue[...] Enganou-se o doutorRicardo Gumbleton quan-do [...] afirmou categori-camente que a nobre fa-mlia dos Camargos norecebeu uma gota de san-gue da tapuia annima.SILVA LEME, Luiz Gon-zaga da. Genealogiapaulistana. So Paulo:Duprat, 1903. v. I, p. 2-3. Aobra completa constitu-da por nove volumes,editados entre 1903 e1905. Ressalte-se ainda ofato de Silva Leme ter di-ludo intensamente a n-sia nobilirquica de PedroTaques, aspecto presentena prpria diferena dosttulos de seus trabalhos,deslocando a nfase nanobreza do sangue para anobilitao dos feitos.

    13. Surgem neste perodo,segunda metade do scu-lo XVIII e princpios do s-culo XIX, os grupos famili-ares que iriam dominar a

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    muitas obras contemporneas do escultor tambm italiano Nicolla Rollo, atuanteem So Paulo, como se pode constatar em sua maquete do Monumento aosAndradas, para Santos, ou nas esculturas e frisos para o Palcio das Indstrias.Em um nanquim realizado j em Paris e, por conseguinte, posterior a junho de1921 e em uma nova maquete intitulada A Volta (que invertia o sentido deentrada, presente na verso final), Brecheret redesenhou o projeto com soluesainda mais prximas da plstica de Mestrovic e de Rollo (FIGURA 2,3 e 4).

    Tanto a maquete de 1920 quanto os estudos posteriores uniam adespersonalizao dos homenageados eram todos bandeirantes aodespojamento de adornos ou caracteres identitrios ou tnicos, pois as figurasestavam nuas em sua maior parte. A massa escultrica e o moto de suas linhaseram a principal caracterstica dos primeiros projetos. A maquete previa umanfora contendo gua do rio Tiet, numa breve concesso ao fetichismo historicista,sugerido por Afonso de Taunay. O que importava a Brecheret e aos demaisproponentes era destacar a fora, o avano da massa humana aos sertes, sterras desconhecidas algo compartilhvel pelos imigrantes recm-chegados epelo prprio Menotti del Picchia18. So atribuveis a esse escritor as idias domemorial que acompanhou a maquete, assinado por Brecheret, que deixamevidente a inteno triunfal da glorificao dos bandeirantes, metfora de velhose novos paulistas: O monumento devia exprimir, na harmonia de seu conjunto,unificados em bloco, toda a audcia, o herosmo, a abnegao, a fora expendidosem desvendar e integralizar o arcabouo geogrfico da Ptria (1920).19

    O carter segregador do mito bandeirante, pensado na sua formulaoinicial como exclusivo elo de origem dos antigos paulistas, posteriormente chamadosde quatrocentos anos ou quatrocentes, era praticado por Picchia como smbolodistintivo dos paulistas diante da nao. Nas palavras abaixo, diluam-se asclivagens entre os paulistas vieille roche e os novos paulistas, como ele e o escultor:

    [Se] As Bandeiras eram proezas dos lusitanos, o que S. Paulo conseguiu com fruto doesforo dos filhos da Itlia, italiano [...] Isso monstruosamente absurdo. O nossonativismo repele esse enxerto de nacionalidades estranhas dentro da nossa ptria(1920).20

    No discurso do talo Picchia, o passado servia como metfora dapujana paulista, qual sentia-se plenamente integrado: So Paulo de 1920 uma continuao da epopia dos sertanistas de antanho. [...] E tive grande orgulhode ser filho de So Paulo! (1920).21

    O projeto no teve, contudo, a acolhida oficial esperada junto presidncia do estado, ocupada por Washington Luiz, ele mesmo estudioso dasbandeiras e indeciso entre apoiar uma iniciativa semelhante de portuguesesradicados em So Paulo ou apoiar o projeto dos modernistas22. Esse outromonumento, cuja autoria seria do artista lusitano Teixeira Lopes, foi recusado porPicchia evocando a primazia do escultor local (Brecheret era ento tido comonatural do Brasil) como intrprete adequado, j que S um paulista poderiacompreender em toda a sua majestosa grandiosidade o feito dos bandeirantes,heris plasmadores de nossa nacionalidade23. Expressava-se seu radicalismonativo contra forasteiros, como o escultor portugus, o que indicava plena condiode nacional, de brasileiro integrado pela mtica paulista bandeirante: No sedeve, pois, consentir mais que a alma e a tcnica estranhas se fixem no bronzeque imortalize as glrias da nossa raa (1920).24

    cafeicultura oitocentista, eque disputariam reas eproeminncia poltica comgrupos familiares mais an-tigos em So Paulo, tam-bm empenhados na ex-panso das lavouras comoas famlias Toledo Piza,Almeida Prado, Paes deBarros, Arruda Botelho,Moraes ou Pacheco. SilvaLeme aborda vrios exem-plos de famlias forasteiras,ligadas s antigas famliascoloniais mediante casa-mentos como Jordo, SilvaPrado, Pereira de Queiroze Queiroz Telles (ligadas sfamlias Camargo, do Pradoe Moraes Leme, etc.), SouzaQueirs (aos Paes de Bar-ros) e os Vergueiro (aosLemes), todas radicadas nacapital ou no Oestepaulista. No Vale do Paraba,os Marcondes (aos CostaCabrais), Oliveira Borges,Aguiar Vallim e MoreiraLima.

    14. Entre as famlias quedesdenhavam as ligaescom os sertanistas encon-travam-se os Silva Prado:Os pragmticos Pradomostraram pouco interes-se em tais reivindicaeshistricas. [...] Nuncahouve, nos vrios volumescomemorativos patrocina-dos pela famlia, uma pre-tenso de ligar os Prado aoprimeiro perodo coloni-al. LEVI, Darrell E. A fam-lia Prado. So Paulo: Cul-tura 70, [s.d.]. p. 72.

    15. QUEIROZ, M. I. P. op. cit.

    16. BATISTA, MartaRossetti (Org.). BANDEI-RAS de Brecheret hist-ria de um monumento(1920-1953). So Paulo:PMSP/SMC/DPH, 1985. p.19-39. PECCININI, Daisy.Victor Brecheret escul-tor. In: BANDEIRAS deBrecheret histria deum monumento (1920-1953), p. 11-15.

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    FIGURA 2 Victor Brecheret. Estudo do Monumento s Bandeiras, nanquim, c. 1921. AcervoSandra Brecheret Pellegrini. Permisso de uso de imagem concedida por Sandra BrecheretPellegrini e pela Fundao Escultor Victor Brecheret, So Paulo. Reproduo de Helio Nobre.

    FIGURA 1 Victor Brecheret. Maquete do Monumento s Bandeiras, 1920. Ilustrao Brasileira, set. 1920. Acervo Instituto deEstudos Brasileiros da USP. Permisso de uso de imagem concedida por Sandra Brecheret Pellegrini e pela Fundao EscultorVictor Brecheret, So Paulo. Reproduo de Helio Nobre.

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    FIGURA 3 e 4 Victor Brecheret. Maquete do Monumento A Volta. Ilustrao Brasileira, out. 1921. Acervo do Instituto deEstudos Brasileiros da USP. Permisso de uso de imagem concedida por Sandra Brecheret Pellegrini e pela Fundao EscultorVictor Brecheret, So Paulo. Reproduo de Helio Nobre.

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    A construo do projeto de 1920 foi abandonada, sendo retomadaapenas na dcada seguinte. Nos anos 20, a audcia dos modernistas em plasmarvelhos e novos paulistas, excluindo o trabalho de escultores estrangeiros, no eracertamente algo reconhecido pelos crculos dirigentes.

    Alheios ao nativismo dos oriundi, outras encomendas pblicasmaterializavam o mito bandeirante de maneira muito mais conservadora eexcludente e pelas mos de um escultor italiano, Luigi Brizzolara. O artista foiresponsvel por esculturas monumentais de bandeirantes, realizadas em blocosde mrmore de Carrara, representando o Anhangera (inaugurada na av. Paulistaem 1924), Raposo Tavares e Ferno Dias (implantadas nas laterais do peristilo doMuseu Paulista em 1922)25. Foram eles representados dentro da ortodoxia depropostas figurativas calcadas em desenhos de Debret, com roupas muitoprovavelmente anacrnicas aos seiscentos e setecentos, tudo sob orientao deTaunay, diretor do Museu. A colocao desses monumentos em locais de tamanhodestaque na capital materializava o alcance e a acolhida do mito excludentesobre as autoridades pblicas de ento. Bandeirantes eram, pois, aquelesclaramente figurados e nominados, integrantes do panteo de heris romnticos eno a fora abstrata, capaz de abarcar velhos e novos paulistas.

    A dcada de 1920 foi um perodo mais afeito ao radicalismo excludentede Taunay e ao ufanismo dos descendentes das antigas famlias paulistas do quea uma concepo, tambm conservadora, de uma raa de gigantes mestia,mameluca, como a proposta por Alfredo Ellis Jr., em que a reconstruo deste oudaquele sertanista cedia lugar a um enfoque genrico, voltado ao povo paulista.O louvor miscigenao colonial promovido por Ellis Jr. (que exclua os negros)livrava os paulistas do espectro da degenerao inter-racial, e acabava por repropormestiagem mediante a incorporao dos imigrantes adventcios (como sua linhapaterna, inglesa) quela raa paulista, historicamente miscigenada mas frtil,conquistadora, herica. Ellis Jr., com efeito, circulava entre os modernistas queformariam o grupo Verde-Amarelo, como Picchia, Cassiano Ricardo e PlnioSalgado, iniciadores da vertente regionalista dos modernistas, e que acabariampor se aproximar das elites dirigentes paulistas na dcada seguinte, j sob jugovarguista26.

    O personalismo e o excessivo vnculo com os heris individuados quecaracterizaram as encomendas da dcada de 1920 cederiam espao, entretanto,a um carter mais elstico e abrangente, que acabaria por permitir a execuodo projeto de Brecheret e seus incentivadores. A associao entre as bandeiras ea pujana regional e, por extenso, nacional preconizada pelos verde-amarelos,j estava migrando dos crculos modernistas para segmentos polticos maisconservadores.

    Aps a Revoluo de 1932, Menotti del Picchia, j entre os assessoresdo interventor Salles Oliveira, promovia o movimento Bandeira, que transmudavao mito como modelo de hierarquia e organizao a ser seguido pelos brasileiros,numa aproximao evidente com as idias de Cassiano Ricardo27. No lheescapava, todavia, a necessidade afirmativa da identidade regional, que deveriaservir de exemplo angular para o pas: H vinte e um meios de ser brasileiro. [...]A ns nos coube um deles: sermos paulistas (1936).28

    Em 1936, j portanto sob a gide getulista e s vsperas dacentralizao do Estado Novo, o monumento de Brecheret foi finalmente aceito eencampado pelo poder pblico, que assumiu os custos de sua execuo. Ao

    17. Sobre Mestrovic, ver:CHIARELLI, Tadeu. A obrade Galileu Emendabili:sntese e superao deinfluncias. In: FABRIS,Annateresa (Org.). Monu-mento a Ramos de Aze-vedo: do concurso ao ex-lio. Campinas: Mercado deLetras, 1997. p. 75-79. Oautor discorre tambmsobre as relaes formaisentre a obra do mestreesloveno e a de Emen-dabili, marcantes sobre-tudo em suas obras dadcada de 1920, como oprprio monumento aRamos de Azevedo.

    18. BATISTA, M. R. op. cit.,p. 19-36.

    19. Papel e Tinta, 3, jul.1920 apud BRITO, Mrioda Silva. Histria do mo-dernismo brasileiro an-tecedentes da Semana deArte Moderna. 6a ed. Riode Janeiro: Civilizao Bra-sileira, 1997. p. 116. Os n-meros entre parnteses in-dicam o ano do pro-nunciamento.

    20. BATISTA, M. R. op. cit.,p. 25.

    21. Id., p. 30

    22. Id., p. 28. BRITO, M. S.op. cit., p. 120-3. Brito cita(p. 114) depoimento deBrecheret ao informarque o prprio Washing-ton Luiz seria ao autor daidia de um monumentos bandeiras a ser inaugu-rado em 1922, fazendopendant temtico coma inaugurao do monu-mento Independnciano Ipiranga, dentro, por-tanto, dos encadeamentoshistricos do IHGSP doqual ele mesmo era scio.

    23. Correio Paulistano,So Paulo, 27/7/1920.Apud Id., p. 120-121.

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    ufanismo dos paulistas vencidos em 1932, restava o consolo da nova Constituionacional, de que afinal eles haviam sido os hericos defensores, pioneiros noideal, como seus antepassados sertanistas largamente representados durante aRevoluo Constitucionalista. Convinha, portanto, a expresso material do idealbandeirante, j compartilhado com os novos paulistas e caminhando para ocompartilhamento com a nao:

    Cabe a So Paulo fazer a afirmao, que fixe o seu propsito de lutar para que, nonaufrgio em que outros povos se afogaro, se salve esta bela e nobre nao, que oBrasil, e com ela os puros ideais do homem cristo. [...] Pensando assim, tomou oGoverno a iniciativa de mandar construir no centro de uma nova praa de So Paulo,o monumento que em honra dos bandeirantes foi idealizado por um dos maiores artistasbrasileiros. [...] Tudo, ali, fora, movimento e ao [...]. (1936)29

    O projeto final proposto por Brecheret foi uma miscelnea decontradies simblicas, bem adequada ao tempo em que se retomava a idiado monumento. A permanncia bvia de um smbolo temporalmente excludenterepresentado pelo bandeirante dele, afinal, s descendiam carnalmente os antigospaulistas30 seria reforada pela adoo paulatina de solues formais em queao menos se identificavam as trs raas do perodo colonial brancos, ndios enegros, bem como os mamelucos, todos esculpidos segundo uma plstica angulosa,muito distante de referncias acadmicas de Brizzolara ou daquelas de seus prpriosprojetos anteriores31. Por outro lado, a despersonalizao dos projetos da dcadade 1920 permanecia (eram todos annimos) numa oposio fase escultricaanterior, marcada pelo personalismo laudatrio capitaneado por Brizzolara eTaunay. Facilitava-se, assim, uma identificao mais ampla dos diversos paulistas e tambm dos diversos brasileiros com um monumento que era cada vez maisum movimento, uma hierarquia vencedora, uma sntese ou, ao menos, umaconvivncia racial eivada de fora e avano32 (FIGURA 5).

    O apelo despersonalizao do monumento foi ganhando fora aolongo dos anos, na medida em que a associao entre bandeirantes e paulistasmigrava para bandeirantes e brasileiros, nas palavras de Brecheret, em plenoEstado Novo:

    Esse monumento, como voc v, no dos bandeirantes, como figuras histricas, masdo esprito das bandeiras, do mpeto nacional que arrastou essas formidveis massashumanas para os sertes. Veja [...] se ns brasileiros temos ou no temos razes paranos orgulharmos da nossa histria. (1942)33

    J no eram os prprios bandeirantes o motivo de orgulho, mas sim oesprito das bandeiras, algo bem mais assimilvel nos anos do Estado Novo. Jnas vsperas de sua inaugurao, que se daria em 1953, Brecheret reforava odiscurso genrico, visando a desvincular o monumento de contedos regionaispara um alcance muito mais abrangente e ambicioso: Como voc sabe, pretenditransformar isto num Altar da Ptria. Aqui esto as raas que formaram o Brasil.Aqui se encontram o ndio, o negro e o branco (1952).34

    O ndio, o negro e o branco, mas no necessariamente o portugusou o mameluco bandeirante. Permanecia, portanto, o smbolo do bandeirante,ainda que parcialmente esvaziado de sua vocao excludente, seja do sanguepaulista herdado pelos descendentes seja da raa paulista que encampavaos forasteiros.

    24. Correio Paulistano,So Paulo, 15/9/1920.Apud Id., p. 121.

    25. Obras de arte emlogradouros pblicos deSo Paulo - Regional S, p.155. MORETTIN, E. V.op.cit., p. 119, 122. As late-rais da escadaria nobre doMuseu Paulista ganhariamainda esttuas de bronzerepresentando ManuelBorba Gato, Manuel Preto,Francisco de Brito Peixo-to, Francisco Dias Velho,Bartolomeu Bueno da Sil-va, o Anhangera ePascoal Moreira Cabral,realizados por NicolaRollo, H. van Emelen eAmadeo Zani, cf.: PAIVA,Orlando Marques de (Ed.).O Museu Paulista da Uni-versidade de So Paulo.So Paulo: Banco Safra,1984. p. 316-317; estandotodas elas dispostas emtorno da esttua de PedroI, que ocupa o nicho cen-tral da caixa da escadaria,numa clara associao en-tre passado bandeirante ea Independncia.

    26. Sobre o pensamentode Ellis Jr.: ABUD, K.M. op.cit. p. 134-152. FERREIRA,A. C. op. cit., p. 327-346.

    27. BATISTA, M. R. op. cit,p. 51-57.

    28. Id., p. 53

    29. Mensagem de Arman-do de Salles Oliveira As-semblia Legislativa (9/7/1936). Id., p. 57.

    30. Cf. QUEIROZ, M. I. P.op. cit., espec. p. 83-84.

    31. BATISTA, M. R. op. cit,p. 59-60, 64-66.

    32. Tais contradies douso do bandeirante comosntese ou clivagem entreos paulistas no eram, en-tretanto, singulares con-cepo do Monumento sBandeiras. O prprio De-

  • 19FIGURA 5 Victor Brecheret. Monumento s Bandeiras. Fotografia de Werner Haberkorn.Acervo Museu Paulista da USP.

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    Erguendo o Mausolu ao Soldado Constitucionalista de 1932: bandeirantes dopresente

    As ambigidades simblicas do Monumento s Bandeiras estopresentes, ainda que j notavelmente mais diludas, no segundo grande monumentoerguido no Ibirapuera, o Monumento e Mausolu ao Soldado Constitucionalistade 1932. Fruto de um concurso pblico proposto em 1934, tambm durante agesto Salles Oliveira, o projeto escolhido foi concebido pelo escultor italianoGalileo Emendabili, em co-autoria com o engenheiro Mrio Pucci.

    As caractersticas do projeto executado diferenciavam-se bastantedos monumentos que o escultor j implantara na cidade, como os dedicados aLuiz Pereira Barreto e a Ramos de Azevedo, ainda muito presos tradioescultrica acadmica ou a princpios plsticos de Arturo Dazzi e Mestrovic.Tais obras tambm se distinguem do marco do Ibirapuera devido a seu cartercelebrativo, visto que homenageavam homens grandes homens a seremrememorados por suas trajetrias exemplares, o que os insere na tipologia quegrassava na Europa durante a vaga da estatuomania; j a homenagem aosmortos de 32 caracteriza-se por ser uma obra fnebre, rememorando a mortede soldados, exemplo de civismo, o que a remete monumentomania dedicadaaos mortos erguida nas cidades europias para celebrar os mortos da PrimeiraGuerra Mundial35.

    Emendabili, ao contrrio de suas duas primeiras grandes encomendaspara espaos pblicos, realizou um projeto eminentemente arquitetnico, ondeas esculturas, relevos e mosaicos foram dispostos com parcimnia. Assim, aarquitetura submetia as outras artes, no que Emendabili seguia pressupostosar t sticos i talianos do per odo entre-guerras, sobretudo da ver tentemonumentalizante prxima ao regime fascista nas dcadas de 1920 e 1930,cujos articuladores eram, entre outros, Margherita Sarfatti, o clebre arquitetoMarcello Piacentini e Arturo Dazzi36.

    O monumento em si constitudo por um obelisco oco, em cujo teroinferior foram dispostos quatro grandes relevos em cada uma das quatro faces,duas das quais acolhendo dois acessos com portas de bronze. O mausolu,situado sob o obelisco e com acesso diante do Parque do Ibirapuera, tem formatode cruz, em cujo centro, disposto exatamente sob o obelisco, jaz a esttua dosoldado constitucionalista. Ossrios, ou columbrios, abrigam os restos decombatentes e esto dispostos em diversos pontos do mausolu, que aindaacolhe os tmulos do orador Ibrahim Nobre, do poeta Guilherme de Almeida eum altar catlico (FIGURA 6).

    Apesar do concurso ter-se realizado em 1934, sua pedra fundamentalfoi lanada apenas em 1949, j passada a era Vargas, que certamente nofavorecia a homenagem aos constitucionalistas de 1932. As obras comearamaps a assinatura do contrato, em 1951, e ganharam ritmo acelerado na medidaem que deviam participar dos festejos do IV Centenrio. Em 1954 foramdepositados os primeiros restos mortais no mausolu, mas a inaugurao, parcial,deu-se apenas em 195537.

    partamento de Cultura,tambm criado na gestode Salles Oliveira, porMrio de Andrade, ex-plicitava ambigidadesatravs da Revista do Ar-quivo Municipal, que aomesmo tempo acolhia ar-tigos de professores da Es-cola de Sociologia e Pol-tica e da recm-criadaUSP, bem como produ-es claramente conser-vadoras, exemplificadasnos numerosos artigosgenealgicos de antigasfamlias paulistas, na mai-or parte escritos porCarlos da Silveira.

    33. BATISTA, M. R. op. cit.,p. 84.

    34. Id., p. 123.

    35. RIBEIRO, Ceclia deMoura Leite; GONAL-VES, Janice (Coord.).Obras de arte em lo-gradouros pblicos deSo Paulo Regional VilaMariana. So Paulo: PMSP/SMC/DPH, 1993. p. 44-51.Obras de arte em logra-douros pblicos de SoPaulo Regional S, p.112-113. FABRIS, A. op.cit. e sobretudo: ZIMMER-MANN, Silvana Brunelli. Aobra escultrica deGalileu Emendabili: umacontribuio para o meioartstico paulistano. 2000.Dissertao (Mestrado) Escola de Comunicaese Artes, Universidade deSo Paulo, So Paulo, 2000.p. 69-102. Sobre a esta-tuomania e a monumen-tomania, ver, alm dostextos da nota 4: Id., p.104-107, 69-70.

    36. Id., p. 106-107, 132-133, 136. FERGONZI, Fla-vio. Dalla Monumen-tomania alla Scultura ArteMonumentale. In: FER-GONZI, Flavio; ROBERTO,Maria Teresa (Org.). Lascultura monumentalenegli anni del Fascismo.

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    FIGURA 6 Galileo Emendabili. Maquete do Monumento ao Soldado Constitucionalista de1932. Monumento al Soldato Constituzionalista del 1932 (lbum). Acervo Fiametta Emendabili.Permisso de uso de imagem concedida por Fiametta Emendabili, So Paulo. Reproduo deHlio Nobre.

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    A associao cvica com a glorificao da cidade e do estado deSo Paulo e os paulistas de 32 foi obviamente evidenciada e ressaltada.Entretanto, tal fenmeno no associava de maneira to intensa a revoluo com opassado bandeirante nos moldes de Taunay, e menos ainda com os velhos paulistasde origem bandeirante. A figurao privilegiou os combatentes, considerados napoca do levante como herdeiros da bravura dos antigos sertanistas, umaassociao imperiosa em um momento em que se requisitava a unio poltica detodos os residentes no estado, forasteiros ou no. O bandeirante era assim, almde despersonalizado como no Monumento s Bandeiras, transposto temporalmentepara o movimento constitucionalista, momento em que novos e velhos paulistasdeviam nele se espelhar.

    A manipulao simblica do bandeirante esteve presente ao longo dolevante paulista nas cdulas e selos emitidos, nos incontveis cartazes e panfletos,nas transmisses de rdio e nos discursos. A fora, a coragem e o idealismoatribudos aos antigos sertanistas eram a todo momento resgatados pelapropaganda revolucionria como distintivo que marcava os paulistas e oscombatentes no front no esforo singular ao estado de So Paulo emconstitucionalizar o pas. Operava-se um momento de unio identitria interna, aomesmo tempo em que se dissociava o paulista do nacional38.

    Se o uso das representaes dos bandeirantes buscava o fomento dacoeso em vista de uma luta externa, o mesmo no se dava internamente, poisafinal o heri histrico estava por demais associado s antigas elites de origemcolonial e seus descendentes39. Assim, a despersonalizao que marcava oMonumento s Bandeiras, uma forma de expandir o alcance social do smbolonum marco que ainda era dedicado memria dos sertanistas, foi ainda maisdiluda no Monumento e Mausolu de 32.

    evidente que a inteno oficial de fomentar a coeso interna entre ospaulistas revolucionrios se fazia mediante a referncia ao mito de origem, herico ecivilizador, atribudo aos bandeirantes: Aos picos de julho de 32 que, fiiscumpridores/ de sagrada promessa feita a seu maiores/ os que houveram as terras eas/ gentes por sua fora e f/ na lei puseram sua fora/ e em So Paulo sua f.40

    Os dizeres de Guilherme de Almeida, esculpidos no tero inferior doobelisco, foram intercalados com relevos que figuravam alternadamente os soldados os picos e os bandeirantes seus maiores. O alistamento e a prpria causarevolucionria no foram, entretanto, exclusivos dos velhos paulistas, mas justamentealmejavam alcanar e unir todos os paulistas contra a ditadura. A aluso aobandeirante j era, portanto, uma sinonimia desse paulista metamorfoseado,herdeiro e cumpridor da bravura vinda no mais pelo sangue, mas pela terra, masa aluso era bastante sutil, num momento em que j no podia obstar a presenaestrangeira que, afinal, expressava-se na prpria plstica do monumento.

    A representao de sertanistas em posio semelhante dos prprioscombatentes testemunha a herana paulista, cujo carter coletivo insinuadapela repetio humana em sobreposio, soluo formal provavelmente inspiradaem painis da Mostra della Rivoluzione Fascista de 1933 (FIGURAS 7 e 8). Aexpresso dos corpos e rostos tambm diretamente associvel s solues sintticasda escultura italiana sob o perodo fascista, que procurava ressaltar, como nosrelevos de Emendabili, a fora e a firmeza da raa41. A marca corprea e moraldo passado migra sucessivamente do bandeirante para o soldado, e finalmentepara o agricultor e o operrio urbano representados nos mosaicos internos,amalgamando temporalidades, fundindo e refundando o paulista.

    Turim: Fondazione Guidoet Ettore de Fornaris;Umberto Allemandi, 1992.p. 133-200.

    37. ZIMMERMANN, S. B.op. cit., p. 16, 22, 24, 128.O trmino das obras s seoficializa em 1970.

    38. LOVE, Joseph. A loco-motiva: So Paulo na fe-derao brasileira, 1889-1937. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1982. p. 299-301.CAPELATO, MariaHelena. O movimento de1932, a causa paulista.So Paulo: Brasiliense,1981. esp. p. 50-73. ABUD,K. M. op. cit., cap. 4.

    39. QUEIROZ, M. I. P op.cit., p. 83ss.

    40. Poema de Guilhermede Almeida gravado nasfaces do obelisco queencima o mausolu.Obras de arte emlogradouros pblicos deSo Paulo - Regional VilaMariana, p. 44.

    41. Sobre a soluo desobreposio e as caracte-rsticas da figurao huma-na, ver: ZIMMER-MANN, S.B. op. cit., p. 136, 64.

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    FIGURA 7 Galileo Emendabili. Modelo de relevo do Monumento ao Soldado Constitucionalistade 1932. Monumento al Soldato Constituzionalista del 1932 (lbum). Acervo FiamettaEmendabili. Permisso de uso de imagem concedida por Fiametta Emendabili, So Paulo.Reproduo de Hlio Nobre.

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    FIGURA 8 Galileo Emendabili. Modelo de relevo do Monumento ao Soldado Constitucionalistade 1932. Monumento al Soldato Constituzionalista del 1932 (lbum). Acervo FiamettaEmendabili. Permisso de uso de imagem concedida por Fiametta Emendabili, So Paulo.Reproduo de Hlio Nobre.

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    O impacto da vastssima imigrao italiana existente em So Paulo semanifesta sobre o conjunto de Emendabili. Se Brecheret era aclamado pelosmodernistas inclusive por ser brasileiro, o mesmo no se poderia dar com o autordo marco de 32, sabidamente italiano, migrado para o Brasil. A penetraoaliengena na sociedade paulista encontrava resistncias ao invasor, menosprezadopelos que invejavam e temiam sua ascenso social e econmica. Tais rusgas entrequatrocentes e caracamanos diluam-se no monumento concebido pelo italianode Ancona, como alis j se diluam mesmo nos estratos mais altos da sociedadelocal mediante casamentos entre velhos e novos paulistas42. As prprias palavrasde Emendabili indicam o plasmar que seu conjunto exprimia:

    Quando cheguei ao Brasil, integrei-me completamente na vida brasileira. Nada tinha ano ser minha esposa e eu mesmo. Nove anos aps minha chegada estourou a RevoluoConstitucionalista. Pode parecer estranho que um italiano tenha sentido to profundamenteeste movimento tipicamente brasileiro. Mas em nove anos, aprendi a querer bem oBrasil e particularmente So Paulo. Em virtude desse amor que aderi com todo entusiasmo Revoluo. E foi ainda por amor causa paulista, por ter compreendido a santafinalidade da revoluo que procurei lembrar para sempre os feitos dos soldados deSo Paulo nesse movimento. (1958)43

    As caractersticas gerais do Monumento e Mausolu de 32 evidenciamainda mais o distanciamento daqueles limites restritivos impostos pela heranacolonial ao forjamento de uma identidade paulista. Sua plstica marcantementereferenciada na Itlia dos anos 30, seja nas esculturas e frisos, nas soluesformais de arquitetura, seja mesmo na escolha dos materiais de acabamento44.

    Em lugar do granito cinza Mau nacional e paulista escolhidocomo rocha suporte para a marcha sertanista esculpida no Monumento sBandeiras, foi utilizado em profuso o travertino romano nos exteriores e o mrmorebotticino florentino na cripta. Portas de bronze tm sua superfcie dividida emformelle, seguindo inspirao em exemplos marcantes da Renascena italiana,como as portas do batistrio de Florena executadas por Lorenzo Ghiberti e AndreaPisano. Mosaicos importados de Veneza cobriam as paredes principais da criptae da face interna do obelisco, e o heri jacente aluso maior do homem paulista foi esculpido em mrmore de ... Carrara45.

    Muito dos materiais citados foram largamente utilizados em monumentose edifcios pblicos patrocinados pelo regime de Mussolini na Itlia. Mesmo soluesformais da arquitetura, como os trs grandes arcos plenos que do acesso aomausolu, bem como os localizados no seu interior, aproximam-se enormementeda plstica tambm acolhida pelo fascismo.

    A popularidade do regime e das linguagens artsticas por eleabsorvidas havida em So Paulo era tamanha que permitiu a vulgarizao deedificaes classicizantes, cbicas e cobertas de travertino, nas ruas da reacentral e em bairros residenciais elitizados como o Jardim Amrica. MarcelloPiacentini, arquiteto dileto do regime fascista, chegou a manter expressivo contatocom a famlia Matarazzo, que ergueu a residncia da avenida Paulista, a sededas Indstrias Reunidas no Viaduto do Ch, e a Universidade, atual Palcio dosBandeirantes, em profundo comprometimento formal com a plstica do arquitetoitaliano, o que convergia com as solues plsticas adotadas no projeto deEmendabili para o Ibirapuera46.

    As obras do Mausolu ao Soldado Constitucionalista iniciaram-seapenas em 1949, sendo entretanto mantida a concepo original do conjunto,

    42. Entre os exemplos decasamentos entre as anti-gas famlias paulistas eimigrantes italianos po-dem ser citadas as alian-as Silva Prado/Crespi(em que se casaram o fu-turo prefeito de So Pau-lo Fbio Prado e RenataCrespi, filha do industrialRudolfo Crespi), CintraFerreira/Matarazzo, LaraCampos/Matarazzo, MeloCoelho/ Siciliano. LEVI, D.E. op. cit, p. 104, 259. BA-RATA, Carlos et al. Os her-deiros do poder . Francis-co Antonio Doria (Ed.). 2a.ed. Rio de Janeiro: Revan,1995. p. 264-265.

    43. ltima Hora, So Pau-lo, 7 de julho de 1958.Apud ZIMMERMMAN, S.B. op. cit. p. 25-26.

    44. Os integrantes da Co-misso Administrativa edo Conselho Consultivoda Fundao responsvelpela viabilizao da obrapouco se ligava aos novospaulistas, mormente itali-anos e talo-descendentes,indicando a absoro daplstica italianizante pelaselites locais: BeneditoMontenegro, Alberto deAguiar Weissohn, Horaciode Mello, Herbert VictorLevy, Waldemar MartinsFerreira, Francisco Emdioda Fonseca Telles, AntonioCarlos Pacheco e Silva,Ernesto de Moraes Leme,Henrique Smith Bayma eAntnio Vicente de Azeve-do. Da comisso julgadoraque escolheu o projetovencedor em 1934, comorepresentantes da rea ar-tstica, Amador Cintra doPrado, Dacio de Moraes,Julio Csar Lacreta, Mriode Andrade e Victor Bre-cheret. Idem, p. 127, 121.

    45. Para os materiais, ver:Id., p. 123, 130, 138-148.

    46. Sobre a plstica da ar-quitetura moderno-classi-

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    de 1934. Nesse intervalo, o prprio escultor acabou por reelaborar, em pequenaescala, as solues do monumento de 32 em jazigos familiares nos cemitriospaulistanos, numa clientela que, alm de italianos e velhos paulistas, acabou poracolher patronmicos rabes, armnios e portugueses47.

    O atraso nas obras do Mausolu, que acabaria sendo inauguradoapenas em 1955, permitiu, pois, que uma eventual ousadia italianizante deEmendabili, ou daqueles que julgaram seu projeto o mais adequado pararepresentar a identidade paulista presente no esforo revolucionrio, acabassepor ser mais facilmente inteligvel e assimilvel pelos paulistanos. Assegurava-se,desta forma, uma nova etapa de representao da identidade regional paulistaque, embora ainda aludindo ao bandeirante, era j incontornavelmente imigrante como parte das antigas famlias que tambm j o eram nos matrimnios edescendncias.

    Erguendo as construes de Niemeyer: bandeirantes no futuro?

    O arrastar das obras de construo pelas quais passavam o Monumentos Bandeiras e o Mausolu do Soldado Constitucionalista fez com que ambasfossem inauguradas num lapso de trs anos (1953 a 1955), entre os quais seriainaugurado o ltimo grande conjunto monumental patrocinado pelo poder pblicono Parque do Ibirapuera: as edificaes da exposio comemorativa do aniversrioda cidade, inauguradas em 1954.

    A exposio foi idealizada para destacar a pujana de So Paulo,lder econmico inconteste do pas, um resultado assegurado pela passagem daproeminncia agrcola e cafeeira para aquela propiciada pela industrializao,em pleno curso no estado e na prpria cidade. O regionalismo podia ento,reelaborado simbolicamente, livrar-se de alegorias pretritas ligadas conquistada terra e agricultura cafeeira para definir-se de maneira essencialmente urbana,cosmopolita e de abrangncia nacional.

    A 1 Feira Internacional de So Paulo foi dividida nos trs principaispavilhes destacando a produo industrial paulista, a mostra das naes (26 aotodo) e a mostra dos estados brasileiros. Exposies e eventos paralelos realizadosno parque e na cidade deram grande destaque s artes plsticas e cnicas, bemcomo histria, que ganhou uma vasta exposio organizada pelo historiadorportugus Jaime Corteso48.

    O projeto dos pavilhes foi realizado por uma equipe sob o comandode Oscar Niemeyer, j ento arquiteto consagrado no pas, especialmente apsa construo do conjunto arquitetnico da Pampulha na primeira metade da dcadade 1940. Os ante-projetos para o conjunto de edificaes da exposio sucederam-se a partir de 1951, sofrendo diversas alteraes que no comprometeram amaior parte das solues plsticas de Niemeyer49. O projeto final acabou porcompreender, grosso modo, os pavilhes dedicados Agricultura, s Indstrias,s Naes, aos Estados e s Exposies, os quatro ltimos ligados pela grandemarquise, papel ordenador que na Pampulha era realizado pelo lago e que, emSo Paulo, foi substitudo por uma espcie de espelho dgua de concreto(FIGURAS 9 e 10).

    cizante italiana em SoPaulo, ver: SALMONI,Anita; DEBENEDETTI,Emma. Arquitetura itali-ana em So Paulo. SoPaulo: Perspectiva, 1981.p. 146-148; e espec.:TOGNON, Marcos. Arqui-tetura italiana no Brasil a obra de MarcelloPiacentini. Campinas:UNICAMP, 1999.

    47. Veja-se, por exemplo,as sepulturas existentesnos cemitrios da Conso-lao, Ara e So Paulodas famlias Mencarini(1948), Varam Keute-nedjian (1948), SantosAzevedo (1953), MaudAsherman (1955), Mo-farrej Hend Nader Joubeir(1956) e Teixeira da Silva[s/d]. GAMA, MaurcioLoureiro et al. GalileuEmendabili. So Paulo:Instituto Italiano de Cul-tura; MASP, 1987. p. 71-73,78, 85, 87-88. ZIMMER-MANN, S. B. op. cit., p. 169-170, 172-175, 177-179.

    48. ARRUDA, Maria Ar-minda do Nascimento.Metrpole e cultura SoPaulo no meio sculo XX.Bauru, SP: EDUSC, 2001. p.93-97.

    49. Para as mudanasprojetuais, ver: CARDOSO,Joaquim; NIEMEYER, Os-car. Anteprojeto da Expo-sio do IV Centenrio deSo Paulo. So Paulo:Dante Paglia, 1952. CAR-DOSO, Joaquim. O conjun-to arquitetnico deIbirapuera. Brasil Arqui-tetura Contempornea,Rio de Janeiro, v. 2/3,1953-4. ARQUITETURA no Par-que do Ibirapuera.Habitat, So Paulo, 16,1954. NIEMEYER, Oscar.Mutilado o conjunto doParque Ibirapuera. M-dulo, Rio de Janeiro, 1,1955. Sobre o conjunto er-guido: XAVIER, Alberto et

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    FIGURA 9 Oscar Niemeyer e equipe. Maquete do projeto final para o conjunto arquitetnicodo Parque do Ibirapuera, com legenda das funes. Acrpole, So Paulo, 185, 1954, p.210.Acervo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Reproduo de Hlio Nobre.

    1 - Palcio das Naes 6 - Palcio das Artes2 - Palcio dos Estados 7 - Palcio da Indstria3 - Grande Marquise 8 - Restaurante4 - Auditrio 9 - Palcio da Agricultura5 - Palcio da Epicultura 10 - Ginsio

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    al. Arquitetura modernapaulistana. So Paulo:Pini, 1983. p. 24-27. BOTEY,Josep Ma. Oscar Niemeyer.Barcelona: Gustavo Gilli,1996. esp. 108-113.

    50. Para as caractersticasprojetuais das obras deNiemeyer e sobre seusvnculos com o pensa-mento modernista, ver:BRUAND, Yves. Arquitetu-ra contempornea brasi-leira. So Paulo: Perspec-tiva, 1981. PEREIRA,Miguel Alves. Arquitetura,texto e contexto: o discur-so de Oscar Niemeyer.Braslia: UNB, 1997. esp.cap. 3 e 4

    As concepes arquiteturais de Niemeyer, muito vinculadas escolacarioca de arquitetura e ao pensamento de Lcio Costa, inspiraram-seconstantemente no passado colonial brasileiro e na geografia fluminense. Aabundncia de curvas, a explorao de claros e escuros, o uso de revestimentostradicionais como os azulejos eram uma herana das proposituras dos pensadorese arquitetos neocoloniais (do qual o prprio Lcio Costa fizera parte),metabolizadas com os volumes limpos, os sistemas estruturais e as escalas precisasaprendidas de Le Corbusier. A proposta plstica era vinculada busca de umaidentidade esttica e formal de carter nacional, algo comum a muitos gruposmodernistas50.

    As solues adotadas por Niemeyer para as construes do Ibirapueraestavam, contudo, limpas de alegorias ou de qualquer remisso ligada ao passadonacional ou ao paulista. Ocorria em So Paulo, portanto, o contrrio do queacontecera, por exemplo, no conjunto da Pampulha, sua obra anterior de maiorescala, onde os numerosos painis de azulejos e as pedras de Itacolomi soaluso direta aos materiais e cromatismos da arquitetura colonial brasileira e mineira.No havia, desse modo, espao para o passado (FIGURA 11).

    O ano do IV Centenrio foi aquele em que a cidade de So Paulo que j abrigava o maior parque industrial do pas tornou-se tambm a maiorurbe brasileira, superando finalmente a capital nacional, o Rio de Janeiro. Oufanismo paulista dirigia-se ento para o futuro, contrapondo as evocaes dopassado regional, que marcavam os monumentos de Brecheret e Emendabili, aocarter moderno da obra de Niemeyer, ao mesmo tempo face do nacionalgestado no Rio e da expresso esttica internacional, planos a que a cidade sefiliava simbolicamente pela obra do arquiteto modernista. A linguagem arquitetnicaalmejava ento ser voz da capital:

    FIGURA 10 Oscar Niemeyer e equipe. Maquete do projeto final para o conjunto arquitetnico do Parque do Ibirapuera.Mdulo, Rio de Janeiro, 1, 1955, p. 19. Acervo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Reproduo de Hlio Nobre.

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    FIGURA 11 Oscar Niemeyer e equipe. Palcio das Naes. Habitat, So Paulo, 16, jun.1954, p. 23. Acervo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Reproduo de HlioNobre.

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    A Comisso organizadora do IV Centenrio de So Paulo encontra, portanto, nesseconjunto arquitetnico a indicao perfeita e adequada, a linguagem ideal para transmitir,a quantos quiserem saber, a importncia e o grau de desenvolvimento tcnico e industrialdo grande Estado, atravs de quatro sculos de existncia. (1952)51

    O prprio smbolo do evento, sua logomarca, foi reproduzido em ummonumento erguido na entrada do parque (de existncia abreviada por problemastecnolgicos52), e estava livre de aluses tnicas ou histricas. Tratava-se de umaforma helicoidal uma espiral que se arrancava abruptamente do solo apontandopara o cu, simbolizando a pujana da cidade, do estado e do prprio pas, doqual era a maior metrpole (FIGURA 12 e 13). Guardava do passado apenas oponto de partida de sua escalada para o futuro, para o progresso:

    [...] Era preciso pensar num emblema para So Paulo. Procurou-se ento uma formaplstica que representasse as caractersticas mais marcantes de So Paulo. Nada melhordo que a espiral. Ela d bem a idia do progresso, do crescimento [de] quatrocentosanos. (1954)53

    Tal progresso, cuja representao oficial deveria estar livre depreconceitos, de associaes regionais, de apelos passadistas excludentes neutro,portanto , viabilizava a extenso da identidade paulistana e paulista a todo opas, liderando e modelando os brasileiros na era da industrializao e datecnologia. O prprio Vargas, convidado indispensvel j que era presidente daRepblica, fazia coro com os idelogos paulistas:

    Esta a metrpole poderosa, [po]pulao ordeira, disciplinada e laboriosa, os que[sic] vm de todos os rinces do Brasil e do mundo, em busca de um viver melhor. SoPaulo no conhece preconceitos de qualquer ordem. Abre a perspectiva generosa desuas oportunidades que absorve e integra, num s povo a todos e a cada um, porquesabe que o progresso de cada um ser o progresso de todos. (1954)54

    A So Paulo cosmopolita anunciada por Vargas evidenciava-se afinalpelo prprio presidente da Comisso do IV Centenrio, Francisco MatarazzoSobrinho, o clebre Ciccillo, cujo mandato se estendeu entre dezembro de 1951e maro de 1954. Integrante da mais importante famlia de industriais paulistasligados imigrao, Ciccillo presidia um grupo formado quase exclusivamentepor paulistas de vastos e velhos sobrenomes submetidos sua presidncia55. Seuposto pode ser interpretado como o ponto culminante de ascenso dos imigrantesao universo simblico comandado pelas elites dirigentes de So Paulo, ao mesmotempo em que revela a diluio paulatina da proeminncia de discursos ligadosao mito bandeirante. Capito da indstria, das artes (foi o fundador da Bienal edo Museu de Arte Moderna), unido a Yolanda Penteado, sobrinha da mecenasmodernista Olvia, Ciccillo era ao mesmo tempo o bandeirante ressignificado e oprincpio do fim da aluso passadista. A difcil associao de seu carterempreendedor ao velho smbolo bandeirante deve ter sido mais necessria aosvelhos paulistas decadentes do que a ele prprio.

    A unio e a contradio entre o apelo ao passado e a projeo aofuturo aconteceu de maneira tensa, numa associao contundente mas que afinalj dava os sinais de um esgotamento. A comisso deu, por exemplo, poucaimportncia publicao de trabalhos de genealogia dedicados s velhas famliaspaulistas, vetando pedidos do Instituto Genealgico para financiamento de livrossobre o tema56. Ciccillo foi alvo preferencial dos golpes daqueles que se ressentiam

    51. CARDOSO, J.; NIE-MEYER, Oscar. op. cit., p. 21.

    52. SEGAWA, Hugo.Ibirapuera: o varziano quevirou centro. In: FANTA-SIA brasileira o Bal doIV Centenrio. So Paulo:SESC, 1998, p. 102. Parafotografias do espiral,tambm denominada naocasio de Aspiral: Id., p.107, 148.

    53. Smbolo do dinamis-mo e do progresso a espi-ral o arquiteto ZenonLotufo d a significaodo emblema do IV Cente-nrio uma forma plsti-ca para o carter de SoPaulo. Folha da Tarde, SoPaulo, 25/01/1954. O tex-to do anteprojeto do con-junto expressava a mes-ma idia, j em 1952: Ummarco comemorativo jfoi tambm estudado.Com sua forma pretende-mos simbolizar o progres-so crescente de So Pau-lo, interpretao tam-bm manifestada por Gui-lherme de Almeida. FER-RAZ, Vera Maria de Barros.O parque da Metrpole.Memria, So Paulo, v. 4,n. 18, p. 21, 1993.

    54. Discurso proferido em24/1/1954 no banqueteoferecido ao presidentepelo governo do estado,transcrito na ntegra peloDirio da Noite, So Pau-lo, 25/1/1954.

    55. Para a composio daComisso, incluindo-se afase ps-Ciccillo, presididapor Guilherme de Al-meida, ver: LOFEGO, SilvioLuiz. IV Centenrio da ci-dade de So Paulo aconstruo do passado edo futuro nas comemora-es de 1954. 2002. f. 50.Tese (Doutorado) - Pon-tifcia Universidade Ca-tlica de So Paulo, SoPaulo, 2002.

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    FIGURA 12 Oscar Niemeyer e equipe. Maquete da espiral do IV Centenrio de Fundao daCidade de So Paulo. Acrpole, So Paulo, 185, 1954, p.209. Acervo Faculdade deArquitetura e Urbanismo da USP. Reproduo de Hlio Nobre.

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    FIGURA 13 Oscar Niemeyer e equipe. Maquete da espiral do IV Centenrio de Fundao daCidade de So Paulo. Acrpole, So Paulo, 185, 1954, p.210. Acervo Faculdade deArquitetura e Urbanismo da USP. Reproduo de Hlio Nobre.

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    da lenta derrocada que se delineava no horizonte, em que os velhos smbolosperdiam vitalidade, apesar de sua mutao agregadora sofrida nos anos 30 e4057. O So Paulo quatrocento dava seu canto do cisne antes do impactodesenvolvimentista do governo JK, que tumultuaria definitivamente o panoramadas fortunas e das elites locais.

    A modernidade cosmopolita das edificaes de Niemeyer e do smboloem espiral foram intensamente invocadas na propaganda oficial e nos annciospublicitrios privados publicados na imprensa. A vasta louaria comemorativa doevento, broches, placas alm dos jornais e revistas, foram suportes para a expressoda Aspiral e da aspirao pelo futuro, que disputavam espao ou se justapunhams representaes de bandeirantes, de jesutas e de alguns poucos ndios masjamais de negros ou imigrantes58.

    O Ibirapuera de linhas modernas e modernistas tornava-se o novo marcozero da capital, refundando-a. A devoluo do terreno em que se erguera oantigo colgio do ptio aos jesutas para que se efetuasse a sua reconstruo,bem como a inaugurao da catedral ainda pela metade no podiam competircom o gigantismo edificado na ento maior rea pblica da capital, nem comsua seduo pelo novo, por um lugar na modernidade nas naes. As avenidas earranha-cus, entre os quais o Copan de Niemeyer, materializavam a mesmaprojeo para o futuro e seriam fotografados exausto para os postais, annciospublicitrios e lbuns comemorativos associando-se na nfase pelo moderno, pelaexpanso urbana vertical, que seria a marca da cidade nas dcadas seguintes esua mais freqente representao simblica59.

    A plstica adotada por Oscar Niemeyer completava assim um percursono qual a cidade podia enxergar-se como a imagem do prprio pas capitaneando-o no presente, no futuro, e integrando-o a uma esfera global. Ofato do arquiteto ser carioca no obstou sua contratao e pode mesmo evidenciaro direcionamento de um processo que elegia um brasileiro, selando a identificaoentre a maior cidade e o maior arquiteto do pas, completando a marcha dacoeso simblica que se impunha pela atividade de Zani, Ximenes, Brizzolara,Brecheret, Emendabili, todos itlicos, at que se chegasse a um nacional.

    O trinio 1953/1954/1955 presenciou, portanto, a sincroniatemporal de monumentos bastante diversos, representativos de momentos igualmentediferenciados na afirmao de uma identidade paulista, seja de alcance regionalou nacional. Os antigos vetores de coeso e diferenciao internos e externosaos paulistas em torno da mitificao do paulista/bandeirante e do bandeirante/paulista diluam-se na viso generalizante promovida pelo progresso, que empanavaos anseios de distino calcados no passado e na herana da gens. Ser paulistase definiria, pois, e ainda uma vez, sob o impacto da acolhida tensa do novo,como j o fora desde a chegada dos portugueses, espanhis filipinos, dos reinissetecentistas, dos africanos, dos imigrantes e migrantes ao planalto de Piratininga.

    REFERNCIAS

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    56. O Instituto Genea-lgico Brasileiro, que agre-gava paulista quatrocen-tes ansiosos por afirmara primazia de seus velhoscostados, ficou furiosopelo desdm da Comisso:deveria o InstitutoGenealgico Brasileiro tersido necessariamente con-vocado pelas autoridadesestaduais e municipais, deSo Paulo, para compar-ticipar dos festejos quedeveriam ser levados acabo, no ano em que se co-memora o IV centenrioda nossa gloriosa cidade.Entretanto, tal no aconte-ceu. Nem as autoridadesreferidas, nem a autarquiaque se criou para centrali-zar as solenidades tiverama lembrana de solicitar anossa contribuio [...] Acarta de nosso presidentefoi endereada ao presi-dente daquela autarquia eeste, sem ao menosponderar a alta significa-o do nosso esforo, danossa contribuio, displi-centemente ordenou queo diretor geral respondes-se que a solicitao que fi-zemos no podia ser aten-dida. vista de to inde-licada e surpreendentesoluo, ditada natural-mente por pessoa que notem exata compreensodas tradies paulistas,que, nesse passo da nossahistria, no podem ser es-quecidas o Instituto [...]lana luz da publicidadeo presente volume. Pref-cio. Revista GenealgicaLatina, So Paulo, v. 6, n. 6,p. 3-4, 1954. Nmeroespecial. Quatrocentosanos de vida bandeirante.

    57. A Comisso seria tam-bm acusada pela Acade-mia Paulista de Letras,outro bastio dos velhospaulistas, de fiscalizar oteor de atividades de umcurso de histria paulista,pelo que demostravam

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    O Parque do Ibirapuera e a construo da identidade paulista

    Paulo Csar Garcez Marins

    Entre os anos de 1953 e 1955, o Parque do Ibirapuera, uma das principais reas verdes da cidadede So Paulo, acolheu a inaugurao de trs grandes marcos monumentais, escultricos earquitetnicos, cujas caractersticas formais permitem compreender a relao entre as artes plsticase os movimentos afirmativos de uma identidade paulista. Este texto pretende, assim, apontar aespecificidade artstica desses marcos, ao mesmo tempo em que os situa como artefatos urbanos decarter simblico, capazes de distinguir e agregar velhos e novos habitantes da cidade e do Estadode So Paulo, bem como de identific-los perante os demais brasileiros.PALAVRAS-CHAVE: Monumentos urbanos. Identidade. Bandeirantes. Arquitetura Modernista. Escultura.Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v. 6/7. p. 9-36 (1998-1999). Editado em 2003.

    The Ibirapuera Park and the construction of an identity of So Paulo.

    Paulo Csar Garcez Marins

    Between the years of 1953 and 1955, the Ibirapuera Park, one of the main green areas in the Cityof So Paulo, received the inauguration of three great monumental, sculptural and architecturallandmarks, whose formal features allow us to understand the relation between plastic arts and themovements defending an identity of the city of So Paulo. This essay intends thus to point out theartistic specificity of these landmarks, at the same time that it considers them as urban symbolicartifacts, capable of distinguishing and aggregating old and new inhabitants of the city and of thestate of So Paulo, as well as identifying them before other Brazilians.KEYWORDS: Urban Monuments, Identity, Bandeirantes, Modernist Architecture, SculptureAnais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v. 6/7. p. 9-36 (1998-1999). Editado em 2003.

    O registro dos limites da cidade: imagens da vrzea do Carmo no sculo XIX

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    Este trabalho debrua-se sobre a iconografia paulistana do sculo XIX, em suas pinturas, aquarelase litografias. Partindo da constatao da existncia de um privilegiamento das reas dos arredoresdo centro nas representaes da cidade, especificamente uma regio, a vrzea do Carmo, e dessapermanncia ainda na virada do sculo, quando a cidade sofre um processo de urbanizao ecrescimento grande, e a fotografia j est registrando as reas centrais, quisemos investigar ossentidos dessas representaes, tanto a presena desse espao a vrzea do Carmo no imaginrioda poca (cronistas, legisladores, memorialistas), quanto as imagens da cidade que esto sendoproduzidas a partir desse ngulo de registro. Escolhemos analisar algumas imagens dessa regio,concentrando-nos no final do sculo, contrapondo com outros discursos produzidos sobre a rea porcronistas, jornalistas e memorialistas, na tentativa de entender um pouco mais a sociedade que asproduziu.PALAVRAS-CHAVE: Vistas urbanas. Representao. Urbanizao. So Paulo. Iconografia.Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v. 6/7. p. 37-59 (1998-1999). Editado em 2003.

    The registration of the limits of the city: images of the Carmo Meadow in the 19th century.

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    This work examines Sao Paulos iconography in the paintings, water colors and litographies of the19th century. Departing from the ascertaining of the existence of a privilege of the citys surroundingareas, particularly the Carmo Meadow, and of this permanence yet in the turn of the century, whenthe city goes under an urbanization process and special growth, and photography is registring thecentral areas, we wanted to investigate the meanings of these representations. Not only the presenceof this space the Carmo Meadow in the imagery of this period (chroniclers, legislators, memorialists)

    RESUMOS/ABSTRACTS