o planeta dos dragoes - jack vance

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Page 1: O Planeta dos Dragoes - Jack Vance

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Apresenta:

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O PLANETA DOS DRAGÕES No planeta Aerlith, os homens procuram reconstituir a civilização perdida. No

passado, com suas astronaves e uma ciência avançada, a raça humana conquistara e

colonizara toda a galáxia. Agora só restam pequenos núcleos isolados, entregues à própria

sorte.

E o que é pior: destruindo-se mutuamente em guerras inúteis, frutos da inveja,

ambição e poder. Perdida a tecnologia antiga, recorrem a armas primitivas, como se

tivessem voltado à Idade Média. E dispõem de estranhos dragões, uma raça domesticada

e aperfeiçoada durante séculos, para a finalidade exclusiva da guerra. Levam nomes

sinistros e têm uma aparência diabólica.

Como se toda essa auto determinação ainda não bastasse, são os ataques pe-

riódicos de seres vindos de outro planeta, os Básicos, que destroem tudo em nome de uma

"Regra" monstruosa, levando os homens como prisioneiros e submetendo-os à condição

de seres inferiores e primitivos.

Além dos homens e dragões, vivem em Aerlich os Sacerdotes, uma raça misteriosa

de homens que andam nus e só falam quando interrogados. Praticam uma espécie de

misticismo Zen, embora seu raciocínio obedeça a uma lógica implacável. E não são tão

inocentes e pacatos como parecem.

Joaz Banbeck sonha vencer os Básicos e retomar a gloriosa jornada do homem pelo

Universo.

O Planeta dos Dragões é a narrativa fascinante de homens que lutam por sua

sobrevivência num planeta inóspito, sob a eterna ameaça de um povo que despreza a raça

humana.

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O  PLANETA  DOS  DRAGÕES  

Coleção MUNDO FANTÁSTICO

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JACK VANCE

O PLANETA DOS DRAGÕES  

Tradução de

MARCELO ANTÔNIO CORÇÃO

Livraria Francisco Alves Editora S.A.

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Copyright © 1962byGalaxy Publishing Incorporated, Inc.

Publicado mediante acordo com The Scott Meredith Literary

Agency Inc., 845 Third Avenue, New York, N.Y., 10022, USA

Título original: The dragon masters

Capa: Antônio Vaz

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

1979

Todos os direitos desta tradução reservados à

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.

Rua Sete de Setembro, 177 — Centro

20.050 Rio de Janeiro, RJ

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CAPÍTULO 1

Os apartamentos de Joaz Banbeck, cavados no coração da rocha calcária,

compunham-se de cinco peças principais, em cinco níveis diferentes. No alto estavam o

relicário e a câmara oficial do conselho: o primeiro, uma sala de sombria magnificência

abrigando os diversos arquivos, troféus e recordações da família Banbeck; o segundo, um

vestíbulo estreito e comprido, onde os lambris escuros subiam até a altura do peito; no

alto, a abóbada branca de estuque estendia-se por toda a extensão do rochedo, desorte

que as sacadas davam para o Vale Banbeck de um lado e sobre a Alameda Kergan do

outro.

Na parte inferior ficavam os aposentos particulares de Joaz Banbeck: uma sala de

visitas que era, ao mesmo tempo, quarto de dormir, estúdio e, embaixo de tudo, a oficina

onde ninguém tinha autorização de entrar.

A entrada nos apartamentos era através do estúdio, sala espaçosa em forma de L

com o teto decorado de requintados relevos, e do qual desciam quatro candelabros

cravejados de granadas. Estes estavam apagados no momento, a luz cinzenta e difusa

que penetrava na peça provinha de quatro lâminas polidas de vidro sobre as quais, à

semelhança de uma câmera obscura, estavam focalizadas as vistas que davam para o

Vale Banbeck. As paredes eram recobertas de fibra de junco tratado; um tapete dese-

nhado com ângulos, quadrados e círculos, nas tonalidades castanho-avermelhado, marrom

e preto, cobria o piso.

No meio do estúdio estava um homem nu, com longos cabelos castanhos e finos

ondulando sobre as costas, um colar dourado pendendo em volta do pescoço. Os traços

eram fortes e angulosos, o corpo esguio; parecia estar prestando atenção a alguma coisa

ou talvez meditando. Vez por outra olhava de relance para um globo amarelo de mármore

em cima de uma estante próxima, movendo os lábios simultaneamente como se estivesse

memorizando alguma frase ou sequência de ideias.

Na outra extremidade do estúdio uma porta pesada moveu-se sem ruído e uma moça

de rosto juvenil espiou para dentro com expressão alegre e maliciosa. Ao enxergar o

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homem nu, levou a mão à boca, como se abafasse uma exclamação de surpresa. O

homem voltou-se, mas a porta já tinha sido fechada.

Durante alguns instantes permaneceu mergulhado em reflexão profunda, depois

caminhou lentamente em direção a uma das paredes internas da sala. Retirou uma seção

da estante, passou pela abertura. Atrás dele a estante fechou-se sozinha com um baque

surdo. Descendo por uma escada em caracol, entrou num cômodo cavado rusticamente na

rocha: a oficina particular de Joaz Banbeck. Em cima da bancada havia ferramentas, peças

e pedaços de metal, uma prateleira de células eletromotoras, extensões de circuitos: em

suma, coisas pelas quais Joaz Banbeck se interessava.

O homem nu parou defronte da bancada, segurou um dos aparelhos, examinou-o

com uma espécie de condescendência, embora seu olhar fosse tão límpido e interessado

quanto o de uma criança. Vozes abafadas, provenientes do estúdio, penetraram na oficina.

O homem nu levantou a cabeça para ouvir melhor, depois meteu-se para baixo da

bancada, levantou um bloco de pedra, passou pelo buraco e foi dar numa abertura escura.

Após recolocar a pedra no lugar, apanhou uma vara luminosa e desceu por um túnel

estreito que ia dar numa caverna natural. A intervalos irregulares tubos luminosos emitiam

uma luz fraca que servia apenas para desfazer a escuridão. O homem caminhou

rapidamente, os cabelos sedosos esvoaçando sobre os ombros e formando um halo.

De volta ao estúdio, a jovem Phade e um idoso senescal discutiam acaloradamente.

—Juro que o vi! - insistia Phade.

—Com estes meus olhosque a terra há de comer! Um dos sacerdotes, em pé no meio

da sala, como já descrevi. - Puxou com raiva o cotovelo do velho.

—Você acha mesmo que estou ficando louca ou histérica?

Rife, o senescal, deu de ombros, sem se pronunciar por uma coisa nem por outra.

—Não o estou vendo agora. Subiu a escada e olhou para dentro do quarto. Vazio. As

portas em cima estão trancadas. Voltou-se e lançou um olhar irônico para Phade.

—E eu estava sentado no meu posto na entrada.

—Você estava dormindo. Estava inclusive roncando quando passei por aqui!

—Você se enganou. Eu apenas tossi.

—Com os olhos fechados, a cabeça caída para trás? Rife tornou a balançar os

ombros.

—Dormindo ou acordado, dá na mesma. Admitindo que a criatura entrou na sala, por

onde ela saiu? Eu estava acordado depois que você me chamou, como você mesma

percebeu.

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—Então não saia daqui enquanto procuro Joaz Banbeck! Phade correu pelo corredor

que dava para a Alameda das Aves, assim chamada pela série de pássaros fabulosos de

lápislazúli, ouro, cinábrio, malaquita e marcassita incrustados no mármore. Passando pela

galeria de jade verde e cinza, de coluna sem espiral, ganhou a Alameda Kergan,

desfiladeiro natural que formava a principal via da Aldeia Banbeck. Ao chegar perto do

portal, chamou dois rapazes que vinham do campo.

—Corram até a criadeira à procura de Joaz Banbeck! Tragam-no aqui sem demora.

Preciso falar urgentemente com ele.

Os dois jovens correram em direção a um cilindro baixo de tijolos pretos que se

encontrava a um quilômetro e meio mais para o norte.

Phade aguardou. Com o sol Skene no alto do céu, o ar estava quente; os canteiros

de ervilhaca, de bellegarde, de spharganum exalavam um perfume agradável. Phade

encostou-se à cerca. Refletiu sobre o peso daquela notícia: teria sido mesmo realidade?

—Não! - exclamou com decisão. —Eu vi! Eu vi!

De ambos os lados, penhascos altos e brancos subiam até a Beira Banbeck, com

montanhas e rochedos mais adiante, estendendo-se por todo o céu negro pontilhado de

flocos de cirros. Skene resplandecia fortemente, um pontinho minúsculo de luminosidade.

Phade suspirou, meio convencida de seu próprio erro. Outra vez, com menos

veemência, tranquilizou-se a si mesma. Nunca vira antes um sacerdote; por que haveria de

imaginar um agora?

Os dois rapazes, ao chegarem às criadeiras, desapareceram na poeira dos cercados

e das pistas de treinamento. Escamas brilhavam e piscavam; criados, mestres de dragões,

protegidos com armaduras de couro preto agitavam-se no picadeiro. Joaz Banbeck

apareceu pouco depois. Montado numa Aranha alta, de pernas finas, que açulava a fim de

obter o máximo dos saltos longos, avançava lentamente pelo caminho que levava à Aldeia

Banbeck.

A incerteza de Phade aumentou. Joaz se mostraria irritado? Desdenharia a notícia

com um olhar de incredulidade? Ansiosa, observou-o aproximar-se. Como viera para o

Vale Banbeck há apenas um mês, sentia-se insegura de sua posição. Seus mestres a

haviam treinado com aplicação no pequeno vale desolado do sul, onde nascera, mas a

diferença entre a instrução e a realidade prática de todos os dias desorientava-a às vezes.

Aprendera que todos os homens obedeciam a um grupo pequeno e idêntico em

comportamentos; Joaz Banbeck, no entanto, não observara estes limites e Phade julgava-

o inteiramente imprevisível.

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Sabia que Joaz era um homem relativamente jovem, embora não se pudesse calcular

sua idade a partir da aparência. Joaz tinha o rosto pálido e áustero, e seus olhos cinzas

brilhavam como cristais; a boca rasgada, de lábios finos, sugeria flexibilidade, embora

nunca se curvasse muito além da linha reta. Andava com indolência e sua voz não tinha

veemência; também não fazia questão de exibir nenhuma habilidade especial com sabre

nem com pistola. Parecia evitar deliberadamente qualquer gesto que pudesse conquistar a

admiração ou afeição dos seus súditos. Phade, no início, julgou-o frio, se bem que depois

mudara de opinião. Chegou à conclusão de que Joaz era um homem entediado e solitário,

com um temperamento tranquilo que às vezes parecia meio melancólico. Mas ele a tratava

sem descortesia e Phade, provocando-o com as mil e uma seduções que conhecia,

imaginou algumas vezes perceber uma faísca de resposta.

Joaz Banbeck desmontou da Aranha e mandou-a de volta para a cocheira. Phade

aproximou-se com hesitação, enquanto Joaz dirigia-lhe um olhar interrogativo.

—O que justifica esse chamado tão urgente? Está lembradado item 19?

Phade corou embaraçada. Havia descrito meio infantilmente os exercícios rigorosos

de seu treinamento. Joaz referia-se agora a um item de uma das classificações que lhe

escapara da mente.

Ela falou rapidamente, com excitação:

—Eu abri a porta do estúdio, bem devagar, com todo cuidado. E sabe o que vi? Um

sacerdote, nu em pêlo! Ele não me viu. Tornei a fechar a porta e corri à procura de Rife.

Quando voltamos os dois, a sala estava vazia!

As sobrancelhas de Joaz contraíram-se ligeiramente e ele levantou a vista em

direção ao vale.

—Estranho - disse e perguntou depois de um instante:

—Você tem certeza de que ele não a viu?

—Não. Acho que não. Mesmo assim, quando voltei com esse velho e estúpido Rife,

ele tinha desaparecido! É verdade que eles conhecem magia?

—Quanto a isso, não posso responder - retrucou Joaz.

Os dois voltaram pela Alameda Kergan, atravessaram túneis e corredores abertos

nas rochas, chegando finalmente ao vestíbulo. Rife cochilava novamente em sua mesa.

Joaz fez sinal para que Phade se afastasse e, adiantando-se em silêncio, abriu a porta do

estúdio. Olhou para um lado e para o outro, com as narinas alertas. A sala estava vazia.

Subiu as escadas, examinou a pequena sala-dormitório e voltou ao estúdio. A menos

realmente que houvesse mágica, o sacerdote tinha encontrado uma entrada secreta. Com

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este pensamento na cabeça, Joaz abriu a porta do armário de livros, entrou na oficina e

examinou de novo o ar a procura do aroma agridoce característico dos sacerdotes. Um

vestígio? Possivelmente.

Investigou a peça palmo a palmo, examinando-a de todos os ângulos. Finalmente,

junto à parede embaixo da bancada, descobriu uma fenda quase imperceptível, de formato

retangular.

Joaz balançou a cabeça com uma satisfação sombria. Ergueu-se e voltou para o

estúdio. Examinou as estantes. O que havia ali que pudesse interessar ao sacerdote? Da

próxima vez que encontrar um sacerdote, pensou distraidamente, vou indagar-lhe a este

respeito. Pelo menos terá que me dizer a verdade. Pensando melhor, a pergunta pareceu-

lhe ridícula; os sacerdotes, apesar de andarem nus, não eram selvagens; aliás, tinham sido

eles que lhe haviam fornecido seus quatro painéis de visão - um aparelho que revelava

boa dose de inventividade.

Joaz inspecionou em seguida o globo amarelo de mármore que considerava seu

objeto mais precioso - a representação mítica do planeta Éden. Aparentemente não fora

mexido. Numa outra estante havia modelos dos dragões de Banbeck - as Megeras, cor de

ferrugem; os Assassinos de Chifres Compridos e seus primos, os Assassinos Galopantes;

os Monstros Azuis; os Demônios, que se arrastavam no chão, imensamente fortes, tendo

nas pontas dos rabos ferrões de aço; por último, os maciços Moloques, que tinham os

crânios polidos e brancos como uma casca de ovo.

Ligeiramente afastado estava o progenitor do grupo inteiro - uma criatura pálida, cor

de pérola, apoiada em duas pernas, com dois membros centrais muito versáteis, sem falar

no par de membros anteriores, multiarticulados, no pescoço. Por mais esplendidamente

detalhados que fossem estes modelos, por que haveriam de despertar a curiosidade dos

sacerdotes? Não havia nenhuma razão aparente, sobretudo quando os originais podiam

ser estudados diariamente sem o menor obstáculo.

E a oficina? Joaz esfregou o queixo comprido e pálido. Não nutria ilusões sobre o

valor do seu trabalho. Simples ocupações ociosas, nada mais. Não havia sentido em ficar

ali fazendo conjecturas. Muito provavelmente o sacerdote não viera com nenhuma missão

específica; a visita devia fazer parte de uma inspeção permanente. Mas por quê?

Ouviu baterem à porta: o punho irreverente do velho Rife. Joaz atendeu.

—Joaz Banbeck, uma mensagem de Ervis Carcolo do Vale Feliz. Deseja conferenciar

com você e aguarda uma resposta na Beira Banbeck.

—Muito bem - disse Joaz; vou conferenciar com ErvisCarcolo.

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—Aqui ou na Beira Banbeck?

—Na Beira Banbeck, dentro de meia hora.

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CAPÍTULO 2

A quinze quilômetros do Vale Banbeck, além de uma região deserta e assolada pelos

ventos, formada de cordilheiras, rochedos, picos, fendas espantosas, precipícios áridos e

campos de pedregulhos rolados, encontra-se o Vale Feliz. Da mesma largura que o Vale

Banbeck, mas tendo somente a metade da extensão e da profundidade, seu solo

depositado pelo vento era apenas um pouco menos rico e menos produtivo.

O conselheiro principal do Vale Feliz era Ervis Carcolo, homem troncudo, de pernas

curtas, rosto afogueado, boca grossa, um temperamento instável, ora alegre ora colérico.

Ao contrário de Joaz Banbeck, nada agradava tanto a Carcolo quanto suas visitas às

cocheiras dos dragões, onde tratava os mestres dos dragões, os criados e os próprios

dragões com toda sorte de críticas, exortações e advertências,

Ervis Carcolo era um homem enérgico que se preocupava em fazer o Vale Feliz

retornar à condição de prestígio que desfrutara uma doze gerações antes. Durante aqueles

tempos difíceis, antes do advento dos dragões, os homens combatiam pessoalmente e os

guerreiros do Vale Feliz haviam sido especialmente ousados, hábeis e impiedosos. O Vale

Banbeck, o Grande Rift do Norte, Clewhaven, o Vale Sadro e a Ravina Phosphor

reconheciam todos a autoridade da família Carcolo.

Foi então que desceu do espaço a nave dos Básicos, ou grefos, como eram

conhecidos na época. Seus ocupantes mataram ou aprisionaram a população inteira de

Clewhaven, tentando o mesmo no Grande Rift do Norte, no que só foram parcialmente

bem sucedidos; bombardearam em seguida os povoados remanescentes com granadas

explosivas. Quando os sobreviventes retornaram aos vales devastados, o domínio do Vale

Feliz não era mais que um sonho. Na geração seguinte, durante a Idade do Ferro Úmido,

até mesmo o sonho perdeu sua razão de ser. Numa batalha decisiva, Goss Carcolo foi

capturado por Kergan Banbeck e forçado a castrar-se com sua própria faca.

Transcorreram cinco anos de paz; depois os Básicos voltaram. Após despovoar o

Vale Sadro, a grande nave negra aterrou no Vale Banbeck, mas os habitantes tinham sido

prevenidos e fugiram para as montanhas. Ao anoitecer, vinte e três Básicos investiram na

retaguarda de seus guerreiros cuidadosamente treinados. Havia diversos pelotões de

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Tropas Pesadas, um esquadrão de Atiradores - que se pareciam bastante com os homens

de Aerlith - e um esquadrão de batedores. Estes últimos eram ostensivamente diferentes.

A tempestade vespertina desabou sobre o vale, inutilizando os aparelhos voadores da

nave, o que deu a Kergan Banbeck a oportunidade de realizar um feito surpreendente,

graças ao qual seu nome tornou-se lendário em Aerlith. Em vez de seguir seu povo na fuga

aterrorizada em direção ao Topo das Pedras, Kergan reuniu sessenta guerreiros e exortou-

os à luta com exclamações de júbilo e de escárnio. Saltando de uma emboscada, seus

homens exterminaram um pelotão das Tropas Pesadas, puseramos outros em debandada

e capturaram os vinte e três Básicos, antes mesmo que estes se dessem conta do perigo.

Os Atiradores recuaram em pânico, tomados de frustração, impossibilitados de usarem

suas armas com receio de matarem seus chefes. As Tropas Pesadas avançaram às

cegas, decididas a fazer alto somente quando Kergan Banbeck fosse morto.

Desorientadas, foram obrigadas a recuar enquanto Kergan Banbeck e seus homens

escapavam na escuridão, levando consigo os vinte e três prisioneiros.

A longa noite de Aerlith passou, a tempestade matutina varreu de leste, com trovões

e raios, e afastou-se majestosamente para oeste, como se abrisse uma cortina para

Skene, que se levantou como um átomo luminoso. Três homens saíram da nave dos

Básicos: um Atirador e dois Batedores. Subiram a encosta da Beira Banbeck enquanto no

alto voava um de seus pequenos aparelhos, o qual não passava de uma minúscula

plataforma flutuante, que mergulhava e rodopiava no vento como um papagaio mal equili-

brado. Os três homens caminharam penosamente para o sul em direção ao Topo das

Pedras, região de sombras e de luzes caóticas, de rochas fraturadas e de rochedos

caídos, de pedregulhos e pedras amontoados. Era ali o refúgio habitual dos homens

perseguidos.

Fazendo alto diante das Pedras, os Atiradores chamaram Kergan Banbeck,

convocando-o para uma conferência.

Kergan Banbeck apresentou-se sem demora e teve lugar então o diálogo mais

estranho na história de Aerlith. O Atirador falou na língua dos homens com dificuldade,

uma vez que seus lábios, sua língua e sua glote eram mais adaptadas à fala dos Básicos.

—Você está sujeitando vinte e três dos nossos Venerados. É necessário que os

encaminhe aqui, com toda a humildade.

O Atirador falou com sobriedade, com um ar de delicada melancolia; não afirmava,

não ordenava nem insistia. Como seus hábitos linguísticos correspondiam aos padrões dos

Básicos, o mesmo ocorria com seus processos mentais.

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Kergan Banbeck, um homem alto e seco de sobrancelhas negras e brilhantes, os

cabelos negros presos numa crista alta de cinco pontas, deu uma gargalhada sem graça.

—O que você me diz dos habitantes de Aerlith que foram mortos? E dos outros que

estão capturados no interior da nave?

O Atirador inclinou-se profundamente; sua figura tambémera marcante, com uma

nobre cabeça aquilina. Não tinha cabelos, com exceção de pequenos tufos de pêlos

amarelos e finos. A pelebrilhava como se fosse envernizada; as orelhas, no que se

diferenciava mais notavelmente dos homens desadaptados de Aerlith, eram pequenos

abanos frágeis.

Vestia um traje simples, azul-escuro e branco; não levava armas consigo, a não ser o

ejetor de multiutilidade. Com perfeita compostura e argumentação tranquila, respondeu às

perguntas de Kergan Banbeck.

Os habitantes de Aerlith que foram mortos estão mortos. Os que estão a bordo da

nave serão fundidos ao substrato, onde a infusão de sangue fresco do exterior é valiosa.

Kergan Banbeck examinou o Atirador com desdenhosa deliberação. Em alguns

aspectos, pensou Kergan Banbeck, este homem modificado e cuidadosamente cruzado

assemelha-se aos sacerdotes de Aerlith, especialmente na pele clara, nos traços

fortemente modelados, nos longos braços e pernas. Talvez a telepatia estivesse em ação,

ou algum eflúvio do odor característico tivesse chegado até ele. Ao voltar a cabeça, avistou

um sacerdote entre as rochas a uns vinte metros de distância - um homem nu com

exceção do colar dourado e dos cabelos castanhos que ondulavam sobre as costas como

uma flâmula. Segundo a antiga tradição, Kergan Banbeck olhou como que através dele;

como se não tivesse presença física. O Atirador, após um rápido relance, imitou seu gesto.

—Rogo que solte os prisioneiros de Aerlith que estão na nave - insistiu Kergan

Banbeck com a voz serena.

O Atirador balançou a cabeça sorrindo e empregou seus melhores esforços para se

fazer compreender.

—Estas pessoas não estão em discussão. O... - fez uma pausa, procurando

encontrar as palavras certas - ...o destino delas está... parcelado, quantificado, ordenado.

Estabelecido. Nada mais pode ser modificado.

O sorriso de Kergan Banbeck tornou-se uma careta cínica. Permaneceu silencioso e

indiferente, enquanto o Atirador falava. O sacerdote aproximou-se lentamente do grupo,

dando pequenos passos de cada vez.

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—É preciso entender - continuou o Atirador - que existe um padrão para os fatos. A

função de indivíduos como eu consiste em manipular os fatos de maneira que

correspondam ao padrão. Inclinou-se e, com um gesto gracioso do braço, apanhou uma

pequena pedra pontuda no chão.

— Da mesma forma que posso polir esta pedra a fim de adaptá-la a um orifício

redondo.

Kergan Banbeck deu um passo à frente, apanhou a pedra e atirou-a para o alto,

sobre os grandes seixos.

—Você não polirá nunca esta pedra para tampar um orifício redondo.

O Atirador balançou a cabeça num gesto de leve desaprovação.

—Há sempre outras pedras à mão.

—E há sempre mais orifícios - declarou Kergan Banbeck.

—Vamos ao assunto, então - disse o Atirador. —Proponho resolver esta situação de

uma maneira correta.

—O que você me oferece em troca dos vinte e três grefos?

O Atirador sacudiu os ombros com indecisão. As ideias daquele homem eram tão

absurdas, bárbaras e arbitrárias quanto as pontas do seu penteado.

—Se desejar, poderei lhe dar instruções e conselhos... Kergan Banbeck fez um gesto

brusco.

—Estabeleço três condições.

O sacerdote estava apenas a uns três metros do grupo, com o rosto inexpressivo e o

olhar vago.

—Primeiro, exijo uma garantia contra os ataques futuros aos habitantes de Aerlith.

Cinco grefos deverão permanecer aqui como reféns. Segundo - para dar maior segurança

à validezperpétua da garantia - você deverá me fornecer uma nave espacial, equipada,

energizada, armada, além de instruir-me quanto ao seu uso.

O Atirador jogou a cabeça para trás e produziu uma série de ruídos estranhos pelo

nariz.

—Terceiro, deve libertar todos os homens e mulheres que estão a bordo da nave.

O Atirador piscou e murmurou algumas palavras ásperas de espanto para os

Batedores. Estes se moveram, e impacientes, observando Kergan Banbeck com o canto

dos olhos, como se fosse não só um selvagem como também um louco. O pequeno

aparelho voador sobrevoava a região; o Atirador olhou para cima e pareceu receber algum

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conforto com sua visão. Voltando-se em seguida para Kergan Banbeck com uma atitude

firme e decidida, falou como se o diálogo anterior não houvesse sido trocado.

—Vim aqui informar-lhe que os vinte e três Venerados devem ser libertados

imediatamente.

Kergan Banbeck repetiu suas exigências.

—Forneça-me uma espaçonave, cesse os ataques a Aerlith e solte os prisioneiros.

Aceita ou não as condições?

O Atirador parecia confuso.

—Esta é uma situação peculiar... indefinida, inquantificada.

—Não entende minhas palavras? - gritou Kergan Banbeck exasperado. —Olhou de

relance para o sacerdote, num gesto que não correspondia à etiqueta, e agiu então de

maneira inteiramente não-ortodoxa.

—Sacerdote, como posso me fazer entender por este cabeça-dura? Ele parece que

não ouve.

O sacerdote deu um passo à frente, o rosto tão inexpressivo e sereno quanto antes.

Vivendo segundo uma doutrina que proibia a interferência ativa ou intencional nos

assuntos humanos, só podia dar uma resposta específica e limitada a qualquer pergunta.

—Ele está ouvindo suas palavras, mas não existe acordo de ideias entre os dois. A

estrutura mental dele deriva da de seus chefes, e corresponde à sua. Quanto à maneira de

entrar num acordo com ele, isto eu não posso adiantar.

Kergan Banbeck encarou novamente o Atirador.

—Ouviu o que lhe perguntei? Entendeu minhas condições para a libertação dos

grefos?

—Ouvi perfeitamente - retrucou este.

—Suas palavras não fazem sentido, são absurdos, paradoxos. Ouça-me com

atenção. você liberte os Venerados. É irregular, não é concebível que você tenha uma

nave, ou que as outras exigências sejam atendidas.

O rosto de Kergan Banbeck ficou rubro de cólera. Voltou-separa seus homens, mas,

moderando a ira, falou lentamente, com cuidadosa clareza.

—Eu tenho algo que você deseja. Você tem algo que eu desejo. Vamos negociar.

Durante vinte segundos os dois homens se encararam. Em seguida, o Atirador deu

um suspiro profundo.

—Vou empregar suas próprias palavras, para você entender. As certezas... não, não

as certezas. Existem coisas determinadas. Estas são as unidades de certeza, os quanta da

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necessidade e da ordem. A existência é a sucessão regular dessas unidades, uma após a

outra. A atividade do Universo pode ser expressa mediante estas unidades. A

irregularidade, o absurdo - são como meio homem, meio cérebro, meio coração, a metade

de todos os órgãos vitais. Essas coisas não podem existir. O fato de você manter

prisioneiros vinte e três Venerados é um absurdo deste tipo, um insulto ao fluxo racional do

Universo.

Kergan Banbeck atirou as mãos para o alto e voltou-se novamente para o sacerdote.

—Como posso terminar com essa incoerência? Como posso me fazer entender?

O sacerdote refletiu.

—Ele não diz coisas incoerentes. Emprega apenas uma linguagem que você não

pode entender. Você pode fazê-lo entender sua linguagem apagando todo o conhecimento

e a disciplina anteriores de sua mente, substituindo-os por padrões de sua mentalidade.

Kergan Banbeck lutou contra uma angustiante sensação de frustração e irrealidade.

A fim de obter respostas exatas do sacerdote, era necessário dirigir uma pergunta precisa;

aliás, era surpreendente que este sacerdote em particular permitisse ser interrogado.

Pensando cuidadosamente, Kergan indagou:

—Como sugere então que eu negocie com este homem?

—Liberte os vinte e três grefos.

O sacerdote tocou os dois botões na frente do colar dourado: gesto ritual indicando

que, embora com relutância, realizara um ato que provavelmente alteraria o curso do

futuro. De novo tocou no colar e entoou:

—Solte os grefos. Ele irá embora depois disso. Kergan Banbeck exclamou com raiva

incontida:

—A quem você serve? Aos homens ou aos grefos? Confesse a verdade! Fale!

—Por minha fé, por meu credo, pela verdade do meu tand, não sirvo a pessoa

alguma a não ser a mim mesmo.

O sacerdote voltou o rosto para o grande rochedo do Monte Gethron e afastou-se

lentamente, enquanto o vento soprava seus cabelos finos e compridos para os lados.

Kergan Banbeck observou-o enquanto se afastava; em seguida, com fria decisão,

voltou-se para o Atirador.

—Sua discussão de certezas e absurdos é interessante. Sinto que você confundiu as

duas coisas. Pelo menos do meu ponto de vista! Não vou libertar os vinte e três grefos a

menos que você atenda às minhas condições. Se nos atacar outra vez, vou cortar os

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prisioneiros ao meio, para ilustrar e concretizar sua figura de retórica, e para convencê-lo

talvez de que os absurdos são possíveis. Não tenho mais nada a acrescentar.

O Atirador sacudiu a cabeça lentamente, seu tom era de piedade:

—Ouça, vou me explicar melhor. Certas condições são inimagináveis,

inquantificáveis, não-destinadas...

—Vá embora! - trovejou Kergan Banbeck. —Caso contrário você vai se reunir aos

vinte e três venerados grefos, e eu vou ensinar-lhe a que ponto o inimaginável pode vir a

ser real!

O Atirador e os dois Batedores, murmurando e resmungando, voltaram-se,

afastaram-se das Pedras para a Beira Banbeck, descendo em direção ao vale. Em cima

deles o aparelho voador passou velozmente, descreveu uma curva, balançou e pousou

como uma folha que caísse.

Observando a retirada dos Básicos, os homens de Banbeck presenciaram logo em

seguida uma cena extraordinária. Pouco depois de regressar à nave, o Atirador tornou a

sair dela, pulando, dançando e fazendo cabriolas. Outros o seguiam - Atiradores,

Batedores, Tropas Pesadas e mais oito grefos - todos pulando, saltando, correndo de um

lado para o outro, com movimentos desordenados. As portinholas da nave projetavam

luzes de diversas cores e os homens de Banbeck ouviram o ruído crescente de máquinas

aceleradas ao máximo.

—Eles enlouqueceram! - murmurou Kergan Banbeck. Hesitou um segundo, depois

deu a ordem: Reúnam todos os homens. Vamos atacá-los enquanto estão indefesos!

Das Pedras desceram correndo os homens do Vale Banbeck. Enquanto corriam pelo

penhasco abaixo, alguns homens e mulheres aprisionados no Vale Sadro saíram

timidamente da espaçonave e, sem encontrar resistência, fugiram para a liberdade em

direção ao Vale Banbeck. Outros fizeram o mesmo - e, neste instante, os guerreiros de

Banbeck atingiram o leito do vale.

Perto da nave a loucura e o delírio tinham cessado; os alienígenas amontoavam-se

tranquilamente ao lado do casco bojudo. De repente, ouviu-se uma explosão atordoante e

a visão ofuscante de uma imensa labareda branca e amarela. A nave desintegrou-se. Uma

grande cratera abriu-se no chão; fragmentos de metal caíram sobre os guerreiros de

Banbeck que investiam sobre os inimigos.

Kergan Banbeck olhou estupefato para a cena de destruição. Lentamente, com os

ombros trêmulos, convocou seu povo e conduziu-o de volta para o vale devastado. Na

retaguarda, caminhando em fila indiana, amarrados com cordas, iam os vinte e três grefos,

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de olhos baixos, submissos, já distantes de sua existência anterior. A trama do Destino era

inevitável: as circunstâncias presentes não se aplicavam aos vinte e três Venerados. O

mecanismo deveria por isso adaptar-se para assegurar a progressão serenados

acontecimentos. Os vinte e três, portanto, eram outra coisa mais que Venerados: eram

uma ordem inteiramente diferente de criaturas. Se isto fosse verdade, o que eram eles de

fato? Dirigindo uns aos outros a mesma pergunta em vozes lastimosas e tristonhas, eles

desceram pelo rochedo íngreme em direção ao Vale Banbeck.

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CAPÍTULO 3

Durante os longos anos de Aerlith, as fortunas do Vale Feliz e do Vale Banbeck

oscilaram entre os grupos opostos dos Carcolos e Banbecks. Golden Banbeck, o avô de

Joaz, viu-se forçado a abandonar a clientela do Vale Feliz quando Uttern Carcolo, um

perfeito criador de dragões, produziu os primeiros Demônios. Golden Banbeck, por sua

vez, criou os Moloques, deixando que a situação de paz aparente perdurasse algum

tempo.

Os anos continuaram passando: Ilden Banbeck, o filho de Golden, homem frágil e

incapaz, morreu ao cair do alto de uma Aranha rebelde. Quando Joaz era ainda uma

criança doentia, Grode Carcolo decidiu tentar a sorte e investiu contra o Vale Banbeck.

Não contava, porém, com a presença do velho Hendel Banbeck, tio-avô de Joaz e Grão-

Mestre dos Dragões. As forças do Vale Feliz foram destroçadas no Precipício de

Starbreak; Grode Carcolo foi morto e o jovem Ervis ferido por um assassino. Por diversas

razões, incluindo a idade de Hendel e a juventude de Joaz, o exército de Banbeck não

soube tirar proveito da situação. Ervis Carcolo, embora exaurido pela perda de sangue e

dores violentas, fez uma retirada em perfeita ordem. Assim, durante anos, uma trégua

duvidosa foi mantida entre os vales vizinhos.

Joaz tornou-se um jovem melancólico. Embora não despertasse o entusiasmo nem a

afeição de seu povo, não provocava também desagrado total. Ele e Ervis Carcolo estavam

unidos por um desprezo mútuo. Ao ouvir falar do estúdio de Joaz, com seus livros,

pergaminhos, modelos e projetos, o complexo sistema ótico que permitia uma visão

completa sobre o Vale Banbeck (sistema fornecido, segundo rumores, pelos sacerdotes),

Carcolo levantava as mãos para o alto em sinal de desdém.

—Instrução? Uma ova! De que adiante esta mania de ficar vomitando coisas do

passado? Para onde leva tudo isso? Ele devia ter nascido sacerdote. No fundo pertence ao

mesmo tipo de gente débil, de boca amarga e mente confusa!

Um certo vendedor itinerante, um tal de Dae Alvonso, que combinava os ofícios de

menestrel, comprador de crianças, psiquiatra e quiroprático, transmitiu a Joaz as calúnias

de Carcolo. Joaz ouviu com indiferença.

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—Ervis Carcolo devia era cruzar-se com um dos seus Moloques - comentou Joaz. -

Produziria então uma criatura invencível, com a armadura dos Moloques e sua própria e

incurável estupidez.

A observação foi levada, no seu devido tempo, ao conhecimento de Carcolo e, por

coincidência, feriu-o num ponto especialmente vulnerável. Carcolo vinha tentando

secretamente uma inovação nas suas chocadeiras; um dragão que fosse tão possante

quanto um Moloque e tivesse a inteligência e a agilidade selvagem do Monstro Azul. Ervis,

no entanto, trabalhava seguindo uma teoria superotimista e intuitiva, ignorando por

completo os conselhos de Bast Givven, seu Grão-Mestre dos Dragões.

Os ovos chocaram e doze filhotes sobreviveram. Ervis Carcolo criou-os entre crises

alternadas de ternura e exasperação. Finalmente os dragões cresceram. A esperança de

Carcolo de produzir uma combinação de fúria e invencibilidade realizou-se concretamente

em quatro criaturas irritáveis e indolentes, de torsos balofos, pernas altas e esguias, apetite

insaciável. ("Como se alguém pudesse criar um dragão ordenando simplesmente: Exista!" -

comentou Bast Givven em tom de zombaria com seus ajudantes; depois advertiu-os:

"Cuidado com estes animais. São suficientemente hábeis para atrair um de vocês e

esmagá-los com uma pata!")

O tempo, o esforço, os cuidados, os alimentos gastos com estes híbridos inúteis

enfraqueceram o exército de Carcolo. Não lhe faltavam Megeras fecundas; havia número

suficiente de Assassinos de Chifres Compridos e de Assassinos Galopantes, mas os tipos

mais pesados e especializados, sobretudo os Moloques, estavam muito aquém dos seus

planos. A lembrança da antiga glória do Vale Feliz era a obsessão dos seus sonhos;

primeiro subjugaria o Vale Banbeck e, muitas vezes, planejava mentalmente a cerimônia

em que reduziria Joaz Banbeck à mera condição de servente dos peões.

As ambições de Ervis Carcolo eram complicadas por uma série de dificuldades. A

população do Vale Feliz tinha duplicado mas, em vez de aumentar a cidade furando novos

picos ou abrindo túneis, Carcolo construiu três novas chocadeiras de dragões, uma dúzia

de cocheiras e uma enorme pista de treinamento. Os habitantes do vale não tinham outra

alternativa senão apinhar-se nos fétidos túneis existentes ou construir habitações precárias

nas encostas dos morros. Criadeiras, cocheiras, picadeiros; a água era desviada do lago

para abastecer as chocadeiras; enormes quantidades de mantimentos eram destinadas à

alimentação dos dragões. O povo do Vale Feliz, subnutrido, doentio, miserável, não

partilhava nenhuma das aspirações de Carcolo - e a falta de entusiasmo da população o

enfurecia.

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Seja como for, quando o vendedor itinerante Dae Alvonso repetiu a recomendação de

Joaz Banbeck, segundo a qual Ervis Carcolo devia cruzar-se com um Moloque, Carcolo

ferveu de raiva.

—Uma ova! O que Joaz Banbeck sabe a respeito da criação de dragões? Duvido

inclusive que compreenda o dragonês!

Carcolo referia-se ao sistema pelo qual as ordens e instruções eram transmitidas aos

animais: um jargão secreto, peculiar a cada exército. Aprender a língua do dragão inimigo

era o principal objetivo do Mestre dos Dragões, uma vez que adquiriria assim um certo

grau de controle sobre as forças do inimigo.

—Eu sou um homem prático e valho por dois dele - prosseguiu Carcolo. —Ele sabe

porventura projetar, criar, educar e treinar dragões? Sabe impor disciplina, ensinar

ferocidade? Não. Deixa tudo isso a cargo dos mestres de dragões, enquanto se refestela

num sofá comendo gulodices e fazendo guerra apenas contra a paciência de suas virgens

trovadoras. Dizem que, por adivinhação astrológica, ele prediz a volta dos Básicos, que

anda como pescoço empinado, observando o céu. Um homem como este

—"De outra forma não haverá mais Vale Feliz. Nem haverá mais Ervis Carcolo."

—Que nada! - retrucou Carcolo em voz baixa. —Os micos só sabem dar gritinhos

histéricos.

—Talvez ele pretenda dar um conselho honesto. Suas palavras seguintes... Mas

tenho receio de ofender sua dignidade.

—Continue! Diga!

—Suas palavras foram estas... não, não ouso repeti-las. Em síntese, Joaz considera

ridículo seu esforço no sentido de formar um exército; ele compara desfavoravelmente sua

inteligência coma dele; e prevê...

—Basta! - berrou Ervis Carcolo, sacudindo os punhos cerrados. Ele é um adversário

sutil, mas por que você se presta ao seu joguinho?

Dae Alvonso balançou a cabeça branca.

—Estou apenas repetindo, e com relutância, o que ele me disse porque você

perguntou. Mas agora que tirou tudo de mim, retribua-me o favor. Não deseja comprar

alguns remédios, elixires, drogas ou poções? Tenho aqui o elixir da eterna juventude que

roubei do cofre pessoal do sacerdote Demie. Na minha carroça levo meninos e meninas,

crianças obedientes e bonitas a preço módico. Posso ouvir suas atribulações, curar seus

defeitos de pronúncia, garantir uma disposição tranquila... ou talvez adquirir alguns ovos

de dragões?

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—Não estou precisando de nada no momento - retrucouCarcolo. —Muito menos ovos

de dragões que dão cria de lagartos. Quanto às crianças o Vale Feliz está repleto delas.

Traga-me uma dúzia de bons Moloques e pode levar consigo uma centena de crianças à

sua escolha.

Dae Alvonso balançou tristemente a cabeça e se afastou. Carcolo debruçou-se sobre

a cerca de pedras, contemplando os currais de dragões.

O sol caía por trás dos rochedos do Monte Despoire; a noite se aproximava. Aquele

era o momento mais agradável do dia em Aerlith, quando o vento cessava, deixando

tranquilo o enorme vale aveludado. O brilho de Skene desfazia-se num amarelo

esfumaçado, dentro de uma auréola de bronze; as nuvens da tempestade noturna que se

aproximava juntavam-se, subindo e descendo; passavam, ondulando, brilhando e

mudando de tonalidade: ouro, laranja-acastanhado, ouro-velho e violeta.

Skene se pôs; os ouros e alaranjados passaram a tons marrons de carvalho e

púrpura; os relâmpagos rasgaram as nuvens e a chuva desabou como uma cortina negra.

Nas cocheiras os homens moviam-se com cuidado, porque agora os dragões tornavam-se

imprevisíveis - agressivos, apáticos ou agitados. Depois da chuva, a noite desceu

rapidamente; uma brisa fria e suave soprou pelos vales. No céu negro começaram a brilhar

com intensidade as estrelas do aglomerado. Uma das mais cintilantes emitia luz de cores

alternadas: vermelha, verde, branca.

Ervis Carcolo estudou cuidadosamente a estrela. Uma ideia levou à outra e logo a

uma sequência de ações que poderiam dissolver todas as incertezas e insatisfações que

amarguravam sua vida. Carcolo torceu a boca numa careta amarga; tinha que fazer

algumas propostas ao sonhador do Joaz Banbeck - já que era inevitável, que diabo!

Assim, na manhã seguinte, pouco depois que Phade, a virgem trovadora, descobriu o

sacerdote no estúdio de Joaz, um mensageiro apareceu no Vale, convidando Joaz

Banbeck para uma conferência com Ervis Carcolo no alto da Beira Banbeck.

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CAPÍTULO 4

Ervis Carcolo aguardava na Beira Banbeck com Bast Givven, Grão-Mestre dos

Dragões, e dois guias jovens. Atrás, em fileiras, estavam as montarias: quatro Aranhas

brilhantes, com os membros anteriores dobrados, as pernas estendidas em ângulos

exatamente iguais. Faziam parte da criação mais recente de Carcolo, que nutria um

orgulho desmedido por suas montarias. As barbelas que cingiam as faces córneas

estavam presas com cabochões de cinábrio; um círculo esmaltado de preto e enfeitado

com um cravo central cobria o peito dos animais. Os homens vestiam as tradicionais

calças pretas de couro, jaquetas castanho avermelhadas, capacetes pretos de couro, com

abanos compridos atrás das orelhas caindo sobre os ombros.

Os quatro homens aguardavam, pacientes ou inquietos segundo o temperamento de

cada um, percorrendo com a vista a extensão bem tratada do Vale Banbeck. Para o sul

estendiam-se os campos de hortaliças, ervilhaca, bellegarde, couve-flor, e um pomar de

ameixa amarela. Na direção oposta, perto da entrada da Fenda Clybourne, a forma da

cratera formada pela explosão da nave Básica ainda podia ser vista. Para o norte havia

mais campos, adiante os complexos dos dragões, formados de cocheiras de tijolos pretos,

a criadeira, o picadeiro de exercícios. Mais além estavam as Pedras de Banbeck, uma área

de terras desoladas, onde nas idades anteriores uma parte da montanha havia ruído,

criando uma visão desoladora de calhaus rolados semelhante ao Topo das Pedras, ao pé

do Monte Gethron, se bem que de menor extensão.

Um dos guias mencionou sem muito tato a prosperidade evidente do Vale Banbeck,

como se fosse uma crítica velada ao Vale Feliz. Ervis Carcolo ouviu-o de mau humor

durante alguns instantes, depois dirigiu-lhe um olhar altivo.

—Veja aquela represa ali - disse o guia. —Nós perdemos a metade de nossa água

com as infiltrações.

—É verdade - comentou o outro. —Aquele paredão de pedras é uma boa ideia. Não

entendo por que não construímos algo semelhante.

Carcolo fez menção de responder, mas depois mudou de ideia. Com um resmungo

abafado afastou-se dali. Bast Givvenfez um sinal e os dois guias calaram-se.

Poucos momentos depois Givven anunciou:

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—Joaz Banbeck está a caminho. Carcolo olhou para a Alameda Kergan.

—Onde está sua comitiva? Ou vem sozinho?

—É o que parece.

Poucos minutos depois Joaz Banbeck surgiu na Beira Banbeck cavalgando uma

Aranha enfeitada de veludo cinza e vermelho. Vestia um casaco comprido e amplo de

passeio, de um tecido marrom, ondulante, por cima da camisa cinza e de calças do mesmo

tom, e um chapéu de bico comprido de veludo azul. Levantou a mão num displicente gesto

de saudação; Ervis Carcolo respondeu bruscamente ao cumprimento; com um movimento

de cabeça dispensou Bast Givven e os dois guias que logo se afastaram.

—Você mandou uma mensagem pelo velho Alvonso – disse Carcolo com rispidez.

Joaz assentiu com a cabeça.

—Espero que ele tenha transmitido fielmente minhas observações...

Carcolo fez uma careta maldosa.

—Algumas vezes foi obrigado a abrandar suas palavras.

—O que revela tato da parte do velho Dae Alvonso.

—Pelo que entendi, você me considera impulsivo, incompetente, insensível aos

interesses do Vale Feliz. Alvonso admitiu que você empregou a palavra "imprudente" com

referência a mim.

Joaz sorriu com educação.

—Os sentimentos deste tipo são transmitidos melhor através de intermediários.

Carcolo reagiu com uma grande demonstração de tolerância.

—Pelo visto, você acredita na volta iminente dos Básicos.

—Exatamente. Se minha teoria estiver correta, isto é, se a estrela Coralyne for o seu

mundo, o Vale Feliz está seriamente ameaçado, como demonstrei a Alvonso.

—E por que também não o Vale Banbeck? - indagou Carcolo com irritação.

Joaz olhou surpreso para o homem à sua frente.

—Não é óbvio? Eu tomei as devidas providências. Meu povo está abrigado em túneis

e não em cabanas. Temos diversos caminhos de fuga, caso seja necessário, tanto em

direção às Pedras quanto ao Topo.

—Muito interessante - Carcolo fez um esforço para dominar a voz. —Se sua teoria for

correta - e não me pronuncio a este respeito - eu deveria tomar naturalmente algumas

precauções semelhantes. Mas eu penso em termos diferentes. Prefiro o ataque, a

atividade, à defesa passiva.

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—Fantástico - retrucou Joaz. - Os feitos importantes são realizados por homens como

voce.

Carcolo enrubesceu ligeiramente.

—Não se trata disso no momento. Eu vim propor um projeto em conjunto. É

inteiramente novo, mas cuidadosamente planejado. Considerei os diversos aspectos do

assunto durante muitos anos.

—Aguardo sua sugestão com o maior interesse - disse Joaz.

Carcolo estufou as bochechas.

—Você conhece as lendas tão bem quanto eu, ou talvez melhor. Nosso povo exilou-

se em Aerlith durante a Guerra das Dez Estrelas. A Coalizão do Pesadelo aparentemente

venceu a Regra Antiga, mas como a guerra terminou - ele levantou as mãos - isso

ninguém sabe...

—Há uma indicação significativa. Os Básicos visitam Aerlith de tempos em tempos e

nos saqueiam impunemente. Não vimos outros homens até hoje a não ser aqueles que

servem os Básicos.

—Homens? - repetiu Carcolo com desprezo. —Eu dou outro nome a eles. De

qualquer forma trata-se apenas de uma dedução e ignoramos a sequência da história.

Talvez os Básicos governem o aglomerado estelar, talvez eles nos ataquem somente

porque somos fracos e sem armas. Talvez sejamos os últimos homens; talvez a Regra

Antiga esteja em vias de ser imposta novamente. E não se esqueça que muitos anos já

passaram desde o último ataque dos Básicos a Aerlith.

—Muitos anos decorreram desde a última vez em que Aerlith e Coralyne estiveram

numa aposição conveniente.

Carcolo fez um gesto de impaciência.

—Suposição que pode ou não ser relevante. Deixe-me explicar o axioma básico da

minha proposta. É bastante simples. Penso que o Vale Banbeck e o Vale Feliz são uma

extensão de terra muito pequena para homens como nós. Merecemos um espaço vital

maior.

Joaz concordou.

—Gostaria que fosse possível não pensar nas dificuldades práticas para conseguir

isso.

—Estou pronto a sugerir um método que pode desfazer essas dificuldades.

—Neste caso, o poder, a glória e a riqueza também serão nossos.

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Carcolo fixou Joaz com atenção e bateu com a borla de contas douradas da bainha

de sua espada na perna.

—Pense nisso. Os sacerdotes já habitavam Aerlith antes de nós. Há quanto tempo,

ninguém sabe dizer. É um mistério. Por sinal, que sabemos nós dos sacerdotes? Quase

nada. Eles negociam o metal e o vidro em troca de alimentos, moram em cavernas

profundas, o credo deles é o afastamento, o devaneio, o desapego, ou como se quiser

chamar... algo totalmente incompreensível para alguém como eu. - Desafiou Joaz com o

olhar; Joaz simplesmente passou o dedo pelo queixo comprido.

—Eles se apresentam como simples pensadores metafísicos. Na realidade, são uma

gente muito misteriosa. Alguém já viu por acaso uma sacerdotisa? O que pensar das luzes

azuis, das torres de pára-raios, da magia dos sacerdotes? O que dizer de suas

peregrinações bizarras à noite, das formas estranhas que se movem no céu, talvez em

direção a outros planetas?

—Essas histórias existem certamente - concordou Joaz. —Quanto ao grau de

credibilidade que se possa atribuir a elas...

—Agora chegamos ao ponto crucial da minha proposta! - exclamou Ervis Carcolo.

—O credo dos sacerdotes proíbe aparentemente a vergonha, a inibição, o medo, o

receio das conseqüências. Daí eles serem obrigados a responder a qualquer pergunta que

lhes for dirigida. Entretanto, com credo ou sem credo, eles obscurecem completamente

qualquer informação que um homem perseverante possa obter deles à força de adulações.

Joaz examinou-o curiosamente.

—Pelo visto - disse - você já tentou algo neste sentido.

—Já. Por que haveria de negar? Interroguei os sacerdotes com determinação e

persistência. Responderam às minhas perguntas com seriedade e reflexão, mas não me

informaram nada - balançou a cabeça. —Em vista disso, sugiro que apliquemos a coação.

—Você é um homem corajoso. Carcolo balançou a cabeça com modéstia.

—Não empregaria medidas diretas. Mas eles têm que comer. Se o Vale Banbeck e o

Vale Feliz cooperarem, poderemos aplicar uma forma de persuasão bastante eficaz: a

fome. Então as palavras deles serão mais claras.

Joaz refletiu alguns instantes. Ervis Carcolo torceu a borlada bainha.

—Seu plano não é tolo. - disse Joaz por fim. —Pelo contrário, é até engenhoso... pelo

menos à primeira vista. Que tipo de informação você espera obter? Em suma, quais são

seus objetivos?

Carcolo aproximou-se e tocou Joaz com o dedo indicador.

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—Não sabemos nada dos mundos exteriores. Estamos abandonados aqui, neste

mundo miserável de pedras e ventos, a vida você se engana? Digamos que a Regra

Antiga tenha voltado... Pense nas cidades ricas, nas estações alegres de veraneio, nos

palácios, nas ilhas de prazer! Olhe para o céu à noite e pense nas maravilhas que podiam

ser nossa! Você me pergunta como podemos satisfazer estes desejos. Pois bem, o

sistema pode ser tão simples que os sacerdotes o revelem sem a menor relutância.

— Você quer dizer...

—A comunicação com os mundos dos homens! A salvação deste pequeno mundo

solitário nos confins do Universo!

Joaz Banbeck balançou a cabeça indeciso.

—Bela visão... mas as evidências sugerem uma situação bem diferente... a

destruição do Homem e do Império Humano.

Carcolo estendeu as mãos num gesto de tolerância e compreensão.

—Talvez você tenha razão. Mas por que não indagar estas coisas aos sacerdotes?

Minha proposta concreta é a seguinte. Primeiro é necessário que você e eu concordemos

com respeito ao objetivo comum. Depois solicitamos uma audiência ao sacerdote Demie e

fazemos nossas perguntas. Se ele responder livremente, tudo bem. Se se esquivar,

agimos de acordo com o combinado, negamos alimento aos sacerdotes até que nos

informem clara e francamente o que desejamos saber.

—Existem outros vales e ravinas - disse Joaz pensativamente.

Carcolo fez um gesto brusco.

—Podemos impedir qualquer comércio deste tipo pela persuasão ou pela força de

nossos dragões.

—A essência de sua ideia me agrada, mas receio que não seja tão simples assim.

Carcolo bateu na perna com a borla da bainha.

—E por que não?

—Em primeiro lugar, Coralyne brilha luminosamente no céu. Esta é nossa primeira

preocupação no momento. Se Coralyne passar ao largo, se os Básicos não nos atacarem,

aí sim poderemos tratar deste assunto. Além disso - o que se aplica mais imediatamente

ao caso - duvido que possamos levar os sacerdotes à submissão pela fome. Acho isso

muitíssimo improvável. Vou mais longe ainda. Considero a coisa impossível.

—Por que motivo?

—Eles andam nus pela neve e sob as tempestades. Você acha mesmo que receiam

a fome? Sem falar nos líquens selvagens que podem colher. Como poderíamos proibí-los

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disso? Você pode tentar algum tipo de coação, mas não eu. As histórias sobre os

sacerdotes talvez não passem de superstição... mas também podem ser a mais pura

realidade.

Ervis Carcolo deu um suspiro fundo de tédio.

—Joaz Banbeck, eu o julgava um homem de ação. Mas você

se acomoda simplesmente às falhas...

—Não são falhas, são erros graves que nos levariam ao desastre.

—Bem e, neste caso, qual seria sua sugestão? Joaz coçou o queixo.

—Se Coralyne se afastar e estivermos ainda em Aerlith - em lugar de aprisionados na

nave dos Básicos - vamos descobrir uma maneira de saquear os segredos dos sacerdotes.

Neste meio tempo, recomendo vivamente que você defenda o Vale Feliz contra um novo

assalto. Suas chocadeiras e cocheiras ocupam um espaço grande demais. Deixe-as de

lado por enquanto e construa túneis mais seguros para o povo.

Ervis Carcolo olhou diretamente para o Vale Banbeck a seus pés.

—Eu não sou um homem da defensiva. Ataco primeiro!

—Você vai atacar feixes de calor e raios iônicos com seus dragões?

Ervis Carcolo voltou a encarar Joaz Banbeck.

—Posso considerar que somos aliados no plano que propus?

—Em termos gerais, sim. Contudo, não desejo cooperar no sentido de coagir os

sacerdotes pela fome ou de outra forma qualquer. Pode ser perigoso, além de inútil.

Durante um instante Carcolo não conseguiu dominar o ódio que sentia por Joaz

Banbeck. Os lábios se contorceram, as mãos se crisparam.

—Perigo! Que perigo pode haver num punhado de pacifistas nus?

—Não sabemos se são pacifistas. Sabemos que são homens. Carcolo voltou a

aparentar uma alegre cordialidade.

—Talvez você tenha razão. Mas somos aliados... No essencial pelo menos.

—Até certo ponto.

—Perfeito. Sugiro então uma ação conjunta, com uma estratégia comum - no caso de

sermos atacados, bem entendido.

Joaz assentiu sem muita convicção:

—É. Pode funcionar.

—Vamos então coordenar nossos planos - continuou Carcolo. Digamos que os

Básicos desçam no Vale Banbeck. Sugiro que seu povo se refugie no Vale Feliz, enquanto

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o exército do Vale Feliz se une ao seu para cobrir a retirada. Da mesma forma, se

atacarem o Vale Feliz, meu povo irá refugiar-se no Vale Banbeck.

Joaz riu, divertido.

—Ervis Carcolo, que tipo de lunático você me considera? Volte para seu vale, ponha

de lado suas manias dementes de grandeza, cave uma proteção para si mesmo. E

depressa! Coralyne está brilhando!

Carcolo manteve-se rígido:

—Quer dizer que rejeita minha proposta de aliança?

—Claro que não. Mas não posso arcar com a proteção do seu povo se vocês não

fizerem nada neste sentido. Atenda minhas exigências, dê provas de que você é um aliado

à altura... e então voltaremos a falar sobre este assunto.

Ervis Carcolo fez meia-volta, acenou para Bast Givven e os dois guias. Sem mais

uma palavra e sem olhar para Joaz, montou na sua esplêndida Aranha, açulou o animal

numa corrida de saltos rápidos pela Beira Banbeck e pela encosta acima em direção ao

Precipício Starbreak. Seus homens o seguiram, se bem que menos precipitadamente.

Joaz observou a comitiva se afastar, meneando tristemente acabeça. Montou em

seguida na Aranha e voltou pela mesma trilha em direção ao Vale Banbeck.

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CAPÍTULO 5

O longo dia de Aerlith, equivalente a seis das antigas Unidades Diurnas, passou. No

Vale Feliz havia uma atividade febril, como se todos se preparassem para uma decisão

iminente. Os dragões exercitavam-se em formações cerradas, guias e cornetins davam

ordens em tom severo. No arsenal preparavam-se projéteis, misturava-se pólvora, poliam-

se e afiavam-se as espadas.

Ervis Carcolo cavalgava com uma ostentação dramática, esgotava as dezenas de

Aranhas que lhe serviam de montaria ao fazer os dragões descreverem diversas

evoluções. As forças do Vale dragões ativos de escamas cor de ferrugem-avermelhada,

cabeçasestreitas e afiladas, garras cortantes como formões. Os membros anteriores eram

fortes e bem desenvolvidos; usavam lanças, espadas curvas ou bastões com igual

habilidade. Um homem que investisse contra uma Megera não tinha a menor chance de

sucesso, uma vez que as escamas defendiam os animais tanto das balas quanto dos

golpes desferidos. Por outro lado, uma única cutilada do dragão, o corte da garra

semelhante a uma foice, significava morte para o homem.

As Megeras eram fecundas, robustas e floresciam mesmo nas condições existentes

nas criadeiras do Vale Feliz; daí a predominancia desses animais no exército de Cartolo.

Esta situação não era do agrado de Bast Givven, Grão-Mestre dos Dragões, homem

magro e vigoroso, de rosto chato e nariz aquilino, olhos pretos e parados como gotas de

nanquim num prato. Habitualmente casmurro e calado, tornava-se eloquente na sua

oposição ao ataque dirigido contra o Vale Banbeck.

—Veja bem, Ervis Carcolo, podemos contar com um bando de Megeras, com um

número suficiente de Assassinos Galopantes e de Assassinos de Chifres Compridos. Mas

não de Monstros Azuis, de Demônios nem de Moloques! Estamos perdidos se formos

apanhados numa emboscada nos precipícios!

—Não pretendo lutar nos precipícios - explicou Carcolo. —Vou forçar a batalha contra

Joaz Banbeck. Seus Moloques e Demônios são inúteis nos penhascos. Quanto aos

Monstros Azuis, estamos em igualdade de condição.

—Você subestima uma coisa - disse Bast Givven.

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—O quê?

—É improvável que Joaz Banbeck lhe conceda essa vantagem. Atribuo a ele uma

inteligência muito maior.

—Dê-me provas! - insistiu Carcolo.

—O que dele conheço só mostra vacilação e estupidez! Por isso vamos atacar,

rijamente. Carcolo bateu com o punho na palma da mão. —Só assim vamos exterminar os

orgulhosos Banbecks.

Bast Givven voltou-se para sair; Carcolo chamou-o com irritação.

—Você não demonstra muito entusiasmo por esta campanha!

—Eu sei o que nosso exército pode fazer e o que não pode. Se Joaz Banbeck é o

homem que você julga ser, vamos vencer. Se tiver ao menos a astúcia de alguns criados

que ouvi há dez minutos, vamos sofrer um sério revés.

Com a voz dura de raiva, Carcolo ordenou:

—Volte para seus Demônios e Moloques. Quero que consigam ser tão rápidos

quanto as Megeras.

Bast Givven tomou seu caminho. Carcolo pulou numa Aranha e esporeou-a com os

calcanhares. O animal saltou para a frente, parou repentinamente e torceu o pescoço

comprido para encarar Carcolo no rosto, que gritou:

—Toca, toca! Vamos à toda! Mostre a estes palermas o que significa ímpeto e

disposição!

A Aranha saltou com tanta força que Carcolo caiu para trás, indo bater de cabeça no

chão, onde permaneceu gemendo. Os criados acorreram rapidamente e levaram-no para

um banco onde se sentou praguejando em voz baixa. O médico examinou-o, apalpou-o,

recomendou que fosse levado imediatamente para o leito e receitou um calmante.

Carcolo foi levado para seu apartamento embaixo do muro oeste do Vale Feliz e, sob

o cuidado das esposas, dormiu durante vinte e quatro horas. Quando acordou, já passava

do meio-dia. Quis levantar-se, mas estava muito dolorido para se mover e, gemendo,

tornou a deitar-se. Chamou então Bast Givven, que veio ao quarto do doente e ouviu, sem

fazer nenhum comentário, suas recomendações. A noite desceu; os dragões voltaram às

cocheiras, não havia mais nada a fazer senão aguardar o amanhecer.

Durante a longa noite, Carcolo sujeitou-se a uma série de tratamentos: massagens,

banhos quentes, infusões e cataplasmas. Exercitou-se com disposição e, quando

amanheceu, declarou-se em perfeita forma física. No alto do céu a estrela Coralyne

vibrava em cores venenosas: vermelho, verde, branco, sem dúvida a estrela mais brilhante

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do aglomerado estelar. Carcolo recusou-se olhar para a estrela, mas o brilho dela atingia o

canto dos seus olhos por toda parte onde andasse no vale.

A madrugada aproximou-se. Carcolo planejou iniciar a marcha logo que os dragões

estivessem controláveis. Um relâmpagono oriente assinalou a aproximação da tempestade

matinal, ainda invisível no horizonte. Com grande cuidado os dragões foram levados de

suas cocheiras e enfileirados na coluna de marcha. Havia trezentas Megeras, oitenta e

cinco Assassinos Galopantes, um número igual de Assassinos de Chifres Compridos, uma

centena de Monstros Azuis, cinqüenta e dois Demônios imensamente poderosos, com

bolas de aço munidas de puas na extremidade da cauda, e dezoito Moloques. Os animais

grunhiam malignamente entre si, aguardando a oportunidade de ferir um ao outro ou de

arrancar a perna de um criado desatento. A escuridão lhes estimulava o ódio cada vez

maior pela humanidade, embora não soubessem nada do passado, nem das

circunstâncias em que haviam sido escravizados.

Os relâmpagos da madrugada coriscavam e trovejavam, iluminando as ribanceiras,

os picos prodigiosos das Montanhas do Malheur. A tempestade passou lá no alto,

deslocando-se com suas rajadas de vento e chuvas torrenciais para o Vale Banbeck. O

oriente brilhava com uma luz pálida cinza-esverdeada. Carcolo deu o sinal da partida.

Ainda dolorido e com os membros endurecidos encaminhou-se cambaleante para sua

Aranha; montou e ordenou que a montaria praticasse uma curveta especial e dramática.

Mas Carcolo calculou mal; a malícia da noite dominava ainda a mente do dragão. O animal

terminou a curveta com um movimento brusco do pescoço que atirou novamente Carcolo

no chão, onde permaneceu meio louco de dor e de raiva.

Tentou levantar, tornou a cair; tentou de novo, perdeu os sentidos. Durante cinco

minutos permaneceu inconsciente, depois pareceu despertar por pura força de vontade.

—Levantem-me - falou com voz fraca. —Amarrem-me na sela. Vamos marchar.

Como a ordem era evidentemente impossível de ser cumprida, ninguém fez um

movimento. Carcolo enfureceu-se e chamou aos berros Bast Givven.

—Siga em frente. Não podemos parar agora. Você assumirá o comando das tropas.

Givven assentiu com desânimo. Aquela honra não lhe agradava nada.

—Você conhece o plano da batalha - arquejou Carcolo. —Contorne o norte da Garra,

atravesse o Skanse a toda velocidade, tome a direção norte contornando da Fenda Azul,

depois siga para o sul ao longo da Beira Banbeck. É ali que Joaz Banbeck dará por sua

presença e você deverá assumir a posição de ataque demaneira que, no momento em que

ele avançar com seus Moloques, poderá vencê-lo com nossos Demônios. Evite empregar

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nossos Moloques, persiga o inimigo com as Megeras, reserve os Assassinos para o ataque

quando chegar o momento decisivo. Você me entende, não?

—Teoricamente, pelo que você fala, a vitória é certa - murmurou Bast Givven.

—Não só teoricamente, a menos que você cometa erros graves. Ah, minhas costas!

Não posso me mexer. Enquanto a grande batalha é travada, vou ter que ficar sentado aqui

vendo os ovos chocarem na criadeira! Parta agora! Combata corajosamente pelo Vale

Feliz!

Givven deu uma ordem e as tropas puseram-se em marcha. As Megeras pularam na

frente, seguidas pelos sedosos Monstros Galopantes e pelos pesados Assassinos de

Chifres Compridos, com os fantásticos espigões no peito terminando em aço. Atrás iam os

maciços Moloques, grunhindo, rugindo, os dentes chocando-se uns contra os outros com a

vibração de seus passos.

Ladeando os Moloques marchavam os Demônios, carregando espadas curvas,

brandindo suas bolas de aço nos rabos como o escorpião balança seu ferrão. Depois, na

retaguarda, iam os Monstros Azuis, dragões robustos e rápidos, bons trepadores, tão

inteligentes quanto as Megeras. Nos flancos marchava uma centena de homens: mestres

de dragões, cavaleiros, guias e cornetins. Estavam armados com espadas, pistolas e

grandes bacamartes.

Carcolo, deitado na maca, observava a marcha até que o último homem desapareceu

de vista; mandou então que o transportassem para o portal que conduzia às cavernas do

Vale Feliz. Nunca antes as cavernas lhe pareceram tão miseráveis e vazias. Com

amargura, contemplou as fileiras de barracões ao longo da montanha, construídas de

rochas, lâminas de líquen impregnadas de resina, juncos colados com piche. Quando

terminasse a campanha Banbeck, construiria novos aposentos e salões nos penhascos. As

esplêndidas decorações da Aldeia Banbeck eram bem conhecidas; o Vale Feliz seria ainda

mais magnífico. Os salões brilhariam com opalina e madrepérola, prata e ouro. Mas com

que finalidade, afinal? Se os acontecimentos seguissem o curso planejado, havia a

perspectiva de realização de seu grande sonho. Neste caso, que propósito teriam umas

míseras decorações nos túneis do ValeFeliz?

Gemendo, deixou que o deitassem na cama e distraiu-se imaginando o andamento

da marcha. Agora as tropas deveriam estar avançando pela Cordilheira do Balanço,

contornando a Garra de um quilômetro e meio de altura. Tentou estender os braços,

esticar as pernas. Os músculos protestaram, a dor percorria o corpo de alto a baixo - mas

lhe pareceu que o sofrimento era menor do que antes. Agora o exército estaria subindo as

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plataformas que circundavam a grande área de precipícios altos, conhecida como o

Skanse. O médico deu uma poção a Carcolo; ele bebeu e dormiu. Acordou mais tarde com

um sobressalto. Que horas seriam?

Suas tropas já deviam ter iniciado o combate! Ordenou que o levassem para o portão

exterior; ainda insatisfeito, mandou que os criados o transportassem pelo vale para a nova

criadeira dos dragões, cujo caminho oferecia uma vista panorâmica da parte alta e baixa

do vale. Apesar dos protestos das esposas, foi levado para lá e encontrou algum conforto

na medida em que lhe permitiam as contusões.

Dispôs-se a esperar o tempo necessário, mas as notícias não tardaram a chegar.

Do caminho norte surgiu um cornetim montado numa Aranha coberta de espuma.

Carcolo mandou um criado interceptá-lo e, indiferente às dores, levantou-se do leito. O

cornetim saltou do animal, subiu vacilante a rampa e caiu exausto contra o parapeito.

—Emboscada! - exclamou ofegante. —Um revés pavoroso!

—Emboscada? - repetiu Carcolo com a voz sumida. —Onde?

—Quando subíamos as plataformas do Skanse. Esperaram até que nossas Megeras

e Assassinos chegassem ao alto, aí atacaram com Monstros, Demônios e Moloques.

Dividiram nossas tropas ao meio, fizeram-nos recuar e depois rolaram blocos de pedra

sobre nossos Moloques. Nosso exército foi destroçado!

Carcolo afundou na cama, olhando para o céu.

—Quantos perdidos?

—Não sei. Givven mandou tocar a retirada. Recuamos do jeito que foi possível.

Carcolo continuou deitado como se estivesse em coma, enquanto o cornetim afundou

em cima de um banco.

Uma coluna de poeira surgiu ao norte, depois se dissolveu, fazendo ver um certo

número dos dragões do Vale Feliz. Todos estavam feridos; marchavam, saltavam,

mancavam, arrastavam se ao acaso, rosnando, grunhindo, esbravejando. Primeiro veio um

grupo de Megeras, balançando as cabeças horríveis de um lado para o outro; depois um

par de Monstros Azuis, que contorciam os membros anteriores como se fossem braços

humanos; depois um Moloque, maciço como um sapo, com as pernas abertas de cansaço.

Ao aproximar-se das cocheiras, tropeçou e caiu com um baque surdo no chão, onde

permaneceu imóvel, com as pernas e as garras levantadas para o alto.

Do caminho norte surgiu Bast Givven, coberto de poeira e de olhos esbugalhados.

Desmontou de sua Aranha exausta, subiu a rampa. Com um esforço inaudito, Carcolo

levantou-se novamente do leito.

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Givven narrou as peripécias do dia com a voz tão igual e serena que parecia

indiferente, mas mesmo o insensível Carcolo não se iludiu. Perguntou estupefato:

—Exatamente onde ocorreu a emboscada?

—Subimos as plataformas passando pela Ravina Chloris. No local onde o Skanse se

precipita na ravina há um afloramentode pórfiro. Foi ali que nos atacaram.

Carcolo deu um assobio por entre os dentes.

—Inacreditável.

Bast Givven balançou levemente a cabeça.

—Digamos que Joaz Banbeck tenha partido antes da tempestade matutina - disse

Carcolo - uma hora antes do que julgaria possível. Suponhamos que tenha levado suas

tropas numa marcha acelerada. Como pode, mesmo assim, ter chegado às plataformas

antes de nós?

—Na minha opinião - retrucou Givven - a emboscada não era uma ameaça até

termos atravessado o Skanse. Eu tinha planejado patrulhar o Barchback, em toda a

extensão do Precipício Azul e da Fenda Azul.

Carcolo concordou com ar sombrio.

—Como foi então que Joaz Banbeck levou suas tropas para as plataformas tão cedo?

Givven voltou-se, olhou para o vale abaixo, onde dragões e homens feridos arrastavam-se

pelo caminho do norte.

—Não tenho ideia.

—Alguma droga? - sugeriu Carcolo, intrigado. —Uma poção para pacificar os

dragões? Será possível que tenha passado a noite inteira acampado no Skanse?

—A última suposição é plausível - admitiu Givven de mau humor. —Embaixo do

Espigão Barch há cavernas vazias. Se Joaz alojou ali suas tropas durante a noite, teve

apenas que atravessar o Skanse para nos alcançar.

—Talvez tenhamos subestimado Joaz Banbeck - murmurou Carcolo com raiva. Caiu

deitado no leito com um gemido.

—Quais foram nossas perdas no total?

Os cálculos de perdas apresentavam números bem altos. Do esquadrão já

insuficiente dos Moloques, somente sobraram seis. De uma força de cinqüenta e dois

Demônios, quarenta sobreviveram sendo que cinco estavam feridos. As Megeras,

Monstros Azuis e Assassinos sofreram terríveis baixas. Uma grande parte alto nos

precipícios, onde enterraram suas presas poderosas no meio dos detritos. Dos cem

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homens, doze foram mortos à bala, outros quatorze atacados por dragões; uns vinte outros

estavam feridos em diversos graus.

Carcolo continuou deitado, de olhos fechados, com os lábios trêmulos.

—Foi o terreno que nos salvou - continuou Givven. —Joaz Banbeck não quis levar

suas tropas até a ravina. Se houve algum erro tático de um dos lados, foi certamente este.

Ele trouxe um número insuficiente de Megeras e de Monstros Azuis.

—Belo consolo... - murmurou Carcolo. —Onde estão as reservas?

—Mantemos uma boa posição na Cordilheira do Balanço. Não vimos nenhum dos

batedores de Banbeck, nem homens nem Megeras, e é provável que Joaz Banbeck pense

que voltamos para o vale. De qualquer maneira, suas forças principais ainda estavam

reunidas no Skanse.

Carcolo fez um esforço enorme para levantar-se. Saiu cambaleando pelo passadiço e

olhou do alto para o dispensário. Cinco Demônios estavam mergulhados em tinas de

bálsamo, suspirando alto. Um Monstro Azul estava pendurado numa funda, bramindo,

enquanto os cirurgiões cortavam fragmentos quebrados da armadura de sua carne

cinzenta. Enquanto Carcolo observava a cena, um dos Demônios levantou-se nas duas

pernas anteriores, a espuma jorrando da goela. Urrou num tom pungente e peculiar; depois

caiu para trás e afundou, morto, na tina de bálsamo.

Carcolo voltou-se para Givven.

—Você vai fazer o seguinte. Joaz Banbeck deve ter enviado batedores. Retire suas

tropas ao longo da Cordilheira do Balanço. Depois de se exibir claramente às patrulhas de

Joaz, siga na direção de uma das Gargantas Despoire... a Garganta Turmalina serve

perfeitamente. Meu raciocínio é o seguinte: Joaz pensará que você está se retirando para

o Vale Feliz e irá à toda em direção ao sul, atrás da Garra, para atacar suas tropas que

descem pela Cordilheira do Balanço. Ao passar pela Garganta Turmalina, você terá a

vantagem do terreno e poderá destruir Joaz Banbeck com todo seu exército.

Bast Givven sacudiu a cabeça com firmeza.

—E o que acontecerá se os batedores deles nos localizarem a despeito de nossas

precauções? Joaz precisa apenas seguir nossas pegadas para nos encurralar na Garganta

Turmalina, sem outra saída a não ser pelo alto do Morro Despoire, ou então pelo Precipício

Starbreak. Mas se nos aventurarmos neste precipício, os Moloques de Banbeck nos

destruirão em questão de minutos.

Ervis Carcolo afundou pesadamente no leito.

—Traga as tropas de volta para o Vale Feliz. Vamos aguardar outra oportunidade.

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CAPÍTULO 6

Aberto no penhasco, ao sul do rochedo que abrigava os apartamentos de Joaz, havia

um grande aposento conhecido como Salão de Kergan. As proporções da peça, a

simplicidade e ausência de ornamentos, a mobília antiga e pesada contribuíram para o

clima peculiar do ambiente da mesma forma que o odor que ali dominava. O cheiro

provinha das paredes de pedras nuas, do piso petrificado e atapetado de musgo, da

madeira antiga - perfume forte e penetrante que desagradava sempre a Joaz, assim como

todos os outros aspectos do aposento. As dimensões exageradas pareciam-lhe

arrogantes, a ausência de ornamentos davam a impressão de rudeza e mesmo

brutalidade. Certo dia ocorreu a Joaz que não era tanto o ambiente que lhe desagradava,

quanto o próprio Kergan Banbeck, juntamente com todo o repertório de histórias

fantasiosas que o cercavam.

A peça, na realidade, era agradável em muitos aspectos. Três janelas altas de

nervuras davam para o vale. Os caixilhos eram feitos de pequenos painéis quadrados de

vidro azul-esverdeado montados em batentes de pau-ferro preto e o teto também era

recoberto de madeira. Pelos detalhes podia-se ver que naquele cômodo fora permitida

uma certa dose do típico requinte dos Banbeck. Havia colunas pintadas com cabeças de

gárgulas, um friso esculpido com florões convencionais. A mobília era composta de três

peças - duas cadeiras altas, trabalhadas à mão, e uma mesa maciça, todas de madeira

preta envernizada e de respeitável antiguidade.

Joaz encontrara finalmente uma utilidade para a sala. Em cima da mesa estava um

mapa em relevo cuidadosamente detalhado do distrito, na escala de três polegadas por

milha. No centro avistava-se o Vale Banbeck, à direita o Vale Feliz, separados por um

turbilhão de rochedos e de abismos, penhascos, espigões, paredões colossais e cinco

picos gigantescos: o Monte Gethron ao sul, o Monte Despoire no centro, o Espigão Barch,

a Garra e o Monte Halcyon ao norte.

Diante do Monte Gethron estava o Topo das Pedras; o Precipício Starbreak, por sua

vez, estendia-se até o Monte Despoire e o Espigão Barch. Além do Monte Despoire, entre

as plataformasdo Skanse e do Brachback, o Skanse propriamente dito cobria toda a

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extensão do solo até as ravinas e encrespadas escarpas de basalto aos pés do Monte

Halcyon.

Enquanto Joaz estudava o mapa, Phade entrou na sala, sem fazer o menor ruído.

Joaz percebeu, porém, sua presença pelo odor de incenso em cuja fumaça ela se banhara

antes de procurar Joaz. A moça usava o costume tradicional em Banbeck nos dias de festa

- túnica justa de intestino de dragão, com um regalo de pele marrom no pescoço, nos

cotovelos e nos joelhos. O chapéu alto e cilíndrico, trabalhado na borda superior, caía

sobre os cachos castanhos e bonitos, enquanto no alto balançava uma pluma vermelha.

Joaz fingiu não perceber sua presença; a jovem aproximou-sede suas costas e lhe

fez cócegas no pescoço com a pele da gola. Joaz demonstrou uma indiferença impassível;

Phade, sem se deixar iludir, fez uma expressão de tristeza e preocupação.

—Nós vamos ser todos mortos? Como vai a guerra?

—Muito bem para o Vale Banbeck. E muito mal para Ervis

—Você está planejando sua destruição! - exclamou Phade. —Você vai matá-lo!

Pobre Ervis Carcolo!

—Ele bem merece.

—E o que será do Vale Feliz? Joaz Banbeck balançou os ombros.

—Irá melhorar certamente.

—Você será o novo governante?

—Não, eu não.

—Pense só! - murmurou Phade. —Joaz Banbeck, Tirano do Vale Banbeck, do Vale

Feliz, da Ravina Phosphor, de Glore, de Tarn, de Clewhaven e do Grande Rift do Norte!

—Não. A menos que você queira governar em meu lugar.

—Ah, sim! E que grandes mudanças ocorreriam! Vestiria os sacerdotes com fitas

vermelhas e amarelas. Ordenaria que cantassem, dançassem e bebessem o vinho de

maio. Mandaria os dragões para a Arcádia, com exceção de algumas Megeras delicadas

que tomariam conta das crianças. E não haveria mais estas batalhas furiosas. Queimaria

as armaduras e partiria as espadas. Eu...

—Minha mariposinha querida - disse Joaz com um sorriso - que reino efêmero você

teria!

—Por que efêmero? Por que não eterno? Se os homens não tivessem meios de

lutar...

—E quando os Básicos invadissem nossas terras, você atiraria guirlandas em seus

pescoços?

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—Que nada! Eles nunca mais voltarão. Afinal de contas o que ganham molestando

alguns vales remotos como este?

—Quem sabe o que eles ganham? Nós somos homens livres... talvez os últimos

homens livres do Universo. Quem sabe? Será realmente que eles voltarão? Coralyne está

brilhando no céu.

Phade mostrou-se subitamente interessada no mapa em relevo.

—E a guerra atual... terrível! Você vai atacar, ou se defender?

—Tudo depende de Ervis Carcolo. Preciso apenas aguardarque ele se exponha. -

Depois de olhar para o mapa acrescentou pensativamente: —Ervis é bastante inteligente

para me causar danos se eu não agir com cautela.

—E o que acontecerá se os Básicos voltarem quando vocês estiverem lutando?

Joaz sorriu.

—Talvez fujamos todos para as Pedras. Talvez lutemos juntos.

—Eu vou lutar com você - disse Phade assumindo uma atitude corajosa. —Vamos

atacar á grande nave dos Básicos, enfrentar os raios de calor e os dardos de energia.

Vamos investir contra a porta da nave e puxar o nariz do primeiro aventureiro que se

apresentar!

Num ponto pelo menos sua tática deixa a desejar. Como você vai localizar o nariz de

um Básico?

—Neste caso, vamos pegar no... —Ela voltou a cabeça ao ouvir um ruído no

vestíbulo. Joaz atravessou o quarto a passos largos e abriu a porta bruscamente. O

porteiro Rife adiantou-se.

—Recebi ordens para chamá-lo quando a garrafa derramasse ou quebrasse. Pois

bem, aconteceram as duas coisas, irremediavelmente, há menos de cinco minutos.

Joaz afastou Rife do caminho e desceu correndo pelo corredor.

—O que significa isso? - perguntou Phade. —Rife, o que você disse que deixou Joaz

tão perturbado?

Rife balançou a cabeça com impaciência.

—Eu estou tão espantado quanto ele. Uma garrafa me foi confiada. "Observe esta

garrafa noite e dia." Essa foi a ordem. E mais, "Se a garrafa quebrar ou entornar, chame-

me imediatamente." Eu disse a mim mesmo que nesse negócio, com toda certeza, tem

alguma coisa por trás. Ou será que Joaz me considera tão senil a ponto de me confiar uma

tarefa tão idiota quanto vigiar uma garrafa? Eu sou velho, meu queixo treme, mas não sou

imbecil. Pois bem. Para minha surpresa, não é que a garrafa quebrou sozinha? A

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explicação é certamente banal: caiu simplesmente no chão. Mesmo assim, sem saber o

que tudo isso quer dizer, obedeço às ordens e contei imediatamente o ocorrido a Joaz.

Phade não controlou a impaciência.

—Onde está afinal essa garrafa?

—No estúdio de Joaz Banbeck.

Phade correu tão depressa quanto permitia a túnica justa sobre as pernas.

Atravessou o túnel, passou por cima da ponte coberta da Alameda Kergan, subiu em

seguida a rampa em direçãoaos apartamentos de Joaz.

Atravessou o comprido vestíbulo, passou pela antecamara onde uma garrafa estava

quebrada no chão e rumou em direção ao estúdio, onde parou perplexa. Não havia

ninguém ali. Observou a seção da estante que formava um ângulo na parede.

Demansinho, com receio, atravessou a sala e espiou para dentro da oficina de Joaz.

A cena era bastante estranha. Joaz estava muito à vontade, com um sorriso frio nos

lábios, enquanto do outro lado da peça um sacerdote nu procurava inutilmente remover um

obstáculo que fechava uma área da parede. A porta estava bem trancada e os esforços do

sacerdote foram totalmente vãos. Voltou-se, lançou um olhar breve para Joaz e dirigiu-se

para a saída que dava para o estúdio.

Phade prendeu a respiração e recuou um passo.

O sacerdote entrou no estúdio e dirigiu-se para a porta.

—Um momento! - exclamou Joaz. —Desejo falar com o senhor.

O sacerdote parou e voltou a cabeça com um gesto sereno de dúvida. Era um jovem

de rosto suave, inexpressivo, quase bonito. A pele transparente e fina cobria os ossos

pálidos; os olhos, grandes, azuis, inocentes, pareciam olhar sem focalizar nada em

especial. Era de físico delicado e de porte esbelto; as mãos finas, com dedos que tremiam

de nervosismo. Por cima das costas, quase até a cintura, descia a cabeleira comprida de

fios castanhos.

Joaz sentou-se com deliberado espalhafato, sem afastar os olhos do sacerdote.

Falou então num tom que não dissimulavaum certo enfado.

—Sua conduta me parece muito pouco delicada. Tratava-se de uma afirmação que

não exigia resposta, e o sacerdote guardou silêncio.

—Sente-se ali, por favor - disse Joaz, indicando um banco. Você tem muito que

explicar.

Foi apenas imaginação de Phade ou uma faísca de surpresa divertida brilhou e

morreu quase instantaneamente nos olhos do jovem sacerdote? Também dessa vez não

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deu resposta. Joaz, adaptando-se às normas peculiares mediante as quais a comunicação

deve ser conduzida com os sacerdotes, indagou:

—Deseja sentar-se ali?

—Não faz diferença - disse o sacerdote. —Como já estou em pé, vou ficar de pé.

Joaz levantou-se da cadeira e fez um gesto sem precedente. Empurrou o banco para

trás do sacerdote, deu com a quina da mão na parte de trás de seus joelhos e o empurrou

firmemente sobre o banco.

—Como você está sentado, pode continuar sentado. Com uma delicada dignidade o

sacerdote levantou-se.

—Vou continuar em pé. Joaz balançou os ombros.

—Como desejar. Pretendo dirigir-lhe algumas perguntas. Espero que coopere e

responda com precisão.

O sacerdote piscou os olhos como uma coruja.

—Irá fazer isso?

—Certamente. Mas prefiro voltar pelo caminho que tomei para vir aqui.

Joaz ignorou o comentário.

—Primeiro, o que você veio fazer em meu estúdio?

O sacerdote respondeu cuidadosamente, com a voz de alguém que se dirige a uma

criança.

—Sua linguagem é vaga. Estou confuso e não devo responder, uma vez que fiz o

voto de dizer apenas a verdade a quem a deseja ouvir.

Joaz ajeitou-se na cadeira.

— Não tenho pressa. Estou disposto a ter uma longa conversa. Vou perguntar então...

Você teve algum impulso explicável que o persuadiu ou o impeliu a vir ao meu estúdio?

—Sim.

—Quantos desses impulsos você reconhece?

—Não sei.

—Mais de um?

—Talvez.

—Menos de dez?

—Não sei.

—Hummm... Por que está indeciso?

—Eu não estou indeciso.

—Então por que não pode especificar o número indagado?

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—Não há este número.

—Entendo. Quer dizer, então, que há diversos elementos de um único motivo, que

dirigiu seu cérebro para ativar seus músculos, de maneira que o trouxessem aqui?

—Possivelmente.

Os lábios finos de Joaz esboçaram um sorriso de triunfo.

—Você pode descrever um elemento do motivo decisivo?

—Sim.

—Descreva-o, então.

Havia um imperativo contra o qual o sacerdote estava protegido. Qualquer forma de

coação conhecida de Joaz - fogo, espada, sede, mutilação - não era mais para o sacerdote

do que mera inconveniência; ignorava-as como se não existissem. Seu mundo pessoal

interior era o único mundo da realidade. Agindo ou reagindo diante de situações criadas

pelos homens, a passividade e a candura absoluta eram suas respostas obrigatórias.

Compreendendo alguma coisa disso, Joaz reformulou a ordem.

—Pode pensar num elemento do motivo que o impeliu a vir aqui?

—Sim.

—Qual foi?

—O desejo de vagar.

—Pode pensar em outro?

—Sim.

—Qual é?

—O desejo de exercitar-me andando.

—Entendo. Por falar nisso, você está procurando esquivar se às minhas perguntas?

—Respondo às perguntas que me são feitas. Enquanto agir assim, enquanto abrir

minha mente a todos que buscam o conhecimento - porque este é nosso credo - não há

questão de evasão.

—É o que você diz. No entanto, você não me deu uma resposta que me pareça

satisfatória.

A resposta do sacerdote ao comentário foi uma dilatação quase imperceptível das

pupilas.

—Está certo então - disse Joaz. —Pode pensar em outro motivo para ter vindo até

aqui?

—Sim.

—Qual é?

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PDL – Projeto Democratização da Leitura

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—Interesso-me por antiguidades. Vim ao seu estúdio admirar as relíquias dos

mundos antigos.

—Ah, sim? - Joaz levantou as sobrancelhas. —Tenho sorte de possuir estes tesouros

fascinantes. Qual das minhas antiguidades interessou-o especialmente?

—Os livros, os mapas, o grande globo do Arquimundo.

—O Arquimundo? O Éden?

—Este é um dos seus nomes.

Joaz franziu os lábios.

—Quer dizer então que veio aqui estudar minhas antiguidades. Muito bem, que

outros elementos existem para este motivo?

O sacerdote hesitou um instante.

—Foi-me sugerido que viesse aqui.

—Por quem?

—Pelo Demie.

—Por que ele sugeriu isso?

—Estou incerto.

—Não pode conjeturar?

—Sim.

—Quais são essas conjecturas?

O sacerdote fez um pequeno gesto delicado com os dedos.

—O Demie pode desejar tornar-se um Homem Total e procura aprender assim os

princípios de sua existência. Ou talvez queira trocar alguns artigos com o senhor. Ou pode

estar fascinado com a descrição de suas antiguidades. Ou pode estar curioso com respeito

ao foco dos painéis de visão. Ou...

—Basta. Qual destas conjecturas, ou de outras conjecturas possíveis, considera a

mais provável?

—Nenhuma.

Joaz tornou a levantar as sobrancelhas.

—Como justifica isso?

—Uma vez que qualquer número desejado de conjecturas pode ser formado, o

denominador de uma razão de improbabilidade é variável e o conceito inteiro torna-se sem

sentido.

Joaz fez cara de enfado.

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PDL – Projeto Democratização da Leitura

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—Das conjecturas que lhe ocorreram até o momento, qual delas considera a mais

provável?

—Suspeito que o Demie julga desejável que eu venha aqui para ficar em pé.

—O que você obtém ficando em pé?

—Nada.

—Neste caso, o Demie não lhe mandou aqui para ficar em pé.

O sacerdote não fez nenhum comentário à afirmação de Joaz. Este formulou a

pergunta com um cuidado maior.

—O que você pensa que o Demie pretende obter mandando-o vir até aqui para ficar

em pé?

—Creio que deseja que eu aprenda como os Homens Totais pensam.

—E você aprendeu como eu penso vindo até aqui?

—Estou aprendendo muita coisa.

—De que maneira isso o ajuda?

—Não sei.

—Quantas vezes você visitou meu estúdio?

—Sete vezes.

—Por que você, especialmente, foi escolhido para vir aqui?

—O sínodo aprovou o meu tand. Talvez seja eu o próximo Demie.

Joaz falou de lado para Phade:

—Prepare o chá.

Voltou-se em seguida para o sacerdote.

—O que é o tand?

O sacerdote deu um suspiro fundo.

Meu tand é a representação de minha alma.

—Hummm. Com que se parece?

A expressão do sacerdote foi indefinida.

—Não pode ser descrito.

—Eu tenho um?

—Não.

Joaz balançou os ombros.

—Então você pode ler meus pensamentos. Silêncio.

—Você pode ler meus pensamentos?

—Não muito bem.

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—Por que você deseja ler meus pensamentos?

—Estamos vivos no mesmo Universo. Como não temos permissão para agir, somos

obrigados a conhecer.

Joaz sorriu ceticamente.

—Como o conhecimento o ajuda se você não age segundo o que sabe?

—Os conhecimentos seguem a Base Racional, da mesma forma que a água corre

para um buraco e forma um poço.

—Conversa! — exclamou Joaz subitamente irritado. — Sua doutrina obriga-o a não

interferir em nossos assuntos. Entretanto, você permite que a "Base Racional" crie

condições graças às quais os fatos são influenciados. Isto é correto, por acaso?

—Não estou certo. Somos um povo passivo.

—Mas o Demie tinha um plano em mente quando o mandou aqui. Correto?

—Não posso dizer.

Joaz passou para outra linha de perguntas.

—Para onde leva o túnel atrás da minha oficina?

—Para uma caverna.

Phade colocou o bule de prata diante de Joaz. Ele serviu-se e provou a bebida

pensativamente. Havia variedades incontáveis de disputas; o sacerdote e ele estavam

disputando um jogo de palavras e de ideias. O sacerdote era treinado na arte da paciência

e da evasiva; Joaz, por sua vez, podia contar com o orgulho e a determinação. O

sacerdote levava a desvantagem de ter a necessidade inata de dizer a verdade; Joaz, por

seu lado, tinha que tatear como um cego, ignorando o objetivo que buscava, o prêmio a ser

ganho. Muito bem, pensou Joaz, vamos continuar a partida. Vamos ver quem cede

primeiro. Ofereceu chá ao sacerdote, que o recusou com um gesto tão brusco da cabeça

que parecia mais um tremor.

Joaz deu a entender que, para ele, a recusa não tinha a menor

importância.

—Se desejar comer ou beber, é só dizer. Estou apreciando tanto nossa conversa que

tenho receio de prolongá-la além dos limites de sua paciência. Tem certeza que não quer

sentar-se?

—Prefiro ficar em pé.

—Como quiser. Bem, voltemos à nossa conversa. A caverna que mencionou... é

habitada pelos sacerdotes?

—Não entendi a pergunta.

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—Os sacerdotes usam a caverna?

—Sim.

Lentamente, fragmento por fragmento, Joaz arrancou a informação que desejava: a

caverna era ligada a uma série de salas onde os sacerdotes derretiam metais, fabricavam

vidro, comiam, dormiam, faziam suas cerimônias. Em certa época houvera uma abertura

que dava para o Vale Banbeck, mas desde muito esta passagem fora fechada. Por quê?

Havia guerras em todo o aglomerado estelar; bandos de homens vencidos refugiavam-se

em Aerlith, instalando-se nos rifts e nos vales. Os sacerdotes preferiam uma existência

distante e, assim, fecharam suas cavernas ao mundo exterior. Onde era a abertura? O

sacerdote pareceu vago, indefinido. Em alguma parte ao norte do vale. Atrás do Topo das

Pedras? Possivelmente. O comércio entre os homens e os sacerdotes era praticado na

entrada de uma caverna embaixo do Monte Gethron. Por quê? Questão de hábito,

declarou o sacerdote. Além disso, o local era mais acessível ao Vale Feliz e à Ravina

Phosphor. Quantos sacerdotes viviam nestas cavernas? Não sabia dizer com certeza.

Alguns tinham morrido, outros nascido. Mais ou menos quantos, aquela manhã? Uns

quinhentos, talvez.

A essa altura o sacerdote estava exausto e Joaz ligeiramente rouco.

—Voltando aos motivos - ou aos elementos dos motivos - para você ter vindo ao meu

estúdio. Estão ligados de alguma maneira com a estrela Coralyne e uma possível invasão

dos Básicos, ou grefos, como eram chamados antigamente?

De novo o sacerdote hesitou. Depois respondeu:

—Sim, estão.

—Os sacerdotes vão nos ajudar a lutar contra os Básicos, no caso de nos atacarem?

—Não! A resposta foi seca e clara.

—Mas eu suponho que os sacerdotes desejam a expulsão dos Básicos?

Sem resposta.

Joaz reformulou a pergunta.

—Os sacerdotes desejam que os Básicos sejam expulsos de Aerlith?

—Segundo a Base Racional somos obrigados a nos manter alheios aos assuntos dos

homens e dos não-homens.

Joaz cerrou os lábios.

—Suponhamos que os Básicos invadam suas cavernas, e os levem à força para o

planeta Coralyne. O que vocês farão neste caso?

O sacerdote esboçou um sorriso imperceptível.

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—A pergunta não pode ser respondida.

—Vocês resistiriam aos Básicos em caso de ataque?

—Não posso responder a esta pergunta. Joaz deu uma risada alta.

—Mas a resposta não é sim? O sacerdote assentiu.

—Vocês têm armas, nesse caso?

Os olhos azuis e mansos do sacerdote pareciam esmaecer. Segredo? Cansaço?

Joaz repetiu a pergunta.

—Sim - disse o sacerdote. Seus joelhos tremiam, mas ele os enrijeceu.

—Que tipo de armas?

—Uma variedade sem conta. Projéteis, como pedras. Armas pontudas, como cajados

partidos. Armas de corte e de percussão, como os utensílios de cozinha. — Sua voz

começou a sumir como se ele se afastasse dali. — Venenos... arsênico, enxofre,

triventidum, ácidos, germes negros. Armas incandescentes como tochas elentes que

focalizam os raios do sol. Armas que sufocam... cordas, laços, fios. Cisternas para afogar

os inimigos...

—Sente-se, descanse um pouco - insistiu Joaz. —Sua lista me interessa, mas o

efeito total parece-me inadequado. Vocês possuem outras armas que sirvam para repelir

decisivamente os Básicos no caso de um ataque?

A pergunta, por deliberação ou acaso, não foi respondida. O sacerdote ajoelhou-se

lentamente, como se rezasse. Tombou de rosto no chão, depois virou de lado. Joaz deu

um pulo, levantou a cabeça caída do sacerdote pelos cabelos. Os olhos, entreabertos,

deixaram ver uma horrível área branca.

—Fale! - gritou Joaz. —Responda à minha última pergunta! Vocês têm armas - ou

uma arma - para repelir um ataque dos Básicos?

Os lábios pálidos moveram-se.

—Não sei.

Joaz franziu a testa, fixou o rosto lívido, afastou-se assustado.

—O homem está morto.

Phade, que cochilava no sofá, com o rosto rosado, os cabelos revoltos, olhou a cena

apavorada.

—Você o matou! — exclamou com a voz abafada pelo terror.

—Não. Ele morreu... ou provocou a própria morte. Phade atravessou a sala

cambaleante e aproximou-se de Joaz, que a afastou distraidamente. Ela franziu a testa,

balançou os ombros e, como Joaz não lhe dava atenção, saiu da sala.

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Joaz sentou-se na cadeira, fixando atentamente o corpo caído, sem vida.

—Ele só se esgotou - murmurou consigo - quando insisti sobre os segredos.

Levantou-se de um pulo, foi até a porta do vestíbulo e disse a Rife para chamar um

barbeiro. Uma hora depois o cadáver, sem os cabelos, estava numa cama de madeira

coberto por um lençol. Joaz segurava nas mãos a cabeleira improvisada com cabelos

compridos do sacerdote.

O barbeiro retirou-se da sala; os criados levaram o cadáver. Joaz permaneceu

sozinho no estúdio, tenso e atento. Retirou as roupas e ficou nu como o sacerdote. Com

todo cuidado, colocou a peruca na cabeça e examinou-se no espelho. Havia diferença para

um olhar casual? Faltava alguma coisa. O colar. Joaz colocou-o no pescoço e observou-se

novamente no espelho com desconfiada satisfação.

Entrou na oficina, hesitou um instante, soltou a armadilha e removeu cuidadosamente

a tampa de pedra. Agachado nas mãos e nos joelhos, olhou para o túnel escuro, enquanto

segurava na mão um tubo de algas luminescentes. Na luz crepuscular o túnel parecia

vazio. Dominando o medo, Joaz engatinhou pela abertura. O túnel era baixo e estreito:

avançou com hesitação, sentindo os nervos à flor da pele. Parava freqüentemente para

ouvir algum ruído possível, mas não escutava nada além de sua própria respiração.

Cem metros adiante, o túnel desembocou numa caverna natural. Joaz parou,

indeciso, escutando atentamente no escuro. Tubos luminescentes, dispostos a intervalos

irregulares nas paredes, davam alguma luz, o suficiente para delinear a direção da

caverna, que parecia ser norte, paralela ao comprimento do vale. Depois de algum tempo

retomou a caminhada, parando de vez em quando, com o ouvido atento. Segundo sabia,

os sacerdotes eram pessoas mansas e passivas, se bem que tremendamente reservadas.

Como reagiriam diante da presença de um intruso? Não podia ter certeza; por isso

continuou a avançar com grande cautela.

A caverna subiu, desceu, alargou-se, para depois estreitar-se novamente. Havia

evidências inegáveis de uso - pequenos cubículos, cavados nas paredes, iluminados por

candelabros que sustentavam frascos altos de vidro de matéria luminosa. Em dois destes

cubículos, Joaz avistou sacerdotes; o primeiro adormecido sobre um tapete vermelho, o

segundo sentado de pernas cruzadas, olhando fixamente para um objeto formado de

varetas torcidas de metal. Como os dois não lhe prestaram nenhuma atenção, prosseguiu

com um andar mais confiante.

A caverna começou a descer, alargou-se como uma cornucópia e desembocou

subitamente numa gruta tão espaçosa que Joaz pensou, por um momento, que tinha saído

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no meio da noite. O teto estava além do brilho de milhares de lâmpadas, fogos e frascos

luminosos. Em frente e à esquerda havia fundições e forjas que pareciam em operação;

uma curva na parede da caverna parecia esconder alguma coisa, que Joaz logo identificou

como uma construção tubular em diversos planos. Parecia ser uma oficina, onde um

número enorme de sacerdotes estavam ocupados em tarefas complicadas. À direita havia

uma pilha de fardos e uma fileira de baldes continha produtos de natureza desconhecida.

Pela primeira vez, Joaz viu as sacerdotisas. Não eram nem as ninfas nem as bruxas semi-

humanas da lenda popular. Como os homens, todas tinham uma aparência pálida e frágil,

mas com traços bem definidos; como os homens, moviam-se com cuidado e deliberação e,

da mesma forma que eles, cobriam-se apenas com os cabelos compridos, que batiam na

cintura. Havia pouca conversa e não se ouviam risos: reinava antes uma atmosfera de

tranquilidade e concentração, que não dava a impressão de tristeza. A caverna possuía um

clima de uso e tradição, como se ali o tempo tivesse ficado retido. O chão de pedra estava

polido pelos passos incontáveis de pés descalços; as exalações de muitas gerações

manchavam as paredes.

Ninguém prestou atenção a Joaz, que caminhou lentamente, conservando-se nas

áreas sombrias, e fez uma pausa ao lado de uma pilha de fardos. Para a direita a caverna

diminuía em proporções irregulares formando um vasto túnel horizontal, afastava-se,

descrevia curvas, se encolhia, perdendo-se sob a luz sombria.

Joaz examinou toda a extensão da caverna enorme. Onde estava o arsenal com as

armas que o sacerdote havia provado existirem pelo simples fato de morrer? Voltou sua

atenção mais uma vez para a esquerda e examinou detalhadamente a oficina estranha,

feita de patamares, que se levantava uns vinte metros acima do chão de pedra.

Construção estranha, pensou Joaz, empinando o pescoço; não podia realmente

compreender a natureza daquela construção. Aliás, todos os aspectos da grande caverna -

tão perto do Vale Banbeck e, ao mesmo tempo, tão distante – eram estranhos e

maravilhosos. Armas? Deviam estar em algum lugar, porém não ousava mais procurá-las.

Não poderia ficar espionando indefinidamente sem correr o risco de ser descoberto.

Voltou-se em direção ao caminho por onde viera e caminhou — a passagem sombria, os

cubículos, onde os dois sacerdotes continuavam como antes — um deles dormindo, o

outro atento ao dispositivode metal torcido. Caminhou muito e muito tempo. Tinha ido tão

longe assim? Onde estava a fenda que levava ao seu apartamento? Teria passado por ela,

sem perceber? Sentiu o pânico apertar-lhe a garganta, mas continuou assim mesmo,

observando tudo cuidadosamente. Lá estava ela, não se enganara! Havia uma abertura à

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direita, uma fenda quase querida e familiar. Mergulhou por ela, caminhou com passos

rápidos e saltitantes, como um homem submerso, segurando o tubo luminoso adiante dos

olhos. Uma figura surgiu à sua frente, uma forma branca e gigantesca. Joaz ficou

paralisado. A figura sombria dirigia-se ao seu encontro. O rapaz colou-se à parede. O vulto

passou à sua frente e, subitamente, diminuiu para uma altura normal. Era o jovem

sacerdote de quem Joaz tinha cortado os cabelos e deixado como morto no estúdio. O

sacerdote o encarou fixamente, olhos azuis límpidos e brilhantes nos quais se lia crítica e

desprezo.

—Devolva meu colar.

Com os dedos dormentes Joaz retirou o colar dourado. O sacerdote apanhou-o, mas

não fez nenhum movimento para colocá-lo no pescoço. Olhou para a peruca que pesava

sobre a cabeça deJoaz. Com uma careta idiota, Joaz tirou a cabeleira revolta e estendeu-

a. O sacerdote deu um salto para trás como se Joaz fosse um duende da caverna.

Passando ao seu lado, tão longe dele quanto permitia a passagem estreita, saiu andando

rapidamente pelo túnel abaixo. Joaz deixou a peruca cair no chão e olhou de relance para

o monte de cabelos maltratados. Voltou-se, procurou o sacerdote com os olhos, e só

conseguiu distinguir um vulto pálido que logo depois confundiu-se na escuridão. Joaz

continuou a subir lentamente o túnel. Adiante a vistou uma luz retangular, a entrada de sua

oficina. Engatinhou como antes pelo buraco estreito e voltou ao mundo da realidade.

Furiosamente, com toda sua força, jogou a pedra em cima do buraco e bateu o portão que

havia detido antes o sacerdote.

Encontrou suas roupas onde as deixara. Embrulhado no casaco, dirigiu-se para a

porta exterior e passou pelo vestíbulo, onde Rife estava cochilando. Joaz estalou os dedos.

—Mande vir pedreiros e diga que tragam cimento, ferro e pedra.

Tomou banho e esfregou-se várias vezes com emulsões. Ao sair do banheiro, levou

os pedreiros à oficina e ordenou-lhes que tampassem o buraco.

Em seguida foi deitar-se no seu quarto. Bebendo uma taça de vinho, deixou a mente

vagar. A recordação transformou-se em devaneio, e o devaneio em sonho. Mais uma vez

atravessou o túnel, com os pés leves como asas, até a caverna subterrânea; agora, porém,

os sacerdotes levantavam a cabeça dos cubículos para observá-lo passar. Finalmente,

chegou à entrada do grande salão subterrâneo e, mais uma vez, olhou com espanto para a

esquerda e para a direita. Continuou caminhando pelo chão de pedras, passou por

sacerdotes que trabalhavam atentamente em fornalhas e bigornas. Centelhas saltavam de

tubos de ensaio, o gás azul se desprendia vacilante dos metais derretidos.

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Joaz foi até um quarto pequeno encravado na pedra. Um homem de idade, magro e

alto, estava sentado ali, a grande cabeleira branca como neve. O homem examinou Joaz

com inexpressivos olhos azuis e disse alguma coisa, mas a voz era abafada, inaudível.

Falou de novo, e, dessa vez, suas palavras soaram alto na mente de Joaz.

—Eu o trouxe aqui para adverti-lo, para que não nos cause dano. Isso não lhe trará

proveito algum. A arma que está procurando é ao mesmo tempo inexistente e fica além da

sua imaginação. Deixe-a longe de sua ambição.

Com grande esforço Joaz conseguiu balbuciar:

—O jovem sacerdote não negou. Esta arma deve existir!

—Somente dentro dos limites estreitos da interpretação especial. O jovem só pode

falar a verdade literal e só pode agir com delicadeza. Por que você se admira que vivamos

à parte? Os Homens Totais julgam a pureza incompreensível; vocês acreditam progredir,

mas não alcançam nada a não ser um exercício praticado às escondidas. Para que você

não tente de novo com maior ousadia, terei que me rebaixar e deixar as coisas bem claras.

Eu afirmo que esta suposta arma está absolutamente além do seu controle.

Primeiro a vergonha, depois a indignação assaltaram Joaz. Gritou:

—Você não compreende minha urgência! Por que haveria de agir de forma diferente?

Coralyne está perto; os Básicos estão próximos. Vocês não são homens? Por que não nos

ajudam a defender o planeta?

O Demie balançou a cabeça e os cabelos brancos ondularam com uma lentidão

hipnótica.

—Cito para você a Base Racional: passividade, completa e absoluta. Isto implica

solidão, santidade, quietude, paz. Você pode imaginar a angústia a que me arrisco ao falar

consigo? Intervenho, interfiro, com uma grande dor espiritual. Vamos pôr fim a isso.

Visitamos seu estúdio em paz, não lhe causamos nenhum dano, não fizemos nenhuma

indignidade. Você fez uma visita a nosso salão, e para isso humilhou um jovem nobre.

Vamos nos dar por satisfeitos e terminar com as explorações mútuas. Está de acordo?

Joaz ouviu sua voz responder, sem uma decisão consciente de sua parte; soava mais

nasal e aguda do que gostaria.

—Você me oferece este acordo agora, depois de ter descoberto todos os meus

segredos; mas eu não sei nenhum dos seus.

O rosto do Demie parecia afastar-se e tremer. Joaz leu desprezo em sua expressão

e, na agitação do sonho, mexia-se e revirava-se na cama. Fez um esforço para falar com a

voz calmada razão.

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—Vamos, ambos somos homens. Por que haveríamos de discutir? Vamos dividir

nossos segredos, vamos nos ajudar mutuamente. Examine livremente meus arquivos,

minhas pastas, minhas relíquias, e permita, depois, que eu conheça igualmente esta arma

existente mas não-existente. Juro que só será usada contra os Básicos, para nossa

proteção mútua.

Os olhos do Demie brilharam.

—Não.

—Por que não? - insistiu Joaz. —Certamente que não nos deseja mal.

—Somos desprendidos e sem paixões. Aguardamos a extinção de vocês. Vocês são

os Homens Totais e os últimos remanescentes da humanidade. Quando desaparecerem,

os pensamentos negros e os planos sinistros desaparecerão também; o crime, a dor e a

malícia terão desaparecido.

—Não posso acreditar nisso - disse Joaz. —Talvez não haja outros homens no

aglomerado estelar... mas quem sabe no resto do Universo? A Regra Antiga foi bem longe;

mais cedo ou mais tarde os homens vão voltar a Aerlith.

A voz do Demie tornou-se plangente.

—Julga que falamos apenas através da fé? Duvida de nosso conhecimento?

—O Universo é grande. A Regra Antiga foi longe.

—Os últimos homens habitam Aerlith. Os Homens Totais e os Sacerdotes. Vocês

passarão; nós levaremos adiante a Base Racional como uma bandeira de glória, por todos

os mundos do universo.

—E como vocês se transportarão nesta missão? Podem voar para as estrelas nus

como caminham sobre os precipícios?

—Haverá meios. O tempo há de resolver.

—Seus objetivos, demandam um tempo longo demais. Mesmo nos planetas de

Coralyne há homens. Escravizados, deformados na mente e no corpo, mas homens

mesmo assim. O que será deles? Parece que vocês estão errados, que se deixam guiar

apenas pela fé.

O Demie guardou silêncio. Seu rosto parecia mais duro agora.

—Não são fatos o que digo? - insistiu Joaz. —Como você pode conciliar a realidade

desses fatos com sua fé?

O Demie respondeu com mansidão.

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—Os fatos não podem nunca ser conciliados com a fé. Segundo nossa fé, estes

homens, caso existam, também passarão. O tempo é longo. Ah, os mundos da claridade:

eles esperam por nós!

—Agora fica claro que vocês se aliaram aos Básicos, que aguardam nossa

destruição. E isto só pode mudar nossa atitude em relação a vocês. Acho que Ervis

Carcolo tinha razão. Eu estava errado.

—Continuamos passivos - disse o Demie. Seu rosto onduou, como que em ondas de

variadas cores. —Vamos ser testemunhas da passagem dos Homens Totais sem emoção.

Sem ajudar nem prejudicar. Dessa vez Joaz respondeu com fúria:

Sua fé, sua Base Racional - seja lá o que for —Só está servindo para iludi-los. Eu

faço esta ameaça: se não nos ajudarem, sofrerão tanto quanto nós.

—Somos passivos, somos indiferentes.

—E o que será de seus filhos? Os Básicos não fazem diferença entre nós. Levarão

vocês para seus currais com a mesma violência que nos levam. Por que haveríamos de

lutar para protegê-los?

O Demie empalideceu; seu rosto encobriu-se sob uma espécie de névoa transparente

onde os olhos brilharam, fosforescentes como os de certos animais.

—Não necessitamos de proteção - gritou. —Estamos seguros.

—Vocês sofrerão nosso destino - exclamou Joaz. —Eu lhe garanto isso!

O Demie transformou-se repentinamente numa casca seca, como um mosquito

morto; com incrível velocidade, Joaz voltou pelas cavernas, pelos túneis, passando pela

oficina e o estúdio, até o quarto de dormir, onde estava agora erguido na cama, com os

olhos arregalados, a garganta apertada, a boca seca.

A porta abriu-se e a cabeça de Rife apareceu.

—Chamou por mim?

Joaz levantou-se nos cotovelos e percorreu o quarto com a vista.

—Não, não chamei...

Rife retirou-se e Joaz tornou a deitar-se na cama, olhando para o teto. Sonhara um

sonho muito estranho. Sonho? Uma síntese de sua própria imaginação? Ou, em realidade,

uma confrontação, um diálogo entre duas mentes? Impossível saber. Talvez não valesse a

pena! O fato valia por si mesmo. Atirou as pernas para fora da cama e olhou para a porta.

Sonho ou realidade, dava na mesma. Levantou-se, vestiu as sandálias e sua roupa de pele

amarela; caminhou vagarosamente para a Sala do Conselho e saiu num balcão

ensolarado. briam os penhascos ocidentais. À direita e à esquerda estendia-se o Vale

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Banbeck... Nunca parecera mais próspero e fecundo. E nunca tão irreal, como se fosse

uma paisagem estranha naquele planeta. Voltou-se para o norte e olhou em direção ao

grande paredão de pedras que se levantava da Beira Banbeck. Aquilo também era irreal,

uma fachada atrás da qual viviam os sacerdotes. Observou o paredão e fez uma imagem

do que seria a grande caverna. O penhasco localizado no extremo norte do vale não devia

representar provavelmente mais do que uma casca!

Voltou sua atenção para o campo de exercícios, onde os Monha era a vida: produzira

os Básicos e os Moloques, os sacerdotese homens como ele. Pensou em Ervis Carcolo e

teve que lutar contra uma irritação repentina. Mas aqueles pensamentos eram uma

distração tremendamente inoportuna naquele momento; uma coisa era certa, porém: não

demonstraria tolerância quando Carcolo fosse finalmente levado a prestar contas de seus

atos. Um passo leve nas suas costas, o contato da gola de pele, o toque de mãos alegres

e o perfume do incenso. A tensão de Joaz desfez-se. Senão houvesse criaturas

semelhantes às jovens trovadoras, seria necessário inventá-las.

Nas profundezas da Escarpa Banbeck, num cubículo iluminado por um candelabro de

doze frascos, um homem nu, de cabelos brancos, estava sentado imóvel. Num pedestal,

ao nível de seus olhos, estava o tand, uma construção complicada de varetas de ouro e

fios de prata, trançados e torcidos aparentemente ao acaso. A gratuidade do desenho,

contudo, era apenas aparente. Cada curva simbolizava um aspecto da Senciência Final; a

sombra projetada na parede representava a Base Racional, sempre mutável, sempre a

mesma.

O objeto era sagrado para os sacerdotes e servia como fonte de revelação. O estudo

do tand era infinito; novas intuições eram continuamente derivadas de alguma relação de

ângulo e de curva até então invisível. A nomenclatura era elaborada: cada parte, inserção,

dobra ou curva tinha um nome; e todos os aspectos das relações entre as diversas partes

eram igualmente categorizados. Assim era o culto do tand: hermético, inflexível, sem

compromisso. Nos ritos da puberdade, o jovem sacerdote podia estudar o tand original

durante quanto tempo quisesse; cada um devia construir uma duplicata do tand original,

baseando-se apenas na memória. Ocorria então o fato mais importante de sua vida: a

visão do tand por um sínodo de anciãos. Numa imobilidade reverente os anciãos refletiam

sobre a criação do tand durante horas a fio pesando as variações infinitesimais de

proporções, de raio, de curvas e de ângulos. Avaliavam assim a qualidade do iniciado,

julgavam seus atributos pessoais, determinavam sua compreensão da Senciência Final, a

Base Racional.

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De vez em quando, o testemunho do tand revelava um caráter tão impuro que era

considerado intolerável; o tand vi\ era jogado numa fornalha, o metal derretido destinado a

uma latrina, o infeliz iniciado expulso para a face do planeta, onde viveria às próprias

custas.

O Demie nu, de cabelos brancos, que contemplava seu belíssimo tand, suspirou,

agitou-se inquieto. Tinha sido visitado por uma influência tão ardente, tão apaixonada, ao

mesmo tempo tão cruel e eterna, que sua mente estava oprimida. Inesperadamente, surgiu

em seu cérebro um resíduo negro de dúvida. Será - perguntou a si mesmo - que nos

afastamos insensivelmente da verdadeira Base Racional? Estudamos o tand com olhos

cegos? Como saber, ah! Como saber! Tudo é relativamente fácil na ortodoxia, mas como

se pode negar que o bem em si mesmo é inegável? Os absolutos são as formulações mais

incertas que existem, enquanto as incertezas são as mais reais.

Trinta e cinco quilômetros além das montanhas, na luz pálida e longa da tarde de

Aerlith, Ervis Carcolo fazia seus planos. "Pela ousadia, pela violência, pela força do ataque

eu posso derrotá-lo! Em decisão, coragem e resistência sou mais do que seu igual. Ele não

vai me iludir de novo, destruir meus dragões e matar meus homens! Ah, Joaz Banbeck,

você vai pagar caro sua traição!" Levantava os braços em cólera. "Ah, Joaz Banbeck,

carneirinho de rosto branco!" Golpeou o ar com o punho. "Eu vou esmigalhá-lo como um

torrão de terra!" Franziu a testa, esfregou o queixo redondo e vermelho. "Mas como?

Onde? Ele tem todas as vantagens!"

Carcolo refletiu sobre os possíveis estratagemas. "Ele espera que eu ataque, isso é

certo. Sem dúvida vai preparar novamenteuma emboscada. Vou patrulhar todos os palmos

do terreno, élógico, mas isto ele também espera que eu faça, atento para que eu não me

precipite sobre eles do alto das montanhas. É possível que se esconda atrás do Monte

Despoire ou ao longo da Guarda Norte para me surpreender quando atravessar o Skanse.

Se isso acontecer o mais certo é me aproximar por outro caminho... pela Passagem

Maudlin e por baixo do Monte Gethron? Se atrasarem sua marcha, vou encontrar-me com

ele no Vale Banbeck. Se me anteceder, vou espreitá-lo por entre os picos e os abismos."

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CAPÍTULO 7

Com a chuva fria da madrugada martelando sobre a tropa, atrilha iluminada apenas

pela luz dos relâmpagos, Ervis Carcolo partiu com seus homens e dragões. Quando os

primeiros raios de sol atingiram o Monte Despoire, já haviam atravessado a Passagem

Maudlin.

Até aqui tudo corre bem, exultou Ervis Carcolo. Ergueu-se nos estribos para percorrer

com a vista o Precipício Starbreak.Não havia sinal das forças de Banbeck. Aguardou um

momento, esmiuçando as bandas distantes da Cordilheira Northguard, formas escuras

contra o céu. Passou um minuto, dois minutos; os homens batiam as mãos, os dragões

inquietos rosnavam e grunhiam. A impaciência começou a torturar Carcolo; praguejou e

amaldiçoou a sorte. O mais simples dos planos não podia ser levado a cabo sem erro? Foi

então que avistou o clarão de um heliógrafo no Espigão Barch e outro a sudeste das

encostas do Monte Gethron. Carcolo fez o sinal de avançar; o caminho estava limpo

através do Precipício Starbreak e, em pouco, surgia na Passagem Maudlin o exército do

Vale Feliz. Primeiros os Assassinos de Chifres Compridos, com presas e cristas de aço;

em seguida a agitação vermelha das Megeras, lançando as cabeças para a frente

enquanto corriam; atrás ia o reforço das tropas.

O Precipício Starbreak estendia-se, imenso, diante deles, uma encosta íngreme

coalhada de fragmentos de meteoritos que brilhavam como flores no musgo cinza-

esverdeado. Em toda parte erguiam-se picos majestosos; a neve brilhava vivamente na

luzclara da manhã: Monte Gethron, Monte Despoire, Espigão Barche, mais para o sul,

Clew Taw.

Os batedores convergiram da esquerda para a direita e trouxeram notícias idênticas.

Não havia sinal de Joaz Banbeck nem de suas tropas. Carcolo começou a suspeitar de

uma outra possibilidade.

Talvez Joaz Banbeck não tivesse se dignado entrar no campo. A ideia enfureceu-o e,

ao mesmo tempo, encheu-o de alegria: se era assim, Joaz pagaria caro sua negligência.

A meio caminho do Precipício Starbreak, chegaram a um cercado onde avistaram uns

duzentos filhotes de Demônios das criações de Joaz Banbeck. Dois velhos e um menino

guardavam o curral e observaram com horror a aproximação das tropas do Vale Feliz.

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Carcolo porém passou rapidamente adiante, deixando o cercado para trás, sem

molestá-los. Se ganhasse o dia, os animais fariam parte de seus despojos; se perdesse, os

filhotes dos Demôniosnão poderiam oferecer nenhum perigo.

Os velhos e o menino subiram no telhado da cabana de palha, de onde observaram

Carcolo e suas tropas passarem - os homens de uniformes pretos e capacetes de bicos,

com as abas atrás das orelhas; os dragões, saltando, arrastando-se, marchando, segundo

a natureza de cada um, com as escamas brilhantes; o vermelho acastanhado das

Megeras; o brilho venenoso dos Monstros Azuis; os Demônios preto-esverdeados; os

Moloques cinzentos e marrons, assim como os Assassinos. Ervis Carcolo caminhava no

flanco direito, enquanto Bast Givven ia na retaguarda. Carcolo acelerou o passo, tomado

pela ansiedade de que Joaz Banbeck pudesse levar os Demônios e os Moloques até a

Escarpa Banbeck antes que ele chegasse até lá - isto supondo que Joaz Banbeck, em

toda verossimilhança, tivesse sido apanhado dormindo.

No entanto tudo correu bem e Carcolo chegou à Beira Banbeck sem nenhuma

dificuldade. Gritou em triunfo, balançando ogorro colorido no alto:

—Joaz Banbeck, o grande preguiçoso! Quero ver tentar subir a Escarpa Banbeck

agora!

E Ervis Carcolo dominou o Vale Banbeck com o olhar de um conquistador.

Bast Givven não parecia partilhar o triunfo de Carcolo e se mantinha atento, olhando

seguidamente para o norte, o sul, a retaguarda.

Carcolo observou-o durante algum tempo com o canto dos olhos, maliciosamente, e

depois gritou:

—Ei, ei, você aí? O que foi?

—Não sei ainda; talvez algo importante - retrucou Bast Givven, percorrendo a

paisagem.

Carcolo soprou os bigodes. Givven continuou, com a voz fria que tanto irritava

Carcolo.

—Joaz Banbeck parece estar preparando uma armadilha como da outra vez.

— Por que você diz isso?

—Julgue por você mesmo. Acha que ele nos concederia uma vantagem dessas sem

cobrar um preço alto?

—Besteira! - exclamou Carcolo. —O preguiçoso deve estar chocando sua última

vitória!

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Mas esfregou o queixo e olhou com ansiedade para o Vale Banbeck. Dali do alto

parecia curiosamente tranquilo. Havia uma tranquilidade estranha nos campos e nas

cocheiras. Carcolo sentiu um frio no coração e gritou:

—Olhem para as criadeiras, lá estão os dragões de Banbeck! Givven lançou um olhar

para o vale depois mirou Carcolo de esguelha.

—Três Megeras, no ovo. Empertigou o corpo e afastou a vista do vale; sondou os

picos e cordilheiras do norte e do leste. Suponhamos que Joaz Banbeck partiu antes da

madrugada, chegou à Beira Banbeck, junto aos despenhadeiros, e atravessou o Precipício

Azul...

—E o que você me diz da Fenda Azul?

—Ele evitou a Fenda Azul em direção ao norte, chegou a Barchback, atravessou o

Skanse e deu a volta no espigão Barch...

Carcolo examinou a Cordilheira do Norte com uma atenção dobrada. Um vestígio de

movimento, o brilho de escamas?

—Retirada! - berrou Carcolo. —Rumo ao Espigão Barch! Eles estão às nossas

costas!

Assustadas, as tropas romperam as fileiras, atravessaram correndo a Beira Banbeck

em direção aos contra fortes abruptos do Espigão Barch. Joaz, ao ver sua estratégia

descoberta, lançou os esquadrões de Assassinos para interceptar o exército do Vale Feliz;

o objetivo agora era travar o combate e, se possível, cortar-lhes a retirada para as

encostas do Espigão Barch.

Carcolo calculou rapidamente. Considerava os Assassinos sua tropa de elite e tinha

um grande orgulho deles. Atrasou propositadamente o passo, esperando dar combate aos

guerreiros da linha de frente de Banbeck, destruí-los rapidamente e chegar o mais

depressa possível à proteção que as vertentes do EspigãoBarch ofereciam.

Os Assassinos de Banbeck, contudo, não se aproximaram; tomaram antes o caminho

das elevações do Espigão Barch. Carcolo enviou à frente suas Megeras e Monstros Azuis;

com um grunhido horrível, as duas linhas se encontraram. As Megeras deBanbeck

correram à toda, sendo rechaçadas pelos Assassinos Galopantes de Carcolo, e forçadas a

fugir aos saltos.

O corpo principal das tropas de Carcolo, excitado diante dos inimigos em debandada,

não se controlou. Os guerreiros desceram do Espigão Barch e mergulharam no Precipício

Starbreak. Os Assassinos Galopantes alcançaram as Megeras de Banbeck, atacaram-nas

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pelas costas, derrubando-as e as estriparam, expondo seus ventres rosados, sob seus

gritos lancinantes.

Os Assassinos de Chifres Compridos de Banbeck aproximaram-se em círculo,

atacaram de flanco os Assassinos Galopantes de Carcolo, estraçalhando-os com os

chifres revestidos deaço, empalando-os com as lanças. Eles não viram, porém, os

Monstros Azuis de Carcolo que saltavam sobre eles. Com machados e maças,

subjugaram-nos iniciando o macabro divertimento que consistia em trepar em cima do

Assassino dominado e arrancar-lhe o chifre e as escamas, e a pele da cabeça à cauda,

com um rápido movimento do chifre. Joaz Banbeck perdeu trinta Megeras e duas dúzias

de Assassinos. Mesmo assim, o ataque teve saldo positivo, dando-lhe oportunidade de

retirar seus cavaleiros, os Demônios e os Moloques da Cordilheira Norte, antes que

Carcolo alcançasse os picos elevados do Espigão Barch.

Enquanto as tropas se retiravam - por uma linha íngreme nas encostas esburacadas -

Carcolo enviou seis homens ao cercado onde os filhotes dos Demônios agitavam-se

apavorados com o combate. Os homens derrubaram as porteiras, mataram os dois velhos

e levaram os filhotes dos Demônios pelo precipício em direção às tropas de Banbeck. Os

histéricos filhotes, seguindo seus instintos, agarravam-se aos pescoços dos dragões que

encontravam pelo caminho, os quais eram cruelmente feridos desta forma, uma vez que

seus próprios instintos os impediam de se livrarem à força dos filhotes.

Esta façanha, uma genial improvisação, suscitou a desordem no seio das tropas de

Banbeck e possibilitou a Ervis Carcolo atacar, então, com o grosso de suas forças. Dois

esquadrões de Megeras desdobraram-se em leque para perseguir os homens; os

Assassinos - a única categoria em que tinha um maior contingente do que o do exército de

Joaz Banbeck - foram enviados ao encalço dos Demônios, enquanto os Demônios de

Carcolo, bem nutridos, fortes e luzidios, investiam contra os Moloques de Banbeck,

lançando-se sob seus grandes ventres marrons e atirando a bola deaço de vinte quilos,

presa na ponta das caudas, contra a parte interna das pernas das criaturas. As linhas de

batalha estavam desorientadas; tanto homens quanto dragões eram pisados,

despedaçados, esquartejados. As balas zuniam no ar saturado dos ruídosdos aços que se

retorciam, e reverberavam entre o soar das trombetas, apitos, gritos, berros e grunhidos.

A mudança ocasional da tática original alcançou um resultado melhor do que Carcolo

esperava. Seus Demônios penetravam cada vez entre os alucinados e indefesos Moloques

do inimigo, enquanto os Assassinos e Monstros Azuis de Carcolo rechaçavam os

Demônios de Banbeck. O próprio Joaz Banbeck, assaltado por Megeras, escapou com

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vida unicamente graças à retirada estratégica para trás da linha de combate, onde obteve

o apoio de um esquadrão de Monstros Azuis. Num gesto de fúria, Joaz soou o toque de

retirada; o exército desceu rapidamente pelas encostas, deixando o terreno coberto de

cadáveres e corpos que se debatiam.

Carcolo, no auge da excitação, levantou-se na sela e fez sinal para que seus

Moloques, que até então tinham sido preservados como seus próprios filhos, investissem.

Grunhindo e soluçando, os Moloques precipitaram-se pesadamente no meio da confusão,

arrancando grandes bocadas de carne à direita e à esquerda, despedaçando dragões

menores comos membros anteriores, pisoteando Megeras, abocanhando Monstros Azuis e

Assassinos, atirando-os a distância. Seis cavaleiros de Banbeck tentaram resistir à

investida; dispararam seus mosquetões à queima-roupa nas faces demoníacas, o que de

nada adiantou: foram todos derrubados e pisoteados.

No Precipício Starbreak a batalha prosseguia. Com a maior dispersão da luta, a

vantagem do Vale Feliz diminuiu. Carcolo hesitou durante um longo momento. Ele e suas

tropas estavam igualmente embriagados; o sucesso inesperado lhes subia à cabeça. Mas

será que ali, no Precipício Starbreak, podiam estar à altura do exército mais numeroso de

Banbeck? A cautela ditou a retirada das tropas em direção ao Espigão Barch; era o único

modo de tirar partido da vitória limitada. A essa altura um forte pelotão de Demônios

inimigos já estava reunido e manobrava no terreno para investir contra a pequena força

dos Moloques. Bast Givven aproximou-se, esperando claramente a ordem de retirada. Mas

Carcolo aguardava ainda, excitado com a confusão criada por seis dos seus Moloques.

O rosto severo de Bast Givven estava tenso.

—Vamos recuar enquanto é tempo! Vamos ser aniquilados se os flancos do exército

inimigo nos atacarem!

Carcolo segurou-o pelo cotovelo.

—Ouça! Descubra onde os Demônios estão reunidos, onde Joaz Banbeck está

cavalgando! Tão logo atacarem, mande seis Assassinos Galopantes de cada lado. Cerque-

o, mate-o!

Givven abriu a boca para protestar; olhou, porém, para onde Carcolo apontava e foi

obedecer às ordens.

Ali vinham os Demônios de Banbeck, marchando dissimuladamente em direção aos

Moloques do Vale Feliz. Joaz, erguendo-se na sela, observava o progresso dos animais.

De repente, de ambos os lados, os Assassinos Galopantes o atacaram. Quatro cavaleiros

e seis jovens corneteiros, soando o alarme, correram à toda para protegê-lo. Ouviu-se o

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clangor de aço contra aço e de aço contra escamas. Os Assassinos lutavam com espadas

e bastões; os cavaleiros, sem poder usar os mosquetões, recorreram às espadas curvas,

e, um a um, foram derrubados. Levantando-se nas pernas traseiras, um dos Assassinos

desferiu um golpe contra Joaz, que se defendeu desesperadamente. O Assassino levantou

ao mesmo tempo a espada e o bastão - mas, disparada de uns cinqüenta metros, uma

bala de mosquetão veio atravessar seu ouvido. Enlouquecido de dor, o animal soltou as

armas, caiu sobre Joaz, contorcendo-se e esperneando. Os monstros Azuis de Banbeck

atacaram; os Assassinos avançaram e recuavam perto do animal moribundo, investindo

contra Joaz, lançando golpes de espada, dando coices e pondo finalmente em fuga os

Monstros Azuis.

Ervis Carcolo gemeu de decepção; por uma fração de segundo teria saído vencedor.

Joaz Banbeck, porém, pisado, contundido, talvez ferido, tinha escapado com vida. No alto

do morro apareceu um cavaleiro: um jovem sem armas chicoteava ferozmente uma Aranha

cambaleante. Bast Givven apontou-o e disse a Carcolo.

—Um mensageiro do Vale, com uma notícia urgente.

O rapaz desceu pela escarpa, gritando de longe em direção a Carcolo, mas sua voz

se perdia na balbúrdia da batalha. Finalmente conseguiu se aproximar:

—Os Básicos! Os Básicos!

Carcolo esmoreceu como uma bola que se esvazia.

—Onde?

—Uma grande nave negra, da metade do tamanho do vale. Eu estava no

descampado e consegui fugir.

O mensageiro apontou para longe, uma expressão angustiadano rosto.

—Fale, homem! - bradou Carcolo. —O que eles estão fazendo?

—Eu não vi. Vim correndo trazer a notícia.

Carcolo lançou um olhar para o campo da batalha: os Demônios de Banbeck

perseguiam seus Moloques, que recuavam lentamente, com as cabeças baixas, as garras

ameaçadoramente estendidas.

Carcolo levantou as mãos num gesto de desespero.

—Toque a retirada! - ordenou a Givven.

Balançando um lenço branco cavalgou em volta do campode batalha na direção onde

Joaz Banbeck continuava caído no chão, enquanto o Assassino moribundo era erguido de

cima de suas pernas. Joaz olhou para o alto; o rosto estava tão branco quanto o lenço de

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Carcolo. Ao encarar a face do inimigo, os olhos cresceram e escureceram, a boca tornou-

se imóvel.

Carcolo exclamou:

—Os Básicos voltaram de novo! Desceram no Vale Feliz, e estão destruindo meu

povo!

Joaz Banbeck, ajudado pelos cavaleiros, ergueu-se com dificuldade. Seu corpo

oscilava, os braços continuavam caídos, sem vida, enquanto olhava silenciosamente para

o rosto de Carcolo.

Este tornou a falar:

—Vamos fazer as pazes. Esta batalha não conta. Com nossas forças reunidas,

vamos marchar para o Vale Feliz, atacar os monstros antes que nos destruam! Ah, já

pensou no que poderíamos alcançar com as armas dos sacerdotes? Joaz manteve-se em

silêncio. Outros dez segundos passaram. Carcolo gritou com fúria:

—Então, o que você decide? Com a voz rouca Joaz respondeu:

—Eu não aceito a paz. Você rejeitou meu aviso, você contou saquear o Vale

Banbeck. Não vou conceder perdão.

Carcolo abriu a boca, que parecia um buraco vermelho sob os pêlos do bigode.

—Mas os Básicos estão aí...

—Volte para suas tropas. Você é meu inimigo, tanto quanto os Básicos. Por que

escolheria entre um e outro? Prepare-se para lutar por sua vida. Eu não aceito a paz.

Carcolo recuou alguns passos; seu rosto estava tão lívidoquanto o de Joaz.

—Você nunca terá sossego - continuou Joaz. —Mesmo se ganhar este combate no

Precipício Starbreak, jamais conhecerá a vitória. Vou persegui-lo até que você grite por

misericórdia.

Em seguida fez sinal a seus cavaleiros.

—Chicoteiem este cachorro de volta para os seus. Carcolo recuou sua Aranha dos

chicotes ameaçadores, deu meia-volta e afastou-se aos saltos. O destino da batalha tinha

mudado. Os Demônios de Banbeck venciam seus Monstros Azuis; um dos Moloques do

Vale Feliz estava morto; o outro, enfrentando três Demônios, abriu a boca enorme

enquanto balançava a espada monstruosa. Os Demônios agitavam-se com as bolas de

açogirando no ar e atacaram de frente. O Moloque desceu a espada sobre a armadura, rija

como rocha, dos Demônios; que passaram a atacar por baixo, golpeando as pernas

monstruosas do adversário com as espinhentas bolas de aço. O Moloque tentou livrar-se e

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caiu majestosamente no chão. Os Demônios abriram sua barriga a golpes de espada -

agora Carcolo tinha apenas cinco Moloques em condição de lutar.

—Recuem! - gritou Carcolo. —Todos para trás!

No alto do Espigão Barch suas tropas penavam; a frente da batalha era uma

confusão inaudita de escamas, armaduras, metais faiscantes. Felizmente, a retaguarda de

Carcolo dava para a escarpa; após dez minutos de pânico, conseguiu organizar uma

retirada em ordem. Dois outros Moloques tinham morrido; os três que restavam

conseguiram desvencilhar-se dos adversários. Agarrando pedregulhos, lançavam-nos

contra os atacantes que, após uma série de investidas e de arremetidas, sentiram-se

contentes debater em retirada com vida. Joaz, de qualquer maneira, após ouvir a notícia

transmitida por Carcolo, não estava com disposição de perder mais combatentes.

Carcolo, brandindo a espada num gesto desesperado, levou as tropas de volta

contornando o Espigão Barch; atravessou em seguida o desolado Skanse. Joaz voltou

para o Vale Banbeck. A notícia do ataque dos Básicos espalhou-se por toda parte. Os

homens cavalgaram sombrios e calados, olhando o tempo todo para trás e para o alto.

Mesmo os dragões pareciam contagiados pelo medo e rosnavam entre si com grande

inquietação.

Ao atravessarem o Precipício Azul, o vento quase onipresente cessou e a imobilidade

da paisagem aumentou a depressão geral. As Megeras, como os homens, observaram o

céu. Joaz pensou consigo mesmo como os animais sabiam, como podiam sentir a

presença dos Básicos? Também ele investigou o céu e, quando o exército passou por

cima da escarpa íngreme, pensou avistar, no alto do Monte Gethron, um pequeno

retângulo negro que desapareceu atrás de um rochedo.

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CAPÍTULO 8

Ervis Carcolo e os remanescentes do exército desceram às pressas, confusamente, o

Skanse, atravessaram a região erma de ravinas e abismos ao pé do monte Despoire em

direção ao terreno desolado a oeste do Vale Feliz. Toda aparência de disciplina militar fora

abandonada. Carcolo galopava na frente, sua Aranha soluçando de cansaço enquanto

atrás marchavam pesadamente, em desordem, os Assassinos e Monstros Azuis, seguidos

de perto por Megeras e Demônios, que corriam rente ao chão, com as bolas de aço

raspando nas rochas e soltando faíscas para o alto. Bem atrás,arrastavam-se os Moloques

com seus peões.

O exército desembocou à beira do Vale Feliz e fez uma pausa brusca. Carcolo saltou

da Aranha, correu até a borda e contemplou demoradamente o vale.

Contava ver a nave lá embaixo, mas a presença do objeto era tão imediata e intensa

que o deixou perplexo. O cilindro negro e brilhante estava pousado numa plantação de

hortaliças não muito distante da miserável Cidade Feliz. Discos de metal polido, em ambas

as extremidades, brilhavam e faiscavam com furtivas películas coloridas. Havia três portas:

na frente, no centro e atrás,e da porta central descia uma rampa até o chão.

Os Básicos tinham trabalhado com uma eficiência incrível. A essa altura já vinha

subindo da cidade uma fila de cativos, controlada por membros das Tropas Pesadas. Ao

se aproximarem da nave as pessoas passavam por um aparelho de inspeção controlado

por dois Básicos. Uma série de instrumentos, bem como os olhos dos Básicos, avaliavam

homens, mulheres e crianças, e classificavam-nos segundo algum sistema não perceptível

para os humanos; depois disso, eram empurrados pela rampa até a nave,ou

encaminhados para o interior de uma cabine próxima. Por estranho que parecesse, a

cabine não enchia nunca, por maior que fosse o número de pessoas que nela entravam.

Carcolo passou os dedos trêmulos na testa e voltou os olhos para o chão. Quando

tornou a olhar para o alto, Bast Givven estava ao seu lado, e os dois juntos contemplaram

o vale embaixo.

De trás deles soou um grito de alarme. Olhando em volta, Carcolo avistou um

aparelho voador negro, de forma retangular, planando silenciosamente no alto do Monte

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Gethron. Os braços estendidos para o alto num ato instintivo de defesa, Carcolo correu em

direção às rochas, dando ordens para os homens se abrigarem. Dragões e guerreiros

galgaram as ravinas. No alto planava o aparelho voador. De uma portinhola aberta desceu

uma carga de bombas explosivas. Elas sacudiram o chão com uma rajada ruidosa,

levando pelos ares pedras, fragmentos de rochas, ossos, escamas, peles, postas de carne.

Todos os que não se abrigaram em tempo foram destruídos. As Megeras não sofreram

muito. Todosos Demônios, embora atingidos e feridos, conseguiram sobreviver. Dois

Moloques ficaram cegos, e não poderiam combater mais criarem novos órgãos de visão.

O aparelho voador tornou a sobrevoar a região. Muitos homens dispararam seus

mosquetões — ato de desafio aparentemente fútil, mas o fato é que o aparelho foi atingido

e avariado. Girou, descreveu uma curva, virou de costas, mergulhou em direção as

montanhas e chocou-se contra a rocha produzindo uma explosão brilhante de chamas.

Carcolo gritou com uma alegria delirante, saltou como um demente, correu até a beira do

morro, balançou o punho para a nave embaixo. Depois, voltando-se para o bando

esfarrapado de homens e dragões que tinham subido outra vez a ravina, berrou com a voz

rouca:

—O que acham? Vamos lutar? Vamos investir contra eles?Ninguém respondeu, a

não ser Bast Givven, numa voz desanimada:

—Não há condição. Não podemos fazer nada. Por que praticar um suicídio em

massa?

Carcolo afastou-se com o coração pesado demais para poder falar. Givven dissera a

verdade. Se ousassem investir seriam mortos ou capturados e arrastados para a nave;

depois, num mundo estranho e que não poderiam nem sequer imaginar, seriam

empregados em trabalhos terríveis e intoleráveis. Carcolo cerrou os punhos e olhou para

longe amargurado pelo ódio.

—Joaz Banbeck, você é o responsável por tudo isso! Quando ainda podia lutar por

meu povo, você me deteve!

—Os Básicos já estavam aqui - disse Givven com uma lógica inoportuna. —Não

podíamos fazer nada, uma vez que não havia nada para ser feito.

—Podíamos ter lutado! - bradou Carcolo. —Ter avançado pela retaguarda e

desabado sobre eles com nossas forças reunidas! Cem guerreiros e quatrocentos dragões.

São armas desprezíveis, porventura?

Bast Givven julgou inútil discutir. Apontou para longe.

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—Estão examinando nossas criadeiras. Carcolo voltou-se para ver e deu uma

gargalhada.

—Estão espantados! Estão com medo! E com toda razão. Givven concordou.

—Imagino que a figura de um Demônio ou de um Monstro Azul - sem falar nos

Moloques - seja motivo de reflexão.

Embaixo no vale o trabalho sinistro tinha terminado. As tropas Pesadas voltaram para

a nave. Foi então que dois homens enormes, de mais de três metros de altura, saíram da

espaçonave, levantaram a cabine e carregaram-na pela rampa acima. Carcolo e seus

homens observaram a cena com olhos esbugalhados.

—Gigantes!

Bast Givven deu uma risadinha amarela.

—Os Básicos estão admirados com nossos Moloques; e nós boquiabertos com seus

Gigantes.

Os Básicos voltaram em seguida para a nave, recolheram a rampa e fecharam as

portas. Depois, de uma torre frontal jorrou um raio de energia que atingiu sucessivamente

cada uma das três criadeiras, explodindo-as num estilhaçar de tijolos pretos. Carcolo

gemeu baixinho, mas não disse nada.

A nave tremeu e flutuou; Carcolo gritou uma ordem; homens e dragões correram a

abrigar-se. Colados às rochas e pedregulhos, todos viram o cilindro negro levantar-se do

vale, tomando a direção oeste.

—Está rumando para o Vale Banbeck — comentou BastGivven.

Carcolo riu, uma risada sem graça. Bast Givven olhou de soslaio para ele. Ervis

Carcolo estaria louco? Em seguida afastou-se dali. Afinal, o assunto não era importante.

Carcolo tomou uma decisão súbita. Foi até uma das Aranhas, montou e voltou-se

para encarar seus homens.

—Vou até o Vale Banbeck. Joaz Banbeck fez todo o possível para me arruinar. Agora

chegou minha vez. Não dou ordens. Quem quiser me siga. Lembrem-se apenas: Joaz

Banbeck não nos deixou combater os Básicos!

E dizendo isso, afastou-se. Os homens olharam para o vale saqueado, depois para

Carcolo que se afastava a passos rápidos. A nave negra estava passando agora sobre o

Monte Despoire. Não havia nada mais que os prendesse ao vale. Em voz baixa, os

homens chamaram os dragões exaustos e todos juntos rumaramem direção às montanhas

desoladas.

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CAPÍTULO 9

Ervis Carcolo dirigia a Aranha numa carreira vertiginosa pelo Skanse, entre os

imensos rochedos que se erguiam de ambos osblados; o sol ardente estava bem no alto

do céu negro. Para trás jábtinham ficado as plataformas do Skanse; à frente avistavam-se

oBarchback, o Espigão Barth e a Cordilheira do Norte. Indiferentebao cansaço da Aranha,

Carcolo chicoteou-a; o musgo cinzabesverdeado sob os pés ferozes do animal, que ia com

a cabeça estreita abaixada, soltando espuma pelas ventas. Carcolo não prestava atenção

a nada; sua mente estava vazia de tudo que não fossebódio - ódio dos Básicos, de Joaz

Banbeck, de Aerlith, dos homens, da história humana. Ao aproximar-se da montanha, a

Aranha cambaleou e caiu. Ficou gemendo, com o pescoço esticado, as pernas estendidas

para trás. Carcolo desceu do animal enoja-do; olhou para trás em direção à longa encosta

íngreme do Skansepara ver quantos guerreiros o tinham seguido. O único homem que

avistou, montado numa Aranha, andando a passo moderado, foi Bast Givven, que pouco

depois estava ao seu lado, examinando o animal caído.

— Solte a sobrecilha. Ela se recupera logo. Carcolo animou-se, pensando ouvir uma

entonação nova navoz de Givven. Debruçou-se sobre o dragão esfalfado e soltou afivela

grande de bronze. Givven desmontou, esticou os braços, fez massagem nas pernas finas.

—A nave dos Básicos desceu no Vale Banbeck - comentou. Carcolo balançou a

cabeça de maneira sinistra.

—Gostaria de estar presente ao desembarque. - Deu um chute na Aranha. —Vamos,

levante-se, bicho, já não descansou bastante? Ou quer que eu ande a pé?

A Aranha lamuriou-se, cansada, mas ergueu-se mesmo assim. Carcolo preparava-se

para montar quando Bast Givven colocou a mão em seu ombro. Carcolo olhou para trás

insultado: que impertinência! Givven disse com calma:

—Aperte a sobrecilha, senão você vai cair nas pedras e quebrar de novo os ossos.

Com uma exclamação de desprezo, Carcolo colocou a fivelana posição certa,

enquanto a Aranha gritava de desespero. Sem prestar atenção, Carcolo montou e o animal

começou a mover-se com passos trêmulos.

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O Espigão Barch levantava-se adiante como a proa de um navio branco, dividindo a

Cordilheira Norte de Barchback. Carcolo parou para contemplar a paisagem, enrolando o

bigode.

Givven mantinha-se em silêncio. Carcolo dirigiu o olharpara o Skanse embaixo e viu a

marcha indolente do seu exército, em direção à esquerda.

Passando embaixo do Monte Gethron, ladeando as Pedras, os soldados desceram

pelo antigo leito de um curso d’água em direção à Beira Banbeck. Embora caminhassem

vagarosamente, a grande nave negra não viajara mais depressa; somente agora pousava

no vale, enquanto os discos da frente e de trás giravam com cores furiosas.

Carcolo murmurou com azedume:

—Joaz Banbeck sabe se virar sozinho. Não vejo ninguém por aqui. Refugiou-se nos

túneis, com os dragões e todo o povo.- Franzindo a boca, imitou a voz de Joaz. —"Ervis

Carcolo, meu caro, só existe uma resposta ao ataque. Cave túneis!" —E eu respondi para

ele: "Sou um sacerdote por acaso para viver embaixo da terra? Cave e abra buracos, Joaz

Banbeck, faça como quiser. Eu sou um homem de antigamente; só entro embaixo da terra

quando for preciso."

Givven balançou ligeiramente os ombros. Carcolo continuou:

—Com túneis ou não, vão acabar conseguindo tirá-lo de lá. Se for preciso, explodem

o rochedo inteiro. Não lhes faltam recursos.

Givven deu um sorriso sardônico.

—Joaz Banbeck também conhece alguns truques... como pudemos constatar a duras

penas.

—Vamos ver se consegue capturar uns vinte Básicos hoje. - Zombou Carcolo. Aí eu

vou admitir que é um homem inteligente.

Carcolo caminhou até a beira do morro ficando bem à vista da nave dos Básicos.

Givven observou-o sem comentar nada.

—Ah! Venha ver! - exclamou Carcolo.

—Eu não - disse Givven. —Respeito demais as armas dos Básicos.

—Besteira! - disse Carcolo com desdém. Mas mesmo assim, afastou-se alguns

passos da beira do morro. —Há alguns dragões na Alameda Kergan. Apesar de Joaz

Banbeck ter falado tanto nos túneis... - Olhou um momento em direção ao norte do Vale

Banbeck, depois levantou as mãos num gesto de frustração.—Joaz Banbeck não virá ao

meu encontro aqui. Não há nada que posso fazer. A menos que desça até a cidade, saia à

sua procura e o derrote, ele vai me escapar por entre os dedos.

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—A menos que os Básicos capturem vocês dois e os levem para o mesmo curral -

disse Givven.

—Qual o quê! - murmurou Carcolo, afastando-se para o lado do morro.

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CAPÍTULO 10

As lâminas de visão, que permitiam a Joaz Banbeck observarem toda a extensão o

Vale Banbeck, foram postas em uso pela primeira vez. Tinha aperfeiçoado o sistema

enquanto mexia com um conjunto de lentes antigas, mas logo desistiu da ideia. Até que um

dia, ao negociar com os sacerdotes na caverna, embaixo do Monte Gethron, propôs que

lhe desenhassem e fornecessem as partes óticas do sistema.

O sacerdote cego e velho que conduzia o negócio deu-lhe uma resposta ambígua:

em determinadas circunstâncias poder-se-ia pensar na possibilidade de concretizar o

projeto. Passaram-se três meses; Joaz não pensou mais no assunto. Um belo dia, porém,

o sacerdote perguntou se Joaz ainda pretendia instalar o sistema de visão; se a resposta

fosse positiva, podia fornecer imediatamenteas partes óticas. Joaz concordou com o preço

proposto e voltou para o Vale Banbeck com quatro caixotes pesados. Ordenou que fossem

construídos os túneis necessários, instalou as lentes e descobriu que podia dominar todos

os pontos do Vale Banbeck, contanto que o estúdio estivesse mergulhado na escuridão.

Agora, enquanto a nave Básica escurecia o céu, Joaz Banbeck acompanhava do seu

estúdio a descida do grande casco negro.

Nos fundos da sala castanho avermelhada os reposteiros se abriram. Em pé, junto à

soleira, Phade segurava os panos com as mãos delicadas. Tinha o rosto pálido, os olhos

claros como opalina. Em voz baixa comentou:

—A nave da morte. Veio buscar as almas.

Joaz dirigiu-lhe um olhar frio e, virando-se, retornou às lâminas polidas de vidro.

—A nave está claramente visível.

Phade correu na direção dele, segurou-o pelo braço e fitou-o bem no rosto.

—Vamos tentar fugir! Para as montanhas, para o Alto das Pedras. Não vamos deixar

que nos capturem assim.

—Ninguém a impede de agir - disse Joaz com indiferença.—Fuja para onde quiser.

Phade olhou fixamente para ele, depois voltou a cabeça e observou a lâmina de

vidro. A grande nave negra descia com uma deliberação sinistra; os discos na frente e

atrás brilhavam como madrepérola. Phade olhou para Joaz, passou a língua nos lábios e

perguntou:

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—Você não tem medo? Joaz sorriu de leve.

—De que adianta fugir? Os Batedores dos Básicos são mais rápidos do que nossos

Assassinos, mais ferozes que as Megeras. Podem farejar a presença de alguém a um

quilômetro de distância, capturá-lo no meio das Pedras.

Phade tremeu com um horror supersticioso. Murmurou:

—Que me levem morta, então. Viva não vão conseguir me apanhar.

De repente Joaz praguejou:

—Veja onde estão descendo. No melhor campo de bellegarde.

—Que diferença isso faz?

—Diferença? Vamos deixar de comer por que eles estão nos visitando?

Phade fitou-o espantada, sem compreender. Caiu lentamentede joelhos no chão e

começou a fazer os gestos rituais do culto teúrgico: levava as palmas das mãos para

baixo, depois lentamente para cima, até que as costas das mãos tocassem nas orelhas,

enquanto estendia a língua para fora. Repetiu o ritual muitas e muitas vezes, com o olhar

dirigido para o vazio com uma intensidade fanática.

Joaz ignorou as gesticulações até que Phade, com o rosto deformado numa máscara

fantástica, começou a suspirar e a gemer; foi então que ele atirou as abas do casado no

rosto dela.

—Basta dessa loucura!

Phade caiu no chão com um gemido; os lábios de Joaz torceram-se de

aborrecimento. Levantou-a com impaciência.

—Preste atenção: os Básicos não são assombrações nem anjos da morte. Não

passam de Megeras pálidas, a raça básica dos nossos dragões. É melhor você deixar

dessa idiotice, ou vou mandar Rife levá-la embora.

—Por que você não se prepara? Fica observando, mas não faz nada.

—Não há nada mais que se possa fazer.

Phade estremeceu, soltou um suspiro fundo e olhou estupidamente para a lâmina de

vidro.

— Você não vai lutar contra eles?

— Claro que vou.

— E como vai poder enfrentar o poder milagroso deles?

—Vamos fazer o que for possível. Eles ainda não enfrentaram nossos dragões.

A nave pousou num vinhedo verde e púrpura do outro lado do vale, perto da entrada

da Fenda Clybourne. A porta abriu-se para trás e uma rampa rolou para a frente.

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—Veja! — exclamou Joaz. — Ali estão eles...

Phade olhou fixamente para as sombras pálidas e estranhas que desciam

hesitantemente pela rampa.

—Parecem esquisitos e deformados, como brinquedos de armar das crianças.

—São os Básicos. Dos ovos deles nasceram nossos dragões. Fizeram o mesmo com

os homens. Veja, aquelas são as Tropas Pesadas.

Pela rampa, em fila de quatro, numa cadência exata, marchavam as Tropas Pesadas;

fizeram alto a uns cinqüenta metros à frente da nave. Havia três esquadrões de vinte

combatentes - homens pequenos de ombros largos, pescoços grossos, rostos insensíveis

e duros. Usavam armaduras feitas de escamas sobrepostas de metal negro e azul, um

cinturão largo onde levavam as pistolas e espadas. Das dragonas negras que

ultrapassavam o tamanho dos ombros pendia uma pequena aba de pano preto, que descia

pelas costas e solenizava a indumentária; os capacetes tinham uma crista de pontas

afiadas e as botas altas eram armadas com facas.

Em seguida apareceram alguns Básicos. Suas montarias, criaturas que se pareciam

vagamente com homens, corriam em cima das mãos e dos pés, com as costas erguidas do

chão. As cabeças eram compridas e sem cabelos, com lábios soltos que tremiam. Os

Básicos os dominavam com chicotadas negligentes e, após desembarcarem, deixavam

que galopassem pelos canteiros de bellegarde. Enquanto isso, um grupo de Tropas

Pesadas desceu da nave empurrando um veículo de três rodas pela rampa, e apontou a

boca do complexo aparelho para a aldeia.

—Eles nunca prepararam antes um ataque com tanto cuidado - murmurou Joaz. —Ali

vão os Batedores. - Contou em voz alta. —Somente duas dúzias? Talvez sejam difíceis de

reproduzir. Os homens se reproduzem lentamente, enquanto os dragões botam um

punhado de ovos todos os anos.

Os Batedores dirigiram-se para um lado e formaram um grupo afastado e impaciente.

Eram criaturas magras de dois metros de altura, de olhos negros saltados, narizes bicudos,

pequenas bocas apertadas como para beijar. Dos ombros estreitos caíam braços

compridos que balançavam como cordas soltas. Enquanto aguardavam, flexionavam os

joelhos, olhando fixamente para um lado e para o outro do vale, num movimento constante

e irrequieto. Em seguida apareceu um grupo de Atiradores - homens inalterados que

usavam túnicas largas, e chapéus verdes e amarelos de pano. Levavam dois outros

veículos de três rodas que começaram imediatamente a montar e a experimentar.

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O grupo inteiro tornou-se quieto e tenso. As Tropas Pesadas deram um passo à

frente num movimento arrastado dos pés, enquanto mantinham as mãos de prontidão

sobre as espadas e pistolas.

—Lá vem eles! - disse Joaz.

Phade calou um grito de desespero, ajoelhou-se no chão e, mais uma vez, começou

as gesticulações teúrgicas. Joaz, aborrecido, mandou-a embora do estúdio; dirigiu-se em

seguida a um painel equipado com um conjunto de seis aparelhos de comunicação direta

por meio de fios, cuja construção ele acompanhara pessoalmente. Falou em três dos

telefones, certificando-se que suas defesas estavam de prontidão. Feito isto, retornou às

lâminas de vidro polido.

As Tropas Pesadas atravessaram os campos de bellegarde; tinham os rostos duros,

vincados por rugas profundas. Nos flancos iam os Atiradores, puxando os mecanismos de

três rodas; os Batedores tinham permanecido ao lado da nave. Uns doze Básicos

cavalgavam atrás das Tropas Pesadas carregando armas volumosas nas costas.

A uns cem metros do portal da Alameda Kergan, fora do alcance dos mosquetes de

Banbeck, os invasores fizeram alto. Um dos Pesados correu para uma das carroças dos

Atiradores, enfiou os ombros por baixo do arreio e ficou em pé. Puxava agora uma

máquina cinzenta, da qual saíam duas bolas negras. O Pesado deu uma corridinha em

direção à aldeia como um rato enorme; das bolas negras jorrava um fluxo que tinha por

finalidade atingir o sistema nervoso dos defensores de Banbeck, imobilizando-os.

Ouviram-se detonações; rolos de fumaça saíram dos esconderijos e pontos

estratégicos no meio das rochas. Balas levantaram terra ao lado do Pesado; vários

ricochetearam na sua armadura. Imediatamente, raios quentes foram lançados da nave

contra as encostas do penhasco. No interior do estúdio, Joaz sorriu. As nuvens de fumaça

eram uma cilada; os tiros reais vinham de outras partes. O Pesado, negaceando e

movendo-se com rapidez, evitou uma rajada de balas e correu para baixo do portão, em

cima do qual dois homens mantinham guarda. Atingidos pelo fluxo, estremeceram e

imobilizaram-se, não sem antes conseguirem lançar uma grande pedra que atingiu o

Pesado entre o pescoço e os ombros, derrubando-o. O invasor agitou os braços e as

pernas para cima, rolou de um lado para o outro; logo pôs-se em pé de um salto, correu de

volta para o vale, dando grandes pulos, até que finalmente tropeçou e tombou de cabeça

no chão, onde ficou estrebuchando.

O exército dos Básicos observava a cena sem demonstrar o menor interesse ou

preocupação.

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Houve um momento de inatividade. Logo depois, surgiu da nave um campo invisível

de vibração, que percorreu a face dos penhascos. Onde o foco batia, rolos de poeira

levantavam-se e as rochas soltas ruíam. Um homem, agachado atrás de uma saliência,

deu um pulo, dançando e contorcendo-se, e mergulhou de sessenta metros para a morte.

Ao passar por uma das vigias de Joaz Banbeck, a vibração penetrou no estúdio e produziu

um ruído estridente. Atravessou o penhasco de lado a lado. Joaz esfregou a cabeça

dolorida.

Enquanto isso, os Atiradores descarregaram uma de suas armas: primeiro, ouviram-

se explosões abafadas; depois, uma esfera cinzenta e oscilante descreveu uma curva no

espaço. Apontada com inexatidão, atingiu o portal e produziu uma grande emanação de

gás amarelo e branco. Na segunda detonação a bomba, lançada com boa pontaria, foi

bater na Alameda Kergan, que estava completamente deserta, de sorte que o projétil não

causou nenhum dano.

Joaz aguardava preocupado e sombrio no estúdio o desenvolver dos acontecimentos.

Até ali os Básicos tinham adotado medidas hesitantes, quase lúdicas; tentativas mais

sérias iriam certamente seguir-se.

O vento dispersou os gases; a situação voltou a ser como antes. As perdas até agora

eram um membro do contingente dasTropas Pesadas e um atirador de Banbeck.

A nave disparou em seguida como que uma rajada de violenta chama vermelha, que

fez a rocha junto ao portal voar empedaços; os estilhaços zumbiam e giravam no ar; as

Tropas Pesadas marcharam para frente.

Joaz falou no telefone, aconselhou cautela aos capitães, afim de não contra-atacarem

e caírem numa cilada, expondo-se a uma nova bomba de gás.

As Tropas Pesadas, no entanto, lançaram-se pela Alameda Kergan — um ato de

temeridade e desdenhosa confiança, na opinião de Joaz. Deu uma ordem lacônica; das

passagens e das áreas vizinhas, os dragões precipitaram-se contra os invasores —

Monstros Azuis, Demônios, Megeras.

O esquadrão dos Pesados foi tomado de assombro. Ali estavam adversários

inesperados. A Alameda Kergan se encheu de gritos e de ordens dos chefes. Primeiro, os

invasores recuaram, depois, com a coragem do desespero, lutaram furiosamente. De um

lado e do outro da Alameda Kergan, a batalha foi travada com violência. Algumas

limitações logo tornaram-se evidentes. No desfiladeiro estreito, as pistolas dos invasores e

as bolas de aço dos Demônios não podiam ser empregadas com eficiência. As espadas

curvas eram inúteis contra as escamas dos dragões, enquanto as tenazes dos Monstros

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Azuis, os punhais das Megeras, os machados, as espadas, as garras e as unhas dos

Demônios causavamperdas tremendas entre as Tropas Pesadas. Um invasor isoladoera

certamente um adversário à altura contra uma única Megera, se bem que o Pesado,

agarrando o dragão com seus braços robustos, decepando-lhe os membros anteriores e

partindo-lhe o pescoço, vencesse mais vezes o combate que a Megera. Mas se doisou três

dragões enfrentavam um invasor isolado, este estava perdido. No momento em que

arremetia contra um deles, o outro esmagava suas pernas, cegava-o ou degolava-o.

Por isso as Tropas Pesadas recuaram para o vale, deixando vinte de seus

companheiros mortos na Alameda Kergan. Os homens de Banbeck tornaram a abrir fogo,

mais uma vez com pequeno êxito.

Do estúdio, Joaz observava a luta, perguntando a si mesmo qual seria a próxima

tática que os Básicos empregariam. Sua dúvida foi logo esclarecida. As Tropas Pesadas

reagruparam-se, ofegantes, enquanto os Básicos cavalgavam de um lado para o outro,

recebendo informações, dando orientação, incentivando e criticando os combatentes.

Da nave negra saiu um jato de energia que atingiu o penhasco no alto da Alameda

Kergan; o estúdio tremeu com o abalo.

Joaz afastou-se das placas de visão. O que aconteceria se um raio atingisse uma das

lentes? A energia podia se focalizar num ponto e refletir diretamente em cima dele!

Quando o estúdio foi abalado por uma nova explosão decidiu abandoná-lo.

Atravessou correndo uma passagem, desceu a escada e foidar numa das galerias

centrais onde encontrou uma confusão generalizada. Mulheres e crianças de rostos

pálidos, que se retiravam para o interior das montanhas, passavam por dragões e homens

em armaduras de combate e penetravam num dos novos túneis construídos na rocha.

Joaz observou a cena durante alguns instantes para certificar-se de que a confusão não se

transformaria em pânico. Reuniu-se em seguida aos seus guerreiros no túnel que conduzia

ao norte.

Numa época remota, um lado inteiro do penhasco no alto do vale havia

desmoronado, criando um verdadeiro labirinto de pedregulhos e de pedras amontoadas

que era chamado as Pedras de Banbeck. Ali, por uma nesga, abria-se o túnel novo; e foi

por ele que Joaz entrou com os guerreiros. Atrás deles, no vale embaixo, ressoava o

clangor das explosões, enquanto a nave negra demolia a Aldeia Banbeck.

Protegido atrás de uma pedra, Joaz viu grandes lascas de rocha desprenderem-se do

penhasco, o que o enfureceu. Mas sua raiva transformou-se em perplexidade quando as

tropas dos Básicos começaram a receber reforços extraordinários. Avistou oito Gigantes

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duas vezes mais altos que os homens comuns - monstros de tórax abaulado, braços e

pernas tortos, olhos claros e com tufos de cabelos alourados. Usavam armaduras marrons

e vermelhas com dragonas pretas, e estavam armados com espadas, bastões e canhões

de chamas, que conduziam em cima dos ombros.

Joaz refletiu. A presença dos Gigantes não era motivo suficiente para alterar sua

estratégia, a qual, de qualquer modo, era vaga e intuitiva. Devia estar preparado para

sofrer perdas sérias e sua única esperança era infligir perdas maiores ainda ao exército

dos Básicos. Mas que importância davam eles à vida de seus combatentes? Menos ainda

que Joaz dava à vida dos dragões. Se destruíssem a Aldeia Banbeck, devastassem o vale

- de que maneira poderia revidar? Olhou por cima dos ombros para os altos penhascos

brancos, indagando consigo mesmo qual seria a posição exata do salão subterrâneo dos

sacerdotes. Agora tinha que agir; chegara o momento. Fez sinal para um dos meninos, um

de seus filhos, que tomou fôlego, desceu correndo do abrigo nas rochas e atravessou

precipitadamente o vale, seguido por sua mãe que, num instante, o apanhou e voltou à

toda para as Pedras.

—Fez bem - murmurou Joaz. —Muito bem.

Com toda cautela, tornou a olhar por entre às pedras do morro. Os Básicos estavam

olhando atentamente na sua direção.

Durante um longo momento, enquanto Joaz aguardava ansioso, parecia que o

inimigo ignorara seu estratagema. Os Básicos conferenciaram e pareceram chegar a uma

conclusão, pois em seguida ativaram as montarias, chicoteando suas ancas cobertas

decouro. As criaturas deram um salto para o lado e depois saíram correndo em direção à

parte norte do vale. Os Batedores iam atrás, seguidos pelas Tropas Pesadas, que

caminhavam com passadas ligeiras e saltitantes. Em seguida marchavam os Atiradores,

trazendo os veículos de três rodas; na retaguarda iam os oito Gigantes, arrastando os

canhões pesados. Os invasores atravessaram os campos de bellegarde, de ervilhaca,

passaram por cima dos vinhedos, das cercas, dos canteiros de morangos e das plantações

de hortaliças, destruindo tudo com uma certa satisfação indolente.

Os Básicos se detiveram prudentemente diante das Pedras de Banbeck, enquanto os

Batedores avançavam como cães amestrados; subiam nas pedras, farejavam o ar em

volta, esmiuçando, ouvindo, apontando e cochichando nervosamente uns com os outros.

As tropas Pesadas marchavam cuidadosamente e a proximidade delas incentivava os

Batedores. Alguns abandonando toda cautela, saltaram bem no meio das Pedras. Seus

gritos de pavor, porém, feriram o ar quando uma dúzia de Monstros Azuis caiu subitamente

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no meio deles. Os animais se apoderaram das armas térmicas, queimando, na sua

excitação, aliados e inimigos ao mesmo tempo. Com voluptuosa ferocidade, os Monstros

Azuis despedaçaram os invasores, enquanto estes gritavam por socorro, debatiam-se,

desferiam golpes e pancadas; aqueles que ainda tinham chance recuavam tão

precipitadamente quanto tinham avançado. Somente doze dos vinte e quatro assaltantes

conseguiram retornar, e corriam dando gritos de alívio por se sentirem livres da morte,

quando foram atacados por um esquadrão de Assassinos de Chifres Compridos. Assim os

Batedores restantes foram derrubados, massacrados, despedaçados.

As Tropas Pesadas investiram então - entre gritos terríveis - apontando as pistolas,

brandindo as espadas, mas os Assassinos retiraram-se para os abrigos nas pedras.

No interior das Pedras, os homens de Banbeck capturaram as armas térmicas

abandonadas pelos Batedores e, avançando com cautela, tentaram usá-las contra os

Básicos. Entretanto, inexperientes no uso dessas armas, não sabiam focalizar ou

concentrar as chamas, de maneira que os Básicos, apenas levemente atingidos,

chicotearam rapidamente suas montarias para longe do alcance dos jatos. Estacionadas

uns trinta metros adiante das Pedras, as Tropas Pesadas aproveitam a ocasião para lançar

uma saraivada de granadas, que atingiu dois homens de Banbeck matando-os, e forçou a

retirada dos outros.

A uma distância razoável dali, os Básicos avaliavam a situação. Os Atiradores

aproximaram-se do local e, enquanto aguardavam as instruções, conversavam em Voz

baixa com as montarias. Um dos Atiradores foi chamado para receber ordens. Após ouvir

as instruções, largou todas as armas que trazia e, com as mãos vazias levantadas no alto,

caminhou em direção às Pedras. Escolheu um vão entre duas rochas de três metros de

altura e penetrou resolutamente no labirinto.

Um cavaleiro de Banbeck escoltou-o até a presença de Joaz. Ali, por acaso, havia

também meia dúzia de Megeras. O Atirador parou indeciso, fez uma readaptação mental e

aproximou-se delas. Inclinando respeitosamente a cabeça, começou a falar. As Megeras o

ouviram sem o menor interesse, até que o cavaleiro o dirigiu à presença de Joaz.

—Os dragões não governam os homens em Aerlith - disseJoaz com rispidez. —Qual

é sua mensagem?

O Atirador olhou, ainda em dúvida, para onde estavam as Megeras, e depois,

sombriamente, para Joaz.

—O senhor tem autoridade para agir em nome da população? - Falava lentamente,

com a voz seca e suave, escolhendo as palavras com todo cuidado.

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Joaz repetiu brevemente:

—Qual é sua mensagem?

—Eu trago uma integração dos meus senhores.

—"Integração"? Não entendo o que isso quer dizer.

—Uma integração dos vetores instantâneos do destino. Uma interpretação do futuro.

Eles desejam que o sentido lhe seja transmitido nos seguintes termos: "Não desperdice

vidas, tanto suasquanto nossas. O senhor é valioso para nós e receberá um tratamento de

acordo com este valor. Renda-se à Regra. Cesse a destruição inútil da empresa."

Joaz franziu a testa.

—"Destruição da empresa"?

—A referência diz respeito ao conteúdo dos seus genes. A mensagem é essa.

Aconselho-o a aceitar. Por que desperdiçar seu sangue, por que destruir mais homens?

Venha comigo agora; tudo sairá melhor.

Joaz riu, sarcástico.

—Você é um escravo. Como pode julgar o que é melhor para nós?

O Atirador piscou.

—Que outra escolha existe? Todos os nichos residuais da vida desorganizada vão

ser extintos. O caminho mais fácil é o melhor. - Inclinou a cabeça respeitosamente em

direção às Megeras. —Se tem dúvidas, consulte seus Venerados. Eles o aconselharão.

—Não existem Venerados aqui - disse Joaz. —Os dragões lutam por nós e conosco;

são nossos guerreiros. Mas eu tenho uma proposta a fazer. Por que você e seus

companheiros não se unem a nós? Abandonem a escravidão, voltem de novo à condição

de homens livres! Assaltaremos a nave e partiremos em busca dos mundos antigos dos

homens.

O Atirador demonstrou apenas um interesse educado.

—Mundos dos homens? Não existem mais estes mundos. Alguns poucos elementos

residuais, como é o seu caso, habitam regiões desoladas. Todos vão ser aniquilados. Não

prefere servir à Regra?

—Você não prefere ser um homem livre?

O rosto do Atirador demonstrou uma surpresa moderada.

—O senhor não me entende. Se escolher...

—Ouça com atenção - interrompeu Joaz; você e seus companheiros podem ser seus

próprios senhores, viver entre outros homens.

O Atirador franziu a testa.

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—Quem gostaria de ser um selvagem? Quem vos imporia lei, controle, direção,

ordem?

Joaz ergueu as mãos para o alto, tomado de desânimo, mas fez uma última tentativa.

—Eu cuido de tudo isso. Assumo essa responsabilidade. Volte para os seus, mate os

Básicos - os Venerados, como você os chama. Estas são minhas primeiras ordens.

—Matá-los? - A voz do Atirador era trêmula de horror.

—Mate-os - repetiu Joaz como se dirigisse a uma criança. —Aí entraremos na posse

da nave espacial. Vamos procurar os mundos onde os homens são poderosos...

—Não existem mais estes mundos.

—Ah, têm que existir! Houve uma época em que os homens visitavam todas as

estrelas do céu.

—Não é mais assim.

—E o Éden?

—Nada sei a esse respeito.

Joaz sacudiu as mãos, desalentado.

—Você vai juntar-se a nós?

—Qual seria o significado desse ato? — indagou o Atirador com delicadeza.

—Vamos, deponha as armas, submeta-se à Regra. Lançou um olhar hesitante em

direção aos dragões.

—Seus Venerados receberão um tratamento adequado, pode ficar tranquilo.

—Seu louco! Estes "Venerados" são escravos, da mesma forma que vocês são

escravos dos Básicos! Foram criados para nos servir, do mesmo modo como vocês são

cruzados! Tenha pelo menos a gentileza de reconhecer sua própria degradação.

O Atirador piscou os olhos.

—Não entendo perfeitamente os termos de suas palavras. Não pretende entregar-se,

então?

—Não. Vamos matar todos vocês, se nossas forças nos permitirem.

O Atirador inclinou a cabeça, voltou-se e desceu pelas rochas. Joaz seguiu-o e olhou

em direção ao vale.

O Atirador transmitiu a mensagem aos Básicos, que a ouviram com um desinteresse

característico. Deram uma ordem e as Tropas Pesadas, espalhando-se em linha de

combate, avançaram lentamente em direção às montanhas. Atrás iam os Gigantes, com as

armas apontadas para a frente, e cerca de vinte batedores, os sobreviventes do primeiro

encontro. As Tropas Pesadas aproximaram-se das rochas e examinaram o local. Os

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Batedores subiram ao alto das pedras, à procura de emboscadas; como não encontraram

nenhum vestígio, fizeram sinal para os que vinham atrás. Com grande cautela, as Tropas

Pesadas penetraram nas Pedras, rompendo necessariamente a formação. Avançaram seis

metros, vinte metros, trinta metros, até que, tomados de coragem, os vingativos Batedores

saltaram sobre as rochas. Do alto surgiram as Megeras.

Gritando e praguejando, os Batedores recuaram em debandada, perseguidos pelos

dragões. As Tropas Pesadas retrocederam, depois apontaram as armas, dispararam e

atingiram duas Megeras embaixo das axilas, o ponto mais vulnerável do corpo dos

dragões. Gritando de dor, as criaturas despencaram pelas pedras abaixo. Outras,

alucinadas, saltaram diretamente no meio das Tropas Pesadas. Houve uma confusão de

bramidos, ruídos de choques, uivos de dor. Os Gigantes avançaram pesadamente e, de

dentes arreganhados, foram agarrando os dragões, torcendo suas cabeças e atirando-os

por cima das rochas. Alguns, porém, conseguiram escapar, após terem ferido uma meia

dúzia de membros das Tropas Pesadas, deixando dois com a garganta aberta.

De novo as Tropas Pesadas avançaram, enquanto os Batedores reconheciam o

terreno, com maior cautela desta vez. De repente, os Batedores imobilizaram-se, gritaram

uma advertência, as Tropas Pesadas fizeram alto, chamando uns aos outros, brandindo as

armas com nervosismo. Logo estavam descendo aos saltos de seus postos de observação

pois tinham avistado uma dezena de Demônios e de Monstros Azuis que investiam,

subindo e metendo-se pelo meio das pedras. As Tropas Pesadas, os rostos contorcidos,

numa careta sinistra, dispararam as pistolas e o ar se encheu do cheiro enjoativo de

escamas queimadas, de vísceras expostas. Os dragões lançaram-se sobre os atacantes;

começou, então, um combate terrível por entre as rochas, uma vez que as pistolas, os

bastões e até mesmo as espadas eram inúteis por falta de espaço. Os Gigantes

avançaram pesadamente e, por seu turno, foram atacados pelos Demônios. Atônitos, os

sorrisos idiotas sumiram de seus rostos; saltavam desajeitadamente para fugir dos golpes

das caudas armadas, embora entre as rochas os Demônios também levassem

desvantagem: as bolas de aço que traziam na ponta da cauda chocavam-se mais

freqüentemente contra as pedras do que contra o corpo do inimigo.

Recuperando-se, os Gigantes descarregaram os projetores de mão em meio à

confusão: Demônios foram despedaçados, de mistura com Monstros Azuis e elementos

das Tropas Pesadas; os Gigantes não faziam distinção entre as vítimas.

Por entre as pedras, surgiu uma nova onda de dragões - Monstros Azuis.

Escorregavam sobre as cabeças dos Gigantes, enfiando-lhes as garras, acutilando-os,

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rasgando-os. Tomados de fúria frenética, os Gigantes arrancavam os dragões de cima de

si, lançando-os ao chão e pisoteando-os; logo as Tropas Pesadas os queimavam com

suas pistolas.

De repente, sem nenhuma razão, houve uma calmaria. Durante dez segundos, vinte

segundos, não se ouvia ruído a não ser os gemidos e grunhidos de dragões e homens

feridos. Pairava no ar a expectativa de algo iminente. E foi então que os Moloques

surgiram pelas passagens entre as rochas. Durante alguns instantes, Gigantes e Moloques

se encararam face a face. Os Gigantes empunharam seus projetores de calor, enquanto os

Monstros Azuis tornaram a investir, agarrando os braços dos Gigantes. Os Moloques

avançaram rapidamente sobre o inimigo. Os membros anteriores dos dragões agarravam

os braços dos Gigantes; as maças cortavam o ar, as armaduras de dragões e de homens

se chocavam e esmigalhavam. Homem e dragão rolavam pelo chão, ignorando a dor, os

golpes, as mutilações.

A luta acalmou. Soluços e lamentos substituíram os urros do combate. Oito

Moloques, superiores em força física e em armas naturais, afastaram-se do terreno, onde

havia oito Gigantes tombados.

Enquanto isso, as Tropas Pesadas se haviam reagrupado, dorso contra dorso, em

blocos cerrados. Passo a passo, queimando com os feixes de calor, Monstros Azuis,

Megeras e Demôniosque os perseguiam as. Tropas Pesadas foram-se retirando para o

vale, onde se viram finalmente em campo livre. Os Demônios que vinham atrás, ansiosos

para lutar em campo aberto, saltaram sobre os inimigos, enquanto que dos flancos surgiam

Assassinos de Chifres Compridos e Assassinos Galopantes.

Tomados de um entusiasmo temerário, uns doze homens montados em Aranhas,

arrastando os canhões térmicos que haviam tomado dos Gigantes, investiram contra os

Básicos e os Atiradores que estavam parados nas proximidades das armas de três rodas.

Os Básicos, sem a menor cerimônia, manobraram as montarias humanas e fugiram para a

nave espacial. Os Atiradores giraram os mecanismos, apontaram, descarregaram jatos de

energia. Um homem caiu, dois homens, três — logo em seguida os demais estavam sobre

os Atiradores, que foram massacrados, inclusive o indivíduo persuasivo que servira de

mensageiro.

Alguns dos homens, aos gritos, partiram atrás dos Básicos, mas as montarias

humanas, saltando como lebres monstruosas, conduziam os Básicos tão velozmente

quanto as Aranhas transportavam os homens. Das Pedras veio um sinal de trompa; os

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homens montados fizeram alto e retrocederam. A tropa inteira de Banbeck recuou e

refugiou-se rapidamente no meio das Pedras.

As Tropas Pesadas deram alguns passos desconfiados naquela direção, mas logo

pararam, esgotadas. Dos primitivos três esquadrões, não havia mais homens suficientes

para formar um único. Os oito Gigantes tinham perecido, todos os Atiradores e quase o

grupo inteiro dos Batedores também.

As forças de Banbeck ganharam as Pedras no instante exato. Da nave negra partiu

uma rajada de granadas que despedaçou as rochas no lugar onde os homens de Banbeck

tinham estado poucos segundos antes.

Ervis Carcolo e Bast Givven acompanharam a batalha do alto de uma rocha polida

pelo vento. As pedras ocultavam a maior parte do combate; os gritos e clamores chegavam

ali fracamente, como zumbidos de insetos. Havia os fulgores das escamas dos dragões,

visões breves de homens correndo, a sombra e o clarão do movimento, mas foi somente

quando as forças dos Básicos se retiraram em destroços que o resultadoda batalha se

tornou visível. Carcolo balançou a cabeça, tomado de amarga admiração.

—Como este diabo de Joaz Banbeck é esperto! Conseguiu rechaçá-los.... destruir a

maior parte das tropas inimigas!

—Pelo visto - comentou Bast Givven - dragões armados de garras, de espadas e de

bolas de aço são mais eficientes do que homens com pistolas e raios térmicos... pelo

menos nesta região.

Carcolo murmurou:

—Eu também teria conseguido, em condições favoráveis, dirigiu a Bast Givven um

olhar ferino.

— Não concorda?

—Certamente. Sem dúvida alguma.

—Claro... Não tive a vantagem dos preparativos. Os Básicos me pegaram

desprevenido; Joaz Banbeck não teve esta desvantagem. - Olhou em direção ao Vale

Banbeck, onde a navedos Básicos bombardeava as Pedras fazendo as rochas voarem

empedaços. —Será que eles pretendem arrastar as Pedras? Neste caso, naturalmente,

Joaz Banbeck não terá outro refúgio. A estratégia deles é clara. E como eu suspeitava:

forças de reserva!

Neste momento outro grupo de Tropas Pesadas, composto de trinta elementos, vinha

descendo pela rampa, e aguardou e mordem no campo pisado diante da nave.

Carcolo deu um soco na palma da mão.

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—Bast Givven, preste atenção! Temos a oportunidade de realizar um grande feito; de

inverter nossa sorte! Olhe a Fenda Clybourne... vê como ela se abre diretamente sobre o

vale, bem atrás da nave dos Básicos?

—Sua ambição vai ainda nos custar a vida Carcolo deu uma risada.

—Escuta, Givven, quantas vezes o homem morre? Existe melhor maneira de perder

a vida do que buscando a glória?

Bast Givven voltou-se e observou os magros remanescentes do exército do Vale

Feliz.

—Podíamos conquistar a glória espancando alguns sacerdotes. Não há necessidade

de lançar-nos ao assalto da nave dos Básicos.

—Pois é isto exatamente o que vamos fazer - disse Carcolo. —Eu vou na frente.

Você reúne as forças e me segue. Vamos nos encontrar na Fenda Clybourne, no lado

oeste do vale!

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CAPÍTULO 11

Ervis Carcolo batia os pés e praguejava de nervosismo enquanto aguardava na

entrada da Fenda Clybourne. O insucesso da difícil empresa que se propusera passou por

sua imaginação numa série de lances. Os Básicos em face das dificuldades do Vale

Banbeck iriam embora. Joaz atacaria em campo aberto para salvar a Aldeia Banbeck e

seria destroçado. Bast Givven seria incapaz de controlar os homens abatidos e os dragões

amotinados do Vale Feliz. Qualquer uma dessas situações podia realmente ocorrer;

qualquer uma delas aniquilaria os sonhos de glória de Carcolo, o que o deixaria arrasado.

Tentando se acalmar andava de um lado para o outro do rochedo de granito; a cada

instante, dirigia o olhar para o Vale Banbeck; a cada instante, voltava-se e percorria com a

vista a linha desolada do horizonte, à procura das formas negras dos dragões, das

silhuetas mais altas dos homens.

Ao lado da nave dos Básicos havia dois esquadrões reduzidos de Tropas Pesadas -

os sobreviventes do primeiro ataque e as reservas. Agachados, em grupos silenciosos,

observavam a lenta destruição da Aldeia Banbeck. Fragmento por fragmento, ruíam as

edificações mais altas torres e penhascos que haviam alojado povo de Banbeck, ficando

em seu lugar apenas um monte crescente de destroços. Um bombardeio ainda mais

pesado era dirigido contra as Pedras. Estas se partiam como ovos; as lascas das rochas

rolavam pela encosta abaixo.

Passou-se meia hora. Ervis Carcolo sentou-se acabrunhado em cima de uma pedra.

Tilintar de metais, tropel de passos. Carcolo levantou-se num pulo. Serpenteando

pelo horizonte, vinham os restos alquebrados de suas tropas, os homens sem ânimo, as

Megeras irritadiças e difíceis de conter, um triste resto de Demônios, de Monstros Azuis,

de Assassinos.

Os ombros de Carcolo afundaram. O que podia conseguir com uma tropa tão

insignificante? Mostre um rosto decidido, homem! Nunca diga que é o fim! Compôs sua

melhor aparência. Avançou em direção aos homens e gritou:

—Homens, dragões! Hoje conhecemos a derrota, mas o dia não chegou ao fim. O

momento da redenção está próximo; vamos nos vingar tanto dos Básicos quanto de Joaz

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Banbeck! - Examinou a fisionomia dos homens, esperando encontrar um sinal

deentusiasmo. Todos olhavam para ele sem o menor interesse. Os dragões, que

entendiam ainda menos a situação, roncavam, silvavam, sussurravam.

— Homens e dragões! - berrou Carcolo.

—Vocês me perguntam, como vamos alcançar essas glórias? Eu respondo, sigam-

me ao combate! Lutem onde eu lutar! O que significa a morte para nós, depois que nosso

vale foi destruído?

Passou a tropa em revista novamente mas ainda desta vez encontrou unicamente

apatia e indiferença. Teve que abafar o urro de frustração que lhe subia pela garganta e

afastou-se alguns passos.

—Em marcha! - exclamou rispidamente por cima do ombro. Montou na Aranha

fatigada e rumou em direção à Fenda Clybourne.

A nave dos Básicos atacava com igual violência a Aldeia Banbeck e as Pedras. De

um ponto situado na encosta oeste do vale, Joaz Banbeck acompanhava a destruição dos

corredores familiares, um após outro. Apartamentos e salões laboriosamente cavados nas

rochas, esculpidos, trabalhados, polidos durante gerações e gerações, foram todos

arrasados, reduzidos a pó. Agora o alvo era a parte superior das construções, onde

estavam os apartamentos particulares de Joaz Banbeck, seu estúdio, o quarto de trabalho

e o relicário da família Banbeck. Joaz apertava e abria nervosamente os punhos, furioso

ante sua própria impotência. O objetivo dos Básicos era evidente. Pretendiam destruir o

Vale Banbeck, exterminar completamente os homens de Aerlith. E quem podia impedi-los?

Joaz examinou as Pedras. O antigo talus tinha sido quase completamente arrancado da

face do penhasco. Onde estava a abertura que dava para o Grande Salão dos sacerdotes?

Suas hipóteses mais otimistas estavam se reduzindo a nada. Se o bombardeio durasse

mais uma hora, seria a devastação completa da Aldeia Banbeck.

Joaz tentou controlar a angustiante sensação de decepção. Como podia fazer cessar

o ataque destruidor? Fez um cálculo nervoso. Claro, uma investida através do vale

equivaleria a um suicídio. Mas atrás da nave negra abria-se uma ravina semelhante àquela

onde se encontrava agora escondido: a Fenda Cybourne. O acesso à nave estava livre;

somente alguns indivíduos das Tropas Pesadas continuavam agachados por ali em atitude

displicente. Joaz balançou a cabeça numa careta amarga. Era inconcebível que os Básicos

negligenciassem uma ameaça tão evidente.

Mesmo assim... havia uma possibilidade de que, em sua arrogância, desprezassem a

possibilidade de uma ação tão audaciosa quanto aquela?

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Enquanto pensava a respeito, indeciso, ouviu uma saraivada de granadas, que

despedaçou a parte superior da torre que abrigava seus apartamentos. O relicário, o antigo

tesouro da família Banbeck, ia ser destruído em questão de minutos. Joaz fez um gesto de

raiva, ficou em pé de um salto e chamou o mestre dos dragões em quem depositava maior

confiança.

—Reúna os Assassinos, três esquadrões de Megeras, duas dúzias de Monstros

Azuis, dez Demônios e todos os cavaleiros. Vamos subir a Beira Banbeck, descer a Fenda

Clybourne e atacar a nave dos Básicos.

O mestre dos dragões partiu; Joaz entregou-se a uma contemplação melancólica. Se

os Básicos pretendiam atraí-lo a uma cilada, iriam certamente ser bem sucedidos.

O mestre dos dragões voltou.

—As forças estão reunidas.

—Vamos em frente.

Homens e dragões galgaram a ravina, indo surgir na Beira Banbeck. Tomaram a

direção do sul e foram sair na entrada da Fenda Clybourne. O cavaleiro que marchava à

frente da coluna deu, repentinamente, sinal de alto. Quando Joaz se aproximou, o homem

apontou para as pegadas no solo da fenda.

—Dragões e homens passaram recentemente por aqui. Joaz observou atentamente

as pegadas.

—Descendo em direção à fenda.

—Exatamente.

Joaz despachou um grupo de batedores, que voltou pouco depois a todo galope.

—Ervis Carcolo, com homens e dragões, está atacando a nave!

Joaz virou a Aranha e mergulhou na passagem obscura, seguido por todo o exército.

Ouviram exclamações e gritos de combate ao se aproximaremda entrada da fenda.

Quando desembocou no vale, Joaz teve diante de si uma cena de chacina furiosa: dragões

e Tropas Pesadas trocavam golpes, cutiladas, em meio a explosões e chamas. Onde

estava Ervis Carcolo? Joaz cavalgou corajosamente em direção à porta da nave, que

estava escancarada. Ervis Carcolo, pelo visto, penetrara à força no seu interior. Teria sido

uma cilada ou ele tinha realizado o plano de Joaz de apoderar-se da nave? E as Tropas

Pesadas? Os Básicos iriam sacrificar quarenta guerreiros para capturar um punhado de

homens? Era um absurdo – se bem que agora as tropas Pesadas estavam defendendo o

terreno. Tinha formado uma falange e concentravam toda a energia das armas sobre os

dragões que investiam. Se fosse uma armadilha, estava sendo posta em prática naquele

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momento a menos que Ervis Carcolo já houvesse capturado a nave. Joaz levantou-se na

sela e fez sinal para sua companhia.

—Atacar!

As Tropas Pesadas estavam perdidas. Assassinos Galopantes precipitaram-se do

alto enquanto Assassinos de Chifres Compridos investiram de baixo. Os Monstros Azuis

arrancavam pedaços, cortavam, esquartejavam os inimigos. A batalha estava ganha

quando Joaz, com homens e Megeras, investiu rampa acima. Do interior da nave vinham

zumbidos e pulsações de energia, além de sons humanos - gritos e urros de fúria.

Joaz ficou perplexo com o tamanho colossal do engenho; parou repentinamente e

olhou indeciso para o interior. Atrás dele, os homens aguardavam suas ordens,

murmurando em voz baixa. Os pensamentos giravam em sua cabeça. Indagou a si

mesmo: "Sou tão corajoso quanto Ervis Carcolo? O que é a coragem, no fundo? A verdade

é que estou terrivelmente assustado. Aqui estou eu sem saber se entro ou não na nave."

Deixando de lado, porém, todo receio, correu em frente, seguido pelos homens e por um

bando de Megeras.

No mesmo instante em que Joaz entrou na nave, percebeu que Ervis Carcolo não

fora bem sucedido; em torno dele, as armas ainda cantavam e sibilavam. Os apartamentos

de Joaz voavam em pedaços. Logo uma tremenda rajada destruiu as Pedras pondo a nu a

rocha lisa do penhasco e o que estava oculto até então — a soleira de uma grande

abertura.

Joaz, avançando pelo interior da nave, foi dar numa antecâmara. A porta interior

estava fechada. Aproximou-se dela e avistou, através de um visor retangular, o que

parecia ser um hall ou sala de concentração. Ervis Carcolo e seus cavaleiros estavam

agachados junto à parede oposta, vigiados por vinte Atiradores. Um grupo de Básicos

descansava num aposento ao lado, tranquilos, silenciosos, numa atitude contemplativa.

Carcolo e seus homens não estavam completamente vencidos; no instante em que

Joaz observava a cena, Carcolo tentou uma furiosa investida, rechaçada imediatamente

por uma descarga rubra de energia, que o atirou de volta contra a parede.

Um dos Básicos que estava num compartimento ao lado, ao espiar através do

aposento, constatou a presença de Joaz Banbeck. Deu uma pancadinha com o membro

anterior e tocou numa barra. Imediatamente soou um alarme e a porta exterior da nave

fechou-se. Uma armadilha? Um sistema de emergência? Tanto fazia. Joaz fez sinal para

quatro homens que levavam uma arma pesada nas costas. Os quatro se aproximaram,

ajoelharam-se e colocaram no chão o canhão que os Gigantes tinham levado para as

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Pedras. Joaz ergueu o braço e acionou o canhão; o metal rangeu, derreteu, odores azedos

inundaram a peça, mas ele não funcionou. A boca era pequena demais.

—De novo!

Dessa vez o canhão detonou: a porta desapareceu. Os Atiradores saltaram pela

abertura, disparando suas pistolas de energia. O fogo púrpura atingia as fileiras de

Banbeck. Os homens dobravam-se, contorciam-se, caíam no chão, de mãos crispadas e

rostos contorcidos. Antes que o canhão pudesse responder, formas de escamas vermelhas

se lançaram à frente. Megeras, sibilando e grunhindo, investiram contra os Atiradores,

espalharam-se pelo salão. Pararam repentinamente diante do aposento ocupado pelos

Básicos, como se tomadas de espanto. Os homens que se amontoavam atrás ficaram em

silêncio; até mesmo Carcolo observava a cena fascinado. As raças de Básicos

observavam seus derivados, cada qual vendo no outro sua própria caricatura. As Megeras

se moveram finalmente, com uma deliberação sinistra: osBásicos balançavam os membros

anteriores, silvando. As Megeras continuaram avançando para dentro do aposento. Ouviu-

se o ruído horrendo de corpos derrubados. Joaz, tomado de invencível náusea, desviou o

olhar. A luta foi breve; logo se fez silêncio no aposento. Joaz voltou-se a fim de examinar

Ervis Carcolo, que o encarou por sua vez, sem poder proferir uma palavra, mudo de raiva,

humilhação, dor e medo.

Recuperando finalmente a voz, Carcolo fez um gesto desajeitado de ameaça e fúria.

—Retire-se daqui - grunhiu. —Eu tomei esta nave. A menos que você queira banhar-

se no próprio sangue, deixe-me em paz com minha conquista!

Joaz teve um sorriso de desprezo e voltou as costas a Carcolo; este engoliu em seco

e, com uma imprecação entre dentes, partiu contra Joaz. Bast Givven segurou-o,

obrigando-o a recuar. Carcolo ainda lutou; Givven procurou demovê-lo e Carcolo

finalmente cedeu, quase chorando.

Enquanto isso, Joaz examinava a peça. As paredes eram desbotadas, cinzentas; o

piso era coberto com uma espuma preta elástica. Não havia nenhuma iluminação visível,

mas havia luz em toda parte, emanando das paredes. O ar era frio e tinha um cheiro

desagradavelmente acre. Havia um odor no ambiente que Joaz não percebera antes.

Tossiu, os tímpanos começaram a zumbir. Uma suspeita assutadora tornou-se certeza;

com as pernas pesadas, caminhou com dificuldade para a porta, fazendo sinal para as

tropas.

—Para fora, eles estão nos envenenando!

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Desceu cambaleando pela rampa e respirou com sofreguidãoo ar puro. Atrás vinham

os homens e as Megeras; depois, numa correria, apareceram Carcolo e seus comandados.

O grupo respirava ofegante sob o casco da grande nave negra; alguns mal se podiam

manter de pé, com os olhos nadando em lágrimas.

Por cima deles, esquecidos ou indiferentes à presença dos inimigos, os canhões da

nave dispararam novamente. A torre que abrigava os apartamentos de Joaz estremeceu e

veio abaixo; as Pedras não eram mais do que um monte de lascas que resvalaram para

uma abertura em forma de arco. No interior da abertura, Joaz distinguiu uma forma escura,

um lampejo, um brilho, uma estrutura... Nesse instante, teve sua atenção despertada por

um ruído assustador às suas costas. Da porta situada na outra extremidade da nave

desceram reforços de Tropas Pesadas — três esquadrões de vinte homens, seguidos de

dez Atiradores com quatro projetores de rodas.

Joaz sentiu um frio no coração. Olhou para suas tropas: não estavam em condições

de atacar nem de se defender. Só havia uma única alternativa: fugir.

—Corram para a Fenda Clybourne! - gritou.

Trôpegos, vacilantes, os remanescentes dos dois exércitos fugiram por baixo da

grande nave negra. Atrás dele as Tropas Pesadas marchavam firmemente, mas sem

pressa.

Ao contornar a nave, Joaz parou de chofre. À entrada da Fenda Clybourne um quarto

esquadrão de Tropas Pesadas esperava-os, com outro Atirador armado.

Joaz olhou em todas as direções procurando opções. Em que direção correr, para

onde fugir? Para as Pedras? Não existiam mais. Um movimento lento e pesado, na

abertura que as rochas até ali escondiam, chamou sua atenção. Um objeto escuro

avançou; abriu-se uma portinhola, um disco brilhante surgiu. Quase instantaneamente um

filete luminescentes azul-leitoso foi lançado em direção ao disco posterior da nave dos

Básicos. No interior desta o mecanismo, torturado, gemeu, simultaneamente acima e

abaixo da escala, até tornar-se inaudível. O brilho dos discos posteriores foi

desaparecendo e eles se tornaram aos poucos cinzentos, opacos; o sussurro de energia e

de vida que antes banhava a nave deu lugar a um silêncio mortal; a própria nave estava

morta e sua massa, subitamente sem apoio, esmagou-se contra o chão num gemido.

As Tropas Pesadas olhavam consternadas para a nave que as levara a Aerlith. Joaz,

tirando partido da indecisão, ordenou:

—Retirada! Para o norte... para o vale!

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As Tropas Pesadas marcharam com obstinação atrás dos fugitivos, mas os

Atiradores deram ordem de parar. Colocaram as armas no chão e apontaram para a

caverna atrás das Pedras. No interior da abertura, sombras nuas moviam-se com uma

rapidez frenética; houve uma mudança lenta de máquinas pesadas, uma alteração de

luzes e de sombras, e o feixe brilhante azul-leitoso tornou a disparar. Brilhou rente ao

chão: Atiradores, armas e dois terços das Tropas Pesadas desapareceram como

mariposas numa fornalha. Os sobreviventes das Tropas Pesadas pararam e recuaram

indecisos em direção à nave. À entrada da Fenda Clybourne estava estacionado o último

esquadrão das Tropas Pesadas. O único Atirador estava debruçado sobre seu mecanismo

de três rodas. Com extremo cuidado fez o ajuste da mira; no interior da abertura escura os

sacerdotes nus trabalhavam furiosamente; o esforço dos músculos, dos corações e das

mentes comunicava-se a todos os homens do vale. O feixe de luz azul-leitoso jorrou

novamente, porém cedo demais, indo atingir e derretendo a rocha a uns cem metros ao sul

da Fenda Clybourne. E então, da arma do Atirador isolado, saiu uma chama laranja-

esverdeada. Segundos mais tarde a entrada da caverna dos sacerdotes explodiu. Rochas,

corpos, fragmentos de metal, de vidro e de borracha voaram pelos ares.

O estrondo da explosão repercutiu pelo vale. E o objeto escuro na caverna agora não

era mais do que um amontoado informe de metais.

Joaz respirou três vezes profundamente, neutralizando os efeitos do gás narcótico

quase que por pura força de vontade. Fez sinal para os Assassinos.

—Ataquem, matem!

Os Assassinos saltaram para frente; as Tropas Pesadas jogaram-se ao chão,

apontaram as armas, mas foram massacradas. O derradeiro esquadrão de Tropas

Pesadas, abandonando a entrada da Fenda Clybourne, investiu desesperadamente, mas

foi atacado no mesmo instante por Megeras e Monstros Azuis, que se tinham esgueirado

por cima do penhasco. O Atirador solitário foi retalhado por um Assassino; não havia mais

resistência no vale e a nave negra jazia, indefesa, à disposição dos atacantes.

Joaz marchou na frente a caminho da rampa, atravessou aporta e penetrou no

saguão, que estava agora às escuras. O canhão que fora capturado dos Gigantes se

achava no mesmo lugar onde os homens de Joaz o tinham deixado.

A peça tinha três portais, que foram destruídos com o canhão. O primeiro dava para

uma rampa em caracol; o segundo para um corredor comprido e vazio, com fileiras de

beliches laterais; o terceiro para um corredor semelhante, cujos beliches estavam

ocupados. Rostos pálidos olhavam dos leitos, mãos lívidas tremiam. De um lado para

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outro, no corredor central, velhas que andavam agachadas pareciam tomar conta dos

prisioneiros. Ervis Carcolo entrou correndo, empurrou as velhas, espiou para dentro dos

beliches.

—Todos para fora — gritou. - Vocês estão salvos, estão fora de perigo. Saiam todos

rapidamente, enquanto é tempo.

Houve apenas uma débil resistência por parte de meia dúzia de Atiradores e

Batedores, mas nenhum dos vinte Mecânicos - homens pequenos e magros com traços

salientes e cabelos escuros - resistiu. Da mesma forma que os dezesseis últimos Básicos,

foram levados para fora da nave como prisioneiros sem dificuldade.

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CAPÍTULO 12

A tranquilidade cobria agora todo o vale: o silêncio da exaustão. Homens e dragões

erravam pelos campos devastados; os cativos formavam um ajuntamento desalentado ao

lado da nave. Vez por outra, um ruído isolado acentuava o silêncio - os estalos dos metais

que esfriavam dentro da nave, a queda de uma pedra soltados penhascos destruídos, o

murmúrio ocasional da população livre do Vale Feliz, que formava um grupo à parte dos

guerreiros sobreviventes.

Somente Ervis Carcolo parecia inquieto. Durante algum tempo manteve-se de costas

para Joaz, batendo na perna com a borlada bainha de sua espada. Contemplava o céu

onde Skene, um átomo brilhante, pairava sobre os penhascos ocidentais; voltou-se em

seguida e examinou a abertura destruída ao norte do vale, coberta pelos restos retorcidos

da construção dos sacerdotes. Deu uma última batida na perna, olhou para Joaz Banbeck,

voltou-se e caminhou por entre os grupos de gente do Vale Feliz, fazendo movimentos

bruscos sem sentido aparente, parando aqui e ali para dizer algumas palavras ou elogiar

os homens, procurando, certamente, instilar ânimo no povo vencido. Mas não foi bem

sucedido no seu propósito; finalmente, deu meia-volta e avançou pelo campo em direção

ao local onde Joaz Banbeck estava deitado ao comprido. Carcolo olhou para baixo.

—Muito bem - disse com cordialidade. A batalha terminou, a nave foi conquistada.

Joaz levantou meio corpo, apoiando-se no cotovelo.

—Pois é.

—Vamos deixar um ponto bem claro. A nave e seu conteúdo são meus. Uma regra

antiga define os direitos do que atacou primeiro. Recorro agora a esta lei.

Joaz olhou para cima surpreso, com um meio-sorriso nos lábios.

—Por uma regra ainda mais antiga, já tomei posse de tudo.

—Discordo desta afirmação - disse Carcolo com veemência. —Quem...

Joaz levantou a mão com ar cansado.

—Cale-se, Carcolo! Você está vivo apenas porque já estou cansado de sangue e de

violência. Não abuse de minha paciência!

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Carcolo afastou-se, torcendo a borla da bainha com uma fúria controlada. Olhou para

o vale e tornou a encarar Joaz.

—Lá vêm os sacerdotes. Foram eles, de fato, que destruíram a nave. Torno a

lembrar-lhe de meu propósito, graças ao qual podíamos ter evitado esta destruição, e esta

terrível matança.

Joaz sorriu.

—Foi somente há dois dias atrás que você fez sua proposta. Além disso, os

sacerdotes não possuem armas.

Carcolo encarou Joaz como se este tivesse perdido o juízo.

—De que maneira, então, eles destruíram a nave?

—Só posso fazer conjecturas.

Carcolo indagou com ironia:

—E que "conjecturas" são essas?

—Suspeito que construíram a fuselagem de uma nave espacial e que dirigiram o raio

de propulsão contra a nave dos Básicos.

Carcolo franziu os lábios na dúvida.

—Por que motivo os sacerdotes iriam construir uma nave espacial?

—O Demie está se aproximando. Por que não pergunta diretamente a ele?

—É o que vou fazer - disse Carcolo com dignidade.

O Demie, no entanto, acompanhado por quatro sacerdotes jovens e caminhando com

o ar de quem anda nas nuvens, passou por eles sem dizer nada. Joaz começou a levantar-

se observando o sacerdote. O Demie, pelo visto, parecia ter a intenção de subir a rampa

da nave e penetrar em seu interior. Completando este pensamento, ergueu-se de um pulo

e impediu que o sacerdote penetrasse na nave para, a seguir, indagar polidamente:

—O que está procurando, Demie?

—Procuro entrar na nave.

—Com que objetivo? Pergunto, naturalmente, por simples curiosidade.

O Demie fitou-o um instante sem responder. O rosto estava fatigado e contraído, os

olhos brilhavam como estrelas geladas. Respondeu finalmente, com a voz conturbada de

emoção.

—Desejo verificar se a nave pode ser recuperada.

Joaz refletiu um momento. E respondeu, com a voz delicada da razão:

—A informação talvez seja de pequeno interesse para vocês. Os sacerdotes

concordariam em se submeter inteiramente ao meu comando?

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—Não obedecemos a ninguém.

—Neste caso, não posso levá-los comigo quando partir.

O Demie fez meia-volta e por um momento, deu a impressãode que iria se afastar

dali. Avistou, porém, a abertura destruída na extremidade do vale e voltou atrás.

—Tudo isto aconteceu por culpa sua! - exclamou numa explosão de fúria, numa voz

que não demonstrava a tradicional serenidade dos sacerdotes. —Você se julga inteligente

e cheio de recursos. Você nos obrigou a agir e, através disso, a violar nosso voto de

consagração.

Joaz assentiu com a cabeça, um sorriso sem graça nos lábios.

—Eu sabia que a abertura devia estar situada atrás das Pedras. Mas tinha minhas

dúvidas se vocês estavam ou não construindo a nave espacial. Esperava que tivessem

condições de se defender dos Básicos. Dessa forma é claro que estariam servindo a meus

propósitos. Admito suas acusações. Usei sua gente e sua construção como uma arma

para salvar meu povo e a mim mesmo. Fiz mal?

—Certo ou errado... quem pode avaliar? Você desperdiçou o esforço de nosso povo,

o resultado de um trabalho acumulado durante mais de oitocentos anos em Aerlith. Você

destruiu muito mais do que jamais poderá construir.

—Eu não destruí nada, Demie. Foram os Básicos que destruíram sua nave espacial.

Se vocês tivessem cooperado na defesa do Vale Banbeck, este desastre não teria

ocorrido. Vocês escolheram a neutralidade, julgaram-se imunes à nossa dor e ao nosso

sofrimento. Mas, no fim, não foi isto o que aconteceu, como se pode ver.

—Enquanto isso, nosso trabalho de oitocentos anos e doze meses foi desperdiçado

inutilmente.

Joaz indagou com fingida inocência:

—Por que necessitavam de uma nave espacial? Para onde pretendiam viajar?

Os olhos do Demie arderam tão intensamente quanto as chamas de Skene.

—Quando a raça dos homens desaparecer, então embarcaremos. Viajaremos pela

galáxia, repovoaremos os terríveis mundos antigos, e a nova História Universal principiará

a partir deste dia; o passado será apagado como se nunca houvesse existido. Se os grefos

destruírem vocês, o que significa isto para nós? Aguardamos apenas a morte do último

homem no Universo.

—Vocês não se consideram homens?

—Estamos acima dos homens, como vocês bem sabem. Atrás de Joaz alguém caiu

na gargalhada. Joaz voltou a cabeça e viu Ervis Carcolo.

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—Acima dos homens? - zombou Carcolo. —Pobres gênios nus das cavernas. E qual

a prova dessa sua superioridade?

A boca do Demie descaiu, as linhas do rosto esmaeceram.

—Temos nossos tands. Temos nosso conhecimento. Temos nossa força

Carcolo afastou-se com outra gargalhada grosseira. Joaz disse em voz baixa:

—Sinto mais piedade de vocês do que vocês jamais sentiram de nós.

Carcolo aproximou-se de novo.

—E onde vocês aprenderam a construir a nave espacial? Por seus próprios

recursos? Ou foi a partir do trabalho dos homens, dos homens de antigamente?

—Nós somos os homens supremos - disse o Demie. —Sabemos tudo que os homens

já pensaram, falaram ou inventaram. Somos os últimos e os primeiros. Quando os sub-

homens desaparecerem, renovaremos o cosmo, que será tão inocente e limpo como a

chuva.

—Os homens nunca desapareceram e nunca desaparecerão - falou Joaz. —Que

houve um retrocesso, admito. Mas o Universo não é imenso? Em alguma parte estão os

mundos dos homens. Com a ajuda dos Básicos e dos Mecânicos vou recuperar a nave e

partirei para estes mundos.

—Irá procurá-los em vão - disse o Demie.

—Esses mundos não existem?

—O Império Humano foi dissolvido; os homens existem apenas em pequenos grupos.

—E o Éden, o antigo Éden?

—É um mito, nada mais.

—E meu globo de mármore, o que significa então?

—Um brinquedo, uma construção da fantasia.

—Como pode ter certeza? - indagou Joaz, perturbado a despeito de si mesmo.

—Não disse antes que conhecemos toda a história? Podemos contemplar nossos

tands e enxergar as profundezas do passado, onde as recordações se tornam obscuras e

confusas, e nunca nos lembramos do planeta Éden.

Joaz balançou a cabeça com obstinação.

—Tem que haver um mundo primeiro no qual os homens tiveram origem. Chame-o

de Terra, de Tempe ou de Éden - em alguma parte ele existe.

O Demie fez menção de falar, mas calou-se demonstrando uma indecisão pouco

habitual.

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—Talvez você tenha razão - disse Joaz. —Talvez sejamos os últimos homens. Mas

vou partir para comprovar assim mesmo.

—Eu também vou com você - disse Ervis Carcolo.

—Você pode se considerar um homem de sorte se estiver vivo amanhã.

—Não recuse com tanta indiferença meu direito à nave - retrucou Carcolo com

firmeza.

Joaz tentou em vão encontrar uma resposta. O que podia fazer com o desleal

Carcolo? Não era suficientemente inflexível para fazer o que devia ser feito.

Contemporizou, voltando as costas a Carcolo.

—Agora você conhece meus projetos - disse ao Demie. —Se não interferir comigo,

não vou me intrometer nos assuntos de seu povo.

O Demie afastou-se lentamente.

—Vá então. Somos uma raça passiva. Desprezamo-nos pelo que fizemos hoje.

Talvez tenha sido um grande erro. Mas vá assim mesmo, procure seu mundo perdido.

Você vai simplesmente perecer nessa busca entre as estrelas. Vamos continuar

aguardando como aguardamos até agora.

O Demie fez meia-volta e afastou-se dali, acompanhado pelos quatro sacerdotes

jovens, que tinham permanecido todo o tempo em silêncio ao lado dele.

Joaz gritou para ele:

—E se os Básicos voltarem? Lutará conosco ou contra nós? O Demie não

respondeu; tomou a direção norte e foi caminhando, os longos cabelos ondulando sobre os

ombros.

Joaz observou-o um instante, contemplou toda a extensão do vale arruinado,

balançou a cabeça tomado de admiração e de espanto; depois voltou-se para examinar a

grande nave negra.

Skene banhava os morros do ocidente; houve uma súbita diminuição da luz, um frio

repentino. Carcolo aproximou-se dele.

—Esta noite vou alojar meu povo no Vale Banbeck emandá-lo de volta para casa

amanhã. Enquanto isso, sugiro que entremos os dois na nave e façamos as primeiras

investigações.

Joaz deu um suspiro fundo. Por que as coisas não podiam ser mais fáceis para ele?

Carcolo ameaçara duas vezes sua vida e, se as posições fossem inversas agora, tinha

certeza de que ele não para consigo mesmo, para com seu povo e para com seu objetivo

final era claro.

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Chamou os cavaleiros que tinham capturado as armas térmicas. Eles se

aproximaram.

—Levem Carcolo à Fenda Clybourne. Executem-no. Sem demora.

Carcolo foi arrastado entre gritos e protestos. Joaz afastou-se com o coração pesado

e procurou Bast Givven.

—Eu o considero um homem sensato.

—Também me considero assim.

—Você ficará encarregado do Vale Feliz. Leve seu povo para lá antes que escureça

puseram a caminho e partiram do Vale Banbeck.

Joaz atravessou o leito do vale até o monte de destroços que obstruía a passagem

pela Alameda Kergan. O espetáculo da destruição encheu-o de fúria. Por um breve

instante, quase mudou de decisão. Não seria preferível voar na nave negra para Coralyne

e vingar-se dos Básicos? Caminhou até embaixo da flecha que abrigara seus

apartamentos e, por uma coincidência estranha, encontrou um fragmento redondo de

mármore amarelo.

Levantou-o na palma da mão e olhou para o céu, em direção ao ponto onde piscava

a luz vermelha de Coralyne. Depois procurou pôr em ordem seus pensamentos.

O povo de Banbeck saía dos túneis profundos na rocha. Phade, a jovem trovadora,

foi ao seu encontro.

—Que dia terrível - murmurou. —Que acontecimentos horríveis e que grande vitória.

Joaz atirou o pedacinho de mármore amarelo no monte de destroços.

—Sou da mesma opinião. E como tudo isso vai terminar, eu mesmo não sei

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