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REJANE CENTURION GAMBARRA e GOMES
O POLÍTICO NA LÍNGUA: UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE A SUFIXAÇÃO
Universidade Federal de Mato Grosso
Instituto de Linguagens
Cuiabá
2007
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REJANE CENTURION GAMBARRA e GOMES
O POLÍTICO NA LÍNGUA: UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE A SUFIXAÇÃO
Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Estudos da Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Estudos Lingüísticos. Área de concentração: Estudos Lingüísticos. Orientador: Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas.
Universidade Federal de Mato Grosso
Instituto de Linguagens
Cuiabá
2007
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Aos tantos outros (ou não seriam
Outros?), “tão sempre” presentes, sem
os quais essa dissertação não teria se
constituído enquanto tal.
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Agradecimentos a alguns “outros” muito especiais... Ao Pedro (filho), “pessoinha” que motiva tudo o que busco, que sempre soube entender meus momentos de leitura e que me “inspirava” ficando ao meu lado enquanto produzia. Obrigada também pelo corpus que me fornecia o tempo todo, com suas formações de palavras novas a partir da derivação sufixal, as quais ajudavam-me a refletir sobre o processo. Mamãe te ama muito... Ao Pedro (marido), pelo apoio constante em minha vida acadêmica e profissional. Companheiro que esteve sempre ao meu lado, me dando, além do apoio necessário, muito amor e carinho, sentimentos que ajudaram muito nas crises de impaciência... Ao meu pai, pelo carinho e educação recebidos, e por ser a pessoa que primeiro me fez interessar pelo discurso político. À minha mãe (in memoriam), de quem herdei a profissão e a vontade das leituras. Apesar da falta “em corpo”, sua presença “em espírito” sempre guiou meus trabalhos. A ela, um agradecimento muito especial. À minha irmã, Regina, e ao meu amigo, Claudiomar, pela oportunidade que me ofereceram, sem a qual a graduação não teria sido possível. Aos meus irmãos, Reginaldo, Clodoaldo e Eduardo. Sempre tão distantes, geograficamente, mas ainda assim, muito presentes em meu pensamento... À professora (e também tia) Aucélia Centurion, por ter sido minha primeira professora, responsável por minha alfabetização. Ao Roberto, meu orientador, por fazer da orientação desse trabalho uma oportunidade para estreitar mais ainda os laços de amizade que já mantínhamos. Por seu compromisso, responsabilidade e praticidade nas tarefas exigidas, e por indicar caminhos que vão além dos limites que cerceiam a produção de uma dissertação. À SEDUC, que permitiu meu afastamento, possibilitando o desenvolvimento dessa pesquisa. Ao professor Zé Antonio, diretor da escola Major Otávio Pitaluga, em Rondonópolis, por ter apoiado meu afastamento desde o início. Aos colegas, professores e funcionários do MeEL, com os quais convivi nesses dois anos. Aos amigos e familiares que sempre acreditaram em meu trabalho. Em especial, Cárita Gomes, Clésia Weber e Karina Velho, por sempre terem participado de meus projetos de uma forma muito particular.
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(...) é que no fundo [no Brasil] não há partidos, há grupos de
interesses, alianças que se fazem e que se desfazem consoante
às conveniências. Há uma espécie, não quero dizer, não
quero chamar de, digamos, ‘caciques’, mas há qualquer coisa
que vem, digamos, na linha do ‘caciquismo’, que é o influente
político que não sabe muito bem por que é que ele ganhou
aquele poder, mas a verdade é que o ganhou (José Saramago,
escritor português, prêmio Nobel de Literatura, em entrevista concedida ao
Jornal da Globo, transmitida nos dias 21 e 22 de maio de 2007).
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RESUMO
CENTURION, R. O político na língua: um olhar discursivo sobre a sufixação.
Neste trabalho discutiremos a sufixação sob o olhar da análise do discurso de orientação
francesa. Nosso objetivo é pensá-la como um processo discursivo derrisório que visa
descaracterizar, polemizar o discurso político do outro. Inicialmente, verificamos como a
sufixação é tratada nas gramáticas tradicionais e em algumas escolas e domínios das
Ciências da Linguagem (estruturalismo, gerativismo, funcionalismo, teoria da
argumentação e análise do discurso). Em seguida, fundamentados em Patrick Charaudeau e
Jean-Jacques Courtine, apontamos o caminho percorrido pelo discurso político na história
da AD. No terceiro capítulo, analisamos ocorrências formadas a partir dos sufixos -eiro e -
ismo presentes em enunciados proferidos por políticos brasileiros no período que
compreende a divulgação dos escândalos do mensalão (maio de 2005) à posse do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1º de janeiro de 2007) – período em que a oposição
tenta desqualificar a imagem do governo para chegar ao poder e o governo, por sua vez, se
defender das acusações para se manter nele. Mostramos, pelas análises, que as ocorrências
em questão deixam seus sentidos positivos para assumirem sentidos negativos, pejorativos,
em função dos sufixos empregados, os quais representam marcas de heterogeneidade e
derrisão. Assim, com base em Authier-Revuz e Bonnafous, postulamos que os sufixos
funcionam como modalizadores autonímicos derrisórios. Propomos, finalmente, um
trabalho discursivo com esse modalizador em sala de aula.
Palavras-chave: discurso político – sufixação – heterogeneidade – metaenunciação –
modalização autonímica – derrisão.
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ABSTRACT
CENTURION, R. The politic in the language: a discursive vision about the sufixation.
In this work we will argue the suffixation under the look of the discourse analysis of French
orientation. Our objective is to think about it as a derisory discursive process that aims to
belie the politic discourse of the other. Initially, we verify as the suffixation is treated in the
traditional grammars and in some schools and domains of Language Sciences
(structuralism, gerativism, functionalism, theory of the argumentation and discourse
analysis). After that, based on Patrick Charaudeau and Jean-Jacques Courtine, we point the
way covered by the politic discourse in the history of the AD. On the third chapter, we
analyze occurrences formed from the suffixes -eiro and -ismo presented in statements
pronounced by Brazilian politicians from the scandal of mensalão (May 2005) to the period
in which Luiz Inácio Lula Da Silva was inaugurated president (January 1st, 2007) - when
the opposition tries to disqualify the image of the government to achieve the power and the
government defends itself against the accusations to remain in the power. We show,
through the analyses, that the occurrences let their positive meanings to assume a negative
ones, pejorative, due to the suffixes used, which represent marks of heterogeneity and
derision. Thus, based on Authier-Revuz and Bonnafous, we claim that the suffixes work as
derisory autonomics modalizer, so we propose, finally, a discursive work with this
modalizer in the classroom.
Key-words: politic discourse - suffixation - heterogeneity – metaenunciation - autonomics
modalization - derision.
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RÉSUMÉ
CENTURION, R. Le politique dans la langue: un regard discursif sur la suffixation.
Dans ce travail nous discuterons la suffixation sous le regard de l’analyse du discours
d’orientation française. L’objectif est de la penser comme un processus discursif de la
dérision qui vise à polémiquer le discours politique de l’autre. Au début, nous avons vérifié
comment la suffixation est traitée dans les grammaires traditionelles et dans plusieurs
écoles et domaines des Sciences du Language (structuralisme, générativisme, théorie de
l'argumentation et anlyse du discours). Ensuite, en se fondant sur Patrick Charaudeau et
Jean-Jacques Courtine, nous signalons le chemin parcouru par le discours politique dans
l’histoire de l’analyse du discours. Dans le troisième chapitre, nous analysons les
productions formées à partir des suffixes -eiro et -ismo présentes dans des énoncés proférés
par des hommes politiques brésiliens dans la période qui comprend la divulgation des
scandales du mensalão (mai 2005) jusqu’à l' intronisation du président Luiz Inácio Lula da
Silva (1er janvier 2007) – période durant laquelle l’opposition essaye de disqualifier
l’image du gouvernement pour arriver au pouvoir et, le gouvernement, à son tour, essaye
de se défendre des accusations pour y rester. Nous montrons par les analyses, que les
productions en question abandonnent leurs sens positifs pour assumer des sens négatifs,
péjoratifs, en fonction des suffixes utilisés, lesquels représentent des marques
d’hétérogénité et de dérision. Ainsi, en nous basant sur Authier-Revuz et Bonnafous, nous
postulons que les suffixes travaillent comme des modalisateurs autonimiques de la dérision.
Alors, nous proposons, finalement, un travail discursif avec ce modalisateur en salle de
classe.
Mots-clés: discours politique, suffixation, hétérogénité, méta-énonciation, modélisation
autonimique, dérision.
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Sumário
Palavras iniciais....................................................................................................................12
1. A sufixação sob vários olhares: contribuições teóricas............................................15
1.1. Nas gramáticas normativas................................................................................15
1.1.1. Os sufixos -eiro e -ismo...........................................................................18
1.2. No estruturalismo...............................................................................................21
1.3. No gerativismo...................................................................................................27
1.3.1. O sufixo -eiro...........................................................................................32
1.4. No funcionalismo...............................................................................................34
1.5. Na teoria da argumentação.................................................................................41
1.6. Na análise do discurso........................................................................................45
2. O discurso político: novos caminhos, mesmas mentiras...........................................56
2.1. Em Charaudeau..................................................................................................58
2.2. Em Courtine.......................................................................................................71
2.3. A mentira na política..........................................................................................78
3. Uma leitura discursiva dos sufixos -eiro e -ismo na política brasileira: marcas de
heterogeneidade e derrisão........................................................................................83
3.1. A heterogeneidade..............................................................................................86
3.2. A derrisão...........................................................................................................90
3.3. O sufixo -eiro......................................................................................................91
3.3.1. Formador de substantivos........................................................................91
3.3.1.1. Denotando profissão, ofício, agente.................................................91
3.3.1.2. Significando intensidade, aumento..................................................94
3.3.2. Formador de adjetivos.............................................................................97
3.4. O sufixo -ismo..................................................................................................100
3.4.1. Formador de nomes de ação ou resultado de ação................................101
3.4.2. Formador de nomes que indicam maneira de pensar, ideologia...........109
3.4.2.1.Tendo como radical nomes de pessoas............................................117
3.5. Depois do batimento descrição, o da interpretação..........................................124
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4. Um possível olhar didático.....................................................................................128
(In) conclusões..............................................................................................................133
Referências bibliográficas.............................................................................................134
Revistas, jornais e sites utilizados.................................................................................138
Anexos...........................................................................................................................139
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PALAVRAS INICIAIS
O trabalho com o discurso político sempre nos instigou. Havia, sem dúvida, um
amplo objeto a ser delimitado. O que poderia ser investigado em tal discurso? Foi, pois, a
partir da leitura de um texto de José Luiz Fiorin que nosso objeto surgiu. Trata-se do texto
Discurso de um sufixo, publicado na Revista Língua Portuguesa, em 2006, no qual o autor
destaca a função argumentativa dos sufixos. Pensamos, então: por que não transpor um
olhar discursivo à sufixação? E assim o fizemos. Discurso de um sufixo foi apenas o
primeiro passo a partir do qual pôde ser mostrado que a função dos sufixos vai além dos
ensinamentos tradicionais escolares. Na perspectiva discursiva, funcionam como
modalizadores autonímicos derrisórios.
A criação de novas palavras e a ressignificação das já existentes são dois processos
muito comuns em qualquer língua. Os falantes assim o fazem para atender suas
necessidades numa situação de comunicação específica, já que não há no léxico existente
uma palavra que se adeque a tal necessidade. Tais processos se dão de forma inconsciente,
como aponta a teoria discursiva francesa, fundada por Michel Pêcheux, que fundamenta
nosso trabalho. Ocorre, no entanto, que os compêndios escolares concebem-nos como
mecânicos, destituídos de sentidos específicos/ únicos.
Para mostrar que a prática condiz com a teoria supracitada, selecionamos vinte e
quatro ocorrências enunciativas, analisando-as a partir das contribuições da análise do
discurso francesa, estabelecendo os seguintes recortes:
Como processo de formação de palavras, investigamos a derivação sufixal, cujos
sufixos escolhidos foram –eiro e –ismo;
Considerando a homofonia dos sufixos recortados, os sentidos trabalhados foram:
a) sentidos de –eiro: formador de substantivos que denotam profissão/ ofício/ agente;
formador de substantivos com idéia de intensidade/ aumento; e formador de adjetivos;
b) sentidos de –ismo: formador de nomes de ação ou resultado de ação; e formador de
nomes que indicam maneira de pensar/ doutrina/ ideologia;
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Como discurso, selecionamos o político, com enunciações que envolvem o discurso
do governo e o da oposição, desde o surgimento dos escândalos do mensalão até a
posse referente ao segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva;
Como suporte, a mídia de forma geral. Porém, houve um predomínio de sites da
web e de jornais e revistas de circulação nacional (como o jornal “A Folha de S.
Paulo” e a revista “Veja”). Não há como ignorar a influência desses últimos
suportes na propagação da notícia em nosso país. Também não podemos deixar de
salientar que, atualmente, uma grande parte da população se informa via Internet,
por isso, a busca pelas ocorrências nesses suportes;
As ocorrências enunciativas analisadas foram: mensaleiro, quadrilheiro, roubalheira,
bandalheira, eleitoreiro (a), politiqueiro (a), assistencialismo, continuísmo,
denuncismo, desenvolvimentismo, golpismo, politicismo, voluntarismo,
clientelismo, esquerdismo, peleguismo, petismo, populismo, juscelinismo,
stalinismo, alckimismo, helenismo, cristovismo e lulismo.
Revisitando a proposta de Authier-Revuz, mostramos que essas ocorrências
representam “máscaras” que servem para disfarçar os efeitos de sentido pretendidos pelos
enunciadores. Se “escoram” no sentido literal/ positivo para conotarem, na verdade, um
sentido negativo/ pejorativo, antecipando o efeito de sentido pretendido por meio da própria
palavra. Dessa forma, o dizer se volta para si tendo-se, ao mesmo tempo, a enunciação e o
comentário da mesma – a metaenunciação. Os sufixos serão concebidos, nesse viés, como
modalizadores autonímicos derrisórios: além de caracterizarem em seus contextos
enunciativos, de forma simultânea, um uso e um comentário sobre o mesmo, fazem-no para
desqualificar o discurso do outro.
No primeiro capítulo, mostramos o tratamento dado à sufixação em quatro
gramáticas da Língua Portuguesa, em algumas das correntes lingüísticas mais comumente
presentes no meio acadêmico (estruturalismo, gerativismo e funcionalismo) e em um dos
domínios nas Ciências da Linguagem (a teoria da argumentação). Com as gramáticas,
fizemos um trabalho que se aproxima da descrição, apresentando a maneira como os
sufixos lá se encontram; já com as correntes lingüísticas e com a teoria da argumentação,
expusemos o que cada uma significou para os estudos lingüísticos, aplicando suas
contribuições ao trabalho que se pode realizar com os sufixos. Encerramos o capítulo,
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comentando um outro domínio nas Ciências da Linguagem, a análise do discurso,
doravante (AD), que fundamenta esta pesquisa. O tratamento metodológico do corpus
selecionado é reservado para o terceiro capítulo.
Fundamentados em Patrick Charaudeau e Jean-Jacques Courtine, elaboramos o
segundo capítulo. Neste, apontamos o caminho percorrido pelo discurso político na história
da AD. Para nós, é de suma importância a inserção de um capítulo que trate
especificamente do discurso político, haja vista que o fenômeno em análise manifesta-se
muito nesse tipo de discurso. A ocorrência de palavras com os sufixos –ismo e –eiro é
elevadíssima no discurso político.
No terceiro capítulo, analisamos, sob o olhar da análise do discurso francesa,
ocorrências formadas a partir dos sufixos -eiro e -ismo presentes em enunciados proferidos
por políticos brasileiros no período que compreende a divulgação dos escândalos do
mensalão (maio de 2005) até a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1º de janeiro
de 2007). Justificamos a escolha do período por se tratar de um momento em que a
oposição tenta desqualificar a imagem do governo para chegar ao poder e, o governo, por
sua vez, se defender das acusações para se manter nele. As análises mostram que as
ocorrências deixam seus sentidos positivos para assumirem sentidos negativos, pejorativos,
em função dos sufixos empregados, os quais representam marcas de heterogeneidade e
derrisão, postulando, fundamentados em Authier-Revuz e Bonnafous, que os sufixos
funcionam como modalizadores autonímicos derrisórios.
Finalmente, no quarto capítulo, refletimos acerca do ensino da sufixação nas escolas
brasileiras, propondo um trabalho discursivo com os mesmos; reflexão inevitável, pois uma
pesquisa como essa só teria sentido para nós se pudesse contribuir de alguma forma com o
ensino da língua materna.
Esperamos, pois, mostrar com este trabalho que as escolhas que os sujeitos (em
específico, os políticos) fazem em relação às palavras novas ou ressignificadas não são
aleatórias, coincidentes, óbvias... São constitutivas do discurso no qual estão inseridas.
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1. A SUFIXAÇÃO SOB VÁRIOS OLHARES: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS
Neste primeiro capítulo, pretendemos apresentar a sufixação com base em vários
mirantes. Primeiramente, pelas gramáticas tradicionais; em seguida, por algumas das
correntes lingüísticas (o estruturalismo, o gerativismo e o funcionalismo) e pela teoria da
argumentação; por último, pela análise do discurso (AD), teoria que suporta teórico-
metodologicamente o nosso estudo. Assim, mostraremos como a sufixação era abordada
antes das contribuições da AD, para, dessa forma, propor um trabalho possível com tal
teoria.
1.1 – Nas gramáticas normativas
Sabemos que as gramáticas tradicionais se caracterizam por serem normativas, ou
seja, por prescreverem normas de bom uso da língua para falar e escrever bem. Foi assim
com as antigas (desde a grega e a latina) e, ainda, com as contemporâneas. Os fatos da
língua são apresentados, geralmente, como definitivos, não-variáveis, normativos... Assim
é, portanto, com a sufixação: um sufixo à disposição numa lista de alguma gramática é
acrescentado a um radical1 e (pronto!) uma nova palavra surge. Basta que acrescentemos o
sentido geral do sufixo2 ao radical.
Na “Novíssima Gramática da Língua Portuguesa” (1996, p. 105), Cegalla afirma
que
Sufixos são elementos (isoladamente, insignificativos) que, acrescentados a um radical, formam nova palavra. Ao mesmo tempo que alteram a significação do vocábulo originário (dente - dentista), podem ainda mudar-lhe a classe gramatical (ponta - pontudo), o gênero (boi - boiada) ou o grau (gato - gatinho, frio - friíssimo). A maioria dos sufixos provém do latim e do grego. Classificam-se em: nominais, verbais e adverbial.
Em seguida, o autor apresenta uma lista dos principais sufixos nominais, verbais e
adverbial. Gostaríamos, pois, de destacar a forma como os sufixos nominais são por ele
apresentados: agrupa vários sufixos que apresentam idéia geral semelhante, explicita a idéia
1 Radical: uma forma lingüística que não funciona sozinha, mas serve como base para construir formas flexionadas de palavras, que podem funcionar sozinhas (TRASK, 2004). 2 Ao contrário dos prefixos, que têm um sentido determinado, os sufixos apresentam um valor genérico.
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e exemplifica. Por exemplo, coloca todos os sufixos diminutivos e sugere exemplos. Desse
modo, há sufixos que aparecem em mais de um agrupamento, pois denotam mais de um
sentido. O sufixo –eiro aparece no item dos que denotam profissão, ofício, agente e
formador de adjetivos; e também no item dos que formam adjetivos que exprimem
naturalidade, origem.
Vinte grupos são apresentados. Depois disso, Cegalla apresenta uma outra lista:
“Outros sufixos nominais”. Nessa lista são elencados de um em um, sem a explicitação do
sentido – simplesmente com exemplos à frente. Tais exemplos mostram que alguns dos
sufixos apresentam mais de um sentido, mas isso é desconsiderado. Em seguida, outra lista:
“Alguns sufixos da terminologia científica”. Tal como na lista anterior, não há a
explicitação do sentido geral dos sufixos, apenas os exemplos. É como se a gramática
desconsiderasse que há sentido em tais sufixos.
Depois da apresentação dos sufixos nominais, há a seguinte nota:
Os sufixos nominais prestam-se, quase sempre, à expressão de mais de uma idéia. O sufixo –eiro, por exemplo, pode acrescentar ao radical a noção de árvore (coqueiro), profissional (sapateiro), coleção (braseiro), lugar (banheiro), objeto que encerra algo (açucareiro), naturalidade (brasileiro). Existem até sufixos de significações opostas: beiçola (=beiço grande), bandeirola (=pequena bandeira), povaréu (=grande multidão), mastaréu (=pequeno mastro). (p. 108).
Da forma como Cegalla descreve é como se –eiro fosse um único sufixo. Na
verdade, é um sufixo homófono3. As gramáticas normativas, entretanto, não contemplam
tal afirmação, visto que se preocupam mais com a apresentação de listas de sufixos do que
com um meticuloso estudo gramatical do processo da sufixação. Os sufixos homófonos são
apenas um dos exemplos. É de se admirar uma afirmação como a citada (Existem até4
sufixos de significações opostas) vinda de um gramático!
Bechara, por sua vez, em sua “Moderna Gramática Brasileira” (1989, p. 177), os
define da seguinte forma:
3 Segundo ROCHA (1998, p. 110), sufixos homófonos são sufixos que apresentam a mesma seqüência fonética, mas sentidos e/ ou funções diferentes. 4 Grifo nosso.
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Os sufixos dificilmente aparecem com uma só aplicação; em regra, revestem-se de múltiplas acepções e empregá-los com exatidão, adequando-os às situações variadas, requer e revela completo conhecimento do idioma. A noção de aumento corre muitas vezes paralela à de coisa grotesca e se aplica às idéias pejorativas: poetastro, mulheraça. Os sufixos que formam nomes diminutivos traduzem ainda carinho: mãezinha, paizinho, maninho. Por fim, cabe assinalar que temos sufixos de várias procedências, sendo os latinos e gregos os mais comuns.
Apesar de, ao definir os sufixos, Bechara ter tocado sutilmente na questão do
significado, não difere muito de Cegalla. Divide-os em cinco seções: principais sufixos
formadores de substantivos; principais sufixos de nomes aumentativos e diminutivos;
principais sufixos para formar adjetivos; principais sufixos para formar verbos; e sufixo
para formar advérbio. Assim como Cegalla, Bechara explicita a idéia geral de um grupo de
sufixos e exemplifica.
A terceira gramática consultada foi a “Gramática Fundamental da Língua
Portuguesa”, de Gladstone Chaves de Melo (1970). Segundo ele, por sufixo se deve
entender o elemento afixo e posposto, que traz alteração de sentido à raiz (p. 88).
Classifica-os em nominais, verbais e adverbial. Agrupa os sufixos por semelhança no
sentido geral e, em frente, apresenta as formações que os mesmos possibilitam, ilustrando
com exemplos. A preocupação continua sendo uma listagem de sufixos para dispor ao
falante.
Por último, consultamos a “Nova Gramática do Português Contemporâneo”, de
Cunha & Cintra (1985). Não há, nessa gramática, uma definição específica para sufixos.
Apenas afirmam que pela derivação sufixal formaram-se, e ainda se formam, novos
substantivos, adjetivos, verbos e, até, advérbios (p. 87). Classificam, então, o sufixo em:
nominal, verbal e adverbial. Cunha e Cintra começam pelos nominais, especificamente
pelos aumentativos e diminutivos por acreditarem que o valor destes é mais afetivo do que
lógico. Primeiramente, apresentam uma lista constituída pelos principais sufixos nominais,
acrescentando a essa lista, alguns exemplos; depois detalham alguns dos principais da lista.
Apesar de detalharem, inclusive com preocupações etimológicas, não saem do padrão
“lista”. Em seguida, apresentam “Outros sufixos nominais”, divididos em sete seções: que
formam substantivos de outros substantivos; que formam substantivos de adjetivos; que
forma substantivos de substantivos e de adjetivos; que forma substantivos e adjetivos de
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outros substantivos e adjetivos; que formam substantivos de verbos; que formam adjetivos
de substantivos; e que formam adjetivos de verbos. Há, também, nessa gramática, sufixos
que se repetem entre as seções. O sentido geral dos sufixos também é explicitado. Na
seqüência são apresentados os exemplos. Para finalizar, os autores apresentam os verbais
(com o sentido geral e os exemplos) e o adverbial (-mente).
Embora não tenhamos realizado um estudo exaustivo, de acordo com as gramáticas
consultadas, a formação de novas palavras assemelha-se a um processo mecânico: basta
usar um sufixo com o sentido pretendido constante numa lista de alguma gramática e
agregá-lo a um radical. Para as gramáticas normativas é um processo muito simples. O
problema é que um sufixo como –ola, por exemplo, pode formar palavras com sentido
aumentativo e, também, diminutivo. E as gramáticas normativas, ao invés de estudarem o
processo, apenas apresentam listas de sufixos. Como se isso resumisse o assunto...
Podemos afirmar, após essa análise, que as gramáticas normativas seguem um
padrão de apresentação dos sufixos:
Sufixo ou grupo de sufixos sentido geral exemplos
Concluímos, inicialmente, com Rocha (1998, p. 50-60), que, ao analisar a sufixação
em gramáticas brasileiras, aponta os seguintes problemas:
confusão entre os planos sincrônico e diacrônico;
não-especificação dos critérios para se saber se uma palavra apresenta sufixo ou
não;
a questão da regularidade, previsibilidade e sistematização das relações sufixais;
impressão de que o estudo da sufixação consiste apenas na apresentação de uma
lista de sufixos.
1.1.1-Os sufixos –eiro e –ismo
Após seleção de palavras formadas pelo processo da derivação sufixal, num
discurso específico (o político), optamos pela escolha dos sufixos –eiro e –ismo para
análise. Apresentaremos, então, especificamente, a forma como tais sufixos estão descritos
nas gramáticas comentadas anteriormente.
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-EIRO
Cegalla denota profissão, ofício, agente (pedreiro);
formador de adjetivos (lisonjeiro);
formador de adjetivos que exprimem naturalidade, origem
(brasileiro).
Bechara formador de nomes de agente ( lavadeira, pedreiro);
para significar lugar onde se encontra (açucareiro,
chocolateira);
formador de nomes de naturalidade (brasileiro);
formador de adjetivos (verdadeiro, costumeiro).
Melo É a forma vernácula de -ariu. Tem as mesmas acepções
(sapateiro, vendeiro, leiteiro, carroceiro), sendo extremamente
produtivo nesse sentido de caracterizar indivíduos pela sua
profissão. Forma também adjetivos (grosseiro, dianteiro,
fronteiro, certeiro, costeiro, passageiro).
Cunha & Cintra Formando substantivos de outros substantivos:
ocupação, ofício, profissão (barbeiro, copeira);
lugar onde se guarda algo (galinheiro, tinteiro);
árvore e arbusto (laranjeira, craveiro);
idéia de intensidade, aumento (nevoeiro, poeira);
objeto de uso (cinzeiro, pulseira);
noção coletiva (barreiro, formigueiro);
Formando adjetivos de substantivos:
posse, origem (caseiro, mineiro).
-ISMO
Cegalla forma substantivos que traduzem ciência, escola, sistema
político ou religioso (romantismo, modernismo, socialismo,
catolicismo).
Bechara formador de nomes de ação ou resultado de ação; estado;
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qualidade – derivado de adjetivo (civismo, charlatanismo);
formador de nomes que indicam maneira de pensar; doutrina
que alguém segue; seitas (cristianismo, classicismo).
Melo Forma substantivos, indicando “doutrina”, “seita religiosa”,
“ideologia” (maometismo, calvinismo, comunismo),
“particularidades ou vícios de linguagem” (vulgarismo,
neologismo), certos fenômenos naturais (magnetismo,
traumatismo), “maneira de ser ou de seguir certas doutrinas”
(farisaísmo, patriotismo).
Cunha & Cintra Formador de substantivos de outros substantivos e de adjetivos:
doutrinas ou sistemas artísticos, filosóficos, políticos e
religiosos (realismo, kantismo, fascismo, budismo);
modo de proceder ou pensar (heroísmo, servilismo);
forma peculiar da língua (galicismo, neologismo);
na terminologia científica (daltonismo, reumatismo).
Pelo exposto nos quadros anteriores, é possível entender o “modo de organização”
dos sufixos nas gramáticas normativas. Uma palavra como mensaleiro seria formada a
partir do acréscimo de -eiro (cujo sentido geral é o de profissão, agente, ofício) ao seu
radical mensal5 (relativo a mês). Dessa forma, com base num ponto de vista prescritivo, a
significação mais coerente seria “profissão, alguém que recebe uma quantia mensal por
exercer um ofício específico”, assim resumindo-se o processo.
Acreditamos que transpor um olhar gramatical/ normativo às palavras é interpretá-
las de forma a lhes retirar toda a sua discursividade, desconsiderando o uso e as condições
de produção que as envolvem. Em outras palavras, é desconsiderar que a língua possui um
funcionamento que é integralmente lingüístico e histórico. Ao buscar o sentido da palavra,
Saussure afirmara que somente as vinculações consagradas pela língua nos parecem
conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que se possa imaginar (p.
80). Na verdade, assim o fazemos por estarmos inseridos numa cultura cuja tradição
5 Segundo Trask (ver nota 1), a palavra mensal não pode se caracterizar como um radical, porém, por questões metodológicas, pensaremos na ocorrência mensaleiro como formada a partir da junção de mensal + eiro, como se mensal fosse seu radical.
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gramatical determina a pesquisa aos compêndios e o empréstimo do sentido geral do sufixo
ao radical em questão.
Nos itens vindouros, veremos como diferentes escolas e domínios das Ciências da
Linguagem tratam do fenômeno em questão.
1.2 – No Estruturalismo
À lingüística do século XIX, comparativa e histórica, contrapôs-se o estruturalismo,
cuja noção central para a compreensão do fenômeno lingüístico era a noção de valor. O
marco inicial foi a publicação póstuma, em 1916, do “Curso de Lingüística Geral”, do suíço
Ferdinand de Saussure – considerado o pai da lingüística moderna. Tal “curso” se baseava
nas anotações de seus alunos durante as conferências que ministrou na Universidade de
Genebra entre 1907 e 1911, cujos redatores foram Bally, Sechehaye e Riedlinger. Apesar
de a obra ter sido publicada em 1916, os reais impactos deram-se no fim da década de
1920, mais precisamente a partir do Primeiro Congresso Internacional de Lingüística (Haia,
1928), do Primeiro Congresso dos Filólogos Eslavos (Praga, 1929) e da Primeira Reunião
Fonológica Internacional (Praga, 1930). Foi, então, pelas mãos de Roman Jakobson e
Nikolai Trubetzkoy que primeiro apareceram as teses de inspiração saussuriana.
Saussure realizou um grande corte nos estudos lingüísticos, oferecendo condições
efetivas para se construir uma lingüística sincrônica da linguagem, uma ciência a tratar
exclusivamente da linguagem. Para ele, ao lado de um estudo histórico da língua
(diacronia) deveria haver também um estudo descritivo (sincronia) – tais modos de
explicação eram complementares, porém o diacrônico dependia do sincrônico, do ponto de
vista lógico, o que levou o autor a reivindicar a autonomia para a pesquisa sincrônica.
Entre as dicotomias apresentadas no “curso”, gostaríamos de destacar a que se
estabelece entre a língua e a fala. Esta, de caráter heterogêneo, momentâneo e concreto, foi
considerada como
um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º, o mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações (SAUSSURE, p. 22).
22
A língua, por sua vez, considerada como o objeto da lingüística, de caráter homogêneo e
uma entidade abstrata, era concebida como um sistema, um fenômeno social:
A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação, e a reflexão nela intervém somente para a atividade de classificação (SAUSSURE, p. 22).
Usando a metáfora do jogo, o “curso” deixava claro que o objeto específico da
pesquisa lingüística deveria ser a regra do jogo e não as jogadas. Ou seja, o sistema; não as
mensagens. Desse modo, Saussure partia para um tipo de pesquisa bem diferente do que
vinha sendo feito, inclusive por ele mesmo, visto que fora um filólogo:
(...) seria ilusório reunir, sob o mesmo ponto de vista, a língua e a fala. (...) Essa é a primeira bifurcação que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossíveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente. Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingüística para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Lingüística da fala. Será, porém, necessário não confundi-la com a Lingüística propriamente dita, aquela cujo único objeto é a língua. Unicamente desta última é que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstrações, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforçar-nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois domínios (SAUSSURE, p. 28).
No Brasil, o advento do estruturalismo se deu nos anos 1960. Na década seguinte já
era, então, a orientação mais importante nos estudos da linguagem no país. Ao lado do
gramático e do filólogo surgia um novo tipo de estudioso – o lingüista.
Dois focos distintos de irradiação do movimento se deram no Brasil,
respectivamente:
a) No Rio de Janeiro, desde a década de 1930, atuou Joaquim Mattoso Câmara Jr.
Estudou e lecionou na América do Norte quando a universidade brasileira vivia sob
influência da ciência européia. Conheceu, portanto, profundamente, a lingüística
produzida nos dois continentes. Praticou a fonologia de Praga, mas também
divulgou as idéias dos americanos Sapir e Jakobson. Publicou o primeiro manual de
lingüística na América do Sul – “Princípios de Lingüística Geral” – cuja
importância foi decisiva para a afirmação da lingüística como disciplina autônoma.
23
b) Em São Paulo, no final da década de 1960, professores como Eni Orlandi, Izidoro
Blikstein e Cidmar Teodoro Paes atuavam em cursos de graduação e pós-
graduação. Estes professores eram formados por antigos bolsistas retornados da
França, que criaram condições para a leitura de Saussure, Martinet, Hjelmslev,
Pottier, Barthes, Greimas, entre outros.
Novas tendências foram surgindo e, hoje, poucos lingüistas declaram-se
estruturalistas. Porém, há que se ressaltar as contribuições que ficaram...
Contrariando a tradição normativa, baseada na gramática greco-latina, o
estruturalismo instaurou a crença de que a língua falada e escrita no Brasil deveria ser
objeto de descrição. Assim, as variedades não-padrão da língua passaram a ser consideradas
como objeto de análise, descobrindo-se que tais variedades não apresentavam uma estrutura
pobre ou ineficiente, apenas diferente. Seguindo uma orientação normativa, aquilo que não
obedecesse à variedade padrão, era considerado “erro”.
Na obra de Mattoso Câmara Jr. há também incursões interessantes nas variedades não-padrão: uma dessas incursões parte da análise dos ‘erros dos escolares’, mostrando (pela primeira vez) que os ‘erros’ que os professores de ensino médio apontavam às vezes nas redações e em outros exercícios escolares, nada mais são do que a manifestação da língua que os alunos efetivamente conhecem, a língua real, nem sempre igual às representações construídas pelos gramáticos (ILARI, 2004, p. 88).
Pela primeira vez, no Brasil, falares sem prestígio ganharam dignidade enquanto
objetos de estudo: línguas indígenas; línguas e dialetos trazidos pelos africanos e europeus;
e variedades regionais do português.
Uma outra contribuição foi a preocupação em registrar, disponibilizar e tratar dados
lingüísticos, estimulando a lingüística de campo. O Projeto de Estudo da Norma Urbana
Culta (NURC) é um exemplo de um grande corpus. Surgiu por iniciativa de Nélson Rossi,
Ataliba Castilho e Celso Cunha, e tinha como objetivo inicial o estudo da variedade mais
prestigiada do português falado. Hoje, o corpus do NURC estimula um outro grande
projeto – o PGPF (Projeto de Estudo da Gramática do Português Falado) – e já alcançou o
número de 1.500 horas gravadas.
O ensino de línguas também recebeu contribuições. Não em relação aos exercícios
estruturais, que visavam automatizar o uso de determinadas estruturas sintáticas, mas à
24
pedagogia da língua materna, que consistiu em mostrar a precariedade da doutrina
gramatical que vinha sendo ensinada pela escola.
(...) penso que se deve creditar ao estruturalismo o fato de que a escola adotou uma nova atitude em face dos textos, inclusive os literários, que passavam a ser objeto de uma análise específica; até a década de 1960, era mais importante falar de coisas que hoje nos aparecem como ‘circunstanciais’: a biografia do autor, a escola literária a que ele pertenceu, os fatos que o inspiraram a escrever o texto, as figuras históricas a partir das quais criou suas personagens fictícias... (ILARI, 2004, p. 90).
Acreditamos que, após essa modesta apresentação do que foi o estruturalismo,
poderemos comentar como alguns estruturalistas brasileiros descrevem a formação de
novas palavras pelo processo da derivação e, mais especificamente, a sufixação. Ao
contrário das gramáticas normativas, que prescrevem regras e listam sufixos para a
formação de palavras, o estruturalismo faz a descrição do processo, sem preocupações
normativas.
Para os estruturalistas, a derivação consiste na formação de palavras por meio de
afixos agregados a um morfema lexical. Segundo Carone (2005, p. 38), este é o
procedimento gramatical mais produtivo para o enriquecimento do léxico. Para que esse
enriquecimento ocorra, é necessário considerar o estágio atual da língua, já que há palavras
primitivas (como “conduzir” e “admitir”) que, num estudo histórico, são consideradas
derivadas. Há, ainda, a necessidade de o afixo estar à disposição dos falantes nativos, no
sistema. Na derivação, há o que Halliday denomina de “relações abertas”, as quais
representam aquilo que o novo vocábulo estabelece entre os demais similares; em tais
“relações”, as idiossincrasias constituem a regra. Como afirma Câmara Jr. (2001, p. 82),
para cada vocábulo, há sempre a possibilidade ou a existência potencial, de uma
derivação. A lista dos seus derivados não é exclusiva nem exaustiva.
Os afixos – formas presas – em posição anterior ao radical são denominados
prefixos; já em posição posterior são sufixos. Não são excludentes e seu número numa
palavra não é restrito, varia de acordo com a escolha e criatividade do falante para formar
palavras que melhor expressem suas idéias. A palavra “superdesvalorização” é um bom
25
exemplo. O número de afixos é limitado6 e novas criações são raras na história da língua.
Os prefixos não alteram gramaticalmente o novo vocábulo; já o sufixo, além de aduzir novo
significado, traz consigo informações gramaticais que não existem no prefixo (...). O sufixo
tem, portanto, um tipo de gramaticalidade que falta ao prefixo (CARONE, 2005, p. 43-4).
Na derivação sufixal, teríamos o acréscimo de sufixos ao morfema lexical. Assim,
palavras derivadas sufixalmente apresentariam a seguinte estrutura: morfema lexical +
sufixo(s) ( + vogal temática) ( + morfemas flexionais). E, ao contrário das flexionadas, que
pertencem ao mesmo paradigma, as palavras derivadas pertencem a paradigmas diferentes.
Segundo Koch & Silva7 (1994, p. 25), os morfemas derivacionais (entre eles, os
sufixos) formam palavras que enriquecem o léxico, servem como base para derivações
posteriores e possibilitam ao falante a escolha de uma forma vocabular.
Em Câmara Jr. (2001, p. 81), encontramos a sufixação quando trata do “mecanismo
da flexão portuguesa”. Para ele, a flexão apresenta-se sob o aspecto de segmentos fônicos
pospostos ao radical, ou sufixos. Refere-se, dessa forma, aos sufixos flexionais (ou
desinências), que não se devem confundir com os sufixos derivacionais, destinados a criar
novos vocábulos. Essa distinção pode ser encontrada em Varrão (116 a.C.), gramático
latino que distinguiu derivatio voluntaria de derivatio naturalis. O primeiro processo cria
novas palavras – o adjetivo voluntaria sugere a possibilidade de opção do falante na
formação de uma nova palavra. Não há, por exemplo, nomes derivados para todos os
verbos, caracterizando-se tal processo como desconexo e variado. Já o segundo processo é
naturalis por indicar modalidades específicas de uma dada palavra. Neste, há
obrigatoriedade e sistematização coerente, imposta pela própria natureza da frase, com
paradigmas coesos e uma pequena margem de variação.
Borba8, por sua vez, fala em Morfologia Lexical e Morfologia Flexional. A
derivação é o mecanismo básico da primeira, responsável pela formação de novas unidades.
Já na segunda, o mecanismo é o da flexão, que indica categorias gramaticais. Segundo este
autor,
6 Segundo Borba (1998, p. 162), nossa língua conta com um número limitado de pouco mais de 50 prefixos e por volta de 140 sufixos. 7 Embora as autoras não se inscrevam atualmente no paradigma estruturalista, a obra referenciada segue o modelo de análise lingüística proposto pelo estruturalismo. 8 Esse autor também é um exemplo de teórico que não se inscreve no paradigma estruturalista, mas sua obra fornece uma base lingüística também proposta pelo estruturalismo.
26
por expressar diferenças vocabulares, quase toda a criatividade mórfica da língua está a cargo da morfologia lexical enquanto, por expressar apenas diferenças gramaticais, o acréscimo de morfemas flexionais é limitado e automático (BORBA, 1998, p. 161).
Ao contrário das gramáticas normativas, Borba (1998, p. 162) considera a existência
de sufixos homônimos: Também há sufixos homônimos. Cf. –al¹: forma substantivos e dá
idéia de quantidade (areal, laranjal), -al²: forma adjetivos e indica relação, pertinência
(triunfal, campal).
Um bom exemplo de como as gramáticas normativas destoam da descrição
estrutural está relacionado à flexão de grau. Para Câmara Jr. (2001, p. 83), aquilo que elas
costumam definir por flexão de grau não passa de derivação, visto que seu uso é uma
questão de estilo ou preferência pessoal, não havendo obrigatoriedade no emprego do
adjetivo com o sufixo de superlativo (fácil – facílimo), possibilitando ao falante a escolha
de uma outra forma vocabular:
A expressão de grau não é um processo flexional em português, porque não é um mecanismo obrigatório e coerente, e não estabelece paradigmas exaustivos e de termos exclusivos entre si. A sua inclusão na flexão nominal decorreu da transposição pouco inteligente de um aspecto da gramática latina para a nossa gramática.
Outra confusão descrita por Câmara Jr. (2001, p. 89) é o que as gramáticas fazem
entre flexão de gênero e derivação. Para ele,
imperador se caracteriza, não flexionalmente, pelo sufixo derivacional –dor, e imperatriz, analogamente, pelo sufixo derivacional –triz. Da mesma sorte galinha é um diminutivo de galo, que passa a designar as fêmeas em geral da espécie <<galo>>, como perdigão é um aumentativo limitado aos machos da <<perdiz>>. Dizer que -triz, inha ou -ão são aí flexões de gênero é confundir flexão com derivação.
Como aconteceu com a lingüística pré-saussuriana, o estruturalismo (por volta dos
anos 1960) também enfrentou seus limites visto que desconsiderou aspectos essenciais para
a compreensão dos fenômenos lingüísticos. Sofreu – e ainda sofre – várias críticas, porém,
nunca deixou de representar o grande corte que desencadeou os estudos modernos em
lingüística.
27
1.3 – No Gerativismo
O gerativismo desenvolveu-se como reação ao descritivismo americano pós-
bloomfieldiano: uma versão particular do estruturalismo. Noam Chomsky lançou as bases
da Gramática Gerativo-Transformacional, sendo o responsável por comandar uma
verdadeira revolução científica, atacando os princípios mais fundamentais do estruturalismo
(Ainda assim, por algum tempo, a gramática gerativa foi tratada como um novo
estruturalismo!). Sua lingüística propôs um novo objeto de estudo – a competência
sintática, uma capacidade ou disposição dos falantes, um objeto mental.
O ano de 1957 e o livro “Syntactic Structures”, de Noam Chomsky, representam o
início dessa corrente teórica. Abandonando as explicações behavioristas acerca da
aquisição da linguagem, os gerativistas acreditavam numa explicação inatista. Assim, a
linguagem seria independente de estímulo. Para eles, conhecemos a gramática das línguas
como parte do nosso equipamento biológico. E, ao falarem em criatividade, referem-se ao
fato de que o enunciado que alguém profere é não predizível e não pode ser descrito como
uma resposta a algum estímulo identificável, lingüístico ou não-lingüístico (Lyons, 1987, p.
213). Essa criatividade, que é, segundo Chomsky, o que distingue o homem das máquinas,
é, no entanto, regida por regras.
Nossa criatividade no uso da linguagem (...) manifesta-se dentro dos limites estabelecidos pela produtividade do sistema lingüístico. Além do mais, Chomsky acredita (...) que as regras que determinam a produtividade das línguas humanas têm as propriedades formais que têm em virtude da estrutura da mente humana (LYONS, 1987, p. 213).
Uma característica importante dessa corrente era a busca pelas propriedades
universais da linguagem. Enquanto os estruturalistas enfatizavam a diversidade estrutural
das línguas, os gerativistas interessavam-se no que elas apresentavam em comum.
Outra característica que contrastava com o estruturalismo era a distinção entre
competência e desempenho. A primeira refere-se ao conhecimento que o falante tem do
sistema, conhecimento este que permite a produção de um conjunto infinito de sentenças.
Já o desempenho refere-se ao comportamento lingüístico, determinado não só pela
competência lingüística, mas por diversos fatores não lingüísticos.
28
A competência lingüística de um falante é um conjunto de regras que ele construiu em sua mente, pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem aos dados lingüísticos que ele ouviu à sua volta na infância (LYONS, 1987, p. 215).
Enquanto os estruturalistas tinham como objeto a língua, descrevendo-a a partir da
seleção de um corpus representativo, os gerativistas supunham a existência de algo anterior
à língua dos estruturalistas, a competência do falante. Partir do corpus representativo era,
portanto, metodologicamente desinteressante para estes:
Chomsky desloca a questão fundamental da teoria lingüística para a determinação das regras que regem os ‘corpora representativos’, que deixam assim de ser o ponto de partida da teoria lingüística e passam a ser o seu ponto de chegada. Para Chomsky, a comunidade lingüística possui um conhecimento compartilhado sobre os enunciados que podem e os que não podem ser produzidos, e é justamente este conhecimento que precisa ser descrito e explicado pela teoria lingüística (BORGES NETO, 2004, p. 99).
A teoria desenvolvida por Chomsky é entendida por Borges Neto (2004, p. 93)
como um “empreendimento coletivo”, um Programa de Investigação Científica. Este divide
a história da Gramática Gerativa em três grandes estratégias, apresentando (segundo ele) a
melhor periodização do desenvolvimento do programa:
a) num primeiro momento, o de “Syntactic Structures”, fazia-se exclusivamente sintaxe e a
noção de gramática gerativa correspondia à noção corrente em lógica e matemática – a
gramática deveria gerar diretamente as sentenças da língua. É um período instável na teoria.
Esta ainda encontrava-se presa ao modo estruturalista de fazer lingüística, havendo um
conflito entre as exigências do programa e as disponibilidades teóricas;
b) no segundo momento, o da “teoria-padrão”, a gramática passa a gerar objetos abstratos
que são interpretados nas sentenças da língua. Nesse momento, a gramática não gera mais
diretamente as sentenças da língua, ela vai gerar tantos objetos abstratos quantas forem as
sentenças da língua. As polêmicas e a grande efervescência teórica caracterizam esse
período, marcado por propostas alternativas e dissidências;
c) no terceiro e último momento, o de “Princípios e Parâmetros”, a gramática gera objetos
abstratos que explicitam as propriedades que os falantes levam em consideração no
momento de emitir juízos de gramaticalidade sobre objetos lingüísticos. Assim, não é
possível dizer que a gramática gera as sentenças da língua, mas que permite as sentenças de
29
uma língua. É um momento em que os princípios são estabelecidos de forma consistente,
no qual um grande número de línguas é analisado de forma satisfatória. Severas revisões
são feitas com duas teorias em confronto: a teoria de regência e ligação e o Programa
Minimalista.
A morfologia ficou relativamente perdida na lingüística gerativo-transformacional,
tendo sido o centro das preocupações da gramática estrutural. A explicação para a geração
das palavras era dada por meio de regras sintáticas. Porém, ao se dar conta de que as
explicitações poderiam se realizar mediante um componente morfológico autônomo, por
meio do artigo “Remarks of nominalization”, de 1967, Chomsky chamou a atenção para a
possibilidade de independência da morfologia perante à sintaxe. Foi a chamada “Hipótese
Lexicalista” – que veio desencadear um grande desenvolvimento na morfologia lexical.
No Brasil, houve um interesse crescente na morfologia gerativa depois da
publicação de “Estruturas Lexicais do Português; (sic) uma abordagem gerativa”, de
Margarida Basílio, em 1980. A preocupação dos gerativistas era, pois, explicitar a
capacidade/ competência que um falante tem em relação ao léxico de sua língua.
Como afirma Basílio (apud ROCHA, 1998, p.30):
Na gramática tradicional, assim como no estruturalismo, a morfologia derivacional é definida como a parte da gramática de uma língua que descreve a formação e estrutura das palavras. Numa abordagem gerativa, podemos dizer que a morfologia derivacional é a parte da gramática que dá conta da competência do falante nativo no léxico de sua língua.
Os gerativistas tentam mostrar que o léxico é um lugar vital, não uma lista passiva
de palavras com seus significados; as regras são, portanto, usadas ativamente para criar
novas palavras. A competência do falante permite-lhe conhecer o léxico, ou seja, saber usar
os itens lexicais e poder estabelecer relações entre eles. Segundo Rocha (1998, p. 35), um
item ou uma entrada lexical é uma forma lingüística que o falante conhece ou utiliza. A
relação das entradas lexicais constitui o léxico de uma língua. Tal conhecimento permite,
inclusive, identificar a estrutura interna dos vocábulos para, então, criar novas palavras,
rejeitando as agramaticais. Desse modo, perante relações paradigmáticas como “jogar-
jogador”, “correr-corredor”, o falante poderá criar “dirigir-dirigidor”, porém, ao se
explicitar as regras morfológicas do português, ver-se-á que se trata de uma formação
30
agramatical. E essa é justamente uma das tarefas principais da morfologia gerativa:
explicitar as regras morfológicas.
Duas regras são relevantes na morfologia gerativa: a Regra de Análise Estrutural
(RAE), que é empregada pelo falante ao analisar a estrutura das palavras derivadas; e a
Regra de Formação de Palavras (RFP), utilizada quando o falante produz novos itens
lexicais. Esta é estabelecida com base em relações paradigmáticas. E a toda RFP
corresponde uma RAE.
As regras em morfologia gerativa estabelecem relações entre itens lexicais – no
nível do léxico – e não partindo de uma raiz. Dessa forma, o falante cria novas palavras
baseando-se em palavras já existentes na língua, e não, como defendia o estruturalismo,
juntando-se raízes a prefixos, sufixos, desinências, vogais temáticas...
Rocha (1998), em “Estruturas Morfológicas do Português”, faz um estudo gerativo
da derivação sufixal, considerada por ele como o processo de formação de palavras mais
rico e diversificado da língua portuguesa, sendo, conseqüentemente o mais acionado pelos
falantes (p. 99). Tal processo consiste na anexação de um sufixo a uma base. Esta vem a ser
uma seqüência fônica a partir da qual se forma uma nova palavra – o produto. Em
formigueiro, por exemplo, a base é formiga. Ela não precisa ser, necessariamente, uma
palavra da língua (base livre), podendo ser uma forma presa. Os conceitos de raiz e radical
tornam-se secundários perante o conceito de base, passando a ser, esta, o centro das
atenções dos lexicalistas.
No entendimento do autor, há que se ressaltar a base falsa, ou basóide, que não deve
ser confundida com a base presa. Para que uma base seja considerada como tal, é preciso
que seja recorrente, devendo aparecer em pelo menos dois contextos distintos. As basóides
só existem em uma formação do português, sendo destituídas de sentido. Em um conjunto
de palavras como esporádico, rústico e tétrico, os sufixos são recorrentes, mas as bases,
mesmo sendo depreensíveis, não aparecem em nenhuma outra palavra da língua
portuguesa. São, portanto, falsas.
Para Rocha (1998, p. 106), o estudo do sufixo só será válido se estiver inserido
numa regra, que vem a ser uma relação de regularidade que se estabelece entre uma base e
um produto. Uma regra como S S-eiro9 permite relações paradigmáticas do tipo pedra –
9 Substantivo + sufixo –eiro.
31
pedreiro, jornal – jornaleiro, mensal – mensaleiro... Ou seja, há uma regularidade entre
pedra, jornal e mensal – as bases – e pedreiro, jornaleiro e mensaleiro – os produtos.
Os sufixos são, então, definidos da seguinte forma, na perspectiva gerativa:
Sufixo é uma forma presa recorrente, que se coloca à direita da base, caracterizando assim uma palavra derivada. O sufixo se distingue de uma base pelo fato de não apresentar significação e/ ou função (S/F) própria, autônoma, independente. Essa S/F só será explicitada se o sufixo estiver anexado a uma base. A rigor, deve-se falar, portanto, na S/F do produto e não na S/F do sufixo (ROCHA, 1998, p. 108).
Seguindo essa perspectiva, não há sufixos produtivos e improdutivos, mas regras
produtivas e improdutivas. Uma regra como V S-dor10 é produtiva: cortar – cortador,
limpar – limpador... Já com o sufixo –âneo não se formam palavras novas. É, portanto, uma
regra improdutiva.
Assim como as basóides, há também os sufixóides – falsos sufixos. Não são
considerados sufixos por sua não recorrência, apresentando um sentido exclusivo,
específico e não-previsível. É o que ocorre, por exemplo, com cavalete, marisco e casebre,
em que -ete, -isco e -ebre apresentam as características de um sufixo, mas por não serem
recorrentes são considerados pseudo-sufixos.
Como já comentamos anteriormente, as gramáticas normativas ignoram a existência
dos sufixos homófonos. Eles são apresentados como se fossem um mesmo sufixo com
diversos sentidos (o que é problemático do ponto de vista gerativo). Apresentam a mesma
seqüência fonética, mas sentidos/ funções diferentes, considerados, portanto, pela gramática
gerativa como homófonos – sufixos distintos com duas ou mais entradas lexicais
independentes.
Há também os sufixos concorrentes e os alomorfêmicos. Os concorrentes, apesar de
distintos foneticamente, apresentam o mesmo sentido/ função. Como condição, as bases e
os produtos precisam pertencer à mesma categoria lexical. Assim, -ista e -eiro são sufixos
concorrentes ao formarem substantivos agentivos a partir de substantivos (frentista,
lixeiro...). Já os alomorfêmicos são as variantes de um mesmo sufixo, como –eiro/ -eira
(abacateiro, laranjeira); -ada/ -lada (pedrada, paulada).
10 Verbo + sufixo –dor.
32
Para terminar, quando os sufixos mudam a categoria lexical do produto em relação à
base, são denominados categoriais (jogar – jogador); do contrário, não-categoriais (lamber
– lambiscar). Se os categoriais acrescentarem ao significado da base uma significação
acessória, serão, também, significativos (federal – federalismo). Se, por outro lado, não
houver alteração no componente semântico, serão não-significativos, também chamados
funcionais (preparar – preparação).
1.3.1 – O sufixo –eiro
Rocha (1998) apresenta um modelo de análise com o sufixo –eiro. Trata-se da regra
S S–eiro11. Como este sufixo faz parte do corpus de nossa pesquisa, acreditamos ser de
suma importância as informações expressas por este autor. Apesar de seu estudo referir-se
apenas ao sufixo –eiro/ agentivo, gostaríamos de mostrar os diversos sentidos e/ ou funções
que este sufixo pode apresentar, tratando-se, dessa forma, de sufixos distintos, ou seja,
homófonos:
Sufixos Sentido e/ ou função Exemplos
-eiro¹ Agente verdureiro, doleiro, roqueiro
-eiro² Árvore ou arbusto abacateiro, tomateiro
-eiro³ Lugar ou recipiente galinheiro, saleiro, doceira
-eiro 4 Idéia de conjunto, coletivo Braseiro, letreiro, nevoeiro
-eiro 5 Gentílico brasileiro,mineiro,pantaneiro
-eiro 6 Formador de adjetivos grosseiro, matreiro, ordeiro
-eiro 7 Objeto chuveiro, isqueiro, pandeiro
(ROCHA, 1998, p. 111)
O autor inicia fazendo a distinção entre condições de produtividade e condições de
produção. As primeiras referem-se às possibilidades que uma RFP tem de formar novas
palavras (p. 129). Ou seja, a RFP em questão pode ser empregada com certas bases (desde
que não sejam substantivos abstratos, que não designem agente-indivíduo e que não sejam
formações compostas), porém não é o suficiente para garantir a existência dos produtos
11 Substantivo + sufixo –eiro.
33
correspondentes devido a algumas restrições – as condições de produção – as quais podem
ser de três tipos:
a) restrições stricto sensu
a.1) restrições fonológicas: quando se torna difícil e cansativo para o falante a seqüência
dos fonemas. Ex: laranjeira – laranjeireiro.
a.2) restrições paradigmáticas12: quando a existência de produtos consagrados, que se
formaram com base em outras relações paradigmáticas (...) bloqueia o surgimento de
produtos da regra em questão (p. 137). Ex: com a base língua, lingüeiro é bloqueado por
lingüista.13
a.3) restrições pragmáticas: quando há condições ideais para a aplicação da regra, mas não
há, na língua, o produto real correspondente. Ex: franqueiro (não há, em nossa sociedade, o
indivíduo especializado em comercializar francos).
a.4) restrições discursivas: quando certos sufixos são característicos de um tipo de discurso.
Ex: dificilmente criações recentes com o sufixo –eiro farão parte de discursos neutros,
técnicos ou científicos.
b) bloqueio
b.1) bloqueio paradigmático: quando uma forma deixa de existir devido à existência de uma
outra com o mesmo sentido/ função. Ex: familial é bloqueado por familiar.
b.2) bloqueio heterônimo: quando já existem palavras, com raiz diferente da raiz da base
em questão, que bloqueiam os possíveis produtos. Ex: ensinador é bloqueado por
professor.
b.3) bloqueio homofônico: quando já existem formações com o mesmo aspecto fonético,
mas com significado diferente. Ex: para terra tem-se agricultor – terreiro/ agente é
bloqueado por terreiro/ quintal.
b.4) bloqueio parônimo: quando os produtos não são reais porque a língua apresenta
parônimos que os bloqueiam. Ex: vidreiro é bloqueado por vidraceiro, que tem como base
vidraça.
c) inércia morfológica: quando há uma rejeição a novos itens lexicais, inexistindo
condições favoráveis e caracterizando uma tendência a condenar termos não- 12 Que, como bem mostra o autor, estabelecem uma relação bem próxima com o conceito de bloqueio. 13 O autor chama a atenção para o fato de, recentemente, haver uma tendência em usar o sufixo –eiro pejorativamente, em contextos coloquiais; e o –ista em contextos neutros.
34
dicionarizados. Ex: se existem atividades manuais e braçais, por que não existem
atividades ou exercícios (?) pezais ou (?) pernais? (p. 145).14
Se os novos itens lexicais são criados com base nas regras da língua, então,
formações esporádicas irregulares não existirão numa língua comum, já que a competência
lexical do falante nativo basear-se-á em tais RFPs – que funcionam como leis (Manoel de
Barros que o diga!). Dessa forma, violar uma RFP de sufixação, sob o ponto de vista da
produtividade, é considerado, pelos gerativistas, uma transgressão sufixal.
Como pudemos mostrar, o gerativismo trouxe também suas contribuições. A
principal delas, e a que marca tal corrente, é a explicação das regras de uma língua.
Enquanto o estruturalismo preocupa-se em descrever as regularidades da língua num dado
momento, para o gerativismo o mais importante é explicar as “regras que regulam essa
regularidade”.
1.4 – No Funcionalismo
O funcionalismo é considerado como um movimento particular dentro do
estruturalismo. Apesar disso, sua história é quase tão longa quanto a do paradigma formal,
haja vista que no final do século XIX, Whitney já afirmava que a linguagem pressupunha
instrumentalidades mediante as quais os homens representavam seus pensamentos, estando,
dessa forma, a serviço da comunicação. Seus representantes mais influentes foram Roman
Jakobson e Nikolai Trubetzkoy, membros da Escola Lingüística de Praga, que teve origem
no Círculo Lingüístico de Praga, fundado em 1926. Tal escola designava um grupo de
estudiosos que acreditava que a linguagem permitia ao homem reação e referência à
realidade extralingüística.
Os funcionalistas divergiam de Saussure em alguns pontos, principalmente na
distinção nítida entre lingüística sincrônica e diacrônica e na homogeneidade do sistema
lingüístico. Para Lyons (1987, p. 207), esse movimento caracteriza-se pela crença de que a
estrutura fonológica, gramatical e semântica das línguas é determinada pelas funções que
têm que exercer nas sociedades que operam.
14 O autor não citou nenhuma palavra com –eiro por não ter encontrado nenhum exemplo para o caso.
35
Diferentemente do intelectualismo da tradição filosófica ocidental que antecedeu o
século XIX, que concebia a linguagem como exteriorização ou expressão do pensamento, o
funcionalismo a concebia como instrumento de comunicação e interação social.
O enfoque da linguagem como um instrumento de interação social tem por objetivo revelar a instrumentalidade da linguagem em termos de situações sociais (...). Desse modo, o compromisso principal do enfoque funcionalista é descrever a linguagem não como um fim em si mesmo mas como um requisito pragmático da interação verbal (PEZATTI, 2004, p. 168).
O conhecido esquema de Dik (apud Neves, 1997, p. 19), representando um modelo
de interação verbal, resume o papel da expressão lingüística na comunicação,
demonstrando que a relação entre a intenção do falante e a interpretação do destinatário não
é estabelecida pela expressão lingüística, mas mediada:
Formas do falante Construtores do destinatário
............antecipa.......
.....reconstrói ..........
informação pragmática
do falante
informação pragmática
do destinatário
INTERPRETAÇÃO INTENÇÃO
Expressão lingüística
36
Para este autor, a interação verbal é uma forma de “atividade cooperativa e estruturada”, já
que é governada por regras e convenções e necessita de, no mínimo, dois participantes para
atingir seus objetivos.
A “perspectiva funcional da sentença” (a organização das palavras na frase) foi o
interesse principal no que se refere à estrutura gramatical das línguas. A frase passou a ser
analisada não só nos níveis fonológico, morfológico e sintático, mas também no
comunicativo, alterando, assim, significativamente, seu papel em relação à pesquisa
formalista. Dessa forma,
a estrutura sintática dos enunciados (...) é determinada pela situação de comunicação em que é pronunciada, e em particular, pelo que já é aceito, ou dado como informação de fundo, e pelo que é apresentado, diante de tal informação, como novo para o ouvinte e portanto genuinamente informativo (LYONS, 1987, p. 210).
O objeto dos estudos funcionalistas era, então, baseado no uso real, não admitindo a
separação entre sistema e uso como o fizeram o estruturalismo (com a distinção entre
língua e fala) e o gerativismo (com a distinção entre competência e desempenho).
A gramática funcional é, pois, uma gramática de uso, que concebe a relação entre
estrutura e função como instável, refletindo o caráter dinâmico da linguagem. De orientação
paradigmática, interpreta a língua como uma rede de relações dando ênfase às variações
entre línguas diferentes. Toma a semântica como base organizando-se em torno do texto ou
discurso. O uso das expressões lingüísticas na interação verbal é o que a gramática
funcional mais considera, pressupondo uma pragmatização do componente sintático-
semântico do modelo lingüístico. Neves (1997, p. 15) assim a define:
Por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global da interação social. Trata-se de uma teoria que assenta que as relações entre as unidades têm prioridade sobre seus limites e sua posição, e que entende a gramática como acessível às pressões do uso.
Mobilizamos Neves (1997, p. 5-14) a respeito da discussão que faz sobre “função” e
“funções da linguagem”. Inicialmente, ela discute a variedade de empregos do termo
função. Para a sociedade Internacional de Lingüística Funcional (SILF), função tem o valor
37
de papel, ou de utilidade de um objeto ou de um comportamento. Para Martinet, que fundou
a SILF, o termo funcional só tem sentido para os lingüistas em referência ao papel que a
língua desempenha para os homens, na comunicação de sua experiência uns aos outros. Já
segundo Dillinger, na lingüística usa-se função no sentido de relação. Anscombre &
Zaccaria afirmam que a ‘função’ de uma entidade lingüística é constituída pelo papel que
ela desempenha no processo comunicativo. Enfim, para Halliday, na visão funcionalista,
a noção de ‘função’ não se refere aos papéis que desempenham as classes de palavras ou os sintagmas dentro da estrutura das unidades maiores, mas ao papel que a linguagem desempenha na vida dos indivíduos, servindo a certos tipos universais de demanda, que são muitos e variados (1997, p. 8).
Em seguida, a autora trata das funções da linguagem, uma questão problemática
pois função, em referência à ‘linguagem’, tanto pode referir-se ao propósito do uso (...),
como ao papel, ou efeito, do uso (p. 9). Karl Bühler indica três funções, as quais
correlacionam qualquer proposta de estabelecimento de funções lingüísticas: a de
representação, a de exteriorização psíquica e a de apelo (uma pessoa informa outra pessoa
de algo). Mathesius propõe duas funções: a comunicativa, apontada como básica, e a
expressiva. A primeira envolve a “representação” e o “apelo” de Bühler. Jakobson, por sua
vez, adiciona três funções às funções de Bühler, estando cada uma das seis ligada a um dos
fatores intervenientes no ato de comunicação verbal: referencial (ao contexto), emotiva (ao
remetente), conativa (ao destinatário), fática (ao contato), metalingüística (ao código) e
poética (à mensagem). Segundo este autor, cada mensagem incorpora um “feixe” de
funções da linguagem. Halliday, por fim, propõe as metafunções. A ideacional refere-se à
expressão do conteúdo; a interpessoal é usada como um meio de participar do evento de
fala, a qual subsume tanto a função expressiva como a conativa de Bühler, caracterizando-
se por ser interacional e pessoal; e a textual diz respeito à criação do texto.
Uma questão importante também a se comentar é a distinção entre funcionalismo e
formalismo. O primeiro modelo de análise concebe a linguagem como uma entidade não
suficiente em si, representado pela Escola de Praga. Neste, a função das formas lingüísticas
desempenha um papel predominante. O segundo, pelo contrário, examina a linguagem
como um objeto autônomo, no qual a estrutura independe do uso. A análise da forma
38
lingüística é primária, já os interesses funcionais, secundários. Seus maiores representantes
foram Bloomfield e Chomsky.
Uma gramática formalmente orientada trata da estrutura sistemática das formas de uma língua, enquanto uma gramática funcionalmente orientada analisa a relação sistemática entre as formas e as funções em uma língua (Hoffman, apud NEVES, 197, p. 40).
Num quadro de Dik, adaptado por Neves (1997, p. 46-7), a autora resume a análise
que faz das duas grandes correntes:
Paradigma formal Paradigma funcional
Como definir a língua Conjunto de orações. Instrumento de interação
social.
Principal função da língua Expressão dos pensamentos. Comunicação.
Correlato psicológico Competência: capacidade de
produzir, interpretar e julgar
orações.
Competência comunicativa:
habilidade de interagir
socialmente com a língua.
O sistema e seu uso O estudo da competência
tem prioridade sobre o da
atuação.
O estudo do sistema deve
fazer-se dentro do quadro do
uso.
Língua e contexto/ situação As orações da língua devem
descrever-se
independentemente do
contexto/ situação.
A descrição das expressões
deve fornecer dados para a
descrição de seu
funcionamento num dado
contexto.
Aquisição da linguagem Faz-se com o uso de
propriedades inatas, com
base em um input restrito e
não estruturado de dados.
Faz-se com a ajuda de um
input extenso e estruturado
de dados apresentado no
contexto natural.
Universais lingüísticos Propriedades inatas do
organismo humano.
Explicados em função de
restrições comunicativas;
39
biológicas ou psicológicas;
contextuais.
Relação entre a sintaxe, a
semântica e a pragmática
A sintaxe é autônoma em
relação à semântica; as duas
são autônomas em relação à
pragmática; as prioridades
vão da sintaxe à pragmática,
via semântica.
A pragmática é o quadro
dentro do qual a semântica e
a sintaxe devem ser
estudadas; as prioridades
vão da pragmática à sintaxe,
via semântica.
Em “Gramática de Usos do Português”, Neves (2000) apresenta a língua portuguesa
atualmente usada no Brasil. A partir de uma base de dados de 70 milhões de ocorrências
(armazenadas no Centro de Estudos Lexicográficos da UNESP/ Araraquara), ela analisa
itens lexicais e gramaticais da língua e explicita seu uso em textos reais. Para ela, é no uso
que os diferentes itens assumem seu significado e definem sua função (p. 13).
A título de exemplificação, colhemos uma passagem que trata da formação dos
substantivos derivados a partir de outro substantivo acrescido do sufixo –eiro agentivo:
Aqui trabalhei de ajudante de pedreiro, vendedor de frutas, enfim, fazia de tudo para
garantir a sobrevivência (p. 76).
Vê-se que, diferentemente das gramáticas tradicionais, os exemplos são baseados na
língua viva, em uso, e não em textos de autores consagrados da literatura portuguesa e/ ou
brasileira. A partir do uso em textos reais é que são mostradas as regras que regem seu
funcionamento.
Assim, como poderíamos pensar as regras de sufixação? Obviamente que por
relações paradigmáticas. Por exemplo, tomando por base formações como “livro –
livreiro”, o falante poderá, justamente em decorrência de tal uso, formar “sacola –
sacoleiro”, entre outros. Para formar novas palavras a partir da sufixação não é necessário,
portanto, consultar uma gramática normativa com sua lista de sufixos para saber que
normas regem tal formação, mas observar os usos correntes na língua refletindo sobre os
mesmos. “Observado” o uso, o falante formará palavras de acordo com os sentidos
pretendidos. Talvez por isso é que crianças formam palavras um tanto “estranhas” como:
dirigidor (para motorista), celulador (para despertador do celular)... O que elas fazem é
40
estabelecer relações paradigmáticas de forma generalizada a partir de ocorrências em
funcionamento na língua.
Um outro exemplo refere-se ao pronunciamento da ex-senadora Heloísa Helena no
debate entre presidenciáveis transmitido pela Rede Globo de Televisão no final do primeiro
turno, da campanha presidencial de 2006. Em suas considerações finais (ao vivo!), num
tom agressivo, ela agrupa “banqueiros, mensaleiros e trambiqueiros” como alvo de suas
acusações. Com o acréscimo do sufixo –eiro aos radicais banco, mensal e trambique, o
sentido de profissão pode ser perfeitamente transposto a cada uma das ocorrências, porém
apenas a primeira é reconhecida como tal. Os usos já registrados na fala corrente com o
sufixo –eiro é que permitiram as referidas formações. As regras de funcionamento se
baseiam, dessa forma, na ocorrência “banqueiro”, acarretando, por meio de relações
paradigmáticas, as formações “mensaleiro” e “trambiqueiro”15.
Uma análise formalista restringir-se-ia às ocorrências, às regras que permitiriam a
formação das mesmas. Já uma análise funcionalista relacionará tais ocorrências ao seu
contexto, considerando os seis elementos envolvidos no processo de comunicação:
A) o emissor: Heloísa Helena;
B) o receptor: os telespectadores/ eleitores;
C) o código: a língua portuguesa;
D) o canal: a televisão, as ondas sonoras;
E) o referente: política;
F) a mensagem: o enunciado em questão.
Podemos afirmar, então, que o funcionalismo se propõe a analisar a linguagem no
seu uso efetivo. Com efeito, isso implica uma mudança de concepção de linguagem no
ensino de língua materna. De linguagem como expressão do pensamento, passou-se a
concebê-la como instrumento de comunicação. Como a exteriorização do pensamento era
apenas uma tradução, caracterizando-se a enunciação como um ato monológico/ individual,
pôde-se pensar a língua como um código, capaz de transmitir informações de um emissor a
um receptor.
15O curioso é que os efeitos de sentido tomam por base a ocorrência trambiqueiro. Assim, a idéia é que sejam considerados como “farinha do mesmo saco”: todos formados a partir do mesmo paradigma e, inclusive, do mesmo efeito de sentido. É como se as ocorrências se referissem a três profissões “sujas”.
41
Depois de falarmos brevemente sobre a maneira como algumas escolas dos estudos
lingüísticos tratam a sufixação, mostraremos como os domínios da argumentação e do
discurso trabalham tal problema.
1.5 – Teoria da Argumentação
Oswald Ducrot, num artigo intitulado “Argumentação retórica e argumentação
lingüística” (2004), afirma considerar a argumentação – juntamente com Jean-Claude
Anscombre e Marion Carel – num sentido diferente do que se costuma usar. Propõe, dessa
forma, a argumentação lingüística, que se contrapõe à argumentação retórica, apoiando-se
na teoria da “argumentação na língua”.
Por argumentação retórica (um dos objetos tradicionais de estudo da retórica) ele
entende a atividade verbal que objetiva fazer com que alguém acredite em alguma coisa (p.
24). Duas limitações, porém, são apontadas pelo autor. A primeira é de que o dever-fazer só
será levado em consideração se estiver embasado num fazer-crer – há outros meios de levar
alguém a fazer alguma coisa ao invés de tentar fazer crer a esse alguém que é bom para si
fazer tal coisa. A segunda é a de considerar somente a atividade verbal, a que utiliza a fala,
para fazer crer – há também outras formas de se fazer crer sem usar a fala (o que não
interessa ao autor, já que trabalha unicamente com a persuasão pelo discurso).
Passa, em seguida, a definir a expressão argumentação lingüística. Sua crítica
consiste em contestar que segmentos de discurso constituídos pelo encadeamento de duas
proposições A (argumento) e C (conclusão), ligadas implicitamente ou não por conectores
como portanto ou então, sejam interpretados como A portanto C. Aceitar e crer em A para
justificar C é considerada pelo autor uma concepção “banal”, “insuficiente” e “ilusória,”
visto que os encadeamentos conclusivos do discurso não constituem, enquanto tais, meios
diretos de persuasão nem mesmo meios parciais (p. 26).
Ducrot atenta para o fato de que as argumentações do discurso apresentam um
caráter não-coercitivo e que a persuasão exige que se apóie não só em motivos racionais.
Insiste, por sua vez, a retórica tradicional em afirmar que a persuasão exige não só a
apresentação de razões (o logos), mas também que se desenvolva no ouvinte o desejo do
crer verdadeiro (o pathos), confiando no orador, alguém que deve parecer confiável e sério,
oferecendo uma imagem favorável de si em seu próprio discurso (o ethos). O autor, por
42
sinal, recusa qualquer caráter racional à argumentação discursiva: a argumentação
discursiva não tem nenhum caráter racional, (...) ela não fornece justificação, nem mesmo
tênues esboços, lacunares, de justificação (p. 27). Porém, ele afirma que mesmo não tendo
nada a ver com um logos, a argumentação discursiva pode servir à persuasão: seu papel
persuasivo existe, mas ele não está ligado a um caráter racional do qual a persuasão seria,
ainda que vagamente, dotada (p. 28).
Segundo a teoria na qual se apóia, num encadeamento argumentativo A portanto C,
não há justificação de C por um enunciado A, pois A é compreensível em si mesmo – o
encadeamento apresenta o portanto C como já inserido em A. Nenhum dos segmentos
exprime fatos fechados sobre si mesmos, compreensíveis independentemente do
encadeamento. Desse modo, não há raciocínio ou transmissão de verdade, pois o portanto
C já faz parte do sentido de A.
Vejamos um dos exemplos apresentados pelo autor: você dirige rápido demais, você
corre o risco de sofrer um acidente. É muito comum tratar-se este enunciado como um
raciocínio que passa de uma premissa você dirige rápido demais a uma conclusão você
corre o risco de sofrer um acidente, o que para Ducrot é uma descrição absurda, já que a
própria palavra demais presente no antecedente, só se faz compreender em relação ao
conseqüente (p. 29). Neste caso, rápido demais significa a uma velocidade perigosa – fora
do encadeamento não significa nada. Apesar de tal encadeamento ligar duas proposições
assertivas por meio do conector implícito portanto, não assinala uma inferência indo de
uma afirmação a outra – é o portanto que permite imaginar o tipo de velocidade. Assim,
Ducrot justifica a serventia do encadeamento argumentativo:
não para justificar certa afirmação a partir de uma outra, apresentada como já admitida, mas para qualificar uma coisa ou uma situação (neste caso, a velocidade), por ela servir de suporte a uma certa argumentação. O portanto é um meio de descrever e não de provar, de justificar, de tornar verossímil (p. 30).
Dessa forma, não haverá um logos demonstrativo subjacente ao encadeamento do discurso,
pois o encadeamento já está dado pelo argumento.
43
O autor ainda mostra que se uma proposição A encadeia portanto C, pode também
encadear contudo não C. A única condição que se impõe é a mudança de conector,
corroborando a idéia de não haver uma prova discursiva, um logos argumentativo.
Por fim, Ducrot deixa claro que tanto o emprego de expressões com objetivos
persuasivos quanto sem tais objetivos comportam em seu sentido argumentações,
possibilitando, dessa forma, detectar argumentações na significação interna de muitas
palavras. Podemos apontar como exemplo, a análise que José Luiz Fiorin (2006)
desenvolve de algumas palavras formadas a partir dos sufixos –ismo e –inho.
Em “Discurso de um sufixo”, Fiorin aborda a sufixação de um ponto de vista
totalmente diferente do prescritivo das gramáticas tradicionais e de algumas escolas das
Ciências da Linguagem. Ele comenta que, com o surgimento dos escândalos do mensalão, a
palavra “denuncismo” passou a ser bastante empregada. Para ilustrar a afirmação expõe
vários enunciados empregando a palavra, dos quais, gostaríamos de destacar o seguinte: ‘Se
eles [da oposição] querem esticar a corda, nós não vamos concordar. Eles deviam saber
que denuncismo não está mais dando votos’, ironizou o senador (Tião Viana/PT-AC, Folha
de S. Paulo, 8/3/2006, A5). Cita, então, Sírio Possenti (2003), que afirma:
há uma série de termos ou expressões cujo aparecimento resulta da relação polêmica entre os discursos. Todo discurso constitui-se em oposição a outro discurso. No embate entre eles, constrói-se um simulacro da palavra do outro. Com efeito, não se combate o discurso alheio, mas uma imagem que se cria dele a partir das categorias semânticas do discurso que polemiza com ele. Nessa relação polêmica, certos termos ganham existência para expressar esse simulacro.
Com base em Possenti, Fiorin afirma que o surgimento da palavra “denuncismo”
resultou desta relação polêmica entre discursos. Se, por um lado, tínhamos denúncia como
o ato de dar a conhecer crime ou falha alheia, por outro lado, temos “denuncismo” como o
ato de fazer denúncias sistemáticas, sem base na realidade, apenas para auferir vantagens
políticas, etc.
Assim, pensando na situação política brasileira, temos o confronto dos discursos da
oposição e da situação. Os primeiros fazem denúncias de corrupção; os últimos, por sua
vez, tentam rebater tais denúncias.
44
Nesse embate, os situacionistas constroem um simulacro do discurso oposicionista: não é o discurso da denúncia, mas é o do denuncismo, ou seja, um discurso que não merece qualquer credibilidade. O termo serve, então, para desqualificar a palavra da oposição. No entanto, não é o radical que tem esse sentido desqualificador, é o sufixo –ismo (FIORIN, 2006, p. 37).
A função argumentativa recai, dessa forma, sob a terminação ismo, ridicularizando o
discurso do oponente ao criar uma imitação desqualificante para a palavra denúncia.
Fiorin sugere repensarmos a sufixação, que, para ele, pode ter outras funções no
jogo argumentativo, além de criar simulacros do discurso do outro. É o que acontece com o
sufixo -inho, no exemplo a seguir, não assimilando atenuação ou diminuição, mas
desmascarando as intenções do outro: – Eu não me zanguei – diz. Mas há coisas que não
caem bem, j’ouviu? Há coisinhas, palavrinhas, sorrisinhos que ferem, que irritam, que
fazem mal, j’ouviu? É bom não repetir a brincadeira (Veríssimo, apud Fiorin, 2006, p. 37).
Como afirma Ducrot (2004, p.33), existem encadeamentos argumentativos na significação até das palavras e dos enunciados de que o discurso é construído. Nessas condições, toda fala, tenha ela ou não objetivos persuasivos, faz necessariamente alusão a argumentações. O que mostra ao menos que não há relação privilegiada entre a argumentação retórica e a argumentação lingüística (p. 33).
Por que, então, há argumentação lingüística na argumentação retórica? Segundo
Ducrot, são três as possíveis respostas:
a) porque a argumentatividade está ligada a uma estratégia persuasiva tida como
eficaz: a concessão. Trata-se de prestar atenção às possíveis objeções do interlocutor
e usá-las como argumento (X portanto não-Z). O emprego do enunciado concessivo
melhoraria, inclusive, a imagem que o orador produz de si em seu discurso;
b) porque o próprio fato de enunciar uma argumentação com portanto apresenta só
vantagens, obrigando o interlocutor a fornecer um argumento se ele recusar a
conclusão. Enunciar um encadeamento argumentativo fornecendo uma razão
favorece também a constituição de uma imagem favorável do orador, melhorando o
próprio ethos, como na concessão;
c) porque os modelos de encadeamentos argumentativos estão já presentes na
significação das palavras do léxico. Em é longe, portanto não iremos, a
45
representação da distância é explicitada como obstáculo, representação esta que faz
parte do sentido de uma palavra da língua.
A argumentação lingüística estaria, dessa forma, descrevendo o processo, e não
justificando ou provando nada. Ducrot concluiu, portanto, que os encadeamentos
argumentativos na língua levam a uma visão da retórica diferente daquela que é
tradicional no pensamento ocidental. Ele procurou mostrar que o logos, coroado como
estratégia persuasiva, não é apenas ilusório, mas que sua própria existência é uma ilusão
(p. 36).
Ao relacionarmos o trabalho de Ducrot ao de Fiorin, fica evidente que os sufixos
apontados pelo último autor funcionam como fatores internos de argumentação lingüística,
sendo concebidos de modo diverso ao da tradição gramatical. Tanto em denuncismo quanto
em coisinhas, palavrinhas e sorrisinhos há desqualificação do discurso do outro. No
primeiro caso, em função do sufixo –ismo e não do sentido do radical; no outro, em virtude
do –inho, que diferentemente do que parece, não expressa diminuição.
A estratégia argumentativa recai, pois, sob –ismo e –inho não havendo um processo
racional, já que o emprego deles não prova nenhum raciocínio lógico; o efeito de sentido
descaracterizador já está inscrito nos próprios sufixos. É como se o autor “abrisse mão” do
chamado sentido geral que os sufixos apresentam nas gramáticas tradicionais, destacando
sua força argumentativa na enunciação. Fora de uma situação de enunciação, os sufixos não
significam nada.
Perante o exposto, gostaríamos de defender a idéia de que Fiorin apóia-se tanto na
argumentação retórica, ao considerar os fatores externos à língua, quanto na argumentação
lingüística, ao apontar a estratégia argumentativa recaindo sob os sufixos –ismo e –inho
(fatores internos), mobilizando, dessa forma, os dois pontos de vista.
1.6 – Análise do Discurso
A Análise do Discurso, doravante AD, passou a constituir-se como disciplina a
partir dos anos 50, com os trabalhos de Harris – ao estender procedimentos da lingüística
distribucional americana aos enunciados – e de Jakobson e Benveniste – sobre a
enunciação. Porém, Harris foi apenas o marco inicial, não produzindo o que a AD passaria
a formular, visto que não trabalhou os aspectos sócio-históricos e a significação
46
(perspectiva americana). Já Jakobson e Benveniste, por trabalharem o discurso na área da
Semântica, representam o que temos hoje por AD (perspectiva européia).
(...) Benveniste, ao afirmar que o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por índices específicos, dá relevo ao papel do sujeito falante no processo da enunciação e procura mostrar como acontece a inscrição desse sujeito nos enunciados que ele emite. Ao falar em posição do locutor, ele levanta a questão da relação que se estabelece entre o locutor, seu enunciado e o mundo; relação que estará no centro das reflexões da análise do discurso em que o enfoque da posição sócio-histórica dos enunciadores ocupa um lugar primordial (BRANDÃO, 1993, p. 16).
A teoria em questão apresenta as seguintes linhas:
1. AD francesa (trabalho com a reflexão sobre o texto e sobre a história);
2. AD anglo-saxônica (trabalho com a Análise da Conversação);
3. AD germânica (trabalho com a Lingüística Textual);
4. AD de Fairclough (trabalho com o ensino de línguas).
A AD francesa16 nasce na década de 60, com a obra “Análise Automática do
Discurso”, de Michel Pêcheux, num momento em que colônias francesas encontravam-se
em guerra, tendo como objeto o discurso político de esquerda.
É uma linha denominada como transdisciplinar, pelo fato de que envolve três
campos disciplinares: a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise, por intermédio das
releituras, respectivamente, de Saussure, Marx e Freud. Partindo do pressuposto de que se
tinha, no século XIX, a ilusão de que a linguagem era transparente (como se ninguém
precisasse questionar sobre...), no século XX, Althusser, por meio da releitura que faz de
Marx, mostra que a história não é transparente; Lacan, o sujeito (relendo Freud); e Pêcheux,
a língua (pela releitura de Saussure). Coloca-se, então, em questão a transparência e surge a
necessidade de se produzir um dispositivo teórico para a interpretação. O analista de
16 Nos deteremos a comentar a AD francesa, visto que é a perspectiva teórico-metodológica que fundamenta nosso trabalho.
47
discurso, ao construir tal dispositivo, expõe o “olhar-leitor” não na transparência do texto,
mas na opacidade.
Acreditamos que o texto de Paul Henry (1993), denominado “Os fundamentos
teóricos da ‘Análise Automática do Discurso’ de Michel Pêcheux (1969)” demonstra de
forma clara as filiações teóricas da AD. Por isso, é sua voz que deixaremos soar nesse
momento...
Entre 1966 e 1968, Michel Pêcheux publicou quatro textos: dois sobre a análise do
discurso, assinados por ele mesmo, e outros dois sobre o materialismo histórico e a
psicanálise, assinados sob o pseudônimo Thomas Herbert, não havendo entre eles nenhuma
relação clara e evidente, visto que os conceitos e noções-chave de “Thomas Herbert” estão
quase que completamente ausentes do livro de Pêcheux sobre a análise automática do
discurso.
Abrir uma fissura teórica e científica no campo das ciências sociais era uma
ambição de Pêcheux, o qual, no momento da publicação da Análise Automática do
Discurso, queria se apoiar sobre o que lhe parecia já ter estimulado uma reviravolta na
problemática dominante de tais ciências: o materialismo histórico de Marx, relido por
Althusser; a psicanálise de Freud, relida por Lacan; e ainda os aspectos do estruturalismo
de Saussure, relidos por ele mesmo. Estes aspectos supunham uma atitude não-reducionista
no que se refere à linguagem.
A primeira publicação dele (assinada por Thomas Herbert) é fundamental para se
compreender o que ele objetivava ao desenvolver a análise automática do discurso:
fornecer às ciências sociais um instrumento científico de que elas tinham necessidade, um
instrumento que seria a contrapartida de uma abertura teórica em seu campo (HENRY,
1993, p. 15). Desse modo, deixava evidente a crítica ao estado atual das ciências sociais,
desenvolvendo uma análise precisa sobre o que é um instrumento científico.
No segundo texto de “Thomas Herbert”, há duas proposições fundamentais (as
quais resumem os resultados do texto anterior): as condições em que uma ciência
estabelece seu objeto; e o processo pelo qual uma ciência explora seu próprio discurso. A
primeira é essencialmente teórica e conceitual; já a segunda – da reprodução metódica do
objeto – demonstra fortemente a função dos instrumentos.
48
Segundo Pêcheux (apud HENRY, 1993, p. 17), a reprodução metódica do objeto de
uma ciência é
o processo pelo qual uma ciência cria seu próprio espaço de jogo, faz variar suas questões, e, através de tais variações, ajusta seu discurso teórico a si mesma, nele desenvolvendo sua consistência e necessidade.
Para ele, é a apropriação dos instrumentos pela teoria que faz da atividade científica uma
prática. O que ele visava era uma transformação da prática nas ciências sociais, uma
transformação que poderia fazer desta prática uma prática verdadeiramente científica
(HENRY, 1993, p. 18). Exemplos mostram que a utilização de instrumentos (como a
balança) era concebida como prática científica, o que coloca esta última na continuidade de
práticas técnicas. Na prática política, especificamente, o instrumento é o discurso; é por
meio dele que a prática política transforma as relações sociais, reformulando a demanda
social.
Os dois textos de “Herbert” delineiam, então, uma análise sobre as raízes históricas
da epistemologia e da filosofia do conhecimento empiricista.
Ao escolher o discurso e a análise do discurso como o lugar preciso onde é possível
intervir teoricamente e construir um dispositivo experimental, Pêcheux quis provocar uma
ruptura no campo ideológico das ciências sociais. Isto, em virtude da relação oculta entre a
prática política e as “ciências sociais”; e pela ligação entre a prática política e o discurso.
Rompe, assim, com a concepção instrumental tradicional da linguagem – cuja função é
justamente mascarar sua ligação com a prática política – fazendo intervir o discurso e
tentando elaborar teórica, conceitual e empiricamente uma concepção original deste,
seguindo uma orientação estruturalista.
Apesar de Pêcheux não ser considerado um estruturalista, pode-se encontrar o
estruturalismo em sua obra (como também na de Lacan ou Foucault), visto que o
estruturalismo francês fez da lingüística a ciência-piloto. Os estruturalistas, no entanto, não
se desfizeram do hábito de fazer da natureza humana um princípio explicativo ao
transferirem os conceitos e métodos lingüísticos para outros campos, sem reelaborações
fundamentais, deixando assim
49
a porta aberta para todas as formas de reducionismo, enquanto tentativas para especificar, de todos os pontos de vista possíveis, inclusive os biológicos, a natureza humana, para dela fazer um princípio explicativo (HENRY, 1993, p. 28).
Lacan, Derrida e Foucault, nessa mesma ocasião, rejeitavam as concepções de
sujeito e de ciências humanas elaboradas pela filosofia estruturalista, fazendo uma
referência comum à linguagem, ao signo ou ao discurso:
A linguagem (ou o jogo, ou a ordem do signo, ou o discurso) não é entendida como uma origem, ou como algo que encobre uma verdade existente independentemente dela própria, mas sim como exterior a qualquer falante, o que define precisamente a posição do sujeito, de todo sujeito possível (Henry, 1993, p. 29).
A ligação entre o discurso e a prática política (que passa pela ideologia) era a
preocupação principal de Pêcheux, por isso seguiu mais Althusser, que Lacan, Derrida ou
Foucault. Pela ideologia, Pêcheux introduz o sujeito enquanto efeito ideológico elementar.
É enquanto sujeito que qualquer pessoa é ‘interpelada’ a ocupar um lugar determinado no
sistema de produção. Althusser acreditava que não existe prática senão sob uma ideologia.
Para ele, todo sujeito humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática social
enquanto sujeito (apud HENRY, 1993, p. 30). Afirma ainda que Spinoza foi o primeiro a
ter rompido com a questão da origem e a concepção do sujeito na qual ela se condensou.
O sujeito de Foucault é o sujeito da “ordem do discurso”; o de Derrida é o do “jogo
da ordem do signo”; e o de Lacan é o do inconsciente estruturado como uma linguagem.
Estes autores trabalham com sujeitos ligados à linguagem ou ao signo. Althusser não estava
particularmente interessado pela linguagem, e sim pela ideologia. Para relacionar
linguagem e ideologia, Pêcheux explorou a indicação formulada por Althusser sobre o
paralelo entre a evidência da transparência da linguagem e o ‘efeito ideológico elementar’.
O paralelo estava estabelecido, mas não havia uma ligação definida. Assim, ficam claras as
relações entre linguagem e ideologia de Pêcheux, que introduziu o discurso para expressar
tal ligação, tentando desenvolver uma teoria do discurso e um dispositivo operacional de
análise do discurso, discurso este que, por sinal, não é o de Foucault.
Toda a obra de Pêcheux – conclui Henry – coloca-o entre o “sujeito da linguagem”
e o “sujeito da ideologia”, inserindo o discurso entre a linguagem e a ideologia. Voltou sua
50
atenção para o problema das ligações entre o objeto da análise e da teoria do discurso e o
objeto da lingüística. Ao desenvolver seu dispositivo, esperava que ele fosse o meio de uma
experimentação efetiva, haja vista que os instrumentos científicos não são feitos para dar
respostas, mas para colocar questões (1993, p. 36).
Três épocas constituem a AD francesa:
Na primeira época (1969 – 1975) temos uma AD eminentemente política, de teoria
radical, influenciada pelas idéias de Althusser. Nessa época, o objeto de análise é o
discurso político de esquerda;
A segunda época (1976 – 1980) origina-se a partir das críticas recebidas à primeira
época, em virtude das idéias radicais de Althusser. Nessa época, as afirmações de
Foucault é que influenciam os estudos. Os conceitos básicos nesse momento são:
formações discursivas, interdiscurso e descontinuidade. O objeto de análise passa a ser
não só o discurso político, mas qualquer outro tipo de discurso. A disciplina passa a ser
chamada “Análise de Discurso” e não mais “Análise do Discurso”, por deixar de
trabalhar com um objeto específico.17
É na terceira época (1981...) que temos influências das propostas de Bakhtin (via
Authier-Revuz). A AD se apropria dos conceitos de polifonia, dialogismo e gênero,
considerados básicos nesse período (a AD atual).
Convém ressaltar que Pêcheux escreveu nas três épocas, sendo afetado pelos três
momentos, e tais épocas não surgiram como as escolas literárias (por exemplo), que iam
surgindo e rompendo com os conceitos já existentes. Pelo contrário, na AD, houve (e ainda
há) uma espécie de contribuição a cada época.
Por volta do fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, chega a AD ao Brasil, tendo
como marco a obra “A linguagem e seu funcionamento”, de Eni Orlandi, que conclui o Pós
- Doutorado na França, em 1979, e ministra as primeiras aulas de AD na Unicamp.
Enquanto a França aproxima-se da terceira época, o Brasil é apresentado à nova disciplina.
Antes dessa data, seria impossível trazer as idéias francesas, já que o Brasil estava em
período de ditadura militar e a AD baseava-se em postulados marxistas. 17 Apesar de a AD atual não analisar um discurso específico, há os que ainda utilizam a expressão “Análise do Discurso”, por questões de tradição.
51
Sírio Possenti, em “Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas” (2004), a
partir de alguns conceitos-chave, expõe aspectos de uma concepção do discurso sob a ótica
da ruptura. Segundo tal ótica, o conhecimento não se produz por acumulação, mas por
saltos e mudanças de rumo em relação às etapas anteriores (p. 355). Para Possenti, cabe à
AD romper com o que a lingüística faz em seus diversos compartimentos.
Após considerar a AD como uma teoria da leitura, o autor mostra-nos que tratar o
sentido não como informação, mas como efeito de sentido entre interlocutores é romper
com a análise de conteúdo, que concebe o sentido de um texto a partir das informações nele
contidas. Rompe, ainda, com a filologia, rejeitando que palavras, expressões ou estruturas
sintáticas pudessem ser garantia de sentido, que houvesse um autor que pudesse ter dito
tudo e só o que queria; e que houvesse uma conjuntura social uniforme. Assim, no campo
da interpretação, a AD rompe, de um lado, com a análise de conteúdo e, de outro, com a
filologia.
A segunda ruptura discutida pelo autor é em relação à concepção de língua, que não
é transparente, mas opaca. A proposta da AD é que a língua funcione de forma autônoma,
segundo o processo discursivo de que se trata numa certa conjuntura. Rejeita, dessa forma,
que o sentido seja da ordem da língua, sendo na verdade, da ordem das formações
discursivas (FD), as quais materializam formações ideológicas, sendo, estas, por sua vez, da
ordem da história. Assim, palavras ou enunciados terão sentidos diferentes se pertencerem a
FDs diferentes. A língua é apenas o aspecto material do discurso.
Em seguida, Possenti afirma que o verdadeiro adversário da AD é a pragmática,
visto que também combate as gramáticas formais e universais e se afaste das sociologias da
linguagem e das semânticas lógicas, disputando, assim, o mesmo espaço com a AD – o do
sentido não-literal. Porém, a pragmática soluciona a questão do sentido invocando a
intenção do falante, considerado sua fonte. A ruptura com a pragmática se dá, então, pela
diferenciação na concepção de sujeito, que, para a AD, é afetado pelo inconsciente e pela
ideologia. Rompe, em conseqüência, também com a psicologia, para quem o sujeito é uno e
consciente.
A ruptura com a concepção de texto, como unidade de análise é a quarta discutida
pelo lingüista. Para a AD, o texto representa uma manifestação aqui e agora de um
processo discursivo específico, no qual as relações internas entre elementos textuais são
52
tratadas como intradiscurso. O sentido de um texto dar-se-á não por sua relação com um
contexto, mas por sua inserção numa FD, em função de uma memória discursiva, do
interdiscurso, que o texto retoma e do qual é parte. Dessa forma, a AD substitui a
concepção de texto por uma que o concebe como uma das manifestações do próprio
discurso.
O conceito de condições de produção substitui o de circunstância rompendo, assim,
com as noções de contexto e situação. O que a AD leva em conta em relação aos
participantes de um evento discursivo não é o conhecimento que tenham das regras que
comandam um certo intercâmbio lingüístico, mas o fato de que cada um enuncia a partir de
posições que são historicamente constituídas. Pêcheux (apud Possenti, 2004) detalhou um
quadro das condições de produção a partir do esquema de Jakobson, com o qual rompe,
mostrando que ao enunciar responde-se a perguntas como: Quem sou eu para lhe falar
assim?, Quem é ele para que eu lhe fale assim?... As imagens devem, então, ser tomadas
como representações imaginárias, ou seja, os lugares são representados nos processos
discursivos em que são colocados em jogo. Possenti deixa claro que, mesmo na situação
concreta, o conceito de condições de produção exclui definitivamente um caráter
psicossociológico. Dessa forma, os contextos imediatos só interessarão se neles
funcionarem condições históricas de produção – os contextos fazem parte de uma história
não circunstancial cujos enunciadores se assujeitam à sua FD.
Em relação ao campo do sentido, a AD rompe com distinções do tipo: denotação x
conotação; sentido literal x figurado; sentido x referência... O sentido de uma palavra se
resolve na medida em que uma delas pode ser substituída por outra, no interior de uma FD,
tornando-se o sentido um efeito de substituibilidade das expressões. Como o sentido das
palavras em um discurso remete sempre a ocorrências anteriores e a enunciação supõe uma
posição, então é a partir dessa posição que os enunciados recebem seu sentido – este é
decorrente de sua substituibilidade por enunciados equivalentes na mesma FD,
evidenciando, assim, seu caráter necessariamente histórico.
A problemática da enunciação sempre foi, no mínimo, um critério que opôs as
análises lingüísticas e as discursivas. Das diversas maneiras de se conceber a enunciação,
duas são fundamentais: por procedimentos dêiticos e por procedimentos metaenunciativos.
Os dêiticos são elementos da língua cuja função é embrear o enunciado (o que se diz) às
53
circunstâncias (tempo e espaço), podendo ser analisados por meio de um enfoque
lingüístico ou discursivo. Já os procedimentos metaenunciativos são os produzidos do
interior da FD na qual o enunciador se insere, condicionando-o a “trabalhar” para que a
seqüência produzida seja uma das que pode e deve dizer – assume-se uma posição
discursiva. Possenti mostra-nos que o mais problemático no campo da enunciação é definir
o enunciado, ou seja, o que se repete nas diversas enunciações, na medida em que, de
alguma forma, um discurso constrói uma espécie de ‘mesmo’ que possa ser constantemente
retomado.
A noção de acontecimento é a oitava tratada pelo autor, que a considera crucial para
a AD. Ao contrário do enunciado, que se repete, o acontecimento é concebido como um
fato irrepetível, único. Porém, a AD não concedeu a esta noção um lugar privilegiado,
preferindo o repetível, o estrutural, como podem atestar quase todas as pesquisas na área –
que privilegiam a identificação do mesmo em um arquivo. Segundo Possenti (2004, p.
380), considerar a história deveria ser mais do que inserir um acontecimento em uma
série; teria que significar uma verdadeira ruptura com a história linear. A noção de
acontecimento rompe, pois, com qualquer concepção de história linear e teleológica que
procurasse em tudo o sentido, e ainda com a relação discurso-enunciação como evento
singular.
Uma das principais características da AD é o interdiscurso. Possenti lembra que em
Pêcheux, na obra Semântica e Discurso, encontra-se a afirmação da dependência da FD em
relação ao interdiscurso, que, por sua vez, é submetido à lei da desigualdade-subordinação
que caracteriza o complexo das formações ideológicas. Essa noção de Pêcheux lembra a
noção de universo de discurso, de Maingueneau (1993, p. 120), para quem um discurso não
nasce, como geralmente é pretendido, de um retorno às próprias coisas, mas de um
trabalho sobre outros discursos. Possenti comenta que a conceituação de Pêcheux não é
levada em conta nas análises. Cita o exemplo de Courtine, que analisa o discurso comunista
dirigido aos cristãos em sua confrontação com o discurso cristão, para mostrar que é mais
produtivo analisar corpora diacrônicos (sem perder de vista as relações discursivas
sincrônicas), pois se pode, assim, verificar exatamente a repetição. Tal análise produz
efeitos positivos sobre a noção de interdiscurso, que não fica reduzido às relações mantidas
54
entre discursos em uma mesma época. Courtine (apud Possenti, 2004, p. 383) define,
destarte, o interdiscurso como sendo
o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante que produz uma seqüência discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se apropria para fazer deles objetos de seu discurso, bem como as articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar coerência a seu propósito.
Possenti acredita que a noção de interdiscurso de Maingueneau é mais operacional e
produtiva, visto que explicita suas diversas dimensões, propondo a substituição por uma
tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Para concluir esse
tópico, Possenti apresenta duas noções especialmente importantes para o interdiscurso: a de
pré-construído e a de discurso transverso. A primeira é uma ruptura com a noção de
pressuposição e a segunda com o implícito. Enquanto a pressuposição é psicológica e
transparente, repousando sobre elementos da língua, o pré-construído é um traço, no
discurso, de um discurso anterior, produzindo um efeito de evidência. A compreensão do
não-dito, no discurso transverso, depende do conhecimento de relações estabelecidas em
um campo de saber, já que os exemplos são retirados de discursos mais estabilizados. A
ruptura, portanto, do interdiscurso relaciona-se a conceitos que se fundam sobre os
pressupostos da homogeneidade e do centramento, seja do discurso, seja do sujeito – para a
AD, os discursos não são independentes uns dos outros e não são elaborados por um
sujeito.
A última noção discutida por Possenti é a de sujeito. O autor acredita ser esta a mais
importante ruptura para a teoria da AD. Althusser também está na origem das formulações
básicas da AD no que se refere à questão do sujeito. Para ele, não há sujeito, há sujeitos;
não há sujeitos da história, há sujeitos na história. A ruptura da AD é, pois, com um
sujeito uno, livre, caracterizado pela consciência e tomado como origem, propondo, então,
um sujeito clivado, assujeitado, inconsciente.
Possenti conclui comentando que provavelmente a AD quis ser científica, porém
não é, nunca foi. Talvez seja muito importante para ser uma ciência. Assim, como falar em
ruptura? Seria justo? Encerra, então, a discussão da seguinte forma:
55
Os movimentos de ruptura são análogos no campo científico, nos outros domínios dos saberes e também no das ideologias. Assim, contrapor a AD a outras soluções não é apenas reconhecimento do interdiscurso. Trata-se de um gesto do qual resulta produção de conhecimento (p. 389).
Apesar de termos mostrado, neste capítulo, a sufixação sob o olhar de teorias
diversas, não o faremos com base na AD. Deixaremos a discussão metodológica para o
terceiro capítulo, o qual trará uma análise de enunciados pertencentes ao discurso político
acerca do uso dos sufixos como desqualificadores do discurso do oponente.
Depois de realizarmos um breve passeio sobre algumas escolas e domínios das
Ciências da Linguagem que se debruçam sobre o estudo da sufixação, traremos, no
próximo capítulo, uma discussão acerca do discurso político. Acreditamos que tal discussão
seja relevante para o nosso estudo, pois o discurso político se constitui num terreno bastante
fecundo de manifestação do fenômeno em análise. Parafraseando livremente Foucault,
diríamos que o discurso político é o solo privilegiado do qual irrompem os sufixos
derrisórios.
56
2. O DISCURSO POLÍTICO: NOVOS CAMINHOS, MESMAS MENTIRAS
O discurso político sempre ocupou um lugar privilegiado na AD, desde o
surgimento da disciplina, no qual era objeto específico18, como também nas fases seguintes,
nas quais divide o interesse dos analistas com outros tipos de discursos. Porém, com uma
série de transformações históricas, ele transformou-se. Midiatizou-se. Espetacularizou-se.
Passou do palanque à televisão, clamando por transformações teóricas e metodológicas,
como considerar o corpo, a voz, as imagens e a tela; em outras palavras, considerar sua
circulação. Apesar de Pêcheux ter afirmado que o campo discursivo já estava ligado às
mídias, e Orlandi ter concebido a tricotomia constituição/ formulação/ circulação,
Piovezani Filho (2006, p. 245) atenta para o fato de que, ao menos no que concerne ao
discurso político, continuou a [se] dar menos atenção que, de fato, os suportes materiais
do discurso mereciam.
Na França da segunda metade dos anos 1980, o objeto da AD ampliou-se, deixando
de ser exclusivamente os discursos políticos. Houve uma “gramaticalização” nas análises,
desmarxizando suas bases e fixando-se no intradiscurso:
apoiando-se em Foucault e Bakhtin, os trabalhos da análise do discurso focarão a ‘discursividade’ a partir de fenômenos lingüísticos (...) interrogando os limites da gramática, o ponto de passagem à ordem do discurso (GREGOLIN, 2006, p. 156).
O que já vinha sendo preparado desde 1975, torna-se decisivo em 1980 com a
mudança de rumos nos trabalhos do grupo de Pêcheux. Este reordena o projeto de 1969, da
Análise Automática do Discurso, a partir de uma reconstrução de suas bases. Segundo
Gregolin (2006, p. 153), alguns dos fatores que ocasionaram tal mudança de rumos foram:
as decepções políticas, a fragmentação das esquerdas, a crise simultânea do marxismo e
do estruturalismo, [e] a ‘morte’ de Althusser. Em virtude de o panorama econômico ter se
transformado, não havia mais espaço para uma leitura marxista de lutas de classes.
Também não cabia mais pensar centralmente no lingüístico, como Pêcheux pretendeu
18 O discurso político não era o único a ser analisado, mas também o pedagógico, o científico e o dos historiadores. Porém, o peso das descrições de corpora políticos sobrepujava qualquer outro, a ponto de se considerar, de forma geral, o discurso político como objeto específico de análise.
57
inicialmente. Junto à expansão da mídia, um mundo de heterogeneidades se desenhava. Ao
pensar um “novo objeto”, criticava-se a leitura “automática” de 1969. O projeto da AAD 69
dava lugar ao da AAD 80...19
Os trabalhos propõem, agora, o primado da heterogeneidade tanto como categoria conceitual quanto em relação ao corpus: tomando a formação discursiva no interior da heterogeneidade, ela deixa de referir-se a um exterior ideológico e passa a ser buscada na dispersão dos lugares enunciativos do sujeito (GREGOLIN, 2006, p. 155).
Com o novo caminho a ser seguido pela AD, o discurso político passou a ser um dos
objetos de estudo e não o objeto específico da AD. A idéia inicial era que a AD se
constituísse não só como uma intervenção científica, mas também política, por isso, o
estudo dos discursos políticos20. Guilhamou e Maldidier (apud Gregolin, 2006, p. 158)
afirmam que a transformação dos objetos da AD é conseqüência da mudança de concepção
do “documento histórico” a partir da idéia de “arquivo”:
Inicialmente presa ao gênero do discurso político, a análise do discurso clássica não tinha nenhuma necessidade de diversificação do arquivo. No entanto, a partir da busca por aquilo que instala o social no interior do político, não pudemos mais ignorar a multiplicidade de dispositivos textuais disponíveis. Vemos que a análise do discurso ampliou seu campo de investigação: do interesse pelo discurso doutrinário ou institucional, ela passou ao que poderíamos chamar a história social dos textos.
Atualmente, pode-se falar em tendências retóricas e/ ou pragmáticas, tendo-se por
referências os trabalhos de Dominique Maingueneau, Patrick Charaudeau, Ruth Amossy,
Jean-Michel Adam e Catherine Kerbrat-Orecchioni. Em relação ao discurso político, há
uma inflexão em considerar o paradigma midiático.
No Brasil, porém, a tendência é conservar o aspecto histórico/político dos discursos,
com as posturas críticas de 1969, articulando o lingüístico e o histórico a partir dos passos
de Foucault e Pêcheux. A opinião de Piovezani Filho (2006, p. 247) é de que, embora os
19 Na AAD 69, a análise do discurso político invocou o materialismo histórico de Althusser. Já na AAD 80, se apropriou do conceito de formação discursiva. 20 Seu primeiro objetivo foi negar o “corte saussuriano” fazendo ressurgir o que Saussure havia relegado: as condições de uso da língua. Pretendia-se realizar não um simples trabalho de lingüista, mas ocupar uma posição heróica numa luta teórico-política: reintegrar num gesto libertador, o que uma decisão arbitrária havia excluído (COURTINE, 2006, p.39).
58
estudos brasileiros sobre o discurso político sejam pertinentes/ sólidos/ relevantes, existe
ainda uma imperiosa necessidade de alargar o domínio dos objetos de análise. O autor
acredita que se devam contemplar não apenas a história e a memória dos discursos e sua
formulação, mas também sua transmissão e circulação (p. 251).
Seguindo, então, a tendência brasileira, pesquisamos o formal da língua com função
ideológica, mostrando, por meio do discurso político, a materialização da ideologia. Antes,
porém, de apresentarmos a análise do corpus selecionado, gostaríamos de promover uma
discussão sobre o discurso político à luz de dois autores franceses: Patrick Charaudeau e
Jean-Jacques Courtine.
2.1 – Em Charaudeau21
Patrick Charaudeau é professor na Universidade Paris-Nord (Paris 13) e diretor-
fundador do Centro de Análise do Discurso (CAD). Em “Discurso Político”, obra
recentemente publicada no Brasil, traz ao debate as idéias e opiniões que circulam no
espaço público no qual se confrontam os atores do discurso, evidenciando que o discurso
político é incentivado pelo desejo e pela necessidade de influenciar o outro. Ele propõe que
cada um de nós seja para o outro apenas uma imagem, não falsa ou enganosa, mas uma
máscara que seria nosso ser presente, não dissimulando ou designando-nos, mas sendo
nossa imagem diante do outro, uma máscara que viria constituir nossa identidade em
relação ao outro. Várias máscaras e identidades são possíveis, substituindo-se as máscaras
ao mudar-se a situação de troca.
O discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz. Jamais deve ser tomada ao pé da letra, numa transparência ingênua, mas como resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é soberano (CHARAUDEAU, 2006, p. 8).
21 Embora Patrick Charaudeau não se inscreva no denominado “núcleo duro” da Análise do Discurso de orientação francesa, as reflexões desse autor trazem importantes contribuições para se pensar o discurso político na atualidade. É importante deixar claro também que a concepção de sujeito deste autor não coincide com a de sujeito inconsciente que caracteriza a teoria francesa de AD. A filiação de Charaudeau é mais voltada à pragmática. Por isso, se justificam algumas passagens pelas quais nosso leitor se deparará no decorrer desta seção, as quais concebem um sujeito “mais consciente”.
59
Em relação ao poder político, ao apresentar a posição de Weber, para quem o poder
político está ligado diretamente à dominação e à violência, e a de Arendt, para quem ele
resulta de um consentimento, o autor expõe a de Habermas, que propõe a distinção de um
poder comunicativo e um poder administrativo. Os dois se definem segundo relações de
força que exigem processos de regulação, os quais se desenvolvem segundo um jogo de
dominação que lhe é próprio. No primeiro, é a linguagem que domina; no segundo, é a
ação. Assim, Patrick Charaudeau defende sua inscrição numa concepção de poder político
resultante de dois componentes da atividade humana: o do debate de idéias no vasto campo
do espaço público, onde se trocam opiniões; e o do fazer político no campo mais restrito do
espaço público, onde se tomam decisões. No primeiro está em jogo a conquista de uma
legitimidade; no segundo, o exercício de uma autoridade.
Charaudeau afirma que toda fala política é um fato social e que o discurso político é
um objeto de estudo que está no centro de diversas disciplinas:
Qualquer enunciado, por mais inocente que seja, pode ter um sentido político a partir do momento em que a situação o autorizar. (...) Não é, portanto, o discurso que é político, mas a situação de comunicação que assim o torna. Não é o conteúdo do discurso que assim o faz, mas é a situação que o politiza (CHARAUDEAU, 2006, p. 40).
O pensamento político pode se dar em diferentes lugares, estando reservado não
apenas aos responsáveis pela governança nem aos solitários pensadores da coisa política. É
elaborado, pois, segundo os modos de interação e identidade dos participantes envolvidos.
O autor propõe três lugares de fabricação desse pensamento, que correspondem cada qual a
um desafio de troca linguageira particular:
a) discurso político como sistema de pensamento: resulta de uma atividade discursiva que
procura fundar um ideal político em função de certos princípios que devem servir de
referência para a construção das opiniões e dos posicionamentos;
b) discurso político como ato de comunicação: refere-se diretamente aos atores que
participam da cena de comunicação política, cujo desafio consiste em influenciar as
opiniões, a fim de obter adesões, rejeições ou consensos;
60
c) discurso político como comentário: um discurso a respeito do político, sem risco político,
não necessariamente voltado para um fim político; é como se o desafio fosse exprimir uma
opinião política, embora ela não o seja realmente.
Tais lugares não se encontram separados: com o discurso político se elabora um
sistema de pensamento, que se manifesta em diferentes situações de comunicação,
atravessa diferentes opiniões, insinua-se nos comentários, volta às vezes ao seu ponto de
origem e reaparece em outras épocas, mas se construindo de forma diferente.
A análise do discurso político se questiona sobre os discursos que tornam possíveis
tanto a emergência de uma racionalidade política quanto a regulação dos fatos políticos.
Charaudeau acredita que não há como existir política sem discurso, já que este é
constitutivo daquela. O discurso é que motiva e confere sentido à ação política.
O discurso é constitutivo do político. Ele está intrinsecamente ligado à organização da vida social como governo e como discussão, para o melhor e para o pior. Ele é, ao mesmo tempo, lugar de engajamento do sujeito, de justificação de seu posicionamento e de influência do outro (CHARAUDEAU, 2006, p. 43).
É importante para o nosso trabalho a distinção que o autor faz entre os seguintes
conceitos: o de político e o de prática de política. O primeiro se refere a tudo que nas
sociedades organiza e problematiza a vida coletiva em nome de certos princípios, de certos
valores que constituem uma espécie de referência moral. Já o segundo, diz respeito à
gestão da vida coletiva na qual estão implicadas diferentes instâncias que regulam suas
relações mediante um jogo de poder e contrapoder. Acreditamos que, apesar de as duas
noções estarem em reciprocidade dialética, nosso trabalho direciona-se mais à segunda
noção, isso porque analisaremos enunciados proferidos por sujeitos “praticantes de
política” pertencentes à instância “de governança”.
A política é um campo de batalha em que se trava uma guerra simbólica para estabelecer relações de dominação ou pactos de convenção. Conseqüentemente, o discurso das idéias se constrói mediante o discurso do poder, o primeiro pertencendo a uma problemática da verdade (dizer o Verdadeiro) e o segundo a uma do verossímil (dizer ao mesmo tempo o Verdadeiro, o Falso e o Possível). (CHARAUDEAU, 2006, p. 46).
61
O autor segue justificando as duas orientações adotadas pelos estudos sobre o
discurso político: uma direciona-se para os conteúdos do discurso, a outra para os
mecanismos da comunicação. Ele afirma que até o momento as análises apoiavam-se mais
sobre os conteúdos das proposições, sobre o valor dos argumentos, sobre o logos. Isso em
função de o jogo político se desenvolver mais particularmente em torno dos sistemas de
pensamento, das ideologias. Porém, Charaudeau observa que o discurso político está se
deslocando do lugar do logos para o do ethos e do pathos22, do lugar do teor dos
argumentos para o de sua encenação, mostrando mais sua encenação do que a compreensão
de seu propósito. Dessa forma, ethos e pathos passam a assumir o lugar de valores de
verdade.
Em seguida, compara a comunicação humana a um teatro e dentre as peças está a
cena política. Ele sugere que, primeiro, atente-se às características dessa cena (as restrições
estruturais da situação de comunicação) e, em seguida, ao jogo pessoal dos atores (as
estratégias discursivas).
Um “contrato de comunicação” rege todo discurso: ele se constrói na intersecção
entre um campo de ação e um campo de enunciação. O primeiro trata de um lugar de trocas
simbólicas, organizado segundo relações de força; o segundo, um lugar dos mecanismos de
encenação da linguagem. Com o discurso político não poderia ser diferente, o que explica
sua heterogeneidade e estabilidade, nascendo daí as dificuldades dos políticos, cidadãos e
analistas na construção de seus discursos. De acordo com o lugar ocupado no contrato e
com o posicionamento dos indivíduos, os quais ocupam essas posições, operar-se-ão as
significações e efeitos resultantes de um jogo complexo de circulação e de entrecruzamento
dos saberes e das crenças que são construídos por uns e reconstruídos por outros. As
significações do discurso político são fabricadas e mesmo refabricadas, simultaneamente,
pelo dispositivo da situação de comunicação e por seus atores (p. 53).
O dispositivo, de ordem conceitual, estrutura a situação na qual se desenvolvem as
trocas linguageiras, mas ele depende também das condições materiais de tais trocas, visto
que podem variar de uma situação de comunicação a outra. Estabelece-se uma relação de
encaixe entre o macrodispositivo conceitual e os microdispositivos materiais – suas
22 Seguindo a proposta de Aristóteles, são três as categorias responsáveis por influenciar um auditório: logos pertence ao domínio da razão e torna possível convencer; ethos e pathos pertencem ao domínio da emoção e tornam possível emocionar.
62
variantes (no discurso político podem ser o comício eleitoral, a declaração televisiva, as
promessas eleitorais, as entrevistas radiofônicas, etc).
O dispositivo é, portanto, aquilo que garante uma parte da significação do discurso político ao fazer com que todo enunciado produzido em seu interior seja interpretado e a ele relacionado. Ele desempenha o papel de fiador do contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2006, p. 54).
Os parceiros do contrato são entidades humanas, categorias abstratas, desencarnadas
e destemporalizadas, definidas pela posição que ocupam no dispositivo e às quais os
indivíduos são remetidos – as instâncias. Sem o conhecimento destas, a interpretação do
falar das pessoas seria equivocada. Um aspecto importante para a análise do discurso
político, pois evita que se caia em dois extremos: reduzir as explicações dos fatos políticos
apenas à personalidade psicológica e social dos atores reais da vida política; e se interessar
apenas por idéias veiculadas pelos discursos (a ideologia), sem levar em conta a natureza
das instâncias do dispositivo.
São três os lugares de fabricação do discurso político – o de governança, o de
opinião e o de mediação, nos quais se encontram, respectivamente, as instâncias política,
cidadã e midiática:
a) instância política (e instância adversária): encontra-se no lugar em que os atores têm um
“poder de fazer” e um “poder de fazer pensar” – de decisão e ação e de manipulação. É o
lugar da governança. Os atores buscam legitimidade, para ascender a este lugar, autoridade
e credibilidade, para poder geri-lo e nele se manter. Ela recobre diversos status e situações,
sendo composta por um centro e vários satélites. A instância adversária, sendo despojada
do poder, é levada a produzir um discurso sistemático de crítica ao poder vigente, que lhe
é simetricamente retribuído;
b) instância cidadã: está na origem da escolha dos dirigentes do poder. Ela produz discursos
de reivindicação, de interpelação e de sanção. Longe de ser homogênea, recobre
organizações e situações diversas. Divide-se em dois subconjuntos: sociedade civil e
sociedade cidadã. A primeira é um lugar de pura opinião, que concerne à vida em
sociedade, tanto pública quanto privada. A outra é uma construção; reúne indivíduos que
têm consciência de um papel a desempenhar na organização política da vida social,
existindo de maneira orgânica;
63
c) instância midiática: encontra-se fora da governança. É o elo que se vale de diferentes
modos de mediação (panfletos, cartazes de ruas e grandes veículos de informação) para unir
a instância política à cidadã. É regida por uma dupla lógica: a de informação cidadã e a de
concorrência comercial.
Em seguida, Charaudeau aborda a noção da legitimidade, que dá a toda instância de
palavra uma autoridade de dizer. Não é exclusiva do domínio político, designando o estado
ou a qualidade daquele cuja ação é bem fundamentada. A legitimidade resulta de uma
atribuição. O sujeito legitimado (instância política) sabe que tal legitimidade lhe é acordada
pelos mesmos indivíduos (instância cidadã) que são o alvo de seus atos de discurso,
surgindo, assim, uma difícil relação de aceitação recíproca entre essas duas instâncias, que
é própria do domínio político:
A instância política dispõe dos procedimentos de coerção física que lhe permitem manter a ordem, gerir as tensões que inevitavelmente surgem em qualquer grupo humano e ajudar no desenvolvimento de uma maior justiça social, mas ela dispõe de tais instrumentos apenas à medida que conserva esse poder como uma soberania reconhecida pela instância cidadã (CHARAUDEAU, 2006, p. 69).
Essa soberania, relacionada à representação, está sob tutela, mas ela é, ao mesmo tempo, o
próprio poder tutelar. A posição de soberania representa uma verdade absoluta e se
encontra depositária de um ideal social, sendo o soberano, ao mesmo tempo, o todo
poderoso e o responsável.
São três os tipos de imaginário social que se encontram na origem da legitimidade
política:
a) legitimidade por filiação: se funda sobre a idéia de que o sujeito deve ser “bem nascido”,
recebendo o título, o poder e a responsabilidade de seu ascendente como um quinhão. Pode
ser de natureza sagrada, de ordem social ou biológica;
b) legitimidade por formação: passada ao sujeito por instituições de prestígio, cujo diploma
tenha sido obtido entre os primeiros colocados. E ainda pelo exercício de cargos de
responsabilidade prestigiosos e pela capacidade de se fazer notado por tudo o que puder
provar competência e experiência;
c) legitimidade por mandato: tem origem na tomada do poder pelo povo, se opondo à
soberania ao tomar consciência de que esta lhe é imposta. Segundo tal legitimidade, é o
64
povo que tem o direito de governar para o seu próprio bem, mas transforma-se em
legitimidade representativa, pois dificilmente é concebível que a totalidade de um povo
governe.
Numa democracia, o povo é quem delega poder ao político. A este cabe mostrar-se
crível e persuadir o maior número de indivíduos possível para adquirir a tão necessária
legitimidade. Charaudeau aponta alguns fatores que funcionam como estratégias
discursivas empregadas pelo político para atrair a simpatia do público: sua identidade
social; a maneira como percebe a opinião pública e o caminho que faz para chegar até ela; a
posição dos outros atores políticos (adversários ou não); enfim, tudo o que julgar necessário
defender ou atacar – pessoas, idéias ou ações. Seu projeto político deve parecer pertinente,
levando os cidadãos a aderirem aos valores subjacentes ao mesmo. Assim, o político deve
construir para si uma dupla identidade discursiva: uma referente ao conceito político (o
posicionamento ideológico do sujeito) e outra referente à prática política (a posição do
sujeito no processo comunicativo). Uma identidade do singular-coletivo: um “Eu-nós”.
A instância política (...) encontra-se entre o conceito e a prática de política, entre um enfoque idealizante, que cria sistemas de valores e um enfoque pragmático, que se apóia na experiência da relação com o outro para influenciá-lo (CHARAUDEAU, 2006, p. 84).
Logos, ethos e pathos se misturam na encenação do discurso político, oscilando este
entre as ordens da razão e da loucura. O autor propõe, então, três estratégias empregadas
pelo político para entender o que leva um cidadão aderir a um determinado valor:
a) a construção da imagem de si: para fins de credibilidade e de sedução, o político apela
para a dramaturgia numa guerra de imagens para conquistar imaginários sociais. Todo ato
de linguagem passa pela construção de uma imagem de si. O político, então, constrói uma
imagem de si, que corresponda às expectativas dos eleitores num jogo de identificação. O
ethos é como um espelho no qual se refletem os desejos uns dos outros (CHARAUDEAU,
2006, p. 87). O político deve saber conjugar os contrários, pois uma mesma atitude pode ser
vista como positiva por seus partidários, mas negativa para seus adversários: ser diplomata
e engajado, protetor e dinâmico, distante e próximo, astuto mas honesto, rico mas não
corrompido... Charaudeau (2006, p.89) não deixa de frisar que a construção e efeitos das
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imagens sobre os povos são frágeis – adoradas um dia, podem ser queimadas no dia
seguinte;
b) a dramatização do discurso: para fins de persuasão, o político imagina seu público e o
efeito que espera produzir nele; escolhe universos de crença específicos, tematiza-os de
determinada maneira, procedendo à encenação (uma situação inicial que descreve o mal, a
determinação de sua causa, a reparação desse mal pela intervenção da figura do herói
natural ou sobrenatural). A persuasão usada no discurso político relaciona-se, pois, com a
paixão, com a razão e com a imagem;
c) a escolha e representação dos valores: para fins de fundamento do projeto político, o
político se adequa aos valores da maioria sem se contradizer por causa disso, já que há uma
pluralidade de valores. Porém, a boa “escolha” não é suficiente; deve-se saber apresentá-
los. É na maneira de apresentar os valores que estes adquirem sentido no espaço político
(CHARAUDEAU, 2006, p. 97), satisfazendo às condições de simplicidade e argumentação.
Charaudeau discute especificamente a noção de ethos que, redefinida pela AD,
inscreve-se no ato de enunciação, no próprio dizer. Segundo Maingueneau (apud
CHARAUDEAU, 2006, p. 114-5), o ethos está ligado ao exercício da palavra, ao papel a
que corresponde seu discurso, e não ao indivíduo ‘real’, apreendido independentemente de
sua atividade oratória. Assim, duas identidades são envolvidas na criação de um ethos: a
psicológica e social e a discursiva. A primeira é atribuída ao sujeito; a segunda ele constrói
para si. Desta forma, o sentido das palavras depende daquilo que o sujeito é e daquilo que
diz.
As figuras identitárias do discurso político se reagrupam em duas grandes categorias
de ethos: a de credibilidade e a de identificação. A primeira liga-se ao discurso da razão. A
segunda ao do afeto. Para ser julgado digno de crédito, o sujeito falante precisa construir
uma identidade discursiva, já que a credibilidade não é uma qualidade ligada à sua
identidade social. Fundamental no discurso político, a credibilidade deve satisfazer três
condições: sinceridade, performance e eficácia. Para isso, o político procura construir para
si o ethos de sério, virtuoso e competente. Já a identificação se dá mediante um processo
irracional no qual o cidadão funda sua identidade na do político. Este, na tentativa de tocar
o maior número de cidadãos possível, tenta construir o ethos de potência, caráter,
inteligência, humanidade, chefe e solidariedade.
66
Outra estratégia que contribui para a construção da imagem dos atores políticos são
os procedimentos lingüísticos. Eles são numerosos e diversos, sendo capazes de construir
uma imagem positiva ou negativa do orador num mesmo instante. Charaudeau lembra que
tais procedimentos diferem das técnicas de persuasão empregadas no marketing político e
que não se trata de fazer uma lista dos mesmos nem de descrever uma retórica do discurso
político, colocando, dessa forma, em evidência, alguns dos modos de produzir efeitos de
ethos. Reagrupa-os em expressivos e enunciativos. Os primeiros caracterizam a enunciação
da palavra em sua forma oral. A vocalidade (característica da maneira de falar de um
locutor) dos políticos é apresentada pelo autor a partir de quatro subcategorias: o bem falar,
o falar forte, o falar tranqüilo e o falar regional. Já os enunciativos
permitem àquele que fala colocar-se em cena (‘enunciação elocutiva’), implicar seu interlocutor no mesmo ato de linguagem (enunciação ‘alocutiva’), [ou] apresentar o que é dito como se ninguém estivesse implicado (enunciação ‘delocutiva’). (CHARAUDEAU, 2006, p. 174).
O discurso político refere-se à organização da vida em sociedade e ao governo da
coisa pública. Sua tarefa é determinar o ideal dos fins como busca universal das
sociedades, pretendendo ser um discurso de verdade. Em virtude disso, Charaudeau toca na
questão dos imaginários de verdade do discurso político. Ele esclarece que o imaginário
não é o que se opõe à realidade, mas uma imagem da realidade, uma imagem que interpreta
a realidade fazendo-a entrar em universo de significações. Os imaginários são, então,
produzidos a partir da atividade de percepção que o homem faz da realidade conferindo
sentido a esta. Para o autor, todo imaginário é um imaginário de verdade que essencializa a
percepção do mundo em um saber absoluto (CHARAUDEAU, 2006, p. 205). Ao serem
materializados por enunciados linguageiros de configuração diversa e circularem no interior
de um grupo social, instituindo-se em normas de referências por seus membros, são
denominados imaginários sociodiscursivos, os quais circulam em um espaço de
interdiscursividade.
O discurso político precisa produzir um efeito de verdade. Este, por sua vez,
depende dos imaginários estruturados por cada grupo social, das representações
construídas. Assim, Charaudeau discute os imaginários mais recorrentes e propícios a
alimentar a dramaturgia política: o da tradição, o da modernidade e o da soberania
67
popular. O primeiro se sustenta por discursos referentes a um passado no qual os indivíduos
teriam conhecido um estado de pureza. O segundo é portador de uma crença na existência
do progresso necessário à realização do bem-estar do homem e das sociedades
(CHARAUDEAU, 2006, p. 217). Já o terceiro se sustenta por discursos que se referem a
um mundo atual ou em construção, onde o povo reina como responsável por seu bem-estar.
(...) É o mito da democracia (CHARAUDEAU, 2006, p. 227).
No último capítulo, Charaudeau atenta para as transformações produzidas nos
imaginários de verdade em função das mídias e dos discursos dos próprios políticos,
ocasionando uma mudança da consciência cidadã. Por isso, ele acredita que analisar o
discurso político é também se interessar pelo que é fabricado pela opinião pública, já que o
que ela fabrica condiciona o sentido dos discursos que circulam em uma sociedade, em
dada época.
Temos, segundo o autor, três tipos de opinião, visto que a instância cidadã se divide,
de um lado, em civil e, de outro, em cidadã e de grupos de militância. Tais categorias
definem-se de acordo com os tipos de imaginários que as estruturam. Assim, a opinião
correspondente à sociedade civil funda-se em imaginários societários; à cidadã em
imaginários políticos; e aos grupos de militantes em dois imaginários – o político e o de
protesto. Para Charaudeau, estes imaginários passaram por deslocamentos, ocasionando a
degenerescência do discurso político, associando-se esta, freqüentemente, ao aumento do
populismo.
Com a instância civil dois deslocamentos são apontados pelo autor. O primeiro
aponta o imaginário da produção sendo substituído pelo do consumo, no qual o indivíduo
vive a ilusão de ser livre (e não mais “explorado”) para dar-se o direito de apropriar-se dos
bens apresentados ou sonhar tê-los caso sejam muito caros, tomando sempre como
referência a classe dos possuidores. O segundo refere-se ao imaginário do trabalho, que, de
fatalidade, passa a ser concebido como escolha. Com a melhoria da formação dos
indivíduos e a relativa mistura de classes sociais, tais indivíduos têm a ilusão de que podem
escolher sua profissão. A direção das empresas não se encontra mais nas mãos de grandes
famílias (tornando a organização da vida empresarial mais anônima), mas de grupos
financeiros que exigem resultados imediatos. O trabalho deixou também de ser marcado
pelo sofrimento, o que leva os indivíduos a mudarem de emprego caso estes sejam penosos,
68
difundindo-se a idéia de que o trabalho físico e árduo é mais mal remunerado que o
trabalho de organização, de conselho e de controle.
O fim das massas foi a principal mudança que se deu com a instância cidadã. Com a
melhoria no nível de vida, o desenvolvimento da educação e a expansão do saber, tornou-se
mais esclarecida e complexa a consciência cidadã. Com os avanços da Internet,
organizando as informações em rede, e a televisão, dedicando-se à lavagem cerebral acerca
da moda e do politicamente correto, os indivíduos caminham para uma perda da identidade,
o que os leva a agir cada vez menos. A noção de solidariedade deslocou-se para uma
fraternidade humanitária e vê-se o crescimento do individualismo e de uma geração de
jovens apolíticos. Surgem idéias e valores como a concorrência econômica, o mérito
pessoal no trabalho e a excelência na formação, celebrando, dessa forma, o indivíduo.
Pode-se, então, afirmar que a consciência cidadã passou a ter uma identidade mais
individualista.
Os grupos militantes são um subconjunto da instância cidadã, também se
preocupando com a “coisa política”, porém com o diferencial de se engajarem na ação.
Com eles não foi diferente. Houve uma mudança tanto em seu comportamento quanto no
discurso. Os objetos reivindicados são outros, já que as causas se deslocaram de nacionais
para societárias. Transformou-se também o modo de organização da vida militante,
construindo-se agora de forma espontânea, de acordo com as situações de crise, não se
ligando necessariamente a um partido ou sindicato. Essa nova ação militante organiza
manifestações espetaculares utilizando/ instrumentalizando as mídias de informação para
divulgá-las. (...) a militância não mais se contentaria em crer que ‘dizer é fazer’ e teria
necessidade de crer em um ‘fazer é dizer’ (CHARAUDEAU, 2006, p. 277).
Assiste-se a uma transformação da vida em sociedade. A relação de confiança
democrática entre o povo e as elites dá espaço a uma relação de desconfiança e descrédito
para com a classe política. Tal descrédito deve-se, em grande parte, ao papel das mídias na
sociedade, que de uma lógica da informação passam a obedecer a uma lógica de mercado,
exigente de resultados quantitativos. Para isso, tentam atrair a atenção do público,
apresentando as informações de forma espetacularizada em cenas dramatizadoras.
O político é assim conduzido implacavelmente a fazer o triplo papel de ator, de personagem e de pessoa: como ator, mostra sua imagem, na
69
verdade, seu carisma; como personagem, desempenha plenamente seu papel de político no exercício de suas funções; como pessoa – discretamente destilada –, mostra que não é menos humano, que tem sentimentos como os demais (CHARAUDEAU, 2006, p. 287).
Três problemas são apresentados ao político – relacionados à influência da mídia –,
os quais repercutem nas estratégias de comunicação dele:
a) o primeiro refere-se à projeção que a mídia (principalmente a televisiva) faz, mudando as
condições de visibilidade ao construir seu próprio alvo (um público fluido e heterogêneo),
um alvo que, para o político, torna-se inapreensível, com imaginários de expectativa que
são objeto de hipóteses muito gerais. E, ainda, escolhendo para aparecer na cena midiática
apenas os políticos eloqüentes e que já gozam de certa notoriedade;
b) um segundo problema para o político é o tratamento dramatizador dado à informação,
privilegiando os efeitos da emoção, dificultando, dessa forma, a exposição racional dos
projetos políticos;
c) finalmente, há a tendência da mídia em investigar e acusar precipitadamente os políticos,
como se eles tivessem agido de forma intencional e fossem os verdadeiros responsáveis por
certos escândalos. O discurso midiático deixou de constatar, informar ou testemunhar, para
denunciar, predominando o afetivo sobre o ideológico.
Os discursos dos partidos políticos mudaram. Tanto o discurso de esquerda quanto o
de direita sofreram modificações. O primeiro é marcado, hoje, pelo fim da utopia e
ausência de referências a uma sociedade igualitária, o que conduz ao desencantamento dos
setores militantes. Passou de um imaginário quente da vontade revolucionária a um
imaginário frio da submissão à gestão parcimoniosa das restrições econômicas. No
discurso de direita apareceram temas que antes não eram freqüentes, como o “peso das
administrações extragovernamentais”, que tentam impor regras de mercado idênticas a
todos os países, acarretando uma certa impotência aos governantes, e também o tema da
“redução das desigualdades sociais”.
Uma tendência atual entre os partidos clássicos de direita ou esquerda é fazer
desaparecer em seus discursos a instância adversária – o inimigo – tentando fazer pairar um
imaginário do razoável, porém ficam sem marcas identitárias, sem um elo, uma razão para
agir. Já os partidos extremistas colocam-na em evidência por meio de discursos populistas.
70
Para eles, a denúncia à instância adversária – caracterizada como a fonte dos males sociais
– é, talvez, a única forma de chegar ao poder.
Charaudeau conclui que atualmente a prática política tem “sobrepujado” o conceito
político. Este, lugar dos valores simbólicos, está sendo dominado por aquela, lugar de
exercício do poder, da governança. Não é mais o conteúdo das idéias que é dado a
entender, mas sua encenação. A opinião, agora, baseia-se mais nas imagens e no afeto do
que na razão e nos valores. Desaparecem os antagonismos. O discurso radical de outrora se
modernizou, apresentando-se de forma menos radical, tentando reunir-se em torno de uma
opinião média de compromisso23. Coexistem, pois, dois discursos (que não são novos),
conduzindo a uma identidade complexa: um, que defende os valores soberanistas, pregando
o reagrupamento das entidades sociais e a aplicação de um mesmo modelo a todas; e outro,
em favor de valores particularizantes, pregando separações. A identidade encontra-se, dessa
forma, perpassada por correntes contrárias: recusa da globalização e defesa dos pequenos
grupos, mas que procura, ao mesmo tempo, uma fusão anônima com grandes
ajuntamentos. Somada a essa recomposição identitária tem-se a dessacralização dos ideais
junto a uma instância cidadã cada vez mais crítica.
Para o autor, a recomposição identitária e a dessacralização não indicam uma
degenerescência do discurso político. Mais do que isso: coloca-se uma nova ética na
política – a questão da relação entre o conceito político como fundamento dos ideais e a
política como prática de ajustamento a eles. Articular as práticas e os ideais políticos pode
fundar uma nova relação de legitimidade entre a instância política e uma instância cidadã
tornada múltipla. Segundo Charaudeau (2006, p. 319), esta seria a nova utopia
democrática: inventar um discurso que dissesse que a democracia será sempre
esquartejada entre uma utopia igualitária, que se abre ao outro, e uma soberania
comunitária, que de uma maneira ou outra se fecha sobre si. Propõe, então, que se construa
uma consciência política visando impedir que caiamos na tentação do elitismo ou do
populismo, que se “invente” um discurso e estruturas políticas os quais suscitem a
emergência de uma ética da participação instaurando um imaginário de confiança: à
instância política cabe o papel de dizer e agir; à cidadã, o de saber e vigiar.
23 Talvez isso explicasse as críticas que recebe o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acerca da diferença entre seu discurso de campanha referente às eleições de 1990, que era radical, e o de 2002, mais “tranqüilo”.
71
2.2 – Em Courtine
Jean-Jacques Courtine, professor de Antropologia Cultural na Universidade de Paris
III – Sourbone Nouvelle, é uma referência incontestável na história da AD. Participou da
fundação da disciplina, colaborando com Michel Pêcheux e, mais tarde, a partir dos anos
80, apontou a necessidade de deslocamentos, a partir de seu trabalho sobre o discurso
comunista endereçado aos cristãos. Em “Metamorfoses do discurso político: derivas da
fala pública”, mostra as transformações pelas quais passou o discurso político e, em
conseqüência, sua análise.
Na primeira parte da obra, ele aborda a história da AD e suas transformações,
tentando mostrar o que está ausente nas análises históricas do aparecimento da AD. Toma
como ponto de partida a tese de que a AD é uma prática da leitura dos textos políticos –
uma política da leitura.
O aparecimento do projeto da AD como disciplina deu-se “pós-maio de 1968”,
momento em que a luta de classe reinava na teoria, no qual a leitura dos textos funcionava
como um jogo teórico e político. A teoria pretendia ensinar o povo a ler sua opressão nos
próprios textos – refletir sobre o discurso político e ensinar ao cidadão. A AD teve como
efeito produzir um modo de leitura dos discursos por meio de um conjunto de dispositivos
que se aparenta [a] uma ‘domesticação do olhar’ sobre os textos (COURTINE, 2006a, p.
20). Uma “revolução discursiva” resume o que foi maio de 68, explicando claramente a
predominância das análises do discurso político de esquerda.
A política, porém, ia se distanciando dos intelectuais, modificando-se
consideravelmente. Alguns dos fatores que ocasionaram a mudança na conjuntura política
são, então, apontados por Courtine: a despolitização do corpo social, a desideologização de
certos partidos políticos em nome da modernização, o declínio do militantismo e da
sindicalização, o silêncio dos intelectuais e a renovação do individualismo. Como
conseqüência, uma grande transformação na representação do político.
O discurso comunista francês não convencia mais, mesmo permanecendo idêntico,
com as mesmas palavras... A classe operária não respondia mais. Os novos modos de
consumo, lazer e vida passavam a favorecer as reivindicações individualistas. Com um
milhão de indivíduos a menos – de 1975 a 1985 – a desindustrialização desagregava a
identidade operária comunista. A classe operária deixou de existir...
72
Esses acontecimentos afetaram o projeto inicial da AD, que a partir da metade dos
anos 80 trabalhou numa paisagem teórica em ruínas. O número 81 da revista Langages
representa bem isso, já que à espera de trabalhos que articulassem a história e a língua, a
balança pendeu mais para o lado da língua. Num trabalho consagrado ao discurso político
soviético, por exemplo, abandonou-se praticamente a perspectiva histórica, no qual o
estudo das nominalizações não foi relacionado às condições de produção dos discursos24.
Assim, um período de instabilidade passou a governar a AD: havia o exame de
corpora doutrinais, mas também de práticas linguageiras dispersas e heterogêneas;
analisavam-se textos escritos, mas também as práticas orais; a preferência pela
intertextualidade em processos verticais passou a dividir o espaço com a análise sobre o fio
do discurso em sua horizontalidade; e, finalmente, a investigação das centralidades
discursivas dava lugar à apreensão das margens do discurso. Courtine via nesses
deslocamentos aspectos extremamente positivos à compreensão das materialidades
discursivas, porém, na maioria dos trabalhos, o aspecto lingüístico estava recobrindo as
considerações históricas.
A análise do discurso se encontra, assim, numa situação paradoxal. Se, antes, ela defendia a legitimidade de uma consideração dos funcionamentos discursivos, no momento em que a lingüística se voltava exclusivamente para a análise do sistema da língua ou das regras sintáticas da competência, desde os anos 80, ela se viu praticamente despojada de seu objeto pela adoção, bastante comum na lingüística desse período, do termo “discurso” e pela multiplicação das problemáticas que tomavam o discurso como objeto empírico (COURTINE, 2006a, p. 46).
Courtine acredita que essa instabilidade na AD estava inscrita desde sua origem
devido às seguintes tensões: quis cumprir uma função política e crítica, mas também
científica e “positiva”; quis sustentar a teoria entre uma leitura marxista do discurso e
engajada dos textos, e uma análise “automática” do discurso; uma análise por meio de uma
“máquina de leitura” a partir do mecanismo de reconhecimento de frases, da qual se
esperava uma leitura (informaticamente) dessubjetivada. Chegou, pois, o momento em que
a situação se tornou insustentável em virtude dos acontecimentos políticos e das
transformações ideológicas. Foi, então, desabando o projeto de uma teoria do discurso. 24 Courtine refere-se ao trabalho Langue russe et discours politique soviétique: analyse des nominalisations, de P. Sériot.
73
Reduziu-se o histórico ao político, o político ao ideológico, o ideológico ao discursivo, o
discursivo ao sintático...
Os resultados de leitura da AD eram expostos em forma de listas e tabelas, os quais
levaram o autor a afirmar que a AD é um modo de leitura que substitui uma escrita por
outra, superpondo uma escrita sobre outra (COURTINE, 2006a, p. 24), realizando, dessa
forma, uma conversão técnica do olhar sobre os textos. Para Courtine, é um problema, pois
desconsidera a heterogeneidade constitutiva dos discursos, rejeitando as zonas de
instabilidade, de dispersão e contradição que surgem numa leitura.
O autor ressalta, porém, que o projeto da AD não estava ultrapassado. Precisava, por
sua vez, ser repensado, podendo vir a administrar a análise das representações compostas
por discursos, imagens e práticas. Ele mostrou que, apesar das transformações históricas,
era possível continuar fazendo AD, porém o projeto exigia mudanças em seus dispositivos
teórico e analítico. Entre elas, aponta três:
a) deslocar o privilégio que a análise distribucional dava às representações em domínio
vertical que constituíam listas e tabelas, recentralizando trabalho de descrição sobre o fio
do discurso e analisando a linearidade da cadeia a partir de uma pluralidade de
funcionamentos;
b) ao tratar de corpora de arquivos doutrinários, fixar-se na referência da emergência da
heterogeneidade e da alteridade na repetição do mesmo, interrogando outros enunciados,
além dos políticos;
c) interrogar as maneiras de ler, tratando o lugar do sujeito-leitor como um problema, já que
o leitor dos textos políticos não é o receptáculo passivo de um sentido já constituído no
discurso, ou um político não adaptado à espera de uma pedagogia de suporte.
Para Courtine (2006a, p. 57),
analisar discursos não pode mais se limitar a caracterizar um texto em diferentes níveis de funcionamento lingüístico. Mas, pensar e descrever a maneira como se entrecruzam regimes de práticas e séries de enunciados.
Na segunda parte do livro, Courtine aborda o discurso político frente à renovação
exigida. Ele indica operações que um trabalho de AD realiza e objetos que manipula.
74
Discute exemplos e mostra como essas operações e objetos permitem entender o enunciado
político.
Inicialmente, aponta as bases de uma AD, independentemente das variações
metodológicas:
concretiza-se o fechamento de um espaço discursivo; aplica-se um procedimento lingüístico a um texto para determinar suas relações inerentes; e estabelece-se uma relação no discurso entre os elementos lingüísticos e aquilo que é exterior à linguagem (COURTINE, 2006a, p. 63-4).
E, tratando-se do discurso político há ainda que se especificar seu sujeito. Assim, são três as
noções cruciais que permitem compreender o processo discursivo: o corpus, o enunciado e
o sujeito.
A operação de extração do corpus discursivo25 é recoberta pela noção de condições
de produção, funcionando esta como um filtro que torna o corpus exaustivo e homogêneo.
Muitos corpora representarão uma situação histórica definida, porém nunca deixarão de
fazer parte de um corpus de doutrina, o qual se apóia numa tradição discursiva. Definir,
pois, sincronicamente as condições de produção de discurso político pode ser um problema,
segundo o autor, visto que apaga o fato de que o discurso sempre esteve lá. A tendência a
uma homogeneização das condições de produção do discurso leva o discurso recortado a
não se contradizer consigo próprio mas com uma exterioridade discursiva. A proposta do
autor é, então, que todo discurso político [deva] ser pensado como uma unidade dividida,
dentro de uma heterogeneidade em relação a si mesmo (COURTINE, 2006a, p. 67).
Às definições clássicas das condições de produção dos discursos políticos, que
restauram a identidade lingüística e a homogeneidade dos discursos, Pêcheux propôs o
estudo das formações ideológicas, as quais permitem uma ou mais formações discursivas
inter-relacionadas, determinando o que pode e deve ser dito, baseado em uma posição
dada em uma conjuntura (PÊCHEUX & FUCHS apud COURTINE, 2006a, p. 68).
Pêcheux pôde mostrar que todo discurso concreto produzido por um sujeito numa formação
discursiva específica é dominado e dependente de um interdiscurso que é fornecido pelos
25 Corpus discursivo: “um conjunto de seqüências discursivas estruturadas, de acordo com um plano definido em referência a um certo estado de condições de produção de discurso” (COURTINE, 2006a, p. 66).
75
elementos pré-construídos. Dessa forma, o que se enuncia é exterior ao sujeito falante, o
que permite pensar a subjetivação deste em relação ao sujeito ideológico de seu discurso.
Porém, Courtine aponta que a prática de constituição do corpus na AD continuou
assegurando as homogeneizações. É, pois, em Foucault (apud COURTINE, 2006a, p. 70)
que se encontra uma concepção de discurso (e também o projeto de uma análise do discurso
político) baseada na análise de formações discursivas. Para ele,
um enunciado dado ocupará um lugar entre um conjunto de formulações extraídas de seqüências discursivas, que dependem das condições de produção do discurso, algumas das quais serão heterogêneas.
Assim, ao constituir um corpus, deve-se inscrever um enunciado em um conjunto de
formulações baseando-se numa pluralidade de pontos,
constituindo ao seu redor uma seqüência discursiva que foi considerada um ponto de referência, uma rede de formulações extraídas de seqüências discursivas cujas condições de produção são ao mesmo tempo homogêneas e heterogêneas em relação à seqüência discursiva de referência (COURTINE, 2006a, p. 70).
Em seguida, Courtine discute a noção de enunciado político, cuja maior forma de
aparecimento é a de enunciado dividido26. Este pode ser construído por agrupar enunciados
num corpus discursivo no qual os antagonismos ideológicos são representados mostrando
como as contradições unem e dividem, ao mesmo tempo, os discursos políticos. Ele
governa o funcionamento polêmico do discurso político, representando este os efeitos da
luta ideológica no interior do funcionamento da linguagem.
Finalmente, Courtine aborda a noção de sujeito político, o qual se encontra
assujeitado às condições de produção e recepção de seu enunciado.
Ele é o ponto de condensação entre linguagem e ideologia, o lugar onde os sistemas de conhecimento político se articulam na competência lingüística, diferenciando-se um do outro, mesclando-se um ao outro, combinado com
26 Um enunciado dividido constrói-se a partir do modelo P{X/Y}, onde Px e Py “representam duas formulações que pertencem a discursos antagônicos, apresentando um contexto (P) comum e dois elementos (...) que não podem ser substituídas uma pela outra, visto que esta incomutabilidade é marcada pela barra que separa X e Y” (COURTINE, 2006a, p. 74).
76
um outro ou afrontando-o em uma determinada conjuntura política (COURTINE, 2006a, p. 64).
Ao enunciar um discurso político, o sujeito encontra-se sob uma liberdade
controlada – regras lingüísticas presentes nos enunciados funcionam, na verdade, como
regras do discurso, impondo-se, dessa forma, ao sujeito falante, uma ordem do discurso. Ao
tornar-se sujeito do discurso, ele deve ocupar um conjunto de posições do sujeito
enunciador (modos de enunciação), e não fazer escolhas que melhor o agradem.
Fato interessante apontado pelo autor é que, no modo de enunciação do discurso
político, memória e esquecimento não podem ser dissociados. O mesmo interdiscurso que
organiza a recorrência de formulações, também intervém como uma ruptura ou
deslocamento, produzindo o esquecimento dos enunciados. Um exemplo é a repetição de
um fragmento de uma formulação ligada a uma lacuna27.
Courtine aponta a necessidade de elaborar uma pragmática e não gramáticas do
enunciado político. A análise deveria se dirigir tanto aos discursos escritos quanto aos orais;
tanto à produção quanto à recepção dos discursos; e os escritos doutrinários deveriam dar
lugar à linguagem comum, isso porque o próprio discurso político se transformou. Uma das
transformações mais claras é o descrédito (que também favorece a rejeição) por certas
formas do discurso público. A língua de madeira, caracterizada por formas longas, fixas e
redundantes, passou a ser criticada de forma generalizada, desenvolvendo-se em seu lugar
uma política do discurso baseada em formas curtas, de fórmulas e diálogos, marcada pelo
imediatismo e individualismo. Os grandes discursos políticos parecem estar ameaçados
pelo desaparecimento (COURTINE, 2006a, p. 84). As línguas de madeira parecem dar
lugar às línguas de vento. Procura-se seduzir e conquistar com o apoio do aparato áudio-
visual de informação, não podendo mais dissociar a imagem do discurso do homem
político, tampouco a recepção à produção dos discursos, já que se assiste mais televisão do
que se lêem livros ou jornais.
A mensagem lingüística não é mais unicamente lingüística, mas uma colagem de imagens e uma performatividade do discurso, que deixou de ser prioritariamente verbal. (...) de agora em diante é insuficiente se referir somente a métodos de análise lingüística. A mutação dos modos de
27 Uma discussão maior é feita em Courtine (1999).
77
comunicação política exige a renovação de uma semiologia da mensagem política que permitirá a sua apreensão global (COURTINE, 2006a, p. 85).
A terceira e última parte do livro ora comentado volta sua atenção às diferenças
entre as discursividades na França e nos Estados Unidos da América. No território
americano, Courtine re-territorializa conceitos e métodos da AD analisando as mutações
das discursividades políticas. Inicialmente, tenta responder se Foucault pode ser
considerado um pós-estruturalista já que este declarou, numa entrevista, nunca ter sido um
estruturalista. Antes de responder, porém, esclarece que o termo “pós-estruturalista” é
inusitado na França, servindo (quando empregado) para mencionar a sua origem americana.
Na França não se sentiu a necessidade de se agrupar sob uma palavra o momento teórico
que sucedeu o estruturalismo (COURTINE, 2006a, p. 117). Fala, então, em dois períodos
na obra de Foucault: um “estruturalista” e outro “pós-estruturalista”. O “pós-
estruturalismo” de Foucault descreveria, pois, não as condições teóricas de produção de seu
pensamento, mas os efeitos práticos de sua leitura na América.
Em seguida, aborda a trama do sexo e da política na mídia americana, mostrando o
lugar que a vida privada ocupa na esfera pública. Segundo o autor, fatores psicológicos,
questões de personalidade e comportamento domésticos importam mais aos americanos, no
que se refere à vida pública, do que aos franceses. Para um político americano, por
exemplo, tudo pode ser fatal e perigoso. Destaca, ainda, as mutações das formas discursivas
da comunicação política – houve uma simplificação da linguagem na qual a retórica fora
substituída por um gênero simples, familiar e direto de conversação. Com a
espetacularização da política, a análise dos fatos deu lugar à análise das causas
psicológicas; a percepção das ações para a das intenções. Uma deriva recente é, dessa
forma, a procura por defeitos de personalidade e desvio de comportamento dos candidatos.
Com o declínio da imprensa escrita e o aumento do poder da televisão, as grandes
redes de TV e canais a cabo passaram a conviver com uma concorrência absurda, usando
como estratégia para garantir a audiência, anúncios espetaculares, entre eles os escândalos
políticos. A mídia é definida pelo autor como uma “máquina de escândalos”, a qual
favorece o empobrecimento dos debates dando importância aos fatos mais anedóticos; a
noção de informação perde sua referencialidade, a realidade política se enfraquece.
78
Assim, questões de caráter e os comportamentos privados ocupam o centro do debate
político nos Estados Unidos.
Finalmente, Courtine aponta a ligação que há entre o discurso sobre a língua nos
regimes totalitários e o politicamente correto nos Estados Unidos. Ele não acredita que o
politicamente correto americano evidencie o empreendimento geral de controle dos
discursos sob cores quase totalitárias, como se vê freqüentemente na França. Haveria sim
uma polícia das palavras, mas discreta e comum, que fora alcançada por meio da reescritura
dos manuais e dos testes escolares: a edição dos livros escolares é dominada por um
sistema de regras e normas discursivas que censura e reescreve todo uso lingüístico
considerado inapropriado. Tentou-se, dessa forma, a partir do final dos anos cinqüenta,
identificar-se e combater todo preconceito ou estereótipo julgado discriminatório em
relação às minorias étnicas. Assim, os manuais foram reescritos substituindo as palavras
impróprias por expressões autorizadas, politicamente corretas.28
Courtine acredita que uma das conseqüências do politicamente correto é uma
transformação do modelo de cidadania americana. O poder que se exerce não é total, mas
local, minucioso, regulamentar, usualmente anônimo. Na verdade, é um modo de controle
não só lingüístico mas direcionado ao comportamento de forma geral por meio da
proibição, da gestão moral:
O politicamente correto que pretende regulamentar o que é preciso dizer, não dizer, e como dizer em um campo discursivo determinado, é uma forma de controle lingüístico ao mesmo tempo restrito e disseminado em um espaço dos discursos, e continua da mesma maneira intermitente no tempo (COURTINE, 2006a, p. 156).
2.3 – A mentira na política
O tema da mentira sempre esteve associado à política. Um bom exemplo é o texto
atribuído a Jonathan Swift, “A arte da mentira política” (2006), publicado inicialmente em
1733, que corrobora a idéia de que a mentira política não é um fenômeno datado, mas
atemporal. Este texto trata da apresentação de uma assinatura de dois volumes, cujo autor
não é nomeado, os quais seriam lançados caso ele recebesse um bom número de
28 Um exemplo: “(...) queira não fazer nenhuma menção da existência dos dinossauros, pois os cristãos fundamentalistas que condenam a teoria da evolução poderiam se indispor e levá-lo à justiça” (COURTINE, 2006a, p. 154).
79
assinaturas. Porém, tais volumes nunca apareceram. Uma brochura atribuída a Swift,
oferecendo em assinatura um livro inexistente de autor anônimo: uma arte da mentira
política não poderia nascer sob melhores auspícios (COURTINE, 2006b, p. 16).
Swift faz uma sátira à arte de governar da tradição antiga, apresentando prescrições
de como os governantes deveriam agir para melhor enganar o povo, o que faz com que seu
texto seja considerado uma “gramática da mentira política”.
Swift estabelece as bases fisiológicas da mentira: a alma é da natureza de um
espelho, o qual possui um lado plano e um lado cilíndrico – o primeiro vem de Deus,
refletindo fielmente os objetos, e o segundo, do diabo, deformando-os. Então, se Satã é o
pai da mentira, esta está localizada no lado cilíndrico da alma.
Em seguida, ele define-a da seguinte forma: a arte de convencer o povo, a arte de
lhe fazer aumentar as falsidades úteis, (...) para alguma boa finalidade (SWIFT, 2006, p.
36). Uma arte que é necessária, pois se mente para o povo para seu próprio bem. Uma arte
sim, diferente da ação de dizer a verdade, que não necessita de arte alguma. Porém, ele
deixa claro que tal arte se refere a sua invenção já que é necessário mais arte para
convencer o povo de uma verdade útil que lhe fazer aumentar e receber uma falsidade útil
(SWIFT, 2006, p. 36).
Assim como bens materiais, o povo também não tem direito à verdade política,
considerada propriedade privada. Ao passo que a verdade está nas mãos de poucos, a
mentira é de todos. Uma abundância de mentira política é uma marca certa da liberdade.
Distingue, pois, três tipos de mentira: a de adição, que confere mais reputação a alguém do
que de fato tem; a de maldizer ou difamatória, que tira a reputação de alguém que a
adquiriu por direito; e a de translação, que transfere a boa ação ou o desmérito de um
homem para outro.
Distingue também a mentira que serve para espantar e aterrorizar e a que anima e
encoraja. Uma regra lançada para a primeira é que de tempos em tempos se aterrorize o
povo mas que o acalme por um ano. Assim, revela-se um futuro negro para convencê-lo de
contentar-se com um presente cinza. Quanto à segunda, deve ser variada; se contiver
promessas não seria prudente fixar as predicações rapidamente, pois quem as elaborou seria
exposto à vergonha e à confusão de se ver tão logo contradito. Deve-se fazer uso de uma
80
técnica sutil de dosagem, pois o exagero pode comprometer a verossimilhança. Assim, aos
partidos que tenham mentido mal, ele propõe uma cura original:
é preciso que o partido que queira restabelecer seu crédito e sua autoridade concorde em nada dizer em nada publicar durante três meses, nada que não seja verdadeiro e real; seria o melhor meio para adquirir o direito de debitar as mentiras dos seis meses seguintes (SWIFT, 2006, p. 46).
Swift fala também na constituição de uma sociedade de mentirosos, composta por
chefes de partidos, a quem devem ser confiados a conduta e o manejo da mentira. A
principal regra é inventar uma ou duas mentiras por dia, prestando-se sempre atenção ao
tempo e à estação em que se está, visto que mentiras para aterrorizar produzem grandes
efeitos em novembro e dezembro, mas não em maio e junho. É preciso que se tenha uma
pena ou uma multa imposta a qualquer um que fale de algo que não seja a mentira do dia
(SWIFT, 2006, p. 49). Deve-se, ainda, elaborar mentiras de teste, aquelas que são deixadas
de propósito para sondar a credulidade daqueles a quem se fala. Se acreditarem na primeira
vez, tudo o que vier em seguida também o será.
O autor se surpreende com a velocidade que as mentiras têm de se disseminarem. Já
a duração pode ser de todo tipo: horas, dias, anos e séculos. Quanto às características,
variam de país para país. De fato, reportando-nos um pouco à frente no tempo, Courtine
(2006a), que lecionou nos Estados Unidos entre as décadas de 1980 e 1990, pôde concluir
que a mentira toma proporções diferentes ao comparar os terrenos francês e americano. Ele
aponta que nos Estados Unidos, após o Watergate, ela se tornou politicamente mortal, a
ponto de se instaurar uma “política da confissão”. Já na França, a ciência de governar é
associada a uma certa arte da mentira (ou do segredo) no que se refere às questões pessoais.
Swift (2006, p. 54) conclui o texto afirmando que o meio mais limpo e mais eficaz
para destruir uma mentira é lhe por uma outra.
Para Charaudeau (2006, p. 105), no campo do discurso político, a mentira é um ato
de linguagem que obedece a três condições, as quais cabem ao enunciador: dizer o
contrário daquilo que sabe ou julga como indivíduo pensante; saber que o que diz é
contrário ao que pensa; e dar a seu interlocutor sinais de que o que enuncia é idêntico ao
que pensa. Assim, não há mentiroso em si, pois a mentira relaciona locutor e interlocutor.
Aquele considera o saber deste com o objetivo de proteger seu próprio saber.
81
Charaudeau lembra que ao pronunciar suas promessas, o político não tem noção real
dos meios de que disporá para cumpri-las, sendo impossível, inclusive, dizer tudo
exatamente como pensa ou percebe. Seu papel é, portanto, o de permanecer fidedigno. Ele
não tem de dizer a verdade, mas parecer dizer a verdade. Para isso, algumas estratégias são
apontadas:
a) estratégia da imprecisão: quando o político faz declarações, ao mesmo tempo, gerais,
sutis e ambíguas, para que não possam surpreendê-lo em erro ou recriminá-lo por ter
mentido;
b) estratégia do silêncio: quando o político simplesmente não faz declarações, mantendo a
ação em segredo, com o objetivo de evitar reações violentas que possam impedir a
implantação do que é julgado necessário para o bem da comunidade. Para os governantes, é
uma mentira necessária já que tem por finalidade servir ao bem comum;
c) estratégia da razão suprema: quando o político recorre à “razão de Estado”, justificando
sua mentira por se tratar de salvar o que constitui a identidade de um povo, indo de
encontro à opinião pública ou mesmo à vontade dos próprios cidadãos. Assim, cala-se o
que se sabe e o que se pensa e guarda-se um segredo em nome de uma razão superior;
d) estratégia da denegação: quando o político é responsável por negócios escusos em
investigação, mas nega seu envolvimento à justiça, ou o de um de seus colaboradores,
produzindo um falso testemunho.
Para Charaudeau, tais atitudes são condenáveis, vindo a afetar a relação de
confiança entre a instância cidadã e a política, de forma que não se justifique a mentira em
favor do poder pessoal. Esbarra-se, então, nas duas forças que animam a vida política: o
ideal dos fins e o uso dos meios para atingi-los.
Perversidade ou mentir verdadeiro (Aragon)? Efetivamente, entram aqui em colisão uma verdade das aparências, encenada pelo discurso, e uma verdade das ações, empregada pelas decisões.No discurso político, as duas misturam-se em uma ‘vero-semelhança’ sem a qual não haveria ação possível no espaço público. Está aqui, talvez, um dos fundamentos da palavra política (CHARAUDEAU, 2006, p. 109).
A arte de mentir politicamente vem de longa data, porém sua atualidade revela uma
grande estabilidade dos costumes políticos. A partir do século XIX, com o
desenvolvimento da imprensa escrita, ela passou da oralidade à escrita, entrando, no século
82
XX, na era da produção e do consumo de massa. A mentira hoje é eletrônica, instantânea,
global; o produto de uma organização racional e de uma estrita divisão do trabalho
(COURTINE, 2006b, p. 23). A mentira entrou, pois, para a nova era tecnológica. De
totalitária passou a ser democrática – é pluralista, efêmera, eclética, pós-moderna. Não
pretendendo ser exclusiva, ela co-existe com as da concorrência. Expandiu-se de tal forma
pela vida pública que já é difícil separar a verdade da mentira. Aproximamo-nos, talvez, do
estado ideal em que o discurso político estará finalmente livre do fantasma mesmo da
verdade, que às vezes o assombra ainda como um velho remorso (COURTINE, 2006b, p.
26). Baseados, dessa forma, no exposto, acreditamos que a mentira sempre foi e continuará
sendo constitutiva do discurso político.
Após realizar uma breve discussão acerca do discurso político na
contemporaneidade, faremos no capítulo posterior, no “entremisturar” descrição e
interpretação, uma análise de nosso objeto de estudo.
83
3. UMA LEITURA DISCURSIVA DOS SUFIXOS -EIRO E -ISMO NA POLÍTICA
BRASILEIRA: MARCAS DE HETEROGENEIDADE E DERRISÃO
É comum ouvirmos, diariamente, palavras novas serem criadas por políticos:
continuísmo, mensalão, quadrilheiro... Outras, por sua vez, serem ressignificadas: vampiro,
sanguessuga, furacão, navalha... O mais comum ainda é que tais escolhas lexicais ocorrem
com o objetivo de descaracterizar o discurso do oponente. Isso nos instigou, levando-nos a
estabelecer o seguinte recorte para este trabalho: observar o processo de formação de
palavras denominado sufixação, no discurso político, em sua modalidade escrita.
Como corpus empírico, selecionamos enunciados proferidos por políticos (em
gêneros e suportes diversos) entre os períodos de maio de 2005 a outubro de 2006 –
precisamente, do escândalo das denúncias do mensalão à reeleição do presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva. Neste período, os partidos de oposição tentavam
atacar os de situação29 por meio do discurso desqualificador – a mesma arma usada como
estratégia de defesa pela situação. Como apoio para seus “ataques verbais”, formavam e
ressignificavam as mais diversas palavras possíveis. Dessa forma, a ação política se
realizava pela linguagem, sendo tais palavras “hospedeiras” da ideologia dos partidos
políticos.
Segundo Charaudeau (2006, p. 16), todo ato de linguagem obedece a três princípios:
a) de alteridade: sem a existência do outro, não há consciência de si;
b) de influência: tentativa por parte do sujeito enunciador em trazer o outro para si, para
que esse outro pense, diga ou aja segundo a intenção daquele;
c) de regulação: princípio que gerencia a relação quando o outro tem seu próprio projeto de
influência.
A “palavra” do político – como todo ato de linguagem – pode ser considerada como
uma ação sobre o outro, porém, tal ação deve deixar de ser vista apenas como um fazer
fazer, um fazer dizer ou um fazer pensar e passar a se preocupar em ver a intenção seguida
de efeito, devendo ser colocada a questão de saber o que pode obrigar o outro a se submeter
à posição do sujeito que fala, o que, segundo Charaudeau (2006, p. 17), vem a ser a
29 Gostaríamos de esclarecer que optamos pela denominação “discurso de oposição/ situação” e não “discurso de direita/ esquerda” em virtude da atual situação política do país.
84
existência de uma ameaça ou a possibilidade de gratificação, conferindo ao sujeito que fala
alguma autoridade, já que ambas são consideradas como uma sanção. Assim, reconhecida
tal autoridade, coloca-se o sujeito-alvo numa posição de dominado e o sujeito de autoridade
na de dominante, instaurando entre os dois uma relação de poder: todo ato de linguagem
está ligado à ação mediante as relações de força que os sujeitos mantêm entre si, relações
de força que constroem simultaneamente o vínculo social (CHARAUDEAU, 2006, p. 17).
Ao enunciar, o sujeito político acredita ser o portador dessa autoridade, já que fora
eleito pelo povo, e se sente legitimado por isso. Como nosso corpus compreende o período
entre o escândalo do mensalão e a eleição presidencial, não nos surpreende encontrarmos
enunciados nos quais os políticos de oposição usem da autoridade legitimada para fazer
denúncias envolvendo o governo, tentando construir o ethos de “defensores” dos direitos da
população, “abrindo-lhe os olhos”, reservando à situação o papel de defender-se de tais
denúncias. Na verdade, ambos os partidos encontram-se em “relações de forças”, num jogo
de interesses por cargos políticos, realizando o que for conveniente para alcançarem o
objetivo principal: a oposição na tentativa de ocupar o poder; a situação tentando manter-se
nele.
Charaudeau (2006, p. 92-3) acredita que desqualificar seja um dos pólos
constitutivos do discurso político, ocorrendo por meio de diferentes procedimentos
discursivos: rejeição às idéias do adversário; manipulação da ironia; revelação de suas
contradições; projeção de sombras da manipulação da parte do adversário; e denúncia das
conseqüências nefastas, caso o eleitor escolha o adversário. É uma necessidade do sujeito
político rejeitar os valores do adversário, porém não deve utilizar uma argumentação muito
pesada, complexa ou sutil, visto que a massa pode não compreender. Assim, a
argumentação acaba se reduzindo ao ataque verbal, que questiona a probidade do
adversário, suas contradições, sua incapacidade de manter promessas, suas alianças
nefastas e sua dependência diante da ideologia de seu partido, que lhe retira toda
liberdade de fala e de ação. Dessa forma, a confrontação entre forças políticas antagônicas
assemelha-se a uma guerra em período eleitoral, exigindo dos concorrentes mais do que um
projeto interessante, mas também muita malícia.
Destacamos, nesse trabalho, uma estratégia discursiva empregada pelos políticos a
partir do formal na língua (a derivação sufixal), com o objetivo de ofender uns aos outros e
85
também se defender (de forma ofensiva). Formações novas e ressignificações de palavras
com os sufixos -eiro e -ismo chamaram nossa atenção, levando-nos a refletir sobre o
funcionamento discursivo desses sufixos, caracterizados em nosso trabalho como marcas de
heterogeneidade constitutiva do sentido, como desqualificadores do discurso do Outro.
Levando em consideração a homofonia dos sufixos, estabelecemos o seguinte
recorte para o sentido dos sufixos presentes nos enunciados selecionados:
Sufixos Sentido/ Função Ocorrências enunciativas
-eiro (a)¹ formador de substantivos que
denotam profissão, ofício, agente
mensaleiro, quadrilheiro
-eiro (a)² formador de substantivos com
idéia de intensidade, aumento
roubalheira, bandalheira
-eiro (a)³ formador de adjetivos eleitoreiro, politiqueiro
-ismo¹ formador de nomes que indicam
nomes de ação ou resultado de
ação
assistencialismo, continuísmo,
denuncismo, desenvolvimentismo,
golpismo, politicismo, voluntarismo
-ismo² formador de nomes que indicam
maneira de pensar; doutrina que
alguém segue; ideologia
clientelismo, esquerdismo, peleguismo,
petismo, populismo, juscelinismo,
alckimismo, helenismo, cristovismo,
stalinismo, lulismo
As formas lingüísticas supracitadas formaram-se a partir do acréscimo aos seus
radicais dos sufixos -eiro e -ismo. Segundo as gramáticas normativas, por apresentarem um
sentido geral, os sufixos emprestam tal sentido ao radical da palavra em questão para
fazerem surgir uma nova palavra. Porém, o processo não é tão simples como parece. A
escolha por tais sufixos não ocorre por mera coincidência. Seu uso traz à tona não só
valores gramaticais, mas também discursivos, revelando-se como uma estratégia para
“mascarar” os reais sentidos pretendidos, que, por sua vez, não são óbvios.
Se considerarmos apenas as contribuições normativas, a significação das palavras
assumirá uma conotação positiva. No entanto, considerando as condições nas quais os
enunciados foram produzidos e a formação discursiva na qual os sujeitos autores destes
enunciados se inscrevem, postulamos que as palavras passam a assumir uma conotação
86
negativa. Nossa proposta é, então, analisar tais ocorrências inscritas em seu contexto
discursivo e mostrar a significação que assumem quando lidas numa perspectiva discursiva,
mostrar, pois, que os sufixos são mais do que pregam as gramáticas normativas – são
também marcas de heterogeneidade e derrisão.
3.1 – A heterogeneidade
Para falar da heterogeneidade, faz-se necessário voltar ao ano de 1979, ao colóquio
“Materialidades discursivas”, o qual representou um novo ponto de partida para os estudos
do discurso; voltar, pois, ao início da fase do outro sobre o mesmo – fase em que o trabalho
com o intradiscurso passou a ser relacionado ao interdiscurso.
A presença de Jacqueline Authier em tal colóquio deu início à colaboração de uma
lingüista externa ao campo da análise do discurso, cuja responsabilidade foi a de apontar
elementos decisivos à problemática da heterogeneidade do discurso. O sentido e a
enunciação já eram por ela abordados por meio do discurso relatado, desde 1978,
evidenciando, assim, as rupturas enunciativas no fio do discurso, o discurso outro no
próprio discurso.
A lingüista Jacqueline Authier, eu já o sugeri, intervinha de maneira completamente diferente. “Palavras mantidas à distância”, através de uma fusão de exemplos finamente trabalhados, abordava a questão das aspas que, colocadas em uma palavra ou expressão, marca uma suspensão da tomada a cargo pelo enunciador. Esta questão tocava diretamente o surgimento do outro no discurso de um sujeito. Ela sustentava a problemática da heterogeneidade oferecendo um ponto de ancoragem para a análise (MALDIDIER, 2003, p.77).
Authier-Revuz (2004) classifica a heterogeneidade em dois tipos: a constitutiva e a
mostrada. A primeira ocorre quando o discurso é colocado em relação de alteridade, não se
mostrando no fio do discurso. A segunda, por sua vez, faz referência à presença do Outro,
podendo ser marcada (as glosas, as aspas, o discurso direto, o discurso indireto...) ou não-
marcada (a ironia, a imitação...).
A autora se ancora em dois pontos de vista exteriores à lingüística para fundamentar
a heterogeneidade constitutiva do discurso: o dialogismo do círculo de Bakhtin e a
psicanálise na interpretação lacaniana de Freud. Para o primeiro ponto de vista, a interação
87
com o discurso do outro constitui qualquer discurso. Para o segundo, o discurso se constitui
atravessado pelo discurso do Outro. Dessa forma, todo discurso se mostra
constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’”
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p.69). Trata-se da heterogeneidade da palavra e do
descentramento do sujeito.
A autora acredita que as formas da heterogeneidade mostrada manifestam diversos
tipos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva de seu discurso:
(...) a heterogeneidade mostrada não é um espelho, no discurso, da heterogeneidade constitutiva do discurso; ela também não é “independente”: ela corresponde a uma forma de negociação – necessária – do sujeito falante com essa heterogeneidade constitutiva – inelutável mas que lhe é necessário desconhecer; assim, a forma “normal” dessa negociação se assemelha ao mecanismo da denegação (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.71-2).
Para ela, fica evidente que a heterogeneidade mostrada pode ser considerada como
um modo de denegação no discurso da heterogeneidade constitutiva. Não há como escapar
da heterogeneidade da fala; suas marcas explícitas representam uma ameaça ao sujeito
falante, tendo este a ilusão de ser o dono do seu discurso. É como se aquilo que não
estivesse explícito, fosse seu, empenhando-se, portanto, em fortalecer o estatuto do um.
Fundamentados numa teoria discursiva, acreditamos que as palavras são formadas
objetivando provocar um efeito de sentido específico para a situação na qual são
empregadas. Não há sentidos gerais, mas efeitos de sentido únicos. Para corroborar nossa
afirmação, citamos Vendryes (apud AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 30):
Entre os diversos sentidos de uma palavra, só emerge à consciência aquele que é determinado pelo contexto. Todos os outros são abolidos, extintos, não existem (...) Na linguagem corrente, uma palavra tem um único sentido por vez.
Nosso trabalho dialoga, portanto, com a proposta de Jacqueline Authier-Revuz, já
que parte das formas da língua para mostrar as não-coincidências (ao invés das evidências)
que atravessam os dizeres. A autora aponta uma inevitável heterogeneidade teórica que
afeta a abordagem lingüística dos fatos enunciativos, impondo a explicitação dos exteriores
teóricos. Partir das formas da língua inscreve seu trabalho numa corrente enunciativa no
88
sentido estrito, neo-estruturalista. Authier-Revuz não ignora a questão da estrutura, dando
um lugar para o conhecimento de sua articulação com a linguagem.
Segundo a autora, o dizer é afetado por quatro campos de não-coincidência:
a) a não-coincidência interlocutiva;
b) a não-coincidência do discurso consigo mesmo;
c) a não-coincidência entre as palavras e as coisas;
d) a não-coincidência das palavras consigo mesmas.
Não se pode escapar a essas não-coincidências, sendo constitutivas do dizer. E é
nesse espaço que o sentido é produzido, espaço no qual as palavras não falam por si, mas
pelo Outro. Nesse mesmo espaço, o sentido pode desfazer-se, representando a fixidez do
sentido uno, porém, uma força de ligação e de coesão o protege, e esse sentido uno faz
‘obter’ uma fala, que faz com que obter uma fala seja, entre outros, fazer ‘ter junto’ o que
não faz outro sentido senão o de não ser um (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 26). É
justamente nessa tensão entre o um e o não um da enunciação que se tem a configuração
enunciativa complexa da reflexividade opacificante.
A modalidade autonímica aparece nesse jogo de um que ‘junta’ e de não-um que ‘esgarça’, como um modo da costura aparente30, que ressalta em um mesmo movimento a falha da não-coincidência enunciativa (contrariamente ao modo da superfície una), e sua sutura metaenunciativa (contrariamente ao modo da ruptura ‘bruta’ do lapso).
Authier-Revuz se fundamenta em Benveniste para abordar a dupla significância
como um privilégio da língua natural. Segundo esse autor, a distinção se faz em dois níveis:
o modo semiótico e o modo semântico. O primeiro inscreve-se no espaço finito do sistema
da língua, na ordem do estável; no processo de constituição da significação, seus elementos
(os signos) devem ser identificados. O segundo, por outro lado, engendrado pelo discurso,
introduz-se no domínio da língua em uso e em ação, e seus elementos (as palavras) devem,
no processo de constituição dos sentidos, ser compreendidos, interpretados.
(...) passar da consideração da língua (...) à consideração da fala, do discurso, é abandonar um domínio homogêneo, fechado, onde a descrição é da ordem do repetível, do ‘UM’, por um campo duplamente marcado pelo
30 Grifo da autora.
89
NÃO-UM, pela heterogeneidade teórica que o atravessa, a língua articulando-se ao sujeito e ‘ao mundo’, e pelo caráter não-repetível da compreensão que dele se pode ter, inevitavelmente afetada pela subjetividade e pela incompletude (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 166).
Quando Authier-Revuz se refere à escolha dos exteriores teóricos relativos à
questão do sujeito e de sua relação com a linguagem, aponta dois tipos de sujeito: o sujeito-
origem (o da psicologia e das suas variantes ‘neuronais’ ou sociais) e o sujeito-efeito
(aquele assujeitado ao inconsciente, da psicanálise, ou o das teorias do discurso que
postulam a determinação histórica em um sentido não individual). Se nos apoiarmos em um
sujeito fonte intencional do sentido (como o fazem as abordagens pragmático-
comunicacionais), é coerente considerar que o sentido é transparente e que o enunciador
está em condição de representar sua enunciação e o sentido produzido por ela. Se, por outro
lado, apoiarmo-nos em exteriores teóricos que destituem o sujeito do domínio de seu dizer
(como Pêcheux e Lacan o fizeram), este dizer não poderia ser transparente ao enunciador,
ao qual ele escapa, irrepresentável, em sua dupla determinação pelo inconsciente e pelo
interdiscurso.
Por tratar da enunciação, o trabalho de Authier-Revuz se situa na região do
esquecimento número dois: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra e, ao
longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre
podia ser outro (ORLANDI, 1999, p. 35). Produz-se, por meio deste esquecimento, a
impressão da realidade do pensamento (uma ilusão referencial), fazendo-se acreditar na
relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Assim, pensa-se que o que se
diz só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras, como se a relação entre palavra
e coisa fosse natural. Ainda segundo Orlandi, este esquecimento atesta que a sintaxe
significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos. Essa autora conclui que o
esquecimento enunciativo é semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos
a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos.
Ao final deste capítulo, continuaremos apontando as contribuições de Authier-
Revuz aos estudos do discurso. Porém, de forma específica, dialogando com a análise do
corpus e mostrando que os sufixos podem ser lidos como formas marcadas de
heterogeneidade no discurso, alterando sua aparente unicidade.
90
3.2 – A derrisão
Tropos zombeteiro é uma das mais antigas técnicas de oratória, que utiliza como
recurso enunciativo a desqualificação do oponente por meio da zombaria, suscitando o riso
num determinado auditório. Atualmente, foi reelaborado pelos teóricos do discurso, dando
origem ao conceito de derrisão. Associa o humor e a agressão, não se reduzindo ao riso. (...)
uma espécie de amabilidade verbal violenta que por produzir o riso foge de sanções
negativas da legislação e, principalmente da opinião pública (BARONAS, 2004, p.158).
Segundo Bonnafous (2003, p.35) a derrisão consiste na associação do humor e da
agressividade que a caracteriza e a distingue da pura injúria. É muito comum seu uso no
discurso político, visto que, ao se descaracterizar o discurso do oponente, obtém-se com
isso vantagens políticas. Ela acredita que a violência verbal está cada vez mais presente no
discurso político, nutrindo-o de zombarias, gracejos, trocadilhos, jogos de palavras... O
caso Dreyfus31 é um exemplo destacado, no qual houve uma entrega aos jogos discursivos
envolvendo a invenção verbal e a composição. (...) os digladiadores faziam-se as honras
por meio de sufixações pejorativas32, terminações eruditas e paródicas, truncamentos e
deformações.
Bonnafous faz uma análise do discurso de Jean-Marie Le Pen, político de extrema-
direita da França, e mostra que, num momento em que o discurso político encontrava-se
num contexto de normalização e moderação retórica, Le Pen escolhe a derrisão como
argumento de distinção. Vítima de um complô midiático, coloca-se como contestador
fazendo uso de críticas e agressões verbais visando desqualificar o Outro por meio do
ridículo. Denigre e ridiculariza os adversários; esquiva-se de ter que fundamentar seus
ataques; manipula o auditório e leitores pelo riso e admiração em função de suas proezas
verbais; e evita processos, ou os atenua, ao se abrigar na brincadeira.
As escolhas lexicais feitas pelos políticos, observadas na análise dos enunciados que
iremos apresentar, seguem essa linha: a da tentativa de, por meio de formas da língua,
desqualificar o discurso do oponente.
31 Escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante o final do século XIX. 32 Grifo nosso.
91
3.3 – O sufixo -eiro
O quadro seguinte mostra as ocorrências selecionadas para análise sob um ponto de
vista estritamente prescritivo, considerando o sufixo como um afixo agregador de sentido
geral ao sentido do radical, uma marca do sentido “uno”. Dessa forma, emprestando o
sentido geral do sufixo ao radical da palavra (como rezam nossas gramáticas normativas...),
a significação mais coerente para cada ocorrência seria:
Ocorrências Radical33 Sentido geral
do sufixo
Significação prescritiva
1. mensaleiro Mensal = relativo a um
mês; ou que se faz de mês
em mês.
Agentivo. Alguém que recebe uma
quantia mensal por
exercer um ofício
específico.
2. quadrilheiro Quadrilha = bando de
ladrões ou malfeitores.
Agentivo. Alguém que faz parte de
uma quadrilha; um ladrão.
3. roubalheira Roubo = ato de roubar. Intensidade;
aumento.
Roubo exagerado.
4. bandalheira Bandalho = indivíduo sem
dignidade nem brio.
Intensidade;
aumento.
Atitudes indignas,
próprias de bandalhos.
5. eleitoreiro Eleitor = aquele que elege
ou tem o direito de eleger.
Formador de
adjetivos.
Que se refere à eleição.
6. politiqueiro Política = arte e ciência de
bem governar, de cuidar
dos negócios públicos.
Formador de
adjetivos.
Que se refere à política.
3.3.1 – Formador de substantivos
3.3.1.1 – Denotando profissão, ofício, agente
33 A significação dos radicais foi consultada em FERREIRA (2000). Para dar tal significação, apresentamo-los, na segunda coluna, como palavras já flexionadas. Ex: citamos o significado de bandalho e não de bandalh-. Recorre-se ao mesmo procedimento com as palavras formadas a partir do sufixo -ismo (quadro exposto no item 3.4).
92
Com as denúncias do mensalão, ocorridas a partir de maio do ano de 2005,
formações novas e ressignificações de palavras com o sufixo –eiro agentivo passaram a ser
bastante utilizadas principalmente por partidos de oposição ao governo e pela mídia em
geral.
Um primeiro exemplo é a forma mensaleiro, que se refere aos políticos envolvidos
nos escândalos do mensalão, sendo a maior parte deles aliada ao partido do presidente da
República (PT), o que faz aumentar ainda mais o número de críticas:
“Assim como renunciar à ideologia deu certo para chegar ao poder, talvez a
renúncia à recuperação ética também dê certo – e os mensaleiros acabem de volta à
Brasília a bordo de mandatos renovados” (André Petry, Veja, 17/05/06).
“Sem que haja uma diferença entre bons e maus, a geléia geral predomina e
elegeremos de cambulhada um Congresso no qual os sanguessugas e mensaleiros
derrotados serão substituídos por outros prestes a reviver a mesma história”
(Fernando Henrique Cardoso, www.psdb.orb.br, 07/09/06).
O primeiro enunciado revela que o articulista critica tanto as atitudes individuais
dos mensaleiros – que renunciaram à ética – quanto as do Partido dos Trabalhadores – que
renunciou a sua ideologia. O partido que nasceu para reivindicar o direito dos trabalhadores
não é mais o mesmo. De acusador, passou a alvo de acusações. Ao afirmar que os
mensaleiros renunciaram à ideologia e à ética, André Petry acusa toda a base aliada ao
governo petista. E ainda é irônico: se a renúncia à ideologia deu certo, por que a renúncia à
recuperação ética também não daria?
Mas, o que deu certo? A que se refere o enunciador? Acreditamos que esteja se
referindo aos cargos políticos relacionados à presidência da República, pois, como é sabido
de todos, a imprensa atribui a conquista da presidência pelo PT, em 2002, à mudança na
condução da campanha comparada às tentativas anteriores – um “Lulinha paz e amor”, sem
radicalismos, que se alia a partidos de direita...34 Enfim, o partido perdeu a característica
34 Em seu projeto inicial, nas primeiras candidaturas, o PT declarava-se um partido de esquerda que não fazia alianças com partidos de direita. Porém, a partir das eleições de 2002, seu perfil foi modificando-se. Com os escândalos do mensalão, então, ficou mais difícil definir “esquerda” e “direita” na política brasileira.
93
inicial, mas “chegou lá”. Por isso, conclui que talvez a renúncia à recuperação ética os
mantenha em Brasília.
Fernando Henrique Cardoso, no segundo enunciado, também critica a perda da
ideologia inicial do PT, ao considerar todos iguais, ou seja, “farinha do mesmo saco” (Sem
que haja uma diferença entre bons e maus, a geléia geral predomina), já que os envolvidos
nos escândalos são oriundos de diversos partidos, revelando ainda um total descrédito para
com a política (os sanguessugas e mensaleiros derrotados serão substituídos por outros
prestes a reviver a mesma história).
Mensaleiro, que, segundo uma leitura prescritiva, denotava “aquele que exerce um
ofício específico e por isso recebe uma quantia mensal”, não pode assim ser lido, pois não
existe esse ofício legitimado. Na verdade, para que se receba essa quantia – o mensalão –
não há o exercício de um ofício, de uma atividade, mas escusos acordos políticos do tipo
“toma lá, dá cá”. Ao denominar os políticos da situação de mensaleiros, a oposição quer
que seus “acordos” sejam interpretados como uma atividade fixa, corriqueira, do dia-a-dia.
Ou seja, fazer acordos políticos visando ao benefício próprio está associado ao
“mensaleiro”, assim como o ato de fazer pães está para um padeiro.
Outro exemplo interessante é a forma quadrilheiro:
“Em qualquer país sério, José Dirceu teria problemas até mesmo para abrir uma
conta bancária – afinal, a quadrilha que ele chefiava roubou recursos públicos, fez
caixa dois, falsificou documentos e praticou evasão de divisas. No Credit Suisse
brasileiro, no entanto, o quadrilheiro-mor terá direito a tratamento vip” (Fábio
Portela,Veja, 10/05/06).
A crítica recai, dessa vez, sobre José Dirceu, uma das pessoas mais próximas a
assessorar o presidente Lula. Acusado de chefiar a “operação-mensalão”, é denominado por
Fábio Portela de quadrilheiro-mor. Podemos perceber que o efeito de sentido pretendido
não é simplesmente passar quadrilheiro como “alguém que faz parte de uma quadrilha”,
mas, assim como os mensaleiros, mostrar que um quadrilheiro também exerce funções
rotineiras: roubar recursos públicos; fazer caixa dois; falsificar documentos; praticar evasão
de divisas... Faz tudo isso sempre. E já que Dirceu foi ministro no governo Lula desde o
94
início do mandato, as funções de quadrilheiro não seriam tão recentes. Ao chamar José
Dirceu de quadrilheiro-mor, Fábio Portela “diz” não só que é um ladrão, mas também que
é o líder do bando. É como se chamasse o próprio governo Lula de quadrilha.
Como no exemplo anterior, o jornalista parte da crítica individual (na pessoa dos
mensaleiros), julgando, “de carona”, o governo Lula como um todo. E também o país, ao
despojar-lhe a seriedade. Portela acredita que diante dos escândalos envolvendo Dirceu,
este teria problemas até para abrir uma conta bancária, já que é o chefe de uma quadrilha
criminosa. Porém, na sede brasileira do Credit Suisse terá tratamento vip: estará entre os
clientes especiais do banco numa confraternização que objetiva manter os principais
correntistas atualizados e bem informados sobre o que se passa no Brasil. Segundo Portela,
isso só acontece pelo fato de o Brasil não ser um país sério, justamente por ser governado
por uma quadrilha.
Percebemos, então, que as formações mensaleiro e quadrilheiro surgem para dizer
mais do que o sentido uno. Vindas da oposição e de jornalistas contrários ao governo Lula,
são formas não-coincidentes de ofensa. A partir de seu emprego, pretende-se passar a idéia
de que os envolvidos nos escândalos o fazem como profissionais, que as atitudes por eles
tomadas são comuns no ofício que exercem.
3.3.1.2 – Significando intensidade, aumento
Antes de discutirmos as ocorrências roubalheira e bandalheira, gostaríamos de
apontar uma curiosidade que chamou nossa atenção: a formação da palavra mensalão.
Mensal denota, segundo o dicionário Aurélio, aquilo que se refere ou que dura um mês, ou
se faz de mês em mês, sugerindo o uso da forma “mensalidade” para as quantias recebidas
por alguém por exercer um ofício específico. Porém, ao invés de se empregar uma palavra
já existente na língua, optou-se pela nova forma para se referir às quantias recebidas pelos
políticos em troca dos acordos corruptíveis, justamente por denotar aumento, intensidade.
Mensalão denotaria, portanto, quantias exorbitantes – um efeito de sentido que não seria
alcançado com o emprego de “mensalidade”.
É o que acontece com roubalheira, nosso primeiro exemplo:
95
“Com o apoio de setores dos meios de comunicação, [a oposição conservadora]
dissemina, artificialmente, a imagem de um governo fracassado e conivente com a
roubalheira” (autor desconhecido, www.vermelho.org.br, 03/06/05).
O acréscimo de –eira ao radical permitiu denotar um roubo fora do comum,
escandaloso. A estratégia (inconsciente) do enunciador foi não só afirmar que o governo é
conivente com o roubo – um roubo comum – mas com a roubalheira – desvios excessivos
de dinheiro público. Deixa bem claro também que a disseminação da imagem de um
governo fracassado é de responsabilidade da mídia e da oposição, corroborando as
afirmações de Charaudeau (2006), que acredita na desqualificação como constitutiva do
discurso político.
Em bandalheira, acreditamos que haja não só a idéia de intensidade, mas ainda
uma certa espécie de coletivo. A formação deu-se a partir do acréscimo do sufixo –eira ao
radical bandalho, que, no dicionário Aurélio, denota indivíduo sem dignidade nem brio. O
mesmo dicionário define bandalheira como ação ou atitude própria de bandalho. No
entanto, podemos associá-la (de forma indireta) ao radical bandalha, que vem a ser, no
próprio Aurélio, manobra irregular no trânsito; ato de cobrar preço acima da tabela em
corrida de táxi; diz-se do motorista que pratica bandalha. No cenário político, poderíamos
ler bandalha, então, como os acordos escusos, os superfaturamentos de obras públicas e,
ainda, caracterizar com a própria palavra os políticos que praticam essas ações. Dessa
forma, bandalheira, para nós, seria “a grande onda de políticos sem dignidade ou brio que
aproveitam de seus cargos para se beneficiarem do dinheiro público por meio do
superfaturamento de obras e acordos escusos”.
Vejamos os dois exemplos selecionados:
“(...) não foi a elite neoliberal em parceria com a mídia conservadora que
aproveitou-se da fragilidade de um partido de inocentes idealistas. Foi a máquina
nada inocente dos apparatchiks de um partido outrora impoluto que recusou-se a
abrir mão das prodigiosas facilidades e resolveu eternizar a bandalheira” (Alberto
Dines, www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br, 25/07/05).
96
“Até agora, Garotinho chegou aonde está levantando a bandeira do populismo
evangélico, fundindo aí patacoadas de palanque com louvações de templo. Agora,
ao somar populismo evangélico com bandalheira política, é possível que o
eleitorado recue, mas isso também não é certo” (André Petry, Veja, 03/05/06).
No primeiro enunciado, o autor chama o PT de partido outrora impoluto possuidor
de uma máquina nada inocente para mostrar que até os membros desse partido são
“corrompíveis”, não deixando escapar as oportunidades que o controle do poder lhes
proporciona, fazendo eternizar a onda de ações indignas na política – bandalheira que não
surgiu no governo Lula, pois ao afirmar que o PT resolveu eternizar a bandalheira, fica
claro que ela já existia quando o partido chegou ao poder, cabendo ao Partido dos
Trabalhadores apenas eternizar, continuar agindo como os anteriores...
O segundo enunciado começa fazendo uma crítica a Anthony Garotinho por este
somar populismo evangélico com bandalheira política na tentativa de ser o candidato à
Presidência da República pelo PMDB: populismo evangélico devido a suas louvações de
templo, e bandalheira política por ter se envolvido com pessoas de conduta duvidosa. É o
que pode ser constatado num trecho referente ao mesmo texto no qual se insere o segundo
enunciado:
“Em sua campanha para virar candidato, Garotinho acaba de ser pilhado numa
bandalheira espantosamente disseminada. Andava alugando jatinho de bicheiro
preso em Cuiabá, recebendo dinheiro de empresa que pertenceu a um assaltante
enjaulado na penitenciária de Bangu, armando rede de financiadores gentilmente
abastecidos pelos cofres do governo comandado por sua mulher. Uma lama só”
(André Petry, Veja, 03/05/06).
Em seguida, critica os eleitores, ao afirmar que não é certo que recuem à
candidatura de Garotinho, visto que Lula tem 40% de preferência eleitoral, mesmo estando
envolto em escândalos. É como se acreditasse que o povo não se importa mais com a falta
de dignidade e honestidade na política. Não é à toa que o título do artigo é No reino da
bandalha.
97
Roubalheira e bandalheira surgem, assim, para intensificar o sentido de roubo e
bandalha (o). A enunciação destas palavras não provocaria o mesmo efeito de sentido que
aquelas, já que se referem a acontecimentos num país envolto por intermináveis escândalos
políticos, em grandes proporções.
3.3.2 – Formador de adjetivos
Examinaremos duas ocorrências que teriam por função gramatical caracterizar os
substantivos. São elas: eleitoreiro(a) e politiqueiro(a). Comecemos, pois, pela primeira.
Na revista Veja, de 03 de maio de 2006, Leandra Peres apresenta uma reportagem
de seis páginas, cujo título é A moeda eleitoral de Lula, referindo-se ao programa
assistencial Bolsa Família. No entanto, em alguns momentos, ao invés de caracterizar o
programa como eleitoral, o faz como eleitoreiro:
“Com o Bolsa Família, Lula ganhou sua arma nas urnas. Eleitoreiro ou não, é
inegável que o programa melhora a vida de milhões de brasileiros” (Leandra Peres,
Veja, 03/05/06).
“O Bolsa Família está longe de ser uma iniciativa meramente eleitoreira, destinada
unicamente a alavancar a popularidade do governante, mas é inequívoco que tem
enorme potencial eleitoral” (Leandra Peres, Veja, 03/05/06).
A estratégia seria para mostrar o efeito de imediatismo que o termo eleitoreiro
provoca. É como se eleitoral caracterizasse o que se refere a eleições de forma geral. Já
eleitoreiro referir-se-ia a tudo a que se recorre, em caráter imediatista, para vencer as
eleições. Na maioria das vezes, golpes baixos, mentiras, falsas promessas, propaganda
enganosa...
Segundo a autora, o Bolsa Família representa uma arma nas mãos de Lula. Porém,
ao contrário de outras estratégias, Leandra afirma que esta melhora a vida de milhões de
brasileiros estando longe de ser uma iniciativa meramente eleitoreira. Por outro lado, não
deixa de afirmar que tem um enorme potencial eleitoral.
O próximo enunciado vem corroborar o efeito de imediatismo provocado por
eleitoreiro(a):
98
“Não tenho visto a propaganda eleitoreira. (...) Mas desconfio que ainda
existam dois tipos de pessoas que assistem à propaganda eleitoreira: os viciados
em política e os viciados em TV. (...) Você não precisa ser expert em ciências e
marketing políticos ou em drogas para perceber o poder corrosivo da
propaganda eleitoreira. (...) Mas tudo indica que a propaganda eleitoreira está
influindo cada vez menos no processo político. (...) A propaganda eleitoreira
(...) é velha, enfadonha, mentirosa, irrita e faz mal. (...) E, olha só: a propaganda
eleitoreira é mentirosa em sua própria gênese, em seu útero, uma vez que não é
gratuita coisíssima nenhuma” (André Martins, www.adonline.com.br.,
21/08/06).
Fica clara a diferença entre eleitoral e eleitoreiro. André Martins refere-se à
propaganda a que a população é submetida pouco antes das eleições, caracterizando-a como
velha, enfadonha, mentirosa, irritante e malefícia, motivos que o levam a não assisti-la.
Atribui sua audiência apenas aos viciados por política ou por TV. Muitas vezes, os
candidatos são desconhecidos da população e, por isso, aderem a estratégias imediatistas,
eleitoreiras. No entanto, Martins acredita que esse tipo de propaganda influi cada vez
menos no processo político, pois muitas pessoas não a assistem mais. Considera-a uma
“droga”, sugerindo ao leitor que o que é eleitoreiro (ao contrário do que é eleitoral) é ruim.
O segundo adjetivo formado pelo sufixo em questão é politiqueiro(a):
“Para Lula, a medida era ‘politiqueira’ e ‘impossível’ de ser colocada em prática.
‘Este reajuste é tão politiqueiro que nem os aposentados reivindicaram’, disse ele”
(autor desconhecido, www.vejaonline.abril.com.br, 11/07/06).
Nota-se que, assim como eleitoreiro sugere algo ruim, politiqueiro também. Isso
fica claro quando Lula considera a medida em questão como politiqueira por ser
impossível de ser colocada em prática. Tal medida se refere a um reajuste de 16,67%
projetado pelo Congresso aos aposentados que, se concedido, provocaria um gasto extra de
7 bilhões de reais já no referido ano, quantia esta não disponível no orçamento. Trata-se de
uma estratégia “baixa”, por isso politiqueira, e não política. Uma medida política referir-se-
99
ia à arte do bem governar, já uma medida politiqueira estaria relacionada a uma forma de
política do tipo mesquinha, que visa aos próprios interesses e não aos da população, ou seja,
seria sinônimo de politicagem.
Vê-se, portanto, que os adjetivos formados a partir do sufixo -eiro(a), no contexto
político, desqualificam o objeto referido, sugerindo a idéia de algo ruim, assim como
também os substantivos formados por esse sufixo, assumindo uma conotação negativa,
como postulamos anteriormente.
Apresentamos, em seguida, um quadro que mostra as conotações positivas e
negativas das ocorrências. Aquelas, considerando uma leitura prescritiva; estas, uma leitura
discursiva:
Ocorrências Significação positiva Significação negativa
1. mensaleiro Alguém que recebe uma
quantia mensal por
exercer um ofício
específico.
Alguém que recebe uma quantia mensal
exorbitante em troca de acordos políticos
escusos.
2. quadrilheiro
– mor
Alguém que faz parte de
uma quadrilha; um
ladrão.
Profissional, com funções específicas,
responsável por liderar uma quadrilha
infiltrada nas bases do governo.
3. roubalheira Roubo exagerado. Desvios excessivos de dinheiro público.
4. bandalheira Atitudes indignas
próprias de bandalhos.
Grande onda de políticos sem dignidade ou
brio que aproveitam de seus cargos para se
beneficiarem do dinheiro público por meio do
superfaturamento de obras e acordos escusos.
5. eleitoreiro Que se refere à eleição. Refere-se a tudo aquilo a que se recorre, em
caráter imediatista, para vencer uma eleição.
6. politiqueiro Que se refere à política. Refere-se a uma política do tipo mesquinha,
que visa aos próprios interesses e não aos da
população – politicagem.
100
3.4 – O sufixo -ismo.
Adotaremos o mesmo procedimento metodológico do item anterior para tratar da
análise referente às palavras formadas a partir do sufixo -ismo, apresentando, a seguir, um
quadro com as ocorrências selecionadas. A significação de tais ocorrências segue os
padrões normativos, desconsiderando as contribuições de uma teoria discursiva. Ou seja,
parte do princípio de que o sentido da palavra advém da “somatória automática” do sentido
geral do sufixo mais o sentido do radical da palavra em questão.
Dessa vez, o sufixo trabalhado aparece com dois sentidos distintos:
-ismo¹= formador de nomes de ação ou resultado de ação;
-ismo² = formador de nomes que indicam maneira de pensar; doutrina que alguém
segue; ideologia.
Ocorrências Radical Sufixo Significação prescritiva
1. assistencialismo Assistência = ajuda. -ismo¹ Ato ou efeito de ajudar.
2. continuísmo Contínuo = em que não há
interrupção; seguido,
continuado.
-ismo¹ Ato ou efeito de dar
continuidade.
3. denuncismo Denúncia = acusação;
delação; revelação.
-ismo¹ Ato ou efeito de
denunciar.
4. desenvolvimentismo Desenvolvimento =
progresso; crescimento.
-ismo¹ Ato ou efeito de
desenvolver-se; crescer.
5. golpismo Golpe = acontecimento
súbito e inesperado;
manobra para lesar alguém.
-ismo¹ Ato ou efeito de dar
golpes.
6. politicismo Política = arte e ciência de
bem governar, de cuidar
dos negócios públicos.
-ismo¹ Ato ou efeito de fazer
política.
7. voluntarismo Voluntário = aquele que
age espontaneamente.
-ismo¹ Ato ou efeito de agir
espontaneamente.
8. clientelismo Clientela = conjunto de
clientes; freguesia.
-ismo² Maneira de pensar da
freguesia, clientela.
101
9. esquerdismo Esquerda =conjunto de
partidários duma reforma
ou revolução socialista.
-ismo² Ideologia de partidos
socialistas, de esquerda.
10. peleguismo Pelego = aquele que
trabalha nos sindicatos,
sorrateiramente, contra os
interesses dos
trabalhadores.
-ismo² Maneira de pensar dos
pelegos.
11. petismo PT = Partido dos
Trabalhadores
-ismo² Ideologia do PT.
12. populismo Popular = próprio, relativo
ou simpático ao povo.
-ismo² Maneira de pensar
relativa ao povo.
13. juscelinismo Juscelino = nome de
pessoa.
-ismo² Relativo a Juscelino.
14. alckimismo Alckmin = nome de
pessoa.
-ismo² Relativo a Alckmin.
15. helenismo Helena = nome de pessoa. -ismo² Relativo à Helena.
16. cristovismo Cristovam = nome de
pessoa.
-ismo² Relativo a Cristovam.
17. stalinismo Stalin = nome de pessoa. -ismo² Relativo a Stalin.
18. lulismo Lula = nome de pessoa. -ismo² Relativo a Lula.
3.4.1 – Formador de nomes de ação ou resultado de ação
Selecionamos sete ocorrências que resumem bem a tendência existente no discurso
político em expressar uma ação ou seu resultado com o auxílio do sufixo -ismo.
Comecemos, pois, com assistencialismo.
O primeiro enunciado encontra-se no artigo “Os dez mandamentos do populismo”:
“O populista divide diretamente a riqueza. (...), mas o populista não divide de graça:
focaliza sua ajuda e a cobra em obediência. ‘Vocês têm o dever de pedir!’,
exclamava Evita a seus beneficiários. Criou-se assim uma idéia fictícia da realidade
102
econômica e entronizou-se uma mentalidade assistencialista. No fim, quem pagava
conta? Não a própria Evita (que cobrou seus serviços com juros e resguardou na
Suíça suas contas multimilionárias), mas sim as reservas acumuladas em décadas,
os próprios operários com suas doações ‘voluntárias’ e, sobretudo, a posteridade
endividada, devorada pela inflação. Quanto à Venezuela, até as estatísticas oficiais
admitem que a pobreza aumentou, mas a improdutividade do assistencialismo só
será sentida no futuro, quando os preços dispararem e o regime levar às últimas
conseqüências seu propósito ditatorial” (Enrique Krauze, O Estado de São Paulo/
edição digital, 15/04/06).
Podemos ler, neste enunciado, que o assistencialismo não é algo positivo. O autor,
inclusive, o considera como improdutivo e gerador do crescimento da pobreza. Esta seria
ajudada apenas por propósitos eleitorais e, nos governos populistas, para que fique devendo
obediência. O auxílio às classes pobres (assistência) funcionaria como um auxílio
imediatista. Ao invés de desenvolver projetos direcionados à empregabilidade do povo e
crescimento da nação, um governo populista troca benefícios por obediência. Emprestando
a metáfora da pescaria, “ele dá o peixe, mas não ensina a pescar”. A política
assistencialista, ao contrário do que pensam muitos, só faz aumentar a pobreza.
Fernando Henrique Cardoso, no mês anterior ao das eleições, publica uma carta
aberta no site de seu partido tentando arrebanhar votos para seu então candidato, Geraldo
Alckmin, a partir da crítica aos pontos negativos do governo Lula, descaracterizando-o. Um
dos pontos criticados é sua política assistencialista:
Precisamos assumir que, no contexto atual, ser progressista é lutar para
democratizar a sociedade, sustentar políticas que reduzam a pobreza até sua
eliminação, gerando empregos sem contentar-nos com o necessário
assistencialismo” (Fernando Henrique Cardoso, www.psdb.org.br, 07/09/06).
Para FHC, assistencialismo e progresso estariam bem distantes um do outro,
estando a redução da pobreza associada à geração de empregos e não a medidas
assistencialistas.
103
Percebemos, dessa forma, que o sentido de assistencialismo seria não apenas o de
ajudar, mas o de “ajudar em troco de obediência e votos” – é como se a classe pobre fosse
auxiliada e ficasse devendo o favor de votar no “político assistencialista”.
O exemplo seguinte é continuísmo:
“Acho que a [eleição] presidencial está praticamente definida. Lula está bem porque
a economia está estável. É simples assim. (...) Acho que a tendência é não haver
segundo turno em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. Ou seja, nos
quatro maiores colégios eleitorais do país. Para o bem e para o mal, esta é a eleição
do continuísmo” (Fernando Rodrigues, Folha On-line, 06/09/06).
Vemos que a palavra é empregada no sentido de continuidade. Refere-se aos casos
em que o poder continuará nas mãos dos situacionistas, entre eles o presidente da República
e quatro governadores.
Segundo Rodrigues, Lula continuará no poder em função da estabilidade
econômica, não entrando em detalhes em relação aos outros casos. Quando afirma Para o
bem e para o mal, esta é a eleição do continuísmo, acredita que o governo de alguns desses
políticos não é tão bom assim, porém não se compromete em dizer qual. Mas se atentarmos
para a forma pela qual estrutura o enunciado, sua posição fica evidente. Coloca de um lado
o continuísmo de Lula, e, de outro, o dos quatro governos estaduais. Em seguida, faz uso
das palavras bem e mal, que podem assim ser interpretadas como se tivesse subentendido
na frase a palavra “respectivamente”, referindo-se o “continuísmo do bem” para o governo
de Lula e o “continuísmo do mal” para os outros governos, já que faz elogios ao governo
Lula.
No entanto, apesar de ter tocado num ponto positivo do governo Lula e de ter
considerado o PT o partido mais organizado (...reconheço que o PT é, com todas as
ressalvas o mais organizado), Fernando Rodrigues inclui todos como casos de
continuísmo, abrindo mão do termo continuidade e, como conseqüência, conferindo uma
conotação negativa ao primeiro termo. Dessa forma, se estão todos funcionando como
exemplos de continuísmo na política, todos apresentam pontos negativos. Mesmo aquele
que recebera elogios não agrada muito ao enunciador (se salva, em parte, pelo fato de a
104
economia estar estável). Falar em continuísmo, portanto, seria falar em “dar continuidade a
um governo que está ruim; que apresenta falhas”.
Nos próximos enunciados teremos o termo denuncismo, sugerindo, à primeira
vista, o sentido de denúncia. No entanto, os autores preferiram a primeira forma. Não por
acaso... Na verdade, denuncismo sugere uma conotação negativa, sendo visto como um
mal social:
“O denuncismo é uma doença terminal do jornalismo que se manifesta em
momentos de crise política profunda como a atual. É vital não deixar esse mal se
instalar. A vacina contra o denuncismo passa pela apuração diligente, árdua e
trabalhosa dos fatos que se julga imperioso levar ao conhecimento da opinião
pública” (editorial da revista Veja, 13/07/05).
“Temos de aproveitar o fogo da batalha para eliminar todo o lixo da corrupção e do
denuncismo. Ou seja, não podemos aceitar o denuncismo, o banditismo, para punir
apenas alguns corruptos e alcagüetes em troca da ‘inocentagem’ de outros. (...) Não
se pode, sob nenhuma hipótese, premiar a criminalidade e o denuncismo” (Alberto
da Silva Jones, www.vermelho.com.br, 25/08/05).
“Se eles [da oposição] querem esticar a corda, nós não vamos concordar. Eles
deviam saber que denuncismo não está mais dando votos” (senador Tião Viana,
PT-AC, A Folha de São Paulo, 08/03/06. In: FIORIN, 2006).
O primeiro enunciado revela a negatividade agregada ao termo, sendo definido pelo
autor como uma doença terminal do jornalismo, como um mal que precisa de vacina.
Segundo o autor, esse mal se manifesta em momentos de crise política profunda, cujos
disseminadores são os jornalistas. Ele sugere, então, que a vacina seja a apuração rigorosa
dos fatos antes que estes se tornem públicos, visto que muitas das denúncias apresentadas
não são baseadas em provas concretas.
No segundo enunciado, Alberto da Silva Jones define denuncismo como lixo e
ainda banditismo, colocando-o ao lado da corrupção. A situação política é descrita por ele
105
como uma batalha na qual os políticos trocam acusações, sendo o denuncismo uma arma
inclusive para os corruptos que, por meio da delação premiada, têm suas penas abrandadas.
Para Jones, é inadmissível o uso do denuncismo para punir alguns corruptos em troca da
‘inocentagem’ de outros. Ao afirmar Não se pode, sob nenhuma hipótese, premiar a
criminalidade e o denuncismo, considera este um crime que precisa ser eliminado da
sociedade.
O último só vem corroborar a idéia de negatividade presente no termo denuncismo,
quando Tião Viana afirma que essa estratégia não está mais dando votos. Ou seja, a
oposição está recorrendo ao denuncismo na “corrida eleitoreira”, porém, na visão do
senador, tal estratégia é tão ruim que não puxa votos mais. Mas vejam que esse “mais”
indica que o denuncismo já rendeu votos e deve preocupar o senador sim, principalmente
pelo fato de seu partido ser o alvo principal de denúncias.
Dessa forma, vemos que a palavra denuncismo é empregada, preferencialmente,
pelos partidos de situação, alvos de acusações por parte da oposição, que, por sua vez,
almeja o poder. É uma forma de tentarem se defender por meio da própria palavra. Ao
enunciarem denuncismo, ao invés de denúncia, resignificam o sentido desta, passando a
associá-la a termos como doença, banditismo, crime... De “ato ou efeito de denunciar”, a
palavra passa a assumir a seguinte conotação: “o ato de fazer denúncias sem basear-se em
provas concretas, com o objetivo de obter vantagens políticas”. Com isso, o denunciado se
defende e ainda desqualifica o discurso do outro.
O quarto exemplo refere-se à palavra desenvolvimentismo.
No primeiro discurso na tribuna do Senado após as eleições de 2006, Aloízio
Mercadante, senador do PT criticou o velho desenvolvimentismo e propôs um novo
desenvolvimentismo, com foco no investimento e na redução dos gastos correntes:
“"O velho desenvolvimentismo é imaginar que só baixando os juros vamos gastar
mais, impulsionando o desenvolvimento econômico. O caminho do velho
desenvolvimentismo pode levar ao crescimento, mas podemos ter na verdade uma
bolha de crescimento. Não acredito que esse seja o caminho mais promissor"
(Aloízio Mercadante, www.folha.uol.com.br, 10/11/06).
106
Como nos casos anteriores, optou-se pela palavra formada a partir do sufixo -ismo
(desenvolvimentismo) no lugar de uma já existente (desenvolvimento). Esta denota
crescimento, progresso. Já o desenvolvimentismo é algo duvidoso. Falar, pois, em
desenvolvimentismo é não ter a certeza de crescimento, já que, nesse caso, a tomada de
decisões parte do governo como algo meio forçado. Assim, dependendo da decisão do
governo, ao invés de desenvolvimento pode ocorrer o oposto.
Na Wikipédia (enciclopédia digital) tem-se a seguinte definição para
desenvolvimentismo:
“Dá-se o nome de desenvolvimentismo a qualquer tipo de política econômica
baseada no crescimento da produção industrial e da infra-estrutura, com
participação ativa do estado, como base da economia e o conseqüente aumento de
consumo. O desenvolvimentismo é uma política de resultados, e foi aplicado
essencialmente em sistemas econômicos capitalistas, como no Brasil (governo JK) e
na Espanha (franquismo)”.
E ainda esta para novo-desenvolvimentismo:
“O novo-desenvolvimentismo (...) defende a adoção de uma estratégia de
‘transformação produtiva com eqüidade social’ que permita compatibilizar um
crescimento econômico sustentável com uma melhor distribuição de renda. O
projeto novo-desenvolvimentista não objetiva pavimentar a estrada que poderia
levar o Brasil a ter uma economia centralizada, com um Estado forte e um mercado
fraco, nem construir o caminho para a direção oposta, em que o mercado comandará
unicamente a economia, com um Estado fraco. Contudo, entre esses dois extremos
existem ainda muitas opções. Avaliamos que a melhor delas é aquela em que seriam
constituídos um Estado forte que estimula o florescimento de um mercado forte”
(Wikipédia).
Vê-se, portanto, que a participação ativa do Estado é primordial para se chegar ao
crescimento, caracterizando-se o desenvolvimentismo como uma política de resultados
107
que visa aumentar o consumo, melhorando, conseqüentemente, a imagem do governo. Com
as pessoas comprando mais, as críticas ao governo diminuirão, sendo este o melhor
beneficiado com o desenvolvimentismo e, portanto, o maior interessado.
Desenvolvimentismo seria, então, o crescimento “forçado” pelo governo, baseado numa
política de resultados objetivando melhorar sua imagem.
Golpismo é o próximo exemplo. Derivado de golpe, sugere “acontecimento súbito e
inesperado ou manobra para lesar alguém”. Vejamos, pois, seu efeito de sentido neste
primeiro enunciado:
“Eis uma boa pergunta. Uma pergunta que pode nos colocar no rumo de desvendar
a origem , não apenas da corrupção, que todos sabemos, mas de seus efetivos
promotores. A quem interessa a desestabilização do Governo Lula e, certamente, da
economia brasileira? Responder a estas perguntas, certamente, nos indicará o rumo
dos interessados na crise. Ou em linguagem jurídica – quem tinha motivos para
promover esse caos que põe em risco a nossa economia, as nossas conquistas
democráticas, apontando abertamente para o golpismo e para o retrocesso em todos
os sentidos. Quem ganha com a crise? Quem perde?” (Alberto da Silva Jones,
www.vermelho.com.br, 25/08/05).
Alberto da Silva Jones define golpismo como a tentativa da oposição em promover
o caos no país, pondo em risco nossa economia. A resposta mais esperada para as primeiras
questões do autor (A quem interessa a desestabilização do Governo Lula e, certamente, da
economia brasileira? e Quem ganha com a crise?) pode ser “a oposição”, revelando que
esta se preocupa apenas com o poder e não com os interesses da população, que, a
propósito, é quem mais perde num governo com a economia desestabilizada, respondendo à
última pergunta (Quem perde?).
O segundo enunciado faz parte de um artigo intitulado “Golpismo, falso e
verdadeiro”.
“É emblemática, do ponto de vista do baixo respeito às autoridades no Brasil, a
aceitação da tese de ‘golpismo’, esgrimida pelo PT em relação à investigação do
108
escândalo do dossiê, em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). ‘Golpismo’
seria o inverso, ou seja, aceitar a idéia de que algumas pessoas (no caso, o
presidente da República) estão acima da lei. Louve-se, a propósito, o presidente
Lula, que, na sabatina com a Folha, não encampou a tese do ‘golpismo’ ao dizer
que, se crime houve, ele tem que pagar” (Clóvis Rossi, A Folha de São Paulo,
26/10/06).
Inicialmente, Clóvis Rossi refere-se ao fato de o PT considerar golpismo a
investigação do escândalo do dossiê. Em seguida, afirma que golpismo seria aceitar a idéia
de que algumas pessoas, entre elas, Lula, estejam acima da lei, tendo este não encampado
tal tese, já que afirmara que “se crime houve, ele tem que pagar”. A verdade é que tanto a
oposição quanto a situação fazem uso dessa palavra para referirem-se aos golpes baixos, às
manobras políticas inesperadas que são utilizadas para denegrirem a imagem do adversário.
Nosso sexto exemplo é a ocorrência voluntarismo, remetendo à ação voluntária.
“Com a falência das ilusões políticas do petismo, cai por terra a crença de que a
solução efetiva desses enormes desafios depende apenas de ‘vontade política’ ou do
voluntarismo dos ‘justos e bons’” (Eduardo Giannetti da Fonseca, Veja, 28/12/05).
Agir de forma voluntária seria agir espontaneamente. Porém, se esse fosse o efeito
de sentido pretendido por Giannetti, supomos que teria empregado a palavra voluntariado.
Ser “voluntarista”, portanto, não é ser tão bonzinho assim... É, na verdade, ajudar já
pensando em receber algo em troca, o que é muito comum na política (como o
assistencialismo).
As seis35 ocorrências mostraram que agregar o sufixo -ismo a seus radicais confere
às mesmas uma conotação negativa, pejorativa. Enunciar assistencialismo, continuísmo,
denuncismo, desenvolvimentismo, golpismo e voluntarismo ao invés de assistência,
continuidade, denúncia, desenvolvimento, golpe e voluntariado é mais do que expressar
35 Na verdade, são sete ocorrências funcionando com o sentido do sufixo -ismo¹. A sétima delas (politicismo) será discutida na próxima seção, no interior de um enunciado que traz uma outra ocorrência, que funciona com o sentido de -ismo².
109
ações ou resultado de ações. É passar a idéia de que se trata de atitudes ruins com objetivo
puramente eleitoreiro.
3.4.2 – Formador de nomes que indicam maneira de pensar, ideologia
Constatamos que também é muito comum no discurso político o emprego do sufixo
-ismo para expressar nomes que indicam maneira de pensar. Selecionamos, então, onze
ocorrências para discutir os efeitos de sentido provocados por elas em seus contextos
discursivos.
A primeira delas é clientelismo, que se refere, inicialmente, à maneira de pensar de
uma determinada clientela.
“Na insegurança, e pensando na reeleição futura, o deputado (como já teria feito o
candidato) vai estabelecer uma rede de segurança apoiando-se em prefeitos e
eventualmente em alguma empresa, aos quais buscava prestar favores, numa versão
atualizado [sic] do velho clientelismo (que subsiste nas zonas mais pobres do país)
que intercambiava votos por favores prestados diretamente ao eleitor” (Fernando
Henrique Cardoso, www.psdb.org.br, 07/09/06).
Fernando Henrique se refere ao deputado que, depois de eleito, já começa a se
preocupar com a reeleição, aderindo assim a uma nova versão do clientelismo36, que
consiste na prestação de favores a prefeitos e empresários em troca de apoio político. Entre
os favores podemos apontar o caso de emendas no orçamento para ajudar uma prefeitura ou
empresa, revelando-se um deputado que “trabalha” firme para conseguir a aceitação da
emenda, aprovação do orçamento e liberação das verbas para, enfim, fechar o “negócio”.
Tudo acontece como numa transação comercial , na qual políticos, tanto na situação
de candidatos como já na de eleitos, representam os fornecedores, vendedores. Seus
“fregueses” (clientela) são prefeitos, empresas e (ainda) os próprios eleitores que, em troca
de apoio, recebem “favores”. Assim como no comércio, é comum a concorrência entre os
“vendedores”, os quais usam de diversas estratégias de marketing para alcançarem seu
36 O “velho clientelismo” consistia na troca de votos por favores prestados diretamente ao eleitor.
110
objetivo principal – a preferência pelo voto. Dessa forma, quem tiver mais a oferecer,
ganha a preferência do eleitor.
Para grande parte dos eleitores, o voto continua sendo associado ao “favorzinho”:
“desde que se receba algo em troca, por que não votar no candidato x”? E assim vai se
perpetuando essa maneira de pensar dos eleitores (a clientela), e, em conseqüência, o
clientelismo, que denota a maneira de pensar dos eleitores, prefeituras e empresas, os quais
concebem o voto como troca de favores e vantagens, procurando, assim, lucrar com a
“venda” de seu apoio eleitoral. Clientelismo estaria relacionado à maneira de pensar
daqueles que concebem o apoio eleitoral como arma para conseguir “favores”.
Nosso segundo exemplo é a palavra esquerdismo, cujo radical (esquerda) denota
“conjunto de partidários duma reforma ou revolução socialista”. Um partido de esquerda
seria, então, um partido cujos membros estariam preocupados com o social e não com o
particular, representando um projeto extremamente favorável aos interesses da população.
E já que o social está em primeiro plano para estes partidos, seria de se esperar um apoio
total aos mesmos – tanto da classe eleitora quanto da mídia. Porém, não é o que “lemos”
nos enunciados seguintes, os quais associam esquerdismo a algo negativo (Lembremos,
pois, que o PT sempre se considerou e foi considerado um partido de esquerda, procurando
defender os interesses sociais e não se envolvendo em “maracutaias”. No entanto, com a
chegada ao poder, isso passou a ser questionado em função das alianças com certos partidos
de direita, dos escândalos do mensalão envolvendo seus membros diretos... Lembremos
também que mesmo antes de chegar ao poder, em campanhas presidenciais fracassadas, a
mídia já tentava associar o esquerdismo a algo negativo, taxando-o de radical e ameaçador
à economia do país):
“Para não nos atolarmos num esquerdismo radical e ultrapassado, nem girarmos no
redemoinho da anarquia e do desgoverno, é preciso – urgentemente – abrir os olhos,
agir e reagir, implantar em nossa vida pessoal e neste nosso país o governo da ética”
(Lya Luft, Veja, 13/07/05).
111
“A doença infantil do esquerdismo, aparentemente extinta, está de volta. Montada
em sofisticados Land Rovers pagos por empreiteiros” (Alberto Dines
www.observatório.ultimosegundo.ig.com.br, 25/07/05).
“Desde o início da Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Antonio
Palocci projetou a imagem de uma fortaleza inexpugnável de sobriedade num mar
de ineficiência e insensatez. Ex-militante da Libelu (Liberdade e Luta), movimento
radical de tendência trotskista, despiu-se, à frente da economia, do esquerdismo
infantil de seus colegas. Converteu-se num defensor do equilíbrio fiscal e do
controle rigoroso da inflação. Ao reciclar-se ideologicamente, reconquistou a
confiança dos mercados no primeiro ano de governo petista e, nos últimos meses,
impediu que o escândalo contaminasse a economia. Na semana passada, os ventos
viraram contra a direção de Palocci” (Fábio Portela e Victor Marino, Veja,
24/08/05).
Lya Luft, por exemplo, no primeiro enunciado, concebe o esquerdismo como
radical e ultrapassado, sugerindo que não nos atolemos nele nem giremos no redemoinho
da anarquia e do desgoverno. O conjunto dessas figuras sugere que uma transformação se
deu. A seqüência Para não nos atolarmos num esquerdismo radical e ultrapassado pode
ser lida como “Para não nos atolarmos num mar de lama”, referindo-se aos escândalos.
Girar e redemoinho sugerem que algo como um furacão passou pelas bases antes sólidas do
PT justificando a caracterização conferida ao esquerdismo de radical e ultrapassado. É
como se a preocupação inicial do partido tivesse sido alterada, o que pode ter vindo a
ocasionar a anarquia e o desgoverno após as denúncias do mensalão. A solução, segundo
ela, é implantar o governo da ética, pois o PT perdeu também este valor.
A preocupação de alguns dos partidários denominados “de esquerda” deixou de ser
com o social passando para o pessoal. É o que se lê no segundo enunciado, na referência ao
Land Rover. Trata-se de um carro recebido por Sílvio Pereira, das mãos de uma
empreiteira, como pagamento de propina, representando apenas um exemplo de uso do
poder para obter vantagens pessoais.
112
Conceber o esquerdismo como uma doença infantil, como Alberto Dines o faz, é
acreditar que é algo ruim (doença) e, como se não bastasse, “coisa de criança”. É como se
dissesse que o poder é para “gente grande” e que os petistas não souberam lidar com as
próprias propostas socialistas, remetendo, inclusive, ao conhecido adágio popular Quem
nunca comeu doce, quando come se lambuza, sugerindo que os petistas abusaram do poder,
aproveitando as vantagens que este podia lhes proporcionar.
No terceiro enunciado, essa idéia de infantilidade é reforçada. Fábio Portela e Victor
Mariano referem-se a Antonio Palocci como uma fortaleza inexpugnável de sobriedade ao
lado de colegas infantis. Os enunciadores descrevem de forma bem resumida a trajetória do
ex-ministro, ressaltando suas qualidades de esquerdista e de responsável pela economia do
país. No entanto, mostram que também Palocci se viu envolto pelos escândalos, a ponto de
se afastar do governo Lula.
Outras figuras, além da infantilidade, são retomadas dialogando com o primeiro
enunciado: o mar, sugerindo o mar de lama em que o governo petista se viu mergulhado; e
os ventos, lembrando o redemoinho e o furacão, sugerindo a mudança nas bases de um
partido considerado, antes, “de esquerda” e agora representante de um esquerdismo
infantil.
Esquerdismo, denotaria, então, não a ideologia de partidos incorruptíveis
preocupados com o social, mas a ideologia de um partido outrora impoluto cujos membros
não conseguiram resistir às tentações que o poder proporciona, passando a preocuparem-se
com as vantagens, corrompendo-se em troca de benefícios pessoais.
Peleguismo, por sua vez, mostra que o sufixo só vem reforçar o efeito de
negatividade, visto que pelego já traz uma conotação negativa: “aquele que trabalha num
sindicato, agindo às ocultas, contra os interesses dos trabalhadores”. O enunciado seguinte
comenta justamente o papel de Lula no combate a essa “doutrina”:
“Lula tornou-se a mais viva, real e autêntica expressão daquilo que, então, muitos
de nós, estudiosos e simpatizantes do nascente movimento, denominamos ‘novo
sindicalismo’. Liderou greves majestosas, como em 1978/80, combateu o
peleguismo sindical e descontentou o sindicalismo político tradicional, que na
época, ainda sob forte repressão, atrelava a ação operária aos interesses de uma
113
pretensa (e de fato inexistente, como nos mostrou anteriormente o golpe de l964)
‘burguesia nacional progressista’. Descontente com essa dupla alternativa, dada
pelo peleguismo sindical e pelo politicismo anti-operário, Lula participou
ativamente da criação do PT, em 1980, e da CUT, em 1983, ambos experimentos
que, em sua origem, propugnavam pela autonomia sindical e política dos
trabalhadores” (Ricardo Antunes, www.enlace.com.br, 20/02/06).
Ricardo Antunes comenta que, além do peleguismo, havia um tipo de politicismo37
anti-operário nos sindicatos. Nota-se que ele opta por politicismo e não política anti-
operária, sugerindo a proximidade com uma ‘política de conveniência’ que atendia a
interesses de uma pretensa ‘burguesia nacional progressista’. Com a criação do PT, em
1980, e da CUT, em 1983, Lula pretendeu combater tanto o peleguismo quanto esse
politicismo, propondo um novo sindicalismo (o que também não é tão bem visto assim
numa sociedade capitalista como a nossa).
Percebemos, pois, que há nas lutas políticas, a tentativa constante de combater os
“ismos”, ou seja, todos os males sociais. Naquele momento, o peleguismo e o politicismo.
Hoje, o denuncismo, o golpismo...
Um dos alvos/ males mais visados nesse último período eleitoral foi o petismo. A
onda de escândalos envolvendo o partido do presidente da República foi um estímulo para a
oposição tentar chegar ao poder, descaracterizando de todas as formas possíveis essa
“doutrina”, com o apoio constante da mídia.
Camila Pereira, por exemplo, considera-o um petismo de resultados, sem valor
algum, cujo destino seria a lata de lixo, fato que a alivia, o que pode ser “lido” a partir da
figura felizmente:
“Felizmente, esse petismo de resultados tem encontro marcado na lata de lixo da
história com outras experiências reais do ideário marxista.” (Camila Pereira, Veja,
17/08/05).
37 Politicismo apresenta o sentido do sufixo –ismo¹. Decidimos comentá-lo aqui por acreditarmos que ficaria melhor se não o desmembrássemos, comentando-o juntamente com peleguismo.
114
Alexandre Dias, por sua vez, foi mais agressivo ao referir-se à ideologia petista:
“O PT-lulismo38 foi um fenômeno político impulsionado pela derrota nas eleições
presidenciais de 1994. Revestido de certo pragmatismo, era, no fundo, um
radicalismo com luvas de pelica. As concessões dadas aos movimentos sociais de
base foram uma conseqüência deste pragmatismo oportunista. Após 2002,
descobrimos que a base petista (também conhecida como ‘esquerda do PT’) vivia
apenas de demagogia eleitoreira e o que queriam mesmo eram cargos bem
remunerados no governo. A CUT calou-se, o MST calou-se (seus rompantes são
apenas efêmeros), os movimentos católicos de base calaram-se. O poder chegou em
2002. A república sindicalista, braço sustentador do lulismo dentro do PT, tomou
conta. A caças (sic) às bruxas foi instituída. A ‘esquerda’ dócil e oportunista foi
mantida no partido e incorporada ao governo. A livre pensante foi expulsa. Tinham
que saber quem mandava: era o lulismo. Mas, agora, o lulismo morreu. Caíram seus
principais mentores: Dirceu, Gushiken, Genoíno e, finalmente, Palocci. Sobrou o
petismo. Um petismo sem rumo, sem ideologia, sem utopia. Um petismo perdido
entre os ideais que um dia teve, e os ideais que hoje não tem. Amorfo, sem gosto,
intragável. Senhoras e senhores, dêem boas-vindas ao novo petismo” (Alexandre
Dias, www.tucanusp.blogspot.com, 29/03/06).
Inicialmente, Dias concebe o PT-lulismo como um fenômeno oportunista
eleitoreiro, caracterizado como um radicalismo com luvas de pelica que ganhou força após
a derrota nas eleições presidenciais de 1994. Com o poder, em 2002, os movimentos de
base (CUT, MST, católicos...) calaram-se diante dos acontecimentos. Entre eles, a expulsão
da esquerda pensante e a “caída” dos principais membros por envolvimento em escândalos.
É como se o PT tivesse revelado o que sempre esteve submerso em suas bases. Acrescenta
que morreu o lulismo e sobrou o petismo. Porém, não o mesmo petismo, mas um petismo
sem rumo, sem ideologia, sem utopia. Um petismo perdido entre os ideais que um dia teve,
e os ideais que hoje não tem. Amorfo, sem gosto, intragável.
38 O termo lulismo será analisado mais à frente, sendo este um dos textos de referência. Por isso, o destacamos de forma diferenciada do termo petismo.
115
Logo após as eleições que culminaram na vitória de Lula, ao fazer uma análise da
situação atual do partido, Valter Pomar, secretário de relações internacionais do diretório
nacional do PT, afirmou o seguinte em relação aos fenômenos lulismo e petismo:
“O elemento que tem que ser priorizado é o petismo” (Valter Pomar, Folha On-line,
13/11/06).
Para ele, não há que se preocupar com Lula, haja vista que seu carisma impulsiona
votos independentemente da filiação partidária e ideológica. Sua preocupação real é com o
partido, já que errou e pode não receber do povo uma segunda chance, alertando para a
necessidade de uma reformulação interna no mesmo.
Referir-se ao PT como petismo já antecipa a nova conotação que o enunciador quer
conferir ao partido. Petismo denotaria, então, a ideologia de um partido abalado em suas
bases por escândalos de corrupção, uma ideologia que se adequou às “regras” do poder.
O próximo exemplo a ser discutido é populismo. O historiador mexicano Enrique
Krauze publicou um artigo, na edição digital do jornal “O Estado de São Paulo”, intitulado
“Os dez mandamentos do populismo”. O autor considera-o um fenômeno político,
caracterizando-o a partir de seu funcionamento, e não do seu conteúdo ideológico. E,
seguindo a tendência apontada nos exemplos anteriores, populismo também é concebido
como algo ruim:
“O populismo na América Latina adotou um amálgama desconcertante de posições
ideológicas. Esquerdas e direitas poderiam reivindicar a paternidade do populismo,
todas ao conjuro da palavra mágica ‘povo’.(...). O populismo exalta o líder
carismático. Não há populismo sem a figura do homem providencial que resolverá
os problemas do povo. (...). O populismo fabrica a verdade. (...). O populismo
apela, organiza, inflama as massas. (...) O populismo fustiga sistematicamente o
‘inimigo externo’. (...) O populismo despreza a ordem legal. (...) O populismo
mina, domina e, em último recurso, domestica ou cancela as instituições da
democracia liberal. (...) Por que renasce de tempos em tempos a erva daninha do
populismo na América Latina? (...) O populismo (...) alimenta sem cessar a
116
enganosa ilusão de um futuro melhor, mascara os desastres que provoca, posterga o
exame objetivo de seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade, adormece,
corrompe e degrada o espírito público” (Enrique Krauze, O Estado de São Paulo/
edição digital, 15/04/06).
Por referir-se a povo, tanto esquerdas quanto direitas recorrem a seu uso na América
Latina. Como exemplos, o autor aponta Juan Domingo Perón e Hugo Chávez. O primeiro,
admirador de Mussolini; o segundo, de Fidel Castro. Apresenta, então, dez traços
característicos do populismo, os quais permitem ser lidos, na verdade, como defeitos:
exaltação do líder carismático; apropriação da palavra (o veículo de seu carisma);
fabricação da verdade; uso arbitrário dos recursos públicos; divisão da riqueza e
conseqüente criação do assistencialismo; ódio às classes; mobilização dos grupos sociais;
fustigação ao inimigo externo; desprezo à ordem legal; e domesticação das instituições
democráticas liberais.
Várias afirmações de Krauze permitem-nos ler os dez traços como defeitos. Dialoga
com Max Weber ao conceber o líder carismático como um demagogo, afirmando ser a
nossa era a era dos demagogos puros, os quais se apóiam na televisão para hipnotizar as
massas. O autor lembra que a liberdade de expressão é abominada por eles, comentando
que a situação na Venezuela terminará por esmagá-la. Tal afirmação reporta-nos ao
episódio recente do fechamento da emissora RCTV (Radio Caracas Televisión) em maio
deste ano no referido país. O interessante é que o artigo de Krauze foi publicado em abril de
2006...
Aponta a ignorância e a incompreensão que os populistas têm em economia,
acarretando desastres descomunais. Dividem as riquezas endividando a posteridade e
eternizando a política do assistencialismo
Outra afirmação de Krauze que nos faz reportar a um acontecimento recente é a
referência ao fato de o populista precisar desviar a atenção interna para o adversário de
fora, lembrando-nos as agressões verbais de Hugo Chávez a George Bush, concebendo-o
como um diabo.
Para concluir, Enrique define o populismo como uma erva daninha, corroborando a
idéia de ser algo ruim, nocivo. Suas raízes renascem de tempos em tempos na América
117
Latina, alimentando a enganosa ilusão de um futuro melhor; mascara os desastres que
provoca, posterga o exame objetivo de seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade,
adormece, corrompe e degrada o espírito público.
Apesar de referir-se ao povo, o populismo o vê apenas como um degrau de uma
escada para se chegar ao poder. O governante popular seria aquele que governa pela
democracia, para o povo, tendo este seu direito de pensar e expressar sua crítica. Já o
populista governaria uma ditadura, na qual o povo representaria o papel de marionete.
Pudemos concluir, então, que a formação ou ressignificação de palavras a partir do
sufixo -ismo, indicando maneira de pensar, concebe-as como males. Clientelismo,
esquerdismo, peleguismo, petismo e populismo são, portanto, males sociais, os quais
deixariam de assumir a conotação negativa não fosse a presença do sufixo.
3.4.2.1 – Tendo como radical nomes de pessoas
Muito comum também são as formações tendo como radical nomes de pessoas, cujo
objetivo é expressar o pensamento/ ideologia destas. Um exemplo clássico é marxismo,
denotando a ideologia de Karl Marx. Selecionamos, assim, mais seis ocorrências:
juscelinismo, alckimismo, helenismo, cristovismo, stalinismo e lulismo.
Comecemos, pois, por juscelinismo:
“Dirigindo seu pronunciamento à neta do ex-presidente Juscelino Kubitschek, Ana
Cristina Kubitschek, esposa do senador Paulo Octávio (PFL-DF), o senador José
Agripino (PFL-RN) confessou que durante sua infância e juventude viveu em um
ambiente de oposição a JK. Seu pai, Tarcísio Maia, e seu tio, João Agripino,
militavam na UDN e faziam oposição ao presidente JK. O senador disse que, apesar
disso, nunca assumiu uma postura anti-Juscelino. Agripino disse que os fatos nunca
permitiram que ele se deixasse contaminar pelo "vírus do anti-juscelinismo" (José
Agripino, www.senado.gov.br, 31/01/06).
O enunciado nos mostra que juscelinismo era algo tão ruim para a família do
senador a ponto de seu pai e seu tio conceberem-no como um vírus. Apesar de Agripino
afirmar que não fora “infectado” por tal vírus (conveniente para ele, já que estava sendo
118
ouvido pela neta de Juscelino) e apresentar pontos positivos do governo JK, não conseguiu
anular a conotação negativa reservada ao termo no início do texto. Afirma ainda que Em
política não se deve nunca acreditar no que dizem, mas no que se vê, “dizendo” com isso
que se mente muito no contexto político, corroborando a idéia de que a mentira seja
constitutiva do discurso político39. Lê-se, portanto, em seu discurso, a descaracterização de
Juscelino e da própria política.
Alcides Faria publica um texto em seu blog40 criticando os principais candidatos à
presidência da República – Luiz Inácio Lula da Silva; Geraldo Alckimin; Heloísa Helena e
Cristóvão Buarque:
“Alckimismo, helenismo e lulismo.
Hoje pela manhã, a Globo ouviu os candidatos sobre a história do gas na Bolivia.
Heloisa Helena, expert em prometer o que não pode entregar, lascou, dentre outras
coisas, que se deveria garantir que o gas das residências não subisse de preço. Deveriam
contar para ela que o das casas é o liquefeito de petróleo (GLP) e não o “natural”
tubulado que vem da Bolivia. Me parece que ela está especializando em mostrar que
não conhece o Brasil. Em Campo Grande disse que iria colocar o exército para guardar
as fronteiras para impedir o nacotráfico. Já ouviram isso antes? Sobre o Alckimismo:
“o Alckim é a cara da alta classe média paulista, fração mínima do eleitorado...
‘Geraldo’ é a caricatura desta classe e resume seu programa verbal a gestão e menos
imposto” (FSP de 14/09/06 – Vinicius Freire). Sobre o lulismo seria necessário fazer
um tratado. Mas deveria ser sobre as visceras do Brasil. Como explicar tantos operários
e setores médios tão deidcados a demonstrar que o fim justifica os meios... esta é uma
história mais longa e vamos pensando. E o cristovismo? Não conhece o Brasil. Bate-
estaca resolve?” (Alcides Faria, www.alfaria.blogspot.com, 15/09/06).
O autor aponta um defeito em cada um deles. Desta forma, empregar alckimismo,
helenismo, lulismo e cristovismo seria mostrar o que há de ruim nos candidatos: em
Heloísa Helena, o fato de falar sobre assuntos que desconhece; em Alckmin, por
39 Ver a seção 2.3 (A mentira na política). 40 O leitor deparar-se-á com problemas relativos à norma escrita padrão, já que optamos em conservar o texto em sua forma original com as características que seu gênero e suporte apresentam.
119
representar a alta classe média paulista; em Lula, a crença de que o fim justifica os meios; e
em Cristovam, o fato de não conhecer o Brasil. Este último é tão desqualificado por Faria
que sequer aparece no título do texto – apenas os três primeiros colocados nas pesquisas
são destacados. Poderíamos ainda sugerir que a disposição dos nomes no título revelasse,
talvez, a vontade do autor em relação ao resultado final das eleições.
Com stalinismo não poderia ser diferente:
“Hoje, as provas contra Stalin são inquestionáveis e, se querem saber, a minha
opinião pessoal é de que existe, de certo modo, um dado precioso que demonstra a
afinidade eletiva entre os fenômenos do lulismo e do stalinismo da era do Grande
Terror. Sim, claro, há uma distinção notável na gradação dos crimes e métodos, pois
matar em massa não é o mesmo que corromper ou deixar corromper
industrialmente. Mas, no “Brasil de todos”, tal como ocorreu na antiga URSS de
Stalin, o que se propala é que Lula, diante da Grande Corrupção que assolou o País,
adotou a postura do dirigente que não sabia de nada nem muito menos do que
faziam no seu governo, (...). Para completar, o dado paralelo que sedimenta as
afinidades eletivas entre o stalinismo e o lulismo: no Brasil de hoje como na antiga
URSS, a grande massa de pobres e trabalhadores, submetida a constante lavagem
cerebral da propaganda oficial, acredita e acreditava piamente na inocência de Lula,
o ex-metalúrgico, e na integridade moral de Joseph Stalin, o carniceiro socialista”
(Ipojuca Pontes, www.midiasemmascara.com.br, 17/07/2006).
O texto resume as atrocidades cometidas no governo de Stalin – o do Grande Terror.
Chamado de o carniceiro socialista, ele é acusado de ter feito lavagem cerebral, tentando
passar-se por íntegro. O stalinismo foi, sem dúvida, um grande mal social.
Aproveitando o texto supracitado (e, em seguida, apontando outros) gostaríamos de
dedicar maiores comentários referentes ao termo lulismo. Sendo Lula o situacionista, já era
de se esperar que fosse o “alvo-mor”. Assim, combater e acabar de vez com o lulismo seria
a melhor saída encontrada pela oposição, que tentava desqualificá-lo fazendo uso de
discursos agressivos.
120
Ipojuca Pontes compara o fenômeno do lulismo ao do stalinismo. Tudo o que foi
considerado ruim na era de Stalin é transferido para a de Lula, como se vivêssemos um
Grande Terror. Aponta a inquestionabilidade das provas contra Stalin para, na verdade,
acusar Lula, o presidente do país que vive a “Grande Corrupção”. Para Pontes, ambos
submeteram a grande massa à lavagem cerebral por meio da propaganda oficial no intuito
de fazer com que suas “verdades” fossem tidas como únicas. Assim como Stalin afirmava
não saber o que Nikolai Iejov (seu homem de confiança) fazia, impostando um ar de
surpresa diante das denúncias de prisões e assassinatos em massa, Lula adotou a postura do
dirigente que não sabia de nada nem muito menos do que faziam no seu governo. Apesar
de esclarecer que há uma distinção notável na gradação dos crimes e métodos, o autor os
nivela como dois males sociais: o carniceiro socialista, que matou em massa; e o ex-
metalúrgico, que se deixou corromper industrialmente. Supomos que a vontade do autor é
que um dia seja provado o envolvimento de Lula nos escândalos de corrupção, já que hoje
as provas contra Stalin são inquestionáveis.
A necessidade de combater o lulismo é tamanha que em muitos artigos lemos o
decreto de sua morte como uma tentativa de diminuí-lo.
A Folha On-line comentou, em 06/07/05, trechos de matérias publicadas em jornais
internacionais a respeito das denúncias ao governo Lula. Entre elas, destacamos a que se
refere à morte do lulismo, definido como um credo.
“Mas nas últimas semanas tudo veio abaixo e foi decretada a morte do ‘lulismo’,
como seu credo político é conhecido” (Internacional Herald Tribune, In: Folha on-
line, 06/07/05).
No artigo denominado “A morte do PT-lulismo”, transcrito na página 114 desta,
Alexandre Dias comenta que a derrota nas eleições de 1994 impulsionou o fenômeno PT-
lulismo, porém, com a “caída” de seus principais mentores, morre o lulismo sobrando o
petismo. Lula cai mas seu partido não.
No entanto, com a vitória de Lula, fica claro que se algo morreu foi o petismo, não
o lulismo. É o que podemos conferir na afirmação de Valter Pomar, comentada por Felipe
Neves:
121
“O secretário de relações internacionais do diretório nacional do PT, Valter Pomar,
demonstrou nesta segunda-feira preocupação com o futuro do partido e com o
fenômeno ‘lulismo’. ‘O elemento que tem que ser priorizado é o petismo’, disse.
Com o termo ‘lulismo’, Pomar se referia ao carisma do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e ao fato de esse carisma ser capaz de angariar votos, independentemente
da filiação partidária e ideológica” (Felipe Neves, Folha On-line, 13/11/06).
Vemos, pois, que o termo lulismo foi constantemente referido durante o período
eleitoral, inclusive como o de uma doença:
“O lulismo é uma psicopatia. (...) Se Lula for reeleito, é sinal que os brasileiros
surtaram” (Diogo Mainardi, Veja, On-line, 08/07/06).
Diogo Mainardi desenvolve o artigo de forma que Lula seja visto como um
psicopata. Não foi à toa que escolheu o seguinte título: O lulismo-lelé.
Como último exemplo, destacamos trechos do artigo “A gênese do lulismo”, de
Ricardo Antunes. Nele, o autor aponta Lula como um caso excepcional de um operário
brasileiro que assumiu projeção política nacional. Reproduz, de forma breve, a trajetória de
Lula – da migração do nordeste ao momento atual, em que é visto como um fenômeno:
“(...) por detrás de sua aparente simplicidade, aflorava alguém que prezava cada vez
mais o culto à personalidade, cultuava a condição líder e mesmo tertius, dentro do
PT, o que acabou por fazer proliferar, dentro e fora do partido, o fenômeno do
lulismo. Se durante a década de 1980, das mais ricas da história das lutas sociais no
Brasil, Lula soube se manter colado aos interesses majoritários do mundo do
trabalho, na década seguinte, marcada pela desertificação neoliberal, Lula
consolidou sua maior mutação. Que lhe custou a vértebra. E, sem ela, restou o
lulismo. Estava concluída sua fase primeva. Gestava-se, então, o novo ‘messias’ da
política, dentro e fora do PT. Escolhido para desafiar o neoliberalismo, tornou-se o
seu mais competente paladino” (Ricardo Antunes, www.enlace.com.br, 20/02/06).
122
De acordo com Antunes, o prezo de Lula no culto à personalidade e à condição de
líder contribuíram para fazer proliferar a associação de sua imagem à de um fenômeno.
Passou por uma mutação, não mais se mantendo colado aos interesses trabalhistas, mas
sendo escolhido para desafiar o neoliberalismo, chegando a ser considerado por Antunes
com o novo ‘messias’ da política, dentro e fora do PT. Não o ‘messias’ salvador dos
pobres, presidente de sindicato, mobilizador de greves, político de esquerda, ou algo
parecido, pois, segundo Ricardo, essa fase primitiva passara (Estava concluída sua fase
primeva); agora é a vez do homem responsável pela economia de um país, do presidente da
República, e, por que não?, do neoliberal. É como se tivesse passado a fase do “oba-oba”,
dando lugar à fase “séria”.
Credo, doença, mal, loucura, psicopatia, carisma, messias... Eis alguns termos
associados ao fenômeno do lulismo. Entre as críticas positivas e negativas, estas foram as
predominantes na última corrida eleitoral. Oposição e mídia atacavam o mal,
desqualificando-o para bani-lo, tomando como uma das estratégias o emprego do sufixo -
ismo. De “relativo a Lula”, lulismo era, na verdade, associado a tudo o que fosse ruim e
nocivo à sociedade.
Como fizemos com as ocorrências formadas a partir do sufixo –eiro, apresentamos,
a seguir, o quadro das ocorrências discutidas nessa seção, mostrando suas conotações
positivas e negativas. As primeiras são lidas de forma prescritiva; as últimas consideram as
contribuições de uma teoria discursiva:
Ocorrências Significação positiva Significação negativa
1. assistencialismo Ato ou efeito de
ajudar.
Ajudar as classes mais pobres, de forma
imediatista, com fins eleitoreiros, a troco de
obediência e votos.
2. continuísmo Ato ou efeito de dar
continuidade.
Dar continuidade a um governo que já está
ruim.
3. denuncismo Ato ou efeito de
denunciar.
Fazer denúncias sem basear-se em provas
concretas, com o objetivo de obter
vantagens políticas.
123
4. desenvolvimen-
tismo
Ato ou efeito de
desenvolver-ser;
crescer.
Desenvolver-se com a participação ativa do
Estado baseado numa política de resultados,
com o intuito de melhorar a imagem do
governo.
5. golpismo Ato ou efeito de dar
golpes.
Utilizar manobras políticas inesperadas para
denegrir a imagem do adversário.
6. politicismo Ato ou efeito de fazer
política.
Fazer uma política de conveniência,
atendendo aos interesses da burguesia.
7. voluntarismo Ato ou efeito de agir
espontaneamente sem
nada cobrar por isso.
Ajudar com o interesse de receber algo em
troca.
8. clientelismo Maneira de pensar da
freguesia, clientela.
Maneira de pensar de eleitores, prefeituras e
empresas, que concebem o voto como troca
de favores e vantagens, procurando, assim,
lucrar com a “venda” de seu apoio eleitoral.
9. esquerdismo Ideologia de partidos
socialistas; de
esquerda.
Ideologia de partidos antes incorruptíveis
que, não resistindo às tentações que o poder
lhes proporciona, se corromperam em troca
de benefícios pessoais.
10. peleguismo Maneira de pensar
dos pelegos.
Ideologia de um grupo de pessoas que age
em função de prejudicar os trabalhadores no
interior de um sindicato.
11. petismo Ideologia do PT. Ideologia de um partido (outrora impoluto)
envolvido em escândalos de corrupção.
12. populismo Maneira de pensar
relativa à um povo.
Maneira de pensar que não reflete as
vontades do povo, mas a do governante,
que, por sua vez, tenta governar por meio de
uma ditadura.
13. juscelinismo Relativo a Juscelino. Refere-se ao que há de ruim na ideologia de
Juscelino Kubitschek, ex-presidente do
Brasil.
124
14. alckimismo Relativo a Alckmin. Refere-se ao que há de ruim na ideologia de
Geraldo Alckmin, candidato à presidência
da República no pleito de 2006.
15. helenismo Relativo à Helena. Refere-se ao que há de ruim na ideologia de
Heloísa Helena, candidata à presidência da
República no pleito de 2006.
16. cristovismo Relativo a Cristovam. Refere-se ao que há de ruim na ideologia de
Cristovam Buarque, candidato à presidência
da República no pleito de 2006.
17. stalinismo Relativo a Stalin. Refere-se ao que há de ruim na ideologia de
Joseph Stalin, ex-presidente da URSS..
18. lulismo Relativo a Lula. Refere-se ao que há de ruim na ideologia de
Lula, candidato à presidência da República
no pleito de 2006 e atual presidente do
Brasil.
3.5 – Depois do batimento descrição, o da interpretação...
Considerando as condições de produção segundo as quais os enunciados foram
produzidos e a formação discursiva na qual os enunciadores se inscrevem, podemos afirmar
que as formas lingüísticas analisadas deixaram suas significações positivas, baseadas nas
normas gramaticais, e passaram a assumir significações negativas. Ao serem empregadas
no contexto político, no confronto entre discursos políticos da situação e da oposição,
surgem para “mascarar” os reais efeitos de sentido pretendidos. Quando, por exemplo, um
político da base do governo é chamado de mensaleiro por outro da oposição, este pretende
que se conceba os acordos escusos daquele como uma atividade corriqueira realizada por
um profissional no assunto. Por outro lado, quando o político ligado ao governo enuncia
que isso é denuncismo, encontra na própria palavra uma forma de auto-defesa, já que o
denuncismo não se baseia em provas contundentes, desmerecendo, portanto, credibilidade.
Somos conduzidos, então, com essas afirmações, a Charaudeau (2006, p. 23), para quem a
palavra política é cheia de armadilhas.
125
Os efeitos de sentido provocados pelas ocorrências em questão, em seus contextos
específicos de realização, não coincidem com seu sentido positivo, não são óbvios,
transparentes... Assumem outro sentido, não-coincidente. Porém, gostaríamos de deixar
claro que essas formas não-coincidentes não derivam da intencionalidade, mas de uma
“negociação obrigatória” do enunciador com as não-coincidências (ou heterogeneidades
enunciativas) que atravessam seu dizer.
Os discursos apresentam as realizações mais diversas dessa negociação, manifestando o tipo de imagem que eles produzem, em si mesmos, do jogo de não-coincidências, de ‘posições enunciativas’ próprias a sujeitos particulares, a tipos de discurso, a gêneros (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 21).
Ao transferirem um outro sentido (não óbvio) aos termos empregados, tanto os
políticos da oposição quanto os da situação antecipam o efeito de sentido pretendido por
meio da própria forma lingüística. É o que Authier-Revuz chama de configuração
enunciativa da reflexividade metaenunciativa – a modalização autonímica da enunciação
atravessada por sua auto-representação opacificante. O dizer se representa de forma
reflexiva e opaca, tendo-se um sujeito que retorna ao discurso para negá-lo. Desta forma,
quando as ocorrências apontadas são enunciadas em seus contextos específicos, ao mesmo
tempo em que são enunciadas são também comentadas através de um dizer que se volta
para si mesmo. Trata-se do fenômeno da metaenunciação, que, segundo Authier-Revuz
(1998, p. 166) vem a ser o efeito de retorno reflexivo pelo qual uma enunciação ao se
produzir se reveste de um comentário sobre ela mesma. Esse comentário é que vai
manifestar o esforço em tratar dos outros sentidos que existem no contexto. As ocorrências
analisadas são, portanto, estritamente reflexivas, já que num único ato de enunciação há um
dizer seguido de um comentário desse dizer.
Neste ‘retorno do dizer’ (...), o discurso sobre a prática da linguagem emerge dessa prática, nos pontos do dizer que, para se completarem, requerem ‘o a mais’ de um comentário: nesses pontos se conjugam os dois planos da prática e da representação, como parte dessa prática, sendo a dimensão imaginária das representações do dizer parte estritamente integrante, portanto, do fato de dizer (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 181).
126
Authier-Revuz, ao tratar da oposição entre explícito vs. interpretativo, tendo como
objeto o discurso relatado, aponta três níveis:
formas marcadas, unívocas;
formas marcadas que exigem um trabalho interpretativo;
formas puramente interpretativas.
Gostaríamos de destacar o segundo nível, o qual é representado pelas aspas,
itálicos, entonação de modalização autonímica que apresentam uma marca, mas uma
marca que deve ser interpretada41 como referência a um outro discurso (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 143).
Transpondo a fala da autora ao nosso objeto, acreditamos que os sufixos permitem
que as ocorrências analisadas possam funcionar como formas marcadas que exigem um
trabalho interpretativo, já que por meio delas há um dizer não óbvio comentado pela
própria forma em uso, exigindo, portanto, um trabalho interpretativo. No comentário,
pudemos conferir que a forma usada permite uma outra leitura, deixando seu sentido literal
e prescritivo em função daquele que a situação discursiva exige. O sufixo é a própria marca
de heterogeneidade constitutiva de outro efeito de sentido.
O trabalho interpretativo parte da forma (os sufixos -eiro e -ismo) com função
ideológica. Os sufixos representam, pois, as glosas metaenunciativas de que fala Authier-
Revuz. Manifestam-se na superfície do dizer, e, como bem lembra essa autora, não são da
ordem do ornamento. Essas formas prendem os dizeres no jogo dispersante das não-
coincidências, sendo caracterizadas pela autora como jogos sérios fundamentais.
Com base no exposto, podemos concluir que os sufixos -eiro e -ismo funcionam,
nas ocorrências analisadas, como modalizadores autonímicos. E mais: além de
caracterizarem em seus contextos enunciativos, de forma simultânea, um uso e um
comentário sobre o mesmo, o fazem para desqualificar o discurso do outro. São, portanto,
modalizadores autonímicos derrisórios.
Para Baronas (2004, p. 156), a temática da derrisão
centra-se em questionar por meio da sátira a ordem estabelecida e/ ou os valores largamente cristalizados em nossa sociedade. Tal questionamento tem como alvo preferido as mais diferentes autoridades sociais e se impõe a
41 Grifo da autora.
127
ler sob diferentes facetas: nas charges, nas caricaturas, nos pastiches, nas piadas, nos jogos de palavras, etc.
Postulamos, assim, com base nos exemplos arrolados, que a sufixação se constitui
em mais uma das facetas para se ler a derrisão, enquanto uma estratégia que visa
descaracterizar o discurso do oponente, devendo, portanto, ser vista, a partir do percurso
que fizemos, como constituinte do discurso político.
Quando os políticos empregam uma palavra ligada a um dos sufixos em questão, o
fazem inscritos em uma determinada formação discursiva, para “mascarar” os reais efeitos
de sentido pretendidos. Empregar os termos já existentes revelaria o óbvio (continuidade,
golpe, assistência...). Então, eles formam novas palavras ou ressignificam as já existentes
(continuísmo, golpismo, assistencialismo...). Dessa forma, eles “dizem sem dizer”, não se
comprometendo com as não-coincidências que constituem tal dizer. Escondem-se, afinal,
na significação positiva que as palavras trazem. No entanto, é a significação negativa que
faz sentido; é esta que eles querem que predomine, já que é a partir desta que o oponente é
desqualificado.
Acreditamos que as condições de produção – o cenário político brasileiro – e as
formações discursivas dos sujeitos enunciadores – de oposição/ de situação – determinam o
uso da modalização autonímica derrisória, sendo esta não intencional do sujeito enunciador,
mas constitutiva do discurso político. Desta forma, inconsciente e ideologia se materializam
nas formas com -ismo e -eiro para corroborar a afirmação de que não há discurso sem
sujeito nem sujeito sem ideologia.
128
4. UM POSSÍVEL OLHAR DIDÁTICO
Este trabalho não teria para nós a mesma importância se a reflexão que fizemos
acerca da sufixação no contexto lingüístico atual não fosse relacionada ao seu ensino.
Apesar de consideráveis mudanças, este ainda não privilegia uma concepção discursiva de
língua/ linguagem, contrariando a “sugestão” dos parâmetros de ensino atuais, legitimados
pelos PCN. Segundo tais parâmetros, toda educação comprometida com o exercício da
cidadania precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência
discursiva (PCN, 1998, p. 23).
E ainda:
Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente,ampliar sua competência discursiva (PCN, 1998, p. 27).
A gramática, tratada na perspectiva discursiva, serve de apoio para discussões de
aspectos da língua que o professor considerar necessários no decorrer do processo de
ensino-aprendizagem. A preocupação principal não deve ser, pois, se a gramática deve ou
não ser ensinada, mas o que, para que e como ensiná-la.
O que deve ser ensinado não responde às imposições de organização clássica de conteúdos na gramática escolar, mas aos aspectos que precisam ser tematizados em função das necessidades apresentadas pelos alunos nas atividades de produção, leitura e escuta de textos (PCN, 1998, p. 29).
A realidade aponta, porém, que o trabalho com a língua em grande parte das escolas
brasileiras tem a gramática normativa como principal material didático para nortear o
ensino de leitura e escrita. Assim, torna-se comum a associação de fatos relacionados à
língua a prescrições. Afunilando a discussão, tendo em vista nosso objeto, é prudente
admitir que a derivação sufixal, hoje, ainda é ensinada como “regem” os compêndios
129
escolares, adotando uma abordagem gramatical/ normativa, descontextualizando-se das
práticas de linguagem. A respeito disso, os PCN apontam a seguinte orientação:
É preciso entender, por um lado, que, ainda que se trate a palavra como unidade, muitas vezes ela é um conjunto de unidades menores (radicais, afixos42, desinências) que concorrem para a constituição do sentido. E, por outro, que, dificilmente, podemos dizer o que uma palavra significa, tomando-a isoladamente: o sentido, em geral, decorre da articulação da palavra com outras na frase e, por vezes, na relação com o exterior lingüístico, em função do contexto situacional (PCN, 1998, p. 84).
Um dos objetivos do nosso trabalho é justamente mostrar que os sufixos, como unidades
menores da palavra também concorrem para a constituição do sentido.
Propomos, então, que as aulas de sufixação passem a ganhar mais sentido com as
contribuições da teoria discursiva. Que os alunos/ leitores possam “enxergar”, por exemplo,
que os sufixos, em determinados contextos, podem ser lidos como modalizadores
autonímicos derrisórios, ou seja, que o enunciador emprega-os e, ao mesmo tempo, faz um
comentário que desqualifica o discurso do outro, antecipando, dessa forma, a interpretação
que seu ouvinte/leitor venha fazer.
Numa perspectiva discursiva, o ensino de gramática (e, especificamente, o dos
sufixos) se efetivaria de forma contextualizada, e não isolada, como na maioria das vezes
acontece. A sufixação poderia ser abordada, por exemplo, nas aulas de leitura de gêneros
variados – charges, piadas, artigos de opinião, etc. As aulas de gramática deixariam de ser
“obsoletas” e se tornariam, certamente, mais interessantes, isso porque os alunos estariam
lidando com enunciados concretos, realizados em situações específicas de uso da língua, e
não com exemplos prontos, retirados de gramáticas normativas e isolados de qualquer
contexto. Dessa forma, pode-se, na nossa escola, “construir estratégias para que o ler seja
algo mais do que viajar a bordo do sentido verbal único” (BARONAS, 2004, p. 159).
Apresentaremos, a seguir, um exemplo que aponta a possibilidade de se trabalhar
com os sufixos em sala de aula, explorando sua discursividade.
A seqüência didática foi elaborada para ser aplicada a turmas do primeiro ano do
ensino médio, em consonância ao conteúdo gramatical “Estrutura e formação das
42 Grifo nosso.
130
palavras”43, exigido para a turma referida. Diferentemente da maioria dos livros didáticos,
que seguem a linha das gramáticas normativas, propomos um trabalho a partir do texto
(tanto escrito quanto oral), o que atenderia , inclusive, à proposta dos PCN.
Os textos selecionados foram:
“Entre o lulismo e o petismo”, publicado no dia 25 de abril de 2007, pelo jornal A
Gazeta (do estado do Mato Grosso), em seu editorial;
alguns dos enunciados analisados nessa dissertação;
“Lulismo”, um vídeo presente no site www.youtube.com.
Tais escolhas se deram por acreditarmos na necessidade cada vez maior de a escola
utilizar gêneros da mídia tanto para formar leitores críticos quanto pelo fato de que esses
gêneros despertam mais o interesse dos alunos, como é o caso do site supracitado, cujo
público alvo visitante é a juventude. Há também a oportunidade de incentivo à leitura do
jornal pelos alunos.
Segundo Petroni (2007, p.86),
Um dos pilares da proposta de seqüências didáticas é o contato com a diversidade de textos socialmente produzidos (...) sobre o tópico da discussão. (...). Essa pequena variedade de material permite o contato não apenas com diferentes objetos lingüísticos, portanto, com diferentes modos de dizer, mas também com material alternativo ao livro didático (...).
A seqüência didática iniciar-se-ia, pois, com a apresentação do texto “Entre o
lulismo e o petismo”, promovendo, inevitavelmente, uma discussão acerca da política
nacional. Em seguida, conduziríamos uma conversa a respeito da estrutura, formação e
ressignificação das palavras, passando, adiante, a enfatizar a derivação sufixal. Num
terceiro momento, associaríamos o discurso político ao emprego constante da derivação
sufixal, em específico, do emprego do sufixo –ismo44. Poderíamos, então, mostrar que os
sufixos representam marcas de heterogeneidade mostrada e derrisão e, também, que o texto
apreciado dialoga com outros.
No texto escolhido para o primeiro momento da seqüência, lulismo e petismo são
tratados como correntes. Bem diferente das características recebidas no período eleitoral,
43 Ao conteúdo gramatical “Estrutura e formação das palavras”, acrescentaríamos a ressignificação das palavras já existentes no léxico. 44 Os enunciados utilizados para ilustração serão alguns dos analisados nessa dissertação.
131
no qual o primeiro termo fora associado a credo, doença, mal, psicopatia, carisma, entre
outros. É como se a própria imprensa agisse como num jogo de interesses: o que antes era
uma doença agora é uma corrente. Acreditamos que lulismo e petismo estejam sendo
tratados como correntes para corroborar a idéia de que os efeitos de sentido das palavras
dependem das condições de produção nas quais foram produzidas. Os males não
necessários, agora fazem parte da sociedade como elementos sempre presentes que têm de
ser digeridos, como se representassem a figura do presidente. Isso mostra que, de
necessidades momentâneas, as palavras passaram a fazer parte do vocabulário das pessoas
(jornalistas, em específico), porém, com efeitos de sentido únicos a cada nova enunciação.
Explorados os textos escritos, os alunos assistiriam ao vídeo supracitado
(“Lulismo”). Neste, ao invés de assistirmos a alguma notícia ou algo relacionado à postura
política e/ ou à ideologia do presidente, são apresentadas gafes por ele cometidas, em sua
maioria, relacionadas ao emprego da norma culta, à maneira de falar.Vemos, portanto, que
o vídeo “Lulismo” apresenta o que há de ruim no falar de Lula, confirmando a idéia de que
o sufixo confere ao termo um sentido negativo/ pejorativo.
Finalmente, os alunos seriam submetidos à atividade de pesquisa: cada um se
encarregaria de procurar ocorrências formadas a partir dos sufixos estudados, escolhendo
um enunciado e fazendo uma interpretação escrita do mesmo (No mínimo um, e, no
máximo, três enunciados). A seqüência didática se concluiria com a apresentação oral das
análises e exposição dos enunciados num mural denominado “Sufixos: marcas de
heterogeneidade e derrisão”, contemplando, portanto, a produção tanto do gênero escrito
quanto do oral.
Vejamos de forma esquemática, como se daria, portanto, a seqüência didática:
Objetivo: mostrar que os sufixos funcionam como marcas de heterogeneidade
(mostrada) e derrisão.
Duração: 10 aulas de 45 minutos.
Passos:
1º: Leitura de texto jornalístico e discussão sobre a política nacional.
Material de apoio – Texto: “Entre o lulismo e o petismo.
2º: Apresentação do conteúdo “Estrutura, formação e ressignificação das palavras”.
132
3º: Associação do discurso político ao emprego da derivação sufixal para a formação de
novas palavras e ressignificação das já existentes. Em específico, do sufixo -ismo.
Material de apoio: alguns dos enunciados analisados nessa dissertação.
4º: Mostrar o dialogismo existente entre os textos, a heterogeneidade e a derrisão
características dos sufixos.
5º: Assistir ao vídeo.
Material de apoio – Vídeo: “Lulismo”.
6º: Propor aos alunos a procura por ocorrências, no discurso político, formadas a partir dos
sufixos estudados, seguida da interpretação escrita.
Material de apoio: textos da mídia em geral.
7º: Apresentação oral das análises e exposição em mural dos enunciados interpretados.
Concluímos, por ora, que trocar o ensino prescritivo por um que privilegie a
abordagem discursiva, pode ser um dos caminhos para que formemos alunos/ cidadãos
mais críticos e, conseqüentemente, mais interessados à apreensão dos conteúdos.
133
(IN) CONCLUSÕES
(In) conclusões? Sim. Fica difícil pensar em “conclusão” quando se está filiado a
uma teoria que vê o “outro” no “mesmo”, que concebe o sentido como possível de ser
sempre outro. A leitura das ocorrências aqui analisadas pode ser, portanto, “outra”, abrindo
um leque de interpretações àquilo que parece estar concluso.
Propusemo-nos a mostrar como a ideologia se materializa na língua. Para isso,
resolvemos investigar o processo de formação e ressignificação de palavras a partir dos
sufixos -eiro e -ismo no discurso político.
O período recortado para seleção do corpus envolve a campanha eleitoral para o
cargo de presidente da República (entre outros), sendo um momento de desqualificação do
discurso do outro. Um dos recursos foi materializar tal desqualificação através do emprego
de palavras com tais sufixos. Descaracterizar o discurso do então presidente da República
(Luiz Inácio Lula da Silva) foi o maior desafio para a oposição. E, por outro lado, se
defender das acusações foi também um desafio para a situação.
Num jogo de interesses, em meio a escândalos e agressões verbais infindáveis, as
palavras cumpriram a função de “mascarar” a ideologia dos sujeitos enunciadores,
“dizendo” o que não podia ser dito, tentando deixar óbvio e transparente aquilo que, na
verdade, é opaco.
Acreditamos que o tratamento metodológico aplicado permitiu dar mostras ao nosso
leitor de que as escolhas lexicais dos políticos não são coincidentes, mas constitutivas da
formação discursiva na qual se encontram. Empregam, pois, palavras com os sufixos -eiro
e –ismo de modo que seus sentidos se caracterizem como negativos e/ ou pejorativos, com
o intuito de, a partir da formação discursiva na qual estão inscritos, polemizar, desqualificar
o discurso do político oponente. Tais formações ou ressignificações antecipam os efeitos de
sentido pretendidos, sendo comentadas ao mesmo tempo em que empregadas.
Podemos, por fim, fundamentados na análise apresentada, conceber os sufixos como
marcas de heterogeneidade e derrisão, podendo denominá-los de modalizadores
autonímicos derrisórios.
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