o primeiro movimento da sonata para violoncelo solo op. 8

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80 PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - n. 10, 102 p., jul - dez, 2004. Recebido em: 12/04/2004 - Aprovado em: 02/10/2004. O Primeiro Movimento da Sonata para Violoncelo Solo Op. 8 de Zoltán Kodály: aspectos analíticos e suas implicações interpretativas Felipe Avellar de Aquino (UFPB) [email protected] www.felipecello.homestead.com Resumo: Análise da forma e estruturas organizacionais do Primeiro Movimento da Sonata para Violoncelo Solo Op.8, de Zoltán Kodály, em que são examinadas as inflexões modais, o uso da escala pentatônica como elemento estrutural, além de determinados aspectos do folclore húngaro que influenciaram a linguagem musical do compositor. Pretende-se demonstrar como o Kodály faz uso de elementos folclóricos dentro da estrutura da forma sonata e como este manipula as expectativas do ouvinte a partir de conceitos da Teoria das Emoções (Theory of Emotions) de Leonard Meyer; do tempo forte estrutural (structural downbeat) e acento estrutural de Epstein; e de moldura de E. T. Cone. Do ponto de vista de performance, discute-se o uso de rubato e flexibilidade rítmica, derivados do caráter improvisatório de elementos húngaros na obra. Palavras-chave: Kodály, sonata, violoncelo, teoria das emoções, tempo forte estrutural. The First Movement of Zoltan Kodály’s Sonata for Solo Cello Op. 8: analytical aspects and its performance implications Abstract: Structural and formal analysis of the First Movement of Kodály’s Solo Cello Sonata Op.8, focused on the modal inflections, usage of the pentatonic scale as structural element and other aspects of the Hungarian folk music that influenced the composer’s musical language. It aims at investigating how Kodály employs the sonata form in a work rooted on folk material and how he deals with the listener’s expectations, departing from concepts taken from Meyer’s theory of emotions, Epstein’s concept of structural downbeat and structural accent, and E. T. Cone’s concept of frame. Regarding interpretation, it includes a discussion about the use of rubato and rhythmic flexibility derived from the improvisatory character of Hungarian elements present in the piece. Keywords: Kodály, sonata, cello, theory of emotions, structural downbeat. 1. Introdução Em 1914 o mundo vivenciava um período de grandes turbulências devido ao estouro da Primeira Guerra Mundial. A Hungria, terra natal de Zoltán Kodály, foi um dos principais focos do conflito, uma vez que a guerra começou como um evento isolado envolvendo o império Austro-Húngaro e a Sérvia. Tudo iniciou com o assassinato do herdeiro do trono Austro-Húngaro, Arquiduque Francisco Ferdinando, e se transformou em uma guerra mundial envolvendo cerca de trinta e duas nações. Desta forma, o conflito foi nitidamente marcado pelo senso de nacionalismo exacerbado que havia tomado conta da Europa ainda no século XIX. Foi neste ambiente que Kodály compôs, em 1915, uma de suas obras mais significativas: a Sonata para Violoncelo Solo Op. 8. É fato notório que, durante o período de guerra, Kodály não apenas deu continuidade às suas atividades de ensino na Academia de Música, como também prosseguiu com suas expedições de coleta. Ao mesmo tempo, ele intensificou seus trabalhos de estudo e classificação do folclore musical da Hungria (EÖSZE, 1962, p. 21). Desta forma, a Sonata Op. 8 está permeada de elementos que demonstram a preocupação do compositor com a música dos camponeses de seu país.

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AQUINO, Felipe Avellar de.... Sonata para Violoncelo Solo Op. 8 de Zoltán Kodály. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.80-88.PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - n. 10, 102 p., jul - dez, 2004.

Recebido em: 12/04/2004 - Aprovado em: 02/10/2004.

O Primeiro Movimento da Sonata para Violoncelo Solo Op. 8 deZoltán Kodály: aspectos analíticos e suas implicações interpretativas

Felipe Avellar de Aquino (UFPB)[email protected]

www.felipecello.homestead.com

Resumo: Análise da forma e estruturas organizacionais do Primeiro Movimento da Sonata para Violoncelo SoloOp.8, de Zoltán Kodály, em que são examinadas as inflexões modais, o uso da escala pentatônica como elementoestrutural, além de determinados aspectos do folclore húngaro que influenciaram a linguagem musical do compositor.Pretende-se demonstrar como o Kodály faz uso de elementos folclóricos dentro da estrutura da forma sonata ecomo este manipula as expectativas do ouvinte a partir de conceitos da Teoria das Emoções (Theory of Emotions)de Leonard Meyer; do tempo forte estrutural (structural downbeat) e acento estrutural de Epstein; e de moldura deE. T. Cone. Do ponto de vista de performance, discute-se o uso de rubato e flexibilidade rítmica, derivados docaráter improvisatório de elementos húngaros na obra.Palavras-chave: Kodály, sonata, violoncelo, teoria das emoções, tempo forte estrutural.

The First Movement of Zoltan Kodály’s Sonata for Solo Cello Op. 8:analytical aspects and its performance implications

Abstract: Structural and formal analysis of the First Movement of Kodály’s Solo Cello Sonata Op.8, focused onthe modal inflections, usage of the pentatonic scale as structural element and other aspects of the Hungarian folkmusic that influenced the composer’s musical language. It aims at investigating how Kodály employs the sonataform in a work rooted on folk material and how he deals with the listener’s expectations, departing from conceptstaken from Meyer’s theory of emotions, Epstein’s concept of structural downbeat and structural accent, and E. T.Cone’s concept of frame. Regarding interpretation, it includes a discussion about the use of rubato and rhythmicflexibility derived from the improvisatory character of Hungarian elements present in the piece.Keywords: Kodály, sonata, cello, theory of emotions, structural downbeat.

1. IntroduçãoEm 1914 o mundo vivenciava um período de grandes turbulências devido ao estouro da PrimeiraGuerra Mundial. A Hungria, terra natal de Zoltán Kodály, foi um dos principais focos do conflito,uma vez que a guerra começou como um evento isolado envolvendo o império Austro-Húngaroe a Sérvia. Tudo iniciou com o assassinato do herdeiro do trono Austro-Húngaro, ArquiduqueFrancisco Ferdinando, e se transformou em uma guerra mundial envolvendo cerca de trinta eduas nações. Desta forma, o conflito foi nitidamente marcado pelo senso de nacionalismoexacerbado que havia tomado conta da Europa ainda no século XIX.

Foi neste ambiente que Kodály compôs, em 1915, uma de suas obras mais significativas: aSonata para Violoncelo Solo Op. 8. É fato notório que, durante o período de guerra, Kodálynão apenas deu continuidade às suas atividades de ensino na Academia de Música, comotambém prosseguiu com suas expedições de coleta. Ao mesmo tempo, ele intensificou seustrabalhos de estudo e classificação do folclore musical da Hungria (EÖSZE, 1962, p. 21). Destaforma, a Sonata Op. 8 está permeada de elementos que demonstram a preocupação docompositor com a música dos camponeses de seu país.

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Esta obra é, certamente, a contribuição mais importante para o repertório do violoncelo solodesde as seis Suítes de J.S. Bach, escritas por volta de 1720. De fato, existe uma grandelacuna nos quase dois séculos que separam estas composições, uma vez que apenas obrasde menor envergadura, muitas delas de caráter pedagógico, foram escritas ao longo desteperíodo. Na Sonata Op.8, Kodály, ao contrário de outros que escreveram obras do mesmogênero, expressa idéias completamente novas sem, no entanto, ser influenciado pela obra deBach. É uma composição de grandes proporções, com duração aproximada de trinta minutos,na qual a técnica do violoncelo é explorada nos seus limites, sem, no entanto, se transformarem mera exibição de virtuosismo. Podemos ir ainda mais adiante e classificá-la como uma dasobras mais importantes do repertório violoncelístico. Na opinião deste autor, esta monumentalsonata é um dos pilares da literatura para violoncelo solo, ao lado das seis Suítes de J.S. Bache das três Suítes de B. Britten.

Dividida em três movimentos (Allegro maestoso ma appassionato, Adagio con grand’espressionee Allegro molto vivace), a peça requer afinação não usual do instrumento, em scordatura,revivendo uma prática instrumental dos séculos XVI e XVII. Neste caso, as cordas graves sãoafinadas meio tom abaixo, Si e Fá# respectivamente, o que altera as características do violoncelo,resultando em uma sonoridade de caráter melancólico e misterioso. Para facilitar a leitura, ascordatura é indicada no início da Sonata. Desta forma, as notas executadas nas cordasgraves estão grafadas como se o instrumento estivesse com sua afinação habitual (Ex.1).

a)

b)

c)

Ex.1 - (a): Scordatura, (b) e (c): diferenças entre a parte escrita e o som real na Sonata Op.8 de Kodály

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Essa afinação incomum faz com que as cordas do violoncelo formem um acorde de Si menorcom sétima (Si - Fá# - Ré - Lá), o que está diretamente relacionado ao centro harmônico daobra (Si menor). Além disso, Kodály expande a extensão do violoncelo para cerca de cincooitavas, o que é muito pouco explorado dentro da literatura violoncelística.

2. Aspectos AnalíticosEsta obra caracteriza-se pela coexistência de diferentes escalas empregadas no decorrer doPrimeiro Movimento. Além da escala diatônica, Kodály emprega a chamada escala cigana (Dó– Ré – Mib – Fá# – Sol – Láb – Si – Dó) - que contém dois intervalos de segunda aumentada –e a escala pentatônica, além de várias escalas modais como eólio, frígio e lócrio. Essa constantealternância de modos e escalas, ou seja, de coleções de notas (pitch collections), é uma dasrazões da completa ausência de armadura.

Outro elemento característico da obra é o deslocamento métrico, através do qual o posicionamentodo tempo forte dentro do compasso cria a sensação de constante alternância de sua fórmula.Assim, embora escrito em 3/4, o início do movimento, até o compasso 31, é marcado pelaambigüidade métrica causada pelo posicionamento dos tempos fortes em cada compasso, quenão chega a estabelecer um padrão recorrente. Esta ambigüidade é causada pela presença deacordes de quatro vozes que funcionam, efetivamente, como primeiro tempo destes supostoscompassos. Além disso, Kodály reforça, propositadamente, esta característica com a colocaçãode acentos e sinais de sforzati em posições distintas dentro de cada compasso. Por conseguinte,o deslocamento métrico acaba criando um senso de tempo forte em diferentes partes do compasso,como no segundo ou terceiro tempo. De fato, estes acordes funcionam como acentos estruturais,como discutido por EPSTEIN (1995, p.23-26). Assim, estes não apenas implicam em cruzamentoda métrica (cross-meter), como também nos levam a ouvi-los como o tempo forte do compasso.O início do movimento soa, por exemplo, como se estivesse grafado com a seqüência decompassos 4/4 seguido por 3/4, 2/4, 4/4 e assim por diante, nos quais as colcheias acentuadasfuncionam como anacruses destes compassos implícitos. Mesmo quando alcançamos umcompasso 3/4 estável, ou seja, cujo primeiro tempo atue realmente como tempo forte do compasso,não é constituída uma seqüência padrão na qual a métrica possa ser estabelecida. Este casoencaixa-se perfeitamente nas teorias de MEYER (1956, p.66), na qual a excepcionalidade chegaa ser tão proeminente que vem a tornar-se o normativo. Conseqüentemente, a ambigüidademétrica é um dos elementos responsáveis pelo forte caráter improvisatório imbuído na obra.

2.1 - ExposiçãoO movimento inicia-se com a apresentação de dois acordes de Si menor, que são repetidosenfaticamente no decorrer de todo o primeiro grupo temático. Além disso, o Tema I é inteiramenteconstruído sobre o modo eólio em Si. Nos compassos 1-14 as frases aparecem continuamentesobrepostas, sem uma clara definição de períodos. Esta característica é evidente até a cadênciaem Fá# (V/Si) no primeiro tempo do compasso 14. Em compensação, Fá# é intensamenteenfatizado através de uma sucessão de cadências, por sete compassos, até a transição quecomeça no segundo tempo do compasso 20. Curiosamente, esta transição é baseada no modofrígio em Fá# e, do compasso 25-31, na escala cigana, o que inicialmente sugere que o segundogrupo temático seria apresentado em Fá# (V/Si).1 No entanto, contrariando as expectativas, estatransição surpreendentemente conduz à uma forte cadência em Si, no compasso 31, e ao iníciodo segundo grupo temático, centralizado em Sol menor (compasso 32).

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Desde o início pode-se claramente destacar alguns motivos, com suas respectivas variantes,que formam as células melódicas básicas que estruturam o movimento. Assim, o Motivo A,que aparece no tempo forte do compasso 4 (Ex.2), é baseado no intervalo de segunda maiordescendente seguido por uma quarta justa, cuja estrutura rítmica é formada por duassemicolcheias seguidas por uma colcheia pontuada. Os intervalos deste motivo formam oconjunto de notas (027), que é um subconjunto da escala pentatônica (02479).

Ex.2: Motivo A do Primeiro Movimento da Sonata Op. 8 de Zoltán Kodály

No segundo compasso, é apresentada uma variante deste mesmo motivo em aumentaçãorítmica, baseada no conjunto de notas (025), que também é um subconjunto da escalapentatônica, que denominamos Motivo A’ (Ex.3).

Ex.3: Motivo A’ do Primeiro Movimento da Sonata Op. 8 de Zoltán Kodály

O próximo motivo importante, denominado Motivo B (024), que aparece no terceiro compassoe está imbricado com o motivo A, é baseado em segundas maiores (Ex.4).

Ex.4: Motivo B do Primeiro Movimento da Sonata Op. 8 de Zoltán Kodály

Kodály acumula, intencionalmente, muita tensão em toda a seção inicial, evitando uma cadênciaconclusiva em Si, que só vem a acontecer no primeiro tempo do compasso 31, antes daapresentação do Tema II. Segundo MEYER (1956, p.28), em sua teoria das emoções, “quantomaior a tensão ou suspense criados, maior é o relaxamento emocional quando de sua resolução”.Conseqüentemente, Kodály é capaz de criar um poderoso ponto de repouso no compasso 31.

1 De acordo com o Harvard Concise Dictionary of Music, a escala cigana contém duas segundas aumentadas,estruturada da seguinte forma: Dó –Ré – Mib – Fá# - Sol – Láb – Si – Dó.

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Uma vez que este é o único momento no qual encontramos a combinação de um ponto dechegada relevante – de caráter conclusivo e em tempo forte – com o centro harmônico dapeça, podemos denominar este evento como o tempo forte estrutural do movimento (structuraldownbeat).2 Isto nos faz visualizar tudo o que o precede como um grande gesto anacrústico.

Outro aspecto interessante desta seção inicial diz respeito à transição (compassos 20-31), queteoricamente deveria mover de Si para o centro harmônico do segundo grupo temático, quecomeça em Sol menor. Podemos, desta forma, relacioná-la com o conceito elaborado porMeyer, mais precisamente com sua definição da Teoria das Emoções, na qual “emoção oureação são criadas quando uma tendência a uma resposta é evitada ou inibida” (MEYER,1956, p.14). Portanto, ao posicionar o tempo forte estrutural em Si, precedendo imediatamentea apresentação do Tema II, o compositor procura manipular as expectativas do ouvinte, inibindoa tendência esperada.

O segundo grupo temático inicia em Sol menor (Tema IIa, compassos 32-43; Tema IIb,compassos 43-70) e possui caráter sério e triste. Além disso, este é metricamente mais lento,em contraste com o primeiro grupo. Este tema possui, na verdade, o mesmo caráter de umacanção de lamento húngaro, que contém figuras lentas e estilo parlando.3 De acordo comKODÁLY (1971, p.87), “o lamento é um puro recitativo, incluindo repetições irregulares defrases melódicas, sem ritmo, exceto o ritmo verbal, e sem definição clara de barras de compasso”.Além disso, os vagarosos lamentos são geralmente ricos em ornamentações, como demonstradono exemplo abaixo (Ex.5).

Ex.5: Arquétipo de lamento húngaro coletado por KODÁLY (1970, p.229).

No caso do segundo grupo temático, os ornamentos dos compassos 35 e 37 têm ainda umoutro papel importante, uma vez que se transformam nos arpejos dos compassos 40 e 41.Estes também formam a segunda voz que é adicionada ao compasso 44, após a cadência emSib (Tema IIb). O Ex.6a mostra uma figuração rítmica sincopada comumente encontrada namúsica folclórica húngara. Coletada por Kodály (Ex.6a), aparece nesta voz adicional como oMotivo C (Ex.6b).

2 O conceito de Tempo Forte Estrutural (Structural Downbeat) foi formulado inicialmente CONE (1968, p.23-25)e aprofundado por EPSTEIN (1995, p. 38-40).

3 O segundo movimento desta Sonata, Adagio com grand’espressione, da mesma forma, explora extensivamenteo caráter da canção de lamento.

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Ex.6a: Figuração rítmica sincopada, característica do folclore húngaro, coletada por Kodály

Ex.6b: Motivo C empregado na Sonata Op.8 de Kodály

O Motivo C é repetido insistentemente durante todo o Tema IIb, como também na codetta(c.70-79). Desta forma, este vem a ser o material mais importante da segunda parte da exposição.É importante notar, entre os compassos 50-53, uma pequena inserção da escala pentatônicaque, neste caso, consiste das notas Mib - Solb - Láb - Sib - Réb (02479).

A exposição conclui com uma codetta, compassos 70-79, construída sobre um longo pedal deMib. Esta está baseada no principal motivo do segundo grupo temático, o que vai levar àseção de desenvolvimento. Desta forma, o desenvolvimento inicia-se com o material extraídodo Tema I, emergindo do pedal de Mib, que vem a ser o centro do modo eólio, empregado noinício do desenvolvimento.

2.2 - DesenvolvimentoO desenvolvimento começa no compasso 80, quase como uma transposição literal doscompassos iniciais para o modo eólio em Mib (c.80-86). Os dois compassos seguintes (c.87-88) são baseados no Motivo A, cujas células estão estruturadas em segundas maiores e quartasjustas. Desta forma, o desenvolvimento continua a explorar extensivamente o Motivo A, queaparece em sua estrutura rítmica original no compasso 96 e, como variação em semicolcheias,nos compassos 97 e 98. Esta passagem ornamental (passage-work, c.96-99) é, na verdade,uma preparação para outra apresentação do Tema I, movendo-se para o modo lócrio no

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compasso 99. Assim, no compasso 100, como no início do desenvolvimento, o primeiro materialtemático é apresentado em forma quase que literal, por cerca de seis compassos, no modolócrio em Sol#. O que se estende, a partir daí, é um novo material oriundo dos compassos 14-19 e dos motivos do primeiro grupo temático. Do compasso 104 ao 112 temos uma série deseqüências, enfatizando os intervalos de quarta e de quinta, que aparecem em diminuiçãorítmica nos compassos 113-115. Esses materiais se alternam com três escalas ascendentesbaseadas nos Motivos A e B.

A retransição (C.135-145), centrada em Fá#, possui caráter de cadenza, baseada no materialmelódico do compasso 12. Este material aparece ornamentado com trinados e é repetido,uma oitava acima, em corda dupla. Os dois últimos compassos da retransição são bastantelivres, elaborados a partir do fragmento melódico do compasso 13, com uso de fermatas e arecomendação, por extenso, do uso de rubato.

2.3 - RecapitulaçãoNesta seção, o Tema I é apresentado em forma condensada, reduzido a apenas cincocompassos. Esta reapresentação está centrada em Dó#, ao contrário da esperada região deSi, e está inteiramente construída sobre acordes maiores paralelos. O Tema I conclui com umacadência em Ré#, que é o centro gravitacional do Tema II na recapitulação. Desta forma,embora os dois temas tenham centros gravitacionais distintos, a transição entre os temas ésimplesmente omitida na recapitulação.

Comparando com a exposição, os compassos 160-161 diferem claramente de suaapresentação equivalente. Neste ponto, o compositor insere uma seqüência de seis trítonos,primeiro em tercinas e depois em semicolcheias, cujo último trítono, Si-Mi#, tem sua resoluçãoretardada do compasso 162 até a cadência no segundo tempo do compasso 163. Isto é, naverdade, outro artifício empregado a fim de se criar mais tensão. Ademais, de acordo com ateoria de MEYER (1956, p.28), a demora em resolver o trítono é capaz de criar um relaxamentoemocional ainda maior no momento de sua resolução, que é a verdadeira intenção docompositor.

Na recapitulação, o segundo grupo temático aparece transposto uma quinta aumentada acimaem relação à sua apresentação inicial na exposição (Ré#). Isto prossegue até alcançarmosa longa seção construída sobre um pedal, que aparece originalmente no compasso 70 daexposição, e que agora forma a codetta sobre o pedal de Si (compasso 190). Apenas nacodetta temos um retorno ao principal centro gravitacional da obra, concluindo o movimentocom os mesmos dois acordes de Si menor apresentados no início. Desta forma, estes acordescircundam o movimento e funcionam, segundo CONE (1968, p.22), como a moldura do mesmo.

Em vez de atuar como a seção na qual os conflitos entre forças opostas são resolvidos, narecapitulação são geradas ainda mais expectativas. Kodály apresenta outros centrosgravitacionais além de Si, e adiciona mais tensão em passagem na qual a resolução dotrítono é postergada. Desta forma, ao término do movimento, quando finalmente alcançamosa região de Si, na codetta e nos dois acordes finais de Si menor, encontramos o ponto detotal relaxamento e resolução do movimento. A estrutura do movimento pode seresquematizada conforme a Tabela 1.

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Tab. 1 : Diagrama do Primeiro Movimento da Sonata Op.8 de Kodály

O quadro acima demonstra a curiosa relação entre os centros gravitacionais de cada seção domovimento, uma vez que todas as notas, exceto aquelas da região de Sol menor, são parte daescala pentatônica (anhemitônica, ou seja, sem semitons) de Si (02479).4 De acordo comKODÁLY (1970, p.228), a presença de pentatonicismo é, juntamente com o aspecto rítmico, aprincipal característica da música folclórica da Hungria. Além do mais, como mencionadopreviamente, alguns dos motivos do Tema I são formados por subconjuntos da escalapentatônica. Não podemos ignorar também a relação de simetria intervalar (terça maior) entreos centros Si – Sol e Ré# – Si, que abrem e concluem o movimento. Portanto, estes elementossão a forma como o compositor alcança equilíbrio e proporção dentro do movimento.

3. Implicações InterpretativasA análise apresentada acima nos indica alguns aspectos que podem ser incorporados àinterpretação desta sonata. A primeira conclusão diz respeito ao conceito de tempo forteestrutural, que nos leva a executar a seção inicial, até o compasso 31, como um grande gestoque culmina no primeiro tempo do referido compasso. Esta seção deve ser executada demaneira contínua, ou seja, o menos seccionada possível. Além disso, o deslocamento métriconão necessita ser enfatizado, uma vez que as cordas duplas, por si só, criarão a acentuaçãoresponsável pela ambigüidade métrica.

Com relação à interpretação do Tema II, é importante salientar que este deve ter o caráter deuma canção de lamento húngaro, sem muito senso de pulso, realçando o caráter deimprovisação. Acima de tudo, o intérprete deve procurar resgatar o estilo parlando no transcorrerde cada frase, enfatizando a acentuação “paroxítona” do Motivo C.

Como o próprio Kodály comenta à respeito da interpretação da música folclórica húngara, “asnotas e grupos ornamentais, mesmo que uma única nota se sobreponha, são sempre executadascom um discreto glissando ou portamento. Isto se aplica mesmo quando algumas notas sedestacarem claramente do grupo” (KODÁLY, 1970, p.229-230). Isto acontece, por exemplo, nocompasso 170, na recapitulação, no qual o compositor adiciona um símbolo de glissando a fimde enfatizar a nota mais aguda. Por conseguinte, devemos estender este conceito a outros

4 Mib e Ré# são tratados enarmonicamente para formar a escala pentatônica Si-Dó#-Ré#-Fá#-Sol#.

Exposição Desenvolvimento Recapitulação

Tema I Tema II Codetta Tema I Tema II Codetta

c.1-31 32-70 70-79 80 100 135 146-151 152-190 190-200

Si (Sol menor) Mib Mib Sol# Fá# Dó# Ré# Si(= Ré#)

Relação de Simetria Relação de Simetria (terça maior) (terça maior)

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pontos do segundo grupo temático, como nos compassos 42-43,158-159,162-163, nos quais ocompositor não incluiu nenhuma indicação.

Analisando a Sonata como um todo, devemos levar em consideração o conceito de molduradiscutido por CONE (1968, p.11-31), que dá senso de unidade e coesão ao movimento. Éimportante notar que os outros dois movimentos estão praticamente interligados, uma vez queo segundo movimento conclui de forma suspensiva em Fá# (V/Si), no qual Si se constitui nocentro harmônico e primeiro acorde do último movimento.

Finalmente, devemos considerar a gravação do violoncelista Janos Starker como uma referênciahistórica dessa obra, não apenas por sua herança húngara, mas, sobretudo, por sua associaçãocom o compositor, que transmitiu detalhadas instruções a respeito da interpretação dessa sonata.Além disso, temos de levar em consideração que a música folclórica é extremamente influenciadapelas inflexões do vernáculo à qual está associada. Desta forma, tanto os ritmos empregadosquanto a fraseologia estão diretamente ligados às inflexões do idioma húngaro.Conseqüentemente, Starker tem a exata noção de contorno fraseológico, como também doemprego dos elementos de agógica e rubato, notadamente nas seções nas quais o caráter delamento está presente. No entanto, não devemos simplesmente tentar imitar as gravaçõesrealizadas por Starker, mas tê-las como referência interpretativa, sobretudo, no que se refere àsinflexões da linguagem húngara.

Referências BibliográficasBREUER, János. A Guide to Kodály. Budapest: Corvina Books, 1990.

CONE, Edward T. Musical Form and Musical Performance. New York and London: W.W. Norton, 1968.

EÖSZE, László. Kodály, Zoltán. In: SADIE, Stanley (Ed.). The New Grove Dictionary of Music and Musicians.London: Macmillan. 1980. v.10, p. 136-145.

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EPSTEIN, David. Shaping Time: Music, the Brain, and Performance. New York: Schirmer, 1995.

KECSKEMÉTI, István. Kodály, The Composer: Brief Studies on the First Half of Kodály’s Oeuvre. Kecskemét:Zoltán Kodály Pedagogical Institute of Music, 1986.

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Felipe Avellar de Aquino é Professor Adjunto do Departamento de Música da Universidade Federalda Paraíba, onde leciona Violoncelo e Música de Câmera, e é Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música. É Doutor em Violoncello Performance and Literature (Eastman School ofMusic, Nova York) e membro da The Honor Society of Phi Kappa Phi e da Society of Pi KappaLambda. Atua como camerista e solista com orquestras no Brasil e Estados Unidos. Além dasatividades de performance, tem desenvolvido pesquisas sobre a técnica e literatura violoncelística.Sua tese de doutorado trata dos elementos brasileiros no Concerto Nº 2 para violoncelo e orquestrade H. Villa-Lobos. Publicou artigos na Revista Opus e na revista britânica The Strad.