o principe com orelhas de burro jose regio
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O PRNCIPE COM ORELHAS DE BURRO
JOS RGIO
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CAPTULO 1
DE ALGUMAS CIRCUNSTNCIAS QUE PRECEDERAM O NASCIMENTO DO
PRNCIPE LEONEL, PRESUMVEL HERI DESTA VERDICA HISTRIA
Era uma vez, no reino de Traslndia, um casal que no tinha filhos. Grande
mgoa, suponho, deve ser no ter filhos um casal que se entende bem e assim
era com esse casal. O marido comeara precocemente a envelhecer,
entretendo o cio a aprender jogos chineses, a colecionar pssaros e armas
brancas, a estudar dialetos ou outras futilidades idnticas e a mulher
tornara-se rabugenta, caprichosa, avarenta, fantica, (tendo sido noutra poca
a prpria imagem da alegria!) como se no tivesse casado e antes do devido
tempo, comeara a envelhecera de inutilidade e amargor.
Esse casal que antes se adorava comeava agora at a no poder tolerar-se
como quase todos os infelizes ligados a uma desgraa comum e odiada
em que cada um via no outro o espelho do seu infortnio. Acrescentemos
que, no presente caso, cada um tendia a ver no outro o prprio causador
desse infortnio. Este mtuo ressentimento ia a ponto de j nem poder o
triste casal escond-lo da corte.
Ora, dito isto, ia-me esquecendo um pormenor importante: Ele era o
prprio rei, ela a prpria rainha de Traslndia e a ausncia de filhos nesse
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matrimnio representava uma desgraa pblica. Assim a mgoa dos dois
mseros esposos acrescentava-se com a inquietao dos reinantes.
A cupidez dos povos vizinhos tambm espreitava o seu trono sem
herdeiros. Tanto mais sendo alguns desses povos governados por parentes
seus que, embora vagos, reivindicavam direitos ao trono. Mas no era s
parentes. Muito havia que forjavam teorias, invocavam necessidades,
aventavam doutrinas, alegavam convenincias, chegavam a idear questes de
ordem metafsica ou religiosa que lhes permitissem, depois de mortos os
pobres reis estreis, cair sobre o reino sem leme. Quem no sabe como
sempre se arrearam de razes a ambio e a violncia?
Por essas razes os pobres reis estreis sentiam-se responsveis, perante o
seu povo, tanto do temvel choque de interesses entre quais seria um dia
baldeado, como da escravido final a que o povo poderia ser reduzido. E
parecia-lhes a esterilidade uma grande injustia para com eles prprios, uma
praga dos deuses, se no mesmo dos demnios. Uma anomalia, essa, de no
dar fruto um casal que fora belo, jovem, e possura-se, primeiro com
apaixonado e total abandono, depois com esperana e violncia, mais tarde
com cincia ou clculo, por fim com desesperada insistncia e um misto de
compaixo e raiva na infelicidade comum...
intil dizer que tudo mais se tentara para arredar tal maldio das pobres
cabeas rgias: os conselhos dos mdicos e as malas-artes das bruxas; os
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palpites pessoais e os segredinhos das comadres; as influies da hora ou da
estao; as preces pblicas e a prpria interferncia, aos ps de Deus e do
Santo Papa. S um conselho chegara a ser insinuado, que o bom rei Rodrigo
repelira com indignao: o repdio da esposa infecunda. Chegara-se a aventar-
se que o rei tomasse outra mulher legtima. A primeira resignar-se-ia a um
convento com todas as honras da sua condio, e todo o azedume do seu
destino, caso fosse mais bem sucedido o segundo ensaio matrimonial da sua
Majestade. Mas nem to alta razo de estado conseguira demover El-Rei! To-
pouco demovera a rainha, se que aos ouvidos da infeliz rainha viera ter este
alvitre que a punha de lado como uma rvore seca...
Se viera ter?... Mas viera! Algum tivera a crueldade ou o herosmo de lhe
dizer (como, no sei) que o povo ameaado acusava de egosta esse amor que
no cumpria o seu dever. Pois o amor dos reis tem deveres a cumprir... e a
rainha sabia-o! A rainha sabia qual o seu dever, se fosse provada a sua
esterilidade. Mas sabendo-o, escasseavam-lhe foras para o cumprir e por isso
tornara-se rabugenta e caprichosa, avarenta e fantica, histrica e at invejosa...
Invejosa, em especial, da vulgar felicidade que Deus dava a tantas, para lha
recusar a ela. A pobre mulher j no podia ver um batizado! Nem nenhuma
que andasse de esperanas ousaria apresentar-se aos seus olhos o ventre
abenoado por Deus.
Certa manh, a rainha ergueu-se muito cedo e meteu-se a caminho em
direo ao imenso bosque para l do parque do palcio. Apesar de a guarda a
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ter querido acompanhar, desistiram perante as ameaas de um desses ataques
em que a espuma lhe borbulhava na boca, os olhos lhe pasmavam em branco,
as palavras e os gestos se descompunham, e ela jazia depois, aniquilada, como
uma coisa inerte, durante vrios dias. Para alm disso, Sua Majestade El-rei
partira ao lusco-fusco de madrugada, para caar na tapada de um dos seus
mais nobres vassalos. S pela tarde voltaria. Quem se atreveria a contrariar a
vontade da rainha sem o rei presente? O perigo de algum encontro com um
caador furtivo, qualquer bandido, algum mendigo perverso ou guarda
florestal rebelde (pois j dentro dos prprios domnios reais existiam
rebeldes), nem de raspo tocara o seu nimo decidido. De igual modo a
deixara impvida a lenda de monstros e fantasmas que habitavam essas matas
virgens, ou a certeza de as povoarem bestas e feras. Dir-se-ia que um Arcanjo
lhe aparecera, em sonhos, a mand-la ir, prometendo-lhe guard-la, portanto
foi.
L, andou toda a manh, toda a tarde, todo o dia, embrenhando-se por
cavernas de verdura e sombra, passando curvada sob rendilhados tetos
oscilantes de trepadeiras, deslizando entre penhascos e velhos troncos
gigantes, mais grossos que pilares dos antigos templos lendrios... Os homens
que, da torre maior do palcio, ainda pretenderam segui-la com os seus culos
de grande alcance, rapidamente desistiram. Mais tarde se veio a saber, por
conversa das mulheres dos guardas florestais, que ela entrara nas suas
modestas choupanas, sentara-se nos seus bancos, beijara os louros cabelos
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sujos ou as caras lambuzadas, bochechudas, dos seus filhos, e quisera saber
das suas vidas com to insinuante insistncia, tanta simplicidade nos modos e
palavras que as pobres mulheres, por momento esquecidas da imensa
distncia das suas condies, tinham chegado, talvez, a falar de mais...
At onde entrara na parte verdadeiramente selvtica da floresta, nunca
ningum soube. Um ou outro guarda que a vira voltar, j pelo arrefecer da
tarde, e, atrapalhado, se perfilara mal fiado nos seus prprios olhos, tambm
disse depois que ela vinha a trejeitar e a falar alto, com os olhos postos nos
galhos extremos das rvores, como se tivesse a conversar elevadamente com
elas e os pssaros; talvez com os anglicos espritos que nenhum guarda via,
mas que por certo a guiaram nesse passeio inspirado, sugeriu mais tarde
um poeta palaciano.
O facto que j se espraiava o luar quando a rainha voltou. J do palcio
alvoroado se preparavam para sair em sua busca bandos de guardas com
lampies e archotes e j El-Rei, seu marido e senhor, a esperava, dando
grandes passadas frenticas no salo dos lustres, com o sobrolho carregado e
as mos torcidas atrs das costas, como nos dias de muitssimo mau humor. A
rainha vinha cheia de p, rotos os seus sapatinhos verdes e amarrotada toda a
seda da saia. At trazia rubis de sangue na cara. No seu sorriso e nos seus
olhos, porm, raiava um claro que poucos viram porque a grande maioria dos
homens so cegos porm, depois, todos asseguraram t-lo visto. Viu-o, de
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verdade, El-Rei, que no era cego de todo e as palavras de exprobrao que se
iam soltar dos seus lbios, gelaram-se num misterioso respeito.
A rainha arrastou o seu marido para a cmara rgia e aninhando-se aos seus
ps, disse-lhe:
Pensei muito durante este passeio... No mo censureis, porque decidiu a
nossa vida. Estou resolvida a afastar-me para que outra vos d o filho que eu
vos no posso dar...
Nunca! interrompeu o rei com violncia.
Ainda no acabei, meu senhor. Tambm eu vos quero muito, apesar da
nossa desgraa quase nos ter tornado inimigos!... Estou resolvida a afastar-me,
e nem vs me podereis deter, se, dentro de meses, no se cumprir o nosso
grande desejo...
Quantas vezes j temos esperado em vo, querida! O melhor ser
conformarmo-nos com a determinao de Deus.
Nunca tive tanta f, meu senhor. Por amor de vs, ousei consultar o
Esprito da Floresta. Ir at onde me no julgara capaz...
Sois louca! disse ele passando-lhe amorosamente os braos por cima
dos ombros.
Para dizer a verdade, ele estava em crer, nesse momento, que ela fantasiava,
e no deu importncia de maior s suas palavras.
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Meu querido!... murmurou ela descaindo a cabea para lhe encontrar
a boca.
O perfume das flores do jardim subia at janela escancarada. Atravs das
cortinas, o luar fazia caprichosos rendilhados no leito real. O ar estava quente.
Meu querido!... suspirava ainda a rainha pela noite adiante. E,
sentindo-se desejado, solicitado com vibrante sinceridade, ele afogava em
beijos ardentes, como os das suas primeiras noites de amor, essa meiga
apelao que j se ia desacostumando de ouvir...
Alguns meses passaram. Se os homens no fossem cegos, veriam que nos
olhos da rainha, como no seu sorriso, um claro continuava a anunciar
grandes coisas. Nem o seu marido, porm, voltou a reparar nesse indcio que
uma tarde lhe gelara nos lbios palavras de exprobrao e clera. Os homens
so cegos! Apesar do que, aquilo a que chamam de Mistrio, lhes enviar as
suas mensagens. Mas o que todos achavam pois isso fora impossvel no
ver que a bondade da rainha se manifestava agora com manifestada
radiao. Digamos, at com uma radiao inquietante, pois inquietantes so a
grande bondade, a grande beleza e o grande entendimento. Quem no sente
que marcam os humanos como um resplandecente estigma que os furta vida
do mundo?
De rabugenta, caprichosa, avarenta, fantica, histrica, defeitos que
ultimamente empanavam a grande bondade natural da pobre esposa estril
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dia a dia progredia a rainha em humildade e pacincia, igualdade de nimo,
generosidade ardente, largueza de compreenso, bom senso luminoso...
Chegava a ser inquietante, sim! Dir-se-ia que a rainha se preparava para
morrer.
Ora uma tarde, indo a sentar-se mesa na grande sala de jantar, fez-se,
subitamente, muito branca. Levou a mo trmula testa, expediu um suspiro
que todavia se acompanhava de uma aura de sorriso... e teria cado
desamparada, se o marido no corresse a apanh-la nos braos. Quando, da a
nada, voltou a si e circunvagou o olhar ainda bao pela sala cintilante de
cristais e pratas, aquela aura de sorriso abriu-se como uma aurola.
Este calor de Agosto... murmurou com os olhos enlanguescidos do
delquio.
O seu rei ainda a tinha nos braos. Ela aconchegou-se-lhe mais ao peito e
disse:
Talvez seja tambm outra coisa... que vos tenho querido ocultar... com
receio de me enganar...
Ele no compreendia; ou tinha medo de uma deceo terrvel. Afastando-a
um pouco de si, fixava nela os olhos ansiosos e graves, quase duros, como
para a forar confirmao. O seu rosto pusera-se plido e
extraordinariamente srio. Acenando que sim sua muda interrogao, ela
respondeu:
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Uma grande surpresa... mas no para mim...
E fazia-se ainda mais pequena contra o seu peito largo. Ento, esse peito
ergueu-se, arquejou como se fora estalar e, por um movimento impulsivo de
ajoelhar diante dela, o pobre marido arrastou-a consigo. Ficaram abraados e
ajoelhados um diante do outro, soluando. A muita gente pareceria cmica ou
ridcula esta cena.
Querida!... gaguejou ele quando pde falar. Quebrada de emoo, a
sua voz era meiga como a de uma criana. Pois ser verdade?... Ento,
naquela noite...
Pensava no claro que lhe vira nos olhos, no sorriso, certa noite em que ela
voltara tarde, cheia de p, de um misterioso passeio para l do parque do
palcio... Pensava no calor dos beijos que essa noite tinham trocado. Nem por
sombras duvidava dela, mas compreendia que havia um mistrio na gestao
do seu filho.
Naquela noite... repetia, querendo penetrar nesse mistrio.
Naquela noite, sim! disse a rainha O Esprito da Floresta
prometera-me...
Sois louca!... disse ele, como dissera da outra vez. (No o que se
costuma dizer quando algum afirma presenciar qualquer realidade
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sobrenatural?) Por esse altura, no obstante o seu dom de ver o que outros
no viam, muito atrasado estava ainda o rei na leitura dos livros obscuros.
No... disse a rainha o Esprito da Floresta existe. Procurei-o e
encontrei-o. Consultei-o sobre o nosso caso. O Esprito da Floresta
prometeu-me que teramos um filho. Mas o nosso filho...
Repentinamente, fez-se outra vez muito branca. Os seus olhos olhavam
espantados, fixos, para qualquer coisa ao longe. O mistrio erguera-se face a
face, um dedo nos lbios a impor silncio, sob a figurao do Esprito da
Floresta que s ela via.
Este calor de Agosto... murmurou, dorida e forando-se a sorrir.
Como a sentisse voltar a desfalecer, o rei levantou-a amorosamente nos
braos fortes, poisou os lbios, com delicadeza e respeito, nos seus olhos que
se fechavam e atravessando, com ela nos braos, os amplos sales
resplandecentes e frios, quis lev-la para o leito real. Ao longo dos amplos
sales resplandecentes e frios, a comprida cauda do seu vestido glauco, atrs
dos passos graves do rei, ia fugindo como um ribeirinho que ao mesmo tempo
fosse correndo e secando. E, habituados a nada ver, nada ouvir, os lacaios
eretos como esttuas, vestidos de seda e ouro como bonecos, nem
pestanejaram e nada compreenderam do que se passava.
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CAPTULO 2
DE ALGUMAS CIRCUNSTNCIAS QUE ACOMPANHARAM O NASCIMENTO
DO PRNCIPE
Evo! Voara por todo o reino a grande novidade!
E comeara uma festa pegada. As msicas ouviam-se por toda a parte:
ching-chong, "ai-" e "-ai", as cantigas esfuziavam contnuamente no ar, os
foguetes estralejavam ou estoiravam que era um pavor, o cho andava coberto
de espadanas e funcho, os sinos repicavam sem cessar dling-dlong!, dling-
dlong!, no ar lacre... E, vira que vira, o povo danava nos terreiros, nas eiras,
nas ruas, nas praas, toca ora toca, esgotavam-se os enormes canjires
vidrados, olar que se arrebanhavam ranchos por toda a parte, concertavam-se
os instrumentos, improvisavam-se festas e tunas..., bailar! cantar! viver!
uma onda de alegria irresistvel subia, irrompia de tudo e por tudo se
espraiava, s porque uma nova pequenina vida ia chegar ao mundo... Deus a
trouxesse a salvamento! Deus a resguardasse e protegesse! E que fosse um
menino! Que fosse um rapaz! Que fosse um homem! O reino precisava de um
senhor para o futuro.
Mais do que nunca gastavam as beatas os seus dias nos templos, babujando
as ljeas ou alando as mos lvidas, frementes de splicas, s imagens
cobertas de flores. Nos intervalos, juntavam-se em grupos que grasnavam e
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saltitavam na sombra fresca dos adros. Depois recomeavam as ladainhas, as
punhadas no peito, os sculos no empedrado, sob as abbadas incendiadas de
luzes, esfumadas em nuvens de incenso. E nunca tinham sido to felizes!
Nunca tinham podido satisfazer por tal forma a sua beatice! que nunca, nas
igrejas, se haviam assim enfiado as novenas e os trduos, as preces e as
cerimnias. De igual modo contentavam os glutes a sua gula, celebravam os
bbados o seu culto por Baco, evo!, evo! improvisavam os eloquentes
as suas tiradas, os danarinos matraqueavam toda a sorte de ritmos, e quanto
aos namorados..., ai!, que melhor fariam os namorados do que aproveitarem-
se da embriaguez coletiva? Esquecidos por pais severos e velhas tias zeladoras,
os namorados metiam-se em azinhagas floridas de madressilva, desapareciam
sob as ervas mais altas dos campos, entranhavam-se nos mais folhados ramos
das rvores... E, eram beijos e abraos, juras e risos, risos magoados
misturados de voluptuosos gemidos, a juventude breve, mas poderosa
enquanto dura! dentro de alguns meses, quantas pobres virgens loucas se
achariam iguais condies s da rainha! S as suas cabeas no seriam cobertas
de flores, como a da rainha uma vez que sassem rua...
Ah! Nunca se fora to feliz no reino de Traslndia! Em particular, na sua
capital. A vida era uma festa pegada; e uma prece contnua: Que viesse a salvo
e fosse um menino! As saias so muito boas, sim! E que seria o mundo sem o
delicioso farfalhar das saias? Mas um trono requer uns cales. Que viesse a
salvo e fosse rapaz!
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E veio a salvo. E era um rapaz. A noite de dores da rainha correu toda em
preces pblicas. Os templos ardiam de velas e regurgitavam de fiis. Diante do
palcio um mar de povo aguardava. E como, por certo, incomodaria a
padecente o marulho desse mar, toda aquela multido esperava num silncio
impressionante e dramtico. Sob a promessa de tal silncio, gravemente feita
por alguns dos mais populares homens-bons da capital, desistira a guarda de
dispersar a multido. E a multido cumpria a promessa dos seus
representantes. Informada do que se passava, a rainha chorara de ternura.
Mandara, depois, dizer ao povo que se mostraria valente como qualquer uma
das suas mulheres; e que estivessem descansados: dar-lhe-ia um homem!
Ora pela antemanh, ( preciso meter aqui este parntesis) ora pela
antemanh, um pouco antes dos ltimos esforos da rainha, trs velhas muito
velhas saram, ao mesmo tempo, de dentro desse mar de gente. Como se para
elas no houvesse distncia, quase imediatamente se juntaram numa clareira
remota, l onde acabava o parque do palcio e comeava a floresta
inexplorada. Em verdade se diria que um sinal s delas percebido as reunira.
Hiptese, afinal, no to inverosmil como primeira vista se pudesse julgar,
pois essas trs velhas mais no eram que trs bruxas. Vestiam largos capotes
negros, de capuz levantado talvez por via do fresco da madrugada. Mas do
fundo do capuz, os olhos da primeira reluziam como topzios; os da segunda,
como safiras; os da terceira, como esmeraldas. Lindos olhos em caras to
cheias de rugas, to cor de pergaminho!... A bem dizer, porm, aquelas trs
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bruxas eram trs bruxas, mas sim trs boas fadas, que poderiam tomar
quaisquer outros disfarces. Tinham tomado aqueles disfarces apenas para que
a sua beleza as no denunciasse. E tambm elas tinham vindo, e ali se tinham
reunido, por amor ao herdeiro esperado.
A prenda que lhe dou comeou a primeira, sorrindo com as falsas
rugas da cara que tenha todas as qualidades que fazem um homem
respeitado por outros homens: Ser inteligente, valente, leal...
A prenda que lhe dou interveio a segunda, entremostrando um colar
de prolas entre os lbios murchos que tenha todas as qualidades que
tornam um homem desejado das mulheres: Ser belo, forte, msculo...
A prenda que lhe dou declarou a terceira, acendendo ao fundo do
capuz os dois pequeninos faris dos olhos que tenha todas as qualidades
que tornam um prncipe querido do seu povo: Ser justo, generoso, enrgico...
Parvas! bradou uma voz que se diria vir de muito alm, e j estava
perto. Em volta, os ramos das rvores foram agitados como por um vento
misterioso. As folhas secas levantaram-se do cho, rodopiaram um momento
no ar. Uma onda de gua, ao longe, parecia aproximar-se... As trs boas
bruxas compreenderam que estavam na presena do Esprito da Floresta, o
qual rarissimamente costumava tomar forma visvel. Para dizer falar verdade,
s perante os vulgares humanos: Como o veriam estes de outra forma?
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Parvas! disse a voz profunda e sarcstica Estragareis o meu
prncipe como fteis mulheres que sois! Estrag-lo-eis de mimos! Pois a
prenda que eu lhe dei que tenha um defeito hediondo, capaz de corrigir
todas as vossas prendas: Ser um prncipe perfeito com orelhas de burro!
Palavras no eram ditas e uma violenta revoada de folhas levantou-se
furiosamente no ar. Os braos mais baixos das rvores aoitaram o cho;
fugindo, repetidas vezes o vento zuniu lamentoso de tronco em tronco e o
fundo som da gua, ao longe, ecoou mais cavo, rotundo... Ao mesmo tempo,
de vrios pontos entre a cerrao verde-negra da folhagem, corresponderam-
se no ar uivos e gritos, ululos e bramidos, pios plangentes e cacarejos
estralejando como risos sarcsticos e tristes. Era o Esprito da Floresta que se
afastava de pouco bom humor, alvoroando animais e vegetais.
E eis que um velho imponente, de olhos volveis e com reflexos como os
de lagos em que ora d sol, ora sombra, poderia, mesma hora, ser visto
diante do palcio real. (Poderia realmente ser visto?... pergunto eu). Era a
hora em que repicavam todos os sinos dos templos, vibravam todos os clarins
e trombetas do pao, e El-Rei se aproximava enorme varanda de mrmore
para mostrar ao seu povo o filho recm-nascido. Uma aclamao reboou at
aos cus como uma exploso gigantesca e prolongada...
Entretanto, o velho atravessara a multido, passou entre os guardas, subiu
escadarias, deslizou ao longo de corredores e sales. (No o veriam os
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guardas, os lacaios, os cortesos, as camareiras?) Grande era ele, e bem de se
ver, com os seus braos e pernas iguais a troncos, a sua barba que
torrencialmente lhe inundava o peito e o ventre, a sua basta cabeleira
revolvida como uma densa moita em que se encafurnam os ventos, as feies
cortadas em angulosidades de rocha viva... E, apesar disso, era a sua figura
invisvel, pelo menos aos olhos comuns? Ou seria, antes, que o modo
extraordinrio de ser dessa figura tolhesse as palavras e os movimentos de
todos? Eis o que, por uma deplorvel ausncia de informaes seguras, torna-
se-nos impossvel explanar muito sobre o caso.
Uma pessoa, porm, viu-o nessa travessia at cmara da rainha, isso
pode ser afirmado. E essa pessoa foi, nem mais nem menos, que Rolo
Rebolo, monstro sem pernas que s andava como o seu nome indica
rebolando e que exercia no palcio, simultaneamente, os cargos, se tal se
lhes pode chamar, de bobo e poeta librrimo. Coisa, alis, no para estranhar,
j que sempre tanto h de palhao num poeta librrimo, como de poeta
librrimo num palhao.
Claro que ningum, ao tempo, acreditou no Rolo Rebolo. Patranhar,
fantasiar, fingir, no fazia parte dos seus ofcios? Mas nem por isso deixou
Rolo Rebolo de jurar ter tido to estranho encontro, como de o identificar,
no obstante vrias diferenas aparentes, com quem depois veio a ser o aio do
dito prncipe, o que, evidentemente, pareceu o cmulo da fantasia. Mais
tarde, vrios acontecimentos e circunstncias concederam foros de
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autenticidade s declaraes de Rolo Rebolo. At alguns cronistas deram
conta de tal viso nas suas narrativas, que por isso mesmo foram consideradas
suspeitas pelos mais conspcuos membros da Academia de Histria. Pois no
chegaram tais cronistas (e a despeito dos mais autorizados juzos dos crticos
consagrados) ao excesso de afirmarem ser Rolo Rebolo um poeta estupendo
e um vidente?
Ora estava Rolo Rebolo a improvisar no corredor um sibilino poema
inspirado na sua viso, quando as camareiras que rodeavam o leito da rainha a
viram tornar-se ainda mais plida, escancarar uns olhos imensos, fit-los na
porta e, febrilmente, espetar os dedos nas roupas, forando-se por se erguer-
se. Todos os olhos das nobres criadas se voltaram igualmente para a porta. E
nenhuma delas viu nada, nem ningum... Aos seus olhos furtava-se a
extraordinria presena que se revelara ao bobo sem pernas. O parecer
daquelas pobres nobres criadas era que ningum abrira a pesada porta da
cmara... Todavia, estavam todas arrepiadas. que o rosto da rainha era
sobrenatural. A palidez que lhe ficara da grande prova mudara-se para uma
brancura de linho, de aucena, de mrmore, que j no parecia ser uma
criatura deste mundo. Os seus olhos continuavam imensos, como se tudo
pudesse caber nuns olhos que, por maiores que sejam, so coisa to
pequenina! Os seus lbios tinham sorrisos longnquos, ora parados como os
das esttuas, ora fugidios como reflexos; e mexiam, parecia, a medo, mexiam
enquanto as suas mos espalhavam sobre os lenis esboos de gestos muito
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delicados, acompanhando as palavras mudas da boca. Parecia que a rainha via
algum que ningum mais via. Conversava com quem mais ningum ouvia.
Por fim, pediu em voz muito clara, natural, que lhe fossem buscar o marido
e o filho e s camareiras que ficaram mandou que lhe trouxessem para cima da
cama todo o enxovalzinho do recm-nascido. Assim esteve como afogada,
sorridente, sob um monto de peazinhas enternecedoras, ridculas,
preciosssimas pela riqueza do tecido, dos bordados e das rendas.
Quando o marido chegou com o pequenino nos braos, acompanhado
tanto do Fsico assistente como de uma boa ama, escrupulosamente escolhida
para cuidar do herdeiro do trono, pediu na mesma voz clara e natural que a
deixassem s com os seus dois homens. As camaristas sorriram
embevecidamente desta graa da sua soberana. O Fsico recomendou que Sua
Majestade no se cansasse muito. A ama atirou um beijo ao seu nobre
menino. Todos se retiraram.
S com o marido, a pobre me tentou reclinar-se na cama, puxou o filho a
si, tirou-lhe a touca de rendas.
Reparai... disse ela poisando os dedos trmulos nas diminutas orelhas
do pequenino.
Diminutas? O caso que as orelhas do principezinho no eram diminutas!
Eram, at, de tamanho pouco natural para um recm-nascido. Alm de que
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no tinham bem o formato normal. Pois antes as diramos pontiagudas, e com
tendncia a dobrarem nas extremidades...
Mas como dizer o pior? O pior que as revestia um pelozinho escuro,
quase basto, extravagante em orelhas de qualquer ser humano, e
absolutamente incompatvel com o arrepio de penugem fina, loura, que
dourava a cabecinha mimosa.
O msero pai no podia crer no que via! Como que ainda no reparara?
Como que ainda ningum reparara?... Mas no teria, ainda, reparado
ningum? Verdade seja dita, o principezinho fora logo todo enfardado em
cambraias e rendas... O msero pai no podia crer no que via! Quase com
brutalidade as suas mos convulsas arrancaram as rendas e as cambraias. O
terror viera-lhe do medo de que o filho apresentasse ainda qualquer outra
monstruosidade que ningum tivesse notado. Mas no! Deus seja louvado,
no! O menino era todo perfeitinho e robusto. Nada lhe faltava; nada tinha a
mais. S aquelas orelhas de bicho... Porque nisso no havia que duvidar: Com
efeito eram umas orelhas de bicho, uma espcie de miniatura das orelhas de
um pobre bicho muito conhecido, muito simblico, as orelhas do
principezinho perfeito...
Quando, aps um agoniado silncio, ousou o rei levantar os olhos para a
mulher, viu que tambm ela mal ousava levantar os olhos para ele. E as
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lgrimas corriam-lhe em fio pelas faces alvas, indo perder-se-lhe nas rendas da
camisa no mais alva.
Querida... rouquejou ele numa espcie de soluo que, de sbito, lhe
tomou a garganta como a presso de uma garra. E, no podendo dizer mais,
baloiou o busto e bateu com os punhos cerrados no peito.
Continuava a no compreender o que se passava. Outro longo silncio caiu,
durante o qual s se percebia afastarem-se, longnquas e agora melanclicas,
de uma terrvel ironia aos ouvidos dos mseros pais, as aclamaes l fora. O
bom povo retirava-se para deixar descansar a sua rainha. Mas no se retirava
para dormir, no! A noite era de jubilosa viglia! At dia claro, haveria festas e
bailes. S os pobres pais aclamados estavam ali, um diante do outro, sem
ousarem olhar-se, mudos e angustiosamente constrangidos pela sua
descoberta. No!, no havia o que duvidar: o seu menino tinha orelhas que
no eram de gente!
Que maldio pesava, afinal, sobre o seu amor que, depois de tanto tempo
o ter condenado esterilidade, o condenava agora a esse belo fruto gafado, a
esse produto superior mas tocado de monstruosidade?...
Quando, porm, ergueu novamente os olhos, o pai encontrou os da mulher
que j lhe no fugiram. As lgrimas continuavam a correr-lhe nas faces
brancas mas nos seus olhos agora firmes, cravados nos dele como se
comunicassem essa mesma firmeza melanclica e luminosa, que havia certo
-
resplendor j dele conhecido. Para alm disso, reaparecera nos seus lbios uma
rstia de sorriso sobrenatural!...
J sabia disse ela que o nosso filho seria marcado pelo destino. S
um sacrifcio dele e um meu permitiriam o seu nascimento. Aceitei o dele
porque me foi prometido que o seu destino seria grande... e sei que ser
grande... apesar de tudo! O meu, embora penoso agora, que poderia ser eu to
feliz, aceito-o gostosamente. S me di ter de vos deixar sozinhos, a ambos,
sem ainda saberdes o que j eu sei...
Estendeu as mos e apanhou nelas, apertando-a com paixo, a mo trmula
do marido.
Querida... disse ele soluando, porque, embora no compreendendo
aquele novo mistrio, sentia que ela lhe fugia.
De facto, a rainha estava morta. Morta com os mesmos olhos
resplandecentes e calmos fitos nele, e a mesma rstia de sorriso sobrenatural
na boca entreaberta.
Como a tiveram sempre coberta de flores enquanto foi velada, no era de
admirar que cheirasse to bem nas proximidades da sua cmara ardente. Sabe,
porm, toda a gente que Rolo Rebolo no atribuiu s flores, mas sim ao
prprio cadver, esse aroma de violetas e lrios. A elegia em que nos diz isso
anda hoje em todos os compndios poticos.
-
CAPTULO 3
COMO FOI SENTIDA A MORTE DA RAINHA, E DAS EXTRAORDINRIAS
APTIDES QUE COMEAVA A REVELAR O PRNCIPE LEONEL
As suas exquias foram magnficas. Todo o reino chorou a rainha que
morrera para dar um herdeiro ao trono. Toda a gente deitou luto por ela
como por uma pessoa de famlia. Mas a dor de toda a gente junta, no
igualaria a do rei. Nos primeiros dias, ele ainda andou como no tomando
verdadeira conscincia da catstrofe. No fosse o seu ar estranho, entre
desorientado, espantado e emparvecido, dir-se-ia at que a viuvez o deixara
relativamente frio... Ao cabo de alguns dias, sentiu que dificilmente poderia
suportar a vida. Ento, chegou a atentar contra ela.
Rodearam-no de cuidados e vigilncias. Bem afortunado s, leitor, desta
crnica, se ainda ignoras o que seja a saudade intoleravelmente minaz, o
angustioso pasmo perante a realidade inaceitvel, a impresso de solido,
vazio, injustia, que, ao fim de alguns dias, nos causa a morte de um ser bem
amado. Ah, v-lo s mais uma vez, ouvi-lo uma ltima vez, tocar-lhe uma vez
mais, dizer-lhe tudo o que nunca se lhe disse, remediar todo o mal que se lhe
fez!... Bem afortunado s, leitor, se, ao evocar um fantasma querido, to
presente e j vago, to senhor da tua alma e, todavia, j esfumando-se nos
pormenores fsicos, no sentiste ainda o incompreensvel, o cavo, o pavoroso,
-
o gelado desta expresso: nunca mais!... E o tempo que tudo lima, at sobre o
ardor destas chagas espalha a sua cinza. No lugar da carne viva, s fica um
ponto mais sensvel e uma cicatriz.
Como toda a gente mais ou menos simpatizava com o desespero do vivo,
(e no digo mais ou menos seno porque no reino de Traslndia, como em
qualquer outro, gente havia de maior ou menor sensibilidade, faculdades
melhores ou piores) toda a gente procurava consol-lo, assistir-lhe, socorr-lo;
cada um sua maneira (at os hipcritas, os secos, os aduladores, os
espetaculosos....). Mas por mais maneiras que tinham as vrias gentes de lhe
mostrarem simpatia na dolorosa ocorrncia, a que recebeu melhor agrado, a
que teve provas de maior eficincia, foi a de Rolo Rebolo! Pois nem por isso
Rolo Rebolo se despendia em subtilezas de engenho para distrair o seu rei,
ou excelncias de retrica dialtica para o confortar. O que fazia, afinal, Rolo
Rebolo era deitar-se, como um co, aos ps do monarca; e chorar quando ele
chorava. A sua presena acabara por se tornar to necessria ao pobre vivo
que, em no estando ele, El-Rei se mostrava mais inquieto, mais desesperado
ou mais amargo; e com ele presente, sentia-se, ao mesmo tempo, to -
vontade como sozinho, e to acompanhado como efetivamente estava. O
segredo disto era simples: Quem no sabia, na corte, que o monstro Rolo
Rebolo, em geral to sardnico e spero com todos, concebera pela rainha
Elsa uma profunda paixo sem cimes nem desejos... um desses rarssimos
amores que a si prprios se bastam, e mais no pedem que a simples
-
existncia da pessoa amada? S a dor de Rolo Rebolo poderia, pois,
acompanhar e suavizar a de El-Rei. Algumas vezes os surpreenderam, at,
falando o mais familiarmente possvel da morta querida, como se um no
fosse rei e outro um poeta maluco e aleijado, reduzido condio de bobo.
Depois da companhia de Rolo Rebolo, a que mais aprazia ao rei era a do
bom pajem Leonardo, afilhado que fora e protegido da rainha. Como seu
afilhado protegido, Leonardo recebera uma educao que muito valorizava as
suas aptides naturais. Alm de cantar com boa voz, bom gosto, justa
expresso, Leonardo sabia ferir as cordas de uma harpa como se fizesse vibrar
as prprias fibras de um corao apaixonado e melanclico, extremamente
delicado. Muitas vezes, a meio das suas tenebrosas noites de insnias,
mandava-o chamar El-Rei para que tangesse e cantasse. Leonardo tangia as
cordas e cantava no silncio da noite. Ouvindo-o, podia o rei sonhar com
outros mundos em que certamente o esperava a rainha ausente. As suas
lgrimas tornavam-se menos salgadas ou menos amargas.
E meses e anos rolaram sobre os acessos de desespero do nosso rei
Rodrigo, sobre os seus abismos de abatimento. Dessa dor, como do tempo
que sobre ela passara, havia agora mais rugas no seu rosto; mais cinza na sua
cabea; mais tristeza e doura no seu olhar, no seu sorriso; mais caridade e
cansao no seu corao... Mas o vivo j no pensava em matar-se. Aguardava
serenamente a hora de se ir juntar companheira desaparecida. Entretanto,
vivia pacfico, tinha muitos dias felizes, ou quase, e dedicava-se ao filho.
-
Dedicava-se fervorosamente ao filho, tanto mais que o principezinho
plenamente satisfazia o seu amor e orgulho de pai.
Sim, aos nove anos de idade j o prncipe Leonel tinha um
desenvolvimento mental e fsico absolutamente extraordinrio. Maravilhavam-
se os primeiros mestres da precocidade e viveza da sua inteligncia, no
cessando de profetizar nele um homem cujo nome ecoaria, um dia, em todo o
mundo, para alm de aclama-lo como um soberano que faria qualquer reino
da terra invejar o seu pequeno mas encantador estado. Bem certo, como toda
a gente sabe, que a grande maioria dos mestres de qualquer prncipe no
pecam por serem demasiado parcos, junto dos monarcas pais, em to
lisonjeiras profecias. Ora se a qualquer corao paternal so essas aceites,
como as no julgaro devidas os grandes da terra aos seus preciosos rebentos?
Independentemente, porm, de quaisquer intuitos de adulao, eram tais
profecias justificadssimas no caso presente. Era impossvel no admirar a
agudeza, o senso, a intuio, a clareza, o vo j revelados em quaisquer
sentenas e respostas daquela criana! E o mais admirvel era que no s para
as belas-letras, belas-artes e cincias manifestava o pequeno disposies
excecionalssimas. Tambm em todos os jogos, brincadeiras ou trabalhos
fsicos, desenvolvia uma agilidade inultrapassvel, um -vontade estupendo. Se
h tantas pessoas sem vocao para nada, (o que muito compreensivelmente
as acaba por levar ao tdio da vida) vocao para tudo era a vocao do nosso
jovem prncipe. Assim o seu corpo medrava em graa, robustez, beleza, na
-
medida em que prematuramente desabrochava o seu esprito em penetrao,
riqueza e curiosidade. Que menos dizer do jovem prncipe seno que parecia
vir a ser perfeito? Ou que a sua perfeio se tornava inquietante?
Precisamente: inquietante! Certas velhas pessoas que a dureza da vida tornara
azedas, desconfiadas, irremissivelmente pessimistas, retorciam um pouco os
lbios hostis, ou abanavam agoirentamente a soturna cabea em vendo a
beleza do prncipe e ouvindo citar (quando, por qualquer modo, no era
admitido a elas prprias a verific-la) a sua anormal inteligncia.
Tal menino no deste mundo! queriam dizer os trejeitos de boca e
meneios de cabea das melhores; (porque se pode ser azedo, desconfiado e
pessimista, no obstante, e ser fundamentalmente bom). Porm as ms
remoam consigo: Aqui h mistrio! Neste garoto anda coisa!... Mas o qu?!
-
CAPTULO 4
ONDE SE TRATA DA ESCOLHA DE UM AIO PARA O JOVEM PRNCIPE; EM
VIRTUDE DO QUE O LEITOR CONVIDADO A ACOMPANHAR O BOM REI
RODRIGO, MAIS O SEU PAJEM LEONARDO, NUMA ESTRANHA EXPEDIO
PARA L DO PARQUE
Inicialmente s duas pessoas vivas conheciam o grotesco defeito de tal
conjunto de perfeies: o pai e a ama. Confiado, como foi ao leitor, o mistrio
do nosso principezinho, bem poder o leitor aventar que nos abatimentos,
melancolias e meditaes de El-Rei Rodrigo, aps a morte da rainha Elsa, no
houvesse s a profunda saudade desta, mas tambm uma angustiosa
inquietao e perplexa amargura perante a monstruosidade do filho. Com a
ajuda, porm, da boa dona que o aleitara e depois ficara sempre ao seu lado,
bem conseguira, at ento, o pobre pai, que o prprio principezinho ignorasse
a sua ignomnia. Dada a estranha precocidade, a viva curiosidade e a aguda
inteligncia de Leonel, tal no fora fcil.
Talvez nem seja isso explicvel seno por nova interferncia do
sobrenatural. Mas o que acontecia, porm, era de o prncipe estar com a ama
sempre ao seu lado enquanto crescia, que lhe vigiava os passos e que lhe
coordenava as aes, mesmo as da sua perptua intimidade. No entanto,
como foi dito, o prncipe revelara-se em tudo muito precoce e no tardou
nada at que o seu gentil corpo de infante se tornasse num robusto e perfeito
-
corpo de homem. Acrescia que, se a presena da ama podia continuar a convir
para dar ao rfo a ternura maternal que lhe faltara, a presena de um
preceptor no seria menos conveniente. E no urgia prepar-lo para vir a ser
homem e rei?
Eis como foi preciso introduzir uma terceira pessoa no triste segredo: o aio
de Leonel. De onde viera to extico vulto ou quem realmente fosse, ningum
o sabia. Mas os novelistas e cronistas averiguam muito do que antes deles se
desconhecia. Alguma coisa ficar o leitor a saber, ou a entrever, desse
misterioso personagem, em se dando ao trabalho de continuar a ler esta
honesta crnica.
Uma tarde, andava o triste pai perguntando-se quem apresentaria o
composto de virtudes necessrio a um bom aio do prncipe, quando teve o
seguinte sonho: Sonhou que estava sentado no jardim, (como em verdade
estava ao adormecer), pensando no que dia e noite o preocupava agora: a
escolha do aio. Percorria, em esprito, os nomes de todas as individualidades
mais em destaque na corte. Mas nenhum nome o contentava. Um era
demasiado ambicioso, outro um intriguista, aquele um hipcrita, estoutro um
amoral, essoutro um ftil, aqueloutro um avaro... No sem razo conclua o
rei que nem sempre o valor moral acompanha um certo brilhantismo
intelectual ou mundano e que so, precisamente, os mais destitudos daquele
valor, embora revestidos deste brilho, os mais pressurosos em torno dos reis,
dos chefes, dos poderosos, das autoridades, do Estado... Para ascender ao
-
poder, no vendera um a mulher ou a filha, no atraioara outro os camaradas,
no renegara outro todas as suas amizades e convices, no haviam
lambuzado quaisquer uns as mos e os sapatos dos mais altos?
Corja!(*) pensava o rei no seu lcido sonho. Porque, se a maioria dos
sonhos se caracterizam pelo revolver, sim, de coisas profundas, mas atravs
das mais inesperadas e caticas imagens, este sonho do rei foi to luminoso,
decorreu to bem ordenado apesar da interveno do mistrio, que, mais
tarde, chegou o rei a pr em dvida que tivesse, na verdade, sido um sonho,
confundindo-o, na memria j cansada, com a realidade do dia seguinte.
[(*) Corja: calo para bando de bandidos, malfeitores ou criminosos]
Corja! pensava, pois, o rei no seu lcido sonho. E a verdade que nunca,
desperto, vira to claramente como via agora, sonhando, serem a ambio e a
vaidade os principais motivos de ao dos seus ministros, conselheiros,
governantes, delegados, secretrios; apesar de encobrirem todos a ambio, o
egosmo e a vaidade sob esplndidas capas de ideais eternos. Como entregar a
tais homens o filho amado? Como confiar deles a desgraa do principezinho
perfeito?... Qual deles no especularia com ela? Decerto os grandes ideais
eternos com que tais palhaceiros mascaravam os seus apetites e trampolinices,
existiam, realmente, na aspirao de certos espritos e coraes. Homens
-
haveria ao fundo de uma cela, de um casebre, de um gabinete, de uma aldeia
perdida, talvez de um crcere, para quem a Justia e o Amor, a Caridade e o
Bem Comum, eram mais do que ornamentos de discursos ou disfarces da
cobia. Mas como ir encontr-los? Como poder reconhec-los um pobre rei
ao mesmo tempo to impado de poder e tolhido de movimentos?
Ora estava o pobre rei assim a refletir atravs do seu lcido sonho, quando,
de sbito, se sentiu envolvido por um luar que baixara. S ento reparou que
anoitecera. Mas anoitecera enquanto estivera a meditar. Ergueu os olhos para
ver de que lua descera inopinadamente aquela fria claridade... E, sem querer,
levantou-se com um grito estrangulado, porque a rainha morta estava diante
dele. Morta!? Na verdade, no podia ele agora crer que alguma vez ela tivesse
estado morta!, morta a valer. Antes lhe parecia que voltava de uma longa
viagem; ou, ento, decidira mostrar-se, depois de ao seu lado ter vivido
invisvel.
Como um impulso de amor o quis atirar logo para ela, o fantasma recuou
com os olhos astrais fitos nele e um dedo hirto nos lbios. E o rei reconheceu
tratar-se de um fantasma, porque, recuando, ela atravessara o tronco da
magnlia que passava atravs dela como de fumo. Nem por isso deixava de a
ver como se tivesse corpo material. Ento ela, estendeu-lhe a mo, acenou-lhe
que avanasse; e ele meteu-se a caminho, levado por essa mo cujo contacto
no sentia nos dedos.
-
Para a sua guia, era o caminho fcil. Mas ele tinha de avanar com grande
prudncia, tateando o ar com a outra mo, pois a cada passo se lhe eriavam
frente ora escarpas de rochas agressivas, ora troncos gigantes mais largos que
os seus braos abertos, e cujas copas tapavam as estrelas. Sem saber como,
achava-se j muito para l do parque do palcio. A ilumina-lo, no havia seno
o alvor azulado que o fantasma ia esparzindo numa rea de alguns passos.
Intil prudncia aquela sua! Bem adivinhava que tantas cautelas
impacientavam a companheira. E, tendo ele prprio grande pressa de chegar,
no sabendo embora aonde, fechou os olhos. Comeou a correr, sempre
levado pela mo espectral que parecia ir voando. E o caso que ou se
desviavam dele, agora, as arestas dos penedos e os monstruosos caules das
rvores, ou tambm j ele os varava, como se tambm o seu corpo tivesse
deixado de ser matria. Para alm disso, j nem se sentia trilhar ou roar o
cho. Era como se fosse a correr, pairando no ar, acima do solo.
Morri! pensou. Mas nem terror nem espanto lhe causou a ideia de ter
morrido. Deixava-se voar, abandonado quela impresso de inefvel
facilidade. De vez em quando, entreabria as plpebras. E mais adivinhava do
que via desfilarem confusamente, a seu lado, labirintos de rvores e arbustos,
massas de rochedos, emaranhados liames de trepadeiras seculares. Sabia que
estava muito longe do palcio, l onde se prolongam terrenos inexplorados e
florestas virgens mas que, como tanta vez sucede em sonhos, essas terras eram
simultaneamente elas prprias e outras. De vez em quando, agora, clareiras
-
nuas desabrochavam naquele tenebroso ddalo de troncos, galhos, rochas,
trepadeiras... Ento, sentindo atravs das plpebras que ia atravessando
regies mais claras, abria os olhos. Via as estrelas a tremer no fosco azul-negro
das imensas alturas. Tornava a deixar cair as plpebras com voluptuoso
abandono. E j nem tinha pressa de chegar, quando, sem querer, estacou
sbitamente. Olhou em volta como quem desperta, voltando-se para onde
julgava estar a sua guia. Ela apontava-lhe qualquer coisa ao fundo da clareira,
porque estavam numa clareira aonde j chegava muito bem o frio e o bao
alvor da madrugada. Ao fundo, vagamente, descortinava-se um muro
pedregoso com uma porta, um buraco, um telhado talvez de troncos e galhos
secos. Tudo parecia mergulhado num silncio, num sossego, uma eternidade
de outro mundo. Sem que ele propriamente soubesse o que perguntava, ou ao
que ela respondia, os olhos dele interrogaram Elsa. Ela acenou-lhe que sim
com a cabea. Depois, ergueu o dedo hirto aos lbios, outra vez, com os olhos
resplandecentes postos nele, e comeou a adelgaar-se, a rarear, subtilizando-
se como um fumo que se perde, acabou por desaparecer de todo.
Elsa! gritou ele a chorar. Mas, nesse mesmo momento em que sentia
mais agudo o sofrimento de segunda vez a perder, (mesmo que soubesse
agora que nunca, em absoluto, a perdera ou a perderia, pois ela vivia em
qualquer parte simultaneamente longe e perto dele), sentiu tambm uma
espcie de inquietao, de pressentimento, de suspeita sobre a realidade
material do que lhe estava a acontecer... No iria despertar?
-
De sbito, compreendeu quase claramente que toda essa noite no passava
de um sonho. Tudo um sonho de que ia acordar da a pouco, de que at j
estava a acordar... Antes, porm, desvendaria o mistrio daquela apario,
daquela jornada atravs do negrume, daquele muro com aquela porta e aquele
buraco. Desatou, ento, a correr em direo ao casebre, que, de repente,
aumentava e corria tambm para ele... Mas a penumbra enrodilhou-se-lhe nas
pernas. A noite que ainda havia no corao da floresta parecia ter invadido a
clareira para o impedir de chegar. "Elsa!" gritou ele esbracejando com as
trevas. E acordou.
Acordou. Continuava, claro, no jardim, deitado na sua comprida cadeira de
sesta. No devia ter dormido mais que meia hora. Tudo, em redor, pairava
numa tranquilidade que lhe pareceu anormal. Os braos da magnlia
abrigavam-no do sol e, por estar na sombra, ainda lhe pareceu mais estranho,
depois do seu sonho, aquele sol que tornava transparente, dourada e levssima
a folhagem dos arbustos volta do lago. Um cisne deslizava lentamente, como
num devaneio, sobre o cristal da gua imvel. Um zumbido de insetos passou
no ar; depois, o silncio recaiu mais profundo. Mas se as impresses deste
momento se incrustaram assim na memria do rei, que, posto havendo tido,
desde o dia em que empreendera a rainha Elsa o seu enigmtico passeio para
l do Parque, iniludveis rebates do sobrenatural, nunca tivera, antes, uma to
completa sensao do mistrio que nos cerca. Os seus olhos procuraram
ento as primeiras rvores do Parque. Eram tlias cuja folhagem tambm o sol
-
tornava agora transparente e dourada, a pontos de menos parecer folhagem
que uma delicadssima chuva de ptalas, imobilizada ao cair. Para alm dessas
tlias, esguios eucaliptos havia de tronco cinzento claro, pincelado de farripas
de casca. Depois, espraiados e majestosos pltanos de folha esbicada. Depois,
cedros verde-negros de pases longnquos, pinheiros mansos de copa bela... E,
depois, um cada vez mais cerrado emaranhamento de rvores e arbustos de
toda a casta. E depois? E depois do depois? E para l disso?...
O rei no podia esquecer que adormecera a pensar em quem seria o aio do
prncipe; e que todo o seu sonho embora no soubesse explicar como
se relacionava com essa preocupao. Veio a noite, e toda a longa noite velou,
preso s mesmas preocupaes. Ergueu-se ao dealbar da madrugada. Vestiu-se
como quando ia caa; escolheu para o acompanhar o pajem Leonardo e,
avisando que se no alarmassem com a sua demora, pois sabia que voltaria so
e salvo, l se embrenhou no Parque, tal como um dia se embrenhara a rainha
Elsa.
Claro que os ministros, os familiares e os cortesos, ficaram a murmurar
esse capricho do rei. Todos suspeitavam que o rei seguisse para l do Parque.
E teria Sua Majestade o direito de arriscar uma vida que lhe no pertencia,
aventurando-se quela regio sinistra, que verdadeiramente ningum conhecia,
mas todos imaginavam estar povoada de feras, monstros, espritos malvolos,
criminosos fugidos justia, evadidos das masmorras... sabe-se l? Porm o
que em verdade provocava tais murmuraes no era temerem os cortesos
-
pela vida do rei ou pelo bem da ptria. Rarissimamente, como toda a gente
sabe, esse o motivo ntimo das censuras dos cortesos. O que os enraivecia
era desconhecerem os intuitos ou razes de El-Rei em to singular passeio. E
no s isso os enraivecia como vagamente os atemorizava, no pela cara rgia
pessoa, mas pela sua carssima prpria. Quem muito esconde dos seus
verdadeiros actos e intenes, a propsito de tudo e nada se teme de haver
sido descoberto.
Ora tambm toda a gente sabe (ou, pelo menos, o compreender com
facilidade extrema) que todos os cortesos tm muito a mascarar dos seus
verdadeiros actos e intenes; especialmente, perante o senhor cortejado. Eis
que os mais coscuvilheiros ou receosos chegaram, pois, a subir Torre,
aproveitando a sesta do sapiente astrnomo-astrlogo Futurus, para, de l de
cima, tentarem seguir, por meio de culos e binculos de grande alcance, a
jornada de El-Rei atravs do parque e da floresta. A essa hora, porm, onde
estariam o rei Rodrigo e o seu pajem Leonardo? Nem culos nem binculos
do melhor alcance lograram mostrar qualquer indcio da sua passagem. Nisto,
acordou o sapiente astrnomo-astrlogo Futurus. E como no tinha papas na
lngua, era temido por o tomarem como um verdadeiro mago e dispunha
ainda de valentes msculos no obstante as barbaas cinzentas, no esteve
com grandes meias medidas para fazer passar aos andares de baixo os
invasores do seu antro de estudos.
-
Precisamente a essa hora, para l do Parque, ia El-Rei chegando a um stio
de quase medonha beleza selvagem: todo era como um eriado de catos
monstruosos, speras colunas de rochas truncadas e arbustos que, ao mais
leve respirar do vento, brandiam os espinhos agudos e em riste como
floretes.(*)
[(*) Espada cuja lmina fina. Atualmente usada no desporto de esgrima.]
Senhor... suspirou o pajem parando.
O rei voltou-se e ainda o viu estender as mos como para agarrar qualquer
coisa, depois oscilar sobre os joelhos que dobraram e lhe deram com todo o
corpo no cho. Havia ali perto uma fonte que espirrava gua das pedras. O
bom rei Rodrigo apanhou uma pouca de gua na concha das mos
sobrepostas, e com ela borrifou o rosto sem cor do pajem.
Quando recuperou os sentidos, o pajem Leonardo, que era extremamente
sensvel, recomeou a tremer.
Senhor... disse ele em voz sumida, sempre branco como um sudrio
(*) Tenho que vos dizer que vi um fantasma atravessar as rochas...
-
[(*) Um Sudrio um pano de linho que antigamente se usava para limpar o suor. Tambm serviam
como mortalha em tempos antigos. O mais clebre o Sudrio de Turim uma relquia crist que
supostamente teria envolvido o corpo de Jesus Cristo, sepultado aps a sua crucificao, e que teria ficada a
a sua representao nessa altura.]
Mais merece a pena ter medo dos vivos que dos fantasmas disse o rei
tranquilamente. No te julgava to medroso!
Mas sabia que, embora extremamente sensvel, o seu Leonardo era corajoso
como todos os que so simples, bons e jovens.
Senhor, tenho que vos dizer que esse fantasma se parecia... tinha muito
ar de...
Profundos e abertos, os olhos de El-Rei Rodrigo estavam cravados nele
com uma fixidez autoritria.
E devagar, sempre sem desviar os olhos fascinantes e fitos, o rei ergueu um
dedo hirto aos lbios.
Em virtude desse olhar, desse gesto, nunca o pajem Leonardo disse a
ningum ter visto um fantasma na floresta. Quem esse fantasma lhe parecera,
nem a si prprio o ousava confessar.
Vamos almoar disse o rei passados uns minutos. Esqueci-me de
que h muitas horas no comemos! E estamos sem foras.
-
Depois acrescentou como se escarnecesse, embora carinhosamente:
Quando se est sem foras, faclimo ver fantasmas...
Sabia agora que secreta e extraordinria afinidade sempre o ligara quele
rapaz: O raro dom de ver espritos no pode deixar de profundamente
irmanar os que o possuam. Simplesmente, h ntimas e quase temveis relaes
sobre quais doce, alm de conveniente, baixar um entendimento silencioso.
Leonardo trouxera um esplndido farnel para ambos, alm de uma lanterna
para o caso de lhes anoitecer o dia no caminho. Assim o determinara El-Rei.
Comeram e beberam de gosto. Sentiam-se to companheiros (embora
respeitosos) e to -vontade um com outro, como se El-Rei no fosse rei e o
pajem um seu servo. Para alm disso, era -vontade que vinha de h anos.
Realmente, j h vrias horas que marchavam. H muito que haviam
deixado os geomtricos trilhos e bem tratadas rvores do Parque,
embrenhando-se em labirnticos becos onde escassamente chegava um ou
outro raio de sol. Esse mesmo, s escorregando ao longo dos troncos, por
entre confusos festes de galhos, verdura, cachos de flores selvticas; ou a
custo peneirando a sua luz dourada na rede dos filamentos e folhagens midas
das trepadeiras. Aps estes lugares agrestes, mas quase amenos, atravessaram
outros muito diferentes. Normalmente quando era preciso seguir veredas que
caprichosamente coleavam sob o sol a pino, desenhadas pela simples natureza
em terrenos de lodo espapaado, movedio, para logo adiante se afundarem,
-
em guas noturnas e subterrneas, sob altas moles de rochedos desabando uns
contra os outros.
Como toda a gente, ouvira Leonardo falar no passeio da rainha Elsa para l
do Parque. Teria ela ousado, de verdade, arriscar-se nestas regies
temerosas?, pensava ele agora. E de cada vez que evocara essa lendria
jornada da rainha morta, sentira Leonardo um prolongado arrepio mais
interior que da carne, acompanhado de uma espcie de inquietao no sabia
porqu, de pressentimento, ou suspeita, no sabia de qu... Felizmente, El-Rei
parecia conhecer muito bem tais paragens! Rompia sem a mnima hesitao
por semelhantes caminhos, como seguindo um guia invisvel; o que,
simultaneamente, assombrava o pajem Leonardo a ponto de lhe provocar um
acrscimo de terror (pois como os puderia conhecer El-Rei...?) e lhe dava a
confiana de quem segue um piloto experimentado. A par do seu senhor,
agora, e depois da sua viso, depois daquela misteriosa imposio de silncio
do rei, nem sabia o pajem Leonardo que pensar! Mas pensava, ou sonhava,
muitas coisas em que pressentia uma verdade esquiva mas real, mais real que
todas as verdades palpveis... Assim o seu senhor e ele estavam lado a lado,
familiares mas graves, tendo comido com satisfao porque os seus corpos
requeriam foras, mas vivendo uma vida que transcendia a dos corpos.
Vamos! disse o rei ao cabo de um longo silncio. Antes de
recomear, porm, ajoelhou e concentrou-se uns momentos. Entendendo que
o seu senhor agradecia Divina Providncia quer terem chegado at ali sos e
-
salvos, quer por terem restabelecido foras, Leonardo fez o sinal da cruz e
fingiu que tambm orava. Fingiu... o termo certo, porque nem com palavras
nem mentalmente poderia Leonardo coordenar qualquer orao. O seu
simples estado de esprito que era, ao mesmo tempo, um apelo e uma ao
de graas.
Posto isto, recomearam a andar. Ladearam as rochas, esquivaram os
acleos dos arbustos mais agressivos, passaram, quase de rastos, sob moitas de
catos que mais semelhavam inquietantes simbioses de flores e faunas
desconhecidas. Acharam-se, ento, perante uma densa floresta de rvores que
no saberiam classificar, mas lhes lembravam gigantescos pinheiros, em cuja
rama o vento desferia uma contnua toada saudosa e perturbadora, prolongada
para l at onde o ouvido podia ir.
Senhor... disse o pajem Leonardo recomeando a tremer. J antes,
atravs das selvas deixadas atrs, lhe parecera ouvir lamentosos uivos de feras.
L conseguira animar-se, esforando-se por os supor alucinao; (embora
as lendas que envolviam aquelas paragens o no deixassem repousar tranquilo
em tal hiptese). Agora, no tinha dvida: lamentosos uivos de lobos e
sarcsticos e arrepiantes pios de aves cortavam, de tempos a tempos, o
silncio no menos pavoroso daquela cerrao de troncos. Dela vinha, ainda,
um sopro que no parecia vento, mas antes um bafo tumular, gelado, que
-
batia na cara de Leonardo como se ele estivesse no limiar de outros mundos,
onde se respirasse outro ar...
El-Rei, que marchava um pouco frente, voltou-se para o pajem.
Canta! disse-lhe Cantar espanta o medo. E no tenhas medo,
porque h quem nos proteja.
Bem sei... respondeu muito no fundo de si o pajem Leonardo. E,
tremendo ao atravessar aquela floresta onde fazia eterna sombra, ergueu a voz
para evocar as suas praias cheias de sol. O pajem Leonardo passara a primeira
infncia em terras beira-mar. Nas suas cantigas chorava a nostalgia dos areais
rasados de estendais de espuma, fazendo faiscar ao sol imensas superfcies que
a gua, ao retirar-se, lamina. E o rtmico vaivm das ondas e a sua merencria
e adormecedora cantilena tambm ecoavam nos versos do pajem Leonardo.
Era por elas que El-Rei mandava-o chamar em noites de insnias, e o fazia
cantar; embora no soubesse bem que era por isso.
Tremendo atravs daquela floresta onde fazia eterna sombra, o pajem
Leonardo ergueu a voz fina e trmula, nostlgica... voz que, de repente, se lhe
enrodilhou na garganta, porque uns dedos de ferro o pareciam afogar; e o
pobre pajem ansiava e soluava, pedindo a Deus que o deixasse acordar
daquele sonho ora demasiado belo ora demasiado terrvel, superior s suas
foras. Do tenebroso corao da floresta, em frente, vinha agora um
espantoso sonido como de grandes quedas de gua distantes, ou montanhas
-
de vagas que avanassem, rolando, para subverter o mundo. Talvez mais no
fosse que o som do vento a repercutir, de copa em copa, no cimo das rvores.
Mas a imaginao de Leonardo estava sobre-excitada, e ele a ponto de no
respirar, no sentir, no palpar seno o mistrio sua volta. Na verdade,
apesar de uivos e pios, ainda no vira feras nem aves sinistras. E de bandidos
fugidos justia, evadidos das masmorras, etc..., nem sinais. Talvez essas no
fossem, porm, seno materializaes grosseiras do espanto, do terror, do
mistrio, que sempre a intuio popular pressentira pairar nestes lugares
incgnitos...
Estamos a chegar! disse o rei voltando-se. Mas viu que o seu pajem
parara de novo, com os olhos espantados; de novo ia desfalecer. Agarrou-o
pela cinta, encostando-o ao seu ombro e, arrebatando-o consigo, correram
juntos. Leonardo entrecerrara as plpebras, deixava-se levar. Assim vrias
vezes torceu por atalhos que nem via, admirado com a facilidade, a confiana
e ligeireza que o contacto do seu senhor lhe comunicara. De sbito, sentiu-se
parar, travado pelo companheiro. Abriu os olhos. Uma vasta clareira
espraiava-se diante deles, toda aberta ao sol que ainda brilhava muito acima
dos arvoredos. Como era possvel tanto sol?! Dir-se-ia terem transposto lguas
em muito pouco tempo, (para alm de que, pensava Leonardo, outros
quaisquer gastariam vrios dias nas distncias que, sem saber como, eles
faziam em horas ou minutos) pois de outra maneira no teria explicao um
sol ainda to alto. S era um sol demasiado claro, e, embora intenso, frio
-
como o luar, ou o sol de certos entardeceres de Inverno. Mais parecia uma
iluminao artificial ou sonhada do que a mera luz natural do dia. Talvez,
porm, s resultasse tal impresso quer da imaginao de Leonardo, quer de
ser o cho todo de areia fina, muito limpa, que parecia reverberar. No havia
nenhuma pegada nessa areia; nenhum sinal de j ter sido pisada.
Os espritos no devem ter peso... pensou Leonardo.
Ao fundo da clareira, contra um renque de rvores que, possivelmente,
iniciariam novos e sempre mais fechados bosques, uma choupana debuxava-se
com o telhado de palhas e galhos, os muros de toscas pedras sobrepostas, e
um postigo e uma porta meio abertos.
Espera-me aqui disse o rei ao companheiro. Canta se tiveres
medo...
Nem uivos de feras nem zoadas de guas longnquas interrompiam agora o
silncio sobrenatural. O rei adiantou-se, devagar, sob a areia fina e fofa.
Com um sobressalto ntimo, o pajem Leonardo reparou que tambm, sob
os passos do rei, nenhuma pegada ficava no cho, como se tambm El-Rei
seu amo se reduzira j a puro esprito. Ento, fina e trmula, a voz do pajem
Leonardo ergueu-se a chorar no silncio solene. que, para alm do mais,
vira novamente o fantasma da rainha Elsa pairando frente de El-Rei, por
isso ps-se a cantar para afugentar o pavor (um religioso pavor) para dissipar
tais alucinaes, se o eram. Bem sabia que no eram. Pensava, com ternura e
-
respeito: Minha madrinha! Minha madrinha...!. Mas a sua receosa cantiga
perdeu-se, estrangulada no ar, como se aquele ar a repelisse. O pajem desistiu
de cantar e, rezando, olhava. Como explicar o que se dera? Posto nenhum
som de palavras houvesse a vibrar no ar, Leonardo ouvira perfeitamente o
fantasma da sua madrinha, a rainha Elsa, dizer-lhe de longe: Por que tens
medo, afilhado?.
porta da choupana, o espectro desvaneceu-se. O rei chegou, e entrou.
Um gigantesco vulto de homem estava sentado num banco, com um grande
cartapcio (*) aberto sobre as mos ambas. Sentado, as barbas brancas
revoltas inundavam-lhe os joelhos como a espuma do mar inunda as rochas.
[(*) Grande livro antigo e em mau estado; calhamao]
Devagar, levantou a cabea do livro e os seus olhos, de um azul quase
branco, poisando e demorando nos do rei, impediram-no de dizer qualquer
palavra. Como se fosse da mais elementar pragmtica, nem esboara um gesto
para se erguer entrada da trmula Majestade; em vez disso parecia ser a
trmula Majestade que se mostrava tentada a dobrar o joelho.
-
Sei ao que vens disse o gigantesco velho em voz grave e tom quase
sarcstico. O principezinho perfeito com orelhas de burro precisa de um
preceptor em condies...
Do mais que se passou entre o bom rei Rodrigo e o Homem da Floresta,
bem como o seu regresso ao palcio com o bom pajem Leonardo, pouco
poderia um cronista dizer. Bem certo que muita coisa sabem (ou adivinham)
os novelistas e cronistas privilgio que, por vezes, os torna perigosamente
indiscretos. No esquecer, porm, que s Deus sabe tudo. E o certo que, a
despeito de todos os seus esforos para se recordarem, o prprio rei e o
prprio pajem esqueceram-se depois de vrias passagens, talvez muito
importantes, da sua singular expedio.
-
CAPTULO 5
ONDE SE AFLORA UM PROBLEMA CAPITAL QUE POSTO DE PARTE E
COMO FOI RECEBIDO O AIO DO PRNCIPE
Ora no teria sido tudo um simples sonho do rei? No teria ele sonhado
que despertara, realizando e completando, desperto, o que sonhara
inicialmente? E no teriam sido ambas as coisas duas partes do mesmo
sonho?
Impossvel! No pode quem sonha ficar a ser o prprio e entrar, ao mesmo
tempo, na alma e pele dos personagens com quem lida. Ora ainda h pouco
estivemos no ntimo do bom pajem Leonardo.
Teria sido, ento, um simples sonho de Leonardo? Menos possvel ainda, e
por idnticas razes. Porque no admitirmos, ento, que o bom rei Rodrigo e
o seu pajem Leonardo tivessem sonhado um com o outro, na mesma noite,
sobre o mesmo motivo, conjugando-se os dois sonhos no sonho atrs
narrado?
Embora extravagante, a hiptese fora plausvel. Mas quem teria, ento,
sonhado esse duplo sonho, na realidade da sua conjugao? Alm de que
vrios factos bem reais se deram depois estes perfeitamente autenticados
que no teriam explicao sem os arcanos da jornada do rei. Quanto a essa
jornada, (pelo menos, partida e chegada) no fora ela testemunhada por
-
tantos senhores da corte? Teriam sonhado todos? Oh, impossvel penetrar
no que s Deus sabe! Na realidade, que sabemos do mistrio em que nos
movemos? Quantas vezes no julgamos ter sonhado e acordado, quando,
afinal, vivemos? Quantas vezes no julgamos estar a viver quando, afinal, s
estamos a atravessar um sonho de que nos no sentiremos acordar? E quem
sabe se toda a prpria vida no um simples sonho? Um sonho de que
despertaremos no que chamamos de morte?
O mais sensato acabar com conjeturas que insensivelmente nos atrairiam
s regies confinantes da loucura lcida a mais terrvel. Limitemo-nos,
pois, nossa histria, segundo a pde esmiuar o cronista nos verdicos
documentos consultados.
No dia seguinte um homem apresentou-se no palcio a oferecer-se para aio
do prncipe. Grande arrojo, no verdade? Tanto mais que ningum sabia
quem era. To pouco de onde vinha. (Ningum?...) Pois o caso ter sido
aceite aps uma curta conferncia secreta com o soberano. Como era de
esperar, houve ansiosa curiosidade! E um grande escndalo na corte! Cada um
dos ministros mais vlidos, dos conselheiros mais egrgios, dos cortesos mais
em destaque, se julgara, nos refolhos das suas conscincias, destinado honra
de preceptor do prncipe. Como no conviria mostrar o despeito prprio,
cada um deles se manifestava, agora, surpreso, diga-se at indignado, por no
haver recado a escolha de El-Rei sobre o sbio Fulano ou o ilustre Sicrano.
-
Assim desafogava o despeito prprio, conta de um louvvel despeito
altrusta pelas ofendidas virtudes de outrem.
Eis como, reconhecendo, embora, ser ele prprio, Froilo, quem de toda
justia estava indicado para aio do rei futuro, se inflamava o ilustre Froilo
sustentando que, a existir na corte um sbio como Filinto, inexplicvel era ter
El-Rei preferido um annimo que viera ningum sabia de onde, ningum
sabia com que habilitaes... S entre os mais ntimos se permitia Froilo
insinuar que no basta a cincia para fazer um bom aio. De si para si, pensava
que toda a sabedoria de Filinto era estril, falsa, e Filinto um jarreta. Por
sua vez no se poupava Filinto a publicamente reconhecer os evidentssimos
direitos de Froilo, ousando at falar em leviandade a propsito da
estranhssima escolha de El-Rei. S os mais chegados poderiam ter ouvido
Filinto sugerir que nem sempre a celebridade de um homem pblico se
justifica por autnticos mritos. Pois o que Filinto pensava com os seus
botes que no passava Froilo de um cabotino, de um devasso, de um
trampolineiro, a essas imoralidades bem aproveitadas devendo o seu triunfo.
Entre o notvel Rolando e o discreto Maral ou o proficiente Rosendo, se
dava exatamente o mesmo jogo; como entre vrios dos mais distintos nomes
do reino. E nas mesas das bodegas, nos mictrios, na cal dos muros,
apareceram vivos e sujos epigramas que envolviam ou sugeriam os nomes do
ilustre Froilo, do sbio Filinto, do notvel Rolando, do discreto Maral, do
proficiente Rosendo... O povo que mais ou menos os conhecia a todos pois
-
muitas vezes fora a sua gasta passadeira. Por isso regalava-se com os ver
preteridos, e murmurava: Qualquer um ser melhor do que estes! Quem
sabe? Pode ser que o rei tenha acertado...
Ao cabo de uns meses, reconheceram os nobres senhores que de nada lhes
serviria maldizer a escolha de El-Rei. A verdade que nenhum indcio
apontava no rei arrependimento da sua escolha, muito pelo contrrio. Sua
Majestade no perdia ocasio de testemunhar ao Aio do filho a mais larga
confiana e subida estima, prestando-lhe honras verdadeiramente inslitas (ou
verdadeiramente escandalosas, no secreto ou j s cochichado parecer de tais
nobres senhores). To pouco parecia o Aio temer, sequer um momento, a
hostilidade fosse de quem fosse! Bem assente, e sempre crescente, a sua
extraordinria influncia quer sobre o pupilo quer sobre o soberano, vivia
aquele estupendo homem no palcio com o inteiro -vontade de cada um nos
seus aposentos mais ntimos. Notara-se, ou suspeitara-se, a invejosa
reprovao dos que muito antes dele a viviam; dado que, resolveram os
murmuradores mudar de ttica: Em comum acordo, (posto logo
compreendesse cada um o jogo dos outros com um raivoso sentimento de
estar a ser burlado ou plagiado) todos empreenderam adul-lo. Ora nessa arte,
eram eles mestres! Desde a impdica e brutal bajulao mais refinada, subtil,
delicada subservincia, qual deles no conhecia a fundo todos os botes dessa
arma to vulgar como poderosa, como perigosa? Qual deles no se exercitara,
em primor, em atingir esse calcanhar de Aquiles de todos os homens: a
-
vaidade ou o orgulho? Dir-se-ia, porm, ser o estranho homem exceo nica:
No tinha o calcanhar! A adulao resvalava pela sua indiferena como
resvalara a maledicncia, a inveja, a inimizade... E o caso que todos se
assarapantavam os seus inimigos e aduladores quando o diablico
desconhecido os fitava com os olhos quase brancos ntidos e redondos
olhos que pareciam j nada olhar da superfcie por tudo verem do fundo. Tais
olhos bastariam para infundir desconfiana e respeito, distncia e pavor, mas o
sortilgio de tal figura relacionava-se ainda com a sua estatura gigantesca, as
suas barbas que lhe chegavam ao baixo-ventre, e a justeza infalvel,
insuportvel, das suas alis bem raras palavras.
Justeza? As maioria das vezes, sim. As restantes das vezes tinham as suas
respostas uma nitidez, uma lgica e uma exatido que imediatamente
impediam a discordncia, decepando, como um gume fulgurante, qualquer
rplica. O interlocutor era irremissivelmente recambiado sua mediocridade.
E que remdio se no achatar sob um silncio de raiva, de despeito, de
admirao, de impotncia! Compreende o leitor perfeitamente que no h
nada mais humilhante, nada mais intolervel e desumano, do que a existncia
de um homem assim! A sua vida torna-se uma tcita e permanente acusao; a
sua presena um injurioso abuso.
De modo contrrio, outras vezes eram as suas alis bem raras palavras
destitudas de toda a inteligibilidade ou preciso. E ento a, era pior! O
interlocutor que se atrevia a confrontar a sua incoerncia (e era to tentador
-
poder considerar confusas, ou controvertveis, as palavras de tal homem!) bem
depressa experimentava uma agitao inexplicvel, um intenso mal-estar como
de quem se sentira culpado e descoberto, esmiuado e exibido... Dir-se-ia que
as extravagantes imagens e duplas palavras do Aio vertiginosamente atingiam
a mais recndita complexidade de cada um; e tona de cada um faziam vir as
algas do fundo, os tesouros enterrados por serem indesejveis, a flora e a
fauna das regies sem lua... Ento, j no eram s as palavras do confrontador
que emperravam! Eram os seus gestos que perdiam a naturalidade; os seus
olhares que se tornavam falsos e tmidos; era toda a sua atitude que
denunciava uma obscura e profunda inquietao.
Terceira maneira tinha ainda o aio de vencer o adversrio: perturbando-o
at ao fundo do seu ser. Isto consistia em fazer simultaneamente as
afirmaes na aparncia mais inconciliveis, sustentando o mais friamente
possvel, o mais impudente e serenamente possvel, verdades opostas; que
pareciam simples aspetos da mesma verdade. Quem no seria tentado a
desnudar a incompatibilidade de umas e outras? (sobretudo vindo de to
irritante personalidade!). Em breve trecho, porm, era o mais sagaz orador
colhido nas suas prprias redes, e embaraava-se e perdia, incapaz de qualquer
clareza ou at mera lealdade de raciocnio, no inextricvel labirinto dos pontos
de vista inesperados, e por igual justos embora adversos, do satnico
sofista.(*)
-
[(*) Os sofistas eram um grupo de estudiosos da antiga Grcia que se dedicavam arte da oratria e da
erudio de modo a seduzir, convencer ou a defender ideias, por meio do discurso. Era comum os sofistas
discursarem sobre determinado assunto, sobretudo poltico, nas goras (praas principais) da cidade, muitos
dos quais eram pagos para isso. Outros havia que eram pagos para defenderem ou acusarem algum em
julgamento. Scrates foi um fervoroso opositor dos sofistas, acusando-os de distorcer a verdade a seu favor, de
seduzir com enganos, mentiras e falcias e perverterem a natureza do saber e da cincia que devia primar na
busca pela verdade. Os sofistas, so no fundo, os antepassados dos advogados e polticos e quando se fala em
usar-se "sofismos" quer-se dizer recorrer ao uso de falcias ou de discursos enganosos.]
Quem diz a que ama a verdade, neste mundo?
Cega a verdade como um sol demasiado vivo,
Esmaga como um peso,
Aterra e atrai como um abismo.
A verdade perfeita mas um monstro!
Quem poder com ela, de entre ns?
Tem mil caras distintas e visveis,
E uma s verdadeira,
Que no vemos...
etc., etc.
-
Isto e muito mais dizia por esse tempo Rolo Rebolo, num poema que
ento passara despercebido. Se no passasse despercebido, ainda mais
incompreendido seria! Todavia, hoje considerado uma obra-prima. Pelo que
jaz sob um entulho de notas, comentrios, interpretaes e erudio, de que
preciso desenterr-lo para lhe gostar o sabor, a subtileza e o ritmo.
A que propsito, porm, ter Rolo Rebolo ou o seu poema a ver com
isto? No se falava do Aio do prncipe?
A verdade que, de todos os cortesos, s Rolo Rebolo no odiava o
intruso. Poeta e bobo, sempre tivera ele o privilgio de tudo dizer a pequenos
e grandes. Nunca os poupara; sobretudo aos grandes. Mas ainda nenhuma
palavra ou nenhuma das suas fbulas satricas, direta ou indiretamente, visara
ainda o desconhecido, por quem parecia professar um respeito inesperado em
to irreverente criatura; e, seguramente, professava uma ardente e vibrante
curiosidade. O certo sempre ter dito e redito, Rolo Rebolo, pelas mais
variadas imagens e palavras, que a humanidade atravessa ainda uma fase
primitiva da sua evoluo; que, mau grado as conquistas do conhecimento ou
os progressos da tcnica, o homem continua ignorando, ou mal consciente,
das suas muitas espantosas possibilidades; que os atuais limites da nossa
inteligncia, da nossa imaginao, dos nossos sentidos, limites que
parecemos querer manter contra as arrojadas tentativas de alguns loucos de
gnio maravilhosamente se ampliaro no homem do futuro; que, neste, se
conciliaro muitas das coisas que a nossa atual indolncia ou curteza de
-
esprito prefere supor como inconciliveis; como nele se desencadearo
poderes perante os quais hoje fechamos os olhos, cegos obstinados e tmidos;
etc.
Estas e outras utopias desta laia, que no convenciam ningum com juzo,
dizia e redizia Rolo Rebolo nos seus poemas excntricos, pelas mais
variadas imagens e palavras. Dado que no seria muito difcil crer que, na
singular figura do Aio, visse Rolo Rebolo uma antecipao, um smbolo,
qualquer coisa assim, do seu homem do futuro. Tudo era lcito esperar de
Rolo Rebolo!
Verdade se diga, tambm o extico preceptor lhe dispensava particulares
atenes, pois no s o no cumprimentara ainda com nenhum contacto do
bico do p, (modo muito comum que os cortesos tinham de cumprimentar o
poeta-bobo e de lhe fazerem sentir a sua deformidade e a impertinncia do
seu talento satrico) como at parecia permitir, com o agrado de quem se
acompanha de um co amigo, que o monstro o seguisse a rebolar. Mas no!
no com o agrado de quem se acompanha de um co..., por mais amigo que
seja! Antes com a satisfao de quem, em ptria alheia, reconhece um
indivduo da sua raa. E at havia quem afirmasse t-los apanhado em amena
conversa! Disto logo se aproveitaram os intriguistas, os descontentes, os
invejosos, desesperados de algo conseguirem junto do rei pelo seus esforos
de descrdito do Aio, ou junto do Aio pelo seus esforos de lisonja e
captao. Para a opinio pblica apelara o raivoso despeito dos cortesos: No
-
viria a constituir um perigo pblico (insinuavam, ou claramente diziam eles)
aquela influncia de to insondvel personalidade nos nimos da sua
Majestade e a sua Alteza? Quem poderia saber de onde viera, qual a sua
nacionalidade, que fins verdadeiramente se propunha, que entendimentos no
teria com os povos vizinhos, ou a que deformao no conseguiria arrastar o
jovem esprito, alis maravilhosamente dotado, que com tamanha leviandade
lhe fora entregue? No seria indcio de perigosa extravagncia aquela sua
predileo por um semilouco mal tolerado na corte? Isto, a par da sua
manifesta desconsiderao por todos os grandes nomes do reino; todos os
bons servidores da ptria e a sua Majestade; todos os homens de boa vontade,
bom juzo, boa cepa histrica...? A no ser gravssima singularidade, no
preceptor de um prncipe-herdeiro, tal disposio de esprito, que seria seno
prova de cavilosas intenes e maquinaes secretas?
Os corteses dirigiam tal propaganda a duas classes: o povo, que tem o
valor do nmero e constitui a massa; aos intelectuais, que tem o valor da
qualidade e se arvora em dirigente das massas. E a tal chamada no deixavam
de acorrer os intelectuais sfregos de lisonja e destaque; nomeadamente os
semi-inteletuais, cujas migalhas de talento os faz superiores a quem no tem
talento nenhum. Em folhas volantes comearam ento a aparecer panfletos e
manifestos (s vezes at poemetos) nos quais melhor ou pior se manejavam
listas de vocbulos to inflamados como ocos. Faziam admoestaes a El-Rei
-
e sabujices ao povo; bradava-se o alerta e, a pretexto de salvar a nao,
semeava-se a anarquia e a desconfiana.
Tais folhas volantes no eram assinadas, ou ento tinham uns capciosos
anagramas. Ora, exagerando grandemente os riscos a que se expunham
incorrendo no desagrado tanto da sua Majestade como do poderoso Aio, no
descuravam tais autores o de fazerem correr de boca em boca, por tabernas e
reunies, a decifrao dos seus engenhosos anagramas. O que cada um mais
sonhava era ser considerado o mais ardente defensor da causa pblica, o mais
vigilante zelador do bem da nao, etc.
Com estes e outros rtulos semelhantes, muito habilmente e modestamente
esforava-se cada autor por os colar ao seu nome literrio. Assim se habilitava
a ser bem recompensado em se extinguindo o reinado do estrangeiro; pois o
Aio do prncipe era chamado de "o estrangeiro" (e nesta designao se punha
tanto dio quanto ela, s vezes, comporta) e s suas funes na corte
chamavam "reinado".
Porm o povo..., ai!, o certo era no mostrar-se o pobre povo to alarmado
como convinha! Naturalmente, de entre a prpria arraia mida se haviam
alado pregadores, salvadores, iluminados. Ainda um pouco toscos, sim, mas
to prometedores, to suscetveis de lima, to visivelmente capazes de bem
arremedarem, se no excederem, os melhores e mais altos modelos no gnero!
Todos gritavam frequentemente: camaradas!, irmos!, correligionrios!; todos
-
invocavam gloriosamente o seu orgulho de filhos do povo, (posto quase
soubessem mostrar-se quase discretos, quase tmidos, quase finos decerto
por melhor representarem e honrarem a classe quando acaso chamados a
um meio superior); e todos, nas arengas, espalmavam perante a dzia e meia
de ouvintes as mos encouradas de calos reais ou fantsticos, introduzindo um
palavreado como s vem nos livros. Chamavam quilo as medalhas do
trabalho, as insgnias do pobre, a herana dos deserdados... Mas, entre a
dzia e meia dos ingnuos ouvintes, dois ou trs velhacos havia to ingratos,
digamos j to civilizados, que mais ou menos os suspeitavam de no
pensarem nos camaradas, nos irmos, nos correligionrios, seno por os
fazerem degraus da sua ambio.
E assim no parecia o autntico bom povo perder o apetite ou o sono com
o perigo que ameaava a nao. Que lhe fazia, a ele, a influncia que lograsse o
Aio? E que lucraria com passar ela s mos de outro? Quem tem de se
preocupar com o po de cada dia, no sobra tempo, nem cabea, nem humor,
para magicar em politiquices de que nada entende; e quem j viu subir ao
poder vrios que diziam desprezar o poder e viu ao que se limitava o seu
apregoado amor pela grei, j no vai muito em discursos frvidos...
Como lhe davam festas e faziam-no atravessar uma quadra de relativa
fartura, o povo confiava no seu rei e nos escolhidos do seu rei. Atrs de mim
vir quem de mim bom far! diziam; e logo concluam: O melhor deixar
estar quem est... Dos agitadores, salvadores, despertadores, oradores,
-
pensavam: Quem vos no conhecer que vos compre! A que nvel desceu
esta canalha! pensavam raivosamente, do povo ingrato, os seus mais
inflamados amigos.
-
CAPTULO 6
COMO FOI PASSANDO O TEMPO E O NOSSO PRNCIPE LEONEL CHEGOU
IDADE DE DEZOITO ANOS IGNORANDO O SEU DEFEITO.
E o tempo foi passando. S o bom pajem Leonardo e o bobo-poeta
disforme Rolo Rebolo sabiam, ou suspeitavam, a origem extraordinria da
influncia do Aio. Nunca Leonardo pudera esquecer o seu passeio com o rei
para l do Parque; embora, depois, vrios pormenores e acidentes dele se lhe
tivessem embrulhado na memria com fragmentos de sonhos em que o
revivera. Nunca dissera nada acerca de tal passeio, embora repetidssimas
vezes o tivessem palpado sobre o assunto... o mais habilmente possvel.
Agora, anos volvidos, j essa digresso chegava a parecer-lhe o estranho
delrio de uma noite de trovoada. A trovoada era coisa que muito agitava o
sensvel pajem Leonardo, sobre-excitando aos confins do desvario a sua
imaginao poderosa, eternamente fresca. Um facto, porm, convencia-o da
realidade da aventura: a afetuosa e particular intimidade que desde ento no
cessara de lhe conceder El-Rei. Decerto, nem palavra se trocara tambm entre
eles sobre a sua jornada comum.
Delicadssimas cumplicidades h em que intil, ou at chocante, falar, no
verdade? Um simples olhar mais denso basta a evoc-las e confirm-las. Para
o ter mais perto de si, fizera El-Rei de Leonardo seu criado particular de
-
cmara. E muitas vezes conversavam os dois, familiarmente, de coisas
familiares e banais; digamos, at, infantis, porque o rei envelhecia; e quanto a
Leonardo, sempre fora infantil. Muitas vezes, tarde, mandava o rei que
Leonardo lhe puxasse para a varanda o cadeiro de couro bordado. Depois
mandava-lhe que tambm se sentasse. Leonardo ajoelhava-se aos seus ps,
numa grande almofada de velho brocado. E quando, por intervalos, se
calavam, os olhos alongavam-se-lhe sobre os canteiros sempre em flor e o
Parque sem fim, que a alta varanda dominava. Bastava que os olhos de ambos
depois se encontrassem, se entendessem num momento de intimidade
fulgurante, para Leonardo saber que o seu passeio no fora sonhado; ou fora,
simultaneamente, sonhado por ambos, e no se sabe quem mais.
Quanto a Rolo Rebolo..., ai!, no podiam saber os que o t