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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Priscilia Sparapani O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Priscilia Sparapani

O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC- SP

Priscilia Sparapani

O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Professor Livre-Docente Sílvio Luís Ferreira da Rocha.

SÃO PAULO 2013

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Banca Examinadora

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Ao meu pai Mário, amigo, incentivador, querido, conselheiro, meu porto seguro; ouvinte de todas as horas, a quem sempre me socorro nos momentos em que preciso de apoio, carinho e compreensão, e que contribuiu com sua experiência profissional para este trabalho. À minha mãe Márcia, amiga, companheira, incentivadora, dedicada, zelosa, querida, fonte de amor e carinho, Mãe no melhor sentido da palavra, “cuore” da minha vida. À minha irmã Letícia, por ser minha alma companheira, confidente e cúmplice, que me conhece tanto e tão bem só pelo olhar, e que me apoia incondicionalmente; nosso compartilhar é muito especial. À minha sobrinha Laura, que veio trazendo muito amor, alegria e luz para todos. Tenho orgulho de vocês e de fazer parte desta família abençoada. Amo vocês! Obrigada pelo apoio durante toda esta jornada.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Silvio Luís Ferreira da Rocha, exemplo de professor e de ser humano. Obrigada pelos preciosos ensinamentos e observações sempre pertinentes, que muito contribuíram para a elaboração da presente tese. É uma imensa honra tê-lo como orientador em mais essa etapa.

Agradeço ao Prof. Dr. Celso Antônio Bandeira de Mello, sempre o maior mestre de todos nós, que inspira seus alunos a ter verdadeira paixão pelo Direito Administrativo e a trilhar pelo caminho da justiça, da igualdade, da ética. Obrigada pela oportunidade e raro privilégio de cursar o doutorado sendo sua aluna.

Aos Professores Doutores Dinorá Adelaide Musetti Grotti, João Antunes dos Santos Neto, Márcio Cammarosano e Sérgio Ferraz, pela honra de poder ser arguida por tão grandes mestres do Direito Administrativo.

Ao Carlos Eduardo Batalha da Silva e Costa, por quem tenho profunda amizade, respeito e consideração. Obrigada pelos incontáveis almoços e conversas para a troca de ideias a respeito das muitas dúvidas que tive durante a elaboração desta tese. Aprendi muito com você! Modelo de professor dedicado e comprometido com a profissão e com os seus alunos. Exemplo de humildade, generosidade e altruísmo para com todos a sua volta. Só tenho uma palavra para expressar toda a sua atenção comigo: gratidão.

À Ivani Contini Bramante, pelas sugestões e ideias muito bem-vindas para a melhora do trabalho e pela disposição em discutir um tema que nos é caro: o regime jurídico do servidor público, seus direitos e garantias.

Ao Marcelo Souza Koch Vaz Döppenschmitt, pela amizade e pela troca, nessa difícil caminhada, que é a elaboração da tese de doutorado.

Aos meus avós paternos Mário e Rosa, que, embora estejam no plano espiritual, continuam mandando suas vibrações de luz e carinho para todos nós, seus familiares. Ao meu avô materno Eduardo, que também virou um anjo de luz para ajudar a iluminar meu caminho.

À minha avó materna Eurides, 90 anos de força e vivacidade, por ter sido a minha primeira professora não só das letras e dos números, como também uma grande educadora da vida. E ao Miguel, avô de coração, pela sua bondade e grandeza de espírito.

Às amigas queridas Luciana Helena Brancaglione, Cecília Beatriz Soares de Almeida e Thatyana Antonelli Marcelino Brabo Patuto. Obrigada pelo apoio e incentivo sempre!

Às monitoras Vanessa Evelyn e Vanessa Galinari, por toda a competência com que desempenharam a atividade de monitoria, possibilitando que eu tivesse toda a confiança e suporte necessários para elaborar o presente trabalho com maior dedicação.

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RESUMO

SPARAPANI, Priscilia. O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos. 2013. 331 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

O objetivo desta tese consiste em apresentar o estudo do princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. Busca-se compreender as mudanças instituídas nos direitos e garantias desses servidores, como decorrência de uma série de emendas constitucionais promulgadas que alteraram profundamente seus direitos e garantias. Com esse intuito, inicia-se o exame do tema, tecendo uma exposição sobre as diversas formas que o ente estatal assumiu ao longo do seu processo evolutivo. Destaca-se que referida exposição não envolve somente aspectos jurídicos, mas adentra, igualmente, em aspectos sociais, políticos e econômicos; nesse viés, parte-se do contexto maior dos modelos históricos de Estado de Direito e a construção do Direito Administrativo que acompanha a evolução do Estado até chegar ao atual estágio do Estado brasileiro neossocial e o Direito Administrativo contemporâneo em terras pátrias. Após, passa-se ao exame da vedação ao retrocesso social como princípio do Estado de Direito: primeiro no direito estrangeiro, analisando-se o pensamento doutrinário e jurisprudencial sobre o assunto; depois, sua presença no ordenamento jurídico pátrio, de modo implícito na Constituição Federal de 1988; incluindo análise dos julgados das Cortes Superiores de Justiça brasileiras acerca da matéria. Por fim, analisa-se a aplicação do primado do não retrocesso social ao regime jurídico dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. Aludida análise é feita, primeiramente, por meio da exposição das mudanças todas em relação à garantia da estabilidade, do regime remuneratório e do regime previdenciário dos servidores públicos. Em seguida, o exame crítico do tema é feito por meio da divisão do assunto em cinco pontos principais: o papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos servidores públicos; a importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos; o princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos direitos e garantias dos servidores públicos; o regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do direito adquirido social; e, também, o princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica. O estudo acadêmico é justificado pela importância do assunto, uma vez que o tema da vedação ao retrocesso social é ainda novo e bastante polêmico, especialmente em virtude da própria divergência da doutrina quanto ao fundamento, conteúdo e alcance do princípio, o que reflete na pequena quantidade de decisões judiciais que envolvem o princípio da vedação ao retrocesso social nos Tribunais Superiores. Como método de pesquisa foram utilizados neste trabalho tanto o método dedutivo quanto o indutivo. Por intermédio da análise, fundamentalmente, de obras doutrinárias e, complementarmente, de jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal, foram abordadas as questões que envolvem o assunto. E, diante de todo o estudo, conclui-se que as alterações no regime jurídico do servidor público não ofendem o princípio da vedação ao retrocesso social se observarem a equivalência jurídica e a justa repartição de recursos. E, nesse passo, o não retrocesso social deve ser concebido como um princípio garantidor do nível mais elevado de direitos alcançado pela comunidade de servidores públicos ocupantes de cargos de provimento efetivo. Palavras-chave: Estado de Direito. Direito Administrativo. Vedação ao Retrocesso Social. Direito Adquirido Social. Regime Jurídico do Servidor Público Efetivo. Equivalência Jurídica.

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ABSTRACT

SPARAPANI, Priscilia. O princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao regime jurídico dos servidores públicos. 2013. 331 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

This thesis objective is to present the study of the principle of sealing the social regression and its application to the legal framework of public officeholders effective, and understand the changes imposed on the server’s rights and guarantees as a result of a series of constitutional amendments enacted that fundamentally altered their rights and guarantees. With this in mind, there will be a subject examination, a presentation will be built, based on the various ways that the state entity has taken over its evolutionary process. It is noteworthy that such exposure involves not only legal aspects, but social, political and economic with the same relevance; that bias is part of the larger context of historical models of rule of law and the construction of Administrative Law that accompanies evolution of the state to get to the current stage of the Brazilian neo-contemporary social and Administrative Law on land homelands. After passes to the examination of the social backlash as sealing principle of the rule of law: first in foreign law, analyzing the doctrinal and jurisprudential thought about it, then their presence the national laws, so implicit in the Federal Constitution 1988, including analysis of trial of Brazilian High Courts of Justice on the matter. Finally, we analyze the application of the rule of no social backlash to the legal regime of public officeholders effective. Alluded analysis is done, first, by exposing all of the changes in relation to ensuring the stability of the remuneration system and the pension system for civil servants. Then the critical examination of the subject is done by dividing the subject into five main points: the role of the Supreme Court to control the rights and guarantees of civil servants, the importance of “immutable clauses” in Democracy and Human Rights Protection and guarantees of public officeholders effective, the principle of sealing and protecting the social backlash that confers the rights and guarantees of civil servants, the legal occupant of the public servant position and effective social protection of vested rights, and also The sealing principle of the social backlash and legal equivalence. The academic study is justified by the importance of the issue, since the issue of sealing the social backlash is still new and quite controversial, especially on account of the divergence of doctrine as to the basis, content and scope of the principle, which reflects the small amount of judicial decisions involving the principle of sealing the social regression in the Superior Courts. As a research method was used in this study both the deductive method, as the inductive. Through the analysis, primarily of doctrinal works and in addition, jurisprudence, particularly the Supreme Court, were discussed the issues surrounding the subject. And before all the study, it is concluded that the changes in the legal regime of public servants not offend the principle of sealing the social backlash observe the equivalence legal and fair distribution of resources. And, in this step, the social backlash should not be conceived as a principle guaranteeing the highest level reached by the community rights of public servants occupying positions of effective provision.

Keywords: Rule of law. Administrative Law. Sealing the Social Rewind. Acquired Social Law. Legal Regime of Public Effective. Legal equivalence.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

1. MODELOS HISTÓRICOS DE ESTADO DE DIREITO E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ........................................................................................... 15

1.1 Considerações iniciais ................................................................................................ 15

1.2 O Estado liberal: o absenteísmo estatal ...................................................................... 17

1.2.1 A Revolução Francesa como fonte, o Estado de Direito como ponto de partida do Direito Administrativo e o papel do Conselho de Estado francês ............................................................................................................ 20

1.2.2 A “separação de poderes”, a contribuição da doutrina e a formação do Direito Administrativo ................................................................................... 22

1.2.3 A crise do liberalismo: a insustentabilidade do laissez-faire, laissez- -passer ............................................................................................................ 26

1.3 O Estado social: intervencionismo e justiça social .................................................... 28

1.3.1 O Estado social e o Direito Administrativo ................................................... 32

1.3.1.1 A constitucionalização do Direito Administrativo .......................... 35

1.3.2 A crise do Estado social .................................................................................... 39

1.4 O Estado pós-social .................................................................................................... 40

1.4.1 Estado neoliberal ............................................................................................ 41

1.4.2 O neoliberalismo e o Direito Administrativo ................................................. 46

1.4.3 A crise do neoliberalismo .............................................................................. 48

1.5 O Estado pós-neoliberal: a crise mundial e a proposta de resgate do Estado Social e Democrático de Direito .............................................................................................. 49

1.5.1 O Direito Administrativo no Estado pós-neoliberal ...................................... 53

1.6 O Estado brasileiro contemporâneo ........................................................................... 56

1.6.1 Considerações preliminares ........................................................................... 56

1.6.2 O Estado social na Constituição de 1988 ....................................................... 57

1.6.3 O Estado neoliberal ........................................................................................ 58

1.6.4 O Estado brasileiro neossocial ....................................................................... 60

1.6.5 O atual estágio do Direito Administrativo brasileiro ..................................... 63

2. A VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL COMO PRINCÍPIO DO ESTADO DE DIREITO .............................................................................................................................. 72

2.1 Princípio da vedação ao retrocesso social: pensamento estrangeiro acerca do tema . 74

2.1.1 Alemanha ....................................................................................................... 74

2.1.2 Itália ............................................................................................................... 80

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2.1.3 Portugal .......................................................................................................... 85

2.2 Brasil ............................................................................................................................. 101

2.2.1 Pensamento doutrinário a respeito do tema ................................................. 101

2.2.2 Fundamentos constitucionais do princípio da vedação ao retrocesso social ............................................................................................................ 130

2.2.2.1 A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade ....................................................................................... 131

2.2.2.2 A paulatina redução das desigualdades regionais e sociais ........... 135

2.2.2.3 A construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social ........................................................................... 136

2.2.2.4 O direito adquirido social e o princípio da vedação ao retrocesso social .............................................................................................. 137

2.2.2.4.1 A controvérsia em torno do conceito de direito adquirido ........................................................................ 137

2.2.2.4.2 O direito adquirido individual e social ........................... 141

2.2.2.4.3 Direito adquirido individual e social em face de emenda constitucional .................................................... 147

2.2.2.4.4 Direito adquirido individual e social: as diferentes dimensões de proteção ................................................... 154

2.2.2.5 Os tratados internacionais e a adesão brasileira ao princípio da vedação ao retrocesso social .......................................................... 156

2.2.3 Entendimento jurisprudencial a respeito do tema ........................................ 166

3. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E SUA APLICAÇÃO AO REGIME JURÍDICO DO SERVIDOR PÚBLICO ..................................................... 179

3.1 Os servidores públicos: terminologia e classificação .............................................. 179

3.2 Regime estatutário ou institucional do servidor público .......................................... 182

3.3 Regime constitucional dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos ........ 189

3.3.1 Alterações instituídas no tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário ........................................................................... 189

3.3.1.1 Garantia da estabilidade ................................................................. 190

3.3.1.1.1 Efeitos decorrentes da estabilidade: direitos à reintegração, à disponibilidade, ao aproveitamento e à recondução ..................................................................... 198

3.3.1.2 Sistema remuneratório dos servidores públicos ............................ 201

3.3.1.2.1 Normas constitucionais pertinentes à remuneração ou vencimento ..................................................................... 203

3.3.1.2.2 Regime de subsídios ....................................................... 205

3.3.1.2.3 Normas comuns à remuneração e aos subsídios ............. 208

3.3.1.3 Aposentadoria e proventos ............................................................ 217

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3.3.1.3.1 O regime previdenciário e as Emendas Constitucionais 20/1998, 41/2003 e 47/2005 ........................................... 221

3.3.1.3.2 Emenda Constitucional 20 de 1998 ................................ 222

3.3.1.3.3 Emenda Constitucional 41 de 2003 ................................ 233

3.3.1.3.4 Emenda Constitucional 47/2005 ..................................... 241

3.4 O princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico constitucional do servidor público ocupante de cargo efetivo ............................................................. 244

3.4.1 O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos servidores públicos ................................................................................ 245

3.4.1.1 A tese dos princípios – os argumentos de princípio e os argumentos de política ................................................................... 246

3.4.1.2 O emprego de argumentos de política pelo Supremo Tribunal Federal e a teoria da reserva do possível ....................................... 251

3.4.2 A importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos .. 259

3.4.3 O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos direitos e garantias dos servidores públicos ................................................. 272

3.4.4 O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do direito adquirido social ............................................................. 279

3.4.5 O princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica ........ 288

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 302

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 311

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11

INTRODUÇÃO

O presente estudo procura refletir sobre o princípio da vedação ao

retrocesso social aplicado ao Direito Administrativo, em especial ao regime jurídico dos

servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. A análise do tema mostra-se

relevante, sobretudo após o advento de várias emendas constitucionais que introduziram

profundas alterações nos direitos e garantias dos servidores, em fins do século XX e

começo do atual século XXI. Assim, ante esse cenário de mudanças, o exame do

assunto buscará verificar se referidas modificações são legítimas (justificadas) perante o

Estado Social e Democrático de Direito agasalhado pela Constituição Federal de 1988,

ou se ferem o mandamento do não retrocesso social.

Para tanto, a tese situará a temática não somente no campo jurídico, mas

também no domínio social, político e econômico mundial da época em que as mudanças

foram realizadas, uma vez que o panorama sociopolítico e econômico-financeiro

exerceu forte influência nas transformações referentes aos direitos e garantias dos

servidores públicos.

Nesse viés, no capítulo inicial – por intermédio do exame dos modelos

históricos de Estado de Direito e a construção do Direito Administrativo que

acompanha a evolução do ente estatal –, procurar-se-á contextualizar as alterações

instituídas nos modelos de Estado e como tais mudanças repercutiram no Direito

Administrativo.

Nesse passo, será visto que o Direito Administrativo sofre o influxo

direto das alternâncias de modelos de Estado. De tal modo, a abordagem do assunto

começará a partir do Estado liberal, como modelo estatal em que há o nascimento do

Estado de Direito como ponto de partida do Direito Administrativo, até chegar ao

Estado pós-neoliberal no cenário internacional, na crise que acomete referida forma de

Estado e qual o estágio do Direito Administrativo nesse contexto.

Além disso, a análise também terá como meta trazer a lume o Estado

Brasileiro Contemporâneo neossocial e o atual estágio do Direito Administrativo pátrio,

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mostrando-se, por intermédio de uma exposição geral, as mutações ocorridas nesse

ramo do Direito para uma melhor compreensão e contextualização da temática referente

às mudanças no regime jurídico dos servidores públicos.

Com o objetivo de analisar o conteúdo do princípio da vedação ao

retrocesso social, torna-se necessário proceder ao exame do referido princípio no

Capítulo 2 como um dos mandamentos do Estado de Direito.

Dessa forma, sem olvidar que a prioridade é o estudo do princípio do

não retrocesso social no ordenamento jurídico pátrio, revela-se importante conhecer o

pensamento doutrinário e jurisprudencial de outros países a respeito do aludido

primado, principalmente porque a proibição de retrocesso social foi mais bem

desenvolvida em outros ordenamentos, e, desse modo, ao ser acolhida pela doutrina

nacional, carrega consigo um conteúdo fortemente influenciado pelas ideias de

estudiosos de outras nações, em especial da doutrina e jurisprudência portuguesas,

consoante se exporá. Contudo, de igual modo, não se poderá deixar de trazer à baila a

doutrina alemã e italiana acerca do tema.

De tal maneira, após a análise do direito estrangeiro, conhecer-se-á o

pensamento da doutrina brasileira a respeito do citado princípio e o âmbito de sua

aplicação, para adotar o posicionamento que defende a aplicação ampla do não

retrocesso social, inclusive no plano constitucional. Afora isso, enfrentar-se-á o desafio

de estabelecer os fundamentos constitucionais do princípio do não retrocesso social com

a finalidade de evidenciar sua presença como princípio implícito na Lei Fundamental.

E se encerrará o segundo capítulo com o exame da jurisprudência dos

Tribunais Superiores pátrios (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça)

no intuito de demonstrar que ainda é pequeno o número de julgados nessas Cortes de

Justiça, que utilizam, na sua argumentação, o princípio da proibição de retrocesso

social, ou mesmo que o invoque como primado a ser aplicado para a solução de um caso

sub judice.

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13

Após essa abordagem, toda a atenção do presente trabalho voltar-se-á,

no Capítulo 3, para o princípio da vedação ao retrocesso social e sua aplicação ao

regime jurídico dos servidores públicos.

De início, será realizado um exame mais detalhado sobre as mudanças

trazidas pelas emendas constitucionais que estabeleceram modificações nos direitos e

garantias fundamentais dos servidores públicos, quais sejam: na garantia da

estabilidade, no regime remuneratório e no regime previdenciário. Nesse ponto do

último capítulo, o método utilizado é o indutivo, em que serão analisadas pontualmente

as alterações concernentes a tais direitos e garantias, o que, consequentemente,

possibilitará divisar um prisma mais particularizado de cada item estudado. O intento é

o de mostrar as mudanças referentes aos citados direitos e garantias fundamentais

instituídas em decorrência de uma série de emendas constitucionais.

Com base nesse estudo, abre-se caminho para tratar de cinco pontos

importantes acerca da aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social no que diz

respeito aos direitos e garantias dos servidores públicos efetivos.

O primeiro ponto é representado pela análise do papel do Judiciário,

particularmente do Supremo Tribunal Federal, no controle dos direitos e garantias dos

servidores, e a tendência dessa Corte em utilizar argumentos político-econômicos no

lugar de proceder a uma argumentação jurídica para fundamentar seus julgados. Nessa

análise, tratar-se-á de uma temática especialmente ligada ao assunto em pauta, qual seja

a teoria da reserva do possível, que em muitas oportunidades entraria em conflito com o

princípio da vedação ao retrocesso social. Assim sendo, diante da importância do tema,

um tópico, ainda que breve, será dedicado à matéria.

Prosseguindo no desenvolvimento do capítulo, o ponto seguinte

abordará a relevância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção que emana das

aludidas cláusulas em relação aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes

de cargos efetivos.

E na sequência, adentrando mais efetivamente na aplicação do princípio

do não retrocesso social, falar-se-á, no terceiro ponto, da proteção que esse mandamento

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confere aos direitos e garantias dos servidores públicos. Disso resultará nítida a função

do primado do não retrocesso social em relação à proteção conferida ao núcleo

fundamental da Constituição.

Também será imprescindível passar, no quarto ponto, pela análise do

regime jurídico do servidor público, tecendo um comparativo no tocante às diferentes

dimensões de proteção do direito adquirido: o direito adquirido individual e o direito

adquirido social.

E por fim, mas não menos relevante, abordar-se-á um tema essencial

para encerrar a tese e a matéria aqui discutida: o princípio da vedação ao retrocesso

social e a equivalência jurídica, medida esta, aliás, necessária para uma aplicação que

preze pela coerência do sistema jurídico constitucional-administrativo.

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MODELOS HISTÓRICOS DE ESTADO DE DIREITO E A

CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

SUMÁRIO: 1.1. Considerações iniciais 1.2. O Estado liberal: o absenteísmo estatal. 1.2.1. A Revolução Francesa como fonte, o Estado de Direito como ponto de partida do Direito Administrativo e o papel do Conselho de Estado francês. 1.2.2. A “separação de poderes”, a contribuição da doutrina e a formação do Direito Administrativo. 1.2.3. A crise do liberalismo: a insustentabilidade do laissez faire, laissez passer. 1.3. O Estado social: intervencionismo e justiça social. 1.3.1. O Estado social e o Direito Administrativo. 1.3.1.1. A constitucionalização do Direito Administrativo. 1.3.2. A crise do Estado social. 1.4. O Estado pós-social. 1.4.1. Estado neoliberal. 1.4.2. O neoliberalismo e o Direito Administrativo. 1.4.3. A crise do neoliberalismo. 1.5. O Estado pós-neoliberal: a crise mundial e a proposta de resgate do Estado social e Democrático de Direito. 1.5.1. O Direito Administrativo no Estado pós-neoliberal. 1.6. O Estado brasileiro contemporâneo. 1.6.1. Considerações preliminares. 1.6.2. O Estado social na Constituição de 1988. 1.6.3. O Estado neoliberal. 1.6.4. O Estado brasileiro neossocial. 1.6.5. O atual estágio do Direito Administrativo brasileiro.

1.1 Considerações iniciais

A evolução do Direito Administrativo mescla-se com a ideia de

evolução e transformação sofrida pelo próprio Estado. Essa disciplina jurídica tem

ligação direta com as mudanças de modelo estatal, bem como com as modificações

introduzidas no seu aparelho.1

Daí alguns doutrinadores afirmarem que “O Direito Administrativo,

enquanto conjunto de normas que regula as relações do Estado com os particulares,

pode-se dizer que existiu sempre, desde o nascimento do Estado. Mas isso não foi

suficiente ab origine à criação de uma disciplina”.2 Deveras, no início do Estado

1 Nos dizeres de Odete Medauar: “[...] da concepção do Estado decorrem consequências no contexto

das instituições públicas, sobretudo governamental e administrativa. Se a disciplina jurídica da Administração Pública centraliza-se no direito administrativo e se a Administração integra a organização estatal, evidente que o modo de ser e de atuar do Estado e seus valores, repercutem na configuração dos conceitos e institutos desse ramo do direito” (Odete Medauar, O direito administrativo em evolução, São Paulo: RT, 1992, p. 74).

2 Agustín Gordillo, Tratado de derecho administrativo, Parte General, 5. ed., Buenos Aires:

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moderno, que se edifica centrado no absolutismo monárquico, o que havia pode ser

considerado um complexo normativo predecessor do Direito Administrativo, na medida

em que este se origina como ramo autônomo somente quando se tem o Estado de

Direito como fator favorável e a “separação de poderes” como seu pressuposto, ao que

se somam outros elementos, conforme se verá.

Nessa toada, desde o Estado da liberdade contra o despotismo, que

favorece o surgimento dessa área do saber jurídico, até o Estado Democrático de Direito

pós-neoliberal (contemporâneo), o Direito Administrativo desponta como um ramo que

ganha cada vez mais destaque e importância e se torna mais complexo e dinâmico em

virtude do fluxo dos acontecimentos político-econômico-sociais.

Hodiernamente, diante da globalização, do surgimento de novos

institutos e ideologias, que introduzem (ou tentam introduzir) novas formas de conceber

o Estado e o seu papel, o Direito Administrativo sofre constantes mutações embaladas

pela ideia de que é preciso acompanhar o momento e as atuais tendências mundiais.

Dessa evolução compassada no ritmo das mudanças do Estado, o Direito

Administrativo vai agasalhando institutos, técnicas e conceitos diferenciados.

Na esteira dessas considerações, a análise da correlação entre a

transformação dos modelos de Estado e a evolução do Direito Administrativo pode ser

feita por diversos prismas: histórico, filosófico, político-ideológico, econômico, jurídico

e social. Conquanto em termos didáticos o exame de cada um desses aspectos em

separado seja pertinente, assim não se procederá, na medida em que se opta por tratá-los

de forma conjugada, buscando apresentar uma visão multifária sobre a temática que se

quer considerar, de maneira a alicerçar suficientemente o desfecho que se pretende

alcançar com a explanação do tema.

Tendo por base essas afirmações e esclarecimentos iniciais, pretende-se

ao final deste capítulo inaugural da presente tese trazer a visão do Direito

Fundación de Derecho Administrativo, t. 1, p. II-1. No original: “El derecho administrativo en cuanto conjunto de normas que regula las relaciones del Estado con los particulares, puede decirse que ha existido siempre, desde el nacimiento del Estado. Pero ello no ha sido suficiente ab origene para la creación de una disciplina”.

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17

Administrativo contemporâneo, bem como delinear as principais características do

modelo de Estado que condiz com o espírito e as disposições contidas na Constituição

de 1988, com o escopo de estabelecer as premissas fundamentais para o

desenvolvimento dos demais capítulos e dos assuntos que serão abordados no decorrer

deste estudo.

Por conseguinte, diante do que se intenta expor, em virtude de o Estado

ser fruto de um contínuo processo de evolução e de o Direito Administrativo se formar

quando o ente estatal atinge um determinado patamar que combina e reúne distintos

fatores, o estudo do assunto será mais bem compreendido se o início de sua abordagem

revelar o panorama encontrado no nascimento do Estado liberal.

1.2 O Estado liberal: o absenteísmo estatal

Buscando superar o antigo regime, surge o liberalismo. Caracterizado

por novéis visões e originais concepções tanto na filosofia, literatura e ciência quanto na

política e economia, desenvolve-se com base no racionalismo (corrente fundamental no

pensamento liberal), nas ideias empiristas do iluminismo e no liberalismo econômico.

Com a vitória da burguesia sobre o clero e a aristocracia, e a consagração das aspirações

defendidas pela Revolução Francesa, inaugura-se um novo modelo de Estado que

prevaleceu na Europa e nos Estados Unidos no século XIX.

Com a preocupação de deixar as práticas do absolutismo para trás, é

possível verificar que, “No plano institucional, o liberalismo significou a construção de

um Estado em que o poder se fazia função do consenso, e em que a divisão de poderes

se tornava princípio obrigatório”; além disso, “o direito prevalecia em seu sentido

formal e a ética social repudiava as intervenções governamentais”.3 Imperava a ideia de

que “O Estado que governa melhor é aquele que governa menos”.4

3 Nelson Saldanha, O Estado moderno e o constitucionalismo, São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 51-53. 4 Norberto Bobbio, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, Organizado

por Michelangelo Bovero, Tradução de Daniela Beccaccia Versiani, Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 226.

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Nesse viés, o Estado liberal assumiu fundamentalmente traços próprios

do que lhe seria característico: o absenteísmo estatal. Portanto, o lema era a não

intervenção: seja na ordem econômica – o que propiciou o afastamento do Estado da

economia favorecendo o livre mercado, a livre-iniciativa e o desenvolvimento

espontâneo das capacidades individuais em benefício da sociedade, graças à orientação

do que Adam Smith denominou de “mão invisível”5 –, seja em relação aos direitos e às

liberdades dos indivíduos, atuando, nesse caso, apenas em defesa do direito de

propriedade para resguardá-lo, visto que este, segundo defendia Locke, “é um direito

natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado”.6 O ser humano alcançaria a

plenitude e a liberdade com o domínio sobre os bens, com o ser proprietário.7

Importa destacar que nessa época, contemporâneo ao Estado liberal,

surge o constitucionalismo8 e acontece a codificação9 (notadamente os códigos civis).

5 Em relação à liberdade dos indivíduos no plano econômico assevera Jorge Reis Novais, apoiado em

Adam Smith, que: “O bem-estar colectivo resultará, não de uma actividade conscientemente dirigida a atingi-lo, mas antes do livre encontro dos fins individuais, da livre concorrência de produtores e consumidores movidos e dirigidos por uma mão invisível através da procura e oferta de mercadorias. Porém, para que estes resultados se produzam é necessário que as leis internas da economia se possam desenvolver sem interferências exteriores e, logo, sem intervenção do Estado na esfera económica, para que a política não venha alterar a livre concorrência dos agentes económicos” (Jorge Reis Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito liberal ao Estado social e democrático de direito, Dissertação de Pós-Graduação apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em outubro de 1985, Separata do volume XXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1987, p. 53).

6 Leonel Itaussu Almeida Mello, John Locke e o individualismo liberal, in: Francisco C. Weffort (Org.), Os clássicos da política, 11. ed., São Paulo: Ática, 1999, v. 1, p. 85.

7 E é exatamente o indivíduo dono de coisas e detentor de patrimônio que se torna paradigma para os códigos civis (codificação).

8 Importa destacar que: “É preciso ter em conta, porém, que o constitucionalismo, apesar de impulsionado sempre pelos mesmos objetivos básicos, teve características diversificadas, segundo as circunstâncias de cada Estado. Com efeito, surgindo num momento em que a doutrina econômica predominante era o liberalismo, incorporou-se o constitucionalismo ao acervo de ideias que iriam configurar o liberalismo político. Este, por sua vez, expandiu-se como ponto de convergência das lutas a favor dos direitos e da liberdade do indivíduo. Dessa forma, em alguns Estados o constitucionalismo foi o instrumento de afirmação política de novas classes econômicas, enquanto que, em outros, foi a mera expressão de anseios intelectuais, nascidos de um romantismo político sem caráter utilitarista. Naqueles, em consequência, o constitucionalismo teve caráter verdadeiramente revolucionário, consagrando mudanças estruturais e implicando limitações ao governo e ao Estado. Nos demais teve um sentido quase simbólico, gerando as monarquias constitucionais, cujo absolutismo perdeu o caráter pessoal para adquirir um fundamento legal” (Dalmo Dallari, Elementos de teoria geral do Estado, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 72).

9 Em verdade, a ideia de Codificação, diz Bartolomé Clavero, “Define-se no momento revolucionário” (Revolução Francesa) “como meio de superação da sociedade estamental e corporativa [...]. Este é o conceito primogênito de Código”. Deveras, “Reclamam-no os Direitos e é efeito da Revolução. Esta é a sequência. [...] É assim o Código um tipo de norma que, do mesmo modo e no mesmo grau que a Constituição, traz Direitos. Não constitui um desenvolvimento ulterior do ordenamento, senão a

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Aquele com a tarefa de restringir fortemente o Estado, definir suas estruturas e limitar o

poder político. Esta com o papel de garantir a mais extensa esfera de autonomia aos

indivíduos (princípio da autonomia da vontade), sobretudo na área econômica.

Consequentemente, se o que impera é o predomínio das liberdades negativas (direitos

baseados no valor essencial da liberdade e autonomia, denominados direitos individuais

ou de primeira geração), evidencia-se nesse contexto “uma nítida assimetria na relação

público-privado. O domínio do privado, nesse cenário em que prevalece o liberalismo

(político e econômico), é superdimensionado”.10-11

Nesse passo, enquanto o Direito Civil computava um extenso

desenvolvimento histórico – e agora vocacionado e centrado na figura do indivíduo –, o

Direito Público voltado à contenção da atividade estatal sofre o seu despertar. Nesse

panorama, por conseguinte, o Direito Administrativo começa a encontrar terreno

propício para sua formação, para só então se consolidar ao final do século XIX, como

um ramo do Direito Público independente, mediante a junção de vários elementos

(conforme se verá no item 1.2.2). Contudo, muitos doutrinadores apontam o movimento

revolucionário francês de 1789 como marco do nascimento desse ramo jurídico e o

Estado de Direito como seu ponto de partida.

ordenação imediata da liberdade no âmbito civil do mesmíssimo modo e no mesmíssimo grau que a Constituição o é ou deve também teoricamente sê-lo no político”. E continua: “Não há uma sequência de Direitos. Constituição e em seguida leis, eventualmente Códigos. Há uma relação direta do Código com os Direitos, igual a da Constituição. Um par de Códigos essencialmente se coloca lado a lado: um político, mais procedimental, e outro civil, mais substantivo. E esta codificação seria o direito pela razão de realizar os Direitos” (Bartolomé Clavero Salvador, Codificación y Constitución: paradigmas de um binomio, Quaderni Fiorentini, Milano: Giuffrè, p. 104-105, 1989).

10 Cristiano Paixão Araújo Pinto, Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito, in: Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira, (Org.), O novo direito administrativo brasileiro: o Estado, as Agências e o Terceiro Setor, Belo Horizonte: Fórum, 2003. Em endereço eletrônico: disponível em: <http://direitoachadonasarjeta.wordpress.com/2008/10/31/arqueologia-de-uma-distincao-o-publico-e-o-privado-na-experiencia-historica-do-direito/>. Acesso em: 19 jul. 2011.

11 Pode-se dizer que: “É nessa quadra histórica que se inicia o interesse – ainda presente – de delimitar a divisão entre direito público e direito privado. Numa sociedade que estabelece, de forma explícita e propositiva, a limitação dos poderes do Estado, e que privilegia, como observado, a distribuição ‘natural’ de oportunidades pela própria dinâmica social, será fundamental considerar o direito público como aquele repertório mínimo de disposições e instrumentos referentes ao governo representativo, permanecendo uma grande parcela do direito público regida por convenção (usos e costumes que permeiam a prática do sistema político, procedimentos que limitam a universalização da participação popular, formalismo cada vez mais exacerbado dos processos e organizações estatais). O direito privado, por seu turno, radicaliza a emancipação do indivíduo, fruto da Modernidade. O elemento central é o contrato, e são pressupostas as potencialidades e capacidades de todo e qualquer indivíduo de firmar pactos, ser proprietário de bens e ser regido por um sistema universal de leis gerais e abstratas” (Araújo Pinto, Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito).

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1.2.1 A Revolução Francesa como fonte, o Estado de Direito como ponto de partida

do Direito Administrativo e o papel do Conselho de Estado francês

Ao pôr fim à servidão e aos privilégios da nobreza e anunciar os ideais

universais, pregados por Rousseau, de “liberdade, igualdade e fraternidade”, a

Revolução Francesa consolidou o terceiro estado12 no poder e influenciou fortemente

outras revoluções pelo mundo, em especial as europeias e os movimentos de luta em

favor da libertação dos países da América Latina. Permitiu o nascimento do Estado de

Direito, baseado no primado da legalidade.

O Estado que se submete à lei tem, assim, íntima ligação com o

movimento revolucionário francês e, nesse passo, reconhece-se que o Direito

Administrativo, como regime especializado que disciplina a Administração Pública,

encontra ambiente propício para surgir. Portanto, a Revolução Francesa que dá origem

ao Estado que vige sob o império das leis também favorece o nascimento do Direito

Administrativo. Nesse sentido, é comum encontrar na doutrina do Direito Público a

associação do surgimento do Direito Administrativo à Revolução Francesa13 e à noção

de Estado de Direito.14

12 Sobre o terceiro estado importante foi a contribuição de Emmanuel Joseph Sieyès que escreveu

“Qu’est-ce que le tiers état?” (O que é o terceiro estado?). Tendo por base a doutrina do contrato social, de John Locke e Jean-Jacques Rousseau, o citado autor defendia a ascensão do terceiro estado (o povo) ao poder. Concebia um poder próprio da nação, superior aos demais poderes que tivessem sido constituídos de forma ordinária, sendo que tal poder não poderia ser por eles modificável. Surge então o poder constituinte. Nesse passo, asseverava que o terceiro estado “deve reunir-se à parte, não concorrendo com a nobreza e o clero, não permanecendo com ele nem por Ordens nem por cabeças. Rogo que se atenda à enorme diferença que há entre a assembleia do Terceiro Estado e a das outras duas Ordens. A primeira representa vinte e cinco milhões de homens e delibera sobre os interesses da Nação. As duas outras, ainda que reunidas, não têm poderes senão de cerca de duzentos mil indivíduos e só pensam nos seus privilégios. Dir-se-á que o Terceiro sozinho não pode formar os Estados gerais. Oh! tanto melhor! Comporá uma Assembleia Nacional” (Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias, Tradução de Lydia Christina, 5. ed., Rio de Janeiro: Agir, 1990, p. 201).

13 Esse é o entendimento de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón Fernandéz, que reconhecem que o Direito Administrativo nasce com a Revolução Francesa (Curso de derecho administrativo, 9. ed., Madrid: Civitas, 1999, nota 5, t. I, p. 26). Por sua vez, Luciano Parejo Afonso diz que o Direito Administrativo tem como ponto de partida a Revolução Francesa, mas também é produto dos valores herdados do absolutismo monárquico. Assim leciona: “Somente com a precisão que resulta das precedentes considerações parece possível tomar o Estado constitucional de direito surgido da Revolução Francesa ou por seu influxo como ponto de partida ou origem do direito administrativo. Este não surge como consequência inevitável dos valores originais que consagra dito Estado revolucionário (é dizer, não é fruto unicamente da revolução e suas consequências políticas, senão como resultado da mescla ou síntese desses valores e dos herdados do regime anterior caducado” (El

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Sob esse vértice Libardo Rodríguez Rodríguez afirma “que a filosofia

política e a concepção de Estado que se impuseram com a Revolução Francesa, de 1789,

constituem a fonte próxima do Direito Administrativo”. E, desse modo, “o conceito de

Estado de Direito, que constituiu um dos princípios norteadores dessa Revolução, foi,

por sua vez, o ponto de partida desse ramo do direito”.15

Nesse compasso, Jean Rivero defende que essa área jurídica só pode

surgir no panorama do Estado de Direito, a partir do instante em que o governante

consentiu em ver seus agentes sujeitos, em relação aos particulares, por norma

obrigatória e sancionada jurisdicionalmente.16 Em outras palavras significa que concebe

o Direito Administrativo, surgido para disciplinar as relações entre o Estado e os

administrados, sujeitando-se também o soberano a um conjunto normativo, apenas

quando se tem o Estado de Direito servindo como sua pedra angular e seu fundamento.

Ainda, na medida em que se afirma “que o direito administrativo, como

ramo especializado do direito, é uma concepção e criação do direito francês, originado

na Revolução Francesa de 1789”, tem-se que acrescentar a ideia, segundo Rodríguez,

apoiado na doutrina de vários autores, de que também é resultado “de uma evolução

progressiva que foi consolidando dita concepção”.17 E essa evolução é devida à

elaboração e trabalho do Conselho de Estado francês, instituído como órgão máximo da

jurisdição administrativa que se estabeleceu na França. Assim, instituiu-se a dualidade

concepto del derecho administrativo, Caracas: Jurídica Venezolana, 1984, nota 1, p. 41 Colección Estudios Jurídicos, n. 23).

14 Nesse sentido é a observação de Medauar; diz: “Frequente, na doutrina publicista, se apresenta a vinculação do surgimento do direito administrativo ao Estado de Direito” (O direito administrativo em evolução, p. 20).

15 Libardo Rodríguez Rodríguez, Explicación histórica del derecho administrativo, in: David Cienfuegos Salgado y Miguel Alejandro López Olvera (Coord.), Derecho administrativo: estudios en homenaje a don Jorge Fernández Ruiz, México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005, p. 295.

16 Jean Rivero, Droit administratif français et droits administratifs étrangers, escrito em 1969 e reimpresso em Pages de Doctrine, Paris: LGDJ, 1980, v. 2, p. 476.

17 Rodríguez Rodríguez (Explicación histórica del derecho administrativo, p. 296) arrola em nota de rodapé (nota 5) vários doutrinadores que, segundo ele, comungam do seu entendimento de que o Direito Administrativo se origina da Revolução Francesa: os já citados logo acima (nota 31), Garcia de Enterría y Ramón Fernandéz; também Juan Alfonso Santamaría Pastor (Principios de derecho administrativo, 2. ed., Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 1990, t. I, p. 13 e ss.); Guido Zanobini (Curso de derecho administrativo, Buenos Aires: Arayú, 1950, t. I, p. 56); e Agustín Gordillo (Tratado de derecho administrativo, 5. ed., Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 1988, t. 1, p. II-4).

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de jurisdição na França, “em que a administração da justiça competia à jurisdição

comum, encarregada de resolver os conflitos entre os particulares, e a jurisdição

administrativa, com competência para solucionar as controvérsias em que a

administração pública for parte”.18

Tamanha é a importância do Conselho de Estado na França que F.

Burdeau faz uma definição do Direito Administrativo com base no seu papel, afirmando

que esse ramo jurídico “é um direito eminentemente jurisprudencial”, pois verifica que

a sua trajetória é de “qualquer modo a história dos problemas da repartição de

jurisdição, cujos limites marcam, de tempos em tempos, juntamente com a categoria dos

atos impugnáveis e dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz administrativo, o

coração da história”.19 Diante de tal compreensão, a história do Direito Administrativo é

“uma história de sentenças, portanto”, e, por sua vez, “do Conselho de Estado, do seu

papel, das suas funções, do seu prestígio, nem sempre idêntico a si mesmo e de fato a

ser confirmado e recuperado em cada mudança de regime constitucional”.20

Inserido no contexto do surgimento do Direito Administrativo, por

conseguinte, está a relevância do Conselho de Estado na França. Entretanto, é possível

ir além e analisar um pouco mais detida e aprofundadamente o nascimento desse ramo

jurídico, para além da Revolução Francesa, do Estado de Direito e do Conselho de

Estado, ultrapassando os muros do território francês, ao que se tem uma concepção que

atribui a uma série de elementos conjugados o surgimento dessa disciplina jurídica.

1.2.2 A “separação de poderes”, a contribuição da doutrina e a formação do Direito

Administrativo

Se a Revolução Francesa trouxe com ela o Estado de Direito, ao mesmo

tempo serviu para concretizar a “tripartição de poderes” desenvolvida por

18 Rodríguez Rodríguez, Explicación histórica del derecho administrativo, p. 299. 19 Bernardo Sordi tratando sobre a doutrina de F. Burdeau e sua obra Histoire du droit administratif –

de la Révolution au debut dês années 1970 (Per uma storia del diritto amministrativo, Quaderni Fiorentini, n. 25, p. 685, 1996).

20 Idem, ibidem, p. 685.

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Montesquieu21 (O espírito das leis – 1748) para conter o poder do ente estatal,

separando-o em três funções. Com a atribuição de competências a órgãos distintos do

Estado, a teoria idealizada pelo Senhor de La Brède impediu a centralização irrestrita de

poderes nas mãos do governante.

Indubitavelmente o princípio da separação de poderes foi o “Esteio

sagrado do liberalismo”. Tanto que “O célebre art. 16 da Declaração dos Direitos do

Homem, contida na Constituição francesa de 3 de setembro de 1791, assim rezava:

‘Toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes

não possui constituição’”.22

Nesse diapasão, quando se efetiva a ideia de que aquele que faz as leis

não deve aplicá-las nem executá-las, de que quem as executa não deve fazê-las nem

julgá-las, e de que aquele que as julga não deve nem elaborá-las nem executá-las,23

abre-se espaço para que o Direito Administrativo possa se formar. Todavia, não é o

Estado de Direito nem a “separação de poderes” que dão origem a esse ramo jurídico,

conquanto a concepção de Estado de Direito tenha sido favorável para o surgimento

desse ramo do Direito e o princípio da tripartição possa ser tido como seu pressuposto.24

21 Em relação à paternidade da teoria da divisão dos poderes do Estado, Celso Ribeiro Bastos ensina

que: “Desde a Antiguidade clássica, mais precisamente desde Aristóteles, tem sido hábito da doutrina identificar em todo Estado a existência de três funções principais. [...] Esta divisão tricotômica foi retomada nos séculos XVII e XVIII por autores como Locke, Bolinbroke e Montesquieu (que para muitos é o pai da doutrina da separação de poderes). Esta paternidade é discutível porque, quando mais não fosse, os dois autores também citados e que o precedem seriam suficientes para subtrair-lhe a autoria. A verdade é que Montesquieu foi quem a exprimiu com mais clareza e perfeição trazendo para ela uma contribuição pessoal que acaba por justificar essa filiação que a História estabeleceu” (Celso Ribeiro Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 74).

22 Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 63. 23 Sobre a teoria da “separação de poderes” e a divisão das funções do Estado em três, Montesquieu

apregoa que: “‘Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou a mesma corporação dos principais, dos nobres ou do povo exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as desavenças dos particulares’. Porque não existe liberdade quando se acham reunidos, nas mesmas mãos, legislativo e executivo. ‘É para recear que o próprio monarca ou o próprio Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.’ Tampouco existe liberdade quando o poder de julgar, o judiciário, não se acha separado do legislativo e do executivo. ‘Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador; se unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor’” (Chevallier, As grandes obras políticas..., p. 138).

24 Segundo Massimo Severo Gianinni, ao examinar a temática da “separação de poderes” e sua correlação com o nascimento do Direito Administrativo, não há uma ligação direta entre a teoria

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Em realidade, “o Direito Administrativo nasce como somatório de

vários acontecimentos, alguns dos quais remonta a séculos, com origens e experiências

estatais diversas”. Dessa feita, “As peças do variado e nem sempre claro mosaico

vieram agregar-se e completar-se gradualmente, de modo que a instauração de um

Direito Administrativo se firmou pouco a pouco sem que, na França e em outros

lugares, houvesse plena consciência”.25

Na esteira dessa assertiva, Gianinni, ao se referir ao surgimento do

Direito Administrativo como ramo do Direito, em um dado ordenamento, afirma ser

necessário para tanto que: “[...] a administração seja separada dos outros poderes

estatais, ou seja, que exista uma administração em sentido jurídico”. Assim, a matéria

administrativa deve ser “disciplinada por normas próprias, de natureza publicista, que a

ela se referem de modo específico”; além disso, tais normas precisam constituir “um

todo orgânico, ou seja, dada uma administração em sentido subjetivo, as várias normas

referentes aos sujeitos, aos atos, e meios de ação, sejam ligadas por nexos comuns,

inspirados em unidade e generalidade de critérios e de princípios”.26 Essa última

exigência “corresponde diretamente à necessidade do sistema, própria da correlativa

ciência do direito, exigência de uma ciência, precisamente como uma ciência, é

essencial”.27

E acrescente-se a isso o papel da doutrina, que segundo Gianinni é vital

nesse processo de formação do Direito Administrativo, representando a ciência do

defendida por Montesquieu e o surgimento dessa disciplina jurídica. Destarte, assevera que: “O princípio da divisão tem por isso uma força muito menor do que parece; não obstante ser o poder executivo separado dos outros, ou melhor, o fato de a função executiva ser atribuída, institucionalmente e por via principal, a um grupo determinado de órgãos, constitui um dos pressupostos fundamentais para a existência de um direito da administração com fisionomia e individualidade própria. Pressuposto necessário, mas sempre pressuposto, ou seja, não causa determinante” (Massimo Severo Gianinni, Profili storici della scienza del diritto amministrativo, Quaderni Fiorentini, Milano: Giuffrè, n. 2, p. 192-193, 1973).

25 Elio Casetta apoiado na lição de Cannada-Bartoli (Elio Casetta, Manuale di diritto amministrativo, 12. ed., Milano: Giuffrè, 2010, p. 9).

26 Gianinni, Profili storici della scienza del diritto amministrativo, p. 205-206. 27 Idem, ibidem, p. 206.

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Direito Administrativo, a qual vai desenvolver os critérios, conceitos, princípios e nexos

comuns, que ele entende fundamentais para o surgimento desse ramo do Direito.28

Assim, para o citado autor italiano, no que aqui se compartilha do seu

pensamento, há uma soma de fatores que dão origem ao Direito Administrativo, no que

ele sintetiza da seguinte maneira: “[...] o Direito Administrativo nasceu da confluência

das experiências constituídas do tipo estrutural ad actum principis e do direito de polícia

com os princípios constitucionais introduzidos pela Revolução Francesa”, e ainda “com

o espírito de racionalidade dos legistas franceses, italianos e alemães que tiveram,

naquele período fortemente criativo, posições dominantes”.29-30

Pois bem, diante desse somatório de circunstâncias e das contribuições

dos juristas da época, o Direito Administrativo sofreu um progressivo evoluir e

sistematizou-se nos ordenamentos de diversos países, porém será no Estado social que

esse ramo do Direito alcançará um novo patamar.

28 Gianinni arrola uma série de autores, expoentes da teoria clássica do Direito Administrativo na

França, Itália e Alemanha no seu escrito Profili storici della scienza del diritto amministrativo (Perfis históricos da ciência do direito administrativo), para demonstrar a importância fundamental dos doutrinadores para o desenvolvimento dessa disciplina jurídica. Interessa notar que Medauar, acompanhando o pensamento de Gianinni, sobre a importância do papel da doutrina na formação do Direito Administrativo, sintetiza: “Romagnosi, com sua obra Principi fondamentali del diritto amministrativo onde tesserne le istituzioni, editada em 1814; Macarel, que publicou em 1818 Les élements de jurisprudence administrative; De Gerando, com a obra em cinco volumes, Institutes du droit administratif français, dois volumes, 1840, formam o núcleo original da ciência do direito administrativo e tiveram papel relevante na formação desse direito” (Medauar, O direito administrativo em evolução, p. 25).

29 Gianinni citado por Medauar, O direito administrativo em evolução, p. 25. 30 Nesse viés, para ilustrar o pensamento doutrinário administrativista liberal, pode-se fazer menção a

um dos maiores expoentes no estudo do Direito Administrativo: Otto Mayer – um dos precursores no estudo da matéria, figurando como um dos principais nomes do Direito Administrativo alemão. Desse modo, “Pode assim dizer-se que o Direito Administrativo herdado de OTTO MAYER é, no seu núcleo, um sistema de formas jurídicas relativas ao exercício imperativo do poder estadual. Na verdade, no centro da doutrina jurídico-administrativa liberal estava o acto administrativo, concebido como uma forma de actuação a tratar doutrinalmente através dos seus ‘efeitos’ e das suas ‘consequências jurídicas’. Uma vez que a protecção do cidadão contra o executivo era a principal preocupação da doutrina, a sua atenção dirigia-se essencialmente para as condições de admissibilidade do recurso jurisdicional e para os vícios susceptíveis de o fundamentar, bem assim como para os pressupostos da responsabilidade administrativa. Ou seja, antes de mais nada, para a questão do controlo jurisdicional da Administração Pública. Completamente absorvida por essa questão da sujeição da actuação autoritária da Administração Pública aos diversos controlos jurídicos, a doutrina foi induzida a esquecer, de entre todas as formas de actuação administrativa, aquelas que não se reconduziam ao esquema tradicional da prática de actos administrativos” (Maria João Estorninho, A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da administração pública, Coimbra: Almedina, 1996, p. 91).

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Contudo, convém trazer a lume, antes de passar à análise do modelo de

Estado de bem-estar social, que sucede o Estado liberal, os motivos que contribuíram

para a crise do liberalismo e o advento da nova forma de Estado.

1.2.3 A crise do liberalismo: a insustentabilidade do laissez-faire, laissez-passer

Se por um lado a classe burguesa, detentora dos bens, podia fazer uso

dos direitos políticos e desfrutar da garantia da liberdade, desejando do ente estatal

apenas a manutenção da ordem e segurança públicas para a proteção do direito de

propriedade,31 por outro, o proletariado, dono somente do seu labor, oprimido pela

burguesia que detinha o domínio dos meios de produção, acabava por se dedicar a

trabalhar e a produzir subordinado aos empresários burgueses, alienando sua força de

trabalho para receber parcos ordenados. E era essa relação que se estabelecia entre

opressores (burguesia) e oprimidos (trabalhadores), que despertara a crítica severa de

Karl Marx e Friedrich Engels em O Manifesto do Partido Comunista (1848), com o

propósito de deixar patente, segundo os teóricos fundadores do socialismo científico, o

abuso sofrido por quem não era proprietário e escancarar o fato de que o operário era só

uma peça que servia aos propósitos da nova classe opressora.32

É evidente que, diante desse cenário, em que não existiam garantias

referentes aos direitos trabalhistas, previdenciários ou outros direitos de cunho social, só

poderia haver um profundo descontentamento da classe operária, que se via privada de

todos os direitos que poderiam criar-lhe novas perspectivas e permitir que alcançasse

31 Conforme leciona Norberto Bobbio, se os “proprietários eram os únicos que tinham direito de voto,

era natural que pedissem ao poder público o exercício de apenas uma função primária: a proteção da propriedade” (Norberto Bobbio, O futuro da democracia, Tradução de Marco Aurélio Nogueira, 6. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 34).

32 Os autores bem resumem o quadro de opressão sofrido pelo proletariado em O manifesto, proclamando as seguintes ideias: “Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, patrão e companheiro, numa palavra opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns contra os outros, numa luta sem tréguas, ora dissimulada, ora aberta, que, de cada vez, terminou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira ou pela destruição comum das classes em luta... A sociedade burguesa moderna, que nasceu do desmoronamento da sociedade feudal, não aboliu as oposições de classes. Não fez senão substituir por novas classes, por novas condições de opressão, por novas formas de luta as antigas. Mas a nossa época, a época da burguesia, tem de particular o ter simplificado as oposições de classe. Cada vez mais se divide a sociedade inteira em dois grandes campos inimigos, em duas classes diametralmente opostas uma à outra, a burguesia e o proletariado” (Chevallier, As grandes obras políticas..., p. 292).

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uma condição de vida mais digna. Perante esse quadro de profunda desigualdade, em

que eram crescentes a pobreza e a miséria nos grandes centros que se desenvolviam em

torno das indústrias, é fácil perceber que o liberalismo agasalhou os interesses de uma

única classe: a burguesia – que se tornou “a classe capitalista por excelência, que

administra as riquezas da sociedade evoluída” preocupada exclusivamente com as

finanças e seus empreendimentos.33

Com efeito, a liberdade, com feição meramente formal, e a não

intervenção estatal, em que o Estado figura apenas como guardião do laissez-faire,

laissez-passer, le monde va de lui-même,34 contribuíram para que a esmagadora parcela

da população ficasse sem acesso a serviços básicos como saúde e educação, e sem

proteção em face da exploração da sua mão de obra, por parte dos que detinham e

comandavam o processo produtivo. Abstendo-se de atuar na ordem econômica, o

Estado não precisava se preocupar em proteger o proletariado e as demais camadas

populares, pois tudo o quanto estes precisassem, como “saúde, educação, previdência,

seguro social”, deveria ser “atingido pela própria atividade civil”.35

Desse modo, o liberalismo, baseado no radical discurso que pregava

intensamente o individualismo e o livre jogo das forças econômicas, em muito

contribuiu para que se estabelecessem enormes diferenças em relação às classes sociais.

Aos proprietários tudo era possível; aos trabalhadores nada era assegurado. O

consequente monopólio econômico pela burguesia acarretou o colapso da teoria que

defendia a natural estabilidade que se instituiria entre os agentes econômicos e a

racionalidade espontânea do mercado. Nesse passo, a exploração do homem pelo

homem, ao mesmo tempo em que fazia crescer as desigualdades, gerava profunda

insatisfação com o modelo de Estado liberal. Com as várias crises que se sucederam nos

países que adotaram o capitalismo liberal – dentre elas, a Grande Depressão e a quebra

da Bolsa de Valores de Nova York (1929) e também as fortes recessões acontecidas nos

33 Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de política, Tradução de

Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini, 11. ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, v. 1, p. 122.

34 A máxima francesa que expressava perfeitamente a política não intervencionista do liberalismo era traduzida na seguinte sentença: “Deixai fazer, deixai passar, o mundo caminha por si só” (Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, p. 69).

35 Idem, ibidem, p. 69.

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períodos do pós-guerra, que colaboraram ainda mais para que se intensificasse a

instabilidade socioeconômica –, começou-se a invocar uma forma de Estado mais

presente, mais preocupada com o bem-estar social.

Embora o liberalismo tenha lutado “fundamentalmente pelas liberdades

de (isto é, de religião, de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de

participação no poder político, de iniciativa econômica para o indivíduo)”,36 a ausência

de interferência por parte do Estado mínimo evidenciou a sua incapacidade máxima

para resolver os conflitos sociais em que a população estava imersa. Ao abandonar a

sociedade à sua própria sorte, o modelo liberal foi assistindo às suas estruturas básicas

minarem-se em um movimento crescente, fato que abriu caminho para uma progressiva

transformação do Estado, que de absenteísta passou a interventor e regulador das

atividades nos vários setores, da educação à economia.

1.3 O Estado social: intervencionismo e justiça social

Na medida em que o liberalismo deixava evidente que havia a liberdade

apenas para quem tinha bens, que os direitos fundamentais (compreendidos tão só como

direitos de defesa) eram estabelecidos de modo simbólico, que o Estado submetia-se ao

Direito, mas não tinha a menor preocupação em relação à proteção social, e que a

economia era livre, porém com monopólio da produção por apenas uma classe, mais

crescia a real necessidade de um Estado centralizador e interventor. Em realidade, os

dogmas proclamados pela política liberal eram inábeis para concretizar efetivamente o

que ela pregou.

Por influxo de novos ideários e dos partidos socialistas, havia um forte

desejo de que a igualdade existente apenas no plano formal passasse para o campo real,

que as liberdades e garantias previstas nas constituições tivessem efetividade, “que

houvesse justiça social, que se assegurasse o suficiente para as necessidades básicas da

vida”.37 Nessa toada, “Na Europa, em fins do século XIX, começaram a ser editadas leis

36 Bobbio, Matteucci, Pasquino, Dicionário de política, p. 702-703. 37 Medauar, O direito administrativo em evolução, p. 80.

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de proteção social: de início, normas sobre acidentes de trabalho, com responsabilidade

limitada dos industriais (na Alemanha, França e Inglaterra)”, ao que depois surgiram

“leis de seguro-doença, assistência à velhice, invalidez, desemprego e sistema

obrigatório de aposentadorias”; interessa notar que, “em geral, as cotizações vinham de

empregados e empregadores, eram administradas por organismos autônomos (caixas),

sob o controle do Estado”. Destaque-se que: “Nos primórdios do século XX prossegue a

edição de leis de previdência social, como a Social Security Act, de 1935, nos Estados

Unidos; mas foi o Beveridge Repport de 1942”, no Reino Unido, “que rompeu com a

ideia restritiva de ‘assistência social’ e firmou novas matrizes mediante a noção de risco

social e mediante papel do Estado nesse âmbito”.38 Assim, almejando concretizar o

conceito e norte do Estado de bem-estar, que é o da proteção social, vários institutos e

práticas foram criados com o intuito de amparar as classes menos favorecidas da

sociedade.

Veja-se que para realizar as diretrizes desse novo modelo, cuja primeira

formulação pertence a Herman Heller,39 o Estado deixou de ter como guia cardeal a

liberdade (com foco individualista), prevalente no Estado liberal, para abraçar o lema da

igualdade (centrando-se na ideia de preocupação com o coletivo, com o interesse

público, com o bem-estar de todos).40 Consequentemente, o Estado de bem-estar social,

(ou Welfare State, ou Estado-providência, ou Estado assistencial) primou pela noção de

38 Medauar, baseada nas lições de Pierre Rosanvallon, autor de La crise de l’État-providence (O direito

administrativo em evolução, p. 80). 39 Sobre o pensamento de Heller, Angel M. Lopez y Lopez destaca o seguinte: “Profundamente

marcado pela história de seu tempo, Heller vive a tragédia de um Estado, em que a hegemonia egoísta de uma classe conduziu às portas da instabilidade revolucionária, e que parece condenado à solução autoritária, de um sinal ou outro, é dizer, a sua negação como Estado de Direito. O objetivo é salvar a este, mas dando-lhe um conteúdo social, uma nova ordem às relações de trabalho criando mecanismos de redistribuição dos bens, e de acesso a todos aqueles mais essenciais para a vida. Deve-se observar que, em qualquer caso, o pensamento de Heller, o pensamento da primeira expressão do conceito de Estado Social, não implica uma abdicação dos postulados do Estado de Direito, e em especial dos relativos à representação política” (Angel M. Lopez y Lopez, Estado Social y sujeito privado: uma reflexion finisecular, Quaderni Fiorentini, Milano: Giuffrè, n. 25, p. 427-428, 1996).

40 Esse ideal da igualdade é bem colocado por Paulo Bonavides. Diz o autor: “O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo. De todos os direitos fundamentais a igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado social” (Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 4. ed., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 301-302).

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sociabilidade, e, dessa maneira, proclamou que todo indivíduo deveria ter, além do

plexo de direitos e garantias assegurados no plano normativo (que já o era no Estado

liberal, mas apenas em relação aos direitos de liberdade,41 e em caráter formal, como se

viu), igualmente a sua materialização no plano concreto. Consolidam-se os

denominados direitos econômicos, sociais e culturais ou de segunda dimensão.

Assim, o Estado de bem-estar procurou instituir a justiça social em

vários setores por meio da criação de condições vitais básicas de existência, traduzidas

na prestação de bens, serviços e infraestrutura materiais.42 Atenuou as desigualdades

sociais causadas pelo liberalismo com a instituição do ensino obrigatório na área da

educação, a assistência médica gratuita e de qualidade no campo da saúde, como

também chamou para si a previdência social na seara da seguridade; criou uma política

de tributação no campo das finanças públicas e realizou outras ações referentes às

políticas públicas implementadas com o fim de promover um desenvolvimento mais

justo e solidário visando à proteção dos desfavorecidos. Por conseguinte, inaugurou-se

“a era do Estado produtor, repartidor, distribuidor e distributivo, que não deixa à sorte

dos indivíduos a sua situação social, mas vem auxiliá-los através de medidas positivas e

de garantias efetivas”.43

Note-se que, se pelo ângulo social o Estado realmente atua diante da

sociedade, suprindo intensamente as necessidades vitais da grande massa populacional,

nos vários setores sociais e prestando serviços a quem dele necessitar, no cenário

político-econômico a atuação estatal também é forte, passando de mero expectador a

ator principal, no que teve John Maynard Keynes44 como seu maior defensor.

41 Segundo ensina J. J. Gomes Canotilho: “A primeira função dos direitos fundamentais – sobretudo

dos direitos, liberdades e garantias – é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado. Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam o poder de exercer positivamente direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos” (J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 6. ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 407).

42 Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito..., p. 194. 43 Silvia Faber Torres, O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, Rio de

Janeiro: Renovar, 2001, p. 51. 44 Keynes defendeu uma política econômica de Estado intervencionista na década de 1930 chegando ao

auge nas décadas de 1950 e 1969. Seu pensamento serviu para inspirar a escola keynesiana na área da economia.

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Por outro prisma, tem-se o fato de que, por intermédio de toda essa

intervenção e regulação, a população passou a depender do Estado assistencial para

viver e sobreviver, buscando aproximar-se cada vez mais do ente estatal, no sentido de

poder usufruir verdadeiramente de tudo o quanto estiver colocado à sua disposição;

nesse passo, a sociedade organiza-se para exigir e manter os direitos conquistados a fim

de manter um diálogo eloquente com o Poder Público, evidenciando-se a “acção

permanente e estruturada dos partidos, grupos de interesses e organizações sociais sobre

a esfera política”. Logo, é com base “neste processo conjunto de estadualização da

sociedade e de socialização do Estado que se corporiza o princípio de socialidade

enformador do novo Estado social”.45

É um modelo que pretende “antes de tudo criar uma relação de

interação entre o Estado e a sociedade através da satisfação, na medida do possível, das

solicitações de prestações que os indivíduos ou grupos de indivíduos fazem ao Estado”.

Como “marco deste modelo, encontram-se os denominados ‘direitos sociais’”, cujo fim

é o de “impor ao Estado a obrigação de outorgar prestações tendentes ao melhoramento

social”. Consagram-se os direitos de igualdade, “cuja vertente material ou ativa

manifesta-se como direitos de prestação”.46 Tem como complemento necessário a

participação ativa dos administrados que requerem cada vez mais a presença estatal e

cobram essa atitude prestacional.

De todo o exposto, fica fácil notar que o modelo de Estado social se

constitui fundamentalmente em uma “forma de organização política que marcou fase de

grande valor na história da humanidade, pois é o primeiro sistema político de grandes

45 Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito..., p. 197-198. Esclarece o autor que é a

dupla dimensão: intervenção estatal e aproximação dos indivíduos do Estado com formação de grupos sociais, que permite distinguir o Estado social dos seus conceitos afins, que segundo Novais são as designações: Estado assistencial e Estado-Providência; Welfare State ou Estado de bem-estar; Estado de Partidos; Estado de Associações; Estado administrativo. Entende, todavia que: “[...] Em qualquer destas expressões é possível notar pontos comuns ou mesmo identidades fundamentais com a ideia que explicitamos sob a fórmula de Estado social. Porém, enquanto cada uma daquelas designações coloca a tónica, ou se justifica integralmente em aspectos parcelares ou apenas numa das dimensões que atrás referimos, o Estado social surge como o conceito mais apto para exprimir, com toda a extensão salientada, a natureza específica do novo tipo de relações entre Estado, cidadãos e sociedade” (Idem, ibidem, p. 198).

46 Carla Huerta Ochoa, La intervención administrativa en el Estado contemporáneo, in: David Cienfuegos Salgado y Miguel Alejandro López Olvera (Coord.), Derecho administrativo: estudios en homenaje a don Jorge Fernández Ruiz, México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005, p. 122-123.

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dimensões que tentou conjugar democracia (no sentido mais geral de abertura potencial

do governo a grande número de pessoas)” à ideia de liberdade individual.47 Desse

modo, o Estado social retrata perfeitamente a fórmula Estado Social e Democrático de

Direito, especialmente “Quando o direito de voto foi estendido também aos não

proprietários, aos que nada tinham, aos que tinham como propriedade tão somente a

força de trabalho”; nesse passo, diante do exercício desse direito político fundamental,

foi possível exigir do Estado as providências sociais ausentes no liberalismo.48 Com

isso, “aconteceu que o Estado de serviços, o Estado social, foi, agrade ou não, a resposta

a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática no sentido pleno da

palavra”.49

Assim delineado o Estado social em suas principais linhas, importa

saber como ficou a relação do Estado de bem-estar com o Direito Administrativo.

1.3.1O Estado social e o Direito Administrativo

Diante da nova concepção de Estado que tem por lema o bem-estar da

coletividade, importa destacar que “a passagem do estado liberal para o estado social é

assinalada pela passagem de um direito com função predominantemente protetora-

repressiva para um direito cada vez sempre mais promocional”.50

Portanto, na esteira dessa transformação sofrida pelo Estado, o Direito,

que não deve ficar imune às mudanças, sofre modificações, e no Estado social se nota a

disposição para certa mistura entre os campos do público e do privado, diferentemente

do que dantes acontecia em que se tinham tais esferas bem demarcadas no contexto do

Estado liberal, embora não houvesse simetria ou equivalência entre elas. Nessa passada,

diante da estabelecida “premissa de materialização de direitos [...] e a consequente

transferência para o Estado de novas funções de inclusão e compensação, a delimitação 47 Antonio Baldassare, Stato sociale: una formula in evoluzione, in: Baldassare e Cervanti (Org.),

Critica dello Stato Sociale, Roma-Bari: Laterza, 1982, p. 40. 48 Ou seja, “começou-se a exigir do Estado a proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros

sociais contra as doenças e a velhice, providências em favor da maternidade, casas a preços populares, etc.” (Bobbio, O futuro da democracia, p. 35).

49 Idem, ibidem, p. 35. 50 Idem, p. 109.

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entre Direito Público e Privado deixa de ser ontológica para assumir uma mera feição

didático-pedagógica”. Deveras, “A rigor, todo direito é público no Estado Social.

Mantendo-se a dicotomia para fins didáticos, convém mencionar o advento de novas

formas de juridicidade e a revisão dos fundamentos das disciplinas tradicionais”. Logo,

“Verifica-se a tendência, em ambas as hipóteses, de confundir os domínios [...] do

Direito Público e do Direito Privado. O Direito Administrativo, como disciplina

autônoma da teoria e da dogmática jurídicas, aparece no contexto do Estado Social”.51

Interessa notar que no Estado social o Direito Administrativo incorpora

o que de mais relevante acontece como elemento transformador do Estado: a ideia de

que é preciso proteger o indivíduo, não mais no contexto individualista do Estado

liberal, em que as liberdades negativas bastavam para que houvesse o seu

desenvolvimento humano, mas sim em cuidá-lo e auxiliá-lo de toda forma possível em

uma conjuntura que tem caráter e conteúdo voltado ao social.52 A ordem é disciplinar as

políticas sociais e a prestação de serviços à coletividade.

O Direito Administrativo assim instrumentaliza essa nova concepção

estatal, na medida em que também sofre alterações embaladas pelos novos valores que

se incorporam ao ordenamento jurídico. Na esteira dessas transformações verifica-se

que no Estado social “A economia assumiu novo peso na vida associada; a luta por

valores econômicos substituiu a luta por valores morais; a liberdade é quase instrumento

para algo que ela possibilita obter; não é possibilidade de fazer, mas de desfrutar”. Além

disso, “Ao indivíduo, à comunidade não basta mais estar em condições de fazer o que

crê, nem basta um catálogo de direitos e correspondentes limitações do Estado; o Estado

deve ser também instrumento para ser alcançado um bem que a comunidade vê como

51 Araújo Pinto, Arqueologia de uma distinção..., p. 41. Segundo o autor: “O célebre caso Blanco,

ocorrido em Bordeaux no ano de 1873, inaugura a discussão em torno da responsabilidade estatal e reflete a amplificação do campo de atuação estatal no paradigma do Estado Social” (Idem, ibidem, p. 41).

52 A ordem no Estado social é de proteger, e por via transversa protege-se até a minoria dominante, porque, embora as regras não sejam mais ditadas por uma classe social apenas, como no Estado liberal, em que nitidamente se tinha o controle político, econômico e social apenas por parte da burguesia, e agora o poder tenha sido democratizado, havendo mais grupos detendo o seu controle, resguardar e proteger é o lema do Estado de bem-estar e assim deve se materializar amplamente; ao fornecer bens e serviços para a população, protege-se indiretamente a propriedade de quem está no controle do Estado, na medida em que a população satisfeita não ameaça, não almeja os bens alheios. A par disso, é o Estado Social o modelo de Estado mais democrático e mais preocupado com a proteção dos administrados.

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essencial”; estampa-se que o Estado “assumiu o bem-estar econômico da coletividade

entre os interesses públicos, como um deles”.53 É a época, portanto, do Direito

Administrativo que disciplina a forte intervenção do Estado no domínio econômico e

social.

De tal modo, a atuação intervencionista do Estado expandiu-se

imensamente e a sua esfera de controle, ingerência e penetração chegou ao ponto em

que o ente estatal se viu assumindo atividades e operando em áreas que antes eram

consideradas como próprias da iniciativa privada, o que acabou por implicar o

fenômeno de “publicização do privado”. Nesse viés, se o agir estatal adquiriu novas

dimensões e proporções, natural que o Direito Administrativo acompanhasse essa

multiplicidade de tarefas assumidas pelo Estado social, na medida em que, como dantes

já se afirmou, Estado e Direito são fenômenos que caminham em um mesmo compasso

e sofrem interferências recíprocas, em especial o Direito Administrativo, responsável

por reger as condutas estatais decorrentes do exercício da função administrativa.

Logo, em todos os setores em que ocorreu a incursão do Poder Público,

lá estavam as normas administrativas a orientá-lo, uma vez que o Estado, para alcançar

seus desígnios, passou a se guiar por meio dessa disciplina jurídica. Portanto, se o

Estado passou primeiramente a ser regulador da economia, assim agia “mediante a

edição de normas disciplinadoras da conduta dos agentes econômicos”.54 Se “Num

segundo momento, passou ele a protagonizar a própria atividade econômica, criando

empresas com tal finalidade, ou participando, em sociedades, dos capitais de empresas

privadas”, tornando-se, “em consequência, um grande empregador”,55 igualmente

precisava editar um conjunto normativo que possibilitasse essa sua atuação.

Ainda, em momento posterior verifica-se que o Estado-providência,

com grande número de ações, em que se requer cada vez mais a prestação de serviços,

exige também a realização de grandes obras públicas. Entretanto, nesse caso, a

Administração não ousava “realizar ela própria directamente as grandes obras públicas,

53 Fillipo Satta, Principio di legalità e pubblica amministrazione nello Stato democratico, Padova:

Cedam, 1969, p. 50-51. 54 Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, p. 70. 55 Idem, ibidem, p. 70.

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desde logo devido à ‘comovente penúria das suas disponibilidades financeiras’ e ao

carácter aleatório dos resultados pecuniários”, pois, diante do alargamento do

intervencionismo estatal e dos grandes gastos, os recursos foram se esgotando, fazendo

com que a Administração Pública “figurasse ‘de nobreza sem fortuna que, não podendo

tratar e explorar directamente as herdades, as dá de arrependimento a quem, com a

cultura, por um lado as melhora e alinda, e por outro lhe proporciona certa participação

nas colheitas obtidas’”.56 Por conseguinte, ao Estado caberia firmar contratos

administrativos para a realização dessas obras.57

De qualquer forma, o Direito Administrativo no Estado social disciplina

não apenas a atuação do ente estatal, como também direitos a prestações positivas por

parte do Poder Público. Dessarte, o Estado, que veio adaptando o exercício da sua

autoridade, antes preponderantemente absenteísta, agora predominantemente

intervencionista e centralizador, é acompanhado pelo Direito Administrativo, outrora

filho caçula do Direito Público, ao depois, condutor dos numerosos intentos estatais.

Nessa passada, o Direito Administrativo assume papel fundamental em

relação ao rumo do Estado e destino da coletividade. Além do que se expôs, outro

fenômeno acontece: as fronteiras tradicionais com o Direito Constitucional se rompem e

há uma forte interpenetração entre esses dois ramos jurídicos, de modo que sucede o

processo de constitucionalização do Direito Administrativo.

1.3.1.1 A constitucionalização do Direito Administrativo

Pode-se dizer que a importância da Constituição originou o movimento

de constitucionalização ou de irrigação fecunda da Lei Maior nos outros ramos do

Direito. Deveras, “a irrigação é o processo criativo, a regeneração”. Favorece o

surgimento de “uma jurisprudência constitucional que oferece ao direito uma forma de

56 Estorninho baseada na Lição de José Maria Tello de Magalhães Collaço (A fuga para o direito

privado..., p. 43). 57 Segundo Estorninho, no Estado de bem-estar social “uma das características mais típicas da própria

dogmática administrativa desta fase é precisamente a afirmação da dualidade de regimes jurídicos aplicáveis à Administração Pública”, isto é, funda-se “nomeadamente na distinção entre ‘gestão pública’ e ‘gestão privada’ e na defesa da dicotomia entre ‘contrato administrativo’ e ‘contrato privado da Administração Pública’” (Idem, ibidem, p. 46).

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renascimento. Irrigação e não secagem ou degeneração”.58 Nesse diapasão, considera-se

como tal “o processo de transformação de um ordenamento, ao término do qual o

ordenamento em questão resulta totalmente ‘impregnado’ pelas normas

constitucionais”, isto é, “Um ordenamento jurídico constitucionalizado se caracteriza

por uma Constituição extremamente invasora, intrusiva, intrometida, capaz de

condicionar tanto a legislação quanto a jurisprudência e o estilo doutrinário”, e, ainda,

“a ação dos atores políticos, bem como as relações sociais”.59

O fenômeno da constitucionalização do Direito foi “Uma das grandes

mudanças de paradigma que ocorreram ao longo do século XX”, em que se deu “a

modificação do status da norma constitucional, que começou a ser considerada como

norma jurídica”. Essa transformação foi importante para se superar “o modelo existente

na Europa até a metade do século passado, pelo qual a Constituição era compreendida

como um documento essencialmente político, um convite para que os poderes públicos

efetivamente atuassem”. Nesse sentido, “A concretização de suas propostas ficava

invariavelmente vinculada à atividade do legislador, à discricionariedade do

administrador. Ao Poder Judiciário não se reconhecia um papel relevante na realização

prática do conteúdo da Constituição”.60

Destaca-se que como referência principal “ao desenvolvimento do novo

direito constitucional” desponta “a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã) de

1949, e, em especial, o surgimento do Tribunal Constitucional Federal, instalado em

1951”. Sob forte influência da Carta alemã inicia-se “uma fecunda produção teórica e

jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucional no âmbito

58 Nicolas Molfessis, L’irrigation du Droit par les Décisions du Conseil Constitutionnel, Le Seuil,

Pouvoirs, revue française d’études constitutionnelles et politiques, n. 105, p. 89, 2003/2. Na França o fenômeno da constitucionalização deveu-se ao papel do Conselho Constitucional. Por seu intermédio o direito social ganhou, sem dúvida, um forte aliado.

59 Riccardo Guastini, La “constitucionalización” del ordenamiento jurídico: el caso italiano, Estudios de teoría constitucional, México/DF: Fontamara, 2001, p. 153. Embora trazendo esse conceito do processo de constitucionalização, o autor reconhece que ele é mais sugestivo do que preciso. E assim arrola algumas condições para que esse processo seja possível: (1) uma Constituição rígida; (2) a garantia jurisdicional da Constituição; (3) a força vinculante da Constituição; (4) a “sobreinterpretação” da Constituição (sua interpretação extensiva, com o reconhecimento de normas implícitas); (5) a aplicação direta das normas constitucionais; (6) a interpretação das leis conforme a Constituição; (7) a influência da Constituição sobre as relações políticas (Idem, ibidem, p. 155-164).

60 Luís Roberto Barroso, El neoconstitucionalismo y la constitucionalización del derecho: el triunfo tardío del derecho constitucional en Brasil, México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2008, p. 6.

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dos países de tradição romano-germânica”. Importa também mencionar a segunda

referência nesse processo de grande ampliação do direito constitucional que “é a

Constituição da Itália, de 1947, e o posterior surgimento de sua Corte Constitucional,

em 1956”. E ainda acresce que, “Ao largo da década de setenta, a redemocratização e a

constitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) deram valor e substância

ao debate acerca do novo direito constitucional”.61

Antes de 1945, na maior parte da Europa vigia o modelo de supremacia

do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do parlamento e da

concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. Todavia, a partir de fins da

década de 40, a nova onda trouxe não somente novas Constituições, mas também um

novo modelo, inspirado na experiência estadunidense: a supremacia da Constituição.62

A fórmula envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que assim ficavam

alheios ao processo majoritário: sua proteção passou a ser responsabilidade do Poder

Judiciário. Vários países europeus começaram a adotar um modelo próprio de controle

da constitucionalidade, associado à criação dos tribunais constitucionais.63

Deveras, o constitucionalismo social do século XX é responsável por

operar uma ampla reestruturação nas diretrizes do modelo estatal de bases liberais, na

medida em que assume novas atividades e ocupações na seara socioeconômica. Esta

reformulação atribui ao Poder Executivo a tarefa de programar as políticas públicas,

cabendo-lhe regulamentar diversos setores: saúde, educação, previdência, meio

ambiente, saneamento, transporte etc., conferindo-lhe, por conseguinte, uma ampla

competência normativa a fim de poder alcançar ditos fins sociais. E não só. A lei,

também assume papel importante nessa empreitada, tornando-se instrumento essencial

para as intervenções do Estado nesses variados campos.

Ao ser impregnado de forma intensa pelas normas constitucionais, o

Direito Administrativo efetivamente se transforma. Tendo-se como norte as normas

61 Barroso, El neoconstitucionalismo y la constitucionalización del derecho..., p. 2. 62 Possível verificar nesse passo que, “Com a reconstitucionalização aquecida depois da Segunda

Guerra Mundial, dito panorama começou a modificar-se. Inicialmente na Alemanha, pouco depois, na Itália, e mais adiante, em Portugal e Espanha” (Idem, ibidem, p. 8).

63 Idem, p. 8.

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constitucionais, a Administração encabeça a execução das políticas públicas e ao órgão

jurisdicional competem, como se disse, o seu resguardo e amparo. Com efeito, é de ver

que, “enquanto normas de caráter estrutural, as normas constitucionais fundamentais

determinam os processos de tomada de decisão dos poderes públicos e oferecem

padrões ou modelos para a atuação administrativa”.64 Nesse sentido, “A vinculação da

Administração ao Direito parte da Constituição”. A sujeição da Administração à

observância dos direitos fundamentais “é uma consequência elementar da natureza

normativa da Constituição”.65 Natural, portanto, que os direitos fundamentais passem

por “uma progressiva intensificação de sua eficácia (em relação a terceiros, pelo efeito

da irradiação, pela vinculação aos poderes públicos, por sua extensão aos status

especiais...)”. Destarte, “A eficácia real vai substituindo a eficácia meramente formal”.66

Logo, no Estado social, este assume a tarefa de brindar a população com

um mínimo básico de bem-estar por meio de prestações positivas de fazer no que diz

respeito à saúde, melhores condições de trabalho, segurança social, entre outras matérias

contidas na Constituição. Esse constitucionalismo social coloca, portanto, a

Administração Pública no centro de concretização dessas políticas sociais.

Cabe salientar que, em virtude da relevância da temática referente à

constitucionalização do Direito Administrativo, se voltará a tratar desse assunto mais

adiante, ao final do capítulo (item 1.6.5), com enfoque direcionado ao acontecimento

desse fenômeno no ordenamento jurídico brasileiro.

64 Eberhard Schmidt-Assmann, La teoría general del derecho administrativo como sistema, Madrid:

Marcial Pons, Instituto Nacional de Administración Pública, 2003, p. 51. 65 Idem, ibidem, p. 57. 66 Nesse sentido, Manuel Salguero leciona: “Todavia, a efetividade não é consequência automática da

eficácia vinculante do texto constitucional. É bem mais o resultado complexo e pluriarticulado de um processo de integração. A ótima garantia destes direitos não provém somente da dogmática, senão da obra de múltiplos fatores estatais, públicos e privados: o sistema educativo, a opinião pública, a imprensa, os grupos de interesses, o compromisso cívico... Em suma, a efetividade se remete à ‘cultura política de um povo’. Por isso diz Häberle que estamos necessitados da categoria de ‘cultura dos direitos fundamentais’. É uma categoria que consiste em conceber os direitos fundamentais ‘como parte integrante da cultura constitucional de um povo’ e afeta a ‘toda res publica’. Vai mais além dos estreitos limites do componente jurídico dogmático e se instala no mais amplo conceito de cultura” (Manuel Salguero, La cultura de los derechos fundamentales como garantía de la democracia, derechos y libertades, Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Universidad Carlos III de Madrid, Instituto Bartolomé de las Casas: Boletín Oficial del Estado, p. 445, 1999).

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Pois bem, a par desse processo de impregnação do Direito pela

normatividade constitucional, se o Estado assistencial, de um canto, proporcionava o

bem-estar da população suprindo suas necessidades por meio da prestação de bens e

serviços, por outro, assumia cada vez mais atividades, o que conduziu à crise desse

modelo estatal, que importa ser analisada, pois essa conjuntura abre caminho para a

adoção das diretrizes do Estado neoliberal e da introdução e assimilação pelo Direito

Administrativo de novos institutos.

1.3.2 A crise do Estado social

Abraçada a linha protetiva, o Estado social se viu envolto em uma série

de ações e atuações, resultado de sua diretriz demasiadamente centralizadora, motivo

que acarretou o seu agigantamento, sua improdutividade e sua ineficiência, gerando a

necessidade de descentralizar as atividades estatais, a fim de alcançar melhores

resultados na prestação dos serviços públicos.

Esse alargamento das tarefas assumidas pelo Estado social é

considerado causador das rachaduras e fissuras na sua base estrutural, sobretudo no que

diz respeito aos temas ligados ao grande gasto de dinheiro público na prestação dos

serviços e à morosidade excessiva em sua atuação em virtude de sua burocratização.

Asseverava-se que, tantas e tamanhas foram as responsabilidades assumidas pelo

Estado, que o ente estatal deixou de desempenhá-las de forma satisfatória; e, além disso,

afirmava-se que sua abrangência já não alcançava a todos como antes. Com o seu

aparelho demasiadamente burocrático (privilegiando os procedimentos em vez dos

resultados), oneroso (com custos excessivos), ineficiente e ineficaz (não conseguindo

alcançar os fins pretendidos), torna-se um entrave aos objetivos estatais.

O crescente déficit público, a enorme penetração estatal na sociedade

civil retirando cada vez mais sua força e identidade, a indiferença política abatendo-se

sobre os cidadãos, a grande dependência do paternalismo do Estado, a patronagem em

relação aos servidores públicos, uma legislação social custosa, que espantava o

investimento de grandes empresas, o Poder Executivo sobressaindo-se sobre as outras

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funções estatais, fazendo cair no descrédito o primado da separação de poderes em face

da ingerência estatal em todos os setores da vida econômica e social,67 tudo isso

evidenciou que o Estado prestador de serviços estava em crise e precisava ser

remodelado, uma vez que apresentava, consoante se asseverava, claros sinais de que

seria incapaz de continuar a desenvolver a contento todas as tarefas assumidas.

Perante esse panorama de protecionismo e de grandeza do Estado

social, colocava-se em xeque, por via de consequência, a sua continuidade, exatamente

porque o Welfare State não primava pela eficiência nem pela economicidade. Seu

avultado tamanho decorrente da sua ingerência nas mais diversas esferas foi

considerado motivo de limitação ao desenvolvimento econômico e obstáculo à livre

concorrência. Crescia a insatisfação com o Estado de bem-estar e aumentava o desejo de

instituir outra forma de Estado, agora calcada no primado da subsidiariedade. E foi o

que se fez. Deu-se azo ao modelo de Estado pós-social nas décadas finais do século XX.

1.4 O Estado pós-social

Diante das diferenças terminológicas empregadas no estudo do modelo

estatal posterior ao Estado-providência, cabe fazer um esclarecimento importante: o

Estado pós-social, sob o ponto de vista econômico, é chamado por muitos doutrinadores

de Estado neoliberal, e este seria dominante ainda nos dias atuais; para outros, o modelo

calcado no neoliberalismo já foi substituído, contemporaneamente, pelo Estado pós-

neoliberal ou Estado neossocial. Outros ainda, não fazem essa distinção, denominando a

forma de Estado ulterior ao Estado de bem-estar de Estado pós-social. Sob o ponto de

vista político, encontra-se recorrentemente na doutrina, nacional e estrangeira, a

afirmativa de que o Estado social foi substituído pelo Estado Democrático de Direito.

Em relação a essa última concepção, quem a defende propugna que os

ideais de liberdade, de igualdade, de justiça social, de proteção aos direitos e garantias

67 Argumentando nesse sentido sobre as consequências negativas advindas com a grandiosidade do

Estado social está Luciana Medeiros Fernandes, Subsidiariedade e parceria: o terceiro setor (As organizações da sociedade civil), Revista Esmafe – Escola de Magistratura Federal da 5.ª Região, Recife – Pernambuco, n. 6, p. 274, 2004.

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fundamentais são verdadeiramente reconhecidos, protegidos e concretamente aplicados

nessa concepção estatal.

Deveras, como antes já se disse, fica difícil apartar o aspecto econômico

do político, uma vez que estão intimamente ligados, e dissociá-los seria um tanto sem

sentido.68 Em realidade, com exceção dos Estados que agasalharam políticas

totalitaristas, a democracia já se fez presente, em uma dimensão mais plena, no Estado

de bem-estar social.

Feita essa devida advertência, e em face do tratamento doutrinário

distinto, convém esclarecer que se adotará no presente trabalho a expressão “Estado

pós-social”, como equivalente ao modelo estatal que buscou suplantar o Estado

assistencial, porém com sentido mais amplo, comportando duas fases: uma primeira

etapa em que houve o surgimento do Estado neoliberal e uma segunda etapa (hodierna),

que adveio em virtude da crise do Estado neoliberal, o Estado pós-neoliberal.

Após esse devido aclaramento, principiar-se-á então a análise da

primeira fase do Estado pós-social.

1.4.1 Estado neoliberal

Em face da crescente intervenção estatal e da ampla dimensão

estampada pelo Estado de bem-estar, que acarretou a deficitária prestação de serviços à

coletividade – já que não conseguia satisfazer a todos, pois assumiu mais atividades do

que poderia realizar –, desponta no cenário mundial o Estado neoliberal, proclamando

pela autonomia e liberdade individual e a autorrealização da sociedade civil.69

68 Como afirma J. J. Calmon de Passos, quando trata do Futuro do Estado e do Direito do Estado, que

“dissociar o político do econômico é desprovido de todo e qualquer sentido. A ordem social é um imperativo a partir da inviabilidade de poderem os homens produzir, espontânea e isoladamente, os bens necessários ao atendimento de suas necessidades. Esta a matriz da organização social e também do político” (J. J. Calmon de Passos, O futuro do Estado e do direito do Estado. Democracia, globalização e o neonacionalismo. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 2, jun.-jul.-ago. 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 3 set. 11).

69 Conforme observa Estorninho sobre o que ela denomina de Estado pós-social: “O alargamento desmesurado da actividade administrativa de prestação conduziu à sobrecarga e ineficiência da Administração Pública e, assim, tal como o náufrago procura, a todo custo, agarrar-se ‘à tábua de

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À frente do pensamento neoliberal encontrava-se Friedrich von Hayek,

principal nome dessa doutrina, que, em seu manifesto inaugural do neoliberalismo, O

caminho da servidão (1944), defendia que não era aceitável o intervencionismo estatal,

pois o crescente domínio do Estado leva inevitavelmente à total “perda da liberdade”.70

Além do mais, dirigia suas ideias combatendo, provocativamente, os “socialistas de

todos os partidos”, indo contra “toda e qualquer medida política, econômica e social que

indique a mais tímida simpatia ou concessão para com as veleidades reformistas ou

pretensões de fundar uma ‘terceira via’ entre capitalismo e comunismo”.71

Segundo os neoliberais, era possível identificar dois inimigos que

deveriam ser combatidos: “Um desses inimigos era o conjunto institucional composto

pelo Estado de bem-estar social, pela planificação e pela intervenção estatal na

economia”; o “outro inimigo era localizado nas modernas corporações – os sindicatos e

centrais, que, nas democracias de massas do século XX, também foram paulatinamente

integrados nesse conjunto institucional”. Essas entidades eram consideradas culpadas

por sabotarem “as bases da acumulação privada por meio de reivindicações salariais”, e

uma vez que “os sindicatos teriam empurrado o Estado a um crescimento parasitário,

impondo despesas sociais e investimentos que não tinham perspectiva de retorno”.72

Interessa notar que essa forma de pensar frutificou e sofreu adaptações

sem perder a sua essência, contrária ao forte intervencionismo estatal, o que inspirou,

nas últimas décadas do século passado, “um conjunto particular de receitas econômicas

e programas políticos que começaram a ser propostos nos anos 70”, tendo “como fonte

de inspiração principal as obras de Milton Fiedman”, que, “por sua vez, remontam a

Hayek e à chamada ‘tradição austríaca’”.73-74

salvação’, a Administração procura hoje desesperadamente reencontrar a eficiência, nomeadamente através de fenômenos de privatização e de revalorização da sociedade civil” (A fuga para o direito privado..., p. 48).

70 Göran Therborn, A trama do neoliberalismo, mercado, crise e exclusão social, in: Edmir Sader, Pablo Gentili (Org.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 139.

71 Reginaldo C. Correa de Moraes, Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai?, São Paulo: Senac, v. 6, p. 27-28.

72 Moraes, Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai?, p. 28. 73 Therborn, A trama do neoliberalismo, mercado, crise e exclusão social, p. 139-140.

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Esse plexo de programas invariavelmente continha diretrizes que

incluíam como incumbência governamental instituir medidas para estabilizar a moeda,

diminuir o déficit público e suplantar o Estado de bem-estar. Nesse sentido, importava

dar primazia aos planos e metas que permitissem reduzir ao mínimo a indesejada

ingerência do Estado assistencial e livrar os indivíduos das amarrações que os

cercavam, e que os inibiam a ponto de não conseguirem desenvolver e ampliar suas

capacidades de per si.

A transformação do ente estatal seria pautada nomeadamente pela

redução das suas dimensões; pela privatização das entidades integrantes do corpo

estatal, descomprometidas quanto à concretização das atividades típicas do Estado; pela

importância dada à liberdade econômica e à livre concorrência, ou seja, ao livre

mercado; pelo fim dos monopólios; pela descentralização das tarefas desempenhadas

pelo Estado, mesmo que típicas; pela presteza e bom desempenho na realização das

atividades estatais, até mesmo com a introdução de novos padrões gerenciais; pela

relação de colaboração estabelecida entre o Estado e a sociedade civil; pela participação

popular na Administração Pública, especialmente no tocante ao controle da qualidade na

prestação de serviços à coletividade etc.75

Nesse passo, objetivando alcançar referidos fins, resgatou-se o

pensamento liberal com uma roupagem um pouco mais adaptada aos novos tempos, na

medida em que agora também se unia ao liberalismo econômico o liberalismo político.

Não obstante, manteve como meta continuar a ser “uma reação teórica e política

veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar”.76 De tal modo, importava

adotar um modelo de Estado forte, modernizado, que priorizasse os benefícios criadores

74 Importante destacar que “[...] Da década de 30 até a década de 70, a produção teórica neoliberal

ficou restrita aos muros das academias e das instituições de pesquisa. Somente, no início dos anos 70, com a eleição de Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, o neoliberalismo chegou ao poder iniciando-se uma campanha em busca da hegemonia ideológica no mundo. Com a simbólica queda do Muro de Berlim e com a extinção da União Soviética, os neoliberais anunciaram, de forma eufórica, a ‘vitória definitiva’ da economia de mercado, que significava a conjunção do liberalismo econômico com o liberalismo político” (Francisco Uribam Xavier de Holanda, Do liberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente, 2. ed., Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 51-52).

75 Roberto Ribeiro Bazilli e Ludmila da Silva Bazilli Montenegro, Apontamentos sobre a reforma Administrativa, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 18-19.

76 Perry Anderson, Balanço do neoliberalismo, in: Emir Sader e Pablo Gentili (Org.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9.

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do mercado. Entretanto, diferentemente do que se estabeleceu no liberalismo clássico, é

possível verificar um campo propício para uma relação não mais de oposição entre o

ente estatal e a sociedade – o Estado, agora com seu papel reduzido, e a sociedade civil,

fortalecida –, o que propiciou a possibilidade de travarem parcerias e estabelecerem

vínculos para concretizarem atividades baseadas em uma relação de

complementaridade.77

Essa nova forma estatal, portanto, também teve como objetivo,

fortalecer a sociedade civil, buscando inspiração no princípio da subsidiariedade,

oriundo da doutrina social da Igreja Católica, o qual “procurava demonstrar que onde

falta a atuação da iniciativa privada a tirania se apodera do Estado”.78 Sua concepção

pressupõe a ideia de que as organizações de ordem inferior devem desempenhar as

funções que elas próprias são aptas a realizar, em vez de recorrerem aos grupos

superiores transferindo a estes atribuições que os agrupamentos menores podem

alcançar e solucionar de maneira eficiente.

Ao dar precedência à esfera privada em detrimento da conduta e atuação

estatal, reconhece-se que o Estado deve eximir-se de praticar atividades que os

particulares têm a capacidade de efetivar, pois entende-se que a sociedade civil deve

poder andar com suas próprias pernas, escolher o seu próprio caminho, traçar os seus

rumos, com a mínima interferência do Poder Público. E veja-se que nessa empreitada,

somente se a iniciativa privada não tiver êxito, abrir-se-á para o ente estatal a

possibilidade de acionar a sua ação como fomentador, colaborador e fiscalizador da

77 No sentido de o Estado e de a sociedade civil serem “compartes” e “não mais concebidos como

reciprocamente excludentes” se pronuncia Medeiros Fernandes (Subsidiariedade e parceria: o terceiro setor (As organizações da sociedade civil), p. 275).

78 Com efeito, “O princípio da subsidiariedade, cuja concepção moderna é tributária da doutrina social da Igreja Católica que o erigiu em ‘solene princípio da filosofia social’, como expresso na Encíclica Quadragesimo Anno do Papa Pio XI (1931), foi concebido para proteger a esfera de autonomia dos indivíduos e da coletividade contra toda intervenção pública injustificada, contrapondo, de um lado, a autonomia individual e o pluralismo social às ideologias socialistas do final do século XIX e início do séc. XX, e, de outro, contestando os excessos do liberalismo clássico, que propugnava pelo afastamento do Estado do âmbito social. Esse princípio deriva de uma concepção cristã de sociedade, ou seja, de um ‘humanismo cristão’ que não se identifica nem com o ‘humanismo individualista’, nem com o ‘humanismo socialista’” (Torres, O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, p. 7). Ainda, pode-se acrescentar a respeito desse mandamento o seguinte: “Proveniente da expressão latina subsidium, que significa ajuda ou socorro, a subsidiariedade não conduz a um mero limite à ação do poder público, assinando-lhe, ao revés, a função de estímulo, coordenação, integração e, excepcionalmente, suplência” (Idem, ibidem, p. 268).

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livre-iniciativa, a fim de que os indivíduos concretizem seus desígnios empreendedores.

Assim, institui-se e fortalece-se a parceria entre o público e o privado, no sentido de que

o Estado ofereça seu auxílio aos particulares quando não tiverem condições de

materializar seus propósitos.79

Cabe ao Estado a missão de traçar diretrizes que possibilitem a

coexistência harmônica entre a importância e o destaque conferidos aos particulares e à

sociedade civil no cenário neoliberal, com seu posto de ator secundário (ou acessório)

na condução da economia e na prestação dos serviços públicos. Ao ente estatal é

conferido o atestado de mero coadjuvante, e a livre-iniciativa passa a ser dona do papel

principal.

Na esteira dessa ordem, exigem-se da esfera privada uma maior atuação

e desempenho de sua parte, o que implica a transferência de responsabilidades e

encargos, antes do Estado, agora dos particulares, uma vez que estes passam a executar

serviços sociais não exclusivos do Estado, notadamente os serviços de saúde e

educação. Nesta tarefa agem em conformidade com os interesses e as forças do

mercado, realizando a prestação do serviço como se fosse qualquer outra atividade

econômica privada lucrativa, contando com a ajuda e o suporte financeiro do Poder

Público quando não consigam concretizar referido objetivo, mas tão só dentro do

indispensável à efetivação de seus fins. Acontece um claro movimento de “privatização

do público”.80

Diante de todas essas mudanças trazidas pela política neoliberal, outra

vez o Direito Administrativo sofreu modificações e recebeu novos institutos, muitos dos

quais importados do Direito estrangeiro sob o influxo da onda originária do

neoliberalismo.

79 Estas ideias advindas do princípio da subsidiariedade são expostas por Maria Sylvia Zanella Di

Pietro, Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, 5. ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 33-34.

80 Nesse sentido, no que diz respeito à privatização da Administração Pública, Sebastian Ricardo Martín-Retortillo Baquer afirma tratar-se do “fato de que funções e atribuições de inequívoco caráter público serão exercidas pela Administração, conforme procedimentos jurídico-privados, ou serão remetidas às organizações de caráter privado que, naturalmente, desempenhá-las-ão de acordo com esses mesmos procedimentos” (Sebastian Ricardo Martín-Retortillo Baquer, Reflexiones sobre la “huida” del derecho administrativo, Revista de Administración Pública, n. 140, p. 34, maio-ago. 1996).

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1.4.2 O neoliberalismo e o Direito Administrativo

Com o advento do neoliberalismo talvez nenhum outro ramo do Direito

tenha sido tão sensível às mudanças decorrentes dessa concepção estatal do que o

Direito Administrativo –, embora se saiba que em realidade seja difícil encontrar

alguma área do saber jurídico que tenha ficado incólume às transformações decorrentes

dessa doutrina político-econômica.

Perante a reformulação do papel do Estado todo o modo de pensar e

conceber o Direito Administrativo clássico, com sua principiologia tradicional, foi

abalado por um agitado e intenso processo que tem por escopo reestruturar e modificar

institutos já consolidados que integram essa disciplina.

Nessa passada, verifica-se que, simultaneamente à transformação que se

fez no perfil do Estado, ocorreram alterações que atingiram os sujeitos que fazem parte

da estrutura da Administração, ou seja, seus entes, órgãos e agentes, bem como

existiram aquelas que alcançaram as atividades desempenhadas pelo Estado-

administração. Ou seja, a mudança afetou de modo intenso também o aparelho do

Estado, como não podia deixar de acontecer, uma vez que o Estado e seu aparato estão

umbilicalmente ligados.

Para fazer menção exemplificativa apenas ao que é mais nítido em

termos de mudança: a busca por eficiência, agilidade e transparência passaram a ser o

lema da bandeira que deveria ser hasteada sem trégua na Administração em todos os

níveis; a estrutura da Administração Direta se reduz e descentraliza-se, na medida em

que se criam entes da Administração Indireta, especialmente as agências reguladoras,

para controlarem e fiscalizarem seus respectivos setores de atuação, diminuindo o papel

do ente central nas atividades de prestação de serviços públicos e controle dessas

atividades quando exercidas por terceiros, isto é, transformou-se a prestação de serviços

públicos, que passou a ser comandada e normatizada pelas agências reguladoras, as

quais realizam a contratação com a esfera privada, assumindo para si o que antes era de

competência da Administração Central; materializam-se os contratos de gestão,

empregados como instrumento hábil para reger os termos e metas de desempenho a

serem firmados entre as agências executivas e seus órgãos supervisores; terceirizam-se

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as atividades materiais subalternas ocorrendo a completa transferência da atividade para

a esfera privada, que age como provedora de mão de obra para o Estado; privatizam-se

as empresas estatais que deixam de compor o quadro de entidades públicas e permite-se,

com isso, um campo maior de atuação para a livre-iniciativa, reduzindo assim a

interferência do ente estatal na ordem econômica; o Estado e as organizações sociais

firmam contrato de gestão, em que o ente estatal (contratante) transfere atribuições,

recursos materiais e humanos para uma pessoa jurídica de direito privado, que assume

inteiramente a gestão e prestação de serviços públicos aos usuários; o fomento81 nunca

fora tão solicitado para promover e incentivar os particulares, a fim de que satisfaçam

necessidades consideradas de utilidade pública etc.

Modifica-se o Direito Administrativo, que atravessa a margem da

imposição e obediência, em que se dá primazia ao público e coletivo, para a de maior

consensualidade. Defende-se que o muro divisor entre o Direito Público e o Privado não

passa de uma distinção que serve tão somente para facilitar o estudo desses dois grandes

ramos jurídicos,82 prevalecendo a posição “segundo a qual os dois tipos de direito não

são campos totalmente opostos”,83 ocorrendo o “movimento de privatização de setores

da ação administrativa”.84

81 Nesse sentido, a atividade administrativa de fomento pode ser definida: “[...] como aquella actividad

administrativa que se dirige a satisfacer indiretamente ciertas necesidades consideradas de carácter público, protegiendo o promoviendo, sin emplear la coacción, las actividades de los particulares, y aun las de otros entes públicos que directamente las satisfacen” (Garrido Falla citado por Héctor Jorge Escola, Otras actividades administrativas, Compendio de derecho administrativo, Buenos Aires: Depalma, 1990, v. 2, p. 858). Ou, ainda, pode-se conceituá-la de forma mais concisa dizendo que ela: “Es una acción dirigida a proteger o promover las actividades y establecimientos de los particulares, que satisfagan necesidades públicas o que se estimen de utilidad general” (Roberto Dromi, Derecho administrativo, 4. ed. actual., Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1995, p. 655).

82 Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, Introdução ao estudo do direito, Lisboa: Europa-América, Mem Martins, 1991, p. 222.

83 Estorninho, A fuga para o direito privado..., p. 153. 84 O qual, todavia, segundo Estorninho, “não deve ser encarado de forma exageradamente radical, uma

vez que mesmo quando a Administração Pública se socorre das formas de organização e actuação do Direito Privado este sofre algumas transformações e nunca se aplica ‘em si mesmo’” (Ibidem, p. 156).

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1.4.3 A crise do neoliberalismo

Cabe explicar que as crises, analisadas em tópicos precedentes,

consoante se expôs, levaram ao fracasso do modelo estatal adotado e à sua superação

por uma nova forma de Estado. Isso ocorreu no tocante às outras concepções que o

Estado moderno assumiu e, da mesma maneira, deu-se com a feição estatal pautada no

neoliberalismo.

Sem conseguir o êxito que pretendia, o que se viu foi que após o período

de lua de mel com o neoliberalismo85 tornou-se possível verificar que o “elã neoliberal

começou a perder impulso”. Com isso, “Os déficits nas balanças comerciais, nas balanças

de pagamento, a desindustrialização”, acompanhados pelos “desequilíbrios sociais, com

taxas altas de desemprego, as clivagens sociais aprofundadas, as instabilidades provenientes

da ampla abertura ao mercado internacional foram refletindo esse novo período”.86 Um

momento de crise, de derrocada da política econômica neoliberal.

Portanto, a avaliação que se pode fazer em relação à política neoliberal

não é positiva. O que se demonstrou foi “uma fortíssima ofensiva no campo liberal”

ameaçando “derrubar os elementos decisivos do pacto do pós-guerra”, que, uma vez

demolidos, levam a “um aumento da marginalização social na medida em que a

‘maioria satisfeita’ vai deixando um setor da população cada vez mais fora dos circuitos

do trabalho, do consumo e da representação política”.87

O que se viu foi que a política de autorregulação do mercado serviu para

aumentar o número de desempregados, subempregados e miseráveis.88 Com efeito, fica

85 A lua de mel nos países da América Latina se deveu à “diminuição brusca e espetacular de processos

hiperinflacionários desatados ou em curso” (Emir Sader, A hegemonia neoliberal na América Latina, Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, p. 36).

86 Idem, ibidem, p. 36-37. 87 García Santesmases, El “êxito” del neoliberalismo, Isegoría: Revista de Filosofía Moral y Política,

Madrid, n. 9, p. 152, abr. 1994. 88 Sobre a exclusão social e a desigualdade decorrente do neoliberalismo, Boaventura de Sousa Santos

afirma que: “Efetivamente, o neoliberalismo intenta substituir todos os conceitos existentes, como os de desenvolvimento e de democracia, pelos conceitos de controle e de segurança, após a sua incapacidade de gerar um forte apoio popular. Isto é devido ao aprofundamento da exclusão social, pobreza e desigualdade crescente no capitalismo neoliberal, o que implica o surgimento de um fenômeno que chamo de ‘fascismo social’. Este não é um regime político, mas uma forma de

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fora de dúvida que “O neoliberalismo neutralizou, ou enfraqueceu grandemente, os

mecanismos democráticos de redistribuição social – ou seja, os direitos

socioeconômicos e o Estado-providência”.

Em termos mais amplos, verifica-se que no sistema global “o Estado-

nação se percebe como uma autoridade local que já não pode determinar de forma

independente as escalas da atividade econômica ou de emprego dentro de seu

território”; na verdade, “tais parâmetros estão ditados pelas opções da mobilização

internacional do capital”.89 Nesse passo, em virtude da globalização e do

neoliberalismo, submeter-se a quem comanda as forças políticas e econômicas

internacionais é um preço muito alto a pagar. O abandono às “soluções” do próprio

mercado mostra-se uma vez mais um modelo falho e combalido. No fundo, a política

neoliberal serviu para mostrar que não consegue se sustentar e que a intervenção estatal

por vezes é necessária para salvar os países sempre que as forças do livre mercado

evidenciam sua autoinsuficiência.

Nesse contexto, importa fazer uma análise do que aconteceu depois do

apogeu do Estado neoliberal, em que se adentra na era do Estado pós-neoliberal.

1.5 O Estado pós-neoliberal: a crise mundial e a proposta de resgate do Estado

Social e Democrático de Direito

O modelo de Estado resgatado e moldado à imagem e semelhança do

Estado mínimo atingiu seu ápice no findar do século XX. Se de um lado o pensamento

de Hayek foi pouco a pouco conquistando espaço dentro e fora das cátedras,90 e daí um

sociabilidade de desigualdade tão forte que alguns têm poder de veto sobre a vida dos outros. Corremos o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas” (Boaventura de Sousa Santos, Entre la represión del neoliberalismo y la imaginación utópica de los pueblos, entrevista concedida a ALAI, América Latina en Movimiento, em 9 jun. 2008. Disponível em: <http://alainet.org/active/24577>. Acesso em: 31 jul. 2011).

89 Roger Campione, Modernidad, globalización y tercera vía. O del síndrome de Anthony Giddens, Derechos y Libertades, Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, Instituto Bartolomé de las Casas: Boletín Oficial del Estado, VII (11) , p. 140, Ene-dic. 2002.

90 De 1927 a 1931 Hayek foi diretor do Instituto Austríaco de Pesquisas Econômicas; de 1929 a 1931 foi professor de Economia na Universidade de Viena. Em 1931 assumiu uma cátedra na London School of Economics, onde lecionou até 1950, ano em que aceitou uma cátedra na Universidade de

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progressivo processo evolutivo de disseminar o neoliberalismo pelo mundo, de outro

canto, quando os vários Estados-nações espalhados pelos diversos continentes

finalmente adotaram a concepção neoliberal, de modo que o neoliberalismo difundiu-se

quase que hegemonicamente pelo globo, essa forma estatal neoabsenteísta não

conseguiu sustentar suas diretrizes, metas e planos, evidenciando o seu fracasso com a

crise financeira estadunidense de 2008, e que depois rapidamente se propagou por todo

o mercado mundial.

A resposta ao neoliberalismo, contudo, não foi uniforme. Alguns países

optaram por seguir um pós-neoliberalismo capitalista, nos mesmos moldes do que se

vinha adotando; outros optaram por retornar às políticas voltadas ao bem-estar da

coletividade;91 outros, ainda, preferiram adotar um pós-neoliberalismo social, o que tem

sido chamado de “socialismo do século XXI”.92

Entre os países que continuaram a seguir a via do neoliberalismo, o

resultado mostrou-se desapontador. Como reação à falência do sistema neoliberal,

deixa-se evidente a não aceitação a essa política, nos Estados Unidos da América, por

intermédio do Ocupe Wall Street, em que se rejeita “uma partilha cada vez mais

desigual da riqueza” com “salários e pensões confiscados, horários e ritmos de trabalho

aumentados; tributação e resgates financeiros a favor dos ricos – o ‘1%’, segundo os

Chicago lá permanecendo até 1962. Deste ano até 1969 ocupou uma cátedra em Freiburg, onde foi Professor Emérito. Conquistou o Prêmio Nobel de 1974 (Disponível em: <http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/1974/hayek.html>. Acesso em: 31 jul. 2011).

91 O Brasil enquadra-se nessa opção, podendo-se denominar de fase neossocial do modelo estatal brasileiro, apesar de ainda carregar alguns ranços da política neoliberal, conforme se verá adiante.

92 Quanto a este último ponto, “Em 2005, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, colocou na agenda política o objectivo de construir o ‘socialismo do século XXI’. Desde então, dois outros governantes – tal como Chávez, democraticamente eleitos –, Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), tomaram a mesma opção. [...]. O socialismo reemerge porque o capitalismo neoliberal, não só não cumpriu as suas promessas, como tentou disfarçar esse facto com arrogância militar e cultural; porque a sua voracidade de recursos naturais o envolveu em guerras injustas e acabou por dar poder a alguns países que os detêm; porque Cuba – qualquer que seja a opinião a respeito do seu regime – continua a ser um exemplo de solidariedade internacional e de dignidade na resistência contra a superpotência; porque, desde 2001, o Fórum Social Mundial tem vindo a apontar para futuros pós-capitalistas, ainda que sem os definir; porque nesse processo ganharam força e visibilidade movimentos sociais, cujas lutas pela terra, pela água, pela soberania alimentar, pelo fim da dívida externa e das discriminações raciais e sexuais, pela identidade cultural e por uma sociedade justa e ecologicamente equilibrada parecem estar votadas ao fracasso no marco do capitalismo neoliberal” (Boaventura de Sousa Santos, O socialismo do século XXI, Carta Maior, Caderno Política, 24 maio 2007. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm? materia_id=14181>. Acesso em: 18 mar. 2012).

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ocupantes de Wall Street”; e também “um quotidiano de angústia e de insegurança, de

colapso das expectativas, de perda da dignidade e da esperança para os ‘99%’”.93

Viu-se, de igual maneira, uma onda de protestos em vários países da

Zona Euro, por intermédio de greves gerais e manifestações contrárias às medidas de

austeridade impostas para tentar reduzir os déficits públicos. A população de nações,

como a Grécia, Itália, França, Espanha, Portugal, Reino Unido, não se conteve diante

das medidas tomadas pelos governos desses países, com o intuito de diminuir os gastos

públicos e as dívidas e instituir pacotes para tentar conter a crise econômico-financeira

que assola referidos países. Ditas medidas instituídas têm o fim de cumprir exigências

da União Europeia (UE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de

empréstimo para o pagamento das suas dívidas internas.

Na medida em que investimentos nas áreas da saúde, educação,

moradia, saneamento etc., foram reduzidos de maneira extremamente radical, somando-

se às restrições instituídas no sistema público de assistência e previdência social e às

alterações promovidas nas legislações sociais, e à flexibilização das relações de trabalho

na esfera privada e das garantias dos servidores no setor público,94 fica evidente que o

Estado pós-neoliberal precisa ser urgentemente remodelado.

Assim, é necessário refundar o Estado “para organizar a vida em

condição mais humana, elevando os níveis de participação democrática e respondendo

de maneira satisfatória às demandas e necessidades sociais”.95 Logo, o tipo de modelo

político-econômico sucessor do neoliberalismo tem relação direta com o tipo de

93 Boaventura de Sousa Santos explica que nos EUA o movimento Ocupe Wall Street surgiu em

setembro de 2011 (Boaventura de Sousa Santos, A greve geral, Carta Maior, Colunistas/16 nov. 2011, Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id= 5311>. Acesso em: 29 nov. 2011).

94 É o que acontece nos países da Zona Euro, por meio das medidas de austeridade, como já se disse. Consoante afirma Boaventura de Sousa Santos: “Em geral, podemos dizer que a greve geral na Europa de hoje é mais defensiva que ofensiva, visa menos promover um avanço civilizacional do que impedir um retrocesso civilizacional. É por isso que ela deixa de ser uma questão dos trabalhadores no seu conjunto para ser uma questão dos cidadãos empobrecidos no seu conjunto, tanto dos que trabalham como dos que não encontram trabalho, como ainda dos que trabalharam a vida inteira e veem hoje as suas pensões ameaçadas” (Ibidem).

95 Entrevista com Boaventura de Sousa Santos sobre neoliberalismo e o sequestro do direito. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506636-o-neoliberalismo-e-o-sequestro-do-direito-para-boaventura-de-sousa-santos-a-legalidade-caminha-lado-a-lado-com-a-ilegalidade>. Acesso em: 16 mar. 2012.

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sociedade que se quer; o cenário pós-neoliberal deve superar os problemas do

neoliberalismo e alcançar a humanização da sociedade, prezar pela democracia e

respeitar os direitos e garantias fundamentais, não podendo ser cópia exata do que já foi

adotado e não funcionou.

Nota-se que “as crises econômicas das últimas décadas, as

transformações produtivas e tecnológicas, a globalização do sistema econômico, as

desregulações e privatizações introduzidas por intermédio da perspectiva neoliberal dos

últimos decênios”, bem como “a criação de macropoderes econômicos opacos”, e ainda

“o deslocamento e destemporalização das relações laborativas”, obrigam agora que haja

“o fortalecimento do Estado Constitucional Social como nova aproximação que

fortaleça os direitos e suas garantias” e robusteça, de igual maneira, “os princípios de

supremacia constitucional e do império da juridicidade, a publicidade das atuações do

poder público e o controle do poder”.96

De todo modo, é fundamental que o Estado constitucional social

consiga contrabalançar a tríade liberdade, igualdade e solidariedade de um lado, com a

autoridade estatal de outro. Assim sendo, “O porvir da humanidade no mundo

convulsivo de nossos dias há de pertencer a uma sociedade de inspiração emancipadora,

voltada para concretizar valores postergados da justiça, da liberdade, da democracia, da

fraternidade”, o que em síntese pode ser representado pelos “valores resumidos na lição

constitucional dos direitos fundamentais, acrescidos das dimensões novas em que

democracia e paz emergem como direitos no pensamento jurídico da

contemporaneidade”.97

Nesse sentido, se o Estado liberal consagrou os direitos civis e políticos

como direitos de primeira dimensão, ou seja, os direitos de liberdade, e o Estado social

os direitos de segunda dimensão, isto é, os direitos de igualdade, no Estado pós-social

vieram à tona os direitos de terceira dimensão embasados no ideal de fraternidade

(direito à segurança, à proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, à paz, à 96 Humberto Nogueira Alcalá, El constitucionalismo contemporâneo e os direitos econômicos, sociales

y culturales, Revista Del Centro de Estudios Constitucionales, Santiago: Universidad de Talca, ano 1, n. 1, p. 137, 2003.

97 Paulo Bonavides, Do Estado neoliberal ao Estado neossocial. Folha de S. Paulo, 6 nov. 2008. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0611200809.htm>.

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solidariedade universal etc.). E a democracia pode ser reconhecida como integrante da

quarta dimensão de direitos.98-99 Esta abarca “o direito à democracia direta, o direito à

informação e o direito ao pluralismo”, e destes direitos “depende a sociedade aberta do

futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo

inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”.100

1.5.1 O Direito Administrativo no Estado pós-neoliberal

No plano global percebe-se que se promove um novo Direito

Administrativo, cujos princípios e conceitos convergem para a descentralização das

atividades estatais e para a regulação jurídica; cresce a interação entre o público e o

privado; amplia-se o intercâmbio com o Direito alienígena; ganha espaço a visão de que

o Direito Administrativo tem seu campo de atuação reduzido em face do Estado

regulador.

Todavia, esse cenário de mudanças exige que não se perca de vista a

noção de que o Estado não pode se furtar à sua missão de garantir o bem-estar dos

administrados. A diminuição do papel do Estado não é capaz de legitimar o sacrifício de

preceitos e princípios constitucionais.

Com efeito, no cenário do Estado pós-neoliberal, o Direito

Administrativo e seus princípios informadores precisam ser interpretados de modo que a

colisão entre o interesse público e os direitos dos administrados venha a ser conciliada

de forma democrática, equilibrada, justa, igualitária; o Estado deve atuar resguardando o

98 Quanto à democracia, diz ele: “A democracia positivada enquanto direito da quarta geração há de

ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possível graças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema. Desse modo, há de ser também uma democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. Tudo isso, obviamente, se a informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, porém, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no último grau de sua evolução conceitual” (Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 571).

99 Bonavides, em vez de usar a designação dimensão mantém a tradicional terminologia geração, embora reconheça que o “vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade” (Idem, ibidem, p. 571-572).

100 Idem, p. 571.

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interesse público primário sem deixar de agasalhar e dar efetividade aos direitos

fundamentais dos indivíduos.

Sob esse prisma verifica-se que o Direito Administrativo precisa pautar-

se pelos novos padrões substantivos que estão presentes no Estado Democrático de

Direito na sua acepção mais moderna, que introduzem novas considerações no tocante

aos fins e valores que a sociedade e o Estado necessitam desenvolver e consolidar. A

sábia interpretação e aplicação do Direito Administrativo tornam-se essenciais para

efetivar os anseios populares, na medida em que “os cidadãos exigem que os direitos

fundamentais e as liberdades públicas consagrados nos textos constitucionais sejam

reais e efetivos”.101 Por conseguinte, deve-se afastar a interpretação rígida e presa à letra

inerte da lei, com o objetivo de se “permitir um eficaz desenvolvimento social para a

nação”.102

Nesse passo, contemporaneamente, toda ação governamental só deve

ser exercida na medida em que atender às balizas e condições constitucionalmente

previstas, além de atuar tão só em consonância com o sentido e o espírito da

Constituição. Deveras, “Não se interpreta, sob hipótese alguma, um texto jurídico (um

dispositivo, uma lei etc.) desvinculado da antecipação de sentido representado pelo

sentido que o intérprete tem da Constituição”.103 Assim sendo, o administrador deve

agir limitado pelo ordenamento jurídico constitucional e o Direito Administrativo deve

fundar-se nos princípios e valores constitucionais, tanto formais quanto substantivos,

expressos ou implícitos. É imprescindível, por conseguinte, que esse ramo jurídico

incorpore, em tempos atuais, a tese de que representa o “Direito constitucional

concretizado”, em que se tem a força da Constituição a modelá-lo de modo decisivo.104

101 Fernando Sáinz Moreno, El valor de la Administración Pública en la sociedad actual, In: ––––––

(Dir.), Estudios para la reforma de la Administración Pública, Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública, 2004, p. 104.

102 Mónica Madariaga Gutierrez, Seguridad jurídica y administración pública en el siglo XXI, 2. ed., Santiago: Editorial Jurídica del Chile, 1993, p. 17.

103 Lenio Luiz Streck, Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito, Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Unisinos, 1(1):65-77, p. 72. Disponível em: <http://www.rechtd.unisinos.br/index.php?e=1&s=9&a=69>. Acesso em: 17 mar. 2012.

104 Schmidt-Assmann apoiado na lição de Fritz Werner. Esse autor tornou conhecida a fórmula ou expressão segundo a qual o Direito Administrativo é o Direito Constitucional concretizado, diante da

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Na atualidade, o evoluir histórico “do constitucionalismo no mundo

(mormente no continente europeu) coloca à disposição a noção de Constituição

enquanto detentora de uma força normativa, dirigente, programática e compromissária”,

uma vez que “é exatamente a partir da compreensão desse fenômeno que se pode dar

sentido à relação Constituição-Estado-Sociedade”.105

Portanto, a crescente constitucionalização do Direito Administrativo

pode ser verificada na medida em que as Constituições passaram a agasalhar muito mais

do que o clássico “conteúdo orgânico/dogmático sobre a organização básica do Estado e

do regime dos direitos e garantias constitucionais”.106 Em verdade, as Constituições se

mostram como baluarte essencial dos direitos e garantias fundamentais. Confere-se vital

importância aos princípios e valores tendo-os como elementos integrantes do

ordenamento jurídico constitucionalizado. Assim, o Direito Administrativo precisa ser

interpretado de acordo com os valores consagrados na Lei Maior.

Deveras, o Estado não pode olvidar sua missão de zelar pelos interesses

da coletividade. A partir de uma leitura adequada do texto constitucional, fica evidente

que essa tarefa não pode ser relegada a segundo plano. E o ente estatal não pode fechar

os olhos para a importância cada vez maior do resguardo e efetivação dos direitos e

garantias fundamentais dos indivíduos. Direitos e garantias, aliás, que “acarretaram ao

Direito administrativo uma especial sensibilização em relação às consequências da

atuação pública”. Nesse sentido, “à tradicional preocupação com as formas da atuação

administrativa” deve-se somar agora o interesse pelas consequências dessa atuação.107

E o Direito Administrativo interpretado e aplicado (com base nos

princípios e valores constitucionais) precisa sê-lo em prol do legítimo interesse dos

administrados, que devem figurar no centro gravitacional de toda conduta do ente

estatal. Se assim não for, coloca-se em risco a verdadeira democracia social, aquela que

força da Lei Fundamental (La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 15). 105 Streck, Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito, p. 72. 106 Allan R. Brewer-Carías, Marco constitucional del derecho administrativo en Venezuela, Revista de

Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, v. 8, n. 31, jan. 2008. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/28631>. Acesso em: 8 ago. 2011.

107 Schmidt-Assmann, La teoría general del derecho administrativo como sistema, p. 79.

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necessita imperar para que todos possam gozar efetivamente dos direitos e garantias que

lhes são assegurados.

1.6 O Estado brasileiro contemporâneo

1.6.1 Considerações preliminares

As transformações verificadas no âmbito global sempre tiveram forte

influência na seara nacional. Por conseguinte, é possível afirmar que o Estado brasileiro

também passou pelas diferentes fases de mudanças acontecidas nos vários Estados-

nações, especialmente aquelas que se deram nos países da Europa e nos Estados Unidos,

sempre com o poder de influir nos rumos dos países latino-americanos. Embora se saiba

que em cada um deles as transformações ocorridas guardaram certas particularidades,

sabido é também que tiveram, de modo geral, muitos pontos comuns já abordados ao

longo deste capítulo. Se assim o é, importa agora estabelecer o atual estágio do modelo

de Estado brasileiro, bem como do Direito Administrativo pátrio (na sequência). Para

tanto, caberá proceder primeiro a uma breve análise crítica da reforma neoliberal

introduzida no Brasil na década de 90 do século XX, para que após se consiga expor e

fixar a situação da hodierna concepção estatal.

E, uma vez que, conforme dantes já se disse, o modelo de Estado

adotado tem relação direta com o Direito Administrativo, a fim de traçar o perfil

contemporâneo desse ramo do Direito, é essencial, portanto, que inicialmente se fale,

mesmo que de modo sucinto, das mutações sofridas pelo Estado brasileiro,

particularmente no final do século passado e início do presente. Na esteira dessas

colocações, verifica-se que o Brasil agasalhou o modelo de Estado Social e

Democrático de Direito consagrado na Constituição de 1988; no entanto, em meados

dos anos 90 elaborou-se o plano de reforma do Estado brasileiro, com o escopo de

introduzir no ordenamento jurídico constitucional mudanças cujas diretrizes eram

inspiradas no modelo de Estado neoliberal. Diante desse cenário, trazem-se à baila aqui

algumas linhas referentes ao tema, que integram o artigo “O Estado social e os

princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e da vedação ao retrocesso em

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matéria de direitos sociais”,108 em especial os tópicos O Estado social na Constituição

de 1988 e O Estado social versus o Estado neoliberal, uma vez que ambos estão

diretamente relacionados. O que se asseverou naquela oportunidade exprime de forma

sucinta o que se pensa a respeito do assunto.

1.6.2 O Estado social na Constituição de 1988

Gravado no espírito da Constituição está o modelo de Estado social. A

Lei Maior de 1988 mantém e ressalta a imprescindibilidade e a proteção dos direitos

sociais, o que “a toda evidência”, nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, a

inclui “na linha do Estado Providência, do Estado Social de Direito, que pressupõe uma

presença ativa do Poder Público para promover o bem-estar dos administrados,

notadamente dos que se encontram na base da pirâmide social”.109

Revela o mesmo entendimento Ingo Wolfgang Sarlet, para quem o

princípio do Estado social está consagrado na Lei Magna de 1988. Nesse sentido,

defende e destaca que, mesmo diante da omissão de disposição normativa explícita no

texto constitucional nacional que qualifique a República Federativa do Brasil “como um

Estado Social e Democrático de Direito (o art. 1.º, caput, refere apenas os termos

democrático e Direito), não restam dúvidas – e nisto parece existir um amplo consenso

na doutrina – de que nem por isso o princípio fundamental do Estado Social deixou de

encontrar guarida em nossa Constituição”. Reforça seu entendimento ao afirmar que,

afora

[...] outros princípios expressamente positivados no Título I de nossa Carta (como, por exemplo, os da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, etc.), tal circunstância se manifesta particularmente pela previsão de uma grande quantidade de direitos fundamentais sociais, que, além do rol dos direitos dos trabalhadores (arts 7.º a 11 da CF),

108 Priscilia Sparapani, O Estado Social e os princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e

da vedação ao retrocesso em matéria de direitos sociais, In: Priscilia Sparapani e Renata Porto Adri (Coord.), Intervenção do Estado no domínio econômico e no domínio social: homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 244-247.

109 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 29. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 1090.

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inclui diversos direitos a prestações sociais por parte do Estado (arts. 6.º e outros dispersos no texto constitucional).110

Por conseguinte, o ideário social estampado de modo contundente e

inquestionável ao longo das disposições contidas na Lei Maior de 1988 imprime ao

Estado brasileiro o dever de proteger e concretizar os valores albergados na

Constituição, o que implica o empenho na realização dos objetivos contemplados na

ordem econômica e social.

Da clara e ampla participação que o texto constitucional requer do

Estado no contexto social brasileiro, já que reclama um forte intervencionismo estatal, é

possível constatar que o Estado tem uma importância tamanha na vida hodierna em

razão da sua onipresença, que sua abstenção como agente interventor acabaria por

comprometer o funcionamento de importantes setores da sociedade e, por fim, a

efetividade dos objetivos do Estado brasileiro. Ainda que no Estado social o homem não

viva apenas no Estado, mas sobretudo do Estado,111 quando se altera essa estrutura

básica, corre-se o grave risco de aumentar e agravar a exclusão social.

No entanto, não faltaram críticas ao Estado provedor. E tantas e

tamanhas foram que começou a ganhar espaço e projeção o denominado Estado

subsidiário (ou neoliberal), considerado garantidor da autonomia e liberdade dos

indivíduos e fomentador da autorrealização da sociedade.112

1.6.3 O Estado neoliberal

Na época em que se buscou alterar o modelo de Estado social brasileiro

para o neoliberal, com base na reforma advinda no final da década de 90, durante o

governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, o escopo era o de melhorar a

110 Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 10. ed., Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2011, p. 62. 111 Esse é o pensamento de Forsthoff, citado por Novais, Contributo para uma teoria do Estado de

Direito..., p. 197. 112 Na expressão de Silvia Faber Torres (O princípio da subsidiariedade no direito público

contemporâneo, p. 131).

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eficiência na prestação dos serviços públicos e enxugar os gastos com a máquina

administrativa.

Com isso, prestigiaram-se a liberdade econômica, a livre concorrência e

a sociedade civil, uma vez que agora ela e o Estado não estariam mais em oposição

como no liberalismo clássico, mas em situação de colaboração e complementaridade,

para que realizassem atividades de utilidade ou necessidade pública, desonerando o

Estado e restando para este apenas auxiliar o particular na execução dessas atividades. O

ente estatal só assumiria as tarefas, caso a iniciativa privada não tivesse êxito. Assim, de

responsável pelo desenvolvimento das atividades econômico-sociais e pela produção de

bens e serviços, pretendeu-se que o Estado passasse tão só a incentivar e regular as

ações praticadas pelo setor privado.

Referidas metas, no entanto, precisam ser compatibilizadas com o

modelo de Estado social estampado na Constituição de 1988. Afirma-se que aludida

forma estatal permanece no espírito da Lei Maior, podendo ser aferida pela singela

interpretação do conteúdo das disposições contidas na Lei Fundamental. E mesmo que

se diga, como preleciona Celso Ribeiro Bastos, que a interferência do Estado é

“Exagerada por vezes, não é menos certo, no entanto, que a presença estatal tornou-se

uma constante na organização das sociedades modernas, a ponto de não mais se poder

imaginar uma reversão absoluta do processo. É mesmo impensável um retorno ao

modelo absenteísta”. Decisivamente, “A participação estatal é imprescindível sob

muitos aspectos”.113

Logo, após essas abreviadas considerações, nada mais oportuno do que

tecer um exame do panorama do Estado brasileiro contemporâneo, que, diferentemente

dos países europeus e dos EUA, começa a se firmar calcado no modelo de Estado de

bem-estar, denominado neossocial (para distinguir da segunda fase do Estado pós-

social, em que, em vários países do mundo, vive-se a crise pós-neoliberal). No Brasil

tem-se a mescla, em dias atuais, do Estado defensor dos direitos fundamentais e da

democracia (que não hesita em assumir seu mais largo significado,114 e na qual o povo,

113 Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, p. 70-71. 114 Em relação à democracia, Bandeira de Mello pontua que: “Independentemente dos desacordos

possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se

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com a sua soberana legitimidade de comparte, manifesta-se e intervém na defesa do

interesse coletivo) e do Estado regulador (que deixa espaço para a livre-iniciativa e para

a livre concorrência atuarem em setores que antes eram comandados pelo ente estatal).

1.6.4 O Estado brasileiro neossocial

É bem verdade que a forma de Estado brasileiro foi remodelada pela

concepção neoliberal adotada no Brasil, em que se pretendeu transferir de modo gradual

a execução de funções estatais para a iniciativa privada, segundo já se destacou.

Nesse sentido, diversas mudanças ocorreram. Com base em um intenso

programa de desestatização efetuou-se o processo de retirada do Estado da seara

socioeconômica. Nesse passo, realizou-se desde a “venda de empresas estatais de

diversas áreas, inclusive de infraestrutura, nos três níveis de governo à drástica redução

do seu quadro de pessoal”; sobreveio o aumento “da carga tributária à criação de

agências reguladoras”; efetivaram-se “as reformas monetárias e os planos de

estabilização” e também a “adoção de políticas monetárias e fiscais conservadoras”;

além dessas medidas, pode-se falar ainda na ampliação da abertura dos setores da saúde

e da educação ao mundo empresarial, incluindo a “outorga de concessões de serviços

públicos ao setor privado”; de igual maneira, houve a “abertura comercial e financeira

ao capital estrangeiro” e a “eliminação de históricos monopólios estatais, seguindo a

lógica predominante da globalização neoliberal”, qual seja a de que “o Estado deixaria à

iniciativa privada a produção de bens e serviços, bem como a liderança do processo de

desenvolvimento econômico, e se tornaria, fundamentalmente, regulador das concessões

de serviços públicos”, isto “mediante a criação de agências reguladoras especializadas”;

o ente estatal atuaria somente no papel de “provedor subsidiário de funções públicas

nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde resulta que Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados” (Celso Antônio Bandeira de Mello, A democracia e suas dificuldades contemporâneas, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 54, out. 2008).

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clássicas como educação para os desafortunados, saúde pública, administração da

justiça e segurança”.115

Contudo, mesmo diante de tantas mudanças, que alcançaram seu auge

na década de 90 e começo do primeiro decênio do presente século, é visível, em tempos

hodiernos essa mistura de modelos acenada acima. Daí designar a concepção estatal

atual de neossocial. Se de um lado implantou-se um modelo neoliberal no Brasil, de

outro, verifica-se que o Estado conservou, no fundo, sua alma prestacional e

interventiva. Por conseguinte, o Estado neossocial toma força em um contexto em que a

figura do ente estatal é chamada a interferir na economia diante de tantas intempéries

acontecendo pelo mundo no plano econômico e, ao mesmo tempo, é convocada a atuar

perante os anseios da população que sofre com as mazelas sociais clamando por auxílio

e socorro.

Portanto, quando se fala no surgimento do Estado neossocial brasileiro,

está-se querendo fazer menção ao Estado social que – apesar de não ter mais as

idênticas configurações estabelecidas quando do seu aparecimento, pelo seu próprio

evoluir e pelas inúmeras modificações que sofreu em decorrência das diretrizes

neoliberais abraçadas – permaneceu latente, visto que agasalhado na Constituição

Federal de 1988.

Instaura-se, hodiernamente, um período em que o Estado não ignora a

sua importância no cenário nacional. O retorno progressivo da consciência do ente

estatal, em relação à necessidade de sua atuação, representa esperança e alívio aos

movimentos populares e às camadas mais desamparadas da sociedade. Vislumbram-se

novas possibilidades de intervenção, talvez agora de uma maneira mais equilibrada,

com um plano de governo que busque concretizar as reivindicações da população,

priorizando as políticas sociais, sem fugir à economia capitalista e ao avanço no setor

econômico-financeiro. O agir estatal deve estar condicionado pelas forças sociais,

políticas e culturais que agora, nos últimos tempos, ecoam mais fortemente.

115 Juarez de Souza, Críticas à construção de um Estado neoliberal no Brasil (1987-2002: 15 anos de

profundas mudanças), VIII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Panamá, 28-31, Oct. 2003, Caracas: CLAD, septiembre 2003. Disponível em: <http://unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/clad/clad0047110.pdf>. Acesso em: 10 set. 2011.

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Assim, na era neossocial, volta-se a viver no modelo de Estado que tem

um papel essencial nas relações sociais. Todavia, por ser imediatamente posterior ao

modelo neoliberal, contempla também suas linhas. Logo, põe-se em evidência a

transição entre a forma estatal caracterizada pela política neoliberal e aquela baseada no

novo Estado de bem-estar. Sem rupturas bruscas, o contexto atual mostra que as

mudanças estão acontecendo de modo progressivo no campo sociopolítico, diante dos

programas que passaram a ser implantados, com nítido caráter social,116 o que, por sua

vez, acaba por implicar transformação na esfera econômica e até mesmo modificações

na estrutura da própria sociedade. Na etapa pós-reforma estatal, é vital que aqueles que

comandam o Estado saibam que, sem o enfrentamento de problemas de todas as ordens

no campo social, não se efetivam os direitos e garantias fundamentais, os quais devem

ser garantidos e concretizados pelo Estado. Nesse passo, é de ressaltar que o Judiciário

ganhou papel de destaque na efetivação dos direitos sociais. Claramente a função

jurisdicional se fortalece no contexto do Estado neossocial.

Além disso, verifica-se a implementação das políticas públicas como

forma de minimizar a pobreza e as desigualdades sociais. Conquanto o ente estatal aja

com a consciência de que as forças do mercado autorregulado requerem um Estado que

lhes dê liberdade para atuar de acordo com valores individuais próprios da competição

capitalista, tal fator, de outro canto, não afasta a intervenção estatal.

116 Programas e ações sociais do governo federal no ano de 2004: A) programas voltados à educação e à

erradicação do trabalho infantil: a1) bolsa escola; a2) programa de erradicação do trabalho infantil – PETI; B) programas de atendimento à criança e ao adolescente: b1) atenção à criança de zero a seis anos; b2) bolsa alimentação; b3) agente jovem de desenvolvimento social e humano; b4) combate ao abuso e à exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes – programa sentinela; C) programas de alívio ou combate a pobreza: c1) auxílio-gás; c2) programa fome zero; c3) geração de renda; c4) benefício de prestação continuada; c5) atenção à pessoa idosa; c6) cadastramento único; c7) bolsa-família; D) programas voltados ao trabalho e à renda: d1) programas do FAT – fundo de amparo ao trabalhador; d2) o sistema nacional de emprego – SINE; d3) seguro-desemprego; d4) intermediação de mão de obra (I-M-O); d5) PROGER – programa de geração de emprego e renda; d6) PLANFOR – plano nacional de qualificação do trabalhador; d7) plano nacional de qualificação – PNQ; E) programas voltados para a saúde da população: e1) programa saúde da família; e2) programa de saúde bucal; e3) iniciativa hospital amigo da criança; e4) programa promoção da saúde; e5) programa carteiro amigo; e6) programa saúde do adolescente e do jovem; F) programas voltados para o desenvolvimento rural: f1) programa nacional de agricultura familiar (PRONAF); G) programas de moradia popular e infraestrutura urbana: g1) o fundo de garantia por tempo de serviço – FGTS (Ana Lúcia Kassouf, Alexandre Nunes de Almeida, Rosangela Maria Pontili y Ferro Andrea Rodrigues, Análise das políticas e programas sociais no Brasil, Brasília, OIT/Programa IPEC América do Sul, 2004, Série Documentos de Trabajo, 182).

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Desta feita, as modificações realizadas em relação à temática central

que motiva este estudo estão relacionadas a toda essa trajetória de transformações do

modelo estatal.

Logo, com a adoção do Estado neoliberal e, mais recentemente, o

ressurgir do Estado de bem-estar modificado por mudanças decorrentes da dinâmica dos

fatores sociais, políticos e econômicos, o Direito Administrativo sofreu (e sofre)

intensas mutações. Sob esse viés, imprescindível se torna a exposição do atual estágio

dessa disciplina jurídica.

1.6.5 O atual estágio do Direito Administrativo brasileiro

É certo que o Direito Administrativo encontra-se constitucionalizado

diante da constitucionalização de todo o Direito. Foi precisamente em decorrência desse

fenômeno que ocorreu a evolução na maneira de conceber esse ramo jurídico, passando

a ser interpretado e aplicado com assento nas normas constitucionais, e não apenas na

legislação infraconstitucional.

Por conseguinte, a Administração Pública não se prende mais à estrita

legalidade prevalecente no Estado liberal, pois agora se lhe confere o acesso direto às

normas constitucionais, prescindindo de um prévio mediar por parte do legislador. A

atuação administrativa, portanto, deve se conformar aos parâmetros e limites instituídos

pela Constituição. O apego restrito à lei é substituído por uma atuação pautada nas

normas constitucionais, que precisam ser observadas a fim de que sua conduta possa ser

considerada legítima perante o ordenamento jurídico. Obedece-se não só ao princípio da

legalidade, mas a vários outros mandamentos.

Nessa linha de compreensão, a legalidade absorve “toda a grandeza do

Direito em sua mais vasta expressão, não se limitando à lei formal, mas à inteireza do

arcabouço jurídico vigente no Estado”.117 Fala-se então no primado da juridicidade

117 Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios constitucionais da administração pública, Belo Horizonte:

Del Rey, 1994, p. 79. Também Germana de Oliveira Moraes, ao abordar o tema, leciona que: “A moderna compreensão filosófica do Direito, marcada pela normatividade e constitucionalização dos princípios gerais do Direito e pela hegemonia normativa e axiológica dos princípios” tem como

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administrativa.118 Confere-se ênfase aos princípios explícitos e implícitos previstos na

Lei Maior, que cada vez mais ganham força normativa e passam a reger a interpretação

das leis e demais atos do Poder Público.119 Com efeito, se no passado os princípios não

tinham função normativa, servindo tão só para auxiliar na interpretação das normas, na

atualidade passaram a ocupar lugar de destaque no ordenamento jurídico. O agir do

Estado-Administração deve estar em harmonia com a Constituição e seus mandamentos.

De outro lado, em virtude da constitucionalização do Direito

Administrativo, que tem como efeito a expansão das normas constitucionais, acontecem

mudanças no sistema jurídico-administrativo. Dessa ampliação tem-se como

decorrência, a toda evidência, que “a reserva vertical da lei foi substituída por uma

reserva vertical da Constituição”.120 Assim sendo, se alterações são introduzidas na Lei

Fundamental, como consequência dessa verticalidade constitucional, o Direito

Administrativo sofre essas modificações. Como um todo, o Direito Administrativo

passou por mutações. Consequentemente, essa disciplina jurídica não saiu ilesa a todas

as transformações que se fizeram em busca da modernização do Estado, de se enxugar

os gastos do governo e tornar a máquina administrativa mais eficiente. Com isso,

consequência a “substituição, no Direito Administrativo, do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade [...]” (Germana de Oliveira Moraes, Controle jurisdicional da administração pública, 2. ed., São Paulo: Dialética, 2004, p. 30).

118 Nos dizeres de Cármen Lúcia Antunes Rocha, “O princípio da juridicidade administrativa significa, portanto, que a Administração Pública é o Direito em um de seus momentos: o de sua dinâmica. Nem é, pois, que ela se submete ao Direito, mas tão somente que ela é o próprio Direito tornada num movimento realizador de seus efeitos para intervir e modificar a realidade social sobre a qual incide, em verdade, quem se submete ao Direito é o administrador público, porque a sua conduta, nesta condição, distingue-se do seu comportamento como indivíduo que se submete à lei em outras condições, segundo o exercício da sua liberdade assegurado pelo sistema jurídico” (Princípios constitucionais da administração pública, p. 82).

119 Luís Roberto Barroso, ao discorrer sobre o reconhecimento de força normativa às normas constitucionais, declara que tal mudança de pensamento “foi uma importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa”. E acrescenta: “Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. [...]” (Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/ medicamentos.pdf>. Acesso em: 4 set. 2011).

120 Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 836.

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evidencia-se que o Direito Administrativo brasileiro está permeado pelas mudanças

decorrentes do final da década de 90 e começo do século XXI.

Na esteira dessas ideias, após um período certamente agitado de muitas

alterações introduzidas na concepção de Estado brasileiro, que refletiram, enfatiza-se,

intensamente na seara do Direito Administrativo, este ramo jurídico sofreu o impacto

de sua maior aproximação com o campo do Direito Privado, ainda que não se possa

dizer que no âmbito pátrio se deu uma intensa fuga do Direito Administrativo ou fuga

para o Direito Privado, como ocorreu na Espanha e em outros ordenamentos

estrangeiros, sob a influência do ímpeto neoliberal de privatização do público, gerando a

interligação desses dois domínios do Direito de modo a criar uma situação de

“miscelânea” entre as duas áreas, dificultando ainda mais a distinção já bastante

polêmica nesses ordenamentos.121 No entanto, aqui não se esteve livre da penetração de

normas do Direito Privado no Direito Público, em uma multiplicidade de combinações,

com o fim de romper com a ação administrava em vários setores. Assim, em certa

medida não é demais afirmar que o Direito Administrativo brasileiro também sofreu sua

parcela de fuga para o Direito Privado.122

121 O final do século XX foi marcado pelas várias reformas nas Administrações Públicas nos quatro

cantos do mundo. Diante da clara inversão no modelo de Estado, que de interventor passou a regulador da economia e fomentador da sociedade civil, ocorreu a volta da iniciativa privada a esferas anteriormente tomadas pela gestão estatal, o que refletiu fortemente no Direito Administrativo, evidenciando o fenômeno conhecido, no direito espanhol, como a “fuga do Direito Administrativo”, ou a “fuga para o Direito Privado”. Observa Martín-Retortillo que o Direito Privado “deixa de ter o significado notoriamente marginal que habitualmente oferecia” no ordenamento jurídico da Espanha, “para converter-se, poder-se-ia dizer, em canal normal para o exercício de não poucas funções públicas”. E, embora o autor concentre seu estudo ao escrever sobre a fuga do Direito Administrativo, focado no sistema jurídico-administrativo espanhol, assevera que essa temática “também é bastante comum nos distintos ordenamentos do Direito comparado” (Martín-Retortillo, Reflexiones sobre la “huida” del derecho administrativo, p. 25 e 36). Destarte, segundo adverte a professora de Lisboa, Estorninho, é possível verificar que está aí “implícita uma radical transformação a todos os níveis, desde os moldes organizatórios, até a disciplina do pessoal ou às regras procedimentais”, constatando-se “o quanto o direito privado penetrou no direito administrativo, a ponto de não permitir mais afirmar-se que este último é um ramo do direito público”. Ainda Estorninho pondera: “[...] pode dizer-se que houve um fenômeno de ‘compenetração’ destes dois domínios e parece-me inevitável reconhecer que estes movimentos de ‘aproximação e interligação dos dois domínios’, levam a uma situação de ‘miscelânea’ que acaba por dificultar ainda mais a distinção que, de qualquer modo, há muito já era polêmica” (A fuga para o direito privado..., p. 54 e 157).

122 Segundo Di Pietro, ao abordar o Direito Administrativo atual, “Aparentemente, há uma fuga do direito administrativo, tal como referida por Jesús Leguina Villa [...] em trabalho sobre A Constituição espanhola e a fuga do direito administrativo. No entanto, essa procura pelo direito privado (que se insere também na ideia de privatização em sentido amplo) não afasta a aplicação de normas publicísticas, em especial do direito constitucional e administrativo, que sempre derrogam

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Incorporaram-se ao âmbito do Direito Administrativo a previsão e a

utilização de instrumentos contratuais em uma clara contratualização nas relações entre

Estado e particulares e também entre órgãos públicos. Pretendeu-se criar um novo

modelo de relacionamento entre o ente estatal, o livre mercado e a sociedade civil,

diretamente ligado às parcerias entre o setor público e o setor privado, retirando do

Estado o monopólio de prover e suprir as necessidades da coletividade. Nessa toada, a

Administração Pública torna-se um centro gerenciador de uma coletânea de contratos

firmados para realizar uma série de tarefas que antes eram desempenhadas pelo Poder

Público. Estabelecem-se relações contratuais tanto no âmbito interno quanto no âmbito

externo da Administração. Internamente têm-se os contratos de gestão firmados entre

órgãos pertencentes ao ente central e unidades desconcentradas, com base em metas e

indicadores de desempenho apontados previamente; externamente utilizam-se as

concessões, as parcerias público-privadas (PPPs) e as Organizações Sociais (OSs), para

compartilhar ou transferir a execução direta dos serviços aos particulares ou às

entidades do Terceiro Setor.123

Nesses termos, ligado a esse contexto, é possível verificar outra

mudança sucedida no âmbito do Direito Administrativo, qual seja o incentivo às

técnicas de fomento, o que acarretou o alargamento do Terceiro Setor. Surgem “novos

tipos de entidades que ficam a meio-termo entre o público e o privado, prestando

atividades privadas de interesse público, com a ajuda e o incentivo do Estado e

submetendo-se, em consequência, ao controle pelo Poder Público”.124 Além das OSs, já

mencionadas, que formalizam seu vínculo por meio do contrato de gestão com o ente

estatal, pode-se falar ainda nas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público

(Oscips), em que se reconhece ser possível a celebração de termo de parceria com essa

entidade em caráter complementar para a execução de serviço público (v. g. na área da

parcialmente o direito privado, quando este é aplicado pela Administração Pública. A consequência é a maior aproximação entre o direito administrativo, o direito civil, o direito comercial, o direito do trabalho, isto para não falar no direito internacional (por conta da globalização)” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, 2. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 57).

123 Fernando Abrucio, Contratualização e organizações sociais: reflexões teóricas e lições da experiência internacional, Debates GV Saúde, v. 1, p. 25, 1.º sem. 2006.

124 Di Pietro, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 57.

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saúde), e nas associações e fundações de apoio que celebram convênios com o Poder

Público.

Também ocorrem a regulação e o controle dos serviços públicos por

parte das agências reguladoras. Nesse viés, despontaram no cenário nacional as agências

setoriais, denominadas autarquias de regime especial, importadas especialmente do

Direito norte-americano, com o fim de descentralizar as atividades desempenhadas pela

Administração Direta. Com certas características específicas, diferem-se das demais

entidades autárquicas, haja vista serem dotadas de autonomia, independência,

estabilidade de seus dirigentes e poder normativo, a fim de regularem e fiscalizarem o

correspondente setor para o qual foram instituídas. A par daquelas que exercem típico

poder de polícia, ou seja, fiscalizador, o tipo inovador de agência constitui-se naquele

em que tais entes “regulam e controlam as atividades que constituem objeto de

concessão, permissão ou autorização de serviço público” ou as “de concessão para

exploração de bem público”.125

Mais recentemente começou-se a discutir o princípio da supremacia do

interesse público sobre o privado, colocando-o em xeque com questionamentos e

argumentos críticos que tendem a reduzir o seu conteúdo e afastar a sua força como

mandamento basilar do Direito Administrativo. Defende-se a desconstrução desse

primado. O discurso é no sentido de que, em um Estado Democrático de Direito, deve-

se defender e dar efetividade aos direitos fundamentais, pois na atualidade a

materialização desses referidos direitos é essencial e, muitas vezes, sua concretização

entra em rota de colisão com a supremacia do interesse público sobre o particular. Nesse

passo, segundo a doutrina que assim pensa, esse princípio deve ceder, na medida em

que representa o resquício de um Direito Administrativo retrógrado e conservador que

125 Segundo Di Pietro, as agências reguladoras no Brasil são de dois tipos: “a) as que exercem, com base

em lei, típico poder de polícia, com a imposição de limitações administrativas, previstas em lei, fiscalização, repressão [...]”; e “b) as que regulam as atividades que constituem objeto de concessão, permissão ou autorização de serviço público (telecomunicações, energia elétrica, transportes etc.) ou de concessão para exploração de bem público (petróleo e outras riquezas minerais, rodovias etc.)”. Esclarece que: “As primeiras não são muito diferentes de outras entidades anteriormente existentes, como o Banco Central, o Cade, a Secretaria da Receita Federal, o Conselho Monetário Nacional”. Já “As segundas é que constituem novidade maior no direito brasileiro, pelo papel que vêm desempenhando, ao assumirem os poderes que, na concessão, permissão e na autorização, eram antes desempenhados pela própria Administração Pública Direta, na qualidade de poder concedente. [...]” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 530).

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impede a efetivação dos direitos e garantias fundamentais.126 No entanto, longe de

entrar na discussão a respeito do tema, o que por si só demandaria outro estudo

dedicado apenas ao assunto, entende-se que esse pensamento doutrinário não tem razão

de ser, pois “Não se trata de desconstruir a supremacia do interesse público”. Em

verdade, “na atual conjuntura nacional, o que é preciso, mais do que nunca, é fazer

respeitá-la, é integrá-la na defesa dos luminosos objetivos fundamentais de nossa

Constituição, expressos em seu monumental artigo 3.º”, uma vez que “a desvalorização

total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos

geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em

comum”. Logo, “É preciso não confundir a supremacia do interesse público – alicerce

das estruturas democráticas, pilar do regime jurídico-administrativo – com as suas

manipulações” e, de igual modo, seus “desvirtuamentos em prol do autoritarismo

retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas”. Deveras, “O problema,

pois, não é do princípio: é, antes, de sua aplicação prática”.127

Outra questão essencial decorrente das mudanças no campo do Direito

Administrativo tem relação direta com a noção de discricionariedade administrativa. A

força normativa do arcabouço principiológico constitucional define os contornos dessa

competência. Se ao mérito administrativo era reservado um espaço intocável, sendo

vedado ao Poder Judiciário adentrar nas decisões e escolhas discricionárias por parte da

Administração Pública, esse espaço, que ainda permanece, vem sendo reduzido e

estabelece-se certo controle dos atos administrativos resultantes do exercício de

competência discricionária, na medida em que se criam limites decorrentes da

principiologia constitucional para o exercício desta competência. Isso se torna mais

evidente quando o tema envolve o controle jurisdicional das políticas públicas,

126 Esse posicionamento é representado pelo pensamento de alguns juristas que atacam frontalmente o

princípio da supremacia do interesse público: Alexandre Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila e Paulo Ricardo Schier (Interesses públicos x interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). Também Willis Santiago Guerra Filho (Princípio da proporcionalidade e teoria do direito, Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 269-278) e Marçal Justen Filho (O direito administrativo reescrito: problemas do passado e temas atuais, Revista Negócios, ano II, n. 6, p. 39-41).

127 Alice Gonzalez Borges, Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução?, Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 15, jan.-fev.-mar 2007. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 6 set. 2011.

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fenômeno conhecido como judicialização das políticas públicas,128 em que o Judiciário

teria a obrigação de garantir os direitos sociais assegurados constitucionalmente,

refutando os obstáculos que impedem o desenvolvimento das políticas públicas.

Por conseguinte, dentre tantos fenômenos marcantes, evidencia-se a

importância de não se descurar do abrigo aos direitos fundamentais dos administrados.

Dessa forma, merece destaque a preocupação referente à consolidação e manutenção

dos níveis de proteção social já alcançados nos diversos domínios da segurança social e

da tutela dos direitos fundamentais sociais, até mesmo como requisito para a

preservação do Estado Constitucional Social e Democrático de Direito.

Em virtude de todas as transformações trazidas pela globalização

econômica em relação aos direitos humanos e fundamentais, torna-se necessário

verificar em que hipóteses estabelecem-se retrocessos no que diz respeito a aludidos

direitos. Nesse sentido, desponta como questão relevante o reconhecimento de uma

vedação ao retrocesso social como princípio jurídico-constitucional, em especial quando

se têm reformas político-econômicas acontecendo tanto no plano interno quanto externo

que envolvem, destacadamente, mudanças no âmbito das políticas públicas e alterações

no plano normativo. Ainda que não se queira analisar a temática sob o prisma

ideológico, não se pode negar que, como um dos efeitos das intensas reformas

perpetradas em âmbito nacional, se efetivam políticas de flexibilização e até mesmo de

supressão de garantias dos administrados, abrangendo os trabalhadores da esfera

privada (inclusive com aumento dos níveis de desemprego e de subemprego) e os

servidores públicos. Ademais, pode-se falar ainda na diminuição dos níveis de

prestação social, no desarranjo do sistema público de saúde, na ampliação

“desproporcional de contribuições sociais por parte dos participantes do sistema de

128 Pertinente explanação a respeito do tema é feita por Boaventura de Sousa Santos quando assevera:

“As relações entre o sistema judicial e o sistema político atravessam um momento de tensão sem precedentes cuja natureza se pode resumir numa frase: a judicialização da política conduz à politização da justiça. Há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afectam de modo significativo as condições da acção política” (Boaventura de Sousa Santos, A judicialização da política. Jornal O Público, Lisboa 26.05.2003. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/ opiniao/bss/078en.php>. Acesso em: 4 set. 2011).

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proteção social”, no “incremento da exclusão social e das desigualdades, entre outros

aspectos que poderiam ser mencionados”.129

Nesse passo, importa visitar o tema da vedação ao retrocesso social

enfocando-se a sua aplicabilidade na seara do Direito Administrativo, em particular na

esfera dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. Sob esse vértice é relevante

estabelecer a discussão em torno dos limites e possibilidades de dito primado com o

intuito de averiguar até que ponto são legítimas as modificações que se introduzem na

esfera dos direitos fundamentais dos servidores, colocando-se o problema de saber em

que medida o Estado (neossocial) pode, por intermédio de reformas na esfera da

segurança social, extinguir prestações (benefícios), de maneira a reduzir o grau de

proteção social atingido, especialmente se, assim agindo, não observar a equivalência

jurídica e, desse modo, acabar por desrespeitar direitos e garantias fundamentais.

Se mudanças sempre acontecem e continuam a ocorrer, pois é próprio

do Direito evoluir e acompanhar a dinâmica dos acontecimentos, torna-se vital,

consequentemente, que se estabeleça em que medida as modificações constitucionais (e

infraconstitucionais) podem sobrevir e quais os parâmetros para que as alterações

possam ocorrer, de maneira peculiar quando o assunto em pauta envolver direitos e

garantias fundamentais dos servidores.

Diante do exposto, colocados assim os principais pontos no que

concerne ao panorama do Direito Administrativo contemporâneo, em que se buscou

contextualizar a situação dessa disciplina jurídica e toda a sua evolução, relacionando-a

com os diversos modelos de Estado da era moderna, até chegar ao Estado pós-neoliberal

e o Direito Administrativo nos dias atuais, no cenário mundial, e ao Estado neossocial e

o Direito Administrativo hodierno, no panorama nacional, vale esclarecer, por

conseguinte, que o presente estudo pretenderá, nos capítulos que se seguirão, analisar o

princípio da vedação ao retrocesso social (Capítulo 2) com o escopo de abordar a sua

aplicação e seus limites na seara do regime jurídico dos servidores públicos, no tocante

aos seus direitos e garantias fundamentais (Capítulo 3).

129 Ingo Wolfgang Sarlet, Algumas notas a respeito dos direitos fundamentais sociais e a proibição de

retrocesso: desafios e perspectivas, AMATRA – Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da IV Região, Caderno 13, p. 4-11.

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Destarte, partir-se-á para o estudo, no capítulo que se segue, do

princípio da vedação ao retrocesso social, em que se trará à baila a doutrina estrangeira

e nacional sobre o assunto, e serão expostos os fundamentos constitucionais do referido

mandamento, tão importante para proteger os retrocessos que se impõem em virtude de

mudanças instituídas na ordem jurídico-normativa brasileira. Também será feita uma

breve análise jurisprudencial sobre a matéria. O intuito da exposição é deixar clara a

presença implícita do princípio da vedação ao retrocesso social na Constituição Federal

de 1988.

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2

A VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL COMO PRINCÍPIO DO

ESTADO DE DIREITO

SUMÁRIO: 2.1. Princípio da vedação ao retrocesso social: pensamento estrangeiro acerca do tema. 2.1.1. Alemanha. 2.1.2. Itália. 2.1.3. Portugal. 2.2. Brasil. 2.2.1. Pensamento doutrinário a respeito do tema. 2.2.2. Fundamentos constitucionais do princípio da vedação ao retrocesso social. 2.2.2.1. A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade. 2.22.2. A paulatina redução das desigualdades regionais e sociais. 2.2.2.3. A construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social. 2.2.2.4. O direito adquirido social e o princípio da vedação ao retrocesso social. 2.2.2.4.1. A controvérsia em torno do conceito de direito adquirido. 2.2.2.4.2. O direito adquirido individual e social. 2.2.2.4.3. Direito adquirido individual e social em face de emenda constitucional. 2.2.2.4.4. Direito adquirido individual e social: as diferentes dimensões de proteção. 2.2.2.5. Os tratados internacionais e a adesão brasileira ao princípio vedação ao retrocesso social. 2.2.3. Entendimento jurisprudencial a respeito do tema.

Ao se debruçar sobre o estudo do princípio da vedação ao retrocesso

social com o fim de examinar referido mandamento, é possível constatar a diversidade

de opiniões acerca do tema. A própria variedade de designações desse primado reflete o

dissenso sobre o assunto. É conhecido por vedação ao retrocesso social, proibição de

retrocesso social,130 princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais,

princípio do não retrocesso social, proibição da contrarrevolução social,131 proibição

da revolução reacionária, princípio do não retorno da concretização, princípio da

proibição da retrogradação, aplicação progressiva dos direitos sociais, entre outros

termos.

A par das diversas denominações, real importância terá, neste capítulo,

o modo de conceber esse primado nos diferentes países que o estudaram e se dedicaram

a desenvolver o seu conteúdo, que, conforme será visto, apresenta matizes

130 Adota essa terminologia Felipe Derbli, O princípio de proibição de retrocesso social na

Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 131 J. J. Gomes Canotilho fala em proibição de contrarrevolução social ou da evolução reacionária

(Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 338).

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diferenciados. Interessa esclarecer que no presente trabalho serão utilizadas as

expressões princípio da vedação ao retrocesso social, da proibição de retrocesso

social, do não retrocesso social, da aplicação progressiva dos direitos sociais e

princípio do progresso social como sinônimas, pois, embora as duas primeiras

terminologias sejam as mais conhecidas no âmbito da doutrina pátria, referido primado,

consoante se verá, guarda íntima relação com a previsão explícita de um dever de

progressiva realização compreendido em cláusulas vinculativas de direito internacional

(como é o caso do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de

1966, ratificado pela ampla maioria dos Estados latino-americanos, igualmente

vinculados pela Convenção Americana de 1969 e pelo Protocolo de São Salvador, que,

por seu turno, complementa a Convenção Americana ao dispor sobre os direitos

sociais); nesse sentido, “poder-se-á afirmar que, pelo menos tanto quanto proteger o

pouco que há em termos de direitos sociais efetivos, há que priorizar o dever de

progressiva implantação de tais direitos e de ampliação de uma cidadania inclusiva”.

Isso implica, por conseguinte, “num comprometimento jurídico-constitucional com o

dever de progressiva realização dos direitos sociais e, por via de consequência, com a

correlata proibição de regressividade”.132

Destarte, será de suma relevância verificar quais os fundamentos

constitucionais do referido princípio a fim de evidenciar sua presença implícita no

ordenamento jurídico constitucional brasileiro.

Além do mais, adverte-se que, consoante será visto, a noção de uma

vedação ao retrocesso social é, em certo sentido, comum a todos os direitos

fundamentais.

Vale destacar que o princípio do não retrocesso social começa a ser

pouco a pouco discutido na doutrina e aplicado nas decisões das cortes de justiça

brasileiras. Por influência preponderante dos países europeus, surge em terras pátrias

debate em torno desse princípio, do seu conceito, conteúdo e abrangência.

132 Sarlet, Algumas notas a respeito dos direitos fundamentais sociais e a proibição de retrocesso:

desafios e perspectivas, p. 4-11.

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Nesse viés, importa analisar o pensamento doutrinário e jurisprudencial

acerca do princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, exame esse vital para a

exposição do que se pretende aqui defender. O estudo do pensamento estrangeiro

referente ao tema inaugura o presente capítulo. Na sequência virá a produção

doutrinária e jurisprudencial brasileira.

2.1 Princípio da vedação ao retrocesso social: pensamento estrangeiro acerca do

tema

Diante do influxo das doutrinas estrangeiras, em especial do

pensamento alemão, italiano e português, no tocante ao tema, serão abordadas as

concepções doutrinárias de estudiosos da Alemanha, Itália e Portugal acerca da matéria,

uma vez que, nesses países, ocorreu um desenvolvimento maior do primado da vedação

ao retrocesso social, sem que, com essa abordagem focada na doutrina de tais países, se

pretenda menosprezar as ideias e formação teórica de outras nações a respeito do

assunto.

Vale ressaltar que nenhum colonialismo cultural é bem-vindo, sob o

risco de se importarem conceitos e fórmulas alienígenas que não são adequados ao

ordenamento jurídico brasileiro, à realidade sociopolítica e econômica que aqui se

vivencia. Portanto, é preciso adaptar o instituto de maneira que ele venha a se

harmonizar com os fundamentos próprios da nação que pretende sua adoção e

aplicação. Feita essa advertência, passar-se-á à exposição do pensamento doutrinário e

do entendimento jurisprudencial estrangeiro, sem o intento de apresentá-los à exaustão,

expondo apenas o suficiente para revelar seu conteúdo e contornos na Alemanha, Itália

e Portugal para posteriormente abordar a temática no Brasil.

2.1.1 Alemanha

Na Alemanha o princípio da vedação ao retrocesso social tem relação

com a discussão que se travou a respeito da eficácia dos direitos fundamentais sociais e

a possibilidade de serem ou não exigíveis em juízo. Segundo as lições de Ernst-

Wolfgang Böckenförde, diversamente dos direitos de liberdade, que devem ser

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resguardados das ofensivas por parte do Estado, os direitos sociais, ainda que

contemplados na Constituição, não são capazes de “fundamentar diretamente pretensões

reclamáveis judicialmente”, ou seja, não geram direitos subjetivos imediatos para os

indivíduos, necessitando, de tal forma, que haja uma atuação do legislador ordinário

para dar-lhes efetividade. Contudo, o autor pretende salvar ao máximo sua eficácia

jurídica que pode ser alcançada se se conceber “os direitos sociais como mandados

constitucionais, o que permitiria manter uma vinculação jurídica projetada em três

planos”, quais sejam: “1) os órgãos políticos ficam sujeitos ao fim ou ao programa por

eles perseguidos; 2) tendo liberdade na eleição dos meios, não é admissível sua

inatividade ou uma manifesta desatenção no cumprimento de ditos programas”, e,

ademais, “3) as decisões adotadas em um dado momento para a consecução do fim não

podem ser suprimidas definitivamente ou desatendidas de modo manifesto”.133

Nesse sentido, Böckenförde assevera:

[...] as regulações e as medidas tendentes à consecução do fim, uma vez estabelecidas, se mantêm constitucionalmente, de maneira que a via da realização do mandado nelas descrita está protegida diante de uma supressão definitiva ou de uma redução que ultrapasse os limites, chegando a uma desatenção grosseira.134

Destarte, verifica-se que essa doutrina aponta na direção do

desenvolvimento de certa tendência à vedação do retrocesso social na medida em que

entende inconcebível que se suprima lei que regulamente direitos fundamentais sociais.

Todavia, “o enfrentamento da proibição de retrocesso social acabou seguindo rumo um

pouco diverso na Alemanha, principalmente em face da contribuição do Tribunal

Constitucional Federal para a discussão”.135

133 Resenha de Manuel Medina Guerrero sobre a obra de Ernst-Wolfgang Böckenförde: Escritos sobre

derechos fundamentales, prólogo de Francisco J. Bastida, tradução de Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993 (Manuel Medina Guerrero, Escritos sobre derechos fundamentales, Revista Española de Derecho Constitucional, n. 41, p. 325, mayo-ago. 1994).

134 Böckenförde citado por Felipe Derbli (O princípio de proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 139).

135 Derbli, O princípio de proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 139.

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Deveras, o conflito entre a incapacidade do Estado para prestar serviços

à população e a ampliação da demanda por prestações sociais, que acabou por gerar a

crise do Estado de bem-estar, foi responsável por alavancar o progressivo desenvolver

da jurisprudência em torno do princípio da vedação ao retrocesso social na

Alemanha.136

Perante a ausência, na Constituição alemã, de proteção direta e expressa

ao sistema de seguridade social e aos níveis prestacionais vigentes, incluindo também o

entendimento de que dita proteção não sobrevém do princípio geral do Estado Social de

Direito (art. 20, I, e art. 28, I, da Lei Fundamental de Bonn) ou de outras normas de

competência, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas sobre essa questão,

partindo do direito constitucional positivado, optaram por desenvolver ideias destinadas

a proporcionar certo nível de proteção às prestações sociais e ao sistema global de

seguridade social e, dessa maneira, elaboraram o princípio da vedação ao retrocesso

social a partir da garantia fundamental da propriedade (art. 14 da Lei Fundamental de

Bonn).137

Nesse passo, teve-se como ponto de partida o conceito funcional de

propriedade, abalizado na doutrina de Martin Wolf, para quem, com base no art. 153 da

Constituição de Weimar, o conceito de propriedade compreende uma gama de direitos

subjetivos privados de cunho patrimonial, dando azo ao mencionado conceito

funcionalista de propriedade. É dizer, a garantia da propriedade resguarda não somente

a propriedade no campo dos direitos reais, como, igualmente, agasalha a tarefa de

conservar direitos, dado que também tem por escopo “oferecer ao indivíduo segurança

jurídica relativamente aos direitos patrimoniais reconhecidos pela ordem jurídica, além

de proteger a confiança depositada no conteúdo de seus direitos”.138

136 Ingo Wolfgang Sarlet, O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental

da propriedade, Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador: IBDP, n. 9, mar.-abr.-maio 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C3%87O-2007-INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em: 28 out. 2011, p. 2.

137 Idem, ibidem, p. 2-3. 138 Idem, p. 5. Acrescente-se a essa explicação do autor o seguinte: “Ainda no que diz com a proteção

de posições jurídico-subjetivas de natureza pública por meio da garantia fundamental da propriedade, o Tribunal Federal Constitucional, já em arestos anteriores, entendeu que esta proteção tem por pressuposto a circunstância de que ao titular do direito é atribuída uma posição jurídica

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A respeito do assunto, Konrad Hesse aclara que o conceito civil de

propriedade teve sua importância diminuída, ao se levar em consideração o fato de que

a sobrevivência do indivíduo estaria menos fundada nos bens que titulariza e mais nos

rendimentos próprios de seu trabalho e, por via de consequência, nos proventos de

aposentadoria e nas prestações de assistência vital e social do Estado.139

Nesse vértice, nota-se que a proteção constitucional da propriedade

abandona o foco do bem considerado em si mesmo para passar a compreender o

aproveitamento econômico de um direito que encerra valor patrimonial, como os

direitos a prestações estatais.

Consoante a lição de Hesse:

Propriedade, no sentido jurídico-constitucional, podem (sic), por conseguinte, também ser outros direitos privados de valor patrimonial que a propriedade da coisa, por exemplo, reivindicações salariais ou quotas sociais que, muitas vezes, assumiram tarefa, cumprida antigamente pela propriedade da coisa, do asseguramento da existência. Na questão, se a proteção da garantia da propriedade também se estende a direitos (subjetivo-) públicos de valor patrimonial, por exemplo, direitos ao salário dos funcionários e soldados, direitos ao seguro social, e coisas semelhantes, existe concórdia fundamental sobre isto, que também tais direitos podem cair sob a proteção da garantia da propriedade porque também eles cumprem funções iguais como antigamente a propriedade da coisa.140

Na esteira dessas ideias, o Tribunal Constitucional Federal alemão

acolheu esse entendimento, ampliando o conceito constitucional de propriedade vigente

no direito privado, na medida em que as posições jurídico-subjetivas de direito público

de caráter patrimonial, igualmente, careceriam ser protegidas, fazendo jus ao mesmo

equivalente à da propriedade privada e que, no caso de uma supressão sem qualquer compensação, ocorreria uma colisão frontal com o princípio do Estado de Direito, tal como plasmado na Lei fundamental. Paradigmática é, portanto, a virtual equiparabilidade das posições subjetivas de direito público com a condição do proprietário. Com a inclusão de direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública na esfera da seguridade social no âmbito de proteção da garantia fundamental da propriedade, verificou-se uma ampliação do conceito de propriedade vigente no direito privado, do qual o conceito constitucional de propriedade acabou por se desprender quase que completamente” (O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade, p. 5).

139 Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 339 e ss.

140 Idem, ibidem, p. 341.

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nível de tratamento conferido às posições jurídico-subjetivas privadas. Nesse passo, a

eliminação do direito subjetivo patrimonial de índole pública, sem a devida

compensação, acarretaria afronta ao princípio do Estado de Direito.141

Todavia, segundo destaca Ingo Wolfgang Sarlet, não foi todo e qualquer

direito subjetivo patrimonial de natureza pública que foi abrangido por essa ideia de

proteção; para tanto, conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal,

necessário se faz que estejam presentes três requisitos, quais sejam:

a) à posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo a prestação social) deve corresponder uma contraprestação pessoal de seu titular, que necessariamente não pode ser irrelevante, de tal sorte que uma equivalência absoluta entre a prestação estatal e a contrapartida pessoal não tem sido considerada indispensável, sendo tido como suficiente que a pretensão do particular não se encontre embasada única e exclusivamente numa prestação unilateral do Estado; b) deve tratar-se de uma posição jurídica de natureza patrimonial, que possa ser tida como de fruição privada para o seu titular, o que ocorre quando o titular do direito pode partir da premissa de que se cuida de uma posição jurídica pessoal, própria e exclusiva, caracterizada por uma essencial disponibilidade por parte de seu titular; c) a prestação deve servir à garantia da existência de seu titular, já que a propriedade também protege as condições necessárias para uma vida autônoma e responsável, especialmente considerando que a maior parte dos cidadãos alcança a sua segurança existencial menos por meio do patrimônio privado imobiliário e/ou

141 Ingo Wolfgang Sarlet, Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais:

manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Disponível em: <http://www.direito doestado.com/revista/RERE-15-SETEMBRO-2008-INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em: 30 out. 2011, p. 18. No tocante à questão dos direitos subjetivos, interessa esclarecer que aqui se adota o conceito de direito subjetivo de Luís Roberto Barroso, para quem: direito subjetivo é o poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à satisfação de certo interesse. Há bilateralidade, sendo que uma das partes tem a faculdade de exigir de outra determinado comportamento. O citado autor arrola as seguintes características que o diferem de outras posições jurídicas: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) violabilidade, existindo a possibilidade de a parte contrária deixar de cumprir seu dever; c) pretensão – seu titular possui um meio jurídico para exigir-lhe o cumprimento, a ação judicial. Quando a exigibilidade da conduta se verifica em favor do particular em face do Estado, diz-se existir direito subjetivo público. Chega à conclusão de que as normas constitucionais definidoras de direitos enquadram-se neste esquema conceitual: dever jurídico, violabilidade e pretensão. Assim, o jurista dá o conceito de poder jurídico da seguinte maneira: tal como nos direitos subjetivos, existe um direito do sujeito ativo ao qual corresponde um dever do sujeito passivo. A peculiaridade é que este poder é exercido a favor do próprio sujeito passivo ou do grupo social, como no pátrio poder, para o direito privado, ou como o próprio poder estatal, para o direito público (Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 91-120).

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mobiliário, do que pelo resultado de seu trabalho e, portanto, por meio de suas posições jurídico-subjetivas patrimoniais.142

Na seara dessas três condições e do seu progressivo desenvolvimento,

como também do alargamento do conteúdo social da propriedade, a salvaguarda das

posições jurídico-subjetivas patrimoniais de caráter público foi admiravelmente

fortalecida, abarcando importante parte das prestações que compõem o sistema público

de seguridade social (destacando-se aposentadorias, pensões, seguro-desemprego,

seguro contra acidentes de trabalho etc.), incluindo ainda o alcance das expectativas de

direitos, de maneira especial “aquelas posições que, mediante o implemento de outras

condições (por exemplo, um certo prazo de espera e/ou carência), tornam-se plenamente

exigíveis”. No entanto, em virtude de exigirem contrapartida no que diz respeito ao

cidadão, têm sido afastadas da proteção as prestações de cunho reabilitatório e

secundário, sem a correspondente contraprestação, bem como prestações

discricionárias, “que não radicam numa posição jurídica similar à propriedade privada,

devendo, portanto, tratar-se de prestações obrigatórias”.143

Sarlet completa dizendo que o primado da vedação ao retrocesso social

ganhou grande destaque na Alemanha, assegurando graus de proteção social muito mais

elevados do que os níveis de garantia brasileiros, não obstante, geralmente, a falta de

expressa previsão dos direitos sociais no âmbito constitucional.144

Ora, em análise ao ponto de vista alemão do princípio do não retrocesso

social, parece claro que o desenvolvimento e a compreensão desse mandamento não

podem ser transpostos para o direito pátrio, pois a Lei Maior brasileira, diferentemente

da Constituição alemã, agasalha de forma explícita um vasto rol de direitos sociais,

resguardados sob o manto das “cláusulas pétreas”. Da mesma maneira, contempla

previsão expressa referente ao direito adquirido, tornando dispensável toda a construção

142 Sarlet, Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais: manifestação de um

constitucionalismo dirigente possível, p. 18-19. 143 Idem, ibidem, p. 19. 144 Idem, p. 20.

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que se elaborou em torno do direito à propriedade (que, aliás, recebe censuras até

mesmo no próprio país onde a teoria foi cunhada).145

2.1.2 Itália

O tema da vedação ao retrocesso social na Itália foi desenvolvido por

Giorgio Balladore Pallieri na seara do Direito Constitucional italiano. Sua doutrina

obteve repercussão em Portugal e também em terras brasileiras, influenciando,

destacadamente, o pensamento de José Afonso da Silva. Dentre as lições do pensador

italiano, relacionadas ao assunto do não retrocesso, destaca-se a temática dos direitos

individuais e dos trabalhos do legislador na sua disciplina infraconstitucional.146

145 Segundo leciona Sarlet, as críticas à concepção do direito de propriedade da doutrina alemã são

embasadas em vários motivos: não se mostra razoável a concepção de que o resguardo outorgado “pela garantia fundamental da propriedade às posições jurídico-subjetivas patrimoniais de direito público deva, necessariamente, estar condicionada a uma contraprestação do titular do direito e, além disso, servir para garantir a sua existência”, pois “os critérios da contraprestação e do caráter existencial – exigidos tratando-se de posições jurídico-prestacionais de natureza pública – assumiriam relevância apenas no que diz com a problemática dos limites à regulamentação legislativa”. Deve-se ressaltar “o fato de que as posições patrimoniais jurídico-privadas alcançam sua força direta e exclusivamente a partir da norma contida no art. 14 da LF (garantia de propriedade)”, de modo que, “se as posições de direito público já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitucionais, a aplicação supletiva da garantia da propriedade não apenas se revela desnecessária, mas relativizante”, pois, consoante “o art. 14, inc. III, da LF, estaria, em princípio, sujeita a ser desapropriada mediante indenização”. Além disso, outro ponto a ser destacado é o de que, no tocante à “exigência da contraprestação do titular do direito”, encontra-se a “opinião de que no âmbito dos direitos patrimoniais públicos não se cuida do direito a uma parcela do patrimônio global da seguridade social equivalente à soma das contraprestações pessoais do titular”; o que há é a “participação na receita futura da previdência social, de tal sorte que à pretensão do particular corresponde apenas de forma relativa e em tese uma contrapartida pessoal equivalente”. Por fim, “aponta-se oportunamente para a circunstância de que, em decorrência dessa flexibilização e ampliação da noção de propriedade e do âmbito de proteção da respectiva garantia fundamental, corre-se o risco de uma crescente relativização desta proteção, visto que, em virtude das exigências da função social da propriedade, boa parte daquilo que foi concedido poderá acabar sendo retirado”. Nesse sentido, “cumpre ainda citar o entendimento do Tribunal Federal Constitucional, para o qual, ‘na determinação do conteúdo e dos limites de posições jurídicas previdenciárias, o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação. Isto aplica-se principalmente a normas que se destinam a preservar, aperfeiçoar ou adaptar à realidade econômica em mutação, em benefício da coletividade, a funcionalidade e capacidade prestacional do sistema legal de previdência social. Neste sentido, a norma contida no art. 14, inc. I, da Lei Fundamental também abrange a possibilidade de restringir direitos e expectativas de direitos. Conquanto tal medida sirva ao interesse comunitário e corresponda ao princípio da proporcionalidade, ao legislador não estará, em princípio, vedada a redução de prestações, bem como a alteração da amplitude de pretensões e expectativas, assim como a sua adequação. Todavia, sua liberdade de atuação encontra-se reduzida, na mesma proporção em que os direitos e expectativas estão impregnados pelo vínculo pessoal da contrapartida de seu titular’” (O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade, p. 9-11).

146 Neste sentido: Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 161.

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Em relação à atividade concreta do legislador sobre os direitos

individuais (e, portanto, não constitucional), existem limites a ela. Esses limites,

segundo Balladore Pallieri, não são limites absolutos para o Estado, porque o ente

estatal sempre tem o poder de removê-los ao remover a norma constitucional que os

contêm. Contudo, de outro lado, deve-se ter presente que tal situação só acontecerá por

intermédio de uma modificação da Constituição.147

Ressalta-se que ditos limites referem-se todos, em última análise, à

atividade legislativa, e assumem formas diversas que podem ser classificadas, consoante

os ensinamentos de Balladore Pallieri,148 da seguinte forma:

1) Algumas vezes a norma constitucional substitui diretamente a lei

ordinária, dispõe no lugar desta, e estabelece as normas que serão observadas por outros

órgãos estatais e pelos sujeitos internos, ou seja, a própria norma constitucional

determina os limites da atividade estatal, não necessitando de lei ordinária para instituí-

los. Exemplifica essa hipótese citando a previsão contida no art. 21 da Carta italiana.

Mencionado dispositivo estabelece que, quando houver absoluta urgência e não for

possível a tempestiva intervenção da autoridade judiciária, o embargo da mídia impressa

pode ser executado por oficial da polícia judiciária que deve imediatamente, e nunca

além de vinte quatro horas, fazer denúncia à autoridade judiciária. Se esta não

convalidar o embargo nas vinte e quatro horas sucessivas, o mesmo entender-se-á

revogado e privado de qualquer efeito. Verifica-se dessa determinação que a norma

constitucional substitui a lei ordinária, disciplinando uma matéria particular, e subtrai do

legislador infraconstitucional a possibilidade de dispor a respeito da questão.149

2) Outras vezes as normas constitucionais estabelecem uma proibição

ao legislador ordinário de legislar em dado sentido. É a situação prevista no art. 7 da

Constituição italiana, em que está estipulado que o legislador ordinário não pode

147 Giorgio Balladore Pallieri, Diritto costituzionale, 8. ed., Milano: Giuffrè, 1965, p. 381. 148 Pallieri, Diritto costituzionale, p. 381-384. 149 Traçando um paralelo com a Constituição brasileira de 1988, pode-se ter como exemplo desse tipo

de norma a previsão contida no art. 5,º, inciso XVI: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

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modificar as leis existentes emanadas em execução dos pactos lateranenses,150 se não se

verificar a particular condição prevista no mesmo dispositivo.151

3) Em outras hipóteses a Constituição prescreve que determinadas

matérias devem ser obrigatoriamente reguladas por lei (assim chamada reserva de lei).

Veja-se como exemplo o último parágrafo do art. 25 da Constituição italiana; este

dispositivo determina que ninguém pode ser submetido à medida de segurança se não

nos casos previstos por lei.152

4) Em outras situações a Constituição dita alguns critérios que devem

ser observados pela lei. É a hipótese do art. 16 da Carta italiana que dispõe que cada

cidadão pode circular livremente em qualquer parte do território nacional, salvo as

limitações que a lei estabelece, como regra geral, por motivos de saúde e de segurança.

É desse mesmo tipo a norma contida no art. 53: “O sistema tributário é informado por

critérios de progressividade”. Nessas hipóteses a lei é inconstitucional se não dispõe nos

modos e nos limites da Constituição.153

5) Em outros casos, enfim, a Constituição manda que se exerça certa

atividade legislativa. Essa é a hipótese mais complexa e que dá lugar a uma maior

dificuldade.

Portanto, pode ser que a lei deva ser emanada para circunscrever e

precisar um princípio já fixado pela Constituição. Cite-se como exemplo o art. 40 da

Constituição italiana que determina que o direito de greve deverá ser exercido no

150 Os pactos lateranenses constituem acordos de reconhecimento mútuo entre o Reino da Itália e a

Santa Sé, assinados em 11 de fevereiro 1929. Um dos documentos que compõem os pactos é o Tratado que reconheceu a independência e soberania da Santa Sé e fundou o Estado da Cidade do Vaticano.

151 Exemplificando essa hipótese com normas constitucionais brasileiras têm-se as disposições previstas nos incisos XXXV e XXXVI da Constituição Federal de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; e “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

152 Conforme, v.g., estabelece o art. 5.º, inciso XXXII, da Constituição Federal de 1988: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

153 Pode-se ter como exemplo dessa situação a previsão contida no art. 5.º, inciso XXVI, da Constituição Federal de 1988: “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.

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âmbito da lei que o regula; também, exemplificativamente, pode ser mencionado o

último parágrafo do art. 13, o qual estabelece que a lei disporá sobre os limites máximos

da prisão preventiva. Destarte, pode-se dizer que o direito de greve já existe e que a lei

somente pode (e deve) circunscrevê-lo e limitá-lo; afirma o direito do cidadão de não

ser preso preventivamente se não estiver fixado em lei o limite máximo dessa prisão.

Dessa forma, se as leis não são emanadas, o direito de greve será ilimitado, a prisão

preventiva será ilegítima.154

Entretanto, em outros vários casos a norma constitucional dirige-se

exclusivamente ao legislador, determinando-lhe que edite uma dada legislação, hipótese

em que a disposição constitucional não surtirá efeito se a lei reclamada não for

editada.155 Como exemplo está a previsão contida no art. 32 da Constituição italiana: “A

República tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da

coletividade, e garante cuidados gratuitos aos indigentes”. Veja-se que, conforme

entende Balladore Pallieri, embora esteja prevista na Constituição, referida norma

constitui uma obrigação genérica da República e é dotada de uma eficácia menor do que

as outras; em última análise depende da boa vontade do legislador ordinário. Todavia,

produz um efeito indireto notável, qual seja prescreve um caminho a ser seguido pela

legislação ordinária; não tem juridicamente o condão de constranger o legislador a

seguir por aquela via, mas o constrange, ao menos, a não seguir uma via diversa. Seria

inconstitucional uma lei que dispusesse de modo contrário ao que a Constituição

154 G. Balladore Pallieri influenciou, no Brasil, a doutrina de José Afonso da Silva. Como se sabe, o

tema da classificação das normas constitucionais foi exaustivamente tratado pelo citado constitucionalista brasileiro, em sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais, e inspirou outros autores pátrios a se debruçarem sobre o tema, os quais, baseando-se na classificação já elaborada por José Afonso da Silva, desenvolveram e acrescentaram peculiaridades na doutrina desenvolvida pelo jurista. A classificação elaborada por Afonso da Silva dividiu as normas constitucionais em normas de eficácia plena, de eficácia contida e, por fim, de eficácia limitada, com suas respectivas subdivisões. Desse modo, essa primeira situação, dentro da quinta hipótese idealizada por Balladore Pallieri, é semelhante à hipótese que Afonso da Silva denomina norma de eficácia contida, ou seja, são normas constitucionais em que o legislador constituinte regulou suficientemente a matéria, mas possibilitou ao legislador ordinário restringir os efeitos da norma constitucional. Estas normas constitucionais têm aplicabilidade imediata, quer dizer, com a entrada em vigor da Constituição, elas já são aplicáveis, no entanto uma lei posterior poderá restringir, conter seus efeitos (José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 82).

155 Já nesta segunda hipótese tais normas enquadrar-se-iam, na classificação de José Afonso da Silva, como normas constitucionais de eficácia limitada, constituindo-se naquelas normas que precisam de atuação legislativa posterior para que possam gerar plenamente todos os direitos e obrigações (Ibidem, p. 82-83).

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determina. E, “uma vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário

não pode retornar sobre seus passos”.

Na linha dessas ideias, destaca-se essa última hipótese verificada por

Balladore Pallieri, que, ao analisar a disposição constitucional da Carta italiana que trata

do direito à saúde, portanto direito de caráter fundamental social, reconhece caber ao

legislador infraconstitucional a tarefa de editar lei que amplie os efeitos da norma

constitucional que agasalha aludido direito. Ademais, nota-se que o autor condena a

ação do legislador de “retornar sobre seus passos”, visto que o legislador ordinário fica

impedido de elaborar leis que contrariem o disposto pela Constituição, e, uma vez que

tais leis sejam editadas, em consonância com o que dispõe a Lei Maior, vedado está o

recuo do legislador caso ocorra a revogação da legislação dantes emanada (restando um

vazio legal); gerar-se-ia, dessa maneira, uma situação de insuficiência de

regulamentação ordinária, o que é defeso à função legislativa.

Além do pensamento de Balladore Pallieri, em relação ao tema da

proibição de retrocesso social, também se pode trazer à baila a doutrina de outro

constitucionalista italiano, Gustavo Zagrebelsky, que, ao tratar da Corte Constitucional

italiana, em obra referente aos tribunais constitucionais europeus e aos direitos

fundamentais, entende que, ainda que se possa conceber que os direitos sociais

albergados na Constituição não constituam direitos subjetivos, e daí apontarem tão só

um norte ao legislador, isto é, acarretarem somente uma tarefa de cunho político ao

poder encarregado de editar leis, deve-se ter em conta que as normas constitucionais que

estabelecem um desenvolver progressivo e pretendem o incremento dessa espécie de

direitos geram a proibição de que a lei faça um movimento para trás quanto ao patamar

já alcançado, e que se retorne ao nível de materialização antecedente. Desse modo,

Zagrebelsky também vê uma vedação ao retrocesso social no âmbito do Direito

constitucional italiano de forma a não aceitar o regresso a um status que corresponderia

à inércia legislativa.156

156 Gustavo Zagrebelsky, El Tribunal Constitucional italiano, In: Louis Favoreu (Coord.), Tribunales

constitucionales europeos y derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984, p. 450.

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Vale ressaltar que tal modo de pensar a temática da proibição do

retrocesso social na Itália aproxima-se da doutrina defendida, destacadamente, por J. J.

Gomes Canotilho e pela Corte Superior portuguesa (que, inclusive, chega a expor as

lições de Balladore Pallieri na fundamentação do Aresto 39/1984), conforme a seguir se

verá.

2.1.3 Portugal

O Direito português desenvolveu de modo significativo o princípio da

vedação ao retrocesso social, influenciando, inclusive, o pensamento doutrinário e

jurisprudencial brasileiro a respeito do assunto. Dentre os doutrinadores lusos, talvez

seja Canotilho o autor que alcance maior destaque na defesa da proibição do retrocesso

social.

Na obra Constituição dirigente e vinculação do legislador, ao fazer

referência à dimensão subjetiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, Canotilho

explica que referida dimensão resulta da consagração desses direitos como direitos

fundamentais dos cidadãos e de normas infraconstitucionais que possibilitem a

concretização de ditos direitos; a partir dessa concretização, os direitos não podem mais

ser reduzidos ou suprimidos sob pena de se incorrer em verdadeiro retrocesso social.

Nas palavras do doutrinador lusitano:

Dimensão subjectiva, que resulta: a) da consagração constitucional destes direitos como direitos fundamentais dos cidadãos e não apenas como “direito objectivo” expresso através de “normas programáticas” ou de “imposições constitucionais” (direitos originários de prestações); b) da radicação subjectiva de direitos através da criação por lei, actos administrativos, etc., de prestações, instituições e garantias necessárias à concretização dos direitos constitucionalmente reconhecidos. É neste segundo sentido que se fala de direitos derivados a prestações (assistência social, subsídio de desemprego, etc.) que justificam o direito de judicialmente ser reclamada a manutenção do nível de realização e de se proibir qualquer tentativa de retrocesso social157 (grifou-se).

157 José Joaquim Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a

compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra: Editora Coimbra, 1994, p. 374.

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Contudo, a doutrina alemã não deixou de inspirar a doutrina portuguesa

e também o pensamento de Canotilho, que acabou por revisar em parte seu pensamento.

Desenvolvendo melhor o princípio da vedação ao retrocesso social, em obra ulterior,

Canotilho explica aludido mandamento em capítulo dedicado ao princípio da

democracia econômica e social, da seguinte maneira:

Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no ámbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. [...] O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autorreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado158 (destaques do autor).

Portanto, para o professor de Coimbra, os direitos fundamentais sociais

adquirem, após sua concretização infraconstitucional, a condição de direitos subjetivos e

de garantia institucional, não se encontrando mais na esfera de disponibilidade do

legislador, sob pena de clara violação ao princípio da proteção da confiança e do

princípio do Estado de Direito, o que tornariam inconstitucionais quaisquer medidas que

viessem a ameaçar o patamar de prestações já atingido. É de ressaltar que, ao defender

que o princípio da vedação ao retrocesso social destina-se a limitar a reversibilidade dos

direitos adquiridos e das expectativas de direitos, em atenção à proteção da confiança

dos cidadãos em âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial dos direitos

158 Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 338-340.

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fundamentais sociais, concebe tais direitos como “direitos prestacionais de

propriedade”, e é nesse ponto que acolhe a doutrina alemã a respeito do princípio do não

retrocesso social. Por outro lado, se, em um primeiro momento, Canotilho trata do

problema fático da irreversibilidade das conquistas sociais, em momento posterior,

como se expôs supra, passa a falar da sua reversibilidade fática, aceitando que a

proibição de retrocesso social é ineficaz contra as recessões e crises econômicas.

Contudo, uma vez que os direitos sociais constitucionais estejam concretizados em lei,

referida materialização passa a corresponder a uma complementação ou

desenvolvimento do direito constitucional, e, nesse passo, adquire caráter materialmente

constitucional, sendo vedada, por conseguinte, a eliminação dessas posições já

alcançadas no que diz respeito ao núcleo essencial já realizado.

Pensando de forma similar, Jorge Miranda afirma que não é possível

suprimir as normas legais e concretizadoras, abolindo os direitos derivados a prestações,

pois extingui-las consistiria em não conceder eficácia jurídica às correlativas normas

constitucionais.159

Nos dizeres de Cristina Queiroz, a respeito dos direitos e interesses

garantidos pelo direito ordinário infraconstitucional, “A esse domínio parcial poderá

chamar-se o nível legalmente concretizado dos direitos sociais”. E assevera que tal

nível legalmente concretizado dos direitos fundamentais sociais precisa ser

compreendido como “configuração” ou “concretização” de referidos direitos pelo

legislador, o que não diminui, em nada, o caráter constitucional dos mesmos.160

Nesse sentido, Queiroz explica que o Tribunal Constitucional de

Portugal entende que, “uma vez consagradas legalmente as ‘prestações sociais’ (v.g., de

159 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, Coimbra: Editora Coimbra, 2000, t. IV, p. 397-

398. 160 Cristina Queiroz, O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais, Coimbra:

Editora Coimbra, 2006, p. 65-66.

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assistência social), o legislador não poderá depois eliminá-las sem alternativas ou

compensações”.161

Daí a autora concordar com J. Paul Müller e a “tese da

‘irreversibilidade’ dos direitos fundamentais sociais constitucionalmente consagrados”,

na medida em que essa ideia “acaba por assumir a função de ‘guarda de flanco’ desses

direitos e pretensões no seu conjunto, garantindo o grau de concretização já obtido,

transformando-se, por assim dizer, numa espécie de ‘densificação’ de direitos

fundamentais”. Nesse sentido, significa que, “ainda que os direitos de natureza

prestacional não imponham uma obrigação de ‘avançar’, estabelecem, contudo, uma

proibição de ‘retroceder’”; com isso, “(os direitos fundamentais) hão-de assegurar

jurídico-constitucionalmente o status quo alcançado sob o ponto de vista do Estado

social [...]”.162

No tocante à linha de entendimento do Tribunal Constitucional

português, merece especial destaque o caso paradigmático apreciado pela Corte

Superior portuguesa, referente ao Serviço Nacional de Saúde, no Acórdão 39/1984,163

em que se submeteu, ao exame desse Tribunal, requerimento de declaração de

inconstitucionalidade do art. 17.º do Decreto-lei 254/1982, que revogou a maior parte

dos preceitos da Lei 56/1979, a qual criou o Serviço Nacional de Saúde, como uma

forma de realizar um direito fundamental, o direito à proteção da saúde contemplado no

art. 64.º da Constituição, cumprindo, designadamente, a tarefa constitucional

consignada no n.º 2 desse preceito constitucional.164 Entretanto, ao revogar boa parte

dos preceitos da Lei 56/1979, o Governo, por meio do aludido decreto-lei, legislou em

161 Queiroz, O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais, p. 67. 162 Idem, ibidem, p. 68. 163 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.

pt/tc/acordaos/19840039.html>. Acesso em: 7 dez. 2011. 164 Assim dispõe o artigo 64.º, 2, da Constituição portuguesa de 1976: “2. O direito à protecção da saúde

é realizado: a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”; e “b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável”.

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matéria do direito à saúde e extinguiu, na verdade, o Serviço Nacional de Saúde

instituído por essa lei.

Nas palavras do relator do acórdão, o Ministro Vital Moreira, sobre o

enquadramento da questão em apreço, encontra-se a seguinte exposição ao questionar o

efeito da revogação dos vários artigos da Lei do Serviço Nacional de Saúde pelo

mencionado decreto governamental:

É fácil verificar que foi revogada toda a parte institucional e organizatória da Lei, a qual ficou reduzida a um pequeno conjunto de princípios materiais orientadores da política de saúde e dos serviços de saúde em geral, mas não do Serviço Nacional de Saúde, pois esse deixou de existir. Uma leitura da Lei n.º 56/79, que se limite aos artigos que não foram revogados, mostra imediatamente que o Serviço Nacional de Saúde, enquanto tal, foi efectivamente revogado e que das disposições subsistentes, algumas (como as dos artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 2) deixaram de ter qualquer conteúdo e as restantes apenas continuam a valer como normas aplicáveis aos serviços públicos de saúde em sentido genérico ou às prestações públicas de saúde em geral, mas não a uma realidade caracterizada como era o Serviço Nacional de Saúde. A instituição Serviço Nacional de Saúde, essa, foi extinta.

E, de acordo com a fundamentação do acórdão e as considerações do

Ministro Vital Moreira, merecem ser destacados os trechos a seguir colacionados, que

bem demonstram a relação da linha argumentativa do magistrado com o princípio da

vedação ao retrocesso social:

A Constituição não se bastou com estabelecer o direito à saúde. Avançou no sentido de enunciar um conjunto de tarefas estaduais destinadas a realizá-lo. À frente delas a lei fundamental colocou a “criação de um serviço nacional de saúde” (artigo 64.º, n.º 2).

A criação de um serviço nacional de saúde é pois instrumento – o primeiro – de realização do direito à saúde. Constitui por isso elemento integrante de um direito fundamental dos cidadãos, e uma obrigação do Estado.

Na tipologia das normas constitucionais de natureza “positiva”, “directiva” ou “dirigente” – isto é, daquelas que, em vez de interdizerem, requerem certa acção do Estado –, a norma que determina a criação de um serviço nacional de saúde assume a natureza de uma verdadeira e própria imposição constitucional, no sentido específico que a doutrina atribui a esta expressão (ver, por todos, J. J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra 1982, pp. 289 e segs.). Trata-se, não de uma

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simples “norma programática” no sentido corrente da expressão, abstracta e temporalmente indeterminada, mas sim de uma obrigação constitucional do Estado, concreta e permanente. [...]

É que aí a tarefa constitucional a que o Estado se acha obrigado é uma garantia do direito fundamental, constitui ela mesma objecto de um direito dos cidadãos. Quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja efectivamente criado, então a sua existência passa a gozar de protecção constitucional, já que a sua abolição implicaria um atentado a uma garantia institucional de um direito fundamental e, logo, um atentado ao próprio direito fundamental. A abolição do Serviço Nacional de Saúde não significa apenas repor uma situação de incumprimento, por parte do Estado, de uma concreta tarefa constitucional; uma vez que isso se traduz na revogação da execução dada a um direito fundamental, esse acto do Estado implica uma ofensa ao próprio direito fundamental.

Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas, após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.

Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social. [...]

Menos dificuldades tem a doutrina lá onde as respectivas Leis Fundamentais incluem grande número de normas positivas, sobretudo em matéria de direitos sociais. É assim que, na Itália, um autor como G. Balladore Pallieri pôde escrever (aliás referindo-se expressamente à norma da Constituição italiana sobre o direito à saúde):

Existem no nosso ordenamento meios para impedir o legislador de legislar em certas matérias que lhe estejam vedadas; mas não existem para forçá-lo a legislar nos casos em que lhe é imposto que o faça. Estas normas da Constituição têm assim uma eficácia assaz menor do que as outras, dependendo em última análise da boa vontade do legislador ordinário. Todavia produzem um efeito, ao menos indirecto, notabilíssimo.

Elas prescrevem uma via a seguir à legislação ordinária; não conseguem constranger juridicamente o legislador a seguir essa via, mas compelem-no pelo menos a não seguir uma via diferente. Seria anticonstitucional a lei que dispusesse de maneira contrária à que a Constituição ordena. E, além disso, uma vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário não pode retornar sobre os seus

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passos. (Autor citado, Diritto Costituzionale, 11. ed., Milão, 1956, pp. 405-6; [...]

Impõe-se a conclusão: após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar essa lei, repondo o estado de coisas anterior. A instituição, serviço ou instituto jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente garantida. Uma nova lei pode vir alterá-los ou reformá-los nos limites constitucionalmente admitidos; mas não pode vir extingui-los ou revogá-los.

Diante dos argumentos utilizados por Vital Moreira para que o Tribunal

Constitucional de Portugal declarasse, por maioria, a inconstitucionalidade do

indigitado art. 17 do Decreto-lei 254/1982,165 é possível observar diferenças entre as

concepções desenvolvidas na Alemanha e em Portugal, e verificar que as ideias

lusitanas assemelham-se muito mais ao pensamento italiano. Cotejando-se a concepção

do princípio da vedação ao retrocesso social desenvolvida nesses países, após exposição

da decisão da Corte Superior portuguesa, notam-se várias diferenças, seja quanto ao

alcance, seja quanto à própria fundamentação.

Nesse viés, o Tribunal português não limitou, tal como fez o

pensamento doutrinário alemão, o princípio do não retrocesso apenas às situações em

que haja uma contraprestação pessoal de seu titular; em vez disso, abarcou também

outras prestações estatais. Verifica-se, ainda, que o aresto português baseou-se nos

limites da ação do legislador e dos mecanismos de controle dos atos comissivos, não

fazendo qualquer relação entre o princípio da proibição de retrocesso social e a

dignidade da pessoa humana ou a proteção da confiança, tratando da problemática dos

limites da atuação “do legislador e do estabelecimento de mecanismo de controle dos

atos comissivos do Poder Legislativo”, que, por fim, “pudessem gerar efeitos similares

aos de sua omissão na tarefa de cumprir determinações constitucionais de editar atos

normativos concretizadores das disposições da Carta Magna”. Em síntese, “Enveredou o

165 O Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, nos termos

e para os efeitos dos artigos 281.º e 282.º da Constituição portuguesa de 1976, do artigo 17.º do Decreto-lei 254/1982, de 29 de junho, na parte em que revogou os artigos 18.º a 61.º e 64.º a 65° da Lei 56/1979, de 15 de setembro. Participaram do julgamento os Ministros: Vital Moreira, José Magalhães Godinho, Jorge Campinos, Luís Nunes de Almeida, Raul Mateus, Mário de Brito, Antero Alves Monteiro Diniz, José Martins da Fon-seca, Joaquim Costa Aroso (com a declaração de voto anexa), José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração anexa), Messias Bento (vencido, em parte, nos termos da declaração de voto que junto), Armando Manuel Marques Guedes.

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pensamento português, portanto, pela trilha de uma discussão de cunho mais

relacionado com a observância, pelo legislador, das imposições constitucionais

legiferantes”.166 Desta feita, de dita comparação, e do exposto nos tópicos anteriores

(2.1.1 e 2.1.2), é possível notar maior proximidade com o pensamento italiano, até pela

menção, no acórdão, à doutrina de Balladore Pallieri, para quem não é concebível, como

já se viu, que, uma vez alcançada a materialização dos direitos fundamentais previstos

na Constituição, por meio de lei infraconstitucional haja a revogação dessa legislação de

modo a causar retorno a uma situação que equivaleria à omissão do legislador.

Em tempos mais recentes, o Tribunal Constitucional de Portugal

analisou novamente o tema da vedação ao retrocesso social, no Acórdão

509/2002,167 ao reconhecer a inconstitucionalidade da legislação instituidora do

rendimento mínimo garantido (o atual Decreto 18/IX da Assembleia da

República), que revogou a Lei 50/1988, e legislação complementar, que regulava o

subsídio de inserção de jovens na vida activa. Ou seja, o novo regime reconhecia a

titularidade do rendimento social de inserção apenas às pessoas com idade igual ou

superior a 25 anos, ao passo que o regime anterior previa o direito à prestação do

rendimento mínimo aos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, sem que

com tal revogação do regime anterior tenha havido substituição por qualquer

compensação afim, verificando-se uma desproteção objetiva da generalidade das

pessoas de idade inferior a 25 anos, constituindo, objetivamente, para essa faixa

etária, uma regressão na proteção social correspondente aos tempos anteriores a

1988. No entanto, referida análise foi feita com fundamentação distinta daquela

constante do Acórdão 39/1984, pois nessa nova apreciação admitiu-se a aplicação

do apontado princípio tão só quando a supressão legislativa afetar o mínimo

existencial, de modo a conciliar com a liberdade de conformação do legislador.168

166 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 151-152. 167 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.

pt/tc/acordaos/20020509.html>. Acesso em: 12 dez. 2011. 168 O Tribunal Constitucional português pronunciou-se pela inconstitucionalidade da norma constante

do artigo 4.º, n. 1, do Decreto da Assembleia da República n. 18/IX, por violação do direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 2.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República portuguesa.

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Nesse julgado de 2002, que teve como relator o Conselheiro Luís Nunes

de Almeida, entendeu-se, conforme fragmentos transcritos abaixo, da seguinte forma:

Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível “determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade” (cfr. Acórdão n.º 474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão n.º 39/84.

Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais.

Este Tribunal já teve, aliás, ocasião de se mostrar particularmente restritivo nesta matéria, pois que no Acórdão n.º 101/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs. 389-390), parece ter considerado que só ocorreria retrocesso social constitucionalmente proibido quando fossem diminuídos ou afectados “direitos adquiridos”, e isto “em termos de se gerar violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural”, tendo em conta uma prévia subjectivação desses mesmos direitos. [...]

Todavia, ainda que se não adopte posição tão restritiva, a proibição do retrocesso social operará tão só quando, como refere J. J. Gomes Canotilho, se pretenda atingir “o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana”, ou seja, quando “sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios”, se pretenda proceder a uma “anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial”. Ou, ainda, tal como sustenta José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da protecção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade.

Daqui se pode retirar que o princípio do respeito da dignidade humana, proclamado logo no artigo 1.º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignado no seu artigo 2.º, e ainda aflorado no artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da mesma CRP, que garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a protecção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou

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da garantia a um mínimo de subsistência condigna (destaques no original).

Por conseguinte, é possível notar que, com o Aresto 509/2002, a Corte

Constitucional portuguesa aproximou-se da visão alemã do princípio da vedação ao

retrocesso social e, também, da linha de entendimento que passou a ser abraçada por

Canotilho. Diante da argumentação supradestacada, pode-se verificar que essa decisão –

diferentemente do Acórdão 39/1984, cujo foco girou em torno de uma omissão

inconstitucional do legislador –, teve por norte argumentos referentes à dignidade da

pessoa humana, ao mínimo existencial e ao princípio da proteção à confiança. Importa

esclarecer que da leitura do julgado de 2002 nota-se que o Tribunal português seguiu

“uma técnica de pequenos passos (de que dá nota a própria decisão)”, aliada à

“influência de certas raízes históricas”, e, nessa passada, “veio, em sucessivas fases, a

dar corpo a um verdadeiramente novo direito fundamental: o ‘direito ao mínimo de

existência condigna’”. Acrescente-se que: “Tendo sofrido alguns reparos críticos na

doutrina, esta linha jurisprudencial teve a sua projecção máxima nesse ano de 2002

(com os Acórdãos n.ºs 62/2002, 177/2002 e 509/2002)”, ao que depois, “mesmo no

domínio onde a mesma se tinha apresentado mais florescente (o da impenhorabilidade

de salários e de prestações sociais), ela começou a declinar”.169

Nesse diapasão, no Acórdão 590/2004,170 sobre o Crédito bonificado à

habitação – em que estava em apreciação a constitucionalidade do Decreto-lei

305/2003, que havia revogado o regime do crédito bonificado e do crédito jovem

bonificado à habitação –, é possível notar que, após o auge do discurso apresentado no

texto do Aresto 509/2002, “acentuam-se neste acórdão de 2004 diversos sinais de uma 169 Jorge Miranda e José de Melo Alexandrino, As grandes decisões dos tribunais constitucionais

europeus. Disponível em: <http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/ jmjma.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2011.

170 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/20040590.html>. Acesso em: 18 dez. 2011. Questiona-se, no citado acórdão, a inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 1.º e 2.º do Decreto-lei 305/2003, que, “ao revogar os regimes de crédito bonificado e crédito jovem bonificado, relativamente à contratação de novas operações de crédito, destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente”, e, por conseguinte, referida hipótese afrontaria “o disposto na alínea d do artigo 9.º, no n.º 1 do artigo 36.º, no n.º 3 do artigo 65.º e na alínea c do n.º 1 do artigo 70.º, todos da Constituição”.

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certa reorientação argumentativa a respeito da realização dos direitos fundamentais

sociais e, por conseguinte, do direito à habitação”.171 Segundo o Conselheiro Artur

Maurício, relator do Acórdão 590, “só existirá retrocesso social constitucionalmente

proibido em casos-limite – quando se deixe de assegurar o núcleo essencial de um

direito fundamental consagrado na Constituição”. Desse modo, “em face,

designadamente, da subsistência de outros instrumentos jurídicos de concretização dos

direitos à habitação e à protecção especial dos jovens”, tudo leva a concluir que o

“‘retrocesso social’ que advém da revogação do regime de crédito bonificado não afecta

o conteúdo essencial dos referidos direitos”. Portanto, “A solução consagrada na Lei n.º

305/2003 deve, assim, ser entendida no contexto da revisibilidade das opções

legislativas decorrente do princípio da alternância democrática, não constituindo

violação da Lei Fundamental”.

Portanto, dentre os sinais que se podem anotar da análise do julgado em

apreço, Jorge Miranda e José de Melo Alexandrino assinalam a efetiva adoção do

princípio da “revisibilidade das opções legislativas”, expressamente mencionado no

segmento colacionado supra. Acrescentem-se ainda, segundo ambos os autores, os

seguintes pontos: o abandono da teoria da proibição do retrocesso nos moldes da

formulação alcançada no destacado Acórdão 39/1984, sobre o Serviço Nacional de

Saúde; o abandono tácito da doutrina das cláusulas específicas de proibição do

retrocesso (cujos defensores, os Conselheiros Ribeiro Mendes e Luís Nunes de

Almeida, estamparam-na nos seus votos constantes do Acórdão 148/1994); o recorrer a

um completamente novo argumento de caráter holístico, consistente na empreitada do

legislador de ter de promover “a efetivação de todos os direitos econômicos, sociais e

culturais” (ou, em versão mínima, do conteúdo vital de todos eles), necessitando ainda

harmonizar um real “direito fundamental social com os demais direitos sociais e com os

demais bens e interesses constitucionalmente relevantes”; por fim, o recurso à

“diferenciação a estabelecer entre os próprios direitos fundamentais sociais, uma vez

que alguns de entre eles (‘como o direito a um nível de vida suficiente, ao nível do

direito à alimentação, vestuário, cuidados médicos e serviços sociais básicos’)” teriam

evidente “importância, à luz designadamente da DUDH e por serem decorrência da

171 Miranda e Alexandrino, As grandes decisões dos tribunais constitucionais europeus, p. 23.

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dignidade da pessoa humana e ainda instrumento de efectivação de outros direitos

fundamentais”.172

Particularmente “quanto ao problema da proibição do retrocesso social,

pode-se afirmar, sem hesitação, que o Tribunal” assumiu inteiramente “a doutrina

fixada nos Acórdãos 509/2002 e 590/2004”.173 Portanto, manteve-se o entendimento

que se firmou por ocasião desses julgados, inclusive nos últimos acórdãos da Corte

Constitucional portuguesa (v.g., Acórdãos 187/10 e 222/11) que continuam fazendo

menção e reportando-se aos citados arestos de 2002 e 2004, em uma linha mais

restritiva da aplicação do princípio.

E, de modo ainda mais recente, o princípio do não retrocesso social

aparece mencionado novamente no Acórdão 396, de 21 de setembro de 2011,174 em que

o Tribunal Constitucional português aprecia a possibilidade de redução remuneratória

para os trabalhadores do setor público por intermédio da Lei 55-A/2010, de 31 de

dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011). Justamente em um momento de

crise econômica, que assola vários países da União Europeia, dentre eles Portugal, a

Corte portuguesa segue implicitamente o discurso jurídico preconizado por Canotilho,

no tocante ao ponto em que o princípio do não retrocesso nada pode contra os

momentos de crise e de recessão econômica (reversibilidade fática). No entanto, sem

fazer menção expressa a essa doutrina, o discurso jurídico do Tribunal Constitucional é

no sentido de entender que, em face da situação de instabilidade econômica que o país

atravessa, com o intuito de conter os gastos públicos, como medida excepcional e de

caráter temporário, reconhece-se a constitucionalidade da lei orçamentária para o ano de

2011, asseverando que o corte salarial dos funcionários públicos, previsto no OE/2011,

não visa qualquer tipo de retrocesso social, mas sim meio de ação para o alcance da

estabilidade e crescimento econômico, financeiro e social.

Nas palavras do relator do acórdão, o Conselheiro Joaquim de Sousa

Ribeiro, pode-se dizer que:

172 Miranda e Alexandrino, As grandes decisões dos tribunais constitucionais europeus, p. 24. 173 Idem, ibidem, p. 24. 174 Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.

pt/tc/acordaos/20110396.html>. Acesso em: 27 dez. 2011.

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[...] as medidas de diminuição da despesa pública inscritas no Orçamento de 2011 mais não representam do que uma parcela, uma fase, de um programa cuja realização integral se estende por um horizonte temporal mais alargado. Não tendo o legislador optado, porém, por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013), esse dado não invalida a conclusão de que elas vigorarão segundo a sua natureza de medidas de carácter orçamental, ou seja, anualmente, caducando no termo do ano em curso. Apenas leva a dar como praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das vinculações assumidas, a repetição de medidas de idêntico sentido, para vigorar nos anos correspondentes aos da execução do programa que as justifica e em que se integram, ou seja, até 2013.

De qualquer forma, a ser tida em conta, esta prognose apenas pode fundar a conclusão de que estas medidas terão uma duração plurianual, sem pôr em causa o seu carácter transitório, de acordo com a sua razão de ser e natureza, de resposta normativa a uma conjuntura excepcional, que se pretende corrigir, com urgência e em prazo o mais breve possível, para padrões de normalidade (destaques no original).

A justificação apresentada para a medida no Relatório que acompanha o Orçamento de Estado é, aliás, clara em salientar que ela se insere num “contexto de excepcionalidade” não visando qualquer tipo de retrocesso social, mas sim o cumprimento das metas resultantes do Pacto de Estabilidade e Crescimento (destacou-se).

Aí se pode ler:

“Uma medida como a da redução remuneratória só é adoptada quando estão em causa condições excepcionais e extremamente adversas para a manutenção e sustentabilidade do Estado Social. Não se pretende instituir qualquer tipo de padrão ou retrocesso social, mas sim assegurar a assumpção das responsabilidades e dos compromissos do Estado português, quer internamente, continuando a prestar um serviço público de qualidade, quer internacionalmente, desde logo na esfera da União Europeia, no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento” (destacou-se).

Estando estas medidas instrumentalmente vinculadas à consecução de fins de redução de despesa pública e de correcção de um excessivo desequilíbrio orçamental, de acordo com um programa temporalmente delimitado, é de atribuir-lhes idêntica natureza temporária, nada autorizando, no presente, a considerar que elas se destinam a vigorar para sempre. Independentemente dos juízos e dos cálculos previsionais, do ponto de vista económico-financeiro, quanto à evolução das contas públicas e à possibilidade de contenção do défice orçamental nos limites e na data fixados – matéria de que é inarredável um forte grau de subjectividade – o certo é que não se visiona, no momento actual, qualquer base normativa que objectivamente permita dar por assente que as reduções remuneratórias perdurarão indefinidamente.

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Nessa toada, nota-se que, como consequência da crise do Estado

neoliberal, a fim de ajustar os gastos públicos, justifica-se a reversibilidade fática

anotada por Canotilho. Nesse viés, o Tribunal Constitucional de Portugal reconheceu,

por maioria,175 a constitucionalidade das disposições legais orçamentárias afastando a

ofensa quanto ao nível de garantias já materializadas em relação à renumeração dos

funcionários públicos portugueses. Ao se levar em consideração as lições do dantes

citado mestre português, a bancarrota do Estado é uma realidade contra a qual a vedação

ao retrocesso parece não conseguir ser suficientemente forte para prevalecer,

especialmente diante da realidade orçamentária. A questão, contudo, será mais bem

discutida em momento oportuno (cf. Capítulo 3).

Para concluir o estudo do princípio da proibição de retrocesso social em

Portugal, traz-se à tona o pensamento de Jorge Pereira da Silva, que faz um estudo sobre

175 No entanto, os Conselheiros João Cura Mariano, Carlos Pamplona de Oliveira e J. Cunha Barbosa,

ao apreciarem a constitucionalidade da norma de cunho orçamentário quanto à redução, de imediato, do montante remuneratório dos funcionários, apresentaram declaração de voto divergente do entendimento da maioria, reconhecendo a inconstitucionalidade das normas contidas na OE/2011, na medida em que tais normas afrontam os princípios da segurança jurídica, proteção à confiança, igualdade e proporcionalidade. Por conseguinte, os argumentos mais relevantes colacionados dos votos dos julgadores dissidentes são os seguintes: a) em um Estado Democrático de Direito há a necessidade de se ter um patamar mínimo de certeza e de segurança no que condiz ao direito das pessoas e às expectativas que a elas são juridicamente criadas. Portanto, cabível a proteção constitucional no que diz respeito à expectativa que os administrados legitimamente apresentam quanto à conservação de situações remuneratórias já alcançadas como consequência da ordem normativa em vigor, o que faz com que as normas que, de modo inadmissível e arbitrário, lesem aquele mínimo de certeza e segurança – que a coletividade e o direito devem observar como dimensões essenciais do Estado de direito democrático – sejam entendidas como não aceitas pela Constituição; b) a alegação usada para justificar a aprovação das normas que definem cortes e reduções nos salários dos funcionários mostra que o interesse público que referidas normas almejam resguardar relaciona-se à coletividade como um todo, à generalidade dos indivíduos, e não somente aos funcionários públicos, categoria que, todavia, é unicamente afetada pela dita redução salarial. Não existe, consequentemente, uma particular justificativa para afetar, de forma exclusiva, esses trabalhadores; c) e, ademais, a efetiva redução nas remunerações dos destinatários das normas, sem que se estabeleça qualquer tipo de contrapartida, põe em risco a confiança e a proporcionalidade, uma vez que estas servem como parâmetro para verificação da adequada aplicação do princípio da igualdade, ainda mais que, ao se tratar de medida adotada de maneira unilateral e com reflexos tão só na esfera pessoal dos funcionários, não permite que estes possam compensar tal redução por outra forma e de modo a conseguirem a quota-parte de que foram privados, haja vista a necessidade de satisfazer as possíveis e naturais obrigações que assumiram em virtude da quantia remuneratória precedente, circunstância esta que será ainda mais relevante quando se tratar da exclusividade de funções que se exige com base no estatuto profissional de alguns dos funcionários, que impede o exercício de qualquer outro tipo de atividade (complementar) remunerada, por intermédio de esforço pessoal e com apelo à diminuição das suas horas de descanso e de lazer (Tribunal Constitucional de Portugal. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110396.html>. Acesso em: 27 dez. 2011).

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o princípio do não retrocesso social buscando delimitar os seus contornos de modo mais

preciso.176 Após contextualizar o princípio de forma a demonstrar como é compreendido

tanto na doutrina quanto na jurisprudência portuguesa, trata de distinguir o primado do

não retrocesso social do princípio da proteção à confiança, da garantia do direito

adquirido e da proibição de revogação, sem substituição, dos regulamentos de execução.

Reconhece que o princípio da proibição de retrocesso social não está

positivado na Constituição portuguesa, mas assevera que se pode falar na positivação de

uma cláusula mais ampla, qual seja a da proibição de recriar omissões legislativas

inconstitucionais.

Assim, nas suas palavras:

Em primeiro lugar, ao contrário do que faz supor a formulação habitual, o princípio da proibição do retrocesso não respeita apenas ao âmbito dos direitos sociais, pelo que o qualificativo “social” não lhe assenta bem, desde logo porque é redutor. O mesmo problema que a doutrina identifica a propósito dos direitos sociais pode colocar-se, de igual modo, a respeito dos direitos, liberdades e garantias contidos em normas constitucionais não exequíveis, em matérias próprias da Constituição econômica ou em relação a normas legais que regulem órgãos, entidades ou institutos constitucionalmente previstos.

Em segundo lugar, o princípio em questão também não proíbe propriamente o retrocesso em matéria de leis ordinárias concretizadoras sobre direitos sociais – ou sobre outras matérias –, pelo que também o termo “retrocesso” não se afigura certeiro. De facto, a proibição em causa consiste tão somente em impedir a “eliminação” daquilo que é caracterizado como o “conteúdo essencial” dos direitos sociais – o mesmo valendo para outros direitos ou institutos com esteio constitucional –, tal como foram regulados pelo direito ordinário. Assim, por exemplo, pode haver lugar a retrocesso em matéria de direitos sociais, contanto que fique incólume o cerne das posições jurídicas e das estruturas concretizadoras do princípio do Estado social.

Em terceiro e último lugar, o dito princípio da proibição do retrocesso social não se funda nem é uma manifestação do princípio da proteção

176 Jorge Pereira da Silva, Dever de legislar e protecção constitucional contra omissões legislativas:

contributo para uma teoria da inconstitucionalidade por omissão, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003, p. 245-287. Expondo também a lição de Pereira da Silva, está Felipe Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 158-161.

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da confiança. Na verdade, a supressão dos regimes legais em vigor fica vedada mesmo naquelas situações em que o novo regime legal – entenda-se lei revogatória ou lei que procede à reformatio in pejus – apenas se aplica para o futuro, sem que se vislumbre qualquer sinal de retroactividade ou restrospectividade, mas também quando das normas legais revogadas ou alteradas não se desprendam quaisquer posições jurídicas subjectivas e, portanto, sejam insusceptíveis de gerar uma confiança legítima na respectiva manutenção.177

Com efeito, em síntese, defende que o primado da vedação

constitucional de extinguir a materialização de disposição constitucional efetivada por

lei impede que o legislador atue de modo a eliminar os direitos dantes concretizados

legalmente, independentemente de a norma abrigar ou não um direito de cunho social.

Ademais, é possível verificar que Pereira da Silva refuta a terminologia retrocesso, na

medida em que entende que a proibição contida na Constituição circunscreve-se à

supressão do conteúdo essencial dos direitos ou institutos agasalhados pela

Constituição, e, nesse ponto, afirma não ser concebível retornar a uma hipótese de

omissão legislativa, situação esta que ensejaria o recurso aos meios de controle da

inconstitucionalidade por omissão. Veja-se que, para o autor, somente os direitos sociais

acolhidos constitucionalmente possibilitariam a aplicação da vedação de retorno à

omissão do legislador, uma vez que a eliminação de direitos sociais criados tão apenas

por lei, sem status constitucional, ficaria à margem da proteção conferida para os

direitos que encontram abrigo na Constituição, pois, nesse caso, não estaria configurada

a hipótese de omissão legislativa inconstitucional.178 E, finalmente, diferencia o

primado da vedação de retrocesso social do princípio da proteção à confiança, pois está

proibida a edição de nova lei revogadora que procederia à reforma para pior (não só

com efeitos retroativos, mas também quando voltados somente para o futuro), como, de

igual modo, haveria vedação de retrocesso quando das previsões legais revogadas ou

alteradas não gerem quaisquer posições jurídicas subjetivas e, por conseguinte, sejam

insuscetíveis de propiciar uma confiança legítima na concernente manutenção.

177 Pereira da Silva, Dever de legislar e protecção constitucional contra omissões legislativas:

contributo para uma teoria da inconstitucionalidade por omissão, p. 282-283. 178 Idem, ibidem, p. 284.

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Após a análise do pensamento doutrinário e jurisprudencial estrangeiro,

caberá agora expor o pensamento da doutrina brasileira referente ao não retrocesso

social.

2.2 Brasil

2.2.1 Pensamento doutrinário a respeito do tema

Quando se aborda o princípio da proibição de retrocesso social no

Brasil, preliminarmente, deve-se fazer menção a José Afonso da Silva, pois, sem

dúvida, é o jurista responsável pelas manifestações iniciais acerca do mencionado

princípio. Sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais tornou-se fonte de

consulta imprescindível e referência clássica sobre o assunto da eficácia das normas

constitucionais, sendo precursora no enfrentamento da questão no Direito

Constitucional brasileiro.179 Ao dedicar-se ao estudo da aplicabilidade das normas na

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e tornar consagrada a

classificação das normas quanto à sua eficácia,180 o constitucionalista brasileiro encetou

a abordagem da temática do retrocesso social quando tratou de defender que as normas

definidoras de direitos sociais seriam ainda concebidas como normas programáticas,

subespécie das normas constitucionais de eficácia limitada, que versam “sobre matéria

179 Nesse sentido, Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p.

166. 180 A classificação proposta pelo autor consiste em dividir a eficácia das normas constitucionais em

normas de eficácia plena, contida e limitada. Segundo Silva, “Na primeira categoria incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto. O segundo grupo também se constitui de normas que incidem imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas preveem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites, dadas as circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado (José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., 3.ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 82-83).

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eminentemente ético-social, constituindo verdadeiramente programas de ação social

(econômica, religiosa, cultural, etc.)”.181

Nota-se que muitas normas de cunho programático evidenciam-se,

consoante Silva, como apenas princípios, ou seja, esquemas genéricos que realçam

programas a serem desenvolvidos posteriormente por meio da atividade legislativa

infraconstitucional.182

A despeito da dificuldade de serem conceituadas, Silva as define do

seguinte modo:

Podemos conceber como programáticas aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado183 (destaque do autor).

Mesmo classificando referidas normas como de eficácia limitada,

caracterizadas como “princípios gerais informadores do regime político e de sua ordem

jurídica”, reconhece que é esta sua particularidade que lhes confere “importância

fundamental, como orientação axiológica para a compreensão do sistema jurídico

nacional” possibilitando-se, com isso, reconhecer que elas são dotadas de “uma eficácia

interpretativa que ultrapassa, nesse ponto, a outras do sistema constitucional ou legal,

porquanto apontam os fins sociais e as exigências do bem comum, que constituem

vetores da aplicação da lei”.184

Infere-se, portanto, que as normas constitucionais de princípio

programático, na lição do constitucionalista buscam “configurar os fins sociais a que se

dirigem o Estado e a sociedade, consoante exigências do bem comum”; de tal maneira,

181 José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., 3.ª tiragem, p. 84. 182 Idem, ibidem, p. 137. 183 Idem, p. 138. 184 Idem, p. 157.

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“toda lei ou norma (inclusive as constitucionais) integrante da ordem jurídica nacional

há que conformar-se à pauta de valor indicada, ao menos tendencialmente, pelas normas

programáticas da constituição”.185

Nesse diapasão, extrai outro efeito notável das normas constitucionais

programáticas, com base na lição de Balladore Pallieri, qual seja o de que ditas normas

impõem à legislação infraconstitucional uma via a ser seguida; não têm o condão de

obrigar, juridicamente, o legislador a seguir aquele caminho, mas o impelem a não

abraçar outro diverso. Isso quer dizer que seria considerada inconstitucional a lei que

dispusesse de forma contrária ao que a Constituição estabelece. Ademais, uma vez que

se dê execução à norma constitucional, o legislador infraconstitucional não pode voltar

atrás.186

Não são diferentes os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, que

afirma ser a vedação ao retrocesso um princípio que, embora não expresso, decorre do

sistema jurídico-constitucional. Com base nesse primado, “entende-se que, se uma lei,

ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se

incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente

suprimido”.187

Como adverte Flávia Piovesan, “O movimento de esfacelamento de

direitos sociais simboliza uma flagrante violação à ordem constitucional, que inclui

dentre suas cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais”. Portanto, “Na

qualidade de direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são intangíveis e

irredutíveis, sendo providos da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional

qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los”. E pondera que, “à medida que os

direitos humanos são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, a violação a

direitos sociais implica, consequentemente, a violação a direitos civis e políticos”.188

185 Sem destaque no original. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed.,

3.ª tiragem, p. 158. 186 Idem, ibidem, p. 158. 187 Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e

possibilidades da Constituição brasileira, Rio de Janeiro: Renovar, 8. ed., 2006, p. 152. 188 Flávia Piovesan, Não à desconstitucionalização dos direitos sociais, Consultor Jurídico, São Paulo,

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Ressalta Carmen Lúcia Antunes Rocha que “Há de se atentar que

prevalece, hoje, no Direito Constitucional o princípio do não retrocesso”, referindo-se

dito princípio ao fato de que “as conquistas relativas aos direitos fundamentais não

podem ser destruídas, anuladas ou combalidas”, uma vez que se trata “de avanços da

humanidade, e não de dádivas estatais que pudessem ser retiradas segundo opiniões de

momento ou eventuais maiorias parlamentares”. Observa que “Não se há de cogitar em

retroceder no que é afirmador do patrimônio jurídico e moral do homem havido em

conquistas de toda a humanidade, e não apenas de um governante ou de uma lei”. Nesse

sentido, defende que “Os direitos conquistados, especialmente aqueles que representam

um avanço da humanidade no sentido do aperfeiçoamento da sociedade e que se

revelam nos direitos sociais, não podem ser desprezados ou desconhecidos”, e, portanto,

devem, antes, ser encarecidos e ampliados.189

Lenio Luiz Streck, ao analisar o papel do Judiciário no tocante à

implementação das políticas públicas previstas na Constituição, assevera que, “naquilo

que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através do controle da

constitucionalidade das leis, pode servir como via de resistência às investidas dos

Poderes Executivo e Legislativo”, sempre que estas representarem “retrocesso social ou

a ineficácia dos direitos individuais ou sociais”. Nessa passada, afirma que “a

Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a

relevante função de proteger os direitos já conquistados”. Por conseguinte, com base na

“utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater

alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que legislando na contramão da

programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade”.190

O autor menciona, inclusive, o Aresto 39/1984 do Tribunal Constitucional da República

Portuguesa, o qual considerou a cláusula da “proibição do retrocesso social” como

“inerente/imanente ao Estado Democrático e Social de Direito”, e impôs ao Poder

Público, sempre que o Estado impende (total ou parcialmente) as tarefas que lhe são

2000. Disponível em: <www.conjur.com.br/2000-jun-02/conquistas_trabalhistas_preservadas>. Acesso em: 10 jan. 2012.

189 Cármen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Disponível em: <http://www.paf.adv.br/novosite/artigos/index.php?cod_artigo=7>. Acesso em: 10 jan. 2012.

190 Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999, p. 38-39.

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impostas pela Constituição para realizar um direito social, o respeito constitucional que

deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) em uma obrigação positiva para passar,

igualmente, a ser uma obrigação negativa; ou seja, o Estado, que estava compelido a

agir e concretizar o direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a

realização dada ao direito social.191

Ainda, em outra passagem, ao tratar da vedação ao retrocesso social

como norma hermenêutica, Streck destaca: “Neste ponto adquire fundamental

importância a cláusula implícita de proibição de retrocesso social, que deve servir de

piso hermenêutico para novas conquistas”. Sublinha que, “Mais e além de todos os

limites materiais, implícitos ou explícitos, esse princípio deve regular qualquer processo

de reforma da constituição”, na medida em que “Nenhuma emenda constitucional, por

mais que formalmente lícita, pode ocasionar retrocesso social”. Para o autor, “Essa

cláusula paira sobre o Estado Democrático de Direito como garantidora de conquistas”.

Isto significa que “a Constituição, além de apontar para o futuro, assegura as conquistas

já estabelecidas. Por ser um princípio, tem aplicação na totalidade do processo

aplicativo do Direito”.192

Por sua vez, Ana Paula de Barcellos concebe a vedação ao retrocesso

como modalidade de eficácia dos próprios princípios constitucionais, e não princípio

autônomo.193 No entanto, para a autora existe a possibilidade de se declarar inválida a

191 Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 39. 192 Lenio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito, 2. ed., Rio

de Janeiro: Forense, 2004, p. 706. 193 Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade

da pessoa humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 59-76. Segundo a jurista, eficácia é um atributo ligado às normas e funda-se no resultado jurídico que deve advir de sua observância, comportando sua exigência na via judicial se necessário. Sinteticamente, a autora classifica a eficácia das normas jurídicas sob as seguintes modalidades, quais sejam: a) simétrica ou positiva, dá-se quando a norma origina direito subjetivo; b) nulidade, diante da declaração de invalidade dos atos realizada em juízo; c) ineficácia, quando se permite que sejam ignorados os atos praticados em desconformidade com a norma; d) anulabilidade, quando o ato estiver eivado de vício declarado judicialmente; e) negativa, que possibilita a declaração de invalidade de todos os atos contrários à finalidade que busca alcançar a norma em questão; f) penalidade, que pode concorrer para influenciar o indivíduo no cumprimento espontâneo da norma, diante da possibilidade da sanção; g) interpretativa; h) outras. No que diz respeito aos princípios constitucionais, entende que existem somente as seguintes eficácias: a) positiva ou simétrica; b) interpretativa; c) negativa; d) vedação de retrocesso. No entanto, discorda-se da autora, na medida em que, consoante se verá no devido tópico, a proibição do retrocesso é princípio autônomo, uma vez que possui conteúdo próprio, tendo o condão de dificultar o mencionado retrocesso, e impedir que se dê marcha a ré em termos de conquistas sociais, buscando garantir o seu patamar já alcançado, almejando, do mesmo modo, ampliar o que já foi concretizado.

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revogação das normas que disciplinam o desfrute dos direitos fundamentais sem que se

institua uma política que o equivalha, pois, nesse caso, o legislador acabaria por

esvaziar o preceito constitucional, tal como se estabelecesse alguma disposição que o

contrariasse diretamente.194

Consoante a lição de José Vicente dos Santos Mendonça, que faz um

estudo bastante interessante do princípio da vedação ao retrocesso social, podem-se

vislumbrar três significações (ou sentidos) para a vedação do retrocesso social. Na

primeira significação, segundo o autor, advém retrocesso a toda norma que contradiga

o/a juízo/opinião pessoal daquele que a emite; porém, esse sentido não deve ser

considerado perante a ausência de base jurídica. Na segunda acepção, tem-se a vedação

genérica do retrocesso, que acena para a impossibilidade de se revogar pura e

simplesmente a norma infraconstitucional que disciplina ou completa determinada

norma constitucional, sem que ocorra a substituição por outra norma. E, finalmente,

uma terceira significação, denominada vedação específica dos direitos fundamentais,

impede que direitos sociais fundamentais, disciplinados infraconstitucionalmente por

lei, possam ser diminuídos ou enfraquecidos por legislação ulterior, alcançando o

âmago da referida garantia.195 Assim, entre a proibição genérica do retrocesso e a

vedação específica deste, verifica-se que esta última hipótese volta-se para os direitos

sociais fundamentais que, uma vez concretizados, não devem ser suprimidos ou

reduzidos perante a revogação de legislação que os regulamente.

Suzana de Toledo Barros crê que o princípio da proibição de retrocesso

social obstaria o legislador de suprimir o nível de concretização legislativa já

conquistado em relação aos direitos fundamentais. No entanto, vislumbra que a

aceitação do referido princípio entra em conflito com o princípio da autonomia do

legislador.196

194 Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O começo da história. A nova interpretação

constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.camara. rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf>. Acesso em: 10 jan. 12.

195 José Vicente dos Santos Mendonça, A vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo, In: Gustavo Binenbojm (Coord.), Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. 12, p. 218-219.

196 Suzana Toledo de Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 160-161.

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Nesse mesmo sentido, encontra-se na doutrina de Paulo Gustavo Gonet

Branco o esclarecimento de que, para quem admite o princípio da proibição de

retrocesso social, este acarretaria a impossibilidade de o legislador revogar o grau de

materialização alcançado pelos direitos fundamentais, regulamentado por lei, pois “A

realização do direito pelo legislador constituiria, ela própria, uma barreira para que a

proteção atingida venha a ser desfeita sem compensações”.197

Branco cita Vieira de Andrade e Afonso Vaz,198 que recusam a

aceitação genérica desse princípio, pois sustentam que o legislador detém liberdade

conformativa dos direitos fundamentais, e que, ao aceitar-se esse primado do não

retrocesso, haveria um choque potencial desse princípio com a autonomia para

legislar.199 Contudo, segundo adverte o jurista, esse conflito, consoante aos que acolhem

a tese da proibição do retrocesso, poderia ser evitado, inclusive impedindo-se o

aniquilamento da autonomia legislativa, se puder haver substituição da legislação

revogada por outra que seja correspondente (equivalente) ou compensatória, respeitado

o mandamento da proporcionalidade.200

Ressalta que, da mesma maneira, o poder de reformar a Constituição

está vinculado aos direitos fundamentais, pelo menos “na medida em que o art. 60, § 4.º,

da Carta, veda emendas tendentes a abolir direitos e garantias individuais”.201

Por sua vez, Rodrigo Goldschmidt entende que a adoção do princípio da

proibição de retrocesso social, em realidade, não se choca com o princípio da autonomia

do legislador, pois, na verdade, acaba, sim, por estabelecer limites à sua atividade, com

o intuito “de evitar que um determinado direito fundamental, já contemplado e

197 Paulo Gustavo Gonet Branco, Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais, In: Gilmar Ferreira

Mendes; Inocêncio Mártires Coelho; Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, 1. ed., 2.ª tiragem, Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 127.

198 Miguel Afonso Vaz, no entanto, não chega a ponto de negar a existência de alguma manifestação de uma proibição de retrocesso, vez que menciona a proteção da confiança e a necessidade de se justificar a edição de medidas retrocessivas no âmbito da legislação infraconstitucional (Miguel Afonso Vaz, Lei e reserva de lei. A causa da lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1992, p. 383 e ss.). É representante desse pensamento no Brasil Suzana de Toledo Barros, consoante se expôs supra.

199 Branco, Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais, p. 127-128. 200 Idem, ibidem, p. 128. 201 Idem, p. 128.

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incorporado no sistema jurídico, seja do mesmo extirpado ou inadequadamente

restringido”. Assevera que o princípio da proibição do retrocesso social proporciona um

“critério objetivo com o qual é possível controlar a adequação e a correção da atividade

restritiva dos direitos fundamentais”, consistente em verificar “se o legislador ou o

intérprete, na tarefa restritiva dos direitos fundamentais, respeitou aqueles direitos,

igualmente fundamentais, já definidos e incorporados ao patrimônio jurídico do

homem”. Desse modo, “Se foram respeitados, a atividade restritiva apresenta-se

juridicamente perfeita. Caso contrário, a restrição efetivada configura-se ilegal ou

abusiva, portanto imperfeita”.202

Goldschmidt acrescenta que existem os defensores da ideia de que o

princípio da proibição do retrocesso social encontra-se acolhido pelo ordenamento

jurídico constitucional brasileiro de forma clara, uma vez que dito primado estaria

contemplado no caput do art. 7.º da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe que

“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria

da sua condição social: [...]”. Por conseguinte, diante dessa previsão constitucional,

destaca que aludido dispositivo “encabeça uma série de direitos fundamentais

trabalhistas, preconizando que tal catálogo está aberto a outros direitos que visem à

melhoria da condição social do trabalhador, logo, permitindo apenas o avanço na

atualização de tais direitos, jamais o retrocesso”. Adere, com isso, à doutrina que

concebe o princípio do não retrocesso como mandamento presente no preceptivo

constitucional supracitado.203

202 Rodrigo Goldschmidt, O princípio da proibição do retrocesso social e sua função protetora dos

direitos fundamentais, Revista Anais do I Seminário Nacional de Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais, Chapecó: Unoesc, v. 1, n. 1, p. 283, 2011. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/seminarionacionaldedimensoes/article/view/906>. Acesso em: 15 jan. 2012.

203 Idem, ibidem, p. 284. Em relação a esse mencionado dispositivo constitucional, José Afonso da Silva reconhece implicitamente o princípio do não retrocesso social quando da análise de referido preceptivo. Assim, o autor leciona no seguinte sentido: “[...] a Constituição Federal, no art. 7.º, assegura aos trabalhadores os direitos ali enumerados, ‘além de outros que visem à melhoria de sua condição social’. Esta última parte do dispositivo, como já salientamos, é de natureza programática, e, agora, podemos acrescentar que é daquelas que se limitam a indicar certo fim a atingir: melhoria da condição social do trabalhador. A respeito desses outros direitos que podem ser outorgados aos trabalhadores o legislador ordinário tem ampla discricionariedade, mas, assim mesmo, está condicionado ao fim ali proposto – melhoria da condição social do trabalhador. Qualquer providência do Poder Público, específica ou geral, que contravenha a esse fim é inválida e pode ser declarada sua inconstitucionalidade pelo juiz, sendo de notar que este também goza de discricionariedade no determinar o conteúdo finalístico daquela regra programática, já que a

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Mais adiante, lembra que “os direitos fundamentais estão ao abrigo das

cláusulas pétreas, e, por isso, não podem ser inadequadamente restringidos, e, menos

ainda, suprimidos”. E, desse modo, “o princípio da proibição do retrocesso social

alcança maior importância, posto que amparado por norma constitucional que veda

qualquer modificação legislativa ou interpretativa que tenda a abolir um direito

fundamental reconhecido”.204

Ana Cristina Costa Meireles, de igual maneira, reconhece a presença

explícita do princípio da vedação ao retrocesso social na Constituição brasileira,

extraindo-o do caput do art. 7.º da Lei Maior, parte final, embora defenda que o

primado do não retrocesso foi adotado pelo Estado de bem-estar social, o que por si só

já é suficiente para reconhecê-lo como mandamento constitucional do direito pátrio.205

Fahd Medeiros Awad, ao escrever sobre o tema da proibição do

retrocesso, diz que esse princípio “visa à almejada evolução da sociedade, objetivo

sempre estampado nas cartas constitucionais”. Referido primado representaria “um

específico limite às limitações ou restrições legislativas a direito fundamental,

impedindo que um direito fundamental já regulamentado sofra alterações que reduzam o

significado que lhe fora atribuído pela norma anterior ordinária ou constitucional”. E,

portanto, “Nesse sentido, reconhece-se o poder de conformação do legislador no mister

de quantificar e formatar os direitos fundamentais, autorizando-lhes, inclusive, uma

diminuição das posições jurídicas alcançadas”, contanto “que a norma não aniquile o

direito atingindo o seu mínimo existencial”. Assim, em uma acepção mais restrita,

sustenta que, se a minoração não afetar o núcleo, isto é, não “atingir esse mínimo, não

há retrocesso, mas mera diminuição em quantidade. Afetado o essencial, a norma será

maculada pela inconstitucionalidade, pois derrogou o cerne que caracteriza os direitos

fundamentais”.206

Constituição não deu o sentido do que se deva entender por melhoria da condição social do trabalhador. [...]” (destacou-se) (Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., 3.ª tiragem, p. 159).

204 Goldschmidt, O princípio da proibição do retrocesso social e sua função protetora dos direitos fundamentais, p. 284.

205 Ana Cristina Costa Meireles, A eficácia dos direitos sociais, Salvador: JusPodivm, 2008, p.48. 206 Fahd Medeiros Awad, Proibição de retrocesso social diante da garantia do núcleo essencial dos

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Narbal Antônio Mendonça Fileti concebe o princípio da proibição do

retrocesso social no mesmo sentido do que entende a maioria da doutrina que aborda o

tema, ou seja, para o autor, o mencionado princípio centra-se na “possibilidade de

reconhecimento do grau de vinculação do legislador aos ditames constitucionais

relativos aos direitos sociais”, denotando que, a partir do momento em que se alcançou

certo patamar de materialização de uma norma constitucional que contempla um direito

social “– aquela que descreve uma conduta, omissiva ou comissiva, a ser seguida pelo

Estado e por particulares –, fica o legislador proibido de suprimir ou reduzir essa

concretização sem a criação de mecanismo equivalente ou substituto”.207

Compreende o princípio da proibição do retrocesso social como um

mandamento previsto de modo implícito na Constituição brasileira de 1988, que deriva

“do sistema jurídico constitucional, com caráter retrospectivo”, almejando limitar a

“liberdade de conformação do legislador infraconstitucional, impedindo que este possa

eliminar ou reduzir, total ou parcialmente, de forma arbitrária e sem acompanhamento

de política substitutiva ou equivalente”, o nível de efetivação atingido “por um

determinado direito fundamental social”.208

Igualmente, Eliane Romeiro Costa e Osvaldo Ferreira de Carvalho

concluem que “O princípio da proibição de retrocesso social veda ao legislador subtrair

da norma constitucional definidora de direitos sociais o grau de concretização já

alcançado, prejudicando sua exequibilidade”, o que permite dizer que o princípio requer

sua observância no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, “onde o Estado deve

se abster de atentar contra as normas consagradoras de direitos sociais ao adotar

medidas de cunho retrocessivo que tenham por escopo a sua destruição ou redução”.209

direitos fundamentais, Revista Eletrônica Justiça do Direito, Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, v. 24, n. 1, p. 99, 2010. Disponível em: <http://www.upf.br/seer/index.php/rjd/article/ view/2146>. Acesso em: 15 jan. 2012.

207 Narbal Antônio Mendonça Fileti, A fundamentalidade dos direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso social, Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 178.

208 Idem, ibidem, p. 178. 209 Eliane Romeiro Costa e Osvaldo Ferreira de Carvalho, O princípio da proibição de retrocesso social

no atual marco jurídico-constitucional brasileiro, Revista de Direito Constitucional e Internacional, RDCI73, São Paulo: RT, Cadernos de Política Constitucional e Ciência Política, ano 18, n. 73, p. 156, out.-dez. 2010.

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E ainda Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, na

mesma direção, afirmam em claras palavras que as leis que regulamentam os direitos

sociais nada mais são do que “a explicitação daquilo que já está contemplado na

Constituição”, e, portanto, a omissão legislativa na edição dessas leis seria

inconstitucional. E entoam que, em verdade, se trata de algo mais grave do que omissão

pura e simples, pois se verifica, na realidade, a “supressão de direitos garantidos pela

Constituição, que vinham sendo exercidos” por conta da legislação. Daí que “A

revogação – mesmo tácita – dessa legislação, sem a sua substituição por novos

dispositivos legais que assegurem aqueles mesmos direitos já assegurados, constitui

retrocesso não admitido pelo sistema constitucional”.210

Com efeito, de todos os doutrinadores dantes expostos, muito

provavelmente tenha sido Ingo Wolfgang Sarlet o jurista que mais se dedicou ao exame

da temática da proibição de retrocesso social, demonstrando profundidade na análise

desse assunto ainda tão controverso. Igualmente merece ser considerado o estudo

monográfico dedicado ao tema, realizado por Felipe Derbli, em face do seu aspecto

abrangente e crítico em relação à matéria. Dessa maneira, a visão de ambos os autores

será analisada de forma mais detida. Primeiro Sarlet, depois Derbli.

Ao considerar a doutrina pátria referente ao princípio da proibição de

retrocesso social, Sarlet manifesta-se advertindo que, “Em linhas gerais, o que se

percebe é que a noção de proibição de retrocesso tem sido por muitos reconduzida à

noção que José Afonso da Silva apresenta como sendo de um direito subjetivo

negativo”, o que quer significar “que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer

medida que se encontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive com os

objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático)”, e, de igual modo,

“rechaçar medidas legislativas que venham, pura e simplesmente, subtrair

210 Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, Um projeto de Código Civil na contramão da

Constituição, Revista Trimestral de Direito Civil, Gustavo Tepedino (Org.), Rio de Janeiro: Padma, ano 1, v. 4, out.-dez. 2000, p. 249. Na oportunidade, os autores apresentaram parecer em resposta à consulta feita pelo Deputado Federal Gustavo Fruet, sobre a constitucionalidade do Projeto de Código Civil – atual CC/2002 –, visando a uma conclusão acerca da oportunidade ou não de sua aprovação.

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supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que

lhe foi outorgado pelo legislador”.211

Após tecer essa observação, Sarlet assegura que toda a questão

pertinente à proibição do retrocesso tem íntima relação com a noção de segurança

jurídica,212 abraçando o entendimento doutrinário alemão, uma vez que, pelo menos em

princípio e em certo sentido, um autêntico Estado de Direito é um Estado de Segurança

Jurídica. Dessa maneira, segurança jurídica passaria “a ter o status de subprincípio

concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito”.213 Essa

verificação decorreria não somente da expressa disposição do art. 5.º, caput, da

Constituição brasileira,214 mas igualmente da “dimensão jurídico-objetiva dos direitos

fundamentais, na condição de expressões de uma ordem de valores comunitária”.215

Para o jurista, a segurança jurídica não se limita à esfera individual,216 abrangendo

211 Ingo Wolfgang Sarlet, Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais:

manifestação de um constitucionalismo dirigente possível, p. 21. Neste trecho, Sarlet menciona expressamente os seguintes autores e obras: Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001; José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2. ed., p. 147 e 156 e ss.; Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 31 e ss.; Ana Paula de Barcellos, A eficácia dos princípios constitucionais..., p. 68 e ss.; José Vicente dos Santos Mendonça, Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo, Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 12 (Direitos fundamentais), p. 218 e ss., 2003.

212 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 433. Para o autor, o direito à segurança jurídica é uma das dimensões de um direito geral à segurança, sendo que este abrange também um direito à segurança pessoal e social, além de um direito à proteção, por meio de prestações normativas e materiais, contra atos do poder público e de particulares violadores dos diversos direitos pessoais.

213 Idem, ibidem, p. 433. 214 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...” (destacou-se).

215 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 434. Sarlet leciona que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos, ou seja, constituem-se como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos. Afirma que este reconhecimento da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais representa uma das mais relevantes formulações do direito constitucional contemporâneo (Idem, ibidem, p. 159-207).

216 Para o autor a segurança jurídica pode ser concebida sob diversas dimensões e manifestações. Nas diferentes dimensões “a segurança jurídica (aqui tomada num sentido propositalmente amplo) assumiu um lugar de destaque na atual ordem jurídico-constitucional brasileira, ao lado da segurança social (igualmente consagrada de modo expresso no âmbito da ordem social e ligada diretamente aos direitos fundamentais à saúde, assistência e previdência social)”. Ademais disso, “o direito à segurança não se restringe, por sua vez, a estas dimensões e abrange”, segundo defende “para além

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também a segurança social (e até um direito geral à segurança), que serve como

couraça protetora para a segunda dimensão dos direitos fundamentais.

Sarlet relaciona o princípio da segurança jurídica com o próprio

princípio da dignidade da pessoa humana. Citando a lição de Celso Antônio Bandeira de

Mello, para quem a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações

do ser humano, segundo Sarlet, ela acaba por viabilizar projetos de vida ao gerar certa

estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica em geral, vinculando-se

também à própria noção de dignidade da pessoa humana. Observa, com efeito, que a

dignidade da pessoa humana não estará suficientemente respeitada e protegida, se não

houver um nível mínimo de estabilidade jurídica, quer nas posições jurídicas subjetivas,

quer mesmo nas instituições jurídicas, incluindo o próprio Direito. Ainda, deve-se levar

em conta “que especialmente o reconhecimento e a garantia de direitos fundamentais

tem sido consensualmente considerado uma exigência inarredável da dignidade da

pessoa humana”, bem como da noção mesma de Estado de Direito, na medida em que

“os direitos fundamentais (ao menos em princípio e com intensidade variável)

constituem explicitações da dignidade da pessoa, de tal sorte que em cada direito

fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade

da pessoa”. Logo, “a proteção dos direitos fundamentais, pelo menos no que concerne

ao seu núcleo essencial e/ou ao seu conteúdo em dignidade, evidentemente apenas será

possível onde estiver assegurado um mínimo em segurança jurídica”.217

Ademais, dentro do contexto da segurança jurídica, assevera que a

dignidade da pessoa humana “não exige apenas uma proteção em face de atos de cunho

retroativo”, mas, de igual modo, necessita de “uma proteção contra medidas

retrocessivas”, as quais “não podem ser tidas como propriamente retroativas, já que não

alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada”.

E lembra a possibilidade que tem o legislador, “seja por meio de uma emenda

de um direito à segurança jurídica e social, um direito geral à segurança, no sentido de um direito à proteção [por meio de prestações normativas e materiais] contra atos – do poder público e de outros particulares – violadores dos diversos direitos pessoais”. Dentre as manifestações da segurança jurídica destaca a ideia da proteção da confiança e a da proibição de retrocesso (Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 19 jan. 2012).

217 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 434.

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constitucional [...], seja por uma reforma no plano legislativo, suprimir determinados

conteúdos da Constituição” ou mesmo “revogar normas legais destinadas à

regulamentação de dispositivos constitucionais, notadamente em matéria de direitos

sociais, ainda que com efeitos meramente prospectivos”. E, com isso, insere, no seu

estudo, a questão da proibição (ou vedação) de retrocesso.218

Portanto, ao ingressar no estudo da problemática da proibição de

retrocesso e suas diversas manifestações, ponderando, de início, sobre a proibição do

retrocesso em sentido amplo, Sarlet contempla em seu conceito as noções de direito

adquirido, de ato jurídico perfeito e de coisa julgada, “assim como as demais limitações

constitucionais de atos retroativos ou mesmo as garantias contra restrições legislativas

dos direitos fundamentais”. Além disso, abarca nesse grupo a proteção contra a ação do

poder constituinte reformador, “notadamente no concernente aos limites materiais à

reforma” que, para ele, “igualmente não deixa de constituir uma relevante manifestação

em favor da manutenção de determinados conteúdos da Constituição”, destacadamente

“de todos aqueles que integram o cerne material da ordem constitucional” ou “pelo

menos daqueles dispositivos (e respectivos conteúdos normativos) expressamente tidos

como insuprimíveis (inclusive tendencialmente) pelo nosso Constituinte”.219 Ressalta

que tais previsões, apesar de compreenderem grande parcela das situações que possam

levar a medidas retrocessivas, em sentido amplo, do poder público (em especial na

esfera legislativa, mas não de modo exclusivo), “não esgotam o espectro de situações

carentes de uma proteção em face de um retrocesso”.220

Sarlet critica o posicionamento daqueles que se opõem ao

reconhecimento de uma proibição de retrocesso em matéria de direitos sociais, tal como

o faz Roger Stiefelmann Leal. Para esse autor, que faz um comparativo entre o

pensamento de Zagrebelsky e de Jorge Miranda,221 no tocante ao princípio do não

218 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 435. 219 Idem, ibidem, p. 435. 220 Idem, p. 435. 221 Nesse sentido, Roger Stiefelmann Leal esclarece que: “Enquanto Zagrebelsky propugna pelo

impedimento de redução do grau de concretização conquistado pela norma constitucional, Jorge Miranda defende a vedação da simples supressão da concretização, admitindo modificações – o que presume a aceitação de redução do grau de concretização sem, obviamente, suprimi-la por completo” (Roger Stiefelmann Leal, Direitos sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamentais.

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retrocesso e levanta a questão da eficácia proibitiva de retrocesso social no caso de uma

mudança de prioridades governamentais, é de se questionar a possibilidade de aplicação

do princípio, especialmente quando se fala do deslocamento de recursos públicos de

uma área para outra; exemplifica seu pensamento contrário à tese do não retrocesso,

com a hipótese de uma alternância de governo. Na hipótese, “O governo anterior tinha

por prioridade a prestação de lazer, e, para isso, concretizou de modo muito

pormenorizado a norma constitucional que consagra o direito ao lazer”. Já o novo

governo que assumiu “tem outras prioridades como educação e assistência social”.

Segundo Leal, parece ser “inconcebível considerar inconstitucional a simples revogação

da legislação sobre a promoção de lazer com recursos públicos de modo a transferir tais

recursos para outras áreas como a educação e a assistência social”. E assevera que, a

toda evidência, “nessa hipótese, a supressão da legislação concretizadora do direito ao

lazer há de ser feita, caso contrário, qualquer pessoa poderia pleitear o seu cumprimento

por parte do poder público”, o que inviabilizaria “a concretização de outros direitos

sociais do modo pretendido pelo novo governo”. E conclui que “É exatamente por força

do postulado da democracia pluralista alegado por Jorge Miranda que não parece muito

adequado extrair das normas definidoras de direitos sociais uma vedação ao retrocesso

da concretização adquirida por elas”. Nesse sentido, “A efetivação de direitos sociais é

uma questão governamental que envolve outros fatores como a disponibilidade de

recursos financeiros e a fixação de prioridades políticas”.222

Afastando essa concepção de Leal, esclarece Sarlet que, “em se

admitindo uma ausência de vinculação mínima do legislador (assim como dos órgãos

estatais em geral) ao núcleo essencial já concretizado na esfera dos direitos sociais e das

imposições constitucionais em matéria de justiça social”, chancelar-se-ia uma clara

“fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social

apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente

desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição”. E, mencionando também

Jorge Miranda, que para Sarlet admite apenas uma proibição relativa de retrocesso,

Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/ppgd/doutrina/leal2.htm>. Acesso em: 16 jan. 2012). 222 Leal, Direitos sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamentais.

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propugna que “o legislador não pode simplesmente eliminar as normas (legais)

concretizadoras de direitos sociais”, uma vez que “isto equivaleria a subtrair às normas

constitucionais a sua eficácia jurídica, já que o cumprimento de um comando

constitucional acaba por converter-se em uma proibição de destruir a situação

instaurada pelo legislador”. É dizer que, “mesmo tendo em conta que o espaço de

‘prognose e decisão’ legislativo seja efetivamente sempre variável”, em especial “no

marco dos direitos sociais, não se pode admitir que em nome da liberdade de

conformação do legislador o valor jurídico dos direitos sociais, assim como a sua

própria fundamentalidade, acabem sendo esvaziados”.223

E arremata sua crítica a Leal afirmando que é necessário também

verificar que, se houver “a supressão pura e simples do próprio núcleo essencial

legislativamente concretizado de determinado direito social”, particularmente dos

direitos sociais atrelados ao mínimo existencial, “estará sendo afetada, em muitos casos,

a própria dignidade da pessoa, o que desde logo se revela inadmissível”,

destacadamente se se considerar “que na seara das prestações mínimas (que constituem

o núcleo essencial mínimo judicialmente exigível dos direitos a prestações) para se ter

“uma vida condigna não poderá prevalecer até mesmo a objeção da reserva do possível

e a alegação de uma eventual ofensa ao princípio democrático e da separação de

poderes”.224

Adentrando na defesa do reconhecimento de um princípio implícito da

proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira, Sarlet sustenta que, na seara

do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição de retrocesso decorre dos

seguintes princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional: a) do princípio do

Estado Democrático e Social de Direito, o qual impõe a necessidade de um patamar

mínimo de segurança jurídica, com sua manutenção abrangida pelo princípio da

confiança, oferecendo segurança não só contra medidas retroativas, mas, de certa forma,

contra aquelas de cunho retrocessivo de uma maneira geral; b) do princípio da

223 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 443-444. 224 Idem, ibidem, p. 444.

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dignidade da pessoa humana, que exige por parte do poder público sejam

implementadas medidas, isto é, prestações positivas de concretização de direitos

fundamentais sociais, com o fim de assegurar existência e vida condigna para todos, não

se permitindo medidas de cunho retrocessivo que possam vir a minimizar dita

concretude; c) do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas que definem os

direitos fundamentais (cf. art. 5.º, § 1.º, da Constituição Federal de 1988), e que também

abarca a maximização da proteção dos direitos fundamentais, com otimização da

eficácia e efetividade do princípio da segurança jurídica, que confere sustentáculo

contra medidas retrocessivas; d) as manifestações específicas e expressas na

Constituição, no que dizem respeito à proteção contra medidas de caráter retroativo (art.

5.º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988), não dão conta da gama de

situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que encontra respaldo

no caput do art. 5.º da Constituição Federal de 1988 e no princípio do Estado Social e

Democrático de Direito; e) o princípio da proteção da confiança, elemento nuclear do

Estado de Direito, que exige do poder público a boa-fé nas relações com os particulares

e o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos na estabilidade e continuidade

da ordem jurídica; f) os órgãos estatais, que estão ligados não somente à concretização

das imposições constitucionais, mas, do mesmo modo, sujeitos a uma autovinculação

em relação aos atos anteriores, como corolário do princípio da segurança jurídica e

proteção da confiança; g) negar reconhecimento ao princípio da proibição de retrocesso

expressaria, em última análise, aceitar que os órgãos legislativos (assim como o poder

público de modo geral), a despeito de estarem vinculados aos direitos fundamentais e às

normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar de forma livre suas

decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte;225 h)

acresça-se um fundamento adicional retirado do direito internacional, notadamente no

plano dos direitos econômicos sociais e culturais, em que se pode dizer que o sistema de

225 Neste ponto, Sarlet menciona Luís Roberto Barroso, que bem destaca que “mediante o

reconhecimento de uma proibição de retrocesso está a se impedir a frustração da efetividade constitucional, já que, na hipótese de o legislador revogar o ato que deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito, estaria acarretando um retorno à situação de omissão” (inconstitucional). E também argumenta com o leading case do Tribunal Constitucional de Portugal que versou sobre o Sistema Nacional de Saúde. E defende que “é correta a percepção de que uma das funções principais do princípio da proibição de retrocesso é a de impedir a recriação de omissões legislativas, ainda que tal função não corresponda, é preciso enfatizar, a integralidade das consequências jurídicas vinculadas à proibição de retrocesso” (Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 447).

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proteção internacional impõe a progressiva implementação efetiva da proteção social

por parte dos Estados, vedando implicitamente o retrocesso em relação aos direitos

sociais já concretizados.226

Em síntese, Sarlet firma seu pensamento no sentido de o princípio da

vedação ao retrocesso social figurar como autêntico mandamento constitucional

implícito, embasado nos princípios: do Estado Democrático e Social de Direito; da

dignidade da pessoa humana; da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras

de direitos fundamentais (art. 5.º, § 1.º, Constituição Federal); da segurança jurídica; da

proteção à confiança; e da supremacia da Constituição.

Sarlet levanta a questão da controvérsia existente no tocante à amplitude

da proteção outorgada pelo princípio da proibição de retrocesso social. A respeito diz

que, “Se em favor do reconhecimento, em princípio, de uma proibição de retrocesso em

matéria de direitos fundamentais não parecem subsistir maiores dúvidas”, de igual

maneira, “é verdade que há, ainda, considerável espaço para controvérsia no que

concerne à amplitude da proteção outorgada pelo princípio da proibição de retrocesso

social”. Nesse viés, aduz que, “se é correto apontar a existência de elevado grau de

consenso (pelo menos na doutrina e jurisprudência nacional e, de modo geral, no espaço

europeu) quanto à existência de uma proteção contra o retrocesso”, também é certo que

tal consenso abarca “o reconhecimento de que tal proteção não pode assumir um caráter

absoluto, notadamente no que diz com a concretização dos direitos sociais a

prestações”. E, nessa toada, não podendo ter caráter absoluto, sem querer se aprofundar

nas razões que vedam o reconhecimento de uma proibição de retrocesso com natureza

absoluta, isto é, “impeditivas de qualquer redução nos níveis de proteção social”,

destaca como motivos para um não retrocesso de cunho absoluto o fato de que isso

implicaria “a afetação substancial da necessária possibilidade de revisão que é peculiar à

função legislativa”, mas também desconsideraria “a indispensável possibilidade (e

necessidade) de reavaliação global e permanente das metas da ação estatal e do próprio

desempenho na consecução de tais metas, ou seja, a reavaliação mesmo dos meios

226 Todos os princípios e argumentos arrolados integram um rol não exaustivo, como bem dito por

Sarlet (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 446-448).

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utilizados para a realização dos fins estatais”, em especial para a “efetivação dos direitos

fundamentais”.227

Sarlet, ainda compartilhando do entendimento de que a vedação do

retrocesso não pode ser absoluta, explica que, do contrário, haveria redução da atividade

legislativa à execução pura e simples da Constituição e também ocasionaria a

transmutação das normas infraconstitucionais em direito constitucional, além de

inviabilizar seu desenvolvimento. E, uma vez que se trata de princípio (e não de regra),

deverá ser cotejado com os demais, não se admitindo a “lógica do tudo ou nada”

(consoante as lições de Dworkin, Alexy e Canotilho).228 Além do mais, uma vedação

absoluta de retrocesso em matéria de direitos sociais não se sustentaria, em virtude da

dinâmica das relações sociais e econômicas, em especial em relação à demanda da

sociedade em matéria de segurança social; da variabilidade e instabilidade da

capacidade prestacional do Estado, principalmente em um contexto de crise econômica

e incremento dos níveis de exclusão social; e em decorrência de problemas na esfera de

arrecadação de recursos. Isto porque há a necessidade da “promoção de ajustes,

eventualmente até mesmo de alguma redução ou flexibilização em matéria de segurança

social, onde realmente estiverem presentes os pressupostos para tanto”.229

Nesse contexto, Sarlet profere que é necessário estabelecer critérios

materiais para aferição de limites à aplicação do princípio da proibição de retrocesso

social que sejam constitucionalmente adequados. O legislador e o poder público em

geral não poderão, estando concretizado por legislação infraconstitucional determinado

direito social, mesmo que com efeitos puramente prospectivos, voltar atrás e, mediante

uma supressão ou mesmo relativização, afetar o núcleo essencial do direito social.

Referido núcleo encontra-se diretamente interligado ao princípio da dignidade da pessoa

humana, notadamente ao se considerar que os direitos sociais prestacionais formam um

conjunto de prestações materiais imprescindíveis para uma vida com dignidade – o

mínimo existencial. De tal modo, a dignidade da pessoa opera como diretriz jurídico-

material tanto para a definição do núcleo essencial quanto para a definição do que funda

227 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 448-449. 228 Idem, ibidem, p. 449-450. 229 Idem, p. 451.

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a garantia do mínimo existencial, que, com base na doutrina, compreende bem mais “do

que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à

noção de um mínimo vital ou a uma noção estritamente liberal de um mínimo suficiente

para assegurar o exercício das liberdades fundamentais”.230

Partindo-se da premissa de que as prestações estatais básicas que se

destinam à garantia de uma vida digna instituem parâmetro necessário para a

justiciabilidade dos direitos sociais prestacionais, “no sentido de direitos subjetivos

definitivos que prevalecem até mesmo em face de outros princípios constitucionais”

(como a reserva do possível e reserva parlamentar em matéria orçamentária) e da

separação dos poderes, fica claro que dito plexo de prestações básicas não poderá ser

abolido ou diminuído “(para aquém do seu conteúdo em dignidade da pessoa), nem

mesmo mediante ressalva dos direitos adquiridos sob pena de uma violação

injustificável do valor (e princípio) máximo da ordem jurídica e social”.231

Sarlet explana que ante o caso concreto, em que estiver em pauta uma

medida retrocessiva, dever-se-á proceder a uma ponderação (ou hierarquização,

seguindo termo utilizado pelo autor), optando “sempre (pois esta será não a única, mas a

melhor resposta hermenêutica) pela solução mais compatível com a dignidade da pessoa

humana”.232 Na esteira dessas ideias, o citado jurista defende que “uma violação do

mínimo existencial (mesmo em se cuidando do núcleo essencial legislativamente

concretizado dos direitos sociais)” constituirá “sempre uma violação da dignidade da

pessoa humana e por esta razão será sempre desproporcional e, portanto,

inconstitucional”.233

Discordando desse entendimento do autor, está Felipe Derbli, que, ao

debruçar-se sobre a temática da vedação do retrocesso social em obra dedicada

especificamente à matéria, assevera ser completamente desnecessário atrelar a proibição

do retrocesso social única e exclusivamente ao mínimo existencial, “cuja proteção

constitucional já é delineada pelo princípio da dignidade humana”. Em outros termos, o

230 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 452. 231 Idem, ibidem, p. 453. 232 Aqui Sarlet apoia-se nos ensinamentos de Juarez Freitas (Ibidem, p. 454). 233 Idem, p. 455.

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princípio da proteção de retrocesso social concentrará “sua incidência para além do

mínimo essencial, de modo a impedir o retorno na concretização dos direitos sociais,

ainda que não digam com as prestações mínimas indispensáveis à sobrevivência dos

indivíduos”.234

Mais adiante Derbli também critica a ideia de associar o princípio da

vedação ao retrocesso social com o primado da segurança jurídica. Pondera que, se na

doutrina alemã há “a associação entre a proibição de retrocesso social e a segurança

jurídica, mas especificamente no que concerne ao aspecto subjetivo da proteção da

confiança dos cidadãos, no que recebeu a companhia de parte da doutrina lusa”, é

imperioso verificar que a vedação ao retrocesso social e a segurança jurídica não se

confundem, pois “os seus objetos de normatização são inteiramente distintos”.235

Dedicando algumas linhas ao conceito de segurança jurídica, Derbli diz

que esta “se traduz na faculdade do indivíduo de, à luz do ordenamento jurídico, poder

conduzir, planificar e conformar sua vida de maneira autônoma e responsável”.

Ademais, “Congloba a garantia de paz jurídico-social, mediante a estabilidade da ordem

jurídico-social, a certeza no que concerne às normas jurídicas e, ao mesmo tempo, a

confiabilidade no Direito”, isto é, denota “a previsibilidade da conduta do Poder Público

e dos seus efeitos sobre a esfera individual dos cidadãos, de acordo com normas

jurídicas válidas e vigentes”.236 Acresce que a segurança jurídica é comumente vista sob

duas acepções diversas: uma objetiva, embasada na certeza e na previsibilidade do

ordenamento, e uma subjetiva, atrelada à proteção da confiança do indivíduo,

garantindo ser “possível ao cidadão confiar na permanência de sua situação jurídica ao

longo do tempo, diante da alteração frequente do direito positivo, o que envolve a

salvaguarda dos direitos adquiridos e das expectativas legítimas dos cidadãos”.237

Na Alemanha, onde não se têm a previsão constitucional de garantia dos

direitos adquiridos e, portanto, a vedação a leis com efeitos retroativos, surgiu realmente

a necessidade de buscar proteção na segurança jurídica. Entretanto, a Carta

234 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 210. 235 Idem, ibidem, p. 213. 236 Derbli sustenta-se em Canotilho e Peczenik para tratar do assunto (Ibidem, p. 213). 237 Idem, p. 214.

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Constitucional brasileira que contempla a previsão, no art. 5.º, XXXVI, de que “a lei

não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”,

certamente consagra a segurança jurídica, nomeadamente no tocante à irretroatividade

das leis.238 Por conseguinte, dispensável essa solução no direito pátrio.

As diferenças entre a segurança jurídica e o não retrocesso social são

bem identificáveis segundo Derbli. Claro é que “a questão da preservação da certeza e

da previsibilidade do ordenamento jurídico não se confunde com o problema da

manutenção do padrão de concretização dos direitos fundamentais sociais atingido por

obra do legislador”; pode ocorrer até de se contrariar “a proibição de retrocesso social

mesmo sem prejuízo à segurança jurídica”.239 De tal maneira, válido é asseverar que a

segurança jurídica protege situação distinta do princípio da proibição de retrocesso

social, visto que este se relaciona com o futuro, vedando a eliminação de conquistas

sociais, que ainda não integraram definitivamente o patrimônio jurídico do cidadão, e

aquela, por sua vez, tem relação com o passado, que, sem evitar a mudança da

legislação, assegura, entretanto, o direito já adquirido.

Nessa toada esclarece Derbli:

Logo, proibição de retrocesso social e segurança jurídica são assuntos que havemos de distinguir com a necessária acurácia, sob pena de enxergar uma fungibilidade (ou mesmo, eventualmente, uma relação de continência) entre princípios que faria do primeiro uma formulação inútil. De fato, seria de pouco ou nenhum proveito destacar a proibição de retrocesso social para a garantia de direitos adquiridos ou expectativas de direito, como se fosse um sucedâneo do princípio da segurança jurídica – nossa contribuição pouco mais faria do que “chover no molhado”.240

Derbli defende uma concepção do princípio da proibição de retrocesso

social mais voltada para a realidade brasileira, baseando-se, para tanto, a primeira

elaboração de Canotilho e o pensamento elaborado pelo Conselheiro Vital Moreira no

Acórdão 39/1984 do Tribunal Constitucional português. Afirma que “a inspiração do

238 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 215. 239 Idem, ibidem, p. 216. 240 Idem, p. 217.

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modelo arquitetado pelo Tribunal Constitucional luso no Acórdão 39/1984 é

perfeitamente cabível e justifica, inclusive, a adoção da expressão proibição de

retrocesso social”, abraçada em Portugal, para tratar precisamente da matéria em torno

da qual aborda o presente estudo: “a obrigatoriedade da observância, pelo legislador, do

grau de concretização infraconstitucional dos direitos fundamentais sociais, de modo a

que não se retorne, pela via comissiva, a um grau anterior de ausência inconstitucional

de legislação regulamentadora”.241

Imbuído de tal visão, Derbli critica o Tribunal Constitucional de

Portugal quando esta corte, influenciada pela doutrina germânica, “incorporou à

concepção do princípio da proibição de retrocesso social a sua associação ao mínimo

existencial, aos direitos adquiridos e à proteção da confiança”, o que acarretou, com

isso, uma confusão de elementos “referentes a distintos objetos de proteção

constitucional e praticou, data venia, duplo equívoco”, pois “atribuiu ao princípio da

proibição de retrocesso social missão que já havia sido conferida pela Constituição de

1976 a outras normas constitucionais”, e consequentemente, acabou por esvaziar “seu

conteúdo precisamente no que tinha de mais útil e original”. Daí os “danos à sua

adequada compreensão e aplicabilidade”.242

Com efeito, Derbli adverte que a principal ressalva a fazer quanto à

abordagem do tema é a de que não se devem confundir “a proibição de retrocesso

social, a dignidade da pessoa humana, a segurança jurídica e a proteção da confiança,

sob pena de incorrer no mesmo erro cometido pela própria doutrina lusa e pelo Tribunal

Constitucional Português”. De igual maneira, entende não ser correto “que a segurança

jurídica (especialmente em sua faceta subjetiva, de proteção da confiança) e a dignidade

da pessoa humana sirvam como fundamentos para a proibição do retrocesso ou como

critérios materiais de medida para o retrocesso constitucionalmente admitido”. Dita

“perspectiva esvaziaria o conteúdo material do princípio da proibição do retrocesso

social, o que culminaria no reconhecimento de um caráter meramente instrumental ao

mesmo”. E enfatiza que é imperioso “renunciar a esse ponto de vista, pois, como acima

241 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 218-219. 242 Idem, ibidem, p. 220.

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destacado, o princípio de retrocesso social apresenta um elemento finalístico próprio, o

que lhe confere posição, por assim dizer, substantiva”.243

Derbli considera o princípio da vedação ao retrocesso social implícito

na Lei Maior, dedutível de preceitos explícitos na Constituição de 1988. Com o fim de

demonstrar essa sua afirmação, abre parênteses para falar da diferença entre texto e

norma, distinção fundamental para o seu raciocínio, consoante os seguintes termos:

[...] as normas podem resultar da interpretação dos textos, mas é possível que os enunciados, por si sós, exijam mais do que a mera determinação dos sentidos dos signos de linguagem utilizados; haverá casos em que será necessário colher conclusões do espírito da norma e não do texto – cuidar-se-á, ao final, de uma construção. Assim, é possível que um enunciado permita a construção de uma norma, de mais de uma norma ou de norma nenhuma e, por outro lado, é igualmente admissível que uma norma seja construída a partir da interpretação de vários dispositivos conjuntamente. Com isso, entende-se que não existe identidade absoluta entre dispositivo e norma e, portanto, seria um tanto quanto ociosa a distinção entre normas expressas e implícitas – noutras palavras, nenhuma norma, a rigor, é expressa num enunciado, carecendo sempre de atividade interpretativa (ou de construção) para que seja identificada, sem prejuízo de algumas normas demandarem atividade interpretativa mais intensa do que outras para que sejam elaboradas244 (destaques do autor).

Embasado por tais ideias, Derbli enxerga na Constituição de 1988 o

nítido espírito do princípio da vedação ao retrocesso na progressiva ampliação dos

direitos fundamentais (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º, caput), visando à gradativa redução das

desigualdades regionais e sociais e à construção de uma sociedade marcada pela

solidariedade e pela justiça social (art. 3.º, incs. I e III, e art. 170, caput e incs. VII e

VIII). Ademais, avista na Carta Magna o ideal voltado “para o desenvolvimento do grau

de concretização dos direitos sociais nela previstos e para sua máxima efetividade (art.

5.º, § 1.º)”; em consequência, é possível “vislumbrar na Constituição a ordem, dirigida

ao legislador, de não retroceder na densificação das normas constitucionais que definem

tais direitos sociais”. E sintetiza seu entendimento afirmando ser possível “deduzir do

243 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 220-221. 244 Idem, ibidem, p. 221-222.

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texto constitucional que a Carta Magna vigente contém entre suas normas o princípio

que impõe ao legislador a observância da concretização sempre progressiva dos direitos

fundamentais sociais”, o que implica lhe ser “defeso atuar comissivamente em sentido

oposto, tanto quanto lhe é proibido deixar de regulamentar, em sede legislativa, uma

norma constitucional que lhe estabeleça tal dever”.245

Depois de realizar amplas considerações sobre as diferenças entre

normas constitucionais definidoras de direitos sociais e normas programáticas,246 Derbli

chega à conclusão de que o princípio da proibição de retrocesso social apenas se aplica

àquela primeira categoria. Defende sua posição ao assegurar que o reclamo de

integração infraconstitucional (obrigação de legislar) não é fator distintivo das normas

programáticas, e que desta não se pode extrair, ao menos, uma posição jurídico-

subjetiva de cunho social, ao contrário do que ocorre com as normas definidoras de

direitos sociais.247

245 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 222-223. 246 Derbli diz que é possível diferenciar as normas constitucionais definidoras de direitos sociais e as

normas constitucionais programáticas no que concerne ao grau de vinculação imposto pelo legislador. Baseia seu critério distintivo, que considera razoavelmente seguro, no magistério de José Carlos Vieira de Andrade, que reconhece que nem sempre as normas constitucionais definidoras de direitos sociais geram um direito subjetivo, pois necessitam da intervenção do legislador. Todavia, ao menos, conferem ao indivíduo uma posição jurídica subjetiva, que é mais que interesse juridicamente protegido, porque almeja à satisfação de bens ou interesses do particular, conquanto não constitua direitos subjetivos perfeitos, na medida em que não pode ser determinado a priori o seu conteúdo material. Assim, para Derbli, “serão normas constitucionais definidoras de direitos sociais aquelas das quais for possível deduzir, no curso da atividade interpretativa, uma posição jurídico-subjetiva de cunho social. Por conseguinte, quando houver mera previsão de finalidade a ser promovida objetivamente pelo Estado, sem que se possa extrair da disposição constitucional um interesse juridicamente protegido e individualizável, estar-se-á diante de uma norma programática” (Ibidem, p. 233-234).

247 Pensando de modo diverso, tem-se o pensamento de Luís Roberto Barroso que defende a aplicabilidade e eficácia imediata de toda a Constituição. Entende que ainda que nos dias atuais se possa falar em novas formulações doutrinárias, de base pós-positivista (adotadas no presente estudo), sobre o modo de interpretar a Constituição (como se verá no capítulo 4, em especial a doutrina de Ronald Dworkin), a doutrina da efetividade, a qual reconhece força normativa às normas constitucionais, foi responsável por tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. Embora tenha se servido de uma metodologia positivista (ou seja, o direito constitucional resumir-se-ia à norma), e se utilizado também de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos (isto é, se está na Constituição deve ser cumprido), não se pode negar, todavia, que referida doutrina teve seu mérito (Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=52582>. Acesso em: 21 mar. 2012). Segundo Barroso, “Para realizar seus propósitos, o movimento pela efetividade promoveu,

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Nesse viés, tece o conceito do princípio da vedação de retrocesso social:

Vale dizer, haverá retrocesso social quando o legislador, comissiva e arbitrariamente, retornar a um estado correlato a uma primitiva omissão inconstitucional ou reduzir o grau de concretização de uma norma definidora de direito social; onde não houver imposição legiferante – e, portanto, for mais fluida a delimitação das raias da liberdade de conformação do legislador (o que ocorre no caso das normas constitucionais programáticas), não se poderá falar propriamente em proibição de retrocesso social. [...] Por conseguinte, retrocesso social (ou retorno da concretização, para utilizar a expressão de Jorge Miranda) e omissão inconstitucional são conceitos correlatos, na medida em que significam que uma determinada norma constitucional está concretizada por lei aquém do seu desiderato – no entanto, diferem por que, conforme o caso, o legislador voltou atrás ou deixou de ir aonde devia.248

Nota-se, portanto, que Derbli adota um conceito estrito do princípio da

vedação ao retrocesso social, no sentido de que referido mandamento somente deve se

aplicar aos casos em que a revogação da lei que concretiza um direito social gerar o

retorno equivalente ao estágio anterior, qual seja de uma omissão inconstitucional,

capaz de dar ensejo ao mandado de injunção ou à ação direta de inconstitucionalidade

por omissão.

Mais adiante, explica como opera o princípio da proibição de retrocesso

social, sustentando que, “uma vez concretizadas em sede legislativa as normas

definidoras de direitos fundamentais sociais, tais direitos passam a exibir não somente o

status positivus próprio dos direitos prestacionais, como também o status negativus”

típico dos direitos de defesa. E frisa que se trata do status negativus jusfundamental

com sucesso, três mudanças de paradigma na teoria e na prática do direito constitucional no país. No plano jurídico, atribuiu normatividade plena à Constituição, que passou a ter aplicabilidade direta e imediata, tornando-se fonte de direitos e obrigações. Do ponto de vista científico ou dogmático, reconheceu ao direito constitucional um objeto próprio e autônomo, estremando-o do discurso puramente político ou sociológico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a ascensão do Poder Judiciário no Brasil, dando-lhe um papel mais destacado na concretização dos valores e dos direitos constitucionais. O discurso normativo, científico e judicialista foi fruto de uma necessidade histórica. O positivismo constitucional, que deu impulso ao movimento, não importava em reduzir o direito à norma, mas sim em elevá-lo a esta condição, pois até então ele havia sido menos do que norma. A efetividade foi o rito de passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduzia em proveito para a cidadania” (Luís Roberto Barroso, A doutrina brasileira da efetividade. Temas de direito constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, v. 3, p. 76).

248 Derbli, O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 240-241.

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mencionado por Alexy, oponível igualmente ao legislador, de maneira que se lhe

impeça de interferir arbitrariamente na esfera jurídica dos cidadãos. É dizer que se veda

“ao legislador a possibilidade de, injustificadamente, aniquilar ou reduzir o nível de

concretização legislativa já alcançado por um determinado direito fundamental social”,

cabendo ao indivíduo recorrer ao Judiciário, “contra a atuação retrocedente do

Legislativo, que se pode consubstanciar numa revogação pura e simples da legislação

concretizadora ou mesmo na edição de ato normativo que venha a comprometer a

concretização já alcançada”.249

Com base nos ensinamentos de Canotilho, leciona que “a concretização

legal de uma norma constitucional definidora de direito social” pode chegar a alcançar

um determinado nível de consenso básico “e, com isso, radicar na consciência jurídica

geral, que passe a corresponder a uma complementação ou desenvolvimento do direito

previsto na norma constitucional”. Dito de outro modo, o grau de densificação

alcançado “poderá passar a ser considerado como corolário indispensável do próprio

comando constitucional, usufruindo, com isso, sua força normativa”.250 Assim,

considera coerente defender que, “se uma norma constitucional definidora de direito

social atinge certo nível de densidade normativa, por ação do próprio legislador, essa

concretização pode passar a integrar o próprio conteúdo da norma constitucional”, o que

implicaria tornar-se “insuscetível de supressão ou modificação arbitrária por via

infraconstitucional”; porém, “para tanto, é necessário que venha a ser objeto de

consenso profundo, idôneo a permitir que radique na consciência jurídica geral”.251

249 Nesse ponto, Derbli apoia-se nas lições de Sarlet (O princípio da proibição de retrocesso social na

Constituição de 1988, p. 243). 250 Idem, ibidem, p. 244. 251 Idem, p. 244. O autor exemplifica esse seu entendimento citando como exemplo a norma

constitucional referente ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, pelo prazo mínimo de trinta dias (art. 7.º, XXI); regulam a matéria os arts. 487 e ss. da CLT. De tal forma, “trata-se de regra constitucional definidora de direito social, na medida em que cria para o trabalhador uma posição jurídico-subjetiva individualizável ao definir, para o empregador, um dever de lhe avisar antecipadamente sobre a rescisão do contrato de trabalho, de modo a aquele possa procurar novo emprego. Mais além, há uma imposição legiferante, pois a norma constitucional, para alcançar grau maior de densidade normativa, exige concretização legislativa, cabendo ao legislador especificar qual será o período correspondente ao aviso prévio (que, por expressa disposição constitucional, será igual ou maior que trinta dias), quais os efeitos sobre a jornada de trabalho do empregado e sua remuneração, quais as penalidades cabíveis para o caso de inobservância do aviso prévio etc.”. E continua: “Assim, portanto, as disposições da CLT acima mencionadas cumprem o papel de concretizar a norma constitucional em sede legislativa. O art. 488 do referido diploma legal e seu

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Deveras, o pensamento de Derbli destaca-se na medida em que inova

em certo ponto importantíssimo. Adere-se, no presente trabalho, ao entendimento do

doutrinador quando sustenta que o princípio da vedação ao retrocesso social não

encontra seu fundamento, de modo direto, no mínimo existencial, e, por conseguinte, na

dignidade da pessoa humana, e que tem conteúdo autônomo em relação aos princípios

da segurança jurídica e da proteção à confiança.252 No entanto, conforme se verá, se de

um lado é verdade que o não retrocesso é mandamento autônomo – inferido dos

dispositivos constitucionais que estabelecem o progressivo alargamento dos direitos

fundamentais sociais, o que resulta, com toda a lógica, na existência de comando

destinado ao legislador, impondo a este não retroceder na concretização dos direitos

sociais e da justiça social e, acrescente-se, consoante será visto mais à frente, dirige-se

também ao julgador, diante da missão de apreciar matéria relacionada ao tema –, de

outro, não deixa de se relacionar, em certa medida, com a segurança jurídica, não na sua

concepção individualista do século XIX, mas na sua dimensão social,253 em que se tem

o instituto do direito adquirido social embasando o princípio da proibição do retrocesso

social.

parágrafo único, em particular, definem que durante o prazo do aviso prévio oferecido pelo empregador, o trabalhador tem direito à redução de seu horário de trabalho em 2 (duas) horas diárias, sem prejuízo da sua remuneração integral, ou, se preferir, pode ausentar-se do trabalho por 7 (sete) dias corridos”. Nesse passo, “Suponha-se, então, que, por lei ordinária, venham a ser revogados o caput e o parágrafo único do art. 488 da CLT, de modo a que não haja mais possibilidade de decréscimo no horário de trabalho do empregado ou ausência remunerada durante o prazo do aviso prévio apresentado pelo empregador. Pergunta-se: seria esta lei revogadora constitucional?”. E responde: “Quer parecer-nos que não. As normas introduzidas pelo legislador, que concederam ao empregado o direito de redução do horário de trabalho ou de ausência por uma semana no período de aviso prévio, quando oferecido pelo empregador, estão em vigor há décadas e, por todo esse lapso, vêm sendo tidas como de observância inafastável. Sendo certo que seu conteúdo é compatível com a Constituição atual, foram pela mesma recepcionadas, recebendo com isso, novo fundamento de validade. [...]. Por conseguinte, cremos que tal disposição legal alcançou um patamar de consenso básico suficiente para se considerar que radicou na consciência jurídica geral, de tal maneira que seja compreendida como uma complementação indissociável da norma constitucional disposta no art. 7.º, inciso XXI” (O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 246-249).

252 Nesse sentido da autonomia do princípio da proibição de retrocesso social também está o posicionamento de Daniel Oitaven Pamponet Miguel afirmando que não se há de buscar a caracterização do aludido princípio “como uma norma implicitamente derivada de outros princípios, como o da segurança jurídica e o da proteção da confiança, nos moldes do esforço doutrinário já mencionado na introdução deste trabalho – por todos, Sarlet [...]” (Daniel Oitaven Pamponet Miguel, O direito como integridade comunicativa: uma compreensão histórica do princípio da proibição de retrocesso social, São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 190-191).

253 Nesse ponto, o que se almeja defender no presente estudo aproximar-se-ia da posição de Sarlet, que concebe a dimensão social da segurança jurídica, quando dela fala em sentido amplo. Entretanto, difere-se do entendimento do jurista, na medida em que se propõe, neste trabalho, uma concepção mais ampla do princípio da vedação ao retrocesso social.

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No entanto, de outro lado, discorda-se da concepção restrita que Derbli

propõe no estudo do tema, pois, para o jurista, a vedação ao retrocesso social aplica-se

unicamente: às hipóteses correspondentes a uma omissão do legislador

infraconstitucional, e quando houver um consenso básico suficiente para se considerar

que a norma infraconstitucional radicou na consciência jurídica geral de maneira a se

tornar uma complementação indissociável da norma constitucional.

Diversamente do que defende o autor, entende-se que o princípio do não

retrocesso deve ter uma aplicação mais ampla, não somente quando se estiver perante

situações que sejam equivalentes a uma omissão legislativa infraconstitucional (e sua

relação de dependência com o consenso básico associado à consciência jurídica geral).

Mais do que isso, o princípio da vedação ao retrocesso social também se aplica no plano

constitucional aos casos em que houver uma emenda à Lei Maior que venha a

estabelecer um retrocesso em termos de direitos e garantias no ordenamento jurídico

constitucional, tal qual sustenta Sarlet, que defende a proteção também contra a ação do

poder constituinte reformador. E Streck, como se viu, afirma que o princípio do não

retrocesso social deve regular qualquer processo de reforma da Constituição, na medida

em que nenhuma emenda constitucional, por mais que formalmente lícita, pode

acarretar retrocesso social. Se isso fosse admitido, estar-se-ia deixando de fazer

prevalecer os elementos que dizem respeito à moralidade política.254 É o que se

pretenderá demonstrar no trabalho (particularmente no Capítulo 3, em que se falará a

respeito da aplicabilidade do princípio do não retrocesso).

Além disso, segue-se a linha do pensamento de Sarlet quando esse autor

diferencia o retrocesso social da retroatividade da lei. Nesse ponto, o autor tem razão

quando afirma que, se o legislador institui uma medida de cunho retrocessivo, não

254 Para uma compreensão moral da Constituição, referida leitura, de acordo com Dworkin, propõe que

todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos os dispositivos constitucionais que preveem direitos, perante o Estado, em uma linguagem extremamente ampla e abstrata, de maneira a considerar que eles fazem referência a princípios morais de decência e justiça. Assim, a leitura moral vai inserir a moralidade política no próprio âmago do direito constitucional. Diante da incerteza e controvérsia da moralidade política, caberia a determinadas autoridades incorporar aqueles princípios morais, compreendê-los e interpretá-los. No sistema norte-americano, essa autoridade caberia aos juízes e, em última instância, aos juízes da Suprema Corte (Giuliano Fernandes, O sentido da filosofia política: um estudo acerca do debate Dworkin-Hart entre direito como integridade e poder discricionário dos juízes, 2009, Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 75-76). No Brasil, traçando-se um paralelo, dita leitura deve ser feita pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

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estará atingindo o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, mas, sim,

instituindo um retrocesso quanto aos avanços conquistados em termos de direitos e

garantias fundamentais. Ver-se-á em que medida é possível estabelecer a distinção entre

a proteção que se confere aos direitos e garantias individuais fundamentais em face da

retroatividade da norma e o resguardo, a referidos direitos e garantias, trazido pelo não

retrocesso social.

Diante da exposição do pensamento doutrinário acerca da temática do

princípio da vedação ao retrocesso social, foi possível analisar os diversos

entendimentos dos autores a respeito do assunto e estabelecer alguns pontos importantes

para a delimitação do tema. Destarte, torna-se essencial determinar quais os

fundamentos constitucionais do primado do não retrocesso.

2.2.2 Fundamentos constitucionais do princípio da vedação ao retrocesso social

A título de explicação, com o intuito de expor a diversidade de

entendimentos a respeito do princípio da vedação ao retrocesso social e de estabelecer o

conteúdo do aludido mandamento, do modo como aqui se pretende defender, foi trazida

a lume a construção realizada sobre a matéria tanto no domínio estrangeiro quanto

nacional. Particularmente no âmbito da doutrina pátria (analisada no item 2.1.4.1),

procurou-se colacionar o entendimento dos diversos autores que abordam a temática da

proibição de retrocesso social a fim de que se possa, neste estudo, apontar, tendo como

referência o que já se edificou sobre o assunto, em que termos se substancia o apontado

princípio.

Ante o que se viu, torna-se capital analisar os fundamentos

constitucionais do princípio, particularmente: (a) a progressiva ampliação dos direitos

fundamentais da sociedade, (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º, caput), visando (b) à paulatina

redução das desigualdades regionais e sociais e (c) à construção de uma sociedade

marcada pela solidariedade e pela justiça social (art. 3.º, I e III, e art. 170, caput, VII e

VII), (d) o instituto do direito adquirido social, e (e) os tratados internacionais, a adesão

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brasileira e o princípio da vedação ao retrocesso social.255 De tal modo, tratar-se-ão

desses tópicos daqui por diante, comportando a exposição do direito adquirido social

divisão em alguns subtópicos, como exigência da própria sistematização e abordagem

da matéria.

E, ademais, pode-se ter, também, por fundamento do primado do não

retrocesso, (f) o Estado Democrático e Social de Direito e suas diretrizes

fundamentalmente voltadas ao plano social,256 já abordado no primeiro capítulo.

2.2.2.1 A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da

sociedade

A progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade

significa que a Constituição incorporou a cláusula de não taxatividade no seu art. 5.º, §

2.º, tendo por legítima a existência de direitos fundamentais além daqueles contidos no

próprio art. 5.º. Isso significa que referida cláusula não somente possibilitou reconhecer

a existência de direitos fundamentais ao longo de todo o texto constitucional, como

também admitiu que do conceito de direitos fundamentais fizesse parte determinado

bem jurídico que a sociedade assim considerasse no progressivo caminhar do Direito,

constituindo-se, de tal modo, instrumento de alargamento do rol dos direitos

fundamentais, podendo ser chamada de cláusula de ampliação interpretativa ou cláusula

255 Nesse sentido ver também a dissertação de mestrado de Eduardo Rivera Palmeira Filho, O princípio

da proibição de retrocesso social: aplicabilidade e limites na reforma da aposentadoria por tempo de contribuição do Regime Geral de Previdência Social, 2008, Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Luterana do Brasil, Canoas, p. 50-72. O autor também propõe um conceito amplo do princípio da vedação ao retrocesso social, com base no instituto do direito adquirido social, todavia desvincula tal instituto do primado da segurança jurídica, afastando-se, nesse ponto, do pensamento de Sarlet, para quem o não retrocesso tem como um de seus fundamentos o princípio da segurança jurídica a dar-lhe sustentáculo.

256 Consoante anota Daniel Oitaven Pamponet Miguel, “Da mesma maneira que a compreensão do Estado brasileiro como fundado no regime democrático, diante do processo que originou a nossa Constituição, não precisaria estar registrada expressamente na Carta Constitucional, não precisamos de maiores esforços dogmáticos para depreender que o caráter dirigente de nossa Constituição impõe um mandamento de não retrocesso em matéria de concretização de direitos sociais. Nomear um princípio da proibição de retrocesso social, no máximo, constitui um refinamento da dimensão artificial da linguagem mediante um esforço de sintetização [...], nessa expressão, do sentido progressista, sempre orientado para um acontecer futuro mais democrático, que nossa situação hermenêutica nos impõe reconhecer à Constituição” (O direito como integridade comunicativa..., p. 191).

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especial de abertura.257 Por conseguinte, quando se diz que os direitos fundamentais são

aqueles previstos no ordenamento jurídico constitucional, está-se fazendo menção à

ideia da não taxatividade e, igualmente, daquilo que está implícito na Lei Maior, o que

requer não só o amparo a outros direitos fundamentais espalhados em suas disposições

normativas, bem como, da mesma forma, àqueles decorrentes do alargamento

conceitual de um determinado direito fundamental explícito no Texto Fundamental, o

que permitiria afirmar que referidos direitos fundamentais estariam expressos na Carta

Política brasileira, ainda que de modo indireto ou decorrente (isto é, direitos

subentendidos nas normas definidoras de direitos e garantias e os decorrentes do regime

e dos princípios).

Consoante ensina Ingo Wolfgang Sarlet, a norma do art. 5.º, § 2.º, da

Constituição Federal 1988 exprime a noção de que, afora o “conceito formal de

Constituição (e de direitos fundamentais) há um conceito material, no sentido de

existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo

fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo”. Diante

desse contexto, cabe ressaltar que “o rol do art. 5.º, apesar de analítico, não tem cunho

taxativo”.258 Explicando seu pensamento, o autor assevera que o conceito materialmente

aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5.º, § 2.º, da Lei Maior “é de uma

amplitude ímpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, a possibilidade de

identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não

escritos (no sentido de não expressamente positivados)”, como também “de direitos

257 Consoante expõe Cristina Queiroz, “os direitos fundamentais surgem no Estado constitucional como

‘reação’ às ameaças fundamentais que circundam o homem e o cidadão. As funções específicas de perigo mudam historicamente, tornando-se necessários novos instrumentos de combate, que devem ser desenvolvidos, sempre de novo, em nome do homem e do cidadão. Isso significa uma abertura de conteúdos, de funções e de formas de proteção, de modo a que todos esses direitos possam ser defendidos contra os novos perigos que possam surgir no decurso do tempo. Este caráter aberto do catálogo e da garantia dos direitos fundamentais, seja no aspecto pessoal, seja no aspecto institucional ou coletivo, vem expresso numa multiplicidade de formas de proteção jurídica [...] Não existe numerus clausus de dimensões de tutela, do mesmo modo que não existe um numerus clausus de perigos. Daí a origem da expressão proteção dinâmica dos direitos fundamentais, utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão” (Cristina Queiroz, Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade, Interpretação constitucional, São Paulo: Malheiros, 2005, p. 49).

258 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 78-79.

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fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados

internacionais”.259

Sarlet sustenta, melhor esclarecendo suas ideias, que existem dois

grandes grupos ou classes de direitos fundamentais, de maneira especial os direitos

expressamente positivados (ou escritos) e os direitos fundamentais não escritos, de

forma genérica “considerados aqueles que não foram objeto de previsão expressa pelo

direito positivo (constitucional ou internacional)”. No que diz respeito ao primeiro

grupo, não há maiores dificuldades para identificar a existência de duas categorias

diferentes, “quais sejam, a dos direitos expressamente previstos no catálogo dos direitos

fundamentais ou em outras partes do texto constitucional (direitos com status

constitucional material e formal)”, como, de igual maneira, “os direitos fundamentais

sediados em tratados internacionais e que igualmente foram expressamente positivados”

(sobre os tratados internacionais cf. item 2.2.5). No tocante ao segundo grupo, podem-se

distinguir também duas categorias. A primeira é representada pelos direitos

fundamentais implícitos, “no sentido de posições fundamentais subentendidas nas

normas definidoras de direitos e garantias fundamentais”; a segunda, por sua vez,

“corresponde aos direitos fundamentais que a própria norma contida no art. 5.º, § 2.º, da

CF denomina de direitos decorrentes do regime e dos princípios”.260-261

259 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 86. 260 Idem, ibidem, p. 87. 261 Diante dessa classificação quanto aos direitos fundamentais, a categoria dos direitos expressamente

positivados (ou escritos), aí inseridos os direitos fundamentais fora do catálogo, mas com status constitucional formal e material, deve-se verificar que referida categoria, segundo Sarlet, “não facilita em muito a tarefa de sua correta identificação, inobstante a sua condição de direito constitucional no sentido formal possa diminuir os riscos de equívoco”. Adverte o autor que os exemplos encontrados na doutrina existem em pequena quantidade e que para localizá-los não se deve esquecer a “circunstância de que também os assim designados direitos ‘dispersos na Constituição’ comungam do mesmo regime jurídico (da fundamentalidade material e formal) dos direitos constantes do Título II” da Carta Maior. E arrisca alguns exemplos. Assim, entrariam nessa hipótese, entre outros, o direito de igual acesso aos cargos públicos (art. 37, I), os direitos de associação sindical e de greve dos servidores públicos (art. 37, VI e VII), assim como o direito dos servidores públicos à estabilidade no cargo (art. 41) que, conforme afirma, “constitui verdadeira garantia da cidadania”. Além desses, podem-se trazer como exemplos o direito à aposentadoria dos servidores públicos (art. 40) e o direito à irredutibilidade de vencimentos dos servidores públicos (art. 37, XV) na seara social. Sarlet não menciona esses dois exemplos, mas seguindo sua linha de raciocínio é possível identificá-los como direitos sociais fora do catálogo, com status constitucional formal e material.

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Diante dessa classificação de Sarlet quanto aos direitos fundamentais,

interessa destacar a categoria dos direitos expressamente positivados (ou escritos), aí

inseridos os direitos fundamentais fora do catálogo, mas com status constitucional

formal e material. Com base nessa classificação, o jurista observa que “A mera posição

constitucional dos direitos fundamentais fora do catálogo não facilita em muito a tarefa

de sua correta identificação, inobstante a sua condição de direito constitucional no

sentido formal possa diminuir os riscos de equívoco”. Adverte que os exemplos

encontrados na doutrina existem em pequena quantidade e que para localizá-los não se

deve esquecer a “circunstância de que também os assim designados direitos ‘dispersos

na Constituição’ comungam do mesmo regime jurídico (da fundamentalidade material e

formal) dos direitos constantes do Título II” da Carta Maior. E arrisca alguns exemplos.

Assim, entrariam nessa hipótese, entre outros, o direito de igual acesso aos cargos

públicos (art. 37, inc. I), os direitos de associação sindical e de greve dos servidores

públicos (art. 37, incs. VI e VII), assim como o direito dos servidores públicos à

estabilidade no cargo (art. 41) que, conforme afirma, “constitui verdadeira garantia da

cidadania”.262 Além desses, pode-se trazer como exemplos o direito à aposentadoria dos

servidores públicos (art. 40) e o direito à irredutibilidade de vencimentos dos servidores

públicos (art. 37, XV) na seara social.263

Ainda, a progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade

encontra respaldo no art. 7.º, caput, da Constituição Federal (cuja redação estabelece

que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à

melhoria de sua condição social”), abrindo o catálogo de direitos dos trabalhadores, não

se restringindo ao texto constitucional e deixando nítida a preservação da cláusula de

não retrocesso social por meio da concepção da progressividade do direito e da

irreversibilidade ou da vedação da regressão social.

Diante dessas considerações, verifica-se que, no tocante aos direitos

fundamentais individuais e sociais,264 a Constituição de 1988 inseriu-os expressa e

262 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 116-117. 263 Sarlet não menciona esses dois exemplos, mas seguindo sua linha de raciocínio é possível identificá-

los como direitos sociais fora do catálogo, com status constitucional formal e material. 264 A inclusão dos direitos sociais (e demais direitos fundamentais) no rol das “cláusulas pétreas”,

segundo defende Sarlet, ocorre porque já no preâmbulo da Constituição Federal encontra-se menção explícita “no sentido de que a garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça

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implicitamente no seleto rol das assim designadas “cláusulas pétreas”, tornando-os

limites materiais ao poder de reforma constitucional (art. 60, § 4.º, inc. IV, da CF).

2.2.2.2 A paulatina redução das desigualdades regionais e sociais

No que concerne à redução das desigualdades sociais e regionais (arts.

3.º, III, e 170, VII, da CF), segundo José Afonso da Silva, tem relação com o

desenvolvimento nacional equilibrado, que possibilite elevar as condições de vida da

população, melhor distribuir a riqueza por qualquer método, mas especialmente pela

oferta de trabalho bem remunerado, o que, com isso, resultará na pretendida redução das

desigualdades sociais e regionais.265

Deveras, o que norteia a ideia referente à previsão constitucional quanto

à redução das desigualdades sociais e regionais, consoante Celso Ribeiro Bastos, é que

“Até mesmo por razões de unidade nacional não é possível tolerar-se o desnível de

constitui objetivo permanente” do Estado brasileiro. Além do mais, não há como descurar o fato de que a Lei Maior pátria consagra a ideia de que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático e Social de Direito, o que se revela nitidamente em boa parte dos princípios fundamentais, sobretudo no art. 1.º, incisos I a III, assim como no artigo 3.º, incisos I, III e IV. Por conseguinte, diante destas breves considerações, constata-se, desde já, a íntima vinculação dos direitos fundamentais sociais com a concepção de Estado consagrada pela Constituição Federal, sem esquecer que tanto o princípio do Estado Social quanto os direitos fundamentais sociais integram os elementos essenciais, ou seja, a identidade da Constituição brasileira, motivo pelo qual os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) podem ser considerados – mesmo não estando previstos de maneira expressa no rol das “cláusulas pétreas” – “autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional”. Ademais, “Poder-se-á argumentar, ainda, que a expressa previsão de um extenso rol de direitos sociais no título dos direitos fundamentais seria, na verdade, destituída de sentido, caso o Constituinte, ao mesmo tempo, lhes tivesse assegurado proteção jurídica diminuída”. Além disso, uma interpretação que restringe a abrangência das “cláusulas pétreas” aos direitos fundamentais dispostos no art. 5.º da Constituição Federal “acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no artigo 60, § 4.º, inc. IV, de nossa lei Fundamental”. Por fim, impende recordar que o papel precípuo das assim denominadas “cláusulas pétreas” é o de anteparar o aniquilamento dos elementos essenciais da Constituição, encontrando-se, neste sentido, a serviço da manutenção da identidade constitucional, composta precisamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo constituinte. Isto se evidencia com particular inteligência no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que tendencial, resultaria, em boa parte dos casos, em uma agressão (em maior ou menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF). Logo, uma interpretação restritiva da abrangência do art. 60, § 4.º, IV, da Constituição Federal não parece ser a melhor solução, ainda mais quando os direitos fundamentais (individuais e sociais), de forma inequívoca, integram o cerne da ordem constitucional brasileira (Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988, p. 15-16. Disponível em: <www.stf.jus.br/.../artigo_Ingo_DF_sociais_PETROPOLIS_final_01_09_08.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2012.

265 José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 48.

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desenvolvimento existente entre as diversas regiões do País”. Destarte, “A preocupação

com o desenvolvimento mais acelerado das regiões menos desenvolvidas deve ser uma

diretriz fundamental da política do país”. Nesse passo, é imperioso notar, entretanto, que

esse empenho no desenvolvimento regional “não pode levar a um deslocamento tão

acentuado da poupança e do investimento para regiões menos desenvolvidas a ponto de

colocar em risco a continuidade do processo de desenvolvimentista nas regiões mais

avançadas”.266

Sem dúvida, o intuito do legislador constituinte originário foi o de

prever, na Lei Maior, mecanismos que se voltassem à redução das desigualdades

regionais a fim de anteparar a existência e continuidade de regiões em evidente

diferença de nível no que diz respeito a outras regiões do País, admitindo políticas

públicas vocacionadas a conferir tratamento distinto a certas regiões ou certas atividades

econômicas como forma de incentivar e implementar o desenvolvimento o mais

equilibrado possível.

2.2.2.3 A construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e

pela justiça social

A construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I, CF),

nas lições de José Afonso da Silva, vem de inspiração buscada no Preâmbulo da

Constituição portuguesa. Segundo o autor, “‘Construir’, aí, tem sentido contextual

preciso. Reconhece que a sociedade existente no momento da elaboração constitucional

não era livre, nem justa, nem solidária”. Desse modo, “é signo linguístico que impõe ao

Estado a tarefa de construir não a sociedade – porque esta já existia –, mas a liberdade, a

justiça e a solidariedade a ela referidas”. É dizer: o que a Constituição pretende, com

esse desígnio fundamental, é que a República Federativa do Brasil edifique “uma ordem

de homens livres, em que a justiça distributiva e retributiva seja um fator de

dignificação da pessoa e em que o sentimento de responsabilidade e apoio recíprocos

solidifique a ideia de comunidade fundada no bem comum”. Dessa maneira, “Surge aí o

signo do Estado Democrático de Direito, voltado à realização da justiça social, tanto

266 Celso Ribeiro Bastos, Direito econômico brasileiro, São Paulo: Celso Bastos, 2000, p. 145-146.

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quanto a fórmula liberdade, igualdade e fraternidade o fora no Estado liberal

proveniente da revolução Francesa”.267

E a exigência da ordem econômica fundada nos ditames da justiça

social (art. 170, caput, da CF), conforme esclarece o constitucionalista, está prevista de

modo incisivo na Constituição de 1988, para o fim de assegurar a todos existência

digna. Nesse sentido, a Carta Maior “Dá à justiça social um conteúdo preciso”. Ou

seja, contempla alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a

defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e pessoais e a busca

do pleno emprego – que permitem compreender que o “Capitalismo concebido há de

humanizar-se (se é que isso seja possível) com a efetivação da justiça social”.

Apresenta, “por outro lado, mecanismos na ordem social voltados à sua efetivação.

Tudo depende da aplicação das normas constitucionais que contêm essas determinantes,

esses princípios, esses mecanismos”.268

Em verdade, é necessário construir uma sociedade pautada na

democracia, que prime pela solidariedade e pela justiça social, pois só há

verdadeiramente democracia quando se respeitam esses valores, tão essenciais para a

realização dos direitos fundamentais.

2.2.2.4 O direito adquirido social e o princípio da vedação ao

retrocesso social

2.2.2.4.1 A controvérsia em torno do conceito de direito adquirido

Antes de adentrar propriamente no estudo do direito adquirido social e

do princípio da vedação ao retrocesso social, será feita uma breve exposição do instituto

do direito adquirido, na sua formulação tradicional, voltada à esfera individualista, para

que, após, se possa tratar do direito adquirido social, até mesmo para que se tenha um

comparativo entre suas acepções (individual e social).

267 Silva, Comentário contextual à Constituição, p. 46-47. 268 Idem, ibidem, p. 710.

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Pois bem, o direito adquirido tem sido abordado tradicionalmente sob

um prisma essencialmente individualista, por meio de uma perspectiva própria da seara

privada, isto é, por uma visão desenvolvida mais de acordo com a ótica civilista e a

teoria geral do direito (teoria esta que, consoante afirmam Marcus Orione Gonçalves

Correia e Érica Paula Barcha Correia, vem sendo tratada como teoria geral

nomeadamente do direito privado).269 E nesse campo privatístico a doutrina ainda não

precisou com exatidão o seu conceito.

No que diz respeito ao conceito de direito adquirido, dois doutrinadores,

com suas respectivas teorias, influenciaram grandemente os legisladores e os estudiosos

do tema. Um deles foi Carlo Francesco Gabba, jurista italiano, defensor da clássica

teoria subjetiva do direito adquirido. O outro foi o francês Paul Roubier e sua teoria

objetiva do instituto. O curioso é que também à época desses autores o tema era gerador

de controvérsias.

Gabba entende que sempre que, houver um conflito de leis no tempo, a

lei nova poderá retroagir desde que se respeite o direito adquirido, que ele conceitua

como: “1) consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no

qual o fato foi realizado, ainda que a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado

antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo”; e que “2) nos termos da lei sob

o império da qual ocorreu o fato de onde se originou, passou imediatamente a fazer

parte do patrimônio de quem o adquiriu”.270

Já Roubier prefere utilizar a expressão “situação jurídica”, que crê

espelhar superioridade em relação à designação “direito adquirido”, na medida em que

aquela designação, segundo concebe, não tem caráter subjetivo. A teoria de Roubier

fundamenta-se na diferenciação entre efeito retroativo e efeito imediato. O primeiro

constituir-se-ia na aplicação da lei ao passado, enquanto o segundo seria a aplicação da

lei ao presente. Nesse sentido, se o intento fosse o de aplicar a lei às situações

concretizadas (facta praeteria), ela seria retroativa; se a intenção fosse a de aplicá-la às

269 Marcus Orione Gonçalves Correia e Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da Seguridade

Social, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 91. 270 Carlo Francesco Gabba, Teoria della Retroattivitá delle Leggi, 3. ed., Torino: UTET, 1891, v. 1, p.

190-191.

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139

situações em andamento (facta pendentia), seria indispensável delimitar a fronteira que

aparta o que é precedente à modificação do legislador e o que é posterior a essa

alteração, permitindo, dessa maneira, que se determine a situação em que a nova lei

poderia ter incidência. No que concerne às situações futuras (facta futura), de forma

evidente a lei não poderia ser retroativa.271

Deveras, a matéria continua suscitando intensas discussões e fortes

polêmicas, especialmente no campo doutrinário, muito mais porque a Constituição de

1988 não deu a significação do que seja direito adquirido, embora tenha adotado o

princípio da irretroatividade das leis como regra em respeito a esse instituto.272

Destarte, o legislador infraconstitucional assumiu a responsabilidade de

conceituar o instituto. Assim, encontra-se na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC)

o conceito de direito adquirido, em seu art. 6.º, § 2.º. Entretanto, essa tarefa avocada

pelo legislador da LICC acabou por contrariar parte da doutrina, como, destacadamente,

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, que tecem crítica à hipótese de normas

infraconstitucionais conceituarem termos constitucionais, sobretudo quando são

empregados para assegurar direitos e garantias individuais, como o caso em tela, uma

vez que, nessa empreitada, corre-se o risco de apoucar o conceito ou de reduzir sua

grandeza constitucional.

Sob essa ótica, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, em obra

conjunta, explicam seu entendimento asseverando que, quando o constituinte quis

proteger o direito adquirido (valendo o mesmo para o ato jurídico perfeito e à coisa

julgada) “contra as investidas do legislador é porque pressupôs que a expressão ‘direito

adquirido’, de per si, trouxesse um teor de significação não passível de ser restringido

pelo legislador ordinário”. Nesse passo, “Não haveria nexo lógico algum em se tutelar o

direito adquirido, mas, simultaneamente, deixar-se exclusivamente à lei comum o papel

de dizer quando o direito adquirido ocorre.” Com efeito, “Em síntese, este existe, ou

271 Paul Roubier, Droits Subjectif et Situation Juridique, Paris: Dalloz, 1933, p. 177-181. 272 Carlos Roberto Gonçalves, apoiando-se no jurista italiano Carlo Francesco Gabba, assevera que a

Constituição Federal e a Lei de Introdução ao Código Civil teriam adotado o princípio da irretroatividade das leis como regra, em respeito ao direito adquirido (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil, São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 27).

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140

deixa de existir, segundo critérios que não remanescem ao alcance da norma

subconstitucional interferir, ao menos para reduzir a sua dimensão constitucional”.273

Embora tenham razão os doutrinadores, de todo modo, a LICC

(Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, com a redação determinada pela Lei

3.238, de 1.º de agosto de 1957) conceituou o instituto do direito adquirido da seguinte

forma:

Art. 6.º [...]

§ 2.º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Da análise da redação do citado preceptivo legal é possível verificar que

é a concepção de Gabba que norteia sua conceituação. No entanto, embora a Lei de

Introdução ao Código Civil tenha estabelecido citado conceito de direito adquirido, a

doutrina entende que tal definição não tem muita utilidade no que diz respeito aos seus

precisos contornos.

Consoante as lições de José Eduardo Martins Cardozo, poder-se-ia

dizer, sem exagerar, “que aproximadamente uma centena de formulações conceituais

diversas se tornaram públicas através dos tempos e, em muitos casos, sem qualquer

possibilidade de harmonização de aspectos havidos como essenciais”. Nesses termos,

ainda hoje, “a exata definição do que sejam ‘direitos adquiridos’ consiste em um dos

principais problemas daqueles que optam por trilhar este peculiar campo de abordagem

teórica do fenômeno da intertemporalidade jurídica”.274

Contudo, mesmo sendo árdua a tarefa de conceituar o direito adquirido,

os autores brasileiros lançaram-se ao desafio de elaborar um conceito sobre o tema

nitidamente voltado à dimensão individual do instituto.

273 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em

5 de outubro de 1988, São Paulo: Saraiva, 1989, v. 2, p. 188. 274 José Eduardo Martins Cardozo, Da retroatividade da lei, São Paulo: RT, 1995, p. 113.

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141

No entanto, adverte-se que, não sendo a perspectiva do direito adquirido

tradicional (individual) o foco que se pretende dar quanto à abordagem do tema, será

feita a exposição da conceituação realizada por alguns doutrinadores sobre essa acepção

do direito adquirido, sem o intuito de aprofundar-se muito na questão, apenas o

suficiente para evidenciar a distinção do viés individualista do instituto da sua dimensão

social. Nessa toada, o próximo tópico tratará desses dois aspectos distintos.

2.2.2.4.2 O direito adquirido individual e social

Destarte, importa principiar a análise com a doutrina do direito

adquirido na sua visão clássica (individual).

Segundo De Plácido e Silva, o direito adquirido retira seu motivo de

existir “dos fatos jurídicos passados e definitivos, quando o seu titular os pode exercer”.

Todavia, “não deixa de ser adquirido o direito, mesmo quando seu exercício dependa de

um termo prefixo ou de uma condição preestabelecida inalterável ao arbítrio de

outrem”. Assim sendo, sob o prisma da retroatividade das leis, não apenas são

considerados adquiridos “os direitos aperfeiçoados ao tempo em que se promulga a lei

nova, como os que estejam subordinados a condições ainda não verificadas, desde que

não se indiquem alteráveis ao arbítrio de outrem”.275

Caio Mário da Silva Pereira conceitua direito adquirido como aquele

que, “in genere, abrange os direitos que o seu titular ou alguém por ele possa exercer,

como aquele cujo começo de exercício tenha termo prefixo ou condição preestabelecida,

inalterável ao arbítrio de outrem”. Assim sendo, “São os direitos definitivamente

incorporados ao patrimônio do seu titular, sejam os já realizados, sejam os que

simplesmente dependem de um prazo para o seu exercício, sejam ainda os subordinados

a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem”. Ou seja, “A lei nova não pode atingi-

los, sem retroatividade”.276

275 De Plácido e Silva, Vocabulário jurídico, 8. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 77-78. 276 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Rio de Janeiro: Forense, 1961, v. 1, p. 125.

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Celso Bastos e Ives Gandra Martins entendem que “O direito adquirido

consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos

previstos pela lei atualmente em vigor, ou, se preferirmos, continuar-se a gozar dos

efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido revogada”.277

Manoel Gonçalves Ferreira Filho doutrina que para um direito ser

considerado adquirido ele deve apresentar duas características. A primeira é de que

todos os requisitos que a lei exige devem estar preenchidos, ou cumpridos. A segunda é

que sobrevenha uma das seguintes hipóteses: “a) o direito já poder ser exercido; ou b)

ter ele termo inicial de exercício prefixado; ou c) estar sujeito à condição que não pode

ser alterada por outra pessoa”.278

Para José Eduardo Martins Cardozo,

[...] a regra do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, nada mais é do que um princípio que assegura a sobrevivência da lei velha ou, em outras palavras, a ultratividade desta. Com efeito, nestas hipóteses, mesmo após o término de sua vigência, a lei revogada continua a disciplinar tais situações ao longo do próprio período de vigência da lei nova. O direito antigo “sobrevive”, em última instância, ante a impossibilidade do novo diploma vir a prejudicar estas realidades pré-constituídas.279

E José Afonso da Silva explana que o direito adquirido é a

transformação do direito subjetivo por deixar de ser exercido, permanecendo não

obstante o advento de lei nova.

Nas suas palavras:

Para compreendermos um pouco melhor o que seja o direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido,

277 Bastos e Martins, Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, p.

193. 278 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Anotações sobre o direito adquirido do ângulo constitucional,

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Guarulhos, Guarulhos, v. 1, p. 197, 1999. 279 Cardozo, Da retroatividade da lei, p. 326.

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143

foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava). Por exemplo, quem tinha o direito de se casar de acordo com as regras de uma lei, e casou-se, seu direito foi exercido, consumou-se. A lei nova não tem o poder de desfazer a situação jurídica consumada. A lei nova não pode descasar o casado porque tenha estabelecido regras diferentes para o casamento. Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se ao seu patrimônio, para ser exercido quando lhe convier. [...]. Vale dizer – repetindo: o direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído.280

Diante dos conceitos vistos acima, verifica-se a manifesta influência do

conceito proposto por Gabba (que, por sua vez, influenciou a disposição contida na

LICC sobre o direito adquirido, como se viu). Nesse sentido, segundo Correia e Correia,

constata-se que o conceito proposto pelo jurista italiano “vem sendo o parâmetro, com

algumas poucas ressalvas, admitido pela doutrina pátria”.281

Contudo, esses doutrinadores censuram o conceito de direito adquirido

enunciado por Gabba. Para eles, em realidade “a preocupação do autor, bem como dos

civilistas e dos doutrinadores da teoria geral do direito, refere-se à proteção específica

do indivíduo, cuja incorporação de direitos ao patrimônio jurídico, na vigência de

determinada lei, deve ser preservada”. E lembram que, “em se tratando de obra escrita

no final do século XIX, nada mais natural que sofresse um forte influxo do liberalismo

que então dominava a concepção de mundo – inclusive no universo do direito”. Com

isso, a ideia básica “seria a de que o Estado de Direito, ao qual estaria ligado

intimamente o liberalismo, com a conservação dos efeitos da lei e a incorporação dos

direitos nela previstos de forma definitiva e incorruptível”, prestar-se-ia à “maximização

da proteção do indivíduo, mormente em face dos eventuais abusos do Estado”. Destarte,

“incorporado determinado direito, segundo a lei vigente, ao patrimônio jurídico da

pessoa, evita-se o despotismo de se despojar das pessoas aquilo que havia ingressado no

seu patrimônio a partir da normatização vigente”. Essa visão permaneceu intacta,

280 José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p.

133-134. 281 Marcus Orione Gonçalves Correia e Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade

social, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 92.

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mesmo com o advento dos novos modelos de Estado, nas distintas concepções dos

civilistas e estudiosos da teoria geral do direito no Brasil. Assim sendo, nem o

surgimento do Estado social ou do Estado Democrático de Direito foram suficientes, em

terras pátrias, para submetê-la a uma nova apreciação.282

É de ressaltar, na esteira dessas ideias, que a visão tradicional do direito

adquirido, por conseguinte, deve se abrir para comportar, de igual modo, a dimensão

social desse instituto, na medida em que a ótica “do direito adquirido do século XIX,

obviamente, não deve ser aquela que deve permear o fenômeno para o século XXI”.283

Se se fala em direitos de segunda dimensão, para fazer alusão aos direitos fundamentais

sociais, desenvolvidos no Estado de Bem-Estar, também é possível se referir a uma

segunda dimensão do direito adquirido ou direito adquirido social, condizente com o

modelo de Estado Social e com os postulados básicos da Constituição de 1988. No

entanto, ainda mais, o direito adquirido social suplanta a abrangência e proteção aos

direitos sociais, constituindo-se em amparo a um estágio evolutivo de conquistas de

uma dada sociedade.

Dentro desse contexto, abraça-se a crítica feita por Correia e Correia,

que se revela de todo pertinente, na medida em que é plenamente defensável conceber

um novo conceito acerca do direito adquirido, conceito este que envolva a evolução do

Estado moderno, que, conforme exposto no capítulo precedente, a partir do Estado de

Bem-Estar, transpôs o plano do individual para o plano social, o que significou um

marco para o desenvolvimento não só dos direitos sociais, em que se ultrapassou a seara

individualista (do direito privado), como também um marco ao plexo de conquistas

alcançadas pela sociedade, incorporadas ao ordenamento jurídico, dentro de um plano

evolutivo, como expressão civilizatória dessa sociedade. Nesse sentido, se o modelo

estatal brasileiro que se vivencia hoje é de um Estado neossocial, não se pode mais

282 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 93. 283 Idem, ibidem, p. 96. Nesse diapasão, Correia e Correia asseveram: “[...] parece óbvio que há de

rechaçar uma leitura exclusivamente individualista do fenômeno do direito adquirido, já que historicamente o componente social também passou a fazer parte do constitucionalismo – tendo comovido, inclusive, a interpretação de todos os conceitos constitucionais, inclusive aqueles forjados tipicamente no advento do liberalismo. Logo, os direitos fundamentais de primeira geração (dentre estes os direitos adquiridos) devem ser vislumbrados também a partir dos influxos que os direitos de segunda geração têm na sua atual situação. O olhar de quem busca entender conceitos tipicamente talhados no liberalismo deve se voltar, nos dias de hoje, para o século em que estamos inseridos (e não para o século XIX, ao qual sequer pertencemos)” (Idem, p. 96).

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conceber o instituto do direito adquirido nos moldes originários que inspiraram a sua

noção. No atual estágio, a interpretação que deve dar o tom ao art. 5.º, XXXVI, da

Constituição Federal é a interpretação em sentido lato, uma vez que o momento

contemporâneo requer uma releitura do aludido dispositivo constitucional, em que se

torna necessário contemplar a ideia de que a lei não deverá prejudicar o direito

adquirido individual e social.

Por conseguinte, ao ultrapassar o aspecto restrito, que se refere tão só ao

indivíduo, o instituto do direito adquirido deve ser concebido como não somente aquele

que se “incorporou ao patrimônio jurídico do seu titular, em vista da incidência da

norma aplicável à época do fato (o que se pode denominar direito adquirido

individual)”. Deve-se ir mais além, considerando-o, “também, a partir da perspectiva da

sociedade, como tudo o que incorporou o patrimônio jurídico desta, em vista da luta

diária pela aquisição de seus direitos (o que se chama, neste estudo, de direito adquirido

social – termo herdado de Anníbal Fernandes)”.284 Deveras, “muito mais do que apenas

os direitos sociais, todos os direitos fundamentais que incorporaram o patrimônio

jurídico de certo povo, como conquista civilizatória inconteste deste, devem ser

preservados no plano constitucional”.285 Dessa maneira, e assim compreendido,

284 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 100. No tocante ao assunto do direito

adquirido, especialmente em matéria de Previdência Social, a melhor definição é de Anníbal Fernandes, por ocasião do 10.º Congresso Brasileiro de Previdência Social, realizado em São Paulo, no ano de 1997. Apregoou na ocasião que: “Qualquer alteração da lei ou emenda à Carta não pode sobrepor-se ao respeito aos direitos já adquiridos ou àqueles em formação. Grife-se que, na maioria dos casos, o que se apelida expectativa de direito é direito em formação. Integra o tipo de direito adquirido, porque este é garantido contra mudança unilateral, motivada pelo arbítrio de outrem (inclusive lei etc.) [...]”. Tecendo críticas vorazes às reformas na Previdência Social, Fernandes bem se expressou ao afirmar que: “O que se faz é tratar de direito coletivo e/ou direito social (seguridade, previdência), como se fora fazenda, gado nelore, quando não significam direitos de primeira geração”. E, antes de finalizar sua intervenção, asseverou que: “O equilíbrio da sociedade produzido pelos direitos sociais, nomeadamente os previdenciários, decorre do respeito ao direito em formação, quanto mais ao já completado. Se fulano trabalha e contribui, não se modifique o sistema legal para surrupiar-lhe o benefício [...]” (Sérgio Pardal Freudenthal, Regras de Transição e a Aposentadoria por Idade. Disponível em: <http://www.pardaladvocacia.com.br/site/ html/content/artigos/ Detalhe.aspx?id=17&pag=1>. Acesso em: 2 fev. 2012).

285 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 101. Daí dizerem os autores que com essa afirmação não se pretende engessar o direito, pois, em verdade, o mesmo “continuará com o seu processo no sentido da evolução, no âmbito normativo restrito daquela sociedade, de novas conquistas civilizatórias expressas na sua Constituição – que, às vezes, até mesmo já se encontram consolidadas para outros povos” (Idem, ibidem, p. 101).

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verifica-se que se trata “da preservação de patamares civilizatórios, incorporados às

relações sociais por meio do direito, que não podem mais ser objeto de retrocesso”.286

Nesse diapasão, se o nível do patrimônio jurídico conquistado pela

sociedade deve ser preservado, visto que passou a integrar o patrimônio da coletividade,

como resultado dos progressos alcançados pela humanidade em sua evolução social, é

possível entender que o direito adquirido social é extraído do art. 5.º, XXXVI, da

Constituição Federal, tomando-se por base a acepção lata do direito adquirido,

conforme já destacado, a fim de ser um efetivador da segurança social. Se assim não for,

no plano dos direitos de segunda dimensão, que fazem parte do direito social,

“diversamente dos ramos do direito privado, o impacto do descumprimento do que foi

inicialmente acordado pode, até mesmo pela maior proporção numérica dos envolvidos,

trazer grandes prejuízos à sociedade”.287

Diante do exposto, é válido defender que o princípio da proibição do

retrocesso social está presente na Constituição por intermédio do instituto do direito

adquirido social. Além desse fundamento, aludido primado pode ser inferido também

das previsões constitucionais vislumbradas por Derbli, que assinalam no sentido da

progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º,

caput), visando à paulatina redução das desigualdades regionais e sociais e à

construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social (art. 3.º,

I e III, e art. 170, caput, VII e VIII).288 E, somando-se a isso, podem-se ter também, por

286 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 101. Segundo os autores, é possível

pensar assim, v. g., “dentro de uma situação de não ruptura – em que há atuação de poder constituinte originário apenas decorrente de mera evolução social, e não revolução ou contrarrevolução –”, em que “não haveria como se admitir que se constasse de um texto constitucional o direito de um homem submeter o outro à escravidão”. Obviamente, “O fim da escravidão foi uma conquista civilizatória, incorporada culturalmente pelo direito, que não pode ser mais despojada do direito constitucional” (Idem, ibidem, p. 101).

287 Idem, p. 103. 288 Construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I, CF), segundo José Afonso da Silva, vem

de inspiração buscada no Preâmbulo da Constituição portuguesa. Segundo o autor, “‘Construir’, aí, tem sentido contextual preciso. Reconhece que a sociedade existente no momento da elaboração constitucional não era livre, nem justa, nem solidária. Portanto, é signo linguístico que impõe ao Estado a tarefa de construir não a sociedade – porque esta já existia –, mas a liberdade, a justiça e a solidariedade a ela referidas. Ou seja: o que a Constituição quer, com esse objetivo fundamental, é que a República Federativa do Brasil construa uma ordem de homens livres, em que a justiça distributiva e retributiva seja um fator de dignificação da pessoa e em que o sentimento de responsabilidade e apoio recíprocos solidifique a ideia de comunidade fundada no bem comum. Surge aí o signo do Estado Democrático de Direito, voltado à realização da justiça social, tanto

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fundamento do primado do não retrocesso, o Estado Democrático e Social de Direito e

suas diretrizes essencialmente voltadas ao plano social.

Pois bem, uma vez alcançados, por ora, os fundamentos constitucionais

do princípio da vedação ao retrocesso social, com destaque para o direito adquirido

social, já que importava expor a faceta do instituto condizente com o modelo de Estado

(neo)social, é de relevo examinar o direito adquirido individual e social em face de

emenda constitucional, e, após, ainda que brevemente, as diversas esferas de proteção

(individual e social) no tocante a referido instituto.

2.2.2.4.3 Direito adquirido individual e social em face de emenda

constitucional

No que concerne ao poder de reforma, Canotilho explica a doutrina de

Sieyés, que distinguiu o poder constituinte dos poderes constituídos. Estes últimos – os

poderes constituídos – consistem no “poder de modificar a constituição em vigor

segundo as regras e processos nela prescritos, e movem-se dentro do quadro

constitucional criado pelo poder constituinte”. Nesse viés, o poder de revisão

constitucional (também denominado de poder constituinte derivado, poder de revisão,

poder constituinte em sentido impróprio) é, “consequentemente, um poder constituído

tal como o poder legislativo”. Em verdade “o poder de revisão constitucional só em

quanto a fórmula liberdade, igualdade e fraternidade o fora no Estado liberal proveniente da Revolução Francesa”. Já a redução das desigualdades sociais e regionais (arts. 3.º, III, e 170, VII, da CF) tem relação com “[...] o desenvolvimento nacional equilibrado, que proporcione elevação das condições de vida da população, a melhor distribuição da riqueza por qualquer método, mas especialmente pela oferta de trabalho bem remunerado, resultará na pretendida redução das desigualdades sociais e regionais”. E a exigência da ordem econômica fundada nos ditames da justiça social (art. 170, caput, da CF) está prevista de modo incisivo na Constituição de 1988, para o fim de assegurar a todos existência digna. Nesse sentido, a Carta Maior “Dá à justiça social um conteúdo preciso. Preordena alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e pessoais e a busca do pleno emprego – que possibilitam a compreensão de que o Capitalismo concebido há de humanizar-se (se é que isso seja possível) com a efetivação da justiça social. Traz, por outro lado, mecanismos na ordem social voltados à sua efetivação. Tudo depende da aplicação das normas constitucionais que contêm essas determinantes, esses princípios, esses mecanismos” (Silva, Comentário contextual à Constituição, 6. ed., p. 46-48).

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sentido impróprio se poderá considerar constituinte; será, quando muito, ‘uma paródia

ao poder constituinte verdadeiro’”.289

Raymundo Faoro esclarece que “o poder revisor, que se expressa na

emenda, não se confunde, formal ou materialmente, com o Poder Constituinte”, pois “A

principal distinção entre ambos não depende de uma demonstração, graças ao seu apelo

axiomático: o titular do Poder Constituinte não será nunca o titular do poder de

emenda”. E, desse modo, “O poder reformador, por ser um poder instituído ou derivado,

se baliza necessariamente pela letra e pela significação do documento que pretende

alterar”.290

Segundo Michel Temer, o poder de reforma291 também cria normas

constitucionais; contudo, no caso, “a produção, dessa normatividade não é emanação

direta da soberania popular, mas indireta, como também ocorre no caso da formulação

da normatividade secundária (leis, decretos, sentenças judiciais)”. Destaca o autor que,

na hipótese “da edição de lei, por exemplo, também há derivação indireta da soberania

popular”. Entretanto, não há falar em um “Poder Constituinte Originário”. Para Temer,

é “mais conveniente reservar a expressão ‘Poder Constituinte’ para o caso de emanação

normativa direta da soberania popular”. O que aí não se enquadrar será, então, fixação

de competência: “a reformadora (capaz de modificar a Constituição); a ordinária (capaz

de editar a normatividade infraconstitucional). É apropriado, assim, denominar a

289 J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 6. ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 95 290 Raymundo Faoro, Assembleia Nacional Constituinte: a legitimidade recuperada, São Paulo:

Brasiliense, 1981, p. 75. 291 Importa aclarar que podem existir dois tipos de poder de reforma, quais sejam o poder de revisão e o

poder de emenda. O primeiro é um poder extraordinário, em que há data prevista para a sua ocorrência. O segundo é um poder ordinário, que comporta atuação a qualquer momento, desde que observados os limites temporais acaso instituídos e obedecidos todos os demais limites. Ainda, a emenda constitucional seria uma modificação pontual e a revisão uma reforma mais abrangente para se alterar a Constituição (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos do direito constitucional contemporâneo, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 77). O Poder de Revisão no Brasil veio previsto no art. 3.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”), e após o seu exercício ele acabou exaurindo-se. Seu trabalho resultou nas emendas de revisão promulgadas (EC 1/1994 a 6/1994). Já o poder de emenda encontra-se previsto nos arts. 59 e 60 da Constituição da República Federativa do Brasil.

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possibilidade de modificação parcial da Constituição como competência

reformadora”.292

Na esteira dessa linha de pensamento – em que se deve deixar a

designação de “Poder Constituinte” apenas para o Poder Constituinte Originário, pois

tão somente este é fruto direto da vontade popular, concordando com Temer que no

caso da possibilidade de alteração em parte da Constituição o que existe é o exercício de

competência reformadora –, é válido afirmar que a emenda constitucional, como

emanação indireta da soberania popular, está sujeita às balizas impostas pelo direito

adquirido social, devendo respeitar e observar referido instituto.

Na medida em que a Lei Fundamental de 1988 agasalha o direito

adquirido social, como acima exposto, em seu art. 5.º, inciso XXXVI, integrando o rol

dos direitos e garantias fundamentais, o mesmo não pode ser abolido por intermédio de

emenda constitucional (art. 60, § 4.º, CF), dado que as conquistas progressivas

alcançadas pela sociedade passam a constituir seu patrimônio de forma que o poder de

emendar a Constituição não pode infringir tal preceito, devendo respeitar as diretrizes

traçadas pelo Poder Constituinte.

Desse modo, as emendas, “Para serem válidas, estão referenciadas à

própria Constituição que modificam e é nela que encontram a fonte de validade para

promoverem as alterações que façam”. Por conseguinte, “é porque a Constituição

permite ser tocada, mexida, que as emendas constitucionais podem ser validamente

produzidas”.293 Infere-se, por conseguinte, que as reformas constitucionais, fruto de

emendas, para serem válidas, devem ficar restritas aos “limites ontológicos daquilo que

é uma simples emenda”,294 pois do contrário extrapolariam os limites materiais e

formais explícitos e implícitos da nossa Lei Maior.295 E, por via de consequência,

feririam, entre outros direitos e garantias, o direito adquirido individual e social.

292 Michel Temer, Elementos de direito constitucional, 22. ed., 2.ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 2008,

p. 36. 293 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 331-332. 294 Idem, ibidem, p. 332. 295 Sobre os limites ao poder de emendar a Constituição, Bandeira de Mello ensina que: “No caso da

Constituição de 1988, são limites materiais os que constam do art. 60 § 4.º, no qual se estabelece que

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Necessário ressaltar e esclarecer, de outro canto, que, para a crítica que

se possa fazer de que a limitação da competência reformadora por normas estabelecidas

pelo Constituinte Originário significaria conferir um sumo poder à geração constituinte

e recusá-lo às demais, responde-se com a noção de pré-compromisso constitucional.

Explica-se: “quando o povo é chamado a atuar ativamente no processo político

(qualidade intrínseca à deliberação constitucional)”, ou seja, nas ocasiões em que

ocorrem “momentos de política constitucional (constitutional politics), verifica-se não

apenas o exercício de uma cidadania ativa”, mas, notadamente, “que o povo logra se

desvencilhar da tendência natural de perseguir os seus interesses particulares e

imediatos, de agir passional e irracionalmente, atuando, ao revés, tendo em vista a

realização do bem comum e de expectativas de longo prazo”. É dizer: “nos raros

momentos constitucionais, o ambiente de insegurança e de incerteza que os cerca torna

mais factível a concretização da aspiração republicana da virtude ética dos cidadãos em

sua atuação política”. De tal modo, referido processo deliberativo eticamente superior

põe a salvo “princípios básicos de justiça do alcance de maiorias conjunturais, as quais,

atuando no âmbito da política ordinária (normal politics), estarão sujeitas a sucumbir à

atuação autointeressada, em prejuízo aos direitos das minorias”.296

Vê-se, por conseguinte, que os pré-compromissos constitucionais

consistem “em estratégias de autoincapacitação, extraídas dos pré-compromissos

‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais’”. Já os limites formais são aqueles que estão previstos tanto no § 1.º do mesmo artigo quanto no do § 5.º. No § 1.º está disposto que “A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”. O § 5.º, por sua vez, contém a seguinte disposição: a “matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de proposta na mesma sessão legislativa”. Ressalta-se que “Uma segunda ordem de limites, também material e formal, é a dos limites implícitos que resultam do Texto Constitucional ou advêm da própria natureza essencial daquilo que é uma emenda constitucional” (Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 333) (destacou-se).

296 Brandão, Rigidez constitucional e pluralismo político, Revista Direitos Fundamentais e Justiça, n. 5, p. 86, out.-dez. 2008. O autor diz que a noção de pré-compromisso constitucional foi desenvolvida por Jon Elster, e se evidencia no conto de Ulisses e as Sereias, narrado por Homero no Livro XII da Odisseia, consoante o qual, Ulisses, ao ser avisado por Circê de que, se passasse pela ilha das sereias, não conseguiria deixar de ceder ao canto irresistível desses seres mitológicos, deu ordens aos seus subordinados que o amarrassem ao mastro e lhe tapassem os ouvidos com cera, possibilitando, dessa maneira, que resistisse à tentação. Por conseguinte, nas palavras de Sarmento, “o pré-compromisso de Ulisses, que limitou o poder de sua vontade no futuro para evitar a morte, poderia ser comparado àquele que se sujeita o povo quando dá a si uma constituição, e limita seu poder de deliberação futura, para evitar que, vítima de suas paixões e fraquezas momentâneas, possa pôr em risco o seu destino coletivo” (Idem, ibidem, p. 91).

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individuais”,297 por intermédio dos quais “um indivíduo ou um povo, em um momento

de lucidez, afasta a possibilidade de adotar decisões míopes a que estaria

tendencialmente sujeito em momentos de debilidade da vontade ou de racionalidade

distorcida”, conseguindo, dessa maneira, “afastar-se de tentações ou fraquezas e, via de

consequência, atingir os seus verdadeiros interesses”.298 Nesse passo, aplicando os pré-

compromissos individuais ao domínio dos limites materiais ao poder de reforma,

sustenta-se que (após o povo ter exercido o poder constituinte originário) a competência

reformadora não poderá retirar determinados conteúdos constitucionais essenciais,

como os direitos fundamentais da Constituição, pois é vital perenizar a tutela jurídica

destas prerrogativas inerentes à dignidade humana, conferidas dantes pelo Poder

Constituinte.299

Nota-se, portanto, que o pré-compromisso constitucional, que protege

de qualquer insanidade futura os direitos fundamentais dos cidadãos perante uma

emenda à Constituição, é mais um forte indicativo de que a competência reformadora

deve limitar-se a modificar tão somente aquilo que o constituinte originário lhe

possibilitou, preservando-se o núcleo fundamental protegido pela Lei Maior.

De outra banda, interessa advertir, todavia, sobre a existência do

pensamento que defende a tese de que o direito adquirido ficaria protegido de qualquer

ofensa praticada por meio de lei, mas que nada poderia em face do advento de uma

emenda constitucional, na medida em que o inciso XXXVI do art. 5.º estabelece que “a

lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”;

procede-se, na hipótese, a uma interpretação literal e stricto sensu do texto

constitucional.

297 Por exemplo, na hipótese de uma pessoa com dificuldades para acordar cedo, coloque seu

despertador longe da cama para evitar que o desligue e continue a dormir (Brandão, Rigidez constitucional e pluralismo político, p. 91, nota 17).

298 Idem, ibidem, p. 91, nota 17. 299 Rodrigo Brandão, Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: uma proposta de

justificação e de aplicação do art. 60, § 4.º, IV, da CF/88, Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 10, p. 15, abr.-maio-jun. 2007. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 20 maio 2012.

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Não obstante essa interpretação em sentido estrito ou formal, esse tem

sido o entendimento asilado pelo Supremo Tribunal Federal.300

Afirma a Corte mais alta do País que:

[...]. A Constituição é lei em sentido material; em sentido formal, excede às leis ordinárias, gozando de supralegalidade, vale dizer, eficácia inaugural e sobranceira na ordem jurídica. A Constituição não conhece limites anteriores ou posteriores aos constantes dos seus próprios comandos. Disto se vale a Constituição tanto para atribuir quanto para retirar a base de validade de disposições legislativas ordinárias e limitar ou ampliar situações jurídicas individuais, não ficando de modo algum condicionada pelas normas infraconstitucionais que lhe desdobram o conteúdo, sejam ou não declaratórias de direitos ou obrigações. [...].301

No entanto, embora se deva reconhecer o devido peso da posição

acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, diverge-se desse pensamento, visto que o

termo lei na disposição estabelecida pela Lei Maior há que ser entendido na sua acepção

lata, englobando também a emenda à Constituição, posto que uma emenda é

decorrência da competência reformadora da Carta Magna. Logo, é condicionada pelo

Poder Constituinte e, por conseguinte, lhe é vedado ferir a proteção que este poder 300 Paulo Modesto colaciona, em artigo referente ao tema, diversos julgados do Supremo Tribunal

Federal em que se afirma expressamente ser inadmissível opor direito adquirido a normas da Constituição Federal, resultem ou não de emendas constitucionais (Paulo Modesto, Reforma administrativa e direito adquirido, Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 8, nov. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 7 fev. 2008). Transcrevem-se aqui os seguintes:

“[...] Quando sucede alteração constitucional que modifique a estrutura de um instituto jurídico, não se tem como admitir a persistência das leis ordinárias que se encontrem a contraditar a nova estrutura, pois, no pormenor, é a vontade inovadora do constituinte que prevalece. Recurso extraordinário provido” (STF, RE 84.797-SP, Rel. Min. Antonio Neder, j. 10.08.1976, RTJ 80/944) (grifou-se).

“[...] Não se há de invocar direito adquirido contra o que posto induvidosamente na nova ordem constitucional, em modificação não apenas do texto mas do próprio sistema, até porque as garantias do direito adquirido se dirigem à lei ordinária e não à Constituição. [...]” (STJ, REsp 506/RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 25.09.1989, R. Sup. Trib. Just., Brasília, 2(06)/p. 360, 1990) (grifou-se).

“Mandado de segurança. Servidor público. Acumulação de cargos. Constituição Federal de 1988. Direito adquirido. Inexistência. Inexiste direito adquirido contra o texto constitucional, em especial no que se refere a regime jurídico de servidores públicos. Precedentes do STF. Impossibilidade de se entender estável o servidor que incida em acumulação de cargos, vedada constitucionalmente” (STJ, Mandado de Segurança 7/DF, Rel. Min. Miguel Ferrante, j. 12.12.1989, R. Sup. Trib. Just. 2(7)/p. 173, 1990) (grifou-se).

301 Modesto, Reforma administrativa e direito adquirido.

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conferiu ao direito adquirido, até porque, conforme já se mencionou anteriormente,

estando o Poder Constituinte Originário limitado por princípios de justiça social e pela

ordem internacional, essa limitação é transferida em maior grau à competência

reformadora.

Ao recriminarem essa interpretação estrita, acerca da qual aqui se

discorda, Correia e Correia advertem que “Não se pode reduzir a interpretação da

disposição constante do art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal, entendendo que esta

disposição volta-se apenas à lei infraconstitucional (‘A lei não prejudicará o direito

adquirido...’)”. Com efeito, “Partir-se desta exegese meramente gramatical corresponde,

no nosso entender, a uma simplificação da interpretação constitucional”, conflitante

com a própria “ideia exposta no texto de que a interpretação da Constituição é bastante

mais complexa do que a simples compreensão do que vem gramaticalmente exposto”. É

dizer: “O conceito constitucional supera o mero conceito formal constante da palavra,

que, embora não seja totalmente desprezado, deve assumir o seu verdadeiro significado

no contexto político-social”, sem que haja rompimento “com o pacto original

estabelecido constitucionalmente”. Nesses termos, portanto, não pretendem aderir ao

pensamento reducionista da previsão constitucional, pois entendem que isso seria “mera

simplificação de um processo hermenêutico altamente complexo e sofisticado”.302

Conclui-se, pois, que uma emenda constitucional, não sendo “expressão

do poder constituinte propriamente dito”, ou seja, não sendo “poder originário (logo,

não é constituinte), e por isso não pode desconstituir direitos individuais” – e também

os direitos fundamentais todos que foram incorporados ao patrimônio jurídico da

sociedade como decorrência da sua evolução303 –, “ainda que implícitos, menos ainda

poderá desconstituir os explícitos sem com isto estar ofendendo, às escâncaras, os

limites ao poder de emenda constantes da própria Constituição”. Diante do exposto e de

referidos motivos, deve ser considerada “impertinente, resultante de interpretação

puramente literal – e, além disto, incapaz de enfrentar os diferentes aspectos que foram

302 Correia e Correia, Curso de direito da seguridade social, p. 97, nota 11. 303 Bandeira de Mello não trata do direito adquirido social, mas somente do direito adquirido individual.

O acréscimo nos ensinamentos do jurista é de inteira responsabilidade desta autora.

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mencionados – a alegação de que a proteção de direito adquirido é contra a lei e não

contra emenda constitucional”.304

Logo, diante dessa análise, quanto ao direito adquirido, é válido

defender que qualquer mudança na Constituição, perpetrada por intermédio de uma

emenda constitucional que vá contra direito adquirido individual e social, ultrapassa a

competência reformadora legítima para implicar uma ofensa fatal ao espírito protetor

dos direitos e garantias fundamentais agasalhados pela Lei Maior.

Nesse viés, do que se disse sobre o direito adquirido individual e social

e do que se expôs acerca do exercício de competência constitucional reformadora, ainda

é preciso esclarecer um ponto importante: a dimensão de proteção conferida aos direitos

e garantias já incorporados ao patrimônio jurídico dos indivíduos difere-se da dimensão

de proteção atribuída aos direitos e garantias integrantes do patrimônio jurídico da

sociedade. Ou seja, enquanto o direito adquirido individual, perante o advento de uma

emenda constitucional, protege o indivíduo da vinda de uma norma retroativa, o direito

adquirido social funda (ao lado de outros fundamentos) o primado do não retrocesso

social, impedindo que se retroceda quanto ao patamar alcançado pela coletividade no

tocante a todos os direitos fundamentais que integram seu patrimônio. Se essas ideias já

foram expostas, de certo modo faz-se necessário torná-las ainda mais nítidas. Este

intuito tem o tópico a seguir, pretendendo melhor clareá-las.

2.2.2.4.5 Direito adquirido individual e social: as diferentes

dimensões de proteção

Consoante o pensamento doutrinário preconizado por Sarlet, linhas

atrás colacionado, o princípio da proibição do retrocesso social é uma proteção contra

medidas retrocessivas, as quais não podem ser tidas como propriamente retroativas visto

que não alcançam as figuras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa

julgada.305 Tendo-se por base essa assertiva, pode-se assegurar, por conseguinte, que, se

uma medida alcançar o direito adquirido (individual), será fulminada pelo vício da

304 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 339-340. 305 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 435.

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inconstitucionalidade, e não há falar no direito adquirido social que fundamenta, entre

outros alicerces, o aludido princípio. Daí se infere que a proteção em face da

retroatividade é diversa do resguardo proporcionado pelo princípio da proibição do

retrocesso social. De tal modo, pode-se afiançar que: o não retrocesso social incide

quando há uma norma de cunho retrocessivo e o direito adquirido individual atua

protetoramente quando há retroatividade.

Melhor explicando: o direito adquirido individual e social tem em

comum o mesmo fundamento normativo constitucional (art. 5.º, XXXVI, da CF); no

entanto, efetivam dimensões diferentes de direitos (uma individual e outra social).

Assim, um determinado direito adquirido pelo indivíduo estará protegido da

retroatividade legal (normativa), assegurando-se, no tempo, a manutenção de direitos

oriundos de previsão anterior contida na lei (norma); e paralelamente, mais do que o

direito social, todos os direitos fundamentais que fizeram parte do patrimônio jurídico

de determinada nação, como resultado do progresso da humanidade em sua evolução

social, agregados às relações sociais por meio do Direito, acharão acolhida no direito

adquirido social e, por conseguinte, no princípio da vedação ao retrocesso social. Esse

primado surge da necessidade de uma maior proteção à totalidade dos direitos

fundamentais conquistados pelo povo, precisamente porque o resguardo a tais direitos

requer não só a manutenção do nível alcançado, como, de igual maneira, o seu

adensamento, decorrência lógica, aliás, da própria evolução do Estado, do Direito e da

maneira de interpretá-lo e aplicá-lo.

Deveras, o primado da vedação ao retrocesso social, fundado no direito

adquirido social, nasce pela necessidade de amparo ao grau de direitos e garantias

fundamentais que determinada sociedade (povo) alcançou e que se vê ameaçado por

medidas de caráter minimizante e redutoras de ditos direitos e garantias. Nesse passo, a

precisão de colocar todo um plexo de direitos conquistados pelo povo a salvo dessas

medidas faz brotar no constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo) a

necessidade de elaborar maneiras de se proteger esse somatório dos direitos e garantias

que a sociedade obteve legitimamente para si ao longo do tempo, o que originou o

princípio do não retrocesso social.

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Nesse viés, o titular do direito adquirido individual está, em princípio,

protegido de futuras modificações legislativas (emendas e leis infraconstitucionais) que

poderiam reger o ato pelo qual fez originar seu direito, justamente porque referido

direito já se acha agregado ao seu patrimônio jurídico (no plano normativo), ainda que

não tenha sido exercitado ou gozado (no plano ontológico). O direito adquirido

individual é um limite à retroatividade da lei. Tem-se aí a proteção do art. 5.º, XXXVI,

c/c com o art. 60, § 4.º, IV, da Constituição Federal. Em uma outra dimensão, a

sociedade (povo), como titular do direito adquirido social, estará resguardada de futuras

mudanças normativas (emendas e legislação infraconstitucional), por intermédio da

aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social, em virtude do alcance de certo

nível de direitos e garantias obtido e incorporado ao seu patrimônio jurídico diante da

sua própria evolução social. O direito adquirido social é um limite à retrocessão

social.306

Portanto, analisada a importância das diferentes dimensões de proteção

quanto à temática do direito adquirido individual e social (este como um dos

fundamentos do princípio da proibição de retrocesso social), além do exame do papel

protetivo que têm ambas as dimensões no tocante às mudanças instituídas por emendas

à Carta Constitucional e à legislação infraconstitucional, torna-se essencial, a seguir,

analisar outro ponto importante para estabelecer o embasamento do primado do não

retrocesso: a sua previsão em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, o que

fortalecerá, ainda mais, sua presença na Constituição Federal.

2.2.2.5 Os tratados internacionais e a adesão brasileira ao princípio

da vedação ao retrocesso social

Sem dúvida alguma, outro forte argumento a favor da presença

constitucional do princípio da vedação ao retrocesso social encontra-se nos tratados

internacionais que enunciam direitos sociais e a adesão brasileira tratados. Nesse

sentido, tem-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

306 A vedação ao retrocesso social funda-se no art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal e também nos

arts. 3.º, I e III, 5.º, § 2.º, 7.º, caput, e art. 170, caput e VII e VIII, além de se basear na própria concepção de Estado Democrático e Social de Direito e, também, nos tratados internacionais, conforme será visto em sequência.

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(PIDESC), adotado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembleia-Geral das Nações

Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,

com o escopo de garantir juridicidade e eficácia, no plano interno dos países-membros,

aos preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos,307 especialmente no que

diz respeito aos direitos sociais.

Sobre a questão Flávia Piovesan esclarece que o processo de

“‘juridicização’ da Declaração começou em 1949 e foi concluído apenas em 1966, com

a elaboração de dois tratados internacionais distintos”, quais sejam “o Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, que passavam a incorporar os direitos constantes da

Declaração Universal”. Destaca que, “Ao transformar os dispositivos da Declaração em

previsões juridicamente vinculantes e obrigatórias, esses dois Pactos Internacionais

constituem referência necessária para o exame do regime normativo de proteção

internacional dos direitos humanos”.308

Como bem leciona Antonio Augusto Cançado Trindade, “Com os dois

Pactos em vigor, concretizava-se a Carta Internacional dos Direitos Humanos”,

intensificava-se a ideia “de generalização da proteção internacional dos direitos

humanos e abria-se o campo para a gradual passagem da fase legislativa à de

implementação dos tratados e instrumentos internacionais de proteção”.309

307 Consoante esclarece Clarice Seixas Duarte, “O sistema internacional de proteção dos direitos

humanos é formado pelo sistema normativo global (composto de instrumentos de alcance geral e especial) e pelo sistema regional, este último integrado pelos sistemas americano (no qual o Brasil está inserido), o europeu e o africano. Os organismos que integram o sistema ONU – Organizações das Nações Unidas são responsáveis pelo monitoramento global dos direitos humanos. O Sistema Global de Proteção foi inaugurado pela Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Rights), integrada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, pelo Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966”. E acresce que: “Além de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de alcance geral, o sistema global é também composto por instrumentos de alcance específico, pertinentes a determinadas violações, tais como genocídio, tortura, discriminação racial e contra a mulher, violação dos direitos das crianças, direito à educação, entre outras, que oferecem enorme potencial de proteção à pessoa humana” (Clarice Seixas Duarte, Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira. Disponível em: <www.acaoeducativa.org.br/opa/opa02.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2012).

308 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 152.

309 Antonio Augusto Cançado Trindade, Tratado de direito internacional dos direitos humanos, Porto Alegre: Fabris, 1997, v. 1, p. 40.

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Com particular ênfase, neste estudo, para o Pacto Internacional dos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,310 destaca-se o seu Preâmbulo, em que dispõe

que o ideal do homem livre não pode ser concretizado sem a criação de condições que

possibilitem a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim

como de seus direitos civis e políticos, atribuindo aos Estados a obrigação de promover

o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades da pessoa humana.

O Pacto impõe aos Estados, em seu art. 2.º, § 1.º, a obrigação de adotar

medidas até o máximo de seus recursos disponíveis, de modo a assegurar

progressivamente o pleno exercício dos direitos nele reconhecidos. Nesse passo, a

interpretação oficial sobre a natureza das obrigações impostas pelo PIDESC aos

Estados-partes é oferecida no Comentário Geral 03, de 1990, do Comitê de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, segundo o qual, de acordo com as Nações

Unidas, o conceito de progressividade indica a plena realização dos direitos

econômicos, sociais e culturais, de modo geral, que não poderá ser atingida em um curto

período de tempo. Com efeito, consoante “essa posição, as obrigações impostas diferem

significativamente daquelas contempladas no art. 2.º do Pacto Internacional dos Direitos

Civis e Políticos, que prevê obrigação imediata de se respeitarem e se assegurarem os

direitos nele previstos”.311

Observa-se, contudo, segundo Clarice Seixas Duarte, que:

Entretanto, para o Comitê, a progressividade não deve ser interpretada como uma justificativa para que o Estado deixe de implementar os direitos econômicos, sociais e culturais, ou “como uma forma de esvaziar a obrigação de conteúdo substantivo concreto”. Ela seria apenas uma forma de levar em conta a realidade e as dificuldades envolvidas na plena realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Por outro lado, a expressão deve ser iluminada pelo objetivo geral ou razão de ser do Pacto, qual seja, o estabelecimento de obrigações claras para os Estados-partes, visando à plena realização dos direitos em questão. De acordo com a própria ONU, portanto, o Pacto impõe, de fato, aos Estados, a obrigação de mover-se efetiva e prontamente em direção àquele objetivo. Além do mais, qualquer medida retroativa deliberada requereria a mais

310 Interessa aqui ressaltar que o PIDESC, até 2007, contava com 157 Estados-partes (Flávia Piovesan,

Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: jurisprudência do STF. Disponível em: <http://iedc.org.br/REID/?CONT=00000034>. Acesso em: 19 fev. 2012).

311 Duarte, Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira.

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cautelosa consideração e precisaria ser plenamente justificada312 (destacou-se).

É de ver que, segundo o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais da ONU, “enquanto o objetivo de plena realização dos direitos enunciados no

Pacto só pode ser implementado a longo prazo”, a progressividade, de outra banda,

“impõe ao Estado o dever de tomar medidas concretas e delimitadas da forma mais clara

possível em direção às obrigações assumidas (obrigações de conduta e não de resultado,

propriamente ditas)”, o que necessita ser comprovado em breve espaço de tempo, a

partir da entrada do Pacto em vigor.313

Nesse condão, diante do primado da aplicação progressiva dos direitos

previstos no PIDESC, dimana o dever, por parte dos Estados, de efetuar “avanços

concretos em prazos determinados, o que, na prática, constitui um empecilho ao

retrocesso da política social do Estado”, pois, uma vez que se alcançou um determinado

patamar de proteção dos respectivos direitos, não é possível que se volte atrás e se

rebaixe o padrão de vida da coletividade.314

Com efeito, mantendo-se referida questão da progressividade em mente,

vital para a noção que se pretende estabelecer neste item, volta-se, agora, para o exame

da matéria no âmbito interno, analisando-se a Constituição Federal de 1988. Consoante

o ordenamento jurídico pátrio, verifica-se que o Brasil deve cumprir integralmente o

conteúdo dos Tratados Internacionais por ele ratificados, na medida em que ditos

instrumentos normativos internacionais são recepcionados pelo ordenamento jurídico

brasileiro.315

312 Duarte, Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira. 313 Idem, ibidem. 314 Idem. 315 Conforme expõe Flávia Piovesan, “no que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema

internacional de proteção dos direitos humanos, cabe realçar que somente a partir do processo de democratização do País, deflagrado em 1985, é que o Estado brasileiro passou a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos”. Acrescenta que: “Assim, a partir da Carta de 1988 foram ratificados pelo Brasil: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de

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O caráter obrigatório de tal cumprimento pode ser inferido do conteúdo

normativo dos seguintes dispositivos constitucionais:

(i) Do disposto no art. 4.º, inciso II, da Constituição Federal, o qual

disciplina que o Brasil é regido nas suas relações internacionais pelo princípio da

“prevalência dos direitos humanos” (entre outros que arrola nos demais incisos do

citado preceptivo constitucional).

(ii) Do art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal que estabelece: “Os

direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do

regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a

República Federativa do Brasil seja parte”.316

setembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; h) o Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de 1996; i) o Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de 1996; j) o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, em 20 de junho de 2002; k) o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, em 28 de junho de 2002; e l) os dois Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança, referentes ao envolvimento de crianças em conflitos armados e à venda de crianças e prostituição e pornografia infantis, em 24 de janeiro de 2004. A esses avanços soma-se o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em dezembro de 1998”. E conclui que: “Logo, faz-se clara a relação entre o processo de democratização no Brasil e o processo de incorporação de relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, tendo em vista que, se o processo de democratização permitiu a ratificação de relevantes tratados de direitos humanos, por sua vez essa ratificação permitiu o fortalecimento do processo democrático, através da ampliação e do reforço do universo de direitos fundamentais por ele assegurado” (Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, Caderno de Direito Constitucional, Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, p. 27-28, 2006).

316 Por fugir do âmbito de estudo deste tópico e do que se pretende analisar, não se adentrará na polêmica referente ao status ou hierarquia dos tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico interno. Importa apenas esclarecer que, diante do que dispõe o § 2.º do art. 5.º da Constituição Federal, “Atualmente, destacam-se quatro correntes interpretativas acerca da hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que sustentam: a) a hierarquia supraconstitucional destes tratados; b) a hierarquia constitucional; c) a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; e d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal” (Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 29). Para um estudo mais aprofundado a respeito de cada qual destas correntes, ver Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 6. ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Max Limonad, 2004, p. 75-98. Deve-se ressaltar que a matéria não é pacífica nem na Suprema Corte brasileira, embora se tenha chegado a um entendimento prevalente. Nesse viés, “Da análise das decisões proferidas pelo pleno do STF que discutiram a matéria referente à hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, conclui-se que, no STF, predomina o entendimento de que: a) os tratados internacionais não podem versar sobre matérias reservadas pela Constituição à lei complementar, sob pena de serem

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(iii) E do art. 5.º, § 3.º, da Constituição Federal, incluído pela Emenda

Constitucional 45/2004, que determina: “Os tratados e convenções internacionais sobre

direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois

turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às

emendas constitucionais”.

Avaliando o art. 5.º, §§ 2.º e 3.º, da Carta Constitucional, Flávia

Piovesan defende que o “Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, que

combina regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos

humanos e um outro aplicável aos tratados tradicionais”. Assim, “Enquanto os tratados

internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5.º, § 2.º –

apresentam natureza de norma constitucional, os demais tratados internacionais

apresentam natureza infraconstitucional”. Depreende-se, por conseguinte, que, nesta

conjuntura, “a inclusão do parágrafo 3.º ao art. 5.º objetiva, ao seu modo, responder à

polêmica doutrinária e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados

internacionais de proteção dos direitos humanos”.317 E acresça-se ao pensamento de

Piovesan que este dispositivo (art. 5.º, § 3.º) também vem reforçar o disposto no art. 4.º,

inciso II, da Constituição Federal, o qual enuncia que, nas suas relações internacionais,

o Brasil deve reger-se (além de outros princípios) pela prevalência dos direitos

humanos.

Piovesan assevera que o art. 5.º, § 3.º, vem evidenciar de maneira

expressa o caráter materialmente constitucional dos tratados referentes aos direitos

humanos. No entanto, para que os tratados de direitos humanos alcancem assento

formal na Constituição, exige-se que se observe o quórum qualificado de três quintos

dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos –

exatamente o quórum necessário para a aprovação de emendas à Carta Maior, consoante

dispõe o art. 60, § 2.º, da Constituição de 1988. Neste caso, os tratados de direitos

inconstitucionais; b) todos os tratados são subordinados à Constituição; c) os tratados internacionais que não versarem sobre direitos humanos possuem paridade hierárquica com as leis ordinárias [...]” (Germana Assunção Trindade, A posição hierárquica do tratado à luz do STF. Disponível em: <www.faete.edu.br/revista/Prof.%20Germana.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2012).

317 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 31.

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humanos formalmente constitucionais podem ser nivelados às emendas à Constituição,

ou seja, passam a integrar formalmente o texto constitucional.318

Isto significa que, com o advento do § 3.º do art. 5.º da Constituição

Federal, têm-se duas categorias de tratados de direitos humanos: a) os materialmente

constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais, isto é, “todos os tratados

internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do

parágrafo 2.º do artigo 5.º”. Ademais, “Para além de serem materialmente

constitucionais, poderão, a partir do parágrafo 3.º do mesmo dispositivo, acrescer a

qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição,

no âmbito formal”.319

Segundo Piovesan, ao aceitar-se o caráter constitucional de todos os

tratados de direitos humanos, deve-se observar que os direitos que integram os tratados

internacionais, tais como os demais direitos e garantias individuais albergados pela

Constituição, constituem “cláusula pétrea” e não podem ser suprimidos por meio de

emenda à Constituição, conforme estabelece o art. 60, § 4.º, da Lei Maior. Note-se que

318 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33. Nesse sentido, Daniel

Augusto Mesquita aclara que: “O quorum de aprovação trazido pelo § 3.º do artigo 5.º (três quintos, em dois turnos, em cada Casa do Congresso Nacional) é exatamente o mesmo previsto para a aprovação de emenda constitucional. A única diferença que se pode apontar entre esse dispositivo e o previsto no artigo 60, § 2.º, da Constituição é que as emendas constitucionais aprovadas conforme este procedimento transladam-se para o texto constitucional, ou seja, integrarão o corpo da Constituição. Já os tratados, integrados conforme o referido § 3.º, por serem ‘equivalentes’ às emendas constitucionais, não integrarão o corpo do texto constitucional. Continuarão, assim, com a forma estabelecida nos pactos internacionais, mas serão incorporados ao ordenamento interno como se emendas constitucionais fossem”. Ainda: “Essa diferença, entretanto, não provoca aplicações distintas entre as emendas constitucionais inscritas no corpo da Constituição e os tratados integrados ao ordenamento com o quorum especial. A expressão ‘equivalentes’, trazida na EC 45/2004, afirma que esses tratados terão todas as características de uma emenda” (Daniel Augusto Mesquita, Incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro: interpretação da Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal e consequências da Emenda Constitucional 45/2004 na proteção dos direitos fundamentais. Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, ago. 2005. Disponível em: <www.idp.org.br/download.php?arquivo= wo9j2g36jqh1.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2012).

319 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33. Esclareça-se que, conforme leciona Piovesan, “Ainda que todos os tratados de direitos humanos sejam recepcionados em grau constitucional, por veicularem matéria e substância essencialmente constitucional, importa realçar a diversidade de regimes jurídicos que se aplica aos tratados apenas materialmente constitucionais e aos tratados que, além de materialmente constitucionais, também são formalmente constitucionais. E a diversidade de regimes jurídicos atém-se à denúncia, que é o ato unilateral pelo qual um Estado se retira de um tratado. Enquanto os tratados materialmente constitucionais podem ser suscetíveis de denúncia, os tratados material e formalmente constitucionais, por sua vez, não podem ser denunciados” (Idem, ibidem, p. 33).

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as “cláusulas pétreas” protegem o núcleo material da Constituição, que fazem parte dos

valores fundamentais da ordem constitucional. Portanto, os direitos proclamados em

tratados internacionais em que o Brasil seja parte ficam abrigados pela cláusula pétrea

“direitos e garantias individuais”, prevista no art. 60, § 4.º, inciso IV, da Carta

Constitucional.320 E acrescenta, acerca dos direitos sociais, que, “Na qualidade de

direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são direitos intangíveis e

irredutíveis, sendo providos da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional

qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los”.321

Dessa forma, os direitos sociais, econômicos e culturais, enunciados em

tratados internacionais subscritos pelo Brasil, exigem o mesmo status hierárquico

conferido aos direitos e garantias fundamentais individuais incorporados ao

ordenamento jurídico brasileiro. Nessa passada, resgatando-se a ideia supramencionada

de que os direitos previstos no PIDESC reclamam o dever, por parte dos Estados, de

executar progressos efetivos em prazos determinados, representando assim um

obstáculo ao retrocesso da política social do ente estatal, uma vez que, a partir do

momento em que se atingiu um determinado nível de proteção dos respectivos direitos,

não é concebível que se faça um movimento de marcha para trás e se rebaixe o padrão

de vida da comunidade, ignorando-se a aplicação progressiva de tais direitos, pode-se

então constatar que a afirmação de que a progressividade resultante da cláusula de

vedação ao retrocesso social realmente tem força para tornar inconstitucionais quaisquer

medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, traduzam na

prática em uma anulação, revogação ou aniquilação desses direitos. Tendo sido o

PIDESC ratificado pelo Brasil, suas normas têm natureza constitucional e, portanto,

impõem que se obedeça ao princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais (cf.

art. 2.º, § 1.º, do PIDESC), o que implica a observância do princípio da proibição do

retrocesso social.322-323

320 Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33. 321 Piovesan, Não à desconstitucionalização dos direitos sociais. 322 Nesse sentido é a lição de Piovesan: “Logo, em face do Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, que os Estados-partes (dentre eles o Brasil), no livre e pleno exercício de sua soberania, ratificaram, há que se observar o princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, o que, por si só, implica no princípio da proibição do retrocesso social” (Flávia Piovesan, Proteção em jogo. Proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais,

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Importante ainda fazer referência à assinatura procedida pelo Brasil

quanto ao Protocolo de San Salvador, concluído em 17 de novembro de 1988 –

passando a vigorar, para o Brasil, em 16 de novembro de 1999 –, como instrumento

adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (designada de Pacto

de San José da Costa Rica), contendo, de igual modo, normas protetivas em matéria de

direitos econômicos, sociais e culturais.

No tocante a esse Protocolo, Piovesan profere:

Além do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, há que se mencionar o Protocolo de San Salvador, em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, que entrou em vigor em novembro de 1999. Tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, este tratado da OEA reforça os deveres jurídicos dos Estados-partes no tocante aos direitos sociais, que devem ser aplicados progressivamente, sem recuos e retrocessos, para que se alcance sua plena efetividade. O Protocolo de San Salvador estabelece um amplo rol de direitos econômicos, sociais e culturais, compreendendo o direito ao trabalho, direitos sindicais, direito à saúde, direito à previdência social, direito à educação, direito à cultura, [...] Este Protocolo acolhe (tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) a concepção de que cabe aos Estados investir o máximo dos recursos disponíveis para alcançar,

Revista Consultor Jurídico, 26 ago 2002. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/ static/text/10798,1#null>. Acesso em: 20 fev. 2012.

323 Em relação aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil e ao status constitucional que as suas disposições passam a ter, deve-se levar em conta que referidos tratados podem, em caso de conflito com uma norma constitucional menos benéfica, fazer com que não se utilize o dispositivo constitucional prejudicial, aplicando-se o texto do tratado que traz disposição sobre a mesma matéria, de forma mais favorável ao indivíduo. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros lecionam, no tocante à expressão “não excluem”, que consta do § 2.º do art. 5.º da Carta Constitucional brasileira, que não lhe “pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá. [...] Quanto aos demais tratados de Direito Internacional Convencional particular, aí, sim, pensamos que eles cedem perante a Constituição, mas têm valor supralegal, isto é, prevalecem sobre a lei interna, anterior e posterior. Ou seja, adoptamos a posição que se encontra expressamente consagrada nas Constituições francesa, holandesa e grega” (André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de direito internacional público, 3. ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 117 e 121). Por conseguinte, o status do produto normativo incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, originário de um tratado internacional de direitos humanos, não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Adverte-se, entretanto, que, na hipótese de um tratado enunciar normas tendentes a rebaixar um direito constitucional fundamental, deve prevalecer a cláusula prevista originalmente na Constituição Federal. Isto porque, como é lógico, “Se o artigo 60, § 4.º, da Constituição proíbe proposta de emenda constitucional tendente a abolir um direito petrificado em um tratado internacional, o mesmo artigo 60, § 4.º, proíbe a integração de um pacto internacional equivalente à emenda constitucional, se este pacto castrar o direito apresentado em uma cláusula pétrea já esculpida na Constituição” (Mesquita, Incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro...).

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progressivamente, a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Este Protocolo permite o recurso ao direito de petição a instâncias internacionais para a defesa de dois dos direitos nele previstos – o direito à educação e os direitos sindicais.324

Logo, como se vê, o Protocolo afirma novamente a tarefa imposta ao

Estado de investir a maior quantidade possível de recursos disponíveis, até atingir,

progressivamente – ou seja, sem retrocessos –, a integral efetividade dos direitos

econômicos, sociais e culturais. Referida tarefa representa um dever que, se

descumprido, acarreta violações aos direitos sociais, podendo resultar na

responsabilização do Estado perante o sistema internacional de proteção aos direitos

humanos.

Assim, o PIDESC e o Protocolo de San Salvador, uma vez ratificados

pelo Brasil – e, portanto, passando a ostentar, no ordenamento jurídico brasileiro, o

caráter constitucional dos tratados de direitos humanos –, cominam a obrigação de não

retroceder em termos de concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Desse modo, diante do que se expôs, pode-se concluir, e agora de

maneira completa, após a análise realizada neste item do capítulo, que o princípio da

vedação ao retrocesso social encontra assento constitucional no instituto do direito

adquirido social e, igualmente, nos dispositivos constitucionais que assinalam no

sentido da progressiva ampliação dos direitos fundamentais da sociedade (art. 5.º, § 2.º,

e art. 7.º, caput), visando à paulatina redução das desigualdades regionais e sociais e à

construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social (art. 3.º,

I e III, e art. 170, caput e VII e VIII), além de se fundar na própria concepção de Estado

Democrático e Social de Direito (sobre o qual já se falou no capítulo 1) e suas diretrizes

e valores essencialmente voltados ao plano social e, também, estribar-se nos tratados

internacionais supramencionados.

Por conseguinte, demonstrada a presença implícita do princípio da

vedação ao retrocesso social na Constituição Federal, importa examinar, em seguida, o

324 Piovesan, Proteção em jogo. Proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais.

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entendimento jurisprudencial das Cortes mais altas de Justiça do País a respeito da

aplicabilidade do princípio da vedação ao retrocesso social. O intento é apresentar,

ainda que de modo sucinto, como é feito o controle jurisdicional pelo Supremo Tribunal

Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça no que concerne à matéria do não retrocesso

social.

Ademais, se é possível defender que a cláusula do não retrocesso social

é mandamento constitucional dirigido, em um primeiro momento, ao legislador,

impedindo-o de instituir reduções no tocante aos direitos e garantias fundamentais,

também é válido asseverar que aludido princípio se dirige também ao julgador, que, em

momento ulterior, por intermédio do controle jurisdicional, ao analisar o caso que

perante ele se apresenta, deverá respeitar a comunidade de princípios, e, nesse sentido,

reconhecer, caso vislumbre rebaixamento no patamar mais alto de garantias dantes

conquistadas, que determinada norma fere o primado da vedação ao retrocesso social

(cf. item 3.4.3).325

2.2.5 Entendimento jurisprudencial a respeito do tema

No que diz respeito à jurisprudência existente sobre o princípio da

vedação ao retrocesso social, verifica-se que nas Cortes Superiores de Justiça do Brasil

as decisões fundadas no não retrocesso ainda representam um pequeno número,

325 Pensando de forma diversa, Miguel afirma que o princípio da vedação ao retrocesso social dirige-se

em especial ao julgador, e não ao legislador. Assim, segundo defende, “[...] Tal princípio não consistiria na impossibilidade de que o legislador reduza o grau de concretização infraconstitucional de direitos fundamentais, justamente porque esse tipo de aferição só pode ser realizado na experiência de uma situação concreta. De tal maneira, o intérprete/aplicador, ao deparar-se com um problema a respeito do qual lhe demandam solução jurisdicional, inspirado pela nossa construção histórica de direitos fundamentais, não deve meramente buscar um cotejo entre os dispositivos constitucionais para investigar se o legislador reduziu o grau de concretização de direito fundamental e, em caso de concluir por uma resposta positiva, decidir pela inconstitucionalidade da atuação legislativa com base no princípio da proibição de retrocesso social, como se tal resposta fosse prima facie aplicável para quaisquer casos que envolvessem matéria semelhante. Ao contrário, a noção de proibição de retrocesso social constitui especial mandamento ao juiz, a quem cabe realizar, com fundo na situação-problema e orientado pelas normas (sentidos) dos textos (entes) constitucionais e infraconstitucionais, uma atividade crítico-reflexiva a respeito de eventual necessidade de uma mudança no nosso romance em cadeia, em respeito à integridade do direito em uma dada cadeia comunicativa” (O direito como integridade comunicativa..., p. 189-190). Concorda-se com o autor, no entanto, quando ele afiança que o julgador não deve proceder a uma ponderação de princípios como se estivesse negociando bens, sendo que um seria preferível em relação ao outro, devendo decidir a questão com base no direito como integridade.

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resultado, talvez, da própria divergência da doutrina quanto ao fundamento, conteúdo e

alcance do princípio.326 Contudo, mesmo em pequena quantidade, as decisões que

envolvem o primado da proibição do retrocesso são importantes para o estudo que aqui

se propõe.

Adverte-se que o exame que se inicia neste tópico, conquanto seja

breve, é feito com base nas decisões do Supremo Tribunal Federal que tratam do tema,

justamente pela posição mais alta desta Corte de Justiça no País. Após, serão expostas

as decisões do Superior Tribunal de Justiça que abordam a matéria; proceder-se-á dessa

maneira, pois a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já servirá para espelhar o

entendimento jurisprudencial da matéria no âmbito inferior à Constituição, na

disposição hierárquica jurídica.327

De tal modo, do Supremo Tribunal Federal serão analisados, no

presente item, os seguintes julgados: ADI 1.946/DF, ADI 2.065-0/DF, ADI 3.104/DF,

ADI 3.105-8/DF, ADI 3.128-7/DF, ARE 639337/SP e ADC 29/DF.328 Na sequência, do

Superior Tribunal de Justiça serão comentados os arestos: REsp 567.873/MG, REsp

302.906/SP e AI nos EREsp 727.716/CE.329

Na ADI 1.946/DF, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por

unanimidade, decidiu “dar ao art. 14 da Emenda Constitucional n.º 20, de 15.12.1998,

interpretação conforme a Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença-

gestante, a que se refere o art. 7.º, inciso XVIII, da Constituição Federal”. Por não ter

sido revogado por norma constitucional derivada, o art. 7.º, inciso XVIII, da

Constituição Federal não poderia ser tornado insubsistente pela mera aplicação do art.

14 da Emenda Constitucional 20/1998, sob pena de ocorrer um retrocesso histórico em

326 Chegando à mesma conclusão está Palmeira Filho (O princípio da proibição de retrocesso social:

aplicabilidade e limites na reforma da aposentadoria por tempo de contribuição do Regime Geral de Previdência Social, p. 66).

327 Os precedentes encontrados no sítio eletrônico do STF e do STJ são resultado da busca pela expressão “retrocesso social”, por intermédio da ferramenta de pesquisa jurisprudencial disponibilizada no Portal das aludidas Cortes de Justiça brasileiras até a data de 06.09.2012.

328 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28 retrocesso+social%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 21 fev. 2012.

329 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre= retrocesso+social&b=ACOR>. Acesso em: 22 fev. 2012.

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matéria social-previdenciária, que não se pode presumir desejado; assim, resguardou-se

a possibilidade de o benefício em apreço ser concedido em valor acima do teto

previdenciário.

Nota-se, com base nessa decisão, que a Corte mais alta de Justiça do

País valeu-se do princípio da vedação ao retrocesso social quando enfrentou a questão

das alterações realizadas pelo advento de emenda constitucional, acabando por se

distanciar da prevalência do pensamento doutrinário defensor da ideia de que o primado

do não retrocesso social aplica-se tão somente às leis infraconstitucionais contrárias ao

texto constitucional. Também é importante registrar que o Supremo Tribunal Federal

não faz qualquer ressalva quanto à aplicação do aludido princípio, no caso de a

revogação alcançar o núcleo essencial de direito social já conquistado, como igualmente

concebe parte da doutrina. Veja-se que a decisão resguarda o direito social dantes

garantido no seu nível mais alto, reconhecendo-se a legitimidade de pagamento do

benefício previdenciário superior ao teto do Regime Geral de Previdência Social

(RGPS). Prevalece a disposição constitucional originária perante uma emenda

constitucional, que rebaixa ou suprime o direito já obtido. É essa linha de entendimento

que se defende no presente estudo, embora o princípio do não retrocesso social não

possa ser considerado absoluto.

Na análise da questão objeto da ADI 2.065/DF, o Pleno não conheceu a

ação direta, por maioria de votos, vencido o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, que

entendeu que se devia aplicar o princípio da vedação ao retrocesso social em relação à

Medida Provisória 1.911-8, que extinguiu órgãos de deliberação colegiada, revogando

dispositivos das Leis 8.212/1991 e 8.213/1991, que dispunham sobre o caráter

democrático da gestão da Seguridade Social. Nesse sentido, verifica-se que, com a

derrogação da mencionada lei, no que diz respeito aos arts. 6.º e 7.º da Lei 8.212 e arts.

7.º e 8.º da Lei 8.213, “altera-se a estrutura previdenciária baseada em órgãos de

deliberação colegiada em nível federal, estadual e municipal”, e, por conseguinte, “se

retira destas esferas as suas competências constitucionais de também participar e assim

influir na gestão da Seguridade Social e, especificamente, da Previdência Social”.

Embora vencido, o relator, no entanto, seguido pelos Ministros Marco Aurélio, Néri da

Silveira e Carlos Velloso, intentou conferir eficácia negativa mínima às normas

programáticas, asseverando que: “Inconstitucional é exatamente gerar omissão

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inconstitucional que já não existia”. E que se caracteriza “Mora inconstitucional quando

inexiste a lei integradora; quando esta já existe, não se pode voltar ao status quo anterior

de vazio normativo e de ineficácia consequente da norma constitucional”. Na esteira

dessas ideias quer-se “dizer que a implementação da Constituição não pode sofrer

retrocesso”.

Não obstante o Supremo Tribunal Federal, nesse julgado, entender pela

impossibilidade de o legislador infraconstitucional revogar o grau de materialização

alcançado pelos direitos fundamentais e, com isso, aderir ao entendimento de grande

parte da doutrina de que o primado do não retrocesso social só deve ser aplicado quando

há uma situação de retorno equivalente a uma omissão legislativa, um ponto merece

destaque nesse aresto, qual seja o de que é admissível a aplicação do princípio da

proibição de retrocesso a normas programáticas, filiando-se ao entendimento de que as

normas constitucionais têm plena aplicação e efetividade.

A ADI 3.104/DF, terceiro julgado aqui colacionado, de relatoria da

Ministra Cármen Lúcia, teve como resultado a sua improcedência por decisão da

maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal, vencidos os Ministros Carlos Britto,

Marco Aurélio e Celso de Mello. Nessa ação questionava-se a validade constitucional

do art. 2.º e da expressão “8.º” do art. 10, da Emenda Constitucional 41/2003, referente

ao regime de aposentadoria dos servidores públicos federais. Pleiteava-se que fosse

reconhecido aos servidores que tomaram posse até 16.12.1998 o direito, considerado

adquirido, à regra de transição prevista na Emenda Constitucional 20/98. Entendeu o

Supremo Tribunal Federal que apenas os servidores públicos que preenchiam os

requisitos instituídos na Emenda Constitucional 20/1998, durante a vigência das normas

por ela fixadas, poderiam reclamar a aplicação das normas nela contida, com alicerce no

art. 3.º da Emenda Constitucional 41/2003. Fundamentou a relatora, ao se pronunciar

acerca das sustentações orais realizadas pelos amici curiae, que haveria afronta ao

princípio da proibição de retrocesso social se tivesse sido extinta a possibilidade de

aposentadoria, este sim um direito social, não incidindo o acenado princípio quando se

tratar de “adaptação dos critérios de transição para o novo modelo previdenciário que se

veio a estabelecer”. Todavia, o Ministro Carlos Britto, no seu voto vencido, focaliza a

matéria do não retrocesso social, evocando as cláusulas pétreas e asseverando que um

dos seus sentidos é impedir o retrocesso, isto é, garantir o progresso. Ademais, “A nova

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Constituição traz uma conquista política, social, econômica e fraternal, de que natureza

for, e a petrealidade passa a operar como uma garantia do avanço, então obtido. Uma

interdição ao retrocesso”.

Prevaleceu, na hipótese, o entendimento reiterado do Tribunal de que

não há falar em direito adquirido a regime jurídico no tocante aos servidores públicos

estatutários. Cabe anotar também que há evidenciada na argumentação do Ministro

Carlos Britto, exatamente o que se almeja defender mais adiante, qual seja a tese de que

a proteção conferida pelo princípio da proibição do retrocesso social soma-se ao abrigo

que emana das “cláusulas pétreas” aumentando o grau de proteção que estas conferem

aos direitos e garantias fundamentais (item 3.4.2). Portanto, o referido primado não se

resume à dita proteção. Ante a relevância do ponto em que toca, referidos argumentos

serão analisados novamente no capítulo 3.

Na ADI 3.105-8/DF e na ADI 3.128-7/DF, julgadas conjuntamente pelo

Supremo Tribunal Federal, o pedido de declaração de inconstitucionalidade do caput do

art. 4.º da Emenda Constitucional 41/2003 foi julgado improcedente, por maioria de

votos. Nesses julgados discutia-se a cobrança de contribuição previdenciária dos

servidores públicos aposentados e dos pensionistas perpetrada pela Emenda

Constitucional 41/2003. Ao final das ações, a aludida cobrança foi conservada, porém

atribuiu-se tratamento isonômico para servidores aposentados e pensionistas anteriores e

posteriores à referida Emenda, bem como entre aposentados e pensionistas da União,

Estados, Distrito Federal e Municípios, uma vez que, consoante constou em trecho da

Ementa do referido aresto, “Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas

da União, de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios, de outro”, acarreta “Ofensa ao princípio constitucional da isonomia

tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade”. Entendeu-se,

portanto, ser devida a cobrança de contribuição previdenciária dos servidores públicos

federais aposentados.

É de sublinhar, contudo, que nesses julgados o Ministro Carlos Britto,

em seu voto vencido, assevera que as “cláusulas pétreas” desempenham o papel de

serem “impeditivas de retrocesso, ou seja, garantem o progresso. O progresso então

obtido é preciso ser salvaguardado”, pois não se pode negar que a Constituição de 1988

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171

tem o caráter de uma Constituição avançada, que fez do indivíduo alguém

hipossuficiente perante o Poder Público e o trabalhador hipossuficiente perante o

empregador. Nesse diapasão, uma emenda só será constitucional se robustecer esse teor

de proteção ao hipossuficiente. Isso quer dizer que “A petrealidade não chega ao ponto

de impedir que uma norma protetiva receba adensamento”. Por tudo, opina que a ação

deve ser julgada procedente.

Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello expõe acerca da matéria,

referindo-se, por conseguinte, ao princípio da proibição do retrocesso, “que, em tema de

direitos fundamentais de caráter social, e uma vez alcançado determinado nível de

concretização de tais prerrogativas (como estas reconhecidas e asseguradas, antes do

advento da Emenda Constitucional n.º 41/2003, aos inativos e aos pensionistas)”, tem o

condão de impedir “que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão

ou pela formação social em que ele vive”.

Conclui que, em realidade, “a cláusula que proíbe o retrocesso em

matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa

pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional”, fazendo com que se impeça,

consequentemente, que os patamares “de concretização dessas prerrogativas, uma vez

atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo

inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas

pelas instâncias governamentais”.

O ministro também cita a lição de Canotilho sobre o referido primado e

menciona o Acórdão 39/1984, do Tribunal Constitucional de Portugal, acerca do

princípio em tela e, por fim, faz referência à observação do Ministro Carlos Britto na

sessão de 26.05.2004, em que na oportunidade esse magistrado afirmou que as cláusulas

pétreas “na Constituição de 1988 não cumprem uma função conservadora, mas, sim,

impeditiva de retrocesso, ou seja, garantem o progresso”, e advertiu, a título de

conclusão, que “O progresso então obtido é preciso ser salvaguardado”.

Assim, Carlos Britto e Celso de Mello defendem a inconstitucionalidade

de emenda que venha a afrontar os valores albergados pela Constituição Federal e

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172

reduza o nível de direitos dantes obtido, sem instituir compensações, diminuindo o

patamar de concretização já alcançado pelos direitos sociais.

Dessa forma, no tocante a esses argumentos, o entendimento dos

ministros, nesses julgados, aproxima-se da concepção que se defende neste trabalho, ou

seja, a de que o princípio da vedação ao retrocesso social tem como um de seus

fundamentos constitucionais o direito adquirido social que robustece a proteção à norma

revogada, a qual agasalhava um grau mais elevado de direitos sociais, além de adensar a

proteção que as cláusulas pétreas conferem aos direitos e garantias fundamentais dos

servidores públicos. Aqui, também em virtude da importância de aludidos argumentos,

voltar-se-á a examiná-los novamente no próximo capítulo. E também será analisada a

matéria objeto de discussão das aludidas ações diretas de inconstitucionalidade.

No Agravo em Recurso Extraordinário 639.337/SP, o Supremo Tribunal

Federal obrigou o Município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino

infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis

legais, sob pena de multa diária por criança não atendida. Nesse aresto, deu-se

efetividade ao direito assegurado pelo próprio texto constitucional (Constituição

Federal, art. 208, IV, na redação dada pela Emenda Constitucional 53/2006) no que diz

respeito ao direito à educação, visto que este direito impõe um dever jurídico ao poder

público, especialmente ao município (Constituição Federal, art. 211, § 2.º), de executá-

lo, conferindo legitimidade constitucional ao Poder Judiciário para intervir em caso de

omissão estatal na implementação de políticas públicas previstas na Constituição.

O agravo improvido teve como relator o Ministro Celso de Mello, que,

acerca do primado da vedação ao retrocesso social aplicado ao caso, deixou claro, em

trecho da ementa do julgado, que:

O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma

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173

vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.

[...]

O caráter programático da regra inscrita no art. 208, IV, da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – impõe o reconhecimento de que as normas constitucionais veiculadoras de um programa de ação revestem-se de eficácia jurídica e dispõem de caráter cogente.

Nessa linha de entendimento, confere-se importância ao princípio do

não retrocesso social sempre que se intentar uma ofensa aos direitos fundamentais

agasalhados pela Constituição Federal. O Judiciário legitima-se a controlar as políticas

públicas sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos

político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer,

com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados

de estatura constitucional. Vê-se que ficou patente a ideia de que não se pode voltar

atrás para reduzir ou suprimir o patamar de direitos e garantias anteriormente

concretizado. Infere-se, também, que as normas programáticas merecem a proteção do

princípio da vedação ao retrocesso social.

Por sua vez, na Ação Direta de Constitucionalidade 29/DF, de relatoria

do Ministro Luiz Fux, questionou-se a constitucionalidade da conhecida “lei da ficha

limpa”, julgando-se conjuntamente as ações declaratórias de constitucionalidade e ação

direta de inconstitucionalidade, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por

maioria, julgar procedente a ação, contra os votos dos Senhores Ministros Luiz Fux

(relator), que a julgava parcialmente procedente, e Gilmar Mendes, Marco Aurélio,

Celso de Mello e Cezar Peluso (presidente), que a julgavam improcedente. Na

oportunidade, o Supremo Tribunal Federal deliberou que “A elegibilidade é a

adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do

processo eleitoral”, motivo pelo qual “a aplicação da Lei Complementar n.º 135/10 com

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174

a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo

art. 5.º, XXXVI, da Constituição”, mercê de inoportuna a “invocação de direito

adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic

stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado”;

tem-se “a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito)”.

Nesse passo, a presunção de inocência sagrada no art. 5.º, LVII, da Constituição Federal

deve ser tida “como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a

uma redução teleológica”, que torne a aproximar “o enunciado normativo da sua própria

literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que

podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade)”,

sob pena de fracassar “o propósito moralizante do art. 14, § 9.º, da Constituição

Federal”. Observa-se, de igual modo, que se entendeu que a Lei Complementar

135/2010 não infringe o primado “constitucional da vedação de retrocesso, posto não

vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso

básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de

inocência para o âmbito eleitoral”.

Por conseguinte, no tocante ao princípio do não retrocesso, referido

julgamento tratou da questão no âmbito infraconstitucional, ou seja, a relação vertical

entre a Constituição e a lei, em que não se reconheceu ofensa ao citado primado

(seguindo-se pensamento na linha do que propõe Felipe Derbli), pois este somente

estaria infringido se estivesse presente o consenso básico enraizado na comunidade

jurídica a respeito de determinada questão que se alterou, reduziu, suprimiu no plano

infraconstitucional (não se podendo dizer, na hipótese, que a presunção de inocência

estendeu-se para a seara eleitoral). O tribunal então afastou a afronta ao primado da

proibição de retrocesso social no caso.

Passando para a análise dos julgados do Superior Tribunal de Justiça,

no Recurso Especial 567.873/MG, cujo relator foi o Ministro Luiz Fux (à época em

que era ministro dessa Corte), o Tribunal apontou o primado da vedação ao

retrocesso social, ao considerar inconstitucional (e ilegal) a denegação do benefício

da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os portadores de

deficiência física, quando da aquisição de automóvel adaptado às suas condições e

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175

necessidades pessoais. Concedeu-se a isenção de IPI para que fosse possível a

compra de automóvel a fim de que terceiros pudessem conduzi-lo em prol da pessoa

deficiente. Questionava-se se o benefício de isenção fiscal na compra de veículos

poderia ser estendido a terceiros. O Superior Tribunal de Justiça considerou que

deve incidir a isenção de IPI à hipótese.

Nessa decisão, um dos fundamentos utilizados na argumentação do

julgado, entre outros, foi o de que o Código Tributário Nacional, por ter status de lei

complementar, não faz distinção no tocante aos casos de aplicabilidade da lei mais

benéfica ao contribuinte, o que afasta a interpretação literal do art. 1.º, § 1.º, da Lei

8.989/1995, incidindo a isenção de IPI com as alterações introduzidas pela Lei 10.754,

de 31 de outubro de 2003, aos fatos futuros e pretéritos por força do princípio da

retroatividade da lex mitior consagrado no art. 106 do CTN. De tal forma, a concessão

da isenção do IPI para efeitos de aquisição de veículos especiais por deficientes, ao

mesmo tempo em que é uma concretização dos direitos sociais, é também uma

materialização do princípio da isonomia na sua faceta substantiva, que veda não

somente atos discriminatórios em face dos deficientes, mas, ainda, e de igual modo,

determina a efetivação e, por conseguinte, proíbe que sejam suprimidas medidas que

garantam a sua inclusão no âmbito da sociedade e do mercado de trabalho,

caracterizando-se, dessa maneira, uma aplicação do princípio da vedação ao retrocesso

social.

No Recurso Especial 302.906/SP, de relatoria do Ministro Herman

Benjamin, o primado do não retrocesso é aplicado à questão ambiental. A Corte

decidiu pela não continuidade da obra de um prédio de oito andares em área

conhecida como City Lapa, bairro-jardim do Alto da Lapa, em São Paulo (SP). Por

três votos a dois, os ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça

entenderam que são válidas as limitações à construção de mais de dois pavimentos

no bairro. As normas para a ocupação da área foram instituídas pela Companhia City

há cerca de 70 anos.

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176

Consoante trecho da ementa do aludido aresto, verifica-se a aplicação

do não retrocesso na seara ambiental, com o fim de garantir os avanços já conquistados

sem que ocorra a sua diluição ou destruição, nos seguintes termos:

A Administração não fica refém dos acordos “egoísticos” firmados pelos loteadores, pois reserva para si um ius variandi, sob cuja égide as restrições urbanístico-ambientais podem ser ampliadas ou, excepcionalmente, afrouxadas.

[...]

O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições urbanístico-ambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico perfeito e o licenciamento do empreendimento, pressuposto geral que, no Direito Urbanístico, como no Direito Ambiental, é decorrência da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao princípio da não regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou negados pela geração atual ou pelas seguintes.

Nota-se que, conquanto inserido no contexto específico do Direito

Ambiental, a essência do princípio é a mesma, isto é, preservar o nível de avanços e

garantias já alcançado sem que sobrevenha minimização ou supressão desse patamar

conquistado.

Na AI nos EREsp 727.716/CE (Arguição de Inconstitucionalidade nos

Embargos de Divergência em Recurso Especial 2005/0098940-3) discutia-se a

preliminar de inconstitucionalidade do art. 16, § 2.º, da Lei 8.213, de 24 de julho de

1991, na redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11 de outubro de 1996,

convertida na Lei 9.528, de 10 de dezembro de 1997. Na hipótese, a discussão girava

em torno da possibilidade de concessão de pensão por morte a menor sob guarda

quando o óbito do segurado ocorre após a alteração que a Lei 9.528/1997 provocou no §

2.º do art. 16 da Lei 8.213/1991. Na redação atual, o menor sob guarda não é mais

equiparado a filho para efeito de dependência de segurado do Regime Geral de

Previdência Social (RGPS). Ao final, acolheu-se a preliminar de não conhecimento da

arguição de inconstitucionalidade, vencidos os Ministros Celso Limongi, Luiz Fux, João

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Otávio de Noronha e Castro Meira, sob o argumento de que não é cabível incidente de

inconstitucionalidade, no caso, porque não há inconstitucionalidade a ser declarada,

uma vez que a lei superveniente não negou o direito à equiparação, mas apenas omitiu-

se em prevê-lo e, além disso, tal declaração é desnecessária ao julgamento da causa,

considerando que eventual vazio normativo deve ser colmatado pelo próprio preceito

constitucional.

Relevante, no entanto, quanto à temática da vedação ao retrocesso, é o

voto vencido do relator, o Ministro Celso Limongi (desembargador convocado do

Tribunal de Justiça de São Paulo), em que se afastou a aplicação da norma

previdenciária por implicar retrocesso social e vilipêndio aos direitos assegurados pela

Lei Fundamental. Nesse sentido, o Ministro assim se posicionou:

Não possui eficácia o disposto no art. 16, § 2.º, da Lei 8.213/1991, na redação dada pela Medida Provisória 1.523/1996, convertida na Lei 9.528/1997, na parte em que suprimiu do menor sob guarda a condição de dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social, tendo em vista que afasta a proteção integral assegurada ao menor pela CF/88, além de caracterizar retrocesso social e violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como da isonomia, dada a semelhança entre a situação do menor sob guarda e do menor tutelado.

Segundo se pode depreender da argumentação do julgador, por

intermédio da proibição de retrocesso social impede-se que o legislador

infraconstitucional elimine ou reduza, total ou parcialmente, o nível de concretização

atingido por um direito fundamental social, sem acompanhamento de política

substitutiva ou equivalente, coadunando-se com o pensamento da doutrina majoritária a

respeito do assunto. Deve-se notar também que, para o magistrado, o princípio da

proibição do retrocesso social está relacionado ao princípio da dignidade da pessoa

humana. Contudo, conforme se entende nesta tese, além de o princípio ter uma

aplicação ampla e não se restringir à esfera da legislação infraconstitucional, ele

também não se funda diretamente na dignidade da pessoa humana.

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Pois bem, após exame da jurisprudência nas Cortes de Justiça mais altas

do País a respeito da aplicação dada ao princípio da vedação ao retrocesso social como

fecho das ideias que se quis expor neste segundo capítulo, importa, agora, partir para a

análise, a seguir, no terceiro e último capítulo do presente estudo, do aludido primado

aplicado ao regime jurídico dos servidores públicos.

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3

O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

E SUA APLICAÇÃO AO REGIME JURÍDICO

DO SERVIDOR PÚBLICO

SUMÁRIO: 3.1. Os Servidores Públicos: terminologia e classificação. 3.2. Regime estatutário ou institucional do servidor público. 3.3. Regime constitucional dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. 3.3.1. Alterações instituídas no tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário. 3.3.1.1. Garantia da estabilidade. 3.3.1.1.1. Efeitos decorrentes da estabilidade: direitos à reintegração, à disponibilidade, ao aproveitamento e à recondução. 3.3.1.2. Sistema remuneratório dos servidores públicos. 3.3.1.2.1. Normas constitucionais pertinentes à remuneração ou vencimento. 3.3.1.2.2. Regime de Subsídios. 3.3.1.2.3. Normas comuns à remuneração e aos subsídios. 3.3.1.3. Aposentadoria e proventos. 3.3.1.3.1. O regime previdenciário e as Emendas Constitucionais n.ºs 20/1998 e 41/2003e 47/2005. 3.3.1.3.2. Emenda Constitucional n.º 20 de 1998. 3.3.1.3.3. Emenda Constitucional n.º 41 de 2003. 3.3.1.3.4. Emenda Constitucional n.º 47 de 2005. 3.4. O princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico constitucional do servidor público ocupante de cargo efetivo. 3.4.1. O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos servidores públicos. 3.4.1.1. A tese dos princípios – os argumentos de princípio e os argumentos de política. 3.4.1.2. O emprego de argumentos de política pelo Supremo Tribunal Federal e a teoria da reserva do possível. 3.4.2. O papel das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. 3.4.3. O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos direitos e garantias dos servidores públicos. 3.4.4. O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do direito adquirido social 3.4.5. A vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica.

3.1 Os servidores públicos: terminologia e classificação

Primeiramente, antes de adentrar propriamente no tema referente ao

regime jurídico do servidor público estatutário, seus direitos e garantias, faz-se

necessário firmar o conceito que se tem de servidor público como premissa para o que

se deseja tratar e examinar daqui por diante.

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Conforme as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao fazer menção

à terminologia empregada pela Constituição de 1988, no tocante aos servidores

públicos, é possível notar que:

[...] “servidor público” é expressão empregada ora em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido menos amplo, que exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado. Nenhuma vez a Constituição utiliza o vocábulo funcionário, o que não impede seja este mantido na legislação ordinária330 (destaque da autora).

Afora essa diversidade no modo de empregar a nomenclatura “servidor

público” pela Lei Maior, ora com acepção lata, ora com significação restrita, a

expressão é igualmente utilizada para designar pessoas que exercem função pública sem

terem vínculo empregatício com o Poder Público, e que são denominadas, em sentido

bastante amplo, do mesmo modo, de servidores. Assim sendo, diante do grande número

de sentidos conferidos ao vocábulo “servidor”, surgiu a necessidade, no campo

doutrinário, de adotar um conceito que agasalhasse suas distintas significações, falando-

se, então, na terminologia “agentes públicos”.331

Em meio às diferentes classificações doutrinárias existentes, prefere-se

adotar a sistematização realizada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que, inspirado

na lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, adaptou os ensinamentos desse jurista

aos tempos atuais em virtude do advento da Carta de 1988.332 Nesse sentido, C. A.

Bandeira de Mello leciona que a expressão agente público “é a mais ampla que se pode

conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder

Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam

apenas ocasional ou episodicamente”.333

330 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 584. 331 Idem, ibidem, p. 585. 332 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 251. 333 Idem, ibidem, p. 248.

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Diante do exposto, podem-se dividir os agentes públicos em três grupos

ou categorias:

a) os agentes políticos, que “são os titulares dos cargos estruturais à

organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço

constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder”, e mantêm com o Estado

um vínculo de caráter político;334

b) os servidores estatais, que se subdividem em servidores públicos e

servidores das pessoas governamentais de Direito Privado: b1) os servidores públicos

(conceito que mais de perto interessa ao presente estudo) mantêm vínculo de natureza

profissional com o ente estatal e ocupam cargos ou empregos na Administração direta e

indireta (nas autarquias e fundações públicas); b2) os servidores das pessoas

governamentais de Direito Privado “são os empregados de empresas públicas,

sociedades de economia mista e fundações de Direito Privado instituídas pelo Poder

Público, os quais estarão todos, obrigatoriamente, sob regime trabalhista”;335 e

c) os particulares, que colaboram com o Poder Público que e são

aqueles exercentes de “função pública, ainda que às vezes apenas em caráter

episódico”.336

Com efeito, exposta a sistematização como um todo no tocante aos

agentes públicos, tratar-se-ão, a partir de agora, mais exatamente, dos servidores

públicos, sendo essencial estabelecer quais as suas espécies e qual delas será foco do

que se desenvolverá ao longo deste capítulo, como parte importante do presente estudo.

334 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 251-252. Esse autor enumera os agentes

políticos. Nas suas palavras: “[...] São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores” (Ibidem, p. 252).

335 Idem, ibidem, p. 253-255. 336 Nessa categoria, C. A. Bandeira de Mello cita: os requisitados para prestar serviço militar, os

jurados, aqueles que trabalham nas eleições públicas, os que prestam serviço militar obrigatório etc., exercendo um munus público; os que sponte propria assumem a gestão da coisa pública diante de situações excepcionais e quando houver necessidade pública em jogo; os contratados por locação civil de serviços; e os concessionários e permissionários de serviços públicos e também os delegados de função ou ofício público (Idem, p. 255-256).

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Nesse viés, consoante já se fez alusão, os servidores públicos podem ser

ocupantes de cargos ou de empregos públicos. Estes últimos (os servidores ocupantes de

empregos) mantêm com o Estado um vínculo empregatício sob regime da legislação

trabalhista, em razão de um dos seguintes motivos: a) foram “admitidos sob vínculo de

emprego para funções materiais subalternas”; b) o pessoal remanescente “do regime

anterior, no qual se admitia (ainda que muitas vezes inconstitucionalmente) amplamente

o regime de emprego”; e, também, c) os que foram “contratados, nos termos do art. 37,

IX, da Constituição, sob vínculo trabalhista, para atender a necessidade temporária de

excepcional interesse público”. Por sua vez, os servidores titulares de cargos públicos,

da Administração Direta (que eram chamados outrora, na vigência da Constituição

anterior, de funcionários públicos, como adverte C. A. Bandeira de Mello) e Indireta de

natureza de direito público (autarquias e fundações públicas), bem como do Judiciário e

da esfera administrativa do Legislativo, estão sujeitos ao regime estatutário estabelecido

em lei por cada uma das unidades da federação.337

Por conseguinte, são os servidores do Estado, titulares de cargo público,

que se submetem ao regime estatutário ou institucional, cuja natureza do vínculo com o

Poder Público é de caráter não contratual, que estão, portanto, sujeitos às mudanças

legislativas. Serão eles, seu regime jurídico, e a aplicação do princípio do não retrocesso

social aos seus direitos e garantias, o tema central do presente capítulo. Dessa forma,

importa expor esse regime jurídico que liga o servidor ao Estado, diante da relevância

que assume para a discussão da matéria.

3.2 Regime estatutário ou institucional do servidor público

A par da discussão que se travou no âmbito do Direito Administrativo a

respeito da natureza jurídica da relação estabelecida entre o Estado e o servidor público

– em que se têm de um canto a teoria bilateral (contratual) e, de outro, fazendo-lhe

oposição, a teoria unitária, comportando esta última uma subdivisão entre a teoria do ato

administrativo e a legal, ou do estatuto –, pode-se asseverar que, em tempos atuais, não

é o contrato nem o ato administrativo que formam e regem o vínculo que une o servidor

337 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 254-255.

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público ocupante de cargo ao ente estatal, mas sim o ato legislativo, em sentido formal,

bastando uma simples apreciação das Seções I e II, do Capítulo VII, do Título III, da

Constituição, que relacionam os princípios que se aplicam às funções e aos servidores

públicos, para que se constate tal afirmação.338

Com a promulgação da Constituição de 1988, travou-se uma discussão

para saber se o art. 39, caput, que determinou que se adotasse o “regime jurídico único”

para os servidores das Administrações Públicas Direta, autárquica e fundacional

(pública), de qualquer esfera de poder, reclamava o regime estatutário, ou se poderia

caber a opção pelo regime celetista. Em que pese o debate sobre a questão, a Lei Federal

8.112/1990, definiu que o regime jurídico dos servidores da União seria o estatutário. A

Corte Superior de Justiça do País também se manifestou nesse sentido. Portanto, mesmo

diante de algumas vozes em contrário, os servidores ocupantes de cargos efetivos

sujeitaram-se a um estatuto (lei) que regeria seu vínculo laborativo com o ente estatal.

338 Diogo de Figueiredo Moreira Neto explica o assunto da seguinte forma: “O conceito particularizado

de função pública, bem como os que lhe são correlatos, de funcionário público e de servidor público, se constrói sobre a natureza do vínculo estabelecido entre o Estado e os indivíduos que desempenham atividades estatais”. Nesse viés, observa que “O assunto se tem prestado a extensas discussões doutrinárias, que hoje parecem quase bizantinas, mas que, na perspectiva histórica do Direito Administrativo, valem para ilustrar como se processou a evolução conceptual do instituto”. Desse modo, “Destacam-se dois grandes grupos de conceitos sobre a natureza do vínculo típico do serviço público: o das teorias bilaterais e o das teorias unilaterais”. Esclarece que “As teorias bilaterais são as mais antigas, ligadas historicamente ao surgimento do liberalismo, fundando, por isso, a relação jurídica da função pública no contrato, que se firmaria entre o indivíduo e o Estado”. Aclara que, “De modo geral, todas essas teorias contratualistas tinham, como comum fundamento, um princípio inaplicável à teoria da função pública, o da autonomia da vontade, dificilmente conciliável com o princípio antípoda, da imperatividade, inerente ao Estado”. No tocante às teorias unilaterais da função pública, estas entendem que “apenas à luz do princípio da imperatividade teria fundamento a imposição de alterações unilaterais pelo Poder Público, como aquelas relativas à remuneração, às condições de serviço, às atribuições e, principalmente, às hipóteses de modificação e de extinção unilateral do vínculo, consentâneas com a indisponibilidade do interesse público”. Observa que “Essa concepção levou a doutrina a assentar o fundamento da relação jurídica da função pública apenas na vontade unilateral do Estado. Mas, ainda assim, como essa vontade tanto poderia ser emitida por ato legislativo quanto por ato administrativo, subdividiram-se duas correntes unilaterais: a do ato administrativo e a legal, ou do estatuto”. Aquela “funda no ato administrativo a criação, modificação e extinção da função pública, defendida por Otto Mayer e Marcelo Caetano”, e “concebe uma total submissão do servidor à Administração”. Já a teoria do estatuto “fundamenta na lei o vigamento da função pública e da relação entre administração e servidor, não sendo nem a vontade das partes, pelo contrato, nem a vontade da Administração, pelo ato administrativo, que estabelecem e regem o vínculo, mas a vontade da lei”. É essa teoria a prevalente nos Estados contemporâneos e a adotada pelo nosso ordenamento jurídico constitucional (Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial, 14. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 286-287).

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Se assim o é, pode-se dizer que o regime jurídico dos servidores

públicos constitui-se no conjunto de normas que disciplinam a relação do servidor com

o Estado, composto por preceitos legais referentes: ao acesso aos cargos públicos, à

investidura em cargo de provimento efetivo (por intermédio de prévia aprovação em

concurso público) e de provimento em comissão, às nomeações para funções de

confiança; aos direitos e aos deveres dos servidores; à promoção e seus atinentes

critérios; ao sistema remuneratório (composto pelo regime de subsídios ou

remuneração, abrangendo os vencimentos, com as especificações das vantagens de

ordem pecuniária, os salários e as reposições pecuniárias); às penalidades e sua

aplicação; ao processo administrativo; e, também, à aposentadoria.339

Assevera José dos Santos Carvalho Filho que, “para o regime

estatutário, há um regime constitucional superior, um regime legal contendo a disciplina

básica sobre a matéria e um regime administrativo de caráter organizacional”. No que

diz respeito às características do regime estatutário, explica que esse regime não pode

incluir normas que denunciem a existência da figura contratual, entendendo que o

regime estatutário tem característica dúplice. Nesse passo, destaca que a primeira

peculiaridade “é a da pluralidade normativa, indicando que os estatutos funcionais são

múltiplos”. Por conseguinte, “Cada pessoa da federação, desde que adote o regime

estatutário para os seus servidores, precisa ter a lei estatutária para que possa identificar

a disciplina da relação jurídica funcional entre as partes”. Dessa maneira, “Há, pois,

estatutos funcionais federal, estaduais, distrital e municipais, cada um deles autônomo

em relação aos demais, porquanto a autonomia dessas pessoas federativas implica,

necessariamente, o poder de organizar seus serviços e seus servidores”. Já o outro traço

peculiar “à natureza da relação jurídica estatutária” consiste no fato de que “Essa

relação não tem natureza contratual, ou seja, inexiste contrato entre o Poder Público e o

servidor estatutário”.340

Com isso, defende-se, portanto, que o liame institucional ou estatutário,

que vincula o servidor ocupante de cargo na Administração Direta, autárquica e

fundacional pública (e igualmente os servidores do Judiciário e os ocupantes de cargos 339 Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 35. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 419. 340 José dos Santos Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, 25. ed., São Paulo: Atlas, 2012,

p. 593.

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administrativos do Legislativo), é aquele que é passível de alteração, ou seja,

diferentemente do que sucede nas relações decorrentes do regime contratual (celetista),

o Estado (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), observadas as

determinações constitucionais que obstam certas mudanças, pode alterar unilateralmente

(por intermédio de lei) o regime jurídico de seus servidores, o que acarreta modificação

nas normas concernentes a esta espécie de agente público, não permanecendo as

mesmas disposições que vigoravam quando da sua investidura, podendo ser alteradas

dali por diante. De tal modo, entende-se que um benefício antes concedido poderá

posteriormente ser abolido, não havendo que se cogitar de afronta ao primado da

legalidade. Da mesma forma, um dever que dantes não era previsto pode passar a ser,

exigindo a sua observância, situação que não é passível de convivência com o regime

celetista, pois neste não se pode ordenar imperiosamente o que não foi acordado.

Nos dizeres de C. A. Bandeira de Mello, sobre esse regime é possível

verificar que, “no liame de função pública, composto sob a égide estatutária, o Estado,

ressalvadas as pertinentes disposições constitucionais impeditivas, deterá o poder de

alterar legislativamente o regime jurídico de seus servidores”, de forma que inexistirá “a

garantia de que continuarão sempre disciplinados pelas disposições vigentes quando de

seu ingresso. Então benefícios e vantagens, dantes previstos, podem ser ulteriormente

suprimidos”.341

Destarte, consoante diz Marçal Justen Filho, é característica própria do

regime jurídico aplicável ao cargo público a “mutabilidade por determinação unilateral

do Estado, que pode ampliar, alterar ou suprimir encargos, atribuições e benefícios, nos

limites constitucionalmente permitidos”.342

Afirma-se, nessa toada, por via de consequência, que “Não há direito

adquirido a um regime jurídico, o qual pode ser alterado na forma da Constituição

Federal”343, de acordo com “o interesse público, sem que o servidor a isso possa se

opor”344. Todavia, adverte Hely Lopes Meirelles que, “quando o servidor preencher

341 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 261. 342 Marçal Justen Filho, Curso de direito administrativo, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 702. 343 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 420. 344 Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 13. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 204.

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todas as exigências previstas no ordenamento jurídico vigente para a aquisição de um

direito, este se converte em direito adquirido e há de ser respeitado pela lei nova”.345

No entanto, não obstante o regime jurídico estatutário ser mutável, C.

A. Bandeira de Mello explana que “a Constituição e as leis outorgam aos servidores

públicos um conjunto de proteções e garantias tendo em vista assegurar-lhes condições

propícias a uma atuação imparcial, técnica, liberta de ingerências” que aqueles que

ocupam o Poder eventual e transitoriamente, ou seja, os agentes políticos, “poderiam

pretender impor-lhes para obtenção de benefícios pessoais ou sectários, de conveniência

da facção política dominante no momento”.346

Ainda, consoante os ensinamentos do autor:

Tal regime, atributivo de proteções peculiares aos providos em cargo público, almeja, para benefício de uma ação impessoal do Estado – o que é uma garantia para todos os administrados –, ensejar aos servidores condições propícias a um desempenho técnico isento, imparcial e obediente tão só a diretrizes político-administrativas inspiradas no interesse público, embargando, destarte, o perigo de que, por falta de segurança, os agentes administrativos possam ser manejados pelos transitórios governantes em proveito de objetivos pessoais, sectários ou político-partidários – que é, notoriamente, a inclinação habitual dos que ocupam a direção superior do País. A estabilidade para os concursados, após três anos de exercício, a reintegração (quando a demissão haja sido ilegal), a disponibilidade remunerada (no caso de extinção do cargo) e a peculiar aposentadoria que se lhes defere consistem em benefícios outorgados aos titulares dos cargos, mas não para regalo destes e sim para propiciar, em favor do interesse público e dos administrados, uma atuação impessoal do Poder Público.

É dizer: tais proteções representam, na esfera administrativa, função correspondente à das imunidades parlamentares na órbita legislativa e dos predicamentos da Magistratura no âmbito jurisdicional347 (destaques do autor).

Além do mais, “o regime do funcionalismo consagra restrições quanto

ao exercício de outras atividades, seja no próprio serviço público (regras de

345 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 420. 346 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 262. 347 Idem, ibidem, p. 266-267.

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acumulação), seja na iniciativa privada (exercício de atividade comercial)”, e, ainda,

“impõe um regime disciplinar específico”.348 Por isso, os direitos e garantias dos

servidores merecem ser defendidos “como instrumento de proteção do próprio Estado e

da sociedade”, na medida em que permitem aos servidores exercer suas funções com

maior autonomia, sem se sujeitarem a uma série de pressões políticas.349

Infere-se, portanto, que os direitos e garantias conferidos aos servidores

públicos sob a égide do regime jurídico estatutário são fundamentais para que estes

funcionários possam exercer e desempenhar suas atividades protegidos dos mandos e

desmandos dos governantes, dos abusos e violações que possam vir a sofrer, o que,

destaca-se, é essencial para a manifestação plena dos princípios da igualdade em relação

aos administrados, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência na prestação dos

serviços públicos. Sem esse plexo de direitos e garantias, referidos servidores estariam à

mercê dos interesses político-partidários, dos conchavos e conluios, e toda sorte de

arbitrariedades que ocorressem no âmbito da Administração.

Contudo, conforme se expôs, embora estejam previstos aos servidores

ocupantes de cargos públicos determinados direitos e garantias, compreende-se que não

há a sua inalterabilidade, uma vez que referidos direitos e garantias compõem o regime

estatutário (legal) e, de tal modo, sujeito a alterações. Daí afirmar que não há direito

adquirido a regime jurídico. A lei pode ser alterada, desde que observe os parâmetros

constitucionais. E, dessa maneira, benefícios, vantagens, direitos e obrigações dos

servidores, que dantes lhes foram estabelecidos, podem ser modificados (quanto a esse

ponto, ressalta-se, adiante será feita uma apreciação crítica sobre o tema – item 3.4.4).

Necessário esclarecer, todavia, que a Emenda Constitucional 19/1998

alterou o caput do art. 39 da Constituição Federal que falava em regime jurídico único

para os servidores da Administração Pública Direta, das autarquias e das fundações

públicas, fazendo prevalecer, com isso, a interpretação de que havia findado a

348 Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo, Nova Previdência do servidor público, 3.

ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010, p. 127. 349 Idem, ibidem, p. 127.

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obrigatoriedade do regime jurídico único (estatutário),350 dado que a emenda deixava de

fazer expressa menção a este regime na redação da cabeça do citado artigo. Por

conseguinte, defendeu-se que a Emenda Constitucional 19/1998 acabou por colocar fim

à obrigatoriedade de adoção do regime estatutário na Administração Direta, suas

autarquias e fundações públicas, deixando a critério da Administração, consoante suas

conveniências, a possibilidade de optar pelo regime contratual no âmbito desses entes

públicos, à exceção daquelas carreiras que desempenham atividades exclusivas de

Estado (cf. art. 247 da CF/1988). Tornou-se admissível, então, a contratação de novos

servidores por regimes diferentes.

Em que pese a discussão em torno da questão, o Supremo Tribunal

Federal reconheceu o vício formal que se deu na votação do art. 39 e decidiu, ao menos

em caráter liminar, com efeitos ex nunc – em agosto de 2007, depois de sete anos do

ingresso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2135/2000 pelos partidos

políticos que à época faziam parte da oposição (PT, PDT, PC do B e PSB) –, que o texto

original do art. 39, caput, da Constituição de 1988 deveria ser restabelecido, mantendo-

se, por conseguinte, o regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da

Administração Pública Direta, das autarquias e das fundações públicas.351 De tal modo,

embora ainda pendente de julgamento definitivo, a partir da publicação da decisão

350 Dentre os autores que defenderam esse pensamento estavam Diógenes Gasparini, Hely Lopes

Meirelles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Segundo o ensinamento de Meirelles a citada emenda “suprimiu a obrigatoriedade de um regime jurídico único para todos os servidores públicos”. Afirmava o autor, nesse sentido, que o “regime jurídico pode ser estatutário, celetista (o da CLT) e administrativo especial”; este para os servidores públicos contratados por tempo determinado, conforme previsto no art. 37, IX, da Constituição (Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 28. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 392-393).

351 O julgamento no Supremo Tribunal Federal restringiu-se ao aspecto formal, referente ao processo de votação da emenda, disciplinado pelo art. 60, § 2.º, da Constituição, segundo o qual a Lei Maior só pode ser alterada por 3/5 (três quintos) dos votos dos deputados e senadores, em duas votações separadas, em cada Casa do Congresso. É de ver que o texto proposto no substitutivo do relator da Proposta de Emenda à Constituição, Deputado Moreira Franco (PMDB-RJ), para o caput do art. 39 da CF/1988 foi objeto de destaque para votação em separado e não alcançou, no primeiro turno, os 308 votos para sua aprovação, o que acarretaria como efeito, consequentemente, a permanência do texto original da Constituição. Ao elaborar o texto enviado para votação em segundo turno, a comissão especial de redação da Câmara dos Deputados teria deslocado o § 2.º do art. 39, que havia sido aprovado, para o lugar do caput do art. 39, cuja proposta de alteração havia sido rejeitada no primeiro turno. Isto é, transformou-se um texto que tinha sido aprovado como § 2.º do art. 39, no caput do mesmo artigo, em uma fraude evidente ao processo de votação. Diante dessa manobra excluiu-se da Lei Fundamental o caput original do art. 39 da Constituição, sem que sua supressão tivesse sido aprovada. Eliminou-se do texto constitucional exatamente a disposição que tratava do regime jurídico único e dos planos de carreira.

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liminar, não deverá mais haver a contratação pelo regime de emprego (celetista) na

Administração Direta, autarquias e fundações públicas; apenas e exclusivamente o

vínculo que regerá os servidores ocupantes de cargo público será o estatutário ou

institucional.

Se assim o é, uma vez restabelecida pelo Supremo Tribunal Federal a

obrigatoriedade do regime jurídico único para a Administração Direta, autárquica e

fundacional pública, conforme já se destacou, a questão que se põe, e que será objeto

de análise e discussão, é a de saber se é admissível emenda à Constituição que reduza,

minimize, abrande, minore direitos e vantagens anteriormente concedidos aos

servidores, estipulados em um grau mais elevado, em um nível mais alto do que,

posteriormente, certas emendas passaram a instituir. Não se trata apenas de abordar a

questão sob o prisma do direito adquirido individual ou do próprio direito adquirido a

regime jurídico; muito mais do que isso, importa analisar a problemática sob o prisma

do direito adquirido social (dimensão social) e, ainda mais, sob a ótica da vedação ao

retrocesso social.

3.3 Regime constitucional dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos

3.3.1 Alterações instituídas no tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao

regime previdenciário

Diante das disposições constitucionais estabelecidas pelo constituinte

originário, referentes aos servidores ocupantes de cargos efetivos, previstas na

Constituição Federal de 1988, no Capítulo VII, da Administração Pública,352 e ante as

352 Dentre os direitos constitucionalmente previstos para os servidores ocupantes de cargos efetivos

estão vários direitos previstos aos trabalhadores (empregados) em geral que também se aplicam aos servidores. Assim, alguns direitos previstos no art. 7.º da CF, relativos aos trabalhadores da esfera privada e aos empregados públicos são garantidos, de igual maneira, aos servidores públicos ocupantes de cargos, quais sejam: salário mínimo (inc. IV); remuneração nunca inferior ao salário mínimo para quem recebe remuneração variável (inc. VII); décimo terceiro salário (inc. VIII); remuneração de trabalho noturno superior à do diurno (inc. IX); salário-família para os dependentes (inc. XII); duração do trabalho diário normal não superior a 8 horas e não superior a 44 horas semanais (inc. XIII); repouso semanal remunerado (inc. XV); remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à do normal (inc. XVI); férias anuais remuneradas com, pelo menos, 1/3 a mais do que a remuneração normal (inc. XVII); licença à gestante com duração de 120 dias (inc. XVIII; veja-se que a Administração Pública poderá prorrogar este prazo por 60 dias, com base

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alterações feitas nas aludidas disposições, pelo legislador reformador, por intermédio de

várias emendas, constrói-se este tópico com o objetivo de tratar dos direitos e garantias

fundamentais dos servidores públicos e as modificações sobrevindas ao seu regime

jurídico em decorrência da série de emendas constitucionais promulgadas no tocante à

matéria. Portanto, como ponto central dos comentários atinentes a ditas mudanças, serão

expostas as alterações instituídas pela competência reformadora no tocante à

estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário dos servidores

efetivos, procedendo-se a uma análise objetiva para posteriormente realizar uma

apreciação crítica a respeito do tema.

Adverte-se, no entanto, que, no que concerne às mudanças instituídas,

várias considerações já serão tecidas, ao longo da exposição do tema, acerca da

dimensão individual dos direitos e garantias dos servidores. Isto é, a partir do advento

das alterações constitucionais, algumas das mudanças acabaram ofendendo o âmbito

individual dos direitos e garantias fundamentais dos servidores públicos e, quanto a essa

esfera do servidor, pontualmente serão feitos comentários a respeito do assunto.

Contudo, no que diz respeito à dimensão social das modificações, a análise a ser

realizada ocupará a parte final do trabalho, a partir do item 3.4 do presente estudo.

3.3.1.1 Garantia da estabilidade

Em sua previsão original o caput do art. 41 da Constituição Federal

trazia a seguinte redação: “São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os

servidores nomeados em virtude de concurso público”.

Diante do advento da Emenda Constitucional 19/1998, o legislador

reformador manteve a exigência do concurso e do período de prova para o servidor

no art. 2.º da Lei 11. 770/2008); licença-paternidade, nos termos previstos em lei (inc. XIX); proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos previstos em lei (inc. XX); redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inc. XXII); proibição de diferença de remuneração, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, com ressalva da adoção de requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir (inc. XXX). Não houve alteração que tenha afetado os servidores públicos titulares de cargos.

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tornar-se estável, mas incluiu alterações na redação do art. 41, acrescentando novas

exigências para a aquisição de dita garantia.

No contexto pós-emenda, a redação atual do mencionado dispositivo

contém a seguinte determinação: “São estáveis após 3 (três) anos de efetivo exercício os

servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso

público”.

E o § 4.º do art. 41, que foi acrescentado pela dita emenda, dispõe que:

“Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de

desempenho por comissão instituída para essa finalidade”.

Desse modo, pela leitura do dispositivo em apreço, conjugando-se as

disposições contidas no caput e no citado parágrafo, pode-se conceituar o benefício da

estabilidade como a garantia prevista na Lei Fundamental que só diz respeito aos

servidores públicos, que tiveram aprovação em concurso público (com exceção dos

servidores beneficiados com a estabilidade excepcional),353 nomeados para ocuparem

cargos de provimento efetivo, aprovados em seu desempenho, depois de serem

avaliados por comissão instituída para tal finalidade, no exercício do cargo durante o

período de três anos. 354

No que diz respeito às hipóteses de perda da aludida garantia, a referida

emenda também estabeleceu modificações no art. 41, § 1.º, da Constituição Federal,

dispondo:

O servidor público estável só perderá o cargo:

I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado;

353 Sobre o tema Di Pietro leciona: “Excepcionalmente, a Constituição de 1988, a exemplo de

Constituições anteriores, conferiu estabilidade a servidores que não foram nomeados por concurso, desde que estivessem em exercício na data da promulgação da Constituição há pelo menos cinco anos continuados (art. 19 das Disposições Transitórias). O benefício somente alcançou os servidores públicos civis da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, da Administração Direta, autarquias e fundações públicas. Excluiu, portanto, os empregados das fundações de direito privado, empresas públicas e sociedades de economia mista. […]” (destaque da autora) (Direito administrativo, 26. ed., p. 654-655).

354 Sparapani, A estabilidade do servidor público civil após a Emenda Constitucional n.º 19/98, 2008, Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 131.

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II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;

III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.

As duas primeiras hipóteses já estavam previstas na redação original da

Constituição Federal (no § 1.º do art. 41). Veja-se que a novidade veio pela inserção da

avaliação periódica de desempenho do servidor público estável no inciso III do aludido

dispositivo. Embora referida avaliação conste pela primeira vez no texto constitucional,

após a Emenda Constitucional 19/1998, que a incluiu como uma das hipóteses de perda

do cargo, a avaliação esteve presente em legislações infraconstitucionais, fazendo parte

da experiência de determinados entes e órgãos da Administração Pública brasileira.355

Segundo a doutrina, a avaliação não constitui grande novidade, como foi alardeado na

época da “reforma administrativa”, pois se entendeu que a perda do cargo por

insuficiência de desempenho sempre existiu em virtude da previsão contida nos 355 A avaliação de desempenho dos servidores públicos surgiu no cenário brasileiro na década de 1930,

mais precisamente no ano de 1936 com a Lei do Reajustamento, e, ao regular promoções, tentou instituir a avaliação de desempenho dos servidores no âmbito federal. Entretanto, tal sistema não obteve os resultados esperados em virtude, especialmente, da falta de preparo dos responsáveis por procederem à avaliação. A Lei 3.780, de 10.07.1960, que implantou o Plano de Cargos na Administração Federal, tentou instituir, por meio de critérios de promoção por antiguidade e merecimento, a avaliação de desempenho. Esta era feita por meio de um “Boletim de Merecimento”, em que o superior imediato avaliava o seu subordinado semestralmente. No entanto, por falta de um compromisso sério com o método implantado, não foi possível constatar a realidade das avaliações, pois todos os avaliados tinham um resultado muito positivo, além da média que poderia ser efetivamente. Após um período de abandono do tema, os integrantes do Plano de Classificação de Cargos, tiveram o desenvolvimento em carreira previsto na Lei 5.645/1970, disciplinada por meio do Decreto 80.602/1977. Este Decreto regulamentou a progressão funcional e definiu o aumento por mérito (mudança de referência dentro da mesma classe). Posteriormente, veio o Decreto 84.669/1980, alterando o Decreto 80.602/1977, passando a definir a progressão horizontal (mudança ocorrida dentro da mesma classe) e vertical (mudança de classe). A progressão horizontal dependeria da avaliação de desempenho, baseada em fatores subjetivos, por parte do superior, e era expressa em conceitos que determinariam o interstício a ser cumprido pelo servidor. Este método também não obteve êxito, na medida em que se mostrou falho ao comparar funcionários entre si e distribuí-los em grupos de desempenho, tornando-se apenas um sistema formal a ser seguido. Em 1985 e também em 1993 com a Lei 8.627, ficou estabelecida a progressão automática em relação às referências atribuídas aos servidores, sem nenhuma vinculação à promoção por mérito (Luiz Alberto dos Santos e Regina Luna Santos Cardoso, Sistemas de remuneração baseada em desempenho no Governo Federal do Brasil: o caso dos gestores governamentais, VII Congreso Internacional Del CLAD sobre la Reforma Del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11, Oct. 2002. Disponível em <http//:unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/CLAD/clad0044001.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2012). Agora com a reforma de 1998, estabelece a Lei Fundamental que a União, os Estados e o Distrito Federal deverão manter escolas de governo com a finalidade de promover a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, sendo que a promoção na carreira tem por um dos requisitos a participação em tais cursos (§ 2.º do art. 39). Com isto, exige a criação de sistemas para avaliação e análise do mérito do serviço desempenhado pelos servidores.

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estatutos, de que o servidor comprovadamente desidioso no cumprimento de suas

funções poderia perder o cargo, tratando-se a hipótese, por conseguinte, como se a

desídia e a ineficiência fossem equivalentes.356

Todavia, com o devido respeito à doutrina que assim se posiciona, não

se pode entender a desídia como um conceito equivalente à ineficiência. O próprio

significado gramatical das palavras chama a atenção para o fato de que se trata de

termos distintos. Desídia significa ociosidade, desleixo, preguiça, inércia; já ineficiência

quer dizer defeito de quem não produz um resultado esperado, desejado ou suficiente.

Com efeito, um servidor pode ser zeloso no cumprimento de suas funções, pode ser

assíduo, responsável, pontual, atuante e, mesmo assim, não produzir o que dele se

espera, e, por conseguinte, ele não será considerado desidioso, mas sim ineficiente.

Portanto, a previsão contida no inciso III do § 1.º do art. 41 da Magna Carta, em

verdade, não condiz com a previsão infraconstitucional que prevê a hipótese de perda do

cargo pelo servidor comprovadamente desidioso; em verdade, constituem hipóteses

diversas.

Sobre a questão Romeu Felipe Bacellar Filho ensina que, quando o

servidor for estável e o seu desempenho for reputado insuficiente, poderá ocorrer a

perda do seu cargo e da sua estabilidade já conquistada, e isto será uma medida

punitiva, e não somente um meio para avaliar a eficiência da atividade que desenvolve

356 Nesse passo, afirma Ana Luísa Celino Coutinho que não havia necessidade de a EC 19/1998 incluí-

la no rol do citado parágrafo do art. 41, uma vez que “O procedimento desidioso por parte do servidor já estava listado pela Lei 8.112/1990 como comportamento ensejador de demissão, desde que fosse apurado em processo administrativo e que fosse garantida ao servidor a ampla defesa” (Ana Luísa Celino Coutinho, Servidor público: reforma administrativa, estabilidade, empregado público, direito adquirido, 1. ed. (2003), 4.ª tiragem, Curitiba: Juruá, 2006, p. 132). É o que defende igualmente Lúcia Valle Figueiredo, no mesmo sentido, afirmando que, mesmo antes do advento da EC 19/1998, a legislação infraconstitucional implicitamente admitia a avaliação periódica de desempenho, “na medida em que, mediante processo administrativo disciplinar, o servidor desidioso poderia perder o cargo”. Entretanto, faz a ressalva de que, “[...] certamente, a obrigatoriedade da avaliação fará com que haja permanente controle sobre o cumprimento dos deveres do cargo” (Lúcia Valle Figueiredo, Curso de direito administrativo, 8. ed. rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional 52/2006, São Paulo: Malheiros, 2006, p. 603). Márcio Cammarosano, em comentário sobre a inclusão da avaliação de desempenho no precitado dispositivo constitucional pela “reforma administrativa”, destaca que a possibilidade de o servidor estável perder o cargo por insuficiência de desempenho sempre existiu em virtude da previsão contida nos Estatutos, que é a perda do cargo pelo servidor comprovadamente ineficiente ou desidioso no cumprimento de suas funções (Márcio Cammarosano, Servidor público: um enfoque atual, Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, n. 7, ano XXI, p. 763, jul. 2005).

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194

no serviço público. Nesse caso, considera-se que o servidor estável é acusado, uma vez

que a Administração lhe imputará uma acusação de ineficiência. No que diz respeito ao

servidor em estágio probatório (que deverá passar por uma avaliação especial de

desempenho, após a Emenda Constitucional 19/1998), no entanto, a configuração de

desempenho precário não terá a natureza de punição, o que não descarta, contudo, o

litígio.357 Não obstante, sendo medida punitiva para o servidor estável, a avaliação

periódica representa uma diminuição na força protetiva da estabilidade.

Ainda, o servidor público poderá perder a estabilidade pelo

descumprimento do limite de despesa com o pessoal previsto no art. 169, § 4.º, da

Constituição Federal. Essa alteração trazida com a Emenda Constitucional 19/1998

estabeleceu outra nova hipótese de perda do cargo para quem já é estabilizado, e

quebrou a sistemática constitucional tradicional, por dois motivos: primeiro, por estar

fora das hipóteses de perda do cargo previstas no art. 41, § 1.º, da Constituição Federal;

e, segundo, por determinar (com a insuficiência de desempenho) situação de

desinvestidura do cargo diversa daquelas instituídas nos incisos I e II do citado

dispositivo constitucional – e que antes da Emenda Constitucional 19/1998 eram

previstas conjuntamente no mesmo parágrafo (quais sejam: perda do cargo mediante

sentença judicial transitada em julgado e demissão decidida em virtude de processo

administrativo disciplinar, consoante já se disse).358

Para atingir os limites estipulados nos §§ 3.º e 4.º do art. 169 da

Constituição Federal, tem-se que diminuir os cargos em comissão ou funções de

confiança (em pelo menos 20%). Se assim procedendo não se atingir o limite previsto,

deverão ser exonerados os não estáveis (servidores em estágio probatório e os que estão

fora da estabilidade excepcional concedida pelo art. 19 do ADCT); e, se esgotadas as

exonerações anteriores sem terem sido suficientes, o estável poderá ser desligado do seu

cargo.

357 Quando a Administração reputa insuficiente o desempenho do servidor estável, o procedimento de

avaliação periódica, segundo Bacellar, “configura espécie de processo administrativo disciplinar porque, a partir do momento em que a Administração imputa ao servidor uma conduta ineficiente, está procedendo a uma acusação”. Aqui, o servidor é considerado acusado (Romeu Felipe Bacellar Filho, Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar, São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 110-111).

358 Sparapani, A estabilidade do servidor público civil após a Emenda Constitucional n.º 19/98, p. 169.

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195

Veja-se que os §§ 5.º e 6.º do citado artigo ainda determinam que o

servidor que perder o cargo na forma do § 4.º (perda do cargo pelo servidor estável) fará

jus à indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço. E o

cargo objeto da redução de pessoal será considerado extinto, vedada a criação de cargo,

emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos.

Quanto a esse ponto, C. A. Bandeira de Mello anota que “A

determinação da perda dos cargos por parte dos servidores estáveis, com indenização

correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço”, é, a toda evidência,

“flagrantemente inconstitucional, por superar os limites do poder de emenda”, pois “Tal

perda só poderia ocorrer com a extinção do cargo e colocação de seus ocupantes em

disponibilidade remunerada, como previsto na Constituição (art. 41, § 3.º)”. Nesse viés,

“Salta aos olhos que uma simples emenda não poderia elidir o direito adquirido dos

servidores estáveis a somente serem desligados do cargo em razão de faltas funcionais

para as quais fosse prevista pena de demissão”, tudo embasado “em regular processo

administrativo ou judicial, consoante estabelecido no art. 41, antes de ser conspurcado

pelo Emendão”.359

Com efeito, elencando todas as hipóteses de perda da estabilidade, após

a Emenda Constitucional 19/1998, tem-se que o desligamento do cargo poderá

acontecer em virtude de: (1) sentença judicial com trânsito em julgado (art. 41, § 1.º, I);

(2) mediante decisão em processo administrativo em que seja assegurada ampla defesa

(art. 41, § 1.º, II);360 (3) mediante desempenho insatisfatório apurado em procedimento

de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada

ampla defesa (art. 41, § 1.º, III); e (4) a possibilidade de perda do cargo pelo servidor

estável prevista no art. 169 da Constituição, que é a hipótese de excesso de despesas

com pessoal.361

359 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 273-274. 360 Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari conceituam processo administrativo como “uma série de atos,

lógica e juridicamente concatenados, dispostos com o propósito de ensejar a manifestação de vontade da Administração” (Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, Processo administrativo, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 25).

361 Sparapani, A estabilidade do servidor público civil após a Emenda Constitucional n.º 19/98, p. 146.

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Pois bem, considerando essas hipóteses acima e o posicionamento de C.

A. Bandeira de Mello, é possível fazer a seguinte afirmação: as situações (3) e (4) ferem

direito adquirido individual do servidor, pois a Administração estaria sujeitando-o a

novo regime jurídico.362 Assim ocorre porque, no tocante aos servidores públicos

efetivos e estáveis, a perda do seu cargo somente poderia se dar pelas hipóteses

previstas originariamente na Carta de 1988, quais sejam: mediante decisão proferida em

sentença judicial com trânsito em julgado ou em processo administrativo em que seja

assegurada ampla defesa, não se aplicando nem a hipótese da demissão por excesso de

despesas com pessoal, nem o critério da insuficiência de desempenho.

E isso deve valer mesmo para aqueles que entendem que o

procedimento de avaliação de desempenho é espécie de processo administrativo, à qual

o servidor sempre esteve sujeito como hipótese de perda do cargo (por intermédio de

decisão em que se apurou a desídia no processo administrativo), pois, uma vez que a

Carta prevê a hipótese da avaliação no inciso III do § 1.º do art. 41, separada da hipótese

do inciso II (decisão em processo administrativo), o novo critério para perda da garantia

de permanência no cargo constitui hipótese específica.

Além do mais, referidas hipóteses (3) e (4) desrespeitam o nível mais

alto de direitos e garantias conquistados pela comunidade de servidores públicos,

acabando por ofenderem o princípio do não retrocesso social. Na medida em que o

direito à estabilidade é um direito fundamental que não envolve uma prestação estatal,

quando o legislador reformador estabelece novas hipóteses de perda do cargo, institui

um retrocesso em comparação ao grau mais elevado originariamente previsto. Fere

desse modo o primado da vedação ao retrocesso social e o direito adquirido social (cf.

adiante item 3.4.5).

362 Nesse ponto, vale advertir, com Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, que “a desconsideração

ao direito adquirido implica fragilizar o teor protetivo do princípio da segurança, princípio que, como sabido, confere às relações jurídicas um estado de firmeza ou de estabilidade perante o Direito futuro”. Com efeito, “Hoje é a estabilidade dos funcionários que se lesa por efeito de emenda, amanhã serão as prerrogativas dos membros da Magistratura e do Ministério Público”, e assim, paulatinamente, “de emenda em emenda, o princípio da segurança jurídica perderá de vista todo e qualquer direito adquirido” (Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, Direito adquirido contra as emendas constitucionais, in: Celso Antônio Bandeira de Mello (Org.), Direito administrativo e constitucional: estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 159).

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Em síntese, a Emenda Constitucional 19/1998 trouxe várias alterações

no intento de modificar o instituto da estabilidade da seguinte forma:

a) Em vez de dois anos, passou a exigir três anos de efetivo exercício

para ser estável (caput do art. 41);363

b) Determinou expressamente no art. 41 que a estabilidade só é garantia

dos servidores nomeados para cargo em provimento efetivo;364

c) Previu no § 4.º do art. 41 que para adquirir a estabilidade o servidor

terá que ser aprovado em avaliação especial de desempenho, devendo ser avaliado por

uma comissão para tanto instituída;365

d) Estabeleceu como hipótese de perda do cargo pelo servidor estável a

insuficiência de desempenho, caso haja reprovação depois de ter sido avaliado

periodicamente, conforme disposto no art. 41, § 1.º, inciso III, sendo assegurada ampla

defesa;366

363 No que diz respeito aos servidores que estavam cumprindo o estágio probatório quando a EC 19 foi

promulgada, o próprio legislador deu a solução para a hipótese, por intermédio da previsão contida no dispositivo do art. 28 da Emenda, assegurando o prazo de dois anos de efetivo exercício para aquisição da estabilidade aos servidores que estivessem em estágio probatório. Para o servidor público que se encontrava, por ocasião da promulgação da citada emenda, com dois ou mais anos de efetivo exercício no serviço público, portanto já tendo transposto o período do estágio probatório, foi conferido o direito à estabilidade.

364 Tal previsão não deixou margem à interpretação de que outros servidores possam beneficiar-se da estabilidade, como os servidores estatais ocupantes de emprego público, contratados pelo regime celetista e que igualmente ingressam nos quadros da Administração por meio de concurso público.

365 Em relação à avaliação de desempenho, do mesmo modo que o constituinte reformador previu a aplicabilidade do prazo de dois anos aos servidores em estágio probatório, também explicitou a obrigatoriedade de avaliação instituída pela Emenda para os estágios que estivessem em andamento (art. 28 da Emenda 19, parte final).

366 A Lei 11.784, de 22 de setembro de 2008, trata, entre outras matérias, da avaliação de desempenho dos servidores públicos no art. 140 e ss.:

“Art. 140. Fica instituída sistemática para avaliação de desempenho dos servidores de cargos de provimento efetivo e dos ocupantes dos cargos de provimento em comissão da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, com os seguintes objetivos:

I – promover a melhoria da qualificação dos serviços públicos; e

II – subsidiar a política de gestão de pessoas, principalmente quanto à capacitação, desenvolvimento no cargo ou na carreira, remuneração e movimentação de pessoal”.

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198

e) Dispôs sobre outra hipótese de perda do cargo por quem é estável, ou

seja, aquela que ocorre quando não é respeitado o limite com gasto de pessoal previsto

no § 4.º do art. 169;

f) Acrescentou o art. 247 na Carta Magna, o qual determina que devem

ser estabelecidos por lei critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo

servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo,

desenvolva atividades exclusivas de Estado.367

Assim, adquirida a estabilidade pelo ocupante de cargo público efetivo,

acenada garantia produz determinados efeitos que merecem ser analisados.

3.3.1.1.1 Efeitos decorrentes da estabilidade: direitos à reintegração,

à disponibilidade, ao aproveitamento e à recondução

Referidos direitos estão previstos nos §§ 2.º e 3.º do art. 41 da

Constituição Federal.368

O direito à reintegração é aquele que permite ao servidor, que foi

demitido pela Administração, reingressar no mesmo cargo, quando sua demissão for

reconhecida como ilegal, seja por sentença emanada pelo Judiciário, seja por decisão

administrativa, assegurando-se-lhe “o pagamento integral dos vencimentos e vantagens

do tempo em que esteve afastado”.369

367 As leis são as previstas no inciso III do § 1.º do art. 41 e no § 7.º do art. 169. 368 A redação dos parágrafos mencionados, após a EC 19/1998 é a seguinte:

“Art. 41. [...]

§ 2.º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço.

§ 3.º Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo”.

369 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 523.

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199

Nesse caso, diante da determinação do § 2.º do art. 41 da Constituição

Federal, de acordo com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 19/1998,

se outro servidor está ocupando o cargo e também é estável, deve ser reconduzido ao

cargo de origem, sem direito à indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em

disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço. E se o servidor não

for estável, como muito bem observado por H. L. Meirelles, “a solução de sua situação

funcional fica a critério da Administração”.370

A disponibilidade é o direito que assiste ao servidor estável de receber

remuneração proporcional ao tempo de serviço, quando não esteja no exercício de suas

funções, sempre que se estiver diante da hipótese de extinção do cargo ou da declaração

da sua desnecessidade. E, como ressalta C. A. Bandeira de Mello, o servidor também

ficará em disponibilidade pelo fato de o cargo ser ocupado por outrem em decorrência

de reintegração. Em todo caso, isso ocorre sem que o desalojado provenha de cargo

anterior ao qual possa ser reconduzido e sem que exista outro da mesma natureza para

alocá-lo.371

Um ponto que gerou controvérsia foi a questão da remuneração do

servidor público posto em disponibilidade com o advento da Lei Fundamental de 1988

em sua redação original. O texto da Carta de 1988 não foi claro sobre qual deveria ser a

solução adotada em relação ao tema. Assim, dispunha o § 3.º do art. 41 que: “Extinto o

cargo ou declarada sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade

remunerada, até seu adequado aproveitamento em outro cargo”. Com base nessa

disposição, houve divisão doutrinária a respeito do assunto. Adilson Abreu Dallari, que

por sua vez citava Di Pietro372 e C. A. Bandeira de Mello posicionavam-se no sentido de

que o servidor em disponibilidade deveria receber proventos proporcionais, baseados

em uma interpretação sistemática da Constituição. Por sua vez, Lúcia Valle Figueiredo

colocava-se em sentido oposto, defendendo os proventos integrais, também com base 370 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 523. 371 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 296. 372 No tocante ao tema, em comentário à redação original referente à disponibilidade do servidor

estável, a autora diz que se pode inferir da norma do art. 40, § 3.º, que a remuneração é proporcional ao tempo de serviço, “pois esse dispositivo manda contar o tempo de serviço público federal, estadual ou municipal para fins de aposentadoria e disponibilidade, o que não seria cabível, em relação a esta última, se a remuneração fosse sempre integral” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 4. ed., São Paulo: Atlas, 1994, p. 378).

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200

em interpretação sistemática da Lei Maior. Todavia, com o novo texto, determinado

pela Emenda Constitucional 19/1998, essa controvérsia doutrinária perdeu sentido, uma

vez que o texto agora diz expressamente que os proventos deverão ser proporcionais ao

tempo de serviço.373-374

O aproveitamento, segundo Di Pietro, é “o reingresso, no serviço

público, do funcionário em disponibilidade, quando haja cargo vago de natureza e

vencimento compatíveis com o anteriormente ocupado”.375

Como lembra Tercio Sampaio Ferraz Junior, nas Cartas de 1946 e 1967

constava a expressão “obrigatório aproveitamento”. Ressalta que “Na Emenda n.º 1, de

69, nada se dizia”. E adverte que, “na atual, fala-se em ‘até o seu adequado

aproveitamento em outro cargo’”.376

Segundo o jurista, no que diz respeito a essa redação da Carta de 1988,

“A palavra ‘até’ não se limita no tempo. Significa em algum momento no futuro. O que

determina este tempo é a possibilidade de ‘adequado aproveitamento’”. Com efeito,

“‘Adequado’ significa aproveitamento conforme as qualificações do servidor – sentido

373 Lúcia Valle Figueiredo, Curso de direito administrativo, p. 633-635. Figueiredo explica o seu

posicionamento, que, fundado exatamente na interpretação sistemática da Carta de 1988, lhe levava a posicionar-se em sentido oposto. Defende a jurista que a disponibilidade gera um desligamento provisório do servidor, “(ou pode ser provisório por força do § 3.º do art. 41 da Constituição Federal)”. Daí dizer a autora que, de acordo com a previsão que o citado parágrafo agasalhava, “[...] parecia-nos indubitável que devesse o servidor continuar recebendo a mesma quantia percebida na ativa (chame-se de vencimento, provento ou remuneração)”. Robustece seu argumento tratando da disponibilidade dos magistrados prevista no inciso VIII do art. 93 da CF, esta, sim, segundo Figueiredo, deve gerar o recebimento de proventos proporcionais, uma vez que se submete a outro regime jurídico, já que tem a natureza de pena. E, neste caso, “[...] não seria admissível penalizar-se o magistrado com a disponibilidade e continuar a percepção de vencimentos integrais”.

374 Entretanto, entendendo-se, no presente trabalho, com os doutrinadores que assim defendiam, que os proventos eram proporcionais ao tempo de serviço para quem estava em disponibilidade, aqui não se verifica afronta ao primado da vedação ao retrocesso social pela determinação da EC 19/1998 em estabelecer os proventos proporcionais para a hipótese, dado que aí não houve rebaixamento do nível superior que dantes se tinha quanto à remuneração decorrente da disponibilidade.

375 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 658. 376 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Interpretação e estudos da Constituição de 1988: aplicabilidade;

congelamento, coisa julgada fiscal, capacidade contributiva, ICMS, empresa brasileira, poder constituinte estadual, medidas provisórias, justiça e segurança, servidor público, São Paulo: Atlas, 1990, p. 109.

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subjetivo – mas também conforme as necessidades da Administração – sentido

objetivo”.377

E, por fim, cabe falar da recondução, que nas palavras de C. A.

Bandeira de Mello significa “o retorno do servidor estável ao cargo que dantes

titularizava”, seja “por ter sido inabilitado no estágio probatório relativo a outro cargo

para o qual subsequentemente fora nomeado”, seja “por haver sido desalojado dele em

decorrência de reintegração do precedente ocupante”.378

3.3.1.2 Sistema remuneratório dos servidores públicos

A Emenda Constitucional 19/1998 introduziu mudanças expressivas no

sistema remuneratório dos servidores públicos. Afora ter eliminado do art. 39 o

princípio da isonomia de vencimentos, instituiu em paralelo ao regime de remuneração

(ou vencimentos) o regime de subsídios para certos grupos de agentes públicos.

Entretanto, é válido destacar que:

A Constituição de 1988, seguindo a tradição das Constituições anteriores, fala ora em remuneração, ora em vencimentos para referir-se à remuneração paga aos servidores públicos pelas entidades da Administração Pública direta ou indireta. Por vezes, o mesmo dispositivo usa os dois vocábulos, a exemplo do que ocorre no artigo 37, incisos XIII e XV. A legislação infraconstitucional incumbe-se de dar o conceito legal.

A regra que tem prevalecido, em todos os níveis de governo, é a de que os estipêndios dos servidores públicos compõem-se de uma parte fixa, representada pelo padrão fixado em lei, e uma parte que varia de um servidor para outro, em função de condições especiais de prestação do serviço, em razão do tempo de serviço e outras circunstâncias previstas nos estatutos funcionais e que são denominadas, genericamente, de vantagens pecuniárias; elas

377 Ferraz Junior, Interpretação e estudos da Constituição de 1988..., p. 109. O autor, dando

continuidade ao seu ensinamento sobre o tema, explica: “Não se pode, assim, aproveitar o servidor para um cargo inadequado às suas qualificações (um médico tornar-se enfermeiro-chefe), mas também não exige que a administração se transforme e se altere apenas para reaproveitar o servidor (criar-se um cargo de médico só para reaproveitar o médico em disponibilidade). No primeiro caso teríamos uma inadequação subjetiva. No segundo, uma inadequação objetiva. [...]” (Idem, ibidem, p. 109).

378 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 317.

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compreendem, basicamente, adicionais, gratificações e verbas indenizatórias.

A mesma sistemática tem sido adotada para os membros da Magistratura, Ministério Público e Tribunal de Contas. Para o Chefe do Executivo e para os Parlamentares, a Constituição falava em remuneração nos artigos 27, §§ 1.º e 2.º, 29, incisos V, VI e VII, e 49, incisos VII e VIII.379

A Constituição de 1988, em seu texto original, nada dispunha sobre o

regime de subsídios em relação aos agentes públicos, seja no tocante aos agentes

políticos, seja no que diz respeito aos servidores públicos. Deveras, a Constituição de

1988 não adotou a retribuição por subsídio para qualquer agente público. No entanto, a

Emenda Constitucional 19 estabeleceu referido regime para algumas categorias de

agentes públicos. Dessa forma, criou-se uma coexistência de sistemas remuneratórios no

que concerne aos servidores: o habitual, em que a remuneração é constituída por uma

parte fixa e uma variável, formada por vantagens pecuniárias380 de variada natureza, e o

novel sistema, em que o pagamento corresponde ao subsídio, composto por parcela

única, que afasta a possibilidade de percepção de vantagens pecuniárias variáveis. O

primeiro sistema é denominado, pela Emenda, de remuneração ou vencimento, e o

segundo, de subsídio.381

379 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 606. 380 Segundo define Meirelles, “Vantagens pecuniárias são acréscimos ao vencimento do servidor,

concedidas a título definitivo ou transitório, pela decorrência do tempo de serviço (ex facto temporis), ou pelo desempenho de funções especiais (ex facto officii) ou em razão das condições anormais em que se realiza o serviço (propter laborem), ou, finalmente, em razão de condições pessoais do servidor (propter personam). As duas primeiras espécies constituem os adicionais (adicionais de vencimento e adicionais de função), as duas últimas formam a categoria das gratificações (gratificações de serviço e gratificações pessoais). Todas elas são espécies do gênero retribuição pecuniária, mas se apresentam com características próprias e efeitos peculiares em relação ao beneficiário e à administração, constituindo os “demais componentes do sistema remuneratório” referidos pelo art. 39, § 1.º, da CR. Somadas ao vencimento (padrão do cargo), resultam nos vencimentos, modalidade de remuneração (destaques no original) (Direito administrativo brasileiro, p. 543).

381 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 607.

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3.3.1.2.1 Normas constitucionais pertinentes à remuneração ou

vencimento

Consoante se expôs, a Emenda Constitucional 19 aboliu do art. 39, §

1.º, a disposição que garantia isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais

ou semelhantes do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo

e Judiciário. Referida previsão, todavia, “não impedirá que os servidores pleiteiem o

direito à isonomia, com fundamento no art. 5.º, caput e inciso I”.382-383

Ademais, conserva-se a norma do art. 37, inciso XII, a qual prevê que

os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser

superiores aos pagos pelo Poder Executivo. Referida regra versa sobre a paridade de

vencimentos, sempre interpretada no sentido de igualdade de remuneração para os

servidores dos três “Poderes”.384 Isso significa que “há um teto entre os vencimentos

dos cargos pertencentes aos Poderes, que corresponde àqueles pagos pelo Executivo”.385

Entretanto, “o art. 37, XI, da CF, com as alterações que sofreu, aponta conteúdo diverso:

o teto genérico pertence a cargos do Judiciário, no caso os dos Ministros do STF.

Assim, os vencimentos do Judiciário poderão ser superiores aos do Executivo”.386

Aos inativos e aos pensionistas (dependentes do servidor falecido), era

garantida a isonomia, como se podia verificar pelo § 8.º do art. 40, com a redação dada

382 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 607. 383 Veja-se, consoante anota José dos Santos Carvalho Filho, que a abolição da isonomia de

vencimentos, em verdade, abre mais portas para que efetivamente se desrespeite o primado da isonomia remuneratória. E essa afirmativa não é descabida, uma vez que “o próprio regime de isonomia foi sempre desrespeitado e fraudado pelas diversas instituições da República, a despeito de seu caráter de justiça, pelo qual igualaria a remuneração de servidores com funções idênticas ou semelhantes”. Se assim era praxe, “imagine-se tendo agora o Estado, nas mais diversas esferas de Poder e da federação, liberdade para proceder à avaliação de natureza e complexidade de cargos e suas peculiaridades...”. Desse modo, “Se as disparidades já existiam com o princípio da isonomia”, parece ser “irreversível que se tornarão mais profundas e injustas com o novo sistema, sabido que as Administrações não apenas têm se mostrado deficientes para tal avaliação, como também porque, constantemente, têm sido pressionadas pelo impulso” desencadeado por certos interesses escusos de determinadas autoridades, “situação de imoralidade que só se extinguirá com a mudança de consciência dos administradores públicos” (Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 741).

384 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 607. 385 Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 535. 386 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 744.

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pela Emenda Constitucional 20/1998. O dispositivo determinava a revisão dos

proventos de aposentadoria e pensão, na mesma proporção e na mesma data, sempre

que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade, sendo também

estendidos aos inativos e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens

posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da

transformação ou reclassificação do cargo ou função em que ocorresse a aposentadoria.

Entretanto, diante do advento da Emenda Constitucional 41, de 19 de

dezembro de 2003, os §§ 7.º e 8.º sofreram alteração em sua redação. No que diz

respeito aos servidores inativos, o § 8.º tão só garante o reajustamento dos benefícios

para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios

estabelecidos em lei. Ou seja, a isonomia ou paridade com os servidores em atividade

foi extinta.

Contudo, o art. 7.º da mencionada Emenda conservou a isonomia ou

paridade nos mesmos moldes em que era assegurada pelos §§ 7.º e 8.º, de acordo com

redação anterior, para os servidores já aposentados e os pensionistas que já recebiam a

pensão na data da publicação da Emenda, bem como para os servidores e seus

dependentes que, na mesma data, já tinham cumprido os requisitos para concessão dos

benefícios, conforme previsto no art. 3.º. A Emenda Constitucional 47/2005 estendeu o

referido benefício aos que ingressaram no serviço público até 16 de dezembro de 1998

(data da entrada em vigor da Emenda 20/1998) e que tenham cumprido os requisitos

previstos no art. 6.º da Emenda Constitucional 41/2003 ou no art. 3.º da Emenda

Constitucional 47/2005.

É importante ressalvar, porém, que o fim da paridade de proventos e

pensões com a remuneração de quem está na ativa representa uma grande perda para os

servidores. Contudo, dita mudança no regime jurídico não poderia mesmo alcançar os

direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos servidores aposentados e

pensionistas. Uma vez que o servidor se aposentou ou começou a perceber pensão, fez

jus a continuar beneficiário da paridade ou isonomia em relação aos proventos e

pensões com os vencimentos de quem está na ativa.

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205

Quanto à fixação e alteração da remuneração dos servidores públicos,

somente poderá ser perpetrada por lei específica, observando-se a iniciativa privativa

em cada caso, segundo o art. 37, X, da Constituição Federal (alterado pela EC 19/1998).

Veja-se que a iniciativa das leis é dividida entre o Chefe do Executivo (art. 61, § 1.º, II,

“a”), Tribunais (art. 96, II, “b”), Ministério Público (art. 127, § 2.º) e Tribunal de Contas

(art. 73, c/c o art. 96). Cada um desses órgãos envia ao Legislativo projeto de lei, seja de

criação de cargos, seja de fixação de vencimentos de seus servidores, cabendo a todos

obedecer aos limites impostos para os servidores do Executivo (art. 37, XII).

E o inciso XIII do art. 37, modificado pela Emenda 19, impede a

vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de

remuneração de pessoal do serviço público. O objetivo desse dispositivo é evitar os

reajustes automáticos de vencimentos, o que sucederia se, “para fins de remuneração,

um cargo ficasse vinculado ao outro, de modo que qualquer acréscimo concedido a um

beneficiaria a ambos automaticamente”; isso igualmente aconteceria “se os reajustes de

salários ficassem vinculados a determinados índices, como o de aumento do salário

mínimo, o de aumento da arrecadação, o de títulos da dívida pública ou qualquer

outro”.387 Note-se, entretanto, que a regra original proibia a vinculação ou equiparação

de vencimentos, mas ressalvava a hipótese do art. 39, § 1.º, que previa a isonomia de

vencimentos (conforme já se comentou supra).

3.3.1.2.2 Regime de subsídios

No tocante ao subsídio, C. A. Bandeira de Mello diz que aludida

modalidade retributiva foi criada “Com o intuito de tornar mais visível e controlável a

remuneração de certos cargos, impedindo que fosse constituída por distintas parcelas

que se agregassem de maneira a elevar-lhes o montante”. Conceitua o subsídio como a

designação conferida “à forma remuneratória de certos cargos, por força da qual a

retribuição que lhes concerne se efetua por meio dos pagamentos mensais de parcelas

387 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 608-609.

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206

únicas, ou seja, indivisas e insuscetíveis de aditamentos ou acréscimos de qualquer

espécie”.388

Observa-se que Di Pietro faz uma crítica ao fato de que a chamada

Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional 19/1998) tenha

introduzido na Constituição de 1988 a terminologia subsídio, afirmando que essa

alteração significa “um retrocesso do ponto de vista terminológico”,389 uma vez que o

vocábulo subsidium, no dicionário latim-português, “designa tropa auxiliar, gente que

vem em socorro, e também significa ajuda, socorro”. Acontece, entretanto, que “Não é

com essa conotação que o servidor público quer ver interpretada a importância que

recebe como forma de retribuição do serviço que presta”. Anota que, “No entanto,

apesar do sentido original do vocábulo, é evidente que ele vem, [...], substituir, para

algumas categorias de agentes públicos, a palavra remuneração ou vencimento”, com a

finalidade de “designar a importância paga em parcela única, pelo Estado, a

determinadas categorias de agentes públicos, como retribuição pelo serviço prestado”.

Destarte, “não tem a natureza de ajuda, socorro, auxílio, mas possui caráter retribuitório

e alimentar”.390

O dispositivo essencial para se apreender a ideia de subsídio é o § 4.º do

art. 39, introduzido pela Emenda Constitucional 19/1998, que o estabelece como parcela

única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de

representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto

no art. 37, incisos X e XI. Com isso, ficam derrogadas, para os agentes que percebam

subsídios, todas as normas legais que prevejam vantagens pecuniárias como parte da

remuneração.

Consequentemente, de igual forma, para remunerar de modo

diferenciado os ocupantes de cargos de direção, chefia, assessoramento e os cargos em

comissão, terá a lei que fixar, para cada qual, um subsídio composto de parcela única. O

388 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 277. 389 A autora esclarece que “O vocábulo subsídio tinha sido abandonado na Constituição de 1988 como

forma de designar a remuneração dos agentes políticos, mas volta agora com a chamada Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/98), o que é lamentável, sob o ponto de vista terminológico” (Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 610).

390 Idem, ibidem, p. 610.

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207

mesmo se diga quanto aos vários níveis de cada carreira abrangida pelo sistema de

subsídio.391

Importa advertir que o art. 39, § 4.º, da Constituição Federal não pode

ser interpretado de maneira literal, pois deve ser conjugado com o § 3.º do mesmo

artigo, que determina que sejam aplicados aos servidores vários direitos concedidos aos

trabalhadores da esfera privada, dentre eles o adicional de férias, o décimo terceiro

salário, o acréscimo de horas extraordinárias, o adicional de trabalho noturno etc., pois

“São direitos sociais que não podem ser postergados pela Administração. Por

conseguinte, é induvidoso que algumas situações ensejarão acréscimo pecuniário à dita

‘parcela única’”.392

Serão obrigatoriamente remunerados por subsídios todos os agentes

públicos mencionados no art. 39, § 4.º, a saber: membro de Poder (o que compreende os

membros do Legislativo, Executivo e Judiciário da União, Estados e Municípios), o

detentor de mandato eletivo (já alcançado pela expressão membro de Poder), Ministros

de Estado e Secretários Estaduais e Municipais; os membros do Ministério Público (art.

128, § 5.º, I, c, com a redação da EC 19); os integrantes da Advocacia-Geral da União,

os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal e os Defensores Públicos (art. 135,

com a redação da EC 19); os Ministros do Tribunal de Contas da União (art. 73, § 3.º);

os servidores públicos policiais (art. 144, § 9.º, na redação da Emenda 19). Além desses

servidores arrolados, poderão, facultativamente, ser remunerados mediante subsídios os

servidores públicos organizados em carreira, conforme previsto no art. 39, § 8.º, o que

constituirá opção para o legislador de cada uma das esferas de governo.

O § 11 do art. 37 da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda

Constitucional 47, determina que não serão computadas, para efeito dos limites

remuneratórios de que trata o inciso XI, as parcelas de caráter indenizatório previstas

em lei.393

391 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 611. 392 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 730. 393 Sobre esse ponto, Meirelles diz que não deverão ser computados, nos limites do inciso XI do art. 37,

os gastos de transporte, diárias, ajuda de custo, presença em sessão extraordinária (Direito administrativo brasileiro, p. 537).

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Quanto a essa forma de remuneração, isto é, a paga do trabalho dos

servidores públicos por subsídios, pode-se afirmar que é inaceitável qualquer

interpretação que permita desconsiderar os direitos adquiridos individuais dos

servidores públicos, quando se instituir o regime de subsídios, em especial no que diz

respeito às vantagens pessoais incorporadas de modo regular aos seus vencimentos, e,

por conseguinte, que fazem parte de maneira definitiva de seu patrimônio. Por outro

ângulo, de igual modo, a mudança no regime remuneratório da comunidade de

servidores só será admissível, sem o desrespeito ao primado da vedação ao retrocesso

social, se se estiver diante de situações que requerem uma justa repartição de recursos

(consoante será visto no item 3.4.5). Afora essas situações, as mudanças estabelecidas

no regime remuneratório ofenderão o não retrocesso social.

3.3.1.2.3 Normas comuns à remuneração e aos subsídios

Pelo inciso X do art. 37, alterado pela Emenda Constitucional 19/1998,

a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4.º do art. 39

somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa

privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem

distinção de índices (v.g., IPC para uns, IGPM para outros, salário mínimo para outra

categoria etc.).

Segundo Di Pietro, com a Emenda Constitucional 41/2003, tenta-se

novamente impor um teto, devolvendo-se ao Congresso Nacional, com a sanção do

Presidente da República, a competência para fixar os subsídios dos Ministros do

Supremo Tribunal Federal (art. 48, XV). Alterou-se, mais uma vez, o art. 37, XI, que,

lido de modo conjugado com outros dispositivos da Constituição, permite as seguintes

conclusões:394

a) o teto abrange tanto os que continuam sob o regime remuneratório

como os que passarem para o regime de subsídio;

394 A autora arrola as hipóteses elencadas nas letras “a” a “i” (Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed.,

p. 617-620).

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b) compreende os servidores públicos ocupantes de cargos, funções e

empregos públicos, o que significa que o teto independe do regime jurídico, estatutário

ou trabalhista, a que se submete o servidor;

c) alcança os servidores da Administração Direta, autárquica e

fundacional; quanto às empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias,

somente são alcançados pelo teto se receberem recursos da União, dos Estados, do

Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou de

custeio em geral, conforme decorre do § 9.º do art. 37;

d) o teto, no âmbito federal, é o mesmo para todos os servidores,

correspondendo ao subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. No âmbito

estadual, é diferenciado para os servidores de cada um dos três Poderes do Estado,

sendo representado pelos subsídios dos Deputados, do Governador e dos

Desembargadores, incluindo-se no teto destes últimos algumas categorias do Executivo

(membros do Ministério Público, Procuradores e Defensores Públicos).395 No âmbito

municipal o teto é igual para todos os servidores, sendo representado pelo subsídio de

Prefeito;

e) para os parlamentares dos Estados e dos Municípios, o entendimento

do art. 37, XI, deve ser conjugado ao disposto nos arts. 27, § 2.º, 29, VI e VII, e 29-A. O

subsídio é limitado a 75% da remuneração dos Deputados Federais, e para os

parlamentares municipais o subsídio máximo varia entre 20%, 30%, 40%, 50%, 60% e

75% do subsídio dos Deputados Estaduais, em função do número de habitantes do

Município. Em razão do disposto no inciso VII do art. 29 da Constituição Federal, o

total de despesas com a remuneração dos vereadores não pode ultrapassar o limite de

5% da receita do Município, observados, outrossim, os limites totais de despesa com

pessoal;

395 Pela Emenda Constitucional 47/2005, foi acrescentado o § 12 ao art. 37, permitindo que, para fins do

teto previsto no inciso XI do caput, os Estados e o Distrito Federal fixem, por emenda à Constituição e Lei Orgânica, como limite único, o subsídio dos Desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a 90,25% do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto nesse parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais, Distritais e Vereadores.

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f) para os membros da magistratura, a norma do art. 37, XI, tem que ser

combinada com o art. 93, V, que estabelece, para os ministros dos Tribunais Superiores,

o montante de 95% do subsídio mensal fixado para os ministros do Supremo Tribunal

Federal; para os demais magistrados, a fixação será feita em lei, observado um

escalonamento em níveis federal e estadual, conforme as categorias da estrutura

judiciária nacional, não podendo a diferença entre uma e outra ser superior a 10% ou

inferior a 5%, nem exceder 95% do subsídio mensal dos ministros dos Tribunais

Superiores. Contudo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os membros da

magistratura devem submeter-se a teto único, independentemente da esfera da federação

à qual pertençam;396

g) o teto atinge os proventos dos aposentados e a pensão devida aos

dependentes do servidor falecido; essa norma se repete com a redação dada ao § 8.º do

art. 40 pela Emenda Constitucional 20, de 15 de dezembro de 1998;

h) o servidor que esteja em regime de acumulação está sujeito a um teto

único que abrange a soma da dupla retribuição pecuniária; sobre a aplicação do teto

remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura,

excluiu do teto remuneratório, com base em decisão administrativa do Supremo

Tribunal Federal adotada em 5 de fevereiro de 2004 (Proc. 319269), “remuneração ou

provento decorrente do exercício do magistério, nos termos do art. 95, parágrafo único,

inciso I, da CF”.397

Note-se, entretanto, que não são apenas os magistrados que devem ser

excluídos do teto quando ocuparem cumulativamente um cargo com uma função de

magistério. Nesse passo, verifica-se que “O artigo 48, inciso XV, da Constituição

atribui ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, ‘a fixação do

396 Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal se deve ao fato de ter considerado

inconstitucionais, em sede cautelar, o art. 2.º da Resolução 13/2006 e o art. 1.º, parágrafo único, da Resolução 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça.

397 Conforme preleciona Di Pietro, “[...] O argumento utilizado é o de que o artigo 95, parágrafo único, inciso I, ao permitir a acumulação do cargo de juiz com outro cargo ou função de magistério, não faz remissão ao inciso XI do artigo 37, ao contrário do que acontece em relação aos servidores públicos em geral, para os quais o inciso XVI do mesmo artigo 37, ao indicar as hipóteses de acumulação permitida, remete ao inciso XI, que trata do teto salarial” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito adquirido: comentário a acórdão do STF, Revista Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte: Fórum, ano 1, n. 1, p. 14, mar. 2001).

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subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, observado o que dispõem os arts.

39, § 4.º; 150, II; 153, III; e 153, § 2.º, I’”. Se assim está disposto, quer dizer que “o art.

39, § 4.º, ao definir o subsídio como parcela única, faz expressa referência aos membros

de Poder (sem nenhuma exceção) e, na parte final, manda obedecer, ‘em qualquer caso’

o disposto no art. 37, X e XI”. Afora isso, “o artigo 93, ao definir os critérios para

fixação dos subsídios dos membros do Judiciário, manda observar o disposto nos arts.

37, XI, e 39, § 4.º”. Desse modo, “Não há qualquer razão aceitável para que apenas os

Ministros do Supremo Tribunal Federal tenham o privilégio de acumular suas funções

com uma de magistério, sem somar as duas remunerações para fins de aplicação do

teto”. Ressalta-se que “Inúmeros outros servidores, do próprio Judiciário, por receberem

pelo teto salarial ou com pequena diferença em relação ao teto salarial, estariam

privados de igual privilégio”. Por referido motivo, “tal privilégio é contrário aos

princípios da razoabilidade, da moralidade e da isonomia”.398

Em verdade, não há razão alguma para que a Resolução 13/2006 do

Conselho Nacional de Justiça não alcance também os demais servidores públicos que

estiverem na mesma situação. É dizer, sob a ótica da proteção do direito adquirido

individual, “os servidores que já acumulavam licitamente com base na redação original

da Constituição têm o direito de continuar a fazê-lo, sem aplicação da restrição contida

no artigo 37, XI, da Constituição”. Dita conclusão coaduna-se com a ideia de que “a

cláusula pétrea protege os direitos adquiridos com base na Constituição em sua redação

original”.399

i) o dispositivo faz referência também a “outra espécie remuneratória”,

já com a intenção de impedir a instituição de alguma outra forma de remuneração cujo

intuito seja o de escapar ao teto.

Continuando a análise da temática referente à irredutibilidade de

vencimentos e subsídios versus o teto remuneratório, o inciso XV do art. 37, na redação

398 Di Pietro, Direito adquirido: comentário a acórdão do STF, p. 14. 399 Idem, ibidem, p. 14. A autora, nesse ponto, assevera que a ideia defendida de cumular licitamente

cargo público com outro de magistério, constituindo direito adquirido com permissão concedida pelo texto constitucional em sua redação original, coaduna-se com a tese do STF contida no MS 24.875-1/DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06.10.2006), de que “a cláusula pétrea protege os direitos adquiridos com base na Constituição em sua redação original” (Idem, p. 14).

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dada pela Emenda Constitucional 19/1998, estabelece que o subsídio e os vencimentos

dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis,400 ressalvado o disposto

nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4.º, 150, II, 153, § 2.º, I.

As ressalvas contidas na parte final do dispositivo significam que não

contrariam a regra da irredutibilidade as normas dos dispositivos constitucionais

expressamente referidos, ou seja:

a) a irredutibilidade de vencimentos e subsídios não impede a

observância do teto fixado pelo inciso XI; equivale a dizer que não se poderá invocar a

irredutibilidade para manter remunerações que hoje superam o teto;401-402

400 Explica José dos Santos Carvalho Filho que “O sentido da irredutibilidade, porém, não é absoluto.

Protege-se o servidor apenas contra a redução direta de seus vencimentos, isto é, contra a lei ou qualquer outro ato que pretenda atribuir ao cargo ou à função decorrente de emprego público importância inferior à que já estava fixada ou fora contratada anteriormente. E adverte que, “Contudo, os Tribunais já se pacificaram no sentido de que não há proteção contra a redução indireta, assim considerada aquela em que: (1) o vencimento não acompanha pari passu o índice inflacionário; ou (2) o vencimento nominal sofre redução em virtude da incidência de impostos”. Aliás, é nessa linha que “o art. 37, XV, da CF ressalva expressamente os arts. 150, II, 153, III, e 153, § 2.º, I, que retratam, respectivamente, o princípio da igualdade dos contribuintes, a incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e os critérios da generalidade, universalidade e progressividade, inerentes ao referido tributo” (Manual de direito administrativo, p. 738). No entanto não se concorda com a parte final aduzida pelo autor, pois, se o servidor, por meio do tributo, sofrer alguma redução nos seus vencimentos ou subsídio, terá o direito de reclamar afronta ao seu direito adquirido individual.

401 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 621. 402 Conforme será analisado mais adiante, ver-se-á que certas mudanças instituídas pelas emendas

constitucionais que instituíram alterações nos direitos e garantias dos servidores públicos, integrantes do seu regime jurídico, afrontam ostensivamente a Constituição. Sob esse vértice, a respeito da “flexibilização” da garantia da irredutibilidade de vencimentos dos servidores, Bandeira de Mello é enfático em dizer que: “[...] nem a Emenda 19, em 98, nem a Emenda 41, agora em 2003, podiam rebaixar vencimentos determinando que ficariam sujeitos a limites estatuídos primeiramente por uma e ao depois por outra, em novas redações que atribuíram ao art. 37, XI. Também não é de admitir [...] que este resultado seja alcançado pelo expediente, aparentemente astuto, adotado no art. 9.º da Emenda 41. Nele se declara que o art. 17 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição aplicar-se-ia a todas as modalidades de retribuição dos servidores da Administração direta, autárquica e fundacional, bem assim aos agentes políticos em geral, tanto como a proventos de aposentadoria e pensões. A solução é juridicamente incabível, pois o art. 17 se remetia a um texto distinto do que viria a ser implantado pela Emenda 19 e do que foi recentemente implantado pela Emenda 41. Logo, não se lhe pode dar o alcance pretendido, pois isto implicaria pretender colher dele a força constituinte, mas com um alcance descoincidente a uma norma que nela reside, e não na Constituição. Acresce que o art. 17 estava reportado a um texto que foi revogado pela Emenda 19 e que, de seu turno, também foi revogado pela Emenda 41, de tal sorte que não mais existe como termo de referência no universo jurídico” (Curso de direito administrativo, p. 338-339).

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b) igualmente, a irredutibilidade de vencimentos e subsídios não impede

a aplicação da norma do inciso XIV, segundo a qual os acréscimos pecuniários

percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de

concessão de acréscimos ulteriores; isso significa que, embora o servidor estivesse

percebendo vantagens pecuniárias calculadas por forma que se coadunava com a

redação original no dispositivo, poderá sofrer redução para adaptar a forma de cálculo à

nova redação;403

c) a referência ao art. 39, § 4.º, seria desnecessária, porque ele manda

respeitar o disposto no art. 37, X e XI; o primeiro cuida da fixação dos subsídios por

meio de lei, e o segundo, do teto, já referido com a menção ao inciso XI;404

d) não fere a regra da irredutibilidade de vencimentos ou subsídios a

aplicação do art. 150, II, da Constituição, que veda à União, Estados, Distrito Federal e

Municípios “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em

situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou

função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos,

títulos ou direitos”; como também não conflita com a irredutibilidade a incidência do

imposto de renda, previsto no art. 153, II, ou a aplicação da norma do § 2.º, I, do art.

153, segundo a qual o imposto de renda será informado pelos critérios da generalidade,

da universalidade e da progressividade, na forma da lei. Por outras palavras, o teto

salarial corresponde ao valor bruto, não impedindo que o valor líquido seja inferior ao

teto, em decorrência da incidência do imposto de renda.405

Deve-se ressaltar, porém, conforme adverte Figueiredo, que não é

possível que se relativizem as remunerações daquelas hipóteses que ultrapassem o

referido “teto”, pois resta inadmissível ignorar direitos que foram “validamente

incorporados como adicionais, quinquênios, incorporações essas permitidas antes da

Emenda, ou, então, em virtude de situações adquiridas por sentença transitada em

julgado, portanto, pela coisa julgada material e formal”. Assim se defende porque ditas

403 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., p. 621. 404 Idem, ibidem, p. 621-622. 405 Idem, p. 622.

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incorporações, previstas constitucional e legalmente, gozam “da proteção do direito

adquirido, garantia constitucional inscrita no inciso XXXVI do art. 5.º da Carta Magna,

ainda que ultrapassem o mencionado ‘teto’”. E assim é preciso ser entendido por que

não se está “diante do Poder Constituinte originário, que não tem limites, tudo pode”.

Não é dado olvidar-se que “a Emenda 19/1998 deriva da competência de reforma

estabelecida no art. 60, com os limites pela própria Constituição assinalados”.406-407

Não é diferente o entendimento de C. A. Bandeira de Mello, anotando

que:

[...] uma vez que o Texto Constitucional inadmite emenda que fira direitos e garantias individuais (art. 60, § 4.º, IV) – e não somente os arrolados no art. 5.º, inclusive por assegurar, ainda, no § 2.º deste preceptivo, que os direitos expressos não excluem outros decorrentes do regime e de seus princípios –, é forçoso concluir que os vencimentos dos atuais servidores validamente constituídos (portanto, os conformados aos limites impostos no art. 17 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988) não podem ser afetados pelo “Emendão”, porque, se tal se desse, haveria: a) ofensa a direito adquirido, cuja proteção estava e está assegurada no art. 5.º, XXXVI, da Constituição, dada a irredutibilidade que lhes conferia o § 2.º do art. 39, em sua primitiva redação; b) ofensa a um direito e garantia individual, pois a garantia expressa da irredutibilidade de vencimentos, naqueles termos, era, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, um direito individual de cada servidor.

406 Figueiredo, Curso de direito administrativo, p. 623-624. 407 Anote-se que, no tocante aos servidores ocupantes de cargo em comissão e à irredutibilidade de

remuneração desses agentes, Figueiredo pontua que as vantagens por eles adquiridas podem ser retiradas, uma vez que ao seu titular não se dá qualquer direito à permanência no serviço público. Explica que “Não há, pois, situação constituída a ser preservada, direito subjetivo já adquirido. Pode-se, sem dúvida, falar da inoportunidade da Emenda, porém não em sua inaplicabilidade como texto integrante da Constituição, já que não está a ferir direitos já incorporados” (Curso de direito administrativo, p. 624). De outro lado, sobre o mesmo ponto, Carvalho Filho pondera em sentido contrário, asseverando que: “Como o mandamento constitucional não distingue, a garantia da irredutibilidade alcança, da mesma forma, os cargos em comissão. Resulta, pois, que, se o titular de cargo em comissão for afetado por força de novo plano de cargos e vencimentos, não poderá sofrer decréscimo remuneratório, devendo ser-lhe assegurada a percepção como vantagem pessoal, de parcela que corresponda à diferença entre a remuneração que vinha percebendo e a nova. Tal parcela, contudo, sujeita-se à absorção integral ou gradativa em decorrência de futuros aumentos de remuneração, e tem sido nominada de diversas formas, como ‘parcela absorvível’, ‘vantagem pessoal nominalmente identificável’, ‘direito pessoal’, ‘diferença individual’, e outras do gênero – todas indicativas do direito do servidor de não sofrer redução em seus vencimentos” (Manual de direito administrativo, p. 739).

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215

Donde, por estes dois ângulos, resulta óbvio que simples emenda constitucional jamais poderia afetá-los sem, com isto, ofender cláusula pétrea.408

Realmente, têm razão ambos os doutrinadores, pois evidentemente as

situações que ultrapassam o teto, sob a ótica do direito adquirido individual, devem ser

preservadas, sendo vedado à Administração proceder a reduções nos vencimentos e

subsídios dos servidores, devendo ser preservado o direito já incorporado ao patrimônio

jurídico do funcionário.

Nessa linha de ideias, ainda importa considerar a imposição do teto

remuneratório que foi trazida pelo art. 9.º da Emenda Constitucional 41/2003,409 a qual

ordenou a aplicação do disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias,410 da Constituição Federal/1988, aos vencimentos, remunerações e

subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos e aos proventos,

pensões ou outra espécie remuneratória. Todavia, o art. 17 do ADCT determinou a

imediata redução dos vencimentos que eram percebidos em desacordo com a

Constituição, sem que houvesse a possibilidade de invocar a proteção do direito

adquirido quanto ao recebimento do excedente.411

Ora, da análise do art. 9.º da aludida emenda não se pode deixar de dizer

que esse dispositivo é frontalmente inconstitucional. Referida disposição é fruto da

competência reformadora, que é condicionada, subordinada e limitada pelo constituinte

408 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 339. 409 Art. 9.º da EC 41/2003: “Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”.

410 Art. 17 do ADCT: “Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.

411 Adverte-se que, no tocante ao ponto em que o Poder Constituinte Originário não é tão ilimitado como se costuma dizer, faz-se necessário recordar que ele encontra limites nos princípios de justiça social e de direito internacional, o que torna possível indagar sobre a legitimidade dessa disposição contida no art. 17 do ADCT, dado que o patamar mais alto de vencimentos e seu plexo de garantias representa direito fundamental da comunidade de servidores.

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originário. Nesses termos, a aludida competência deve-se conformar às normas

imutáveis da Constituição, ou seja, às “cláusulas pétreas”, que preveem proteção aos

direitos e garantias fundamentais dos servidores, tal como a hipótese de constituir um

direito adquirido do servidor a irredutibilidade de vencimentos.412 É inconstitucional no

que diz respeito à determinação quanto aos vencimentos, remunerações e subsídios e

também no tocante aos proventos, pensões ou outra espécie remuneratória.

Não é compatível com o ordenamento jurídico constitucional, por

conseguinte, que imediatamente após o advento de uma emenda à Constituição sejam

reduzidas as remunerações dos servidores “a limite remuneratório fixado posteriormente

ao momento em que nasceu o direito à sua percepção”.413

No entanto, conforme bem observa Carvalho Filho, o Supremo Tribunal

Federal “parece não ter adotado esse entendimento e, consequentemente, jogou por terra

a garantia constitucional da irredutibilidade”. E o fez porque “considerou abrangida pelo

teto (e, pois, redutível) a gratificação de tempo de serviço, quando se sabe que se trata

de vantagem que o servidor incorpora pro tempore, configurando-se como direito

adquirido”. Ora, “Reduzir tal tipo de vantagem é o mesmo que reduzir a remuneração –

isso contra mandamento expresso na Carta da República”. De outra banda “– e

revelando-se incoerente, concessa venia, o julgamento –, considerou suscetível de

preservação determinada parcela de acréscimo ao valor dos proventos prevista em

estatuto funcional (embora sujeita à absorção por futuros aumentos do subsídio)”.414

Com isso, deixa-se transparecer “pois a impressão de que a Corte mais se apegou a

critérios políticos – no caso relativo ao teto remuneratório – do que a critérios jurídicos,

412 Quanto a esse ponto, Carvalho Filho diz que “não há qualquer dúvida de que a irredutibilidade de

vencimentos constitui direito adquirido dos servidores, como transparece do art. 37, XV, da CF. Outra conclusão, assim, não se pode extrair senão a da inconstitucionalidade do citado art. 9.º da EC 41/2003. Desse modo, o servidor que, com amparo na legislação pertinente, percebe remuneração superior ao teto fixado no art. 37, XI, da CF (ou provisoriamente no art. 8.º da EC 41), não pode sofrer redução em seu montante. O direito do Poder Público, no caso, será apenas o de manter irreajustável a remuneração até que as elevações remuneratórias subsequentes possam absorver o montante. Na verdade, o correto é considerar no caso a percepção de duas parcelas, uma correspondente ao teto e outra equivalente ao excesso remuneratório. Assim, à medida que for sendo reajustada a parcela relativa ao teto, estará sendo reduzida a parcela referente ao excesso. Em certo momento futuro, esta última parcela será totalmente absorvida e, a partir daí, a remuneração do servidor – agora nos limites do teto – estará em condições de ser reajustada normalmente” (Manual de direito administrativo, p. 745).

413 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 746. 414 MS 24.875-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 11.05.2006 (Informativo STF n. 426, maio 2006).

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217

pelos quais caberia o respeito ao direito adquirido e à irredutibilidade de

vencimentos”.415 Adverte-se que sobre os argumentos políticos e o controle

jurisdicional realizado pelo Supremo Tribunal Federal quanto à questão dos direitos e

garantias dos servidores voltar-se-á a falar mais adiante (item 3.4.1).

3.3.1.3 Aposentadoria e proventos

A Constituição prevê o direito à previdência social como um direito

social (art. 6.º) que compõe uma realidade mais ampla chamada seguridade social (art.

194). A seguridade abrange a previdência social, instituída no art. 201, de caráter

contributivo e profissionalista em regra (a exceção é representada pelos segurados

facultativos); a assistência social, tratada nos arts. 203 e 304, de caráter não

contributivo, destinada aos que se encontram em situação de necessidade, e a saúde,

definida como um direito de todos, de caráter universal, e independente de contribuição

(arts. 196 a 200).416

Contudo, a previdência social não é um sistema homogêneo, pois

comporta diferentes subsistemas. Nesse passo, paralelamente ao Regime Geral da

Previdência Social, estabelecido no art. 201 da Constituição Federal,417 existe o regime

específico dos servidores públicos titulares de cargo efetivo, disciplinado no art. 40 da

Lei Maior, conhecido como Regime Próprio de Previdência Social. E são as regras que

compõem referido regime e regem a aposentadoria dos servidores efetivos que

interessam ao estudo que aqui se faz.

Consoante leciona Odete Medauar, “Aposentadoria, no setor público,

significa a cessação do exercício das atividades junto a órgãos ou entes estatais, com o

415 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 746. 416 Nesse sentido, Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 119. 417 Estão sujeitos a esse regime os empregados, regidos pela CLT, os trabalhadores avulsos, os

domésticos, os contribuintes individuais (antigos autônomos, equiparados a autônomo e empresário), os trabalhadores rurais em sentido amplo, que compreendem o segurado especial, o empregado rural pessoa física, e os segurados facultativos.

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recebimento de retribuição denominada proventos. Daí empregar-se o vocábulo inativo

para designar o servidor aposentado”.418

Deveras, a aposentadoria constitui-se em um direito fundamental do

servidor público de passar à inatividade remunerada, garantido de modo vitalício, em

decorrência da prestação de serviços ao Estado, sujeito a regime jurídico normativo

próprio do servidor inativo, em hipótese de invalidez, idade ou condições combinadas

de tempo de exercício no serviço e no cargo, idade mínima e tempo de contribuição.

Em decorrência de regras próprias, específicas e diferentes daquelas

relativas aos demais trabalhadores no tocante às aposentadorias e pensões, a

Constituição Federal de 1988 estabeleceu as regras referentes à aposentadoria dos

servidores públicos em seu art. 40. Consoante as disposições originárias do Texto

Constitucional, a aquisição do direito à aposentadoria tinha por base, em essência, o

tempo de serviço ou a idade dos servidores públicos, a aposentadoria especial dos

professores, a aposentadoria por invalidez e a pensão por morte.419 Em síntese, a

previsão compreendia como modalidades de aposentadoria: a aposentadoria por

invalidez, a compulsória e a aposentadoria por tempo de serviço.

A aposentadoria por invalidez permanente dava direito a proventos

integrais quando fossem decorrentes de acidente em serviço, moléstia profissional ou

doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei; nos demais casos, dava

direito a proventos proporcionais ao tempo de serviço.420

418 Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 12. ed., São Paulo: RT, 2008, p. 281. 419 A exceção à norma geral era devida a legislação dos militares das Forças Armadas, contida na Lei

6.880/1980 ainda em vigor, que basicamente conta como requisito o cumprimento de trinta anos de serviço militar para o gozo da aposentadoria.

420 O Estatuto do Servidor Público Federal (Lei 8.112/1990), que instituiu o regime jurídico único para os servidores da União, aponta no art. 186, § 1.º, as doenças que ensejam a aposentadoria por invalidez permanente, com proventos integrais. Assim, dispõe o referido preceptivo legal: “Consideram-se doenças graves, contagiosas ou incuráveis [...], tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante), Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – AIDS, e outras que a lei indicar, com base na medicina especializada”. Por sua vez, o art. 212 define o acidente em serviço “o dano físico ou mental sofrido pelo servidor, que se relacione, mediata ou imediatamente, com as atribuições do cargo exercido”. E equipara as seguintes situações ao acidente em serviço: o dano “decorrente de agressão sofrida e não

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219

Por seu turno, a aposentadoria compulsória alcançava (e alcança) o

servidor que completasse 70 anos de idade, e lhe dava o direito a receber proventos

proporcionais ao tempo de serviço; seus proventos seriam integrais apenas se o

funcionário tivesse completado 35 ou 30 anos de serviço, conforme se tratasse de

servidor do sexo masculino ou feminino respectivamente; sem essa condição, os

proventos seriam proporcionais ao tempo de serviço.421

No tocante à aposentadoria voluntária, a Constituição aumentou as suas

hipóteses, para abarcar, no art. 40, III, os seguintes casos:

a) aos 35 anos de serviço, se homem, e aos 30 se mulher, com proventos integrais;

b) aos 30 anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e 25 anos, se professora, com proventos integrais;

c) aos 30 anos de serviço, se homem, e aos 25 se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;

d) aos 65 anos de idade, se homem, e aos 60 se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.

Diante de tais previsões é possível notar que a Constituição Federal de

1988 estabeleceu referidos regramentos “modificando um pouco o que havia

anteriormente (Constituição de 1967 com a Emenda 1, de 1969)”. Nesse sentido,

“Acrescentou a aposentadoria voluntária proporcional por implemento de idade (65

anos para o homem e 60 para a mulher), como também proporcional por tempo de

serviço (art. 40, inciso III, alíneas ‘c’ e ‘d’, antes da Emenda 41)”. No entanto, “As

outras, referentes à compulsoriedade do desligamento aos setenta anos e à voluntária,

com trinta e cinco anos de serviço para homens e trinta para mulheres, já eram expressas

na Constituição anterior”.422

provocada pelo servidor no exercício do cargo”; e aquele “sofrido no percurso da residência para o trabalho e vice-versa”. Já o art. 188, § 1.º, diz que “A aposentadoria por invalidez será precedida de licença para tratamento de saúde, por período não excedente a 24 (vinte e quatro) meses”.

421 Determina o art. 187 da Lei 8.112/1990 que: “A aposentadoria compulsória será automática, e declarada por ato, com vigência a partir do dia imediato àquele em que o servidor atingir a idade-limite de permanência no serviço ativo”.

422 Figueiredo, Curso de direito administrativo, p. 637-638.

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É de ver que, no que diz respeito à aposentadoria voluntária, o art. 40, §

1.º, dispunha sobre a possibilidade de que fossem criadas exceções com o escopo de

reduzir o tempo de serviço, no caso de atividades consideradas penosas, insalubres ou

perigosas.

Sobre a questão da contagem de tempo, o art. 40, § 3.º, estipulava que o

tempo de serviço público federal, estadual ou municipal seria computado integralmente

para os efeitos de aposentadoria e de disponibilidade. E no art. 202, § 2.º, estabelecia

que, para efeito de aposentadoria, era assegurada a contagem recíproca do tempo de

contribuição na Administração Pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese

em que os diversos sistemas de previdência social seriam compensados

financeiramente, segundo critérios determinados em lei.

No que concerne à aposentadoria em cargos ou empregos temporários

(que compreendia os cargos e empregos em comissão), a norma do art. 40, § 2.º,

determinava que ficaria a cargo do legislador dispor sobre ela.423

E, por fim, quanto à aposentadoria, o art. 40, § 4.º, previa que os

proventos da aposentadoria deveriam ser revistos, na mesma proporção e na mesma

data, sempre que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade, sendo

também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente

concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação

ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.424

Destaca-se que o art. 20 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias fixou

423 Segundo Di Pietro, comentando à época referida disposição constitucional, “Dificilmente se poderá

entender que quis abranger a hipótese de ‘contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público’, a que se refere o artigo 37, IX, e dependente de lei que estabeleça os casos em que é cabível. A única hipótese de aposentadoria conciliável com um serviço dessa natureza seria a que se dá por invalidez, em especial a que decorra de acidente no serviço ou doença profissional. Quanto à aposentadoria por tempo de serviço, dificilmente poderá ser cabível para a função que a própria Constituição define como temporária e de excepcional interesse público” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 4. ed., São Paulo: Atlas, 1994, p. 376). Adverte-se que apenas neste tópico (3.3.1.3) será utilizada a 4.ª edição da obra da autora. Nos outros tópicos, o presente trabalho se baseia na 26.ª edição do livro Direito administrativo.

424 Conforme observa Di Pietro, “o dispositivo é mais benéfico do que o correspondente, na Constituição de 1967, que somente exigia a extensão aos inativos, com caráter de obrigatoriedade, das revisões motivadas pela alteração do poder aquisitivo da moeda (art. 102, § 1.º)” (Direito administrativo, 4. ed., p. 376).

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prazo de 180 dias para que se fizesse a revisão dos direitos dos servidores públicos

inativos e pensionistas e à atualização dos proventos e pensões a eles devidos, a fim de

ajustá-los ao disposto na Constituição.

Nesse viés, constata-se que satisfazia as exigências constitucionais o

servidor público que adquirisse o tempo de serviço mínimo, o que o tornaria, portanto,

apto para ser destinatário do direito a se aposentar pela regra instituída pela Constituição

Federal, recebendo proventos da aposentadoria com base no cargo efetivo que exercia,

como se não tivesse existido a cessação na atividade desempenhada.425 Desse modo,

gratificações, adicionais, aumento de estipêndios e qualquer outra vantagem, pela regra

então editada, em 5 de outubro de 1988, prevista no art. 40, § 4.º, da Constituição

Federal, estendia-se ao servidor aposentado, abolindo-se a regra do art. 102 da

Constituição Federal de 1969, a qual impunha vedação que impedia que o aposentado

recebesse mais na inatividade do que na atividade. Essa paridade do inativo com o

servidor ativo foi uma conquista mais do que bem-vinda, em que se reconheceu o valor

do servidor inativo, evitando-se que este se transformasse em alguém esquecido pela

sociedade depois de tantos anos prestando serviços ao Estado; referida disposição foi

um anteparo à corrosão, pelo tempo, dos seus proventos sem que ocorresse uma justa e

adequada recomposição.

3.3.1.3.1 O regime previdenciário e as Emendas Constitucionais

20/1998, 41/2003 e 47/2005

Interessa destacar que tradicionalmente, no ordenamento jurídico pátrio,

a aposentadoria do servidor público efetivo não era um direito de natureza

previdenciária dependente de contribuição, mas sim um direito vinculado ao exercício

do cargo público, financiado totalmente pelo Poder Público, sem contribuição do

servidor.426 Foi somente com a Emenda Constitucional 3, de 1993, que se introduziu o

425 No que diz respeito aos membros do Ministério Público, da Magistratura e do Tribunal de Contas, a

Constituição trouxe-lhes normas mais benéficas quanto à aposentadoria, consoante os arts. 93, inciso VI, 129, § 4.º, e 73, § 3.º. Para essas categorias de servidores, as três modalidades de aposentadoria eram com proventos integrais, qualquer que fosse o tempo de serviço; e a aposentadoria voluntária se dava aos 30 anos de serviço, com a única exigência de que, em qualquer caso, tivessem cinco anos de exercício efetivo na função. Não se aplicavam a eles as previsões do art. 40 da CF/1988.

426 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 630.

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§ 6.º no art. 40 da Constituição, para prever que “as aposentadorias e pensões dos

servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das

contribuições dos servidores na forma da lei”, que se deu o primeiro passo rumo à

modificação das regras referentes à aposentadoria dos servidores. Passou-se a exigir,

por conseguinte, também a contribuição dos servidores, além dos recursos advindos do

Poder Público, para que estes pudessem receber o benefício da aposentadoria.427

No entanto, a partir das Emendas Constitucionais 20/1998, 41/2003 e

47/2005, deu-se o grande salto para a reforma da Previdência, que veio com a ambição

de afastar, adicionar e modificar normas que disciplinam o sistema previdenciário

brasileiro, notadamente no que diz respeito às aposentadorias, alcançando o servidor

público titular de cargo efetivo. Realizou-se uma reforma profunda no Regime Próprio

de Previdência Social.

Destarte, aclara-se que serão expostas as principais mudanças atinentes

às aludidas emendas quanto à matéria, sem o escopo de esgotar o assunto, por ser o

tema bastante amplo e rico em minudências. Nesse viés, seu estudo mais aprofundado

comportaria uma análise monográfica própria acerca da matéria. O intuito é trazer à

colação as modificações que mais se destacam sobre o assunto.

3.3.1.3.2 Emenda Constitucional 20 de 1998

As diretrizes para a designada reforma previdenciária foram

estabelecidas pela Emenda Constitucional 20/1998. O escopo foi o de modificar o

Regime Próprio de Previdência Social dos servidores públicos e seus dependentes, a fim

de que, de forma gradual, ficassem submetidos aos mesmos padrões vigentes do regime

geral da previdência social, ao qual estão sujeitos os trabalhadores da iniciativa privada

e os servidores que não ocupam cargos efetivos. A intenção, em verdade, é tornar una a

previdência social. E nesse passo, como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, não

podendo ser transformado o regime público para um regime assemelhado ao dos

427 No tocante aos servidores estaduais e municipais, o art. 149, parágrafo único, da Constituição

dispunha que “os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social”.

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trabalhadores da esfera privada, de imediato, “tendo em vista as situações consolidadas

com base na legislação vigente, pretende-se alcançar esse objetivo de forma paulatina”.

Por conseguinte, já foram “promulgadas duas Emendas Constitucionais instituidoras de

‘reformas previdenciárias’ e já se fala em outras futuras reformas da mesma

natureza”.428

Nesse vértice, a Emenda Constitucional 20 de 1998 modificou a

disposição contida no art. 40 da Lei Maior, garantindo aos servidores ocupantes de

cargo em provimento efetivo regime previdenciário de cunho contributivo, desde que

obedecidos os critérios responsáveis pela manutenção do equilíbrio financeiro e

atuarial.429 Além disso, afora o caráter contributivo, estabeleceu-se a regra da idade

mínima para a aposentadoria somada ao tempo de permanência no serviço público. Mas

não foi só.

Logo, os principais objetivos da reforma definidos na Emenda

Constitucional 20/1998, e que merecem ser analisados, são os seguintes:

a) Previsão de regime previdenciário de natureza contributiva para os

servidores que ocupam cargos efetivos,430 conquanto se observem os critérios

responsáveis por preservar o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 40, caput); no tocante

428 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Aposentadoria dos servidores públicos efetivos, in: Maria Sylvia

Zanella Di Pietro, Fabrício Motta e Luciano de Araújo Ferraz, Servidores públicos na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2011, p. 152-153.

429 Importa verificar que o sistema de previdência social do servidor público, ocupante de cargo efetivo, passou a ser organizado com base em critérios que assegurem o seu equilíbrio financeiro e atuarial. Isso quer dizer que o “equilíbrio financeiro é alcançado quando o que se arrecada com contribuições é suficiente para manter os benefícios assegurados”. Nesses termos, “Visualiza-se a despesa com benefícios sob a perspectiva do direito financeiro, isto é, considerando o orçamento da seguridade social, que é anual nos termos do art. 165, § 5.º, da Carta Magna”. Assim, “Devem as receitas arrecadadas ser suficientes para fazer face às despesas fixadas”. Por sua vez, “o equilíbrio atuarial leva em conta uma série de variáveis que vão determinar o nível de contribuição para viabilizar o sistema em uma perspectiva de longo prazo”. Podem ser consideradas, dentre as variáveis, “a expectativa de vida, o número de contribuintes, o nível de crescimento econômico e outros”. Com efeito, “A técnica de seguro social, subjacente à previdência, aconselha a realização de estudos atuariais para definir a viabilidade do sistema” (Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 137).

430 Como a emenda constitucional fala em servidores titulares de cargo efetivo, abrange aqueles que ingressaram na Administração mediante concurso, bem como aqueles sem concurso público, antes da CF/1988, e foram estabilizados em virtude da regra contida nos art. 19 do ADCT, desde que sejam ocupantes de cargos públicos.

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aos Estados e Municípios, a instituição desse regime foi mantida em caráter facultativo

(art. 149, § 1.º).

Diante dessa mudança, não foi conservada a redação do § 3.º do art. 40,

que estabelecia o regime contributivo para o servidor federal, mas se preservou com

igual redação o art. 149, § 1.º, de maneira que se pode asseverar que, em face dessa

Emenda, não era obrigatória a instituição desse regime para o servidor.431 A hipótese

instituiu uma faculdade para o Poder Público, que podia exercê-la conforme escolha do

legislador de cada esfera de Governo. Nesse viés, a maior parte dos Estados e

Municípios não instituiu regime previdenciário para os servidores, salvo, em alguns

destes entes, com o fim de prover a pensão dos dependentes do servidor falecido. Essa

foi exatamente a situação do Estado de São Paulo, onde se permaneceu adotando o

regime contributivo para a pensão, em conformidade com a Lei Complementar 180, de

12 de maio de 1978. Apenas em tempos mais recentes, por intermédio da Lei

Complementar 943, de 23 de junho de 2003, é que foi instituída a contribuição para fins

de aposentadoria.432-433

Interessa verificar que o caráter contributivo significa, em termos

práticos, que, a partir da Emenda Constitucional 20/1998, o regime próprio de

previdência é financiado pela contribuição do ente público instituidor e dos servidores

que estão na ativa. No que diz respeito à contribuição de aposentados e pensionistas na

vigência do Texto Constitucional, alterado pela citada emenda (prevista nas Leis

9.917/1998 e 9.783/1999), foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal

Federal.

A contribuição dos entes públicos para o Regime Próprio de

Previdência Social não pode ser inferior à contribuição do servidor ativo nem superior

ao dobro desta; contudo, o encargo financeiro do Tesouro pode ser maior, e, em alguns

431 A regra dispunha que “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição,

cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social”.

432 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 630. 433 Observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, a não ser pela edição da norma atinente aos novos

requisitos para a aposentadoria voluntária, nada se cumpriu acerca das regulamentações legais reclamadas pela reforma (Aposentadoria dos servidores públicos efetivos, p. 153).

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planos, o é, uma vez que existe a obrigatoriedade de cobertura de eventuais

insuficiências financeiras dos regimes decorrentes do pagamento de benefícios

previdenciários do serviço passado. A alíquota de contribuição dos servidores ativos da

União, fixada em 11% pela Lei 9.783/1999, é a mesma cobrada dos servidores ativos

dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios para os seus regimes próprios.434

Registre-se que, ao se instituir o regime previdenciário de caráter

contributivo, pretendeu-se que os servidores públicos, como futuros beneficiários,

observem o encargo de arcar paulatina e sucessivamente com contribuições

previdenciárias ao longo de seu vínculo laboral com a Administração Pública.

b) Os servidores ocupantes exclusivamente de cargos em comissão ou

de outros cargos temporários e os servidores ocupantes de empregos públicos foram

incluídos no regime geral de seguridade social (art. 40, § 13).435

Com efeito, afastou-se a possibilidade de incluir entre os beneficiários

do sistema próprio de previdência social os servidores ocupantes exclusivamente de

cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração, bem como de

cargos temporários (art. 37, IX, da CF e Lei 8.745/1993) e de empregos públicos (Lei

9.962/2000), aos quais se aplica o Regime Geral de Previdência Social (art. 40, § 13, da

CF). Referidos servidores serão enquadrados no Regime Geral de Previdência Social

como empregados.436

434 Irene da Conceição de Freitas, Previdência do servidor público: reformas e perspectivas, São Paulo:

LTr, 2012, p. 95. 435 Quanto ao ocupante de função, o dispositivo não fez qualquer referência ao regime previdenciário

desses servidores. Nesse caso, há que distinguirem as funções de confiança (art. 37, V) dos contratados temporariamente com base no art. 37, inciso IX da CF. Para as funções de confiança é justificável a omissão quanto ao seu regime previdenciário, porque, pelo inciso V do art. 37, elas só podem ser exercidas por servidor ocupante de cargo efetivo e este está necessariamente inserido no regime previdenciário previsto no art. 40. Quanto aos servidores contratados temporariamente com base no art. 37, IX, tem-se que incluí-lo, por analogia, no regime geral da previdência, dado que o art. 40, § 13, faz referência a “outro cargo temporário”. Trata-se de aplicação do princípio geral de direito segundo o qual onde existe a mesma razão, deve aplicar-se o mesmo dispositivo), que justifica a aplicação da lei por analogia (Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 635-636).

436 Ponderam Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo a respeito dos servidores exclusivamente comissionados o seguinte: “Convém questionar, de toda sorte, se no tocante aos sistemas próprios de previdência instituídos antes do advento da Emenda Constitucional 20/1998, em que se tenha admitido os exclusivamente comissionados como segurados, estabelecendo-se relações jurídicas merecedoras de proteção, não existiria óbice representado pelo princípio do ato jurídico

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c) Em relação à aposentadoria voluntária dos servidores ocupantes de

cargos efetivos houve alteração nos requisitos para a concessão do benefício de maneira

a estender a permanência desses servidores no serviço público e, de modo paralelo,

retardar a sua dependência em relação ao seguro social (art. 40, § 1.º, III).

Diante das modificações inseridas, o servidor passou a se aposentar

quando configuradas as hipóteses estabelecidas pela Emenda Constitucional 20/1998,

que são:

(i) por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao

tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia

profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificada em lei; aqui, a

Constituição Federal em sua redação original, consoante demonstrado, previa proventos

integrais na aposentadoria por invalidez;

(ii) compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos

proporcionais ao tempo de contribuição; nesse caso, os proventos originariamente

perfeito a impedir a transferência deles ao Regime Geral de Previdência Social, com o consequente pagamento de contribuições ao INSS e não mais aos respectivos regimes próprios”. Muito embora Eduardo Rocha Dias tenha se manifestado anteriormente em sentido afirmativo quanto à existência de tal impedimento (Eduardo Rocha Dias, As novas regras das aposentadorias e das pensões no direito previdenciário brasileiro, Revista Interesse Público, Sapucaia do Sul, ano 3, n. 9, p. 68, jan.-mar. 2001), depois de uma maior meditação chegou ao entendimento contrário, ou seja, “mesmo os comissionados investidos em seus cargos antes da Emenda Constitucional 20/1998 passaram a se sujeitar ao Regime Geral de Previdência Social. Isso em virtude de competir à União Federal a elaboração de normas gerais em matéria de previdência social, até mesmo as relativas aos servidores públicos (art. 24, XII, da Carta Magna). Ademais, conforme iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não detêm os servidores públicos direito adquirido a regime jurídico, o que alcança, inclusive, o conjunto de normas atinentes ao seu regime contributivo. Obviamente, só existirá direito adquirido se o servidor, antes da Emenda Constitucional 20/1998, tiver preenchido os requisitos para se aposentar segundo as normas vigentes à época, por aplicação da Súmula 359 do STF. O argumento de que a sujeição ao Regime Geral de Previdência Social não poderia alcançar os comissionados nomeados antes de tal alteração normativa, em virtude de ser necessário assegurar a viabilidade atuarial e financeira do regime próprio, também não pode ser invocado. Isso porque, com a exclusão dos comissionados, deixam os sistemas próprios de ser responsáveis pelo pagamento de seus benefícios, responsabilidade que passa ao INSS. Por outro lado, na quase maioria dos sistemas próprios, para não dizer na sua totalidade, não foi efetuado cálculo atuarial prévio algum, com a inclusão da contribuição dos comissionados” (Nova Previdência do servidor público, p. 134). Todavia, discorda-se do pensamento dos autores. Além de terem direito adquirido à aposentadoria pelo Regime Próprio se preencheram os requisitos para se aposentar antes da EC 20/1998, a alteração para o RGPS para quem já estava sob a égide do RPPS configura verdadeiro retrocesso.

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proporcionais ao tempo de serviço foram alterados para proventos com base na

proporcionalidade quanto ao tempo de contribuição;

(iii) voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de

efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a

aposentadoria, observadas as seguintes condições: (iii-a) sessenta anos de idade e trinta

e cinco de contribuição, se homem, e cinquenta e cinco anos de idade e trinta de

contribuição, se mulher; (iii-b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta

anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.

Nota-se clara, nesse ponto, a mudança de paradigma da aposentadoria

por tempo de serviço para a aposentadoria por tempo de contribuição, com um limite de

idade para os servidores e as servidoras. Agora o requisito fundamental a ser

comprovado pelo servidor passou a ser a contribuição ao regime de previdência a que o

servidor estiver vinculado, e não apenas o exercício de suas atribuições. O servidor

permanece no serviço público por mais tempo e ainda tem que contribuir para receber

seus proventos de aposentadoria.

No que concerne à aposentadoria do professor, os requisitos de idade e

de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no §

1.º, III, a, do art. 40, desde que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício

das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.

Entretanto, na redação original da Lei Maior, para os professores a Constituição Federal

previa aposentadoria aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se

professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais. Não havia a exigência

do tempo de contribuição nem a ressalva quanto ao efetivo exercício no magistério

infantil, fundamental e médio. Isto é, não era necessária a comprovação de uma idade

mínima na ocasião, tampouco a comprovação de que o tempo de exercício seria

exclusivamente no exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino

fundamental e/ou médio.

d) Desde que seja instituída a chamada previdência complementar é

possível que as aposentadorias e pensões se sujeitem aos mesmos limites estabelecidos

para os segurados do regime geral de previdência social (art. 14, § 14); o intuito é o de

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que a previdência social arque com os aludidos benefícios dentro do limite estabelecido

para a seguridade social em geral, ficando eventuais diferenças por conta da previdência

complementar, também de caráter contributivo.

Em verdade, os §§ 14, 15 e 16 do art. 40 da Constituição Federal de

1988 foram incluídos no referido dispositivo para regular a possibilidade de instituição

pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de regime de previdência

complementar para seus servidores titulares de cargos efetivos, hipótese que os submete

ao teto previdenciário semelhante ao previsto para o Regime Geral da Previdência

Social no tocante às aposentadorias e pensões concedidas por seus sistemas próprios de

previdência.

Sob esse prisma, os servidores deverão contribuir para seu sistema

próprio de previdência, o que lhes garantirá um benefício de valor máximo equivalente

ao teto do Regime Geral de Previdência Social, e poderão contribuir para o sistema de

previdência complementar tratado nos aludidos dispositivos, que lhes possibilitará

complementar o valor dos proventos. Nos dizeres de Di Pietro, “A ideia é de que a

previdência social, como encargo do Poder Público, remanesça apenas para cobrir os

benefícios limitados a esse valor, ficando para a previdência complementar a cobertura

de valores maiores”.437

Vale destacar que a previdência complementar foi objeto do Projeto de

Lei Complementar 9/1999, o qual, no entanto, deixou de ter sentido e importância em

decorrência de modificação trazida ao § 15 do art. 40, pela Emenda Constitucional

41/2003, passando a exigir apenas lei ordinária, de iniciativa do Chefe do Executivo de

cada nível de Governo, para a instituição de previdência complementar. Destarte, após a

aprovação de dita lei, e a instituição do sistema de previdência complementar, os

servidores que ingressarem no serviço público ficarão sujeitos a essa sistemática de

contribuição.438 Quanto aos servidores que ingressaram anteriormente à instituição dos

437 Di Pietro, Direito administrativo, 26. ed., 2013, p. 651. 438 No tocante à previdência complementar para novos servidores, “O novo regime previdenciário será

obrigatório para os servidores que ingressarem no serviço público a partir do início de funcionamento de cada uma das novas entidades. A obrigatoriedade, no entanto, trata da adoção do novo regime, mas não da adesão a essas entidades. Do novo servidor será descontado no contracheque 11% sobre R$ 3.916,20. Esse será o limite tanto para a contribuição quanto para a

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regimes de previdência complementar, a referida sistemática só poderá ser aplicada se

houver prévia e expressa opção por parte do servidor. Ressalta-se, porém, que, enquanto

o sistema de previdência complementar não for instituído por lei, não pode ser aplicado

o limite do teto previdenciário do Regime Geral.

e) Prevista a possibilidade de se instituírem fundos de aposentadoria e

pensão para a administração dos recursos referentes ao regime previdenciário próprio

dos servidores (art. 249).

Consoante observam Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de

Macêdo, a aludida previdência complementar “não se confunde com a possibilidade de

instituição de fundos, integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por

bens, direitos e ativos de qualquer natureza”, voltados “a assegurar recursos para o

pagamento de proventos de aposentadorias e pensões concedidas aos respectivos

servidores e dependentes, prevista pelo art. 248 da Constituição, acrescido pela Emenda

Constitucional 20/1998”. Ou seja, “Esses fundos têm a finalidade de desonerar o

Tesouro do aporte de recursos para o funcionamento dos sistemas próprios de

previdência de seus servidores e dependentes, até mesmo para o fim de limitar suas

despesas com tais gastos”.439

Os fundos previdenciários deverão obedecer certos requisitos

enumerados na Lei 9.717/1998. De início, terão autonomia financeira, e, em sua

aposentadoria e pensão – semelhante ao modelo já adotado para os trabalhadores da iniciativa privada, abrigados no RGPS. Quem ganha acima desse valor e desejar aposentadoria ou pensão correspondente à sua remuneração deverá contribuir com o fundo de pensão do Poder para o qual trabalha. Haverá uma contrapartida do empregador, seja Executivo, Legislativo ou Judiciário, no mesmo percentual do empregado. A contrapartida do empregador, no entanto, será limitada a 8,5% da parte do salário que exceder os R$ 3.916,20. Quem ganhar menos do que R$ 3.916,20 poderá contribuir com o fundo e, assim, conquistar o direito a uma previdência complementar, mas sem a contrapartida da União. Os atuais servidores e aqueles que ingressarem no serviço público até o dia anterior à entrada em vigor do novo regime também poderão optar por ele, se for de seu interesse. Para isso terão prazo de 24 meses para se decidir. A migração para o novo modelo, porém, será irrevogável. Em compensação, os que migrarem terão direito a receber, quando se aposentarem, uma parcela referente ao período em que contribuíram pelo antigo regime previdenciário. Denominada de benefício especial, essa parcela equivalerá à diferença entre a remuneração média do servidor e o teto do RGPS, calculada proporcionalmente ao tempo de contribuição que ele tem no regime previdenciário da União (Disponível em: <http://www.assfapom.com/portal/index.php? option=com_content&view=article&id=464:retrocesso-senado-aprova-novo-regime-previdenciario-para-servidores-publicos-federais&catid=40:noticia-foto&Itemid=50>).

439 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 150-151.

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organização, necessitarão possuir estrutura técnico-administrativa dotada de conselhos

de administração e fiscal. Estará vedada a utilização de recursos do fundo de bens,

direitos e ativos para empréstimos de qualquer natureza, inclusive à União, aos Estados,

ao Distrito Federal e aos Municípios, a entidades da administração indireta e aos

respectivos segurados. Haverá vedação também quanto à aplicação de recursos em

títulos públicos, com exceção de títulos do Governo Federal. A aplicação de recursos

será feita conforme estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional. Nesse ponto,

observa José dos Santos Carvalho Filho que a tentativa aí “é a de evitar a malversação

dos recursos dos fundos pelas autoridades administrativas, fato que, lamentavelmente,

tem ocorrido em outras situações”. E destaca que é por essa razão que a lei reguladora

atribui responsabilidade direta aos dirigentes da entidade gestora e aos integrantes dos

conselhos administrativo e fiscal, sujeitando-os, inclusive, no que couber, ao regime

repressivo previsto na Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, e legislação

complementar (art. 8.º).440

f) Aproximação com o regime geral de previdência social (art. 40, § 12).

Estabelecendo uma aproximação entre o Regime Próprio de Previdência

Social e o Regime Geral de Previdência Social, o § 12 do art. 40 da Constituição

Federal dispõe que o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo

efetivo observará, no que couber, além das disposições constantes do art. 40, os

requisitos e critérios fixados para o Regime Geral de Previdência Social. A

determinação manda, portanto, aplicar em caráter supletivo as normas referentes ao

Regime Geral de Previdência Social, caso não exista norma específica no âmbito do

sistema próprio de previdência dos servidores. À União se atribui competência para

editar normas gerais em matéria de previdência social (art. 24, XII, da CF). Aos

Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, por seu turno, cabe suplementar a

legislação federal (art. 24, § 2.º, e art. 30, II, da CF). Por conseguinte, não havendo

norma geral federal sobre uma determinada matéria, nem norma específica na esfera da

legislação estadual ou municipal, a aplicação de normas do Regime Geral de

Previdência Social pode servir para suprir as lacunas porventura existentes.

440 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 686.

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Não há de negar que referida aproximação mostra a penetração de

regras do Regime Geral de Previdência Social no Regime Próprio de Previdência Social

dos servidores (antes um regime tipicamente público). Não somente recebe o influxo de

regras próprias da seara do regime geral de previdência (como o caráter contributivo),

como também passa a ser complementado por tais regras em caso de lacuna normativa.

Abre-se, por conseguinte, esse regime para que, progressivamente, passe a ser

disciplinado por normas que o deixam mais perto do Regime Geral de Previdência

Social.

• Direito adquirido

No tocante ao direito adquirido, o art. 3.º da Emenda Constitucional

20/1998 estabeleceu a regra do direito adquirido dos servidores e dependentes que, até a

data da publicação da emenda (16.12.1998), tenham cumprido os requisitos para a

obtenção de aposentadoria e pensão com base na legislação então vigente, até quanto à

forma de cálculo fixada na legislação em vigor à época em que foram atendidas as

prescrições nela estabelecidas para a concessão desses benefícios. Note-se que para

aqueles servidores que preencheram os requisitos para se aposentar até a data da

publicação da emenda eles poderão utilizar o tempo fictício, em atenção ao direito

adquirido. Quem, entretanto, não atender a tais requisitos para se aposentar, na referida

data, inclusive com tempo fictício, não mais poderá utilizá-lo posteriormente.

Dessa forma, sobre as regras de transição, os servidores públicos que

até a publicação da Emenda Constitucional 20/1998 não haviam completado os

requisitos necessários à aposentadoria, obrigatoriamente ficam sujeitos às regras de

transição do sistema, a teor do disposto no art. 8.º da Emenda Constitucional 20/1998.441

441 Art. 8.º Observado o disposto no artigo 4.º desta Emenda e ressalvado o direito de opção à

aposentadoria pelas normas por ela estabelecidas, é assegurado o direito à aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o artigo 40, § 3.º, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública, direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação desta Emenda, quando o servidor, cumulativamente:

I – tiver 53 (cinquenta e três) anos de idade, se homem, e 48 (quarenta e oito) anos de idade, se mulher;

II – tiver 5 (cinco) anos de efetivo exercício no cargo em que se dará a aposentadoria;

III – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) 35 (trinta e cinco) anos, se homem, e 30 (trinta) anos, se mulher;

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Em suma: foram assegurados aos servidores que preencheram todos os requisitos legais

até 15 de dezembro de 1998 os direitos para aposentadoria, exigidos pela legislação

então vigente. A partir de 16 de dezembro de 1998, as regras de transição introduzidas

pela Emenda Constitucional 20/1998 em seu art. 8.º deverão ser observadas para as

novas aposentadorias.

Como normalmente acontece quando do advento de uma emenda

constitucional, fazem-se presentes regras que preservam o direito de quem já o tinha

adquirido com base nas disposições precedentes, e também se instituem regras de

transição para disciplinar quem havia ingressado no Poder Público sob a égide das

normas anteriores, mas que ainda não havia preenchido os requisitos necessários para

adquirir o direito a ser modificado. Nesse passo, a Emenda Constitucional 20/1998 não

foi diferente, preservando o direito adquirido dos servidores e dependentes até a data da

sua publicação, e também fixando as regras de transição para os servidores que ainda

não haviam obtido o direito à aposentadoria quando da sua entrada em vigor.

Entretanto, ressalta-se que o direito adquirido preservado o foi na sua dimensão

individual. Sob esta acepção, poder-se-ia dizer que não houve ofensa ao direito de o

servidor se aposentar nas condições anteriores em que completou as exigências

necessárias para tanto.

b) um período adicional de contribuição equivalente a 20% (vinte por cento) do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior.

§ 1.º O servidor de que trata este artigo, desde que atendido o disposto em seus incisos I e II, e observado o disposto no artigo 4.º desta Emenda, pode aposentar-se com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, quando atendidas as seguintes condições:

I – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) 30 (trinta) anos, se homem, e 25 (vinte e cinco) anos, se mulher;

b) um período adicional de contribuição equivalente a 40% (quarenta por cento) do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior;

II – os proventos da aposentadoria proporcional serão equivalentes a 70% (setenta por cento) do valor máximo que o servidor poderia obter, de acordo com o caput, acrescido de 5% (cinco por cento) por ano de contribuição que supere a soma a que se refere o inciso anterior, até o limite de 100% (cem por cento).

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3.3.1.3.3 Emenda Constitucional 41 de 2003

Deveras, a Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, teve

como missão completar a reforma previdenciária iniciada pela Emenda Constitucional

20/1998 no que diz respeito à previdência social do servidor público.

Buscando implementar, por conseguinte, a nova sistemática trazida pela

Emenda Constitucional 20/1998, a Emenda Constitucional 41/2003 manteve

essencialmente os mesmos objetivos dantes definidos por aquela emenda, com algumas

novidades:442

a) No que concerne ao regime previdenciário de caráter contributivo

institui-se a sua obrigatoriedade para todos os níveis de governo (redação dada ao art.

149, § 1.º).

Com o advento da Emenda Constitucional 41/2003, foi modificada a

disposição do art. 149, § 1.º, dispondo que os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios deverão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o fim de

custeio, em benefício destes, do regime previdenciário de que trata o art. 40, cuja

alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da

União.

De tal forma, pode-se afirmar que o regime previdenciário de cunho

contributivo, dantes aplicado aos servidores federais, consoante a Emenda

Constitucional 3/1993, restou impositivo para Estados e Municípios, em afronta à

autonomia estadual e municipal e, por conseguinte, com ofensa ao princípio

federativo.443

442 Di Pietro, Aposentadoria dos servidores públicos efetivos, p. 153-154. 443 Em sentido contrário, está o posicionamento de Carvalho Filho. Para o autor, o caso parece que,

contudo, “não é de inconstitucionalidade, eis que, a nosso ver, a norma não ofende nenhuma cláusula imutável (cláusula pétrea) prevista no art. 60, § 4.º. A opção do Constituinte é que não se nos afigura razoável; a definição da alíquota, na verdade, deveria caber a cada ente federativo, que o faria atendendo a suas próprias peculiaridades e em respeito à sua própria autonomia” (Manual de direito administrativo, p. 681).

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b) Regime previdenciário com caráter solidário, determinado

expressamente pelo art. 40, caput, em que se almejou dar fundamento à contribuição

dos inativos e pensionistas.

c) Apontam-se as fontes de custeio, incluindo contribuição do ente

público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas (art. 40, caput).

Sobre essas duas letras “b” e “c” podem ser trazidos à colação alguns

argumentos importantes.

Nos dizeres de Carvalho Filho, “A solidariedade em relação ao regime

está a indicar que a contribuição previdenciária não se destina apenas a assegurar

benefício ao contribuinte e à sua família, mas, ao contrário, assume objetivo também de

caráter social”, requerendo que pessoas já favorecidas “pelo regime continuem tendo a

obrigação de pagar a contribuição previdenciária, agora não mais para o exercício de

direito próprio, mas sim em favor do sistema do qual são integrantes, ainda que já

tenham conquistado seu direito pessoal”. De tal modo, “É exatamente nesse aspecto, em

que o contribuinte socorre o sistema, que se deve entender ser solidário o regime de

previdência”.444 Assim, é de ressaltar que a Emenda Constitucional 41/2003, em

realidade, por meio da instituição do regime solidário, pretendeu que as contribuições

previdenciárias sejam efetuadas pelo ente federativo, pelos servidores que estão na ativa

e pelos servidores inativos e pensionistas, ampliando, por conseguinte, o universo de

contribuintes.445

444 Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 682. 445 No que se refere aos servidores inativos, a lei anterior (Lei 9.783/1999) não só previa contribuições

previdenciárias diferenciadas conforme a faixa remuneratória do servidor, como também impunha a contribuição de servidores inativos. O Supremo Tribunal Federal, contudo, em ação direta de inconstitucionalidade, suspendeu, em medida cautelar, a eficácia de tais dispositivos (ADI 2010-MC, j. 30.09.1999). No entanto, a Lei 10.887/2004 determinou no seu art. 5.º que os aposentados e os pensionistas de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, contribuirão com 11%, incidentes sobre o valor da parcela dos proventos de aposentadorias e pensões concedidas de acordo com os critérios estabelecidos no art. 40 da Constituição Federal e nos arts. 2.º e 6.º da Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, que supere o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social. E o art. 6.º dispôs que os aposentados e os pensionistas de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo desses benefícios na data de publicação da Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, contribuirão com 11%, incidentes sobre a parcela dos proventos de aposentadorias e pensões que supere 60% do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social.

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235

Sobre a questão da contribuição previdenciária incidente sobre os

inativos e pensionistas, José Afonso da Silva defende que ela se afigura inconstitucional

sob o argumento de que a imposição configuraria verdadeiro tributo sem causa, indo

contra o postulado segundo o qual as contribuições só são legítimas enquanto causais,

ou seja, na medida em que vinculadas a contraprestação futura em favor do contribuinte,

como a aposentadoria remunerada e a pensão à família do servidor.

Também há quem defenda que estaria vedada a determinação de

contribuição aos já aposentados e pensionistas, uma vez que estes estão abrigados pelo

direito adquirido, que protege os servidores de serem alcançados pela disposição do art.

4.º da Emenda Constitucional 41/2003.446-447

Essa é a posição de C. A. Bandeira de Mello que, ao analisar as

mudanças referentes ao regime jurídico previdenciário, mais uma vez aponta sua

discordância em relação à competência reformadora da Constituição, na medida em que

fica evidente a “delirante pretensão, constante do art. 4.º da Emenda 41, de considerar

obrigados à contribuição previdenciária os inativos e os pensionistas que já estavam

fruindo dos correspondentes benefícios quando do advento dela”, bem como os

446 Art. 4.º da Emenda Constitucional 41/2003: “Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3.º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:

I – cinquenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II – sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União”.

447 Afonso da Silva, em parecer para a Conamp, na ADI 3,105/DF. Discordando de Afonso da Silva, Carvalho Filho anota que diverge desse pensamento, pois “O argumento de que haveria tributação sem causa cede terreno à instituição do regime de previdência solidário implantado pela EC n.º 41, [...] regime esse que não se caracteriza como causa individual, mas sim como causa social. Também não nos parece acertada a salvaguarda dispensada aos aposentados e pensionistas, e isso porque, conforme já inúmeras vezes reconhecido, inexiste direito adquirido a regime jurídico futuro e, se não há, nenhuma ilicitude existirá na imposição contributiva introduzida pela aludida Emenda. É claro que há um desconforto no seio social sobre tal imposição; de outro lado, é razoável reconhecer que não foi uma solução jurídica adequada e justa para resolver a antiga e repugnante má gestão do sistema de previdência. Uma coisa, porém, é a infelicidade da solução implantada, e outra, inteiramente diversa, é considerá-la inconstitucional, julgamento que, a nosso ver, tem maior componente emocional do que jurídico” (Manual de direito administrativo, p. 683).

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236

abarcados “pelo art. 3.º (isto é, os que já haviam cumprido com base em legislação

precedente requisitos para lhes obter concessão)”. Veja-se que, segundo o jurista, “O

dispositivo é teratológico e revelador de mentalidade autoritária, obscurantista, para

quem o Direito nada vale”. Além do mais, diz o administrativista, “É de solar clareza

que ditos sujeitos encontravam-se assegurados por direito adquirido, e os já

aposentados, tal como os que percebiam pensão, têm ainda em seu favor os atos

jurídicos perfeitos, nos quais se estratifica uma situação juridicamente conclusa. [...]”.448

Não é outro o entendimento de Valmir Pontes Filho, ao tratar do tema,

asseverando que não há dúvida de “que a ofensa aos institutos do ato jurídico perfeito,

direito adquirido e da coisa julgada importa a derruição dos princípios da

irretroatividade das leis e da segurança jurídica e, com ele, do próprio Estado

Democrático de Direito”. Nessa linha, o autor aceita a retroatividade apenas em matéria

penal (art. 5.º, XL, da Constituição), para beneficiar o réu. No seu entender, nem

emenda constitucional pode atingir dita garantia. E menciona precedente do Supremo

Tribunal Federal, no sentido de existir direito adquirido em favor do servidor no tocante

à manutenção do valor de seus proventos, segundo a lei da época de sua concessão.449

Concorda-se com C. A. Bandeira de Mello e com Pontes Filho, quando

asseveram que o art. 4.º da Emenda Constitucional 41/2003 feriu a esfera individual do

direito adquirido do servidor e daquele que percebia pensão e que passaram a arcar com

a contribuição previdenciária estabelecida, causando-lhes gravames ulteriores, que não

poderiam atingir-lhes a esfera do direito incorporado ao seu patrimônio. Adverte-se, no

entanto, que a discussão quanto à afronta ou não ao direito adquirido social terá uma

análise mais aprofundada, em especial quanto à norma modificadora (emendas

constitucionais) e as mudanças por ela trazida no que concerne aos direitos

fundamentais dos servidores, nos itens 3.4.3 e 3.4.4, mais adiante.

448 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 340. 449 Nesse condão, o jurista transcreve o acórdão da Suprema Corte brasileira, que contém o seguinte

teor: “As situações jurídicas constituídas ao ensejo da aposentação, acordes com a ordem legal então vigente, passam a integrar o patrimônio do inativo, com status de direito adquirido, imunes a quaisquer alterações introduzidas por diplomas posteriores. É direito líquido e certo, do servidor público aposentado, exercitável via mandado de segurança, manter inalterada a base de cálculo de seus proventos, sem os efeitos redutivos da lei nova” (AI 253.644-4/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 08.02.2000) (Valmir Pontes Filho, Curso fundamental de direito constitucional, São Paulo: Dialética, 2001, p. 96-104).

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237

d) São definidos os critérios para fixação, em lei, do valor da pensão

dos dependentes do servidor falecido (art. 40, § 7.º)

e) Elimina-se, respeitados os direitos adquiridos, a paridade entre, de

um lado, os proventos e pensões, e, de outro, os vencimentos dos servidores em

atividade (nova redação dada aos §§ 7.º e 8.º do art. 40).

f) Foi garantido o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, de

modo permanente, o valor real, consoante critérios a serem estabelecidos em lei (nova

redação do § 8.º do art. 40).

No tocante às letras “d”, “e” e “f”, apontam-se alguns aspectos

relevantes.

A paridade, critério de reajuste das aposentadorias e pensões, segundo o

qual os reajustamentos concedidos para os servidores ativos seriam automaticamente

repassados para os aposentados e pensionistas, de igual forma, foi abolida pela Emenda

Constitucional 41/2003. Antes disso, até 31 de dezembro de 2003 vigorava a regra de

que os proventos de aposentadoria e as pensões deveriam ser revistos na mesma

proporção e na mesma data, sempre que se alterasse a remuneração dos servidores em

atividade, sendo igualmente estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquer

benefícios ou vantagens posteriormente conferidos aos servidores em atividade,

inclusive quando forem fruto da transformação ou reclassificação do cargo ou função

em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão,

na forma da lei (art. 40, § 8.º, da CF). Com efeito, o servidor aposentado tinha direito à

integralidade de reajustes que fossem concedidos, como se estivesse na ativa.

A atual redação, trazida pela Emenda Constitucional 41/2003, dispõe

que é garantido o reajustamento dos benefícios para conservar-lhes, em caráter

permanente, o valor real, consoante critérios estabelecidos em lei. Veja-se que a

competência reformadora de 2003 pôs fim ao critério da paridade e tão só determinou a

diretriz, a ser seguida pelo legislador, da preservação permanente do valor real dos

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238

benefícios.450 Estes deverão ser periodicamente reajustados de maneira que conservem

permanentemente o seu poder real de compra, segundo os critérios definidos em lei.451

O art. 7.º da Emenda Constitucional 41/2003 preservou o critério da

paridade para quem já era aposentado e pensionista em 31 de dezembro de 2003 e para

quem já adquirira o direito à aposentadoria e à pensão até essa data, nos termos do art.

3.º da Emenda Constitucional 41/2003. No entanto, após 31 de dezembro de 2003 para

obter pensão ou aposentadoria (na forma do art. 40 da CF ou na forma do art. 2.º da EC

41/2003) após a publicação da aludida emenda, dever-se-á obedecer o novo critério de

reajustamento.

Acerca do tema, novamente é cabível a observação ponderada de C. A.

Bandeira de Mello, o qual destaca que o § 4.º do art. 40 da Constituição de 1988, antes

da sobrevinda Emenda Constitucional 19, assegurava a igualdade de proventos em

relação aos vencimentos da ativa, “devendo-se, pois, entender que configuravam

igualmente direitos e garantias individuais dos já aposentados”. Destarte, “também e

por equivalentes razões, o mesmo se dirá no que concerne às pensões, em conformidade

ao que dispunha o § 5.º do art. 40 da Lei Maior”.452

g) Extingue-se o direito de perceber proventos integrais, em que se

estabelece que o cálculo dos proventos de aposentadoria deverá levar em consideração a

remuneração utilizada como base para as contribuições do servidor ao regime de

previdência social a que estiver sujeito (regime geral ou regime próprio do servidor,

conforme o caso), em consonância com o que for definido em lei (art. 40, § 3.º); isso

450 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 189. 451 Dias e Macêdo explicam que “A Medida Provisória 167/2003 não trouxe nenhuma disposição sobre

o critério de reajuste das aposentadorias e pensões da previdência funcional, nem mesmo para a União federal. Já a Lei 10.887/2004 inovou em relação à citada medida provisória, ao estabelecer, em seu art. 15, que os proventos de aposentadorias e as pensões, não amparados pela regra da paridade, serão reajustados na mesma data em que se der o reajuste dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. A Lei 11.784, de 22.09.2008, por sua vez, alterou o art. 15 da Lei 10.887/2004, estabelecendo que ‘Os proventos de aposentadoria e as pensões de que tratam os arts. 1.º e 2.º desta Lei serão reajustados, a partir de janeiro de 2008, na mesma data e índice em que se der o reajuste dos benefícios do regime geral de previdência social, ressalvados os beneficiados pela garantia de paridade de revisão de proventos de aposentadoria e pensões de acordo com a legislação vigente’. Assim, as aposentadorias e pensões não amparadas pela regra da paridade serão, a partir de janeiro de 2008, reajustadas na mesma data e índice em que se der o reajuste dos benefícios do regime geral de previdência social (Ibidem, p. 189).

452 Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 340.

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239

denota que, ao instituir o regime previdenciário próprio do servidor, cada ente da

federação terá que determinar a remuneração sobre a qual incidirá a contribuição, que

deverá obrigatoriamente ser levada em consideração no cálculo dos proventos; a

limitação ao teto de R$ 2.400,00 (atualizado em 2013 para R$ R$ 4.159,00), continua

condicionada à instituição da previdência complementar por lei de cada esfera de

governo (art. 40, § 14, não alterado pela EC 41/2003).453

Esta alteração em que se abandonou a regra, segundo a qual as

aposentadorias são calculadas com base na remuneração do cargo efetivo (quebra da

integralidade), foi uma dentre as principais estabelecidas no que diz respeito à

aposentadoria do servidor público.

Dispunha o § 3.º, antes de promulgada a Emenda Constitucional

41/2003, que “os proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão

calculados com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a

aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração”. Com

isso, o servidor público tinha os proventos de aposentadoria calculados em função da

remuneração integral do cargo efetivo em que se aposentava, independentemente do

tempo de contribuição nesse cargo.

453 A Lei 12.618, de 30 de abril de 2012, institui o regime de previdência complementar para os

servidores públicos federais titulares de cargo efetivo, inclusive os membros dos órgãos que menciona; fixa o limite máximo para a concessão de aposentadorias e pensões pelo regime de previdência de que trata o art. 40 da Constituição Federal; autoriza a criação de três entidades fechadas de previdência complementar, denominadas Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Legislativo (Funpresp-Leg) e Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud). É de notar que a partir da referida lei os novos servidores que ingressarem no funcionalismo público federal não terão mais a garantia de aposentadoria integral. Assim, “De acordo com a norma sancionada, os servidores públicos federais que têm salários até o teto da Previdência, hoje R$ 3.916,20, vão contribuir com 11%, e o governo com 22%. Sobre o valor que exceder esse limite, a União pagará até 8,5%. A contribuição da União é paritária, o que significa que se o servidor pagar um percentual de 5%, a União pagará a mesma porcentagem. Ficam garantidos os valores das aposentadorias até o teto da Previdência. O servidor interessado em receber acima do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) terá de pagar uma contribuição à parte, aderindo à Funpresp ou a fundo de pensão privado. A nova regra não vale para os atuais servidores. A mudança só vale para os servidores nomeados a partir da sanção da lei. [...]. O novo modelo é uma tentativa do governo para diminuir o déficit da Previdência Social. [...]. Os atuais servidores também poderão optar pela permanência no regime de aposentadoria integral ou pelo regime de previdência complementar” (Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/imprensa/noticias-de-governo/dilma-sanciona-lei-que-cria-a-funpresp>. Acesso em: 26 ago. 2012).

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240

Pela nova redação dada ao aludido dispositivo, o qual determina que

“para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão

consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor

aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei”, tem-

se, agora, que observar que, diante da nova disposição, os proventos de aposentadoria

serão calculados com base nas remunerações de contribuição do servidor, não só no

Regime de Previdência Social, como no Regime Próprio de Previdência Social, caso

tenha se filiado a esse Regime no período básico de cálculo do benefício. Quer isso

significar “que a base de cálculo das aposentadorias da previdência funcional passa a

espelhar o esforço contributivo do segurado durante a sua permanência na previdência

social (tanto no Regime Geral como no Regime Próprio de Previdência Social)”.454

Ademais, além de a remuneração do cargo efetivo deixar de ser a base

de cálculo das aposentadorias, o valor dos respectivos proventos, por ocasião de sua

concessão, não poderá ultrapassar a remuneração do servidor no cargo efetivo em que se

deu a aposentadoria, consoante determina o art. 40, § 2.º, da Constituição Federal.455

• Direito adquirido

Além do que já se mencionou no tocante à questão do direito adquirido,

perante a promulgação da Emenda Constitucional 41/2003 (que inaugurou a segunda

reforma da previdência), pode-se falar em ofensa ao direito adquirido em decorrência da

vinda de novas normas sobre fatos pretéritos. Aludida emenda introduziu diversas

mudanças nas disposições trazidas pela Emenda Constitucional 20/1998. Uma das

modificações foi a revogação do art. 8.º desta última emenda, que dispunha, consoante

já aludido, das regras transitórias aplicáveis aos servidores que, tendo ingressado no

454 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 180. 455 Dias e Macêdo anotam acerca dessa disposição no sentido de que a “adoção do novo critério de

cálculo das aposentadorias não tem razoabilidade”. Ou seja, uma vez que os proventos de aposentadoria necessitarão “refletir a média das remunerações sobre as quais incidiu contribuição previdenciária, para premiar o esforço contributivo, não faz sentido limitar o valor do benefício à remuneração do cargo efetivo em que se deu a aposentadoria”. Assim se afirma porque na hipótese de aposentadoria com proventos integrais (100%) do servidor que recebia remuneração do cargo efetivo em que se deu a aposentadoria no valor de R$ 4.000,00, caso o esforço contributivo do segurado lhe possibilite uma média de R$ 4.500,00, o valor final dos proventos será de R$ 4.000,00, nos termos do art. 40, § 2.º, da CF. Em outras palavras: “a previdência funcional estará pagando ao servidor proventos em valor inferior ao seu esforço contributivo” (Ibidem, p. 180).

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241

serviço público quando da sua promulgação, ainda não tivessem reunido as condições

necessárias para poderem se aposentar voluntariamente nos termos da disciplina

anterior. Ao revogar, no art. 10, o citado dispositivo (art. 8.º, EC 20), a Emenda

Constitucional 41/2003 substituiu-o pelo art. 2.º, o qual dispôs sobre a matéria, trazendo

normas mais severas no que diz respeito ao cálculo dos proventos e à fórmula de sua

revisão.

Logo, diante da revogação do art. 8.º da Emenda Constitucional 20/1998

pela Emenda Constitucional 41/2004, pode-se considerar, consoante pondera Silva, que

houve ofensa a direito adquirido individual dos servidores em virtude dessa

modificação, pois, quando se deu esse processo de revogação, o que seria expectativa de

direito converteu-se em direito subjetivo a “ser exercido no futuro sob a condição do

preenchimento dos requisitos indicados”, de forma que o advento de novéis regras não

tem o condão de desfazer o direito, dantes subjetivo, e agora demudado em adquirido

em decorrência da normatização advinda posteriormente.456 Portanto, sendo o direito

adquirido, não é possível que seja ofendido por emenda constitucional.

3.3.1.3.4 Emenda Constitucional 47/2005

Por fim, no que diz respeito à Emenda Constitucional 47/2005 acerca da

aposentadoria, as modificações trazidas no tocante aos servidores foram as seguintes:

a) Determinou, no § 11 do art. 37, que as parcelas de cunho

indenizatório não serão computadas para efeito do teto previsto no art. 37, inciso XI, da

Constituição.

b) Facultou, no § 12 do art. 37, aos Estados e ao Distrito Federal, em

seu âmbito, mediante emenda às respectivas Constituições e Lei Orgânica, para fins de

teto remuneratório e de proventos, fixar como limite único o subsídio mensal dos

desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e

cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal

456 Esse é o entendimento de José Afonso da Silva constante de parecer exarado para instruir a ADI

3.105/2003, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).

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242

Federal, não se aplicando o disposto no parágrafo aos subsídios dos Deputados

Estaduais e Distritais e dos Vereadores.

c) Alterou-se a redação do art. 40, § 4.º, para dispor que fica vedada a

adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos

servidores abrangidos pelo regime próprio de previdência, ressalvados, nos termos

definidos em leis complementares, os casos de servidores portadores de deficiência, os

que exerçam atividades de risco e aqueles cujas atividades sejam exercidas sob

condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. Estendeu, portanto,

a possibilidade de aposentadoria especial para os servidores que se encontram nessas

situações.

d) Acrescentou ainda o § 21 ao art. 40, determinando que a contribuição

dos inativos, no caso de o beneficiário ser portador de doença incapacitante, incidirá

apenas sobre as parcelas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o

dobro do teto estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

e) E trouxe regra transitória para quem era servidor, na data da Emenda

Constitucional 20/1998, aposentar-se voluntariamente com base na remuneração

integral e mantendo a paridade de reajuste com idades inferiores às previstas nas regras

permanentes (60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher).

Assim, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço

público até 16 de dezembro de 1998, poderá aposentar-se com proventos integrais,

desde que preencha, cumulativamente, as seguintes condições: (i) trinta e cinco anos de

contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; (ii) vinte e cinco anos

de efetivo exercício no serviço público, (iii) quinze anos de carreira; (iv) cinco anos no

cargo em que se der a aposentadoria; (v) idade mínima resultante da redução,

relativamente aos limites do art. 40, § 1.º, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal,

de um ano de idade para cada ano de contribuição que exceder a condição prevista na

alínea “a”.

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243

Referida regra transitória autoriza a quem era servidor público, em 16

de dezembro de 1998, aposentar-se embasado na integralidade da remuneração do cargo

efetivo em idade inferior a 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher. A aposentadoria,

pela norma do art. 3.º da Emenda Constitucional 47/2005, garante, ainda, a manutenção

da paridade nos reajustes das aposentadorias e das pensões geradas pelos servidores

aposentados dessa forma.

Mencionada emenda teve sua tramitação no Congresso Nacional em

paralelo à tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 40/2003 (que

resultou na EC 41/2003), motivo pelo qual ficou conhecida como “PEC paralela”. E

assim foi porque “O Senado Federal, para não alterar o texto da PEC 40/03 aprovado na

Câmara dos Deputados, o que faria com que a matéria voltasse à casa de origem,

introduziu as alterações que entendia necessárias, em acordo com a liderança do

Governo Federal”, por intermédio dessa “PEC paralela”, “ficando acertado que a

Emenda Constitucional, assim promulgada, teria efeitos retroativos à data de publicação

da Emenda Constitucional 41/2003 (31.12.2003). De tal modo, “todos os dispositivos da

Emenda Constitucional 47/2005, de natureza transitória ou permanente, retroagem a

31.12.2003, de acordo com o art. 6.º da Emenda Constitucional 47/2005”.457

Verifica-se, portanto, que os direitos e garantias dos servidores, que

compõem o seu regime jurídico constitucional, sofreram profundas mudanças em

decorrência do advento de várias emendas à Constituição (EC 03/1993, 19/1998,

20/1998, 41/2003 e 47/2005). A garantia da estabilidade, o sistema remuneratório, o

regime previdenciário próprio dos servidores públicos, destacadamente, foram os mais

modificados, tornando-se alvo de uma série de alterações que buscaram transformar

aludidos direitos e garantias. E, apesar da mantença da previsão dos direitos e garantias

fundamentais dos servidores na Lei Maior, justamente porque foram introduzidas

alterações nos direitos conquistados pela comunidade de servidores, é vital para se

entender a problemática aí gerada, que se proceda à análise da aplicação do princípio da

vedação ao retrocesso social a essa situação.

457 Dias e Macêdo, Nova Previdência do servidor público, p. 165-166.

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3.4 O princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico constitucional

do servidor público ocupante de cargo efetivo

De início importa aclarar que foram eleitos abaixo, sinteticamente,

cinco pontos importantes a serem analisados no que diz respeito ao regime jurídico dos

servidores públicos, seus direitos e garantias fundamentais e o papel protetivo do

princípio da vedação ao retrocesso social, no tocante às mudanças que possam ser

instituídas por emendas constitucionais em relação a referidos direitos e garantias.

Perante tantas modificações, sempre ao argumento de que o servidor

não tem direito adquirido a regime jurídico e que é necessário reduzir o déficit

orçamentário público, diminuir os gastos do governo com a sua folha de pagamento, ou

com a previdência social (dos servidores sujeitos ao regime próprio da previdência

social), ou que a estabilidade e eficiência muitas vezes se contrapõem, as alterações,

como se viu acima, acabaram por transformar intensamente a feição originariamente

atribuída ao plexo de direitos e garantias dos servidores estatutários. Dessa forma, a

preocupação deste último capítulo é examinar e evidenciar as alterações estabelecidas

nos direitos e garantias fundamentais que compõem o regime jurídico dos servidores e

se há ou não a possibilidade de retroceder, no que concerne a tais direitos e garantias,

quando se tem como modelo estatal o Estado (Neo)Social e Democrático de Direito.

Nesse passo, a discussão que se propõe centrar-se-á nas seguintes

questões:

1) O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e

garantias dos servidores públicos (item 3.4.1);

2) A importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos

direitos e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos (item 3.4.2);

3) O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere

aos direitos e garantias dos servidores públicos (item 3.4.3);

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4) O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a

proteção do direito adquirido social (item 3.4.4);

5) O princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica

(item 3.4.5).

Esses, portanto, são essencialmente os temas que merecem uma

apreciação mais aprofundada. E assim, e em face do objetivo do trabalho desenvolvido

até aqui, pretende-se discutir os mencionados pontos supralevantados com o auxílio do

que se expôs nos capítulos anteriores, o que permitirá, ao menos, um suporte crítico em

relação às questões que se ambicionam examinar.

3.4.1 O papel do Supremo Tribunal Federal no controle dos direitos e garantias dos

servidores públicos

Quanto a este primeiro ponto a ser analisado, verifica-se atualmente

uma tendência do Supremo Tribunal Federal em empregar argumentos político-

econômicos para justificar as mudanças regressivas nos direitos e garantias que

integram o regime jurídico dos servidores públicos. De tal modo, o intuito é examinar o

controle jurisdicional e a argumentação utilizada em julgados emanados pela Corte de

Justiça mais alta do País acerca dos direitos e garantias fundamentais dos servidores, em

que se cogita a aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social. E para iniciar a

análise da temática ora proposta será trazido a lume o pensamento jusfilosófico de

Ronald Dworkin.458 Para tanto, a título de melhor estruturar a exposição, o primeiro

458 Dworkin é o autor que, por meio de sua filosofia jurídica, melhor suporte oferece ao caminho que se

segue neste estudo, independentemente de o seu trabalho contextualizar-se no âmbito dos países de origem anglo-americana, do Common Law. Suas ideias influenciam os juristas e filósofos do direito brasileiro, porquanto, ainda que o sistema jurídico pátrio seja de tradição romano-germânica, a leitura do direito constitucional brasileiro a partir dos princípios, notadamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, vem ganhando cada vez mais força e importância e, com isso, teorias da decisão judicial, como a de Dworkin, construídas dentro da tradição anglo-americana, proporcionam novas formas de interpretação e novos olhares acerca da jurisdição constitucional e, por conseguinte, novos fundamentos para as decisões judiciais, especialmente para as decisões do Supremo Tribunal Federal. Além do mais, a própria concepção de Estado Social e Democrático de Direito tem convergido para um novo papel de controle jurisdicional das atividades estatais; novas técnicas legislativas (como, v.g., as cláusulas gerais presentes no Código Civil de 2002 que ressaltam o poder criativo do julgador) apontam para a importância do julgador dentro de um contexto fortemente influenciado por um novo paradigma constitucional.

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item tratará da tese dos princípios do autor, o que é vital para as ideias que se pretende

defender.

3.4.1.1 A tese dos princípios – os argumentos de princípio e os

argumentos de política

Pois bem, afastando-se do positivismo jurídico459 e do apego à

textualidade legal, Dworkin reconhece uma íntima ligação entre direito e moralidade,

propondo a ideia de que o ordenamento jurídico é composto não somente por normas,

mas, de igual modo, por princípios, nos quais se embasa a concepção de direito como

integridade.460

Nesse passo, à luz de um ordenamento jurídico que contemple não

apenas um conjunto de regras, mas também de princípios jurídicos, é indispensável que

o julgador proceda a uma interpretação que reconheça a importância desses princípios

para fundamentar e guiar suas decisões. Quando se adota uma concepção de Direito

preocupada efetivamente com a legitimidade democrática de suas decisões, surge o

compromisso do juiz em aplicar os princípios jurídicos de determinada comunidade a

459 Nota-se hoje, em tema de controle jurisdicional, que em muitos julgados há um apego ao positivismo

jurídico e à legalidade textual. É graças à metodologia do positivismo jurídico (legalista e analítico-linguístico) que o Judiciário brasileiro deixa de exercer, em muitos casos, o real papel que deveria desempenhar no resguardo do ordenamento jurídico brasileiro, além de fazer crer que esta é não só a metodologia que deve ser observada pelo juiz na solução do caso concreto, mas também aquela que é de fato empregada (José Antonio Savaris defende essa opinião apoiado também nos ensinamentos de Dworkin, Uma teoria da decisão judicial da Previdência Social: contributo para superação da prática utilitarista, 2010, Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 130).

460 Destaca que o primado jurídico de integridade orienta “os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade”. Consoante a tese do direito como integridade, “as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.” É dizer: Dworkin crê que existem, na teoria política, determinados ideais que necessitam ser seguidos bem de perto, quais sejam, “os ideais de uma estrutura política imparcial, uma justa distribuição de recursos e oportunidades e um processo equitativo de fazer vigorar as regras e os regulamentos que os estabelecem”. Para ser breve, chama-os “de virtudes da equidade, justiça e devido processo legal”. Existe ainda para Dworkin um quarto ideal, que se põe ao lado destes e com eles se relaciona, denominado integridade. E aponta duas formas de integridade: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial. A primeira forma restringe aquilo que os legisladores e outros partícipes de criação de direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar as normas públicas. E a segunda requer que, até onde seja possível, que os juízes tratem o “atual sistema de normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas” (Ronald Dworkin, O império do direito, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 199-200; 261-262; 271-272).

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fim de reconhecer direitos aos sujeitos. Por conseguinte, a vigência dos princípios

morais não emanará de um “teste de pedigree”,461 como diz Dworkin, mas de

exigências da própria moral (jurídica), compreendida na Constituição, e que gera efeitos

no plano concreto.

Assim, o foco da questão constitucional (apreciada pela Corte

Constitucional) deve deslocar-se da discussão das normas para a discussão dos direitos.

E, partindo da tese dos direitos, Dworkin afirma que os indivíduos podem ter outros

direitos para além daqueles especificados pela legislação, ou seja, existem direitos

provenientes de princípios jurídicos (é dizer, deixa à evidência que princípio é um modo

argumentativo de lidar com os direitos e que estes se manifestam por princípios).

Dworkin conceitua princípio como um “padrão que deve ser observado,

não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social

considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma

outra dimensão da moralidade”.462 E, diante dessa conceituação, objetiva distinguir

princípios e regras.

Nesse viés, Dworkin assegura existir uma distinção de natureza lógica,

em que as regras são aplicáveis de modo disjuntivo, isto é, segundo o sistema do tudo

ou nada; quer dizer, “Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e

461 O positivismo jurídico, na concepção de Hart, encerra um teste fundamental designado por Dworkin

de teste de origem ou pedigree, derivado da regra de reconhecimento, que atribui validade às regras. Dworkin questiona se o teste pode ser também aplicado aos princípios. Explica que, para Hart, “a maioria das regras de direito são válidas porque alguma instituição competente as promulgou. Algumas foram criadas por um poder legislativo, na forma de leis outorgadas”. E outras “foram criadas por juízes, que as formularam para decidir casos específicos e assim as instituíram como precedentes para o futuro”. No entanto, Dworkin afirma que “esse teste de pedigree não funciona para os princípios”, pois “A origem desses princípios enquanto princípios jurídicos não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas no (sic) compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo”. Portanto, confiar na correção do teste de pedigree é anuir ao positivismo jurídico, que concebe o Direito como um conjunto de regras. No entanto, é precisamente nessa parte que Dworkin assevera que não existem apenas as regras, mas, de igual modo, existem princípios, que não podem ser identificados por sua origem, mas sim por seu conteúdo e coerência argumentativa (Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, Tradução de Jefferson Luiz Camargo, 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 63-64).

462 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 36.

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neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em

nada contribui para a decisão”.463

Outra particularidade das regras é que, ao menos em tese, um enunciado

correto da regra levaria em conta todas as exceções e, se assim não se fizesse, o

enunciado da regra seria incompleto.464 As regras não possuem a dimensão de peso ou

importância. Pode-se dizer que as regras são funcionalmente importantes ou

desimportantes, isto é, “uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra

porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do

comportamento”. Todavia, não se pode dizer “que uma regra é mais importante que

outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão

em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior”. Além disso,

“Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida”.465

No tocante aos princípios jurídicos, são eles identificados por Dworkin

como tipos particulares de padrões, distintos das regras jurídicas. Os princípios

“parecem atuar de maneira mais vigorosa, com toda a sua força, nas questões judiciais

difíceis”, desempenhando “um papel fundamental nos argumentos que sustentam as

decisões a respeito de direitos e obrigações jurídicos particulares”.466

Os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância, ausente

nas regras. De tal modo, ocorrendo o conflito entre dois ou mais princípios em um

determinado caso, deve o intérprete levar em consideração o peso relativo de cada um

deles e verificar, naquela situação concreta, qual deve prevalecer, afastando o princípio

incompatível. Deve-se destacar, porém, que os princípios orientam a decisão dos juízes

e conservam-se intactos, ainda que não prevaleçam. Como os princípios são uma

463 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 39. 464 Idem, ibidem, p. 39. 465 Idem, p. 43. O autor continua sua explicação: “A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser

abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes. (Nosso sistema jurídico [norte-americano] utiliza essas duas técnicas.)” (Idem, p. 43).

466 Idem, p. 46.

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aproximação entre o Direito e a moral, teriam lugar na resolução dos casos difíceis.467

E, para decidir os hard cases, os juízes devem ter em conta os princípios políticos, e não

os argumentos de política.468 Os juízes não podem deixar de tomar decisões em

determinadas hipóteses, em relação às quais não exista uma regra clara, entretanto lhes é

defeso tomar decisões arbitrárias, ou seja, elas não podem ser decididas sem um

fundamento (baseado em princípios).

Dworkin considera necessário que o juiz, ao solucionar o caso concreto,

se mostre coerente não somente no que diz respeito às normas do sistema jurídico, bem

como, e fundamentalmente, no tocante aos princípios erigidos pela comunidade política.

É dizer, segundo o pensamento dworkiniano, uma determinada sociedade é

compreendida como composta por pessoas que concordam que sua prática é governada

por princípios comuns, e não apenas por regras cunhadas em consonância com um

acordo político.469 Juízes, por conseguinte, “devem assumir que suas decisões trazem

em si uma carga de responsabilidade política, exigindo dos mesmos uma coerência de

princípios”.470

467 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 127 e ss. 468 Dworkin entende que não cabe aos juízes legislar. Daí, como já se disse, o autor diferenciar

argumentos políticos – aqueles utilizados para justificar uma decisão política, demonstrando que vai ao encontro de certa meta coletiva – de princípios políticos – que justificam uma decisão política indicando que tal decisão respeita ou assegura algum direito. Os legisladores devem se munir de argumentos políticos, e sobre eles legislar; contudo, tribunais e juízes – como delegados da legislação – devem decidir, ainda que a respeito de casos difíceis, em obediência a princípios, e não em atenção a diretrizes políticas.

469 Dworkin, O império do direito, p. 254. De tal maneira, o modelo da comunidade de princípios concorda “[...] com o modelo das regras que a comunidade política exige uma compreensão compartilhada, mas assume um ponto de vista mais generoso e abrangente da natureza de tal compreensão. Insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína apenas quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte maneira: aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas por regras criadas por um acordo político. Para tais pessoas, a política tem uma natureza diferente. É uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça, equidade e justo processo legal e não a imagem diferente, apropriada a outros modelos, na qual cada pessoa tenta fazer valer suas convicções no mais vasto território de poder ou de regras possível” (Idem, ibidem, p. 254).

470 Nesse sentido, Flávio Quinaud Pedron, Esclarecimentos sobre a tese da única “resposta correta”, de Ronald Dworkin, Revista CEJ, Brasília, ano XIII, n. 45, p. 104, abr.-jun. 2009. Ao fazer referida observação, Pedron baseia-se nas palavras de Dworkin, quando este diz que “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificação para uma decisão particular, segundo a doutrina da responsabilidade, somente se for possível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anteriores que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas” (Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 138).

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É de ver que essa responsabilidade política dos julgadores existe quando

os juízes proferem uma decisão adequada, uma decisão correta à Carta

Constitucional,471 não centrada na legalidade textual, mas fundada nos princípios. No

Estado Social e Democrático de Direito, o indivíduo tem um direito fundamental à

obtenção de respostas corretas ou à possibilidade de dizer que uma resposta é correta e a

outra é incorreta; uma é constitucional e a outra é inconstitucional.472 Essa ideia é

essencial para uma nova visão da decisão judicial, própria de um Estado que se

preocupa com a democracia e que se centra na noção dos direitos. Aludida noção,

todavia, precisa ser embasada em argumentos de princípio, e não em argumentos de

política.

Dworkin entende que argumentos de política (ou de procedimento

político) não devem servir de base às decisões judiciais, pois o suposto bem-estar social,

não pode se converter na fundamentação de uma decisão judicial, na medida em que é

resultado de uma eventual maioria congressual (decisão parlamentar). Os juízes devem

atuar em conformidade com os princípios políticos eleitos pela sociedade, em particular

aqueles reunidos no documento constitucional. Assim, os argumentos de princípio

mostram que a decisão protege um direito dos indivíduos ou de um grupo específico.473

Os princípios descreveriam direitos, enquanto as políticas, objetivos.474 O Judiciário

471 Dworkin argumenta que há duas dimensões ao longo das quais se deve julgar se uma teoria fornece a

melhor justificação dos dados jurídicos disponíveis: a dimensão da adequação e a dimensão da moralidade política. A dimensão da adequação supõe que em um sistema moderno, desenvolvido e complexo, a probabilidade de duas teorias políticas diferentes poderem fornecer justificativas igualmente boas para uma controvérsia é muito pequena. [...] Será raro que muitos juristas concordem que nenhuma [teoria] fornece uma adequação melhor que a outra. Já a segunda dimensão, chamada de dimensão da moralidade política, parte do pressuposto de que, se duas justificativas oferecem uma adequação igualmente aos dados jurídicos, uma delas, não obstante, apresenta uma justificativa melhor que a outra se for superior enquanto teoria política ou moral, isto é, se apreendem melhor os direitos que as pessoas realmente têm (Ronald Dworkin, Uma questão de princípio, Tradução de Luis Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 213).

472 Nesse sentido está o pensamento de Streck, Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito, p. 70.

473 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 129. 474 Idem, ibidem, p. 142. Sobre a temática do objetivo político e do direito político Dworkin assim

aclara: “Começarei pela ideia de um objetivo político como uma justificação política genérica. Uma teoria política considera um determinado estado de coisas como um objetivo político se, para essa teoria, ele conta a favor de uma decisão política que tem a probabilidade de promover ou proteger tal estado de coisas, e contra uma decisão que irá retardar sua ocorrência ou colocá-la em perigo. Um direito político é um objetivo político individuado. Um indivíduo tem direito a uma oportunidade, a um recurso ou a uma liberdade se esse direito conta a favor uma decisão política que promove ou protege o estado de coisas no qual ele desfruta de tal direito, mesmo que com isso nenhum outro objetivo político seja servido e algum objetivo político desservido, e se esse direito contar contra a

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está legitimado para decidir baseando-se nos princípios, de modo a resguardar os

direitos individuais e sociais garantidos pela Constituição.

Consoante o pensamento de Dworkin, a política é “aquele tipo de

padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral, uma melhoria em algum

aspecto econômico, político ou social da comunidade”.475 A política traz em seu bojo

uma série de interesses vinculados às metas coletivas e objetivos sociais da comunidade.

Não trata, em sentido estrito, de direito e de situações de igualdade, mas sim de

situações político-econômicas desejáveis em face das condições concretas e factuais de

determinado grupo.

Logo, diante dessas ideias apresentadas, é possível verificar como o

Supremo Tribunal Federal deverá embasar suas decisões, em especial quando apreciar

questões que envolvam os direitos e garantias dos servidores públicos.

3.4.1.2 O emprego de argumentos de política pelo Supremo Tribunal

Federal e a teoria da reserva do possível

Pois bem, tendo o pensamento jusfilosófico supraexposto em mente,

verifica-se que, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal, verbi gratia, nas

Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.105 e 3.128, empregam no fundamento de

suas decisões argumentos como: o que afirma que a contribuição previdenciária

instituída está relacionada “à solvabilidade do sistema” (Ministro Gilmar Mendes);476

decisão que retardar ou colocar em perigo esse estado de coisas, mesmo que com isso algum outro objetivo político possa ser atingido. Uma meta é um objetivo político não individuado, isto é, um estado de coisas cuja especificação não requer a concessão de nenhuma oportunidade particular, nenhum recurso ou liberdade para indivíduos determinados” (Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 142-143).

475 Idem, ibidem, p. 36. 476 Assevera o Ministro Gilmar Mendes, acerca da questão, que da leitura da expressão “equilíbrio

financeiro e atuarial” se pode extrair a legitimidade de se tributarem servidores inativos: para o alcance do equilíbrio financeiro (receitas no mínimo equivalentes aos gastos) é preciso respeitar o equilíbrio atuarial (correlação entre contribuição e benefícios que os segurados receberão futuramente). Portanto, para a cobertura de uma receita ideal para o custeio das despesas, há um limite factual e normativo para a contribuição dos servidores em atividade, ou seja, esta não pode assumir valores exorbitantes, que tornem insustentáveis as suas vidas financeiras, nem pode ser do valor que não justifique, relacionalmente, o valor que lhe será pago em benefício futuramente. Assim sendo, “evidencia-se a importância de que todos os beneficiários do regime de previdência social do servidor público, inclusive os servidores inativos, concorram para a solidez e manutenção do sistema

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ou o que assevera que o direito à aposentadoria e à pensão “lamentavelmente custam

dinheiro” (Ministro Sepúlveda Pertence);477 ou mesmo o que se funda em explicações

de matemática atuarial, para proferir que a aludida contribuição serve para “resolver as

questões deficitárias do sistema” (Ministro Nelson Jobim);478 estão fazendo uso de

típico argumento de política.

Note-se que o julgador pode até entrar na questão orçamentária para

fundamentar a sua decisão, mas esse tipo de argumento de política, no entanto, não deve

prevalecer no sentido de haver só a política permeando a argumentação do magistrado.

É aí que Dworkin assevera que ao juiz não cabe valer-se (somente) de argumentos de

procedimento político. O problema é existirem apenas argumentos de política dentro de

um quadro de moralidade política.479 Nesse sentido, a questão econômica tem que ser

previdenciário”, garantindo-lhe “tanto o equilíbrio financeiro entre receitas e despesas quanto o equilíbrio atuarial entre contribuições e benefícios”.

477 Ponderando sobre o argumento do Ministro Carlos Britto de que “a seguridade social, compreendendo um conjunto integrado de ações de iniciativa do poder público da sociedade, destina-se a garantir direitos, não a subtraí-los ou mutilá-los”, diz que, “lamentavelmente, esses direitos custam dinheiro”. Logo, crê o Ministro Sepúlveda Pertence que o art. 195 vem para “dizer que essas ações integradas serão financiadas por toda a sociedade”, considerando específico o art. 195, que fala do financiamento da seguridade social.

478 Talvez tenha sido o Ministro Nelson Jobim o que mais se preocupou com argumentos político-econômicos na fundamentação do seu voto. Afirma que: o Ministro explica, segundo a matemática atuarial, que: “A visão que prepondera no equilíbrio atuarial não é a individual, ou seja, o direito individual de receber aquilo que pagou, mas a do sistema como um todo e a sua necessidade de ser autossuficiente, de ser viável financeiramente. Equilíbrio atuarial é a necessidade de existir equivalência entre o ativo líquido do sistema e a sua reserva matemática, na linguagem dos atuários. Essa reserva significa a diferença entre as obrigações do plano para com os seus segurados, isto é, o valor atual dos benefícios futuros ou custo previdenciário – trazem-se os benefícios futuros, chamados custos previdenciários, para o momento atual – e as obrigações dos segurados para com o plano, o valor atual das contribuições. Se a previsão atual de arrecadação futura é maior do que a previsão atual do pagamento de benefícios futuros, o sistema reflete superávit. Se, ao contrário, a previsão atual de arrecadação futura é menor do que a previsão atual de pagamento de benefícios futuros – essa diferença não se compensa com o patrimônio líquido atual do sistema –, o sistema está com déficit. É isto que significa o princípio do equilíbrio atuarial: um cálculo matemático com regras de probabilidade, ou seja, uma especialidade da matemática que trabalha exatamente com as ações de futuro, absolutamente nada a ver com as relações entre haver pago e ter direito a receber. Se fosse verdadeira a tese à qual me referi, teríamos a impossibilidade total de resolver as questões deficitárias do sistema, porque, se tivéssemos que ter, a todo aumento ou criação de contribuições e tributo, um benefício subsequente, é evidente que não teríamos, em hipótese alguma a possibilidade de trabalhar nesse sentido”.

479 O papel da moralidade política é orientar o julgador no trânsito dos argumentos de princípio político e/ou procedimento político. Dworkin não ignora a hipótese de o juiz decidir cosoante este último argumento, todavia em seu pensamento jusfilosófico a justiça é melhor efetivada quando embasada nos princípios políticos, uma vez que são centrados nos direitos morais dos indivíduos, e, portanto, estão além de qualquer risco de escolhas arbitrárias da coletividade, não providas da necessária isonomia. Empregando os argumentos de princípio político, a jurisdição é legitimada e se afirmam os direitos que os indivíduos têm, direitos estes que são revestidos de conteúdo moral.

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apreciada em termos de justiça social a fim de reaproximar o Direito e a moral. Donde

Dworkin dizer que deve haver a prevalência dos princípios que estão ligados à tese dos

direitos e à ideia de moral (jurídica).480

Contudo, verifica-se que a efetividade dos direitos fundamentais, em

especial dos direitos sociais, comumente encontra-se relacionada a argumentos políticos

(tal qual nos argumentos colhidos dos votos dos ministros do Supremo Tribunal

Federal). Dessa forma, pelo fato de os direitos fundamentais sociais serem direitos que

requerem prestações estatais ligadas de modo direto à destinação, distribuição (e

redistribuição) de recursos, aponta-se para sua dimensão economicamente relevante.

Destarte, observa-se que os julgados supracitados preocupam-se com o

gasto que se tem com os direitos fundamentais sociais, alinhando-se ao entendimento de

parte considerável da doutrina que assevera que a efetiva concretização das prestações

demandadas “não é possível sem que se aloque algum recurso, dependendo, em última

análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a possibilidade de os órgãos

jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das prestações reclamadas”.481 De

tal maneira, essa questão gira em torno da denominada reserva do possível, seu

conteúdo, e os limites da atuação jurisdicional nesse tema, especificamente quando esta

tropeça em carência de recursos, limitações orçamentárias e entraves de outra

natureza.482 Assim, parece ser necessário expor algumas linhas acerca da reserva do

480 Para Dworkin a moral baseia-se na ideia de que as pessoas devem ser tratadas como iguais. Esta

norma fundamental irá se introduzir na prática judicial, pois Dworkin a considera como capaz de absorver conteúdos normativos.

481 Sarlet, Os direitos sociais como direitos fundamentais..., p. 20-21. 482 Nas palavras de Sarlet esclarecendo a reserva do possível: “A utilização da expressão ‘reserva do

possível’ tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a ‘reserva do possível’ (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Tais noções foram acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Com efeito, mesmo dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de

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possível a fim de verificar se a citada teoria é compatível com a vedação ao retrocesso

social.

Com isso, abre-se espaço, após várias ideias expostas, sem querer com

tal abertura cair em contradição na exposição do tema, para apresentar a problemática

que ora se coloca, de acordo com a doutrina da reserva do possível, que, como se disse,

tem conteúdo nitidamente econômico-financeiro e, por conseguinte, constitui-se em um

argumento político que não encontra espaço no pensamento de Dworkin quando este

jusfilósofo trata da fundamentação da decisão judicial. No entanto, conforme já se

alertou, a questão dworkiniana, nesse aspecto, não é tanto a limitação de adentrar na

análise de conteúdos político-econômicos por parte do julgador, mas de este empregar

de modo prevalente tais argumentos na fundamentação das decisões judiciais para

sustentar a única resposta correta.

Portanto, esclarecido esse ponto, será falado, ainda que brevemente, da

reserva do possível e da sua aplicação, quando o tema envolver a questão econômica e

orçamentária do Poder Público e os direitos fundamentais, pois parece ser algo que

merece enfrentamento no presente estudo, na medida em que é argumento

constantemente levantado pelo Estado-Administração quando se trata de efetivar

direitos sociais fundamentais.

Destarte, referida teoria tem origem na Alemanha,483 como viabilidade

lógica de efetivação de direitos fundamentais, não tendo sido utilizada como norma

assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador” (Os direitos sociais como direitos fundamentais..., p. 23-24).

483 Na discussão acerca das restrições à efetivação de direitos fundamentais sociais, a assim denominada cláusula da reserva do possível é constantemente invocada. Tal hipótese foi mencionada em julgamento promovido pelo Tribunal Constitucional alemão, em decisão conhecida como Numerus Clausus (BverfGE 33, S. 333). No caso, a Corte alemã analisou demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina de Hamburgo e Munique em face da política de limitação do número de vagas em cursos superiores adotada pela Alemanha em 1960. A pretensão foi fundamentada no art. 12 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. Ao decidir a questão, o Tribunal Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva – no caso aumento do número de vagas na universidade – encontra-se sujeito à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode esperar, de maneira racional, da sociedade. Ou seja, a argumentação adotada refere-se à razoabilidade da pretensão. Na análise de Sarlet, o Tribunal alemão entendeu que “[...] a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode

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principiológica. Quando de sua criação pelo Tribunal Constitucional Federal alemão,

não foi compreendida como reserva do financeiramente possível, mas sim como um

limite fático, tanto financeiro quanto estrutural, daquilo que o indivíduo pode

razoavelmente exigir da sociedade e do Estado. No entanto, a partir do momento em que

foi transportada para o Brasil, sob a influência do pensamento de Canotilho,484 veio

como limite orçamentário à implementação dos direitos fundamentais sociais, passando

a ensejar, em terras pátrias, análises econômicas sobre a efetivação dos direitos

fundamentais.

Entretanto, essa interpretação e transposição que se fizeram de tal

teoria, especialmente em solo brasileiro, como teoria da reserva do financeiramente

possível, consideraram como limite absoluto à efetivação de direitos fundamentais

sociais (i) a suficiência de recursos públicos e (ii) a previsão orçamentária da respectiva

despesa.485 Contudo, ultimamente, sobretudo como resultado de um posicionamento

incisivo da jurisprudência, a teoria da reserva do financeiramente possível não tem sido

aplicada como pretenso remédio universal para todos os males, capaz de afastar a

obrigatoriedade de efetivação dos direitos fundamentais sociais pelo Estado, pois as

decisões judiciais passaram a exigir prova da inexistência de recursos públicos, ou seja,

a comprovação da falta de recursos, igualmente designada de esgotamento

orçamentário.486-487

razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo dispondo o Estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável” (Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 287).

484 Andreas Joachim Krell, Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”, Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 51-52.

485 Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 288. 486 Fernando Borges Mânica, Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a

intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 181, jul.-set. 2007.

487 Nesse ponto importa destacar a decisão do STF na ADPF 45, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29.04.2004, acerca do tema: “[...] É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em

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Nesse viés, Sarlet explica que a doutrina sustenta que a chamada reserva

do possível, notadamente se concebida em uma acepção mais ampla, exibe ao menos

três dimensões,488 que podem ser assim compreendidas: a) os recursos devem estar

realmente (faticamente) disponíveis para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a

disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que mantém estreito

atrelamento com a repartição das receitas e competências tributárias, orçamentárias,

legislativas e administrativas, entre outras, e que, ademais, requer equacionamento,

especialmente no caso do Brasil, diante do sistema constitucional federativo brasileiro;

c) por sua vez, sob o prisma (também) do eventual titular de um direito a prestações

sociais, a reserva do possível relaciona-se com o problema da proporcionalidade da

prestação, com destaque para a questão referente à sua exigibilidade e, nesta quadratura,

de igual forma, da sua razoabilidade. Todos os sentidos aludidos conservam liame

estreito entre si e com outros princípios constitucionais (v.g., os da igualdade e

subsidiariedade), determinando, além disso, um equacionamento sistemático e

constitucionalmente apropriado, para que, na perspectiva do princípio da máxima

eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam funcionar não como obstáculo

intransponível, mas até mesmo como instrumento para a garantia também dos direitos

sociais de caráter prestacional.

Todavia, ainda que existam diferentes dimensões acerca da temática da

reserva do possível, a ideia em destaque é o custo dos direitos sociais que o Estado é

obrigado a prestar, ou seja, até que ponto se pode exigir do Estado o cumprimento de

prestações que estão inteiramente ligadas a maior ou menor carência de recursos

disponíveis para o atendimento das demandas em termos de políticas sociais. Nesse

viés, tem-se presente o seguinte dilema: a reserva do possível alegada pelo Estado-

Administração versus a efetivação progressiva dos direitos fundamentais sociais,

exigida pela Constituição.

favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”.

488 É o caso de Sarlet (Os direitos sociais como direitos fundamentais..., p. 24; A eficácia dos direitos fundamentais, p. 287).

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Deveras, consoante a doutrina que trata da reserva do possível, a

aplicação da aludida teoria resulta no reconhecimento, de um canto, da ideia de que os

direitos fundamentais não são dotados de supremacia absoluta em todo e qualquer caso;

de outra banda, reconhece-se a “inexistência da supremacia absoluta do princípio da

competência orçamentária do legislador e da competência administrativa

(discricionária) do Executivo como óbices à efetivação dos direitos sociais

fundamentais”. Nesse diapasão, “Isso significa que a inexistência efetiva de recursos e

ausência de previsão orçamentária são elementos não absolutos a serem levados em

conta” no processo de decisão do magistrado. Por conseguinte, “o custo direto

envolvido para a efetivação de um direito fundamental não pode servir como óbice

instransponível para sua efetivação”, embora não possa ser totalmente ignorado no

processo decisório realizado pelo julgador.489 Conquanto a reserva do possível seja um

argumento político-econômico, não deixa de consistir também em uma limitação lógica

e fática à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos,

atravessando o iter do juiz no processo que ele percorre para chegar à correção da

decisão.

De tal forma, a reserva do possível está longe de ser um argumento

(político) absoluto para barrar a efetivação dos direitos fundamentais em sentido

progressivo. Ainda que se argumente com essa teoria na fundamentação da solução

judicial – contrariando o pensamento jusfilosófico de Dworkin para quem argumentos

político-econômicos não devem ser (tão só ou de modo prevalente) empregados para

fundamentar decisões jurisdicionais –, ela não pode constituir óbice para a efetivação

dos direitos fundamentais econômicos, sociais e culturais.

Por conseguinte, mesmo que a reserva do possível colida prima facie

com o princípio do não retrocesso social, os gastos com a materialização desses direitos

não importam em permissão concedida ao Estado para regredir em termos de conquistas

sociais.

489 Mânica, Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder

Judiciário na implementação de políticas públicas, p. 184-185.

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Com isso não se está a negar que a falta de recursos exista como fator

limitador da efetividade dos direitos sociais e possa ser alegada (e provada) pelo Estado-

Administração (ou mesmo considerada como parâmetro inspirador para a edição de

normas financeiras e orçamentárias). Todavia, em razão de a Constituição Federal de

1988 agasalhar um modelo de Estado Social, não se pode permitir que o Estado

brasileiro abra mão de conquistas sociais já alcançadas para justificar retrocessos sociais

que contrariam o desenvolvimento social em que se deve primar por modificações

ampliadoras de direitos. De tal modo, em situação de reserva orçamentária (ainda que

finita), o Estado não se exime de ter de cumprir as prestações a que está obrigado pelo

ordenamento jurídico-constitucional. Portanto, nessas condições, se for para retroceder,

a justificativa da reserva do possível não deve prosperar, pois o princípio do não

retrocesso social tem o efeito de blindar as conquistas sociais perante a reserva do

possível.

Sendo realmente argumento típico – e, de certa maneira, até esperado –

do Executivo e do Legislativo dizer que mudanças na Constituição são essenciais para a

contenção/redução dos gastos com os servidores públicos, de outro canto, pautar-se em

argumentos que analisem questões sob a tese dos princípios é argumento que cabe ao

Judiciário. Por conseguinte, a resposta correta do julgador deverá ser embasada em

argumentos de princípio. Ao magistrado não cabe proceder no lugar daqueles

“poderes”, ou seja, não cabe ao juiz argumentar com base em argumentos próprios de

governante ou de legislador. O juiz não deve basear-se em argumentos metajurídicos

(político-econômicos) para resolver o caso sub judice.

Concorda-se com Dworkin quando profere que é da competência do

magistrado decidir os casos jurídicos em que há litígios, aplicando as soluções que o

Direito exige, pois, do contrário, o Judiciário estaria indo além de sua cota de

legitimidade democrática.490 Contudo, fazer uso de argumentos político-econômicos

490 Conforme explicam Vera Karam de Chueiri e Joanna Maria de Araújo Sampaio, “Os argumentos

políticos só são legítimos para os poderes executivo e legislativo, pois, como representantes da maioria, podem decidir o que seria melhor para ela. Ao judiciário cabe aplicar coerentemente as normas – em uma acepção aberta, a qual compreende regras e princípios –, para isso, deve se fundamentar em um argumento de princípio, isto é, deve garantir que, na aplicação de uma norma ou política pública, nenhum princípio eleito pela constituição seja descumprido” (Vera Karam de Chueiri e Joanna Maria de Araújo Sampaio, Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a suspensão de tutela antecipada n. 91, Rev. Direito GV, São Paulo, v. 5. n. 1, jan.-jun. 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322009000100003>. Acesso em: 8 mar. 13).

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(unicamente ou de forma prevalente) em hipóteses em que o julgador tenha de apreciar

a efetividade de algum direito fundamental social, torna-se, em muitos casos, difícil de

evitar, uma vez que o viés econômico-financeiro pode clamar pela atenção do julgador

quanto a esse aspecto.

No entanto, embora exista uma preocupação de que a ausência de recursos

seja fator limitador da plena aplicação da vedação ao retrocesso social, fazendo com que o

julgador adentre na seara econômico-financeira em suas decisões, a reserva do possível não

poderá impedir, enfatiza-se, a efetivação progressiva de um direito, pois, mesmo diante da

falta de recursos491 e da necessidade de moralização dos recursos, o enfraquecimento dos

direitos dependerá de um juízo de adequação do julgador, amparando-se na equivalência

jurídica (adiante estudada – item 3.4.5), que deverá ser observada, por intermédio de criação

de medida que possa equilibrar suficientemente essa ausência de recursos.492 E, assim, o

aspecto econômico será enfrentado em termos de justiça social por meio da justa

distribuição de recursos, sendo imperioso, por conseguinte, que o juiz atenda as

necessidades e as realidades jurídicas, tendo, como foco argumentativo, a preocupação com

os direitos dos administrados (no caso, dos servidores).

3.4.2 A importância das “cláusulas pétreas” na democracia e a proteção aos direitos

e garantias dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos

Segundo Dworkin, o constitucionalismo e a democracia são

perfeitamente compatíveis.493 Conforme suas lições, a democracia constitui-se em regra

491 Nos dizeres de Ada Pellegrini Grinover: “Observe-se, em primeiro lugar, que não será suficiente a

alegação de falta de recursos pelo Poder Público. Esta deverá ser provada, pela própria Administração, vigorando nesse campo quer a regra da inversão do ônus da prova (art. 6.º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor), aplicável por analogia, quer a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, que flexibiliza o art. 333 CPC, para atribuir a carga da prova à parte que estiver mais próxima dos fatos e tiver mais facilidade de prová-los” (Ada Pellegrini Grinover, O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário, Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito, v. 7, n. 7, p. 24, 2010).

492 Mesmo nessas situações (do item 3.4.5), o enfraquecimento dos direitos e garantias dependerá de um juízo de adequabilidade, pois é dever de o ente estatal seguir uma progressão contínua para efetivar, cada vez mais, os direitos fundamentais. Essa progressiva ampliação, dentro de um crescimento econômico e de uma suficiência de recursos, não pode ter como empecilho, portanto, a alegação da reserva do possível.

493 Dworkin explica que, para ele, constitucionalismo significa “um sistema que estabelece direitos jurídicos individuais que o legislador dominante não tem o poder de anular ou comprometer”. Com efeito, “O constitucionalismo, assim entendido, é um fenômeno político cada vez mais popular”. E

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da maioria legítima,494 significando que o simples fator majoritário não institui a

democracia. No entanto, é possível asseverar que certo tipo de estrutura constitucional

que uma maioria não possa modificar é seguramente um pré-requisito para a

democracia.

Assim sendo, além de normas constitucionais possibilitadoras, “que

constroem um governo da maioria estipulando quem deve votar, quando as eleições

devem se realizar, como os representantes são designados para os distritos eleitorais,

que poderes cada grupo de representantes tem, e assim por diante”, é necessário que

sejam estabelecidas normas constitucionais protegendo um núcleo de direitos e

garantias dos indivíduos, colocando-o a salvo de uma maioria capaz de alterá-lo.495 É

exatamente esse o papel das “cláusulas pétreas” na Constituição de 1988.

Ditas cláusulas podem ser enquadradas naquilo que Dworkin denomina

de normas constitucionais limitadoras, sendo, de modo pleno, vitais à democracia, dado

que uma maioria poderia extingui-la quase que de forma efetiva ao retirar de uma

diz: “Vem se tornando cada vez mais comum supor que um sistema jurídico respeitável deve incluir a proteção constitucional de direitos individuais” (Ronald Dworkin, Constitucionalismo e democracia, p. 1. Tradução de Emílio Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal of Philosophy, n. 3:1, p. 2-11, 1995. Disponível em: <http://pt.scribd.com/ doc/44585350/Ronald-Dworkin-Constitucionalismo-E-Democracia>. Acesso em: 24 abr. 2012).

494 No seu entender, “Um voto da maioria não alcança a legitimidade requerida a menos que, primeiro, todos os cidadãos tenham a independência moral necessária para participar da decisão política como agentes morais livres, e a menos que”, conforme, “o processo político seja tal que trate todos os cidadãos com igual consideração e respeito”. Logo, “Se isto está certo, os pressupostos da democracia incluem alguns direitos – quais deles é uma questão para se debater – tendentes a assegurar tais condições”. Defende ser necessário “incluir a liberdade de consciência e religião, assim como a liberdade de expressão política, e deve-se garantir que decisões políticas não estabeleçam preconceito contra qualquer grupo, desdenhando-os ou não os diferenciando na medida em que seja necessário” (Dworkin, Constitucionalismo e democracia, p. 5-6).

495 Como diz Dworkin sobre esse ponto: “algum tipo de estrutura constitucional que uma maioria não pode mudar é certamente um pré-requisito para a democracia”. Desse modo, “Devem ser estabelecidas normas constitucionais estipulando que uma maioria não pode abolir futuras eleições”, v. g., “ou privar uma minoria dos direitos de voto”. Tais regras, denominadas por Dworkin de normas constitucionais limitadoras, são plenamente essenciais à democracia, pois “Uma maioria destruiria a democracia quase que efetivamente retirando de uma minoria o direito de livre expressão do mesmo modo que se negasse voto à mesma, por exemplo”. Até porque, ao se fazer uma distinção entre normas constitucionais possibilitadoras, “que constroem um governo da maioria estipulando quem deve votar, quando as eleições devem se realizar, como os representantes são designados para os distritos eleitorais, que poderes cada grupo de representantes tem, e assim por diante”, e normas constitucionais limitadoras, “que restringem os poderes dos representantes que as normas possibilitadoras definiram”, não se pode “dizer que apenas as normas possibilitadoras são pré-requisitos da democracia, porque algumas normas constitucionais que possam, aparentemente, ser normas limitadoras são plenamente essenciais à democracia (Idem, ibidem, p. 2-3).

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minoria, e.g., os direitos e garantias fundamentais. Além do mais, a Constituição

defende não só os objetivos da maioria, mas também os direitos das minorias. A

Constituição resguarda as minorias do excesso de poder da maioria e compete ao juiz

dar efetividade a essa proteção.496

Desse modo, no tocante à questão das cláusulas constitucionais,

reconhecidas na concepção dworkiniana, se de um lado são estabelecidas as normas

constitucionais possibilitadoras, referentes ao governo da maioria, que poderiam ser

entendidas, na Constituição de 1988, como, v.g., as regras referentes ao voto,

determinando quem deve votar (art. 14, caput e § . ,da CF), as condições de

elegibilidade (art. 14, §§ 3.º a 8.º, da CF) e quando as eleições devem se realizar (art.

28, caput; e art. 77, caput), de outro, é vital para a democracia que normas

constitucionais limitadoras (“cláusulas pétreas”) existam no corpo da Carta Maior para

restringirem os poderes dos representantes que as normas possibilitadoras definiram, e,

por conseguinte, não devem ser relativizadas.

Nota-se, portanto, que as duas espécies de normas constitucionais

(possibilitadoras e limitadoras) constituem pré-requisito para a democracia,

representando as duas faces da mesma “moeda democrática”. De tal maneira, é

essencial que se respeite o alto nível de proteção que o Poder Constituinte Originário

conferiu ao núcleo normativo constitucional limitador.

Logo, sendo tão essenciais para a democracia, não se podem aceitar

argumentos como os do Ministro Joaquim Barbosa, nas Ações Diretas de

Inconstitucionalidade 3.105/DF e 3.128/DF, que pretendam atribuir às “cláusulas

pétreas” o papel de “vilãs” no ordenamento jurídico constitucional.

Segundo o pensamento do citado ministro, embora se possam enxergá-

las “como instrumento poderoso, de extrema utilidade para a preservação de um núcleo

essencial de valores constitucionais”, não se pode negar que elas ganharam hoje uma

amplitude desmesurada. Vê as “cláusulas pétreas” como uma teoria de “construção

496 Para Dworkin, os juízes são também atores principais da transformação social, participando

positivamente na democracia contemporânea, por ser um poder estratégico capaz de afirmar e proteger os princípios democráticos.

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intelectual conservadora, antidemocrática, não razoável, com uma propensão

oportunista e utilitarista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos

pelo nosso sistema constitucional”.

Afirma que, se forem “acolhidas de forma absoluta, sem qualquer

possibilidade de limitação ou ponderação com outros valores igualmente importantes,

tais como os que proclamam o caráter social do nosso pacto político, a teoria das

cláusulas pétreas terá como consequência a perpetuação” da desigualdade. Em outros

termos, representaria um formidável instrumento de perenização de certos traços da

organização social brasileira.

Assevera que “A Constituição de 1988 tem como uma das suas metas

fundamentais operar profundas transformações em nosso quadro social. É o que diz seu

art. 3.º, incisos III e IV”. Com isso, ao se interpretar de modo absoluto as “cláusulas

pétreas”, haveria um forte obstáculo para a concretização desse objetivo. Daí infere “o

caráter conservador da sua pretendida maximização”.

Anota que a “petrealidade” das cláusulas seria antidemocrática porque

impediria “que o povo, por intermédio de seus representantes legitimamente eleitos,

promova de tempos em tempos as correções de rumo necessárias à eliminação paulatina

das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos”.

E acrescenta, ademais, que as “cláusulas pétreas” teriam cunho ilusório,

pois no “constitucionalismo moderno, somente por intermédio dos procedimentos da

emenda constitucional e da jurisdição constitucional, fenômeno jurídico hoje quase

universal, é que se consegue manter a sincronização entre a Constituição e a realidade

social”, em que se tem uma evolução contínua e em ritmo avassalador. É insensato

“conceber que o constituinte originário possa criar aquilo que o Professor Canotilho

qualifica como uma “constituição imorredoira e universal”. Nesse sentido, “A evolução

do pacto constitucional deve ser a regra, sob pena de se criar um choque de gerações,

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263

que pode até mesmo conduzir à esclerose do texto constitucional e do pacto político que

ele materializa”.497

Ora, em que pesem os argumentos do ministro, não é aceitável que em

um Estado Democrático de Direito sejam possíveis várias das suas afirmações. Nesse

sentido, a exposição feita no presente tópico, além de deixar evidente a ideia de que,

mesmo com caráter limitador, as “cláusulas pétreas” são vitais para a democracia

(consoante já se introduziu inicialmente), procurará esclarecer a importância protetiva

que conferem aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (representados, no

presente trabalho, pelos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos).

Com efeito, a competência reformadora da Constituição Federal é

exercida pelo Congresso Nacional, por meio das emendas constitucionais. Além de

derivado e subordinado (conforme visto no Capítulo 2) referido “poder” é, de igual

modo, condicionado, encontrando limitações procedimentais (art. 60, incisos I, II e III,

da CF), circunstanciais (art. 60, § 1.º, da CF), temporais (art. 60, § 5.º, da CF) e

materiais (art. 60, § 4.º, incisos I, II, III e IV), sendo estas últimas (as limitações

materiais) as denominadas “cláusulas pétreas”. Estas funcionam como garantia de

“conservação da identidade e dos princípios fundamentais da Constituição”,498

resguardando-a, por ser ela “mãe e guardiã da democracia”.499 Dentre as “cláusulas

pétreas”, tem-se o respeito aos direitos e garantias fundamentais (individuais e sociais)

como barreira às emendas à Constituição, impedindo-se que a competência para

reformar a Lei Maior brasileira afronte ditos direitos e garantias, os quais receberam

explicitamente do Poder Constituinte Originário a atribuição de

superconstitucionalidade.500

497 Esses são os argumentos expostos pelo Ministro Joaquim Barbosa, no julgamento conjunto das ADI

3.105 e ADI 3.125, movidas para questionar a constitucionalidade da contribuição previdenciária incidente nos proventos de aposentadoria dos servidores inativos.

498 Adriano Sant’Ana Pedra, A Constituição viva: poder constituinte e cláusulas pétreas, Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, p. 94.

499 Ronald Dworkin, O império do direito, p. 476. 500 Termo usado por Brandão ao referir-se às “cláusulas pétreas” (Direitos fundamentais, cláusulas

pétreas e democracia: uma proposta de justificação e de aplicação do art. 60, § 4.º, IV, da CF/88).

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No entanto, relativizando essa proteção limitadora das emendas à

Constituição, vem o citado pensamento do Ministro Joaquim Barbosa, que se aproxima

claramente das ideias preconizadas por Robert Alexy, para quem a ponderação de

valores serve para relativizar todos os direitos e garantias fundamentais, repelindo,

dessa forma, a hipótese da edificação de uma lista abstrata de precedências ou de uma

disposição hierarquizada de referenciais interpretativos. Ao adotar referido pensamento

jusfilosófico, deixa-se evidente o propósito de justificar que as necessidades coletivas

ou estatais devem se sobrepor aos direitos fundamentais dos indivíduos, ou seja, o peso

e a necessidade dos interesses de muitos, e do próprio Estado, devem sempre prevalecer

em relação ao peso e à necessidade de interesses dos indivíduos.501

No aludido voto, adere-se à maneira de tratar os princípios

constitucionais sob nítida influência da tradição alemã, isto é, como “comandos

otimizáveis”,502 o que significaria submeter as normas a uma estimativa de tipo

custo/benefício.503 Com efeito, sob a perspectiva alexyana, a prevalência de certo

501 No sentido de criticar a ponderação de valores proposta por Robert Alexy está o pensamento de

Álvaro Ricardo de Souza Cruz (Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Jurisdição constitucional democrática, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 196-199).

502 Consoante entende Robert Alexy, “os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não depende só das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado por princípios e regras opostos” (Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. 86). Nesse viés, diante de uma colisão de princípios Alexy explica que as colisões devem ser solucionadas de maneira distinta das regras. Ou seja, “Quando dois princípios entram em colisão – tal como é o caso quando segundo um princípio algo está proibido e, segundo outro princípio, está permitido, um dos princípios tem que ceder ante o outro. Mas isto não significa declarar inválido o princípio desprezado, nem que o princípio desprezado tenha que introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. Isto é, o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso” (Idem, ibidem, p. 89).

503 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, em uma linha crítica quanto às ideias de Alexy e a acolhida que o STF deu a elas, assevera: “A nova hermenêutica constitucional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, chamou de “relativização do princípio da supremacia do interesse público”, com base em uma nova compreensão, segundo a qual o raciocínio jurídico deve ser compreendido como uma “ponderação de valores”, em que os princípios constitucionais passam a ser tratados, seguindo a tradição da jurisprudência dos valores na Alemanha, como “comandos otimizáveis”, que colidem entre si para reger um caso concreto (Alexy). Esses “princípios” devem ser aplicados em diferentes graus, mediante a utilização de “regras de prioridade” e do princípio da proporcionalidade, a uma mesma decisão judicial, vista como um meio preferível, conveniente ou ótimo para a realização de um ideal totalizante de sociedade, que estaria pressuposto à Constituição: uma pretensa ordem concreta de valores, supostamente compartilhados por todos os membros da nossa sociedade política”. No entanto, acrescenta: “Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do

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princípio sobre outro ocorreria por uma questão de importância; explica-se: se

determinado comando de otimização se reveste de maior importância, ele deve ser

preferido ante outro.

Todavia, conceber os princípios tal como ambiciona Alexy é sujeitar o

Direito, “e sua aplicação, a uma questão de preferências perante fins que não seguem

uma ótica capaz de ser defendida como válida diante de um sistema de direitos

fundamentais”. Dessa maneira, “a operação de ponderação é assim, alheia a qualquer

critério de racionalidade normativa, transformando-se em uma discussão que chega,

para Habermas, a resultados discricionários ou arbitrários”.504 Há, por conseguinte, um

problema nesse entendimento defendido por Alexy: “corre-se o risco de confundir

direitos com bens, podendo ter sua aplicação negociada”.505

Direito. E tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Judiciário definir o que pode ser discutido e expresso como digno desses valores, pois só haveria democracia, desse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham de um modo comunitarista os mesmos supostos axiológicos, os mesmos interesses, uma mesma concepção de vida e de mundo” (Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, A teoria discursiva no debate constitucional brasileiro: para além de uma pretensa dicotomia entre um ideal transcendental de Constituição e uma cruel e intransponível realidade político-social. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp? codigo=60>. Acesso em: 27 maio 2012).

504 Lúcio Antônio Chamon Júnior, Tertium nom datur: pretensões de coercibilidade e validade em face de uma teoria da argumentação jurídica no marco de uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito, In: Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (Coord.), Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito, Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 112-113. Nesse mesmo sentido, esclarecendo a possibilidade de se emanar uma decisão judiciária arbitrária, se esta tiver por base o pensamento alexyano, está Daniel Barile da Silveira, que assim pondera: “Como em cada magistrado residem concepções diferentes da realidade social, um valor possui mais valor do que outro em seu íntimo, vislumbrando na questão prática diferentes hierarquizações axiológicas impossíveis de serem objetivadas universalmente. Nestes casos, abrir-se-ia uma janela fecunda para o extravasamento da subjetividade, o que deveras exsurge como pano de fundo o questionamento sobre a própria racionalidade desse procedimento decisório. Como consequência lógica, um princípio excluiria o outro, trazendo graves incoerências na vida cotidiana. Ademais, se partirmos do princípio que uma colisão entre princípios deve ser dirimida a partir de seu balanceamento, apenas poderemos ponderá-los se os concebermos em seu ponto ótimo, em sua maximização, o que inviabiliza na prática sua validade como veículo de aplicação. Isto se justifica na medida em que, como se verifica empiricamente, tais princípios sofrem interferências e minimizações por outros princípios, quase nunca se vislumbrando a otimização de princípios, como quer Alexy. Assim entendido, o conteúdo normativo dos princípios acaba não recebendo a devida atenção, esvaziando o texto da Constituição dessa força mandamental” (Daniel Barile da Silveira, Paradigmas de interpretação constitucional: desafios ao entendimento das sociedades modernas, Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 1, n. 1, p. 56, mar. 2006. Disponível em: <www.ufsm.br/revistadireito/eds/v1n1/a4.pdf>. Acesso em: 8 set. 2012).

505 Flávio Quinaud Pedron, Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dworkin, Revista CEJ, Brasília, n. 30, p. 75, jul.-set. 2005.

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Nessa toada, importa fazer um alerta para o risco que é próprio de um

modelo de valores: se um tribunal adotar essa posição estará concebendo os princípios

não como direitos, mas como bens que podem ou não interessar ao intérprete, a

depender de este fazer parte ou não de um determinado círculo de pessoas. No entanto,

“interpretar o Direito legitimamente não implica transformar-nos em pregadores de

nossa concepção ética [...]”.506

Se acaso o “poder” reformador da Constituição for de encontro aos

limites de reforma, em especial das “cláusulas pétreas”, estará atuando de modo

inconstitucional, por ofensa aos direitos fundamentais dos administrados garantidos

pelo Poder Constituinte Originário. Referidas limitações têm o intento de impedir a

eliminação de matérias que formam um núcleo constitucional que não pode ser tocado

se o objetivo do legislador reformador for o de enfraquecê-lo; logo, pode ser

considerado tangível (dentro de uma situação de regularidade e de moralidade de

recursos) tão só se for para receber adensamento.507 Isto porque este núcleo protegido é

fruto de uma escolha soberana e limitativa realizada pelo Constituinte Originário,

servindo de filtro para eventuais opções da competência reformadora se esta se esquecer

de promover o compromisso que lhe foi imposto de instituir medidas progressivas com

relação aos direitos e garantias fundamentais.508

Quanto à afirmação de que as “cláusulas pétreas” seriam

antidemocráticas por impedirem que o povo tenha o direito de definir o seu futuro,

diretamente ou por meio de representantes ungidos com o voto popular, contra-

argumenta-se referida asseveração com a ideia de que a Lei Maior confere aos

indivíduos o resguardo de seus direitos e garantias fundamentais contra o arbítrio

estatal, em um extenso rol protetivo e acautelador, resultado de uma conquista que só

poderia acontecer exatamente porque se tem a democracia presente em um Estado

506 Chamon Júnior, Tertium nom datur..., p. 120. 507 Portanto, exceto em situações de déficits orçamentários, falta de recursos comprovada e imoralidade

quanto aos recursos, as “cláusulas pétreas” somente podem ser modificadas para serem adensadas no seu grau protetivo, conforme mais adiante se verá – item 3.4.5.

508 Argumento usado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento das ADI 3.105 e ADI 3.128. Nesse sentido, portanto, verifica-se que o Ministro Celso de Mello adota uma visão profundamente mais protetiva, no tocante aos direitos e garantias fundamentais, do que o Ministro Joaquim Barbosa.

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267

Social de Direito, constituindo o denominado Estado Social e Democrático de Direito

brasileiro.

As “cláusulas pétreas”, portanto, existem no intuito de proteger direitos

dos indivíduos e não se ocupam com a proteção das normas; nesse viés, não colidem

com a democracia ou com o constitucionalismo; ao contrário, elas têm um papel

importante no contexto democrático. E, conforme se mencionou acima, acerca do

pensamento de Dworkin referente ao constitucionalismo e à democracia, se esta quer

dizer regra da maioria legítima, o que implica a hipótese em que o mero fator

majoritário não constitui democracia, engana-se aquele que diz que os representantes

eleitos pelo povo tomarão decisões sempre em consonância com a ordem jurídico-

constitucional e protetivas dos direitos; é bem provável que muitas vezes não o façam.

Exatamente por isso, repita-se, é que a Constituição traz consigo as “cláusulas

pétreas”.509 Referidas normas constitucionais limitadoras, como já apontado, mostram-

se inteiramente vitais à democracia e precisam ser observadas e aplicadas.

Consoante doutrina Canotilho, a discricionariedade do legislador estará

sempre limitada pela Constituição na medida em que todos os atos são a ela vinculados;

o que se determina é a apuração do nível da vinculação positiva instituída pela

Constituição. Assevera o autor que o legislador, na sua liberdade de conformação, não

pode se equiparar a um agente administrativo, que para atuar necessita de autorização

legal, posto que a atividade legiferante já é uma autorização global da Constituição, que

prevê as competências e as funções constitucionais de seus órgãos.510 No entanto, não

deixa de estar pautado pelas balizas constitucionais, uma vez que referidas

competências e funções estão determinadas na Lei Maior.511

509 Dessa forma, é essencial que se estabeleçam normas constitucionais determinando que uma maioria

(legislador) não pode abolir “a forma federativa de Estado”, “o voto direto, secreto, universal e periódico”, “a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias fundamentais”.

510 J. J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra: Almedina, 1999, p. 245.

511 Assim, no tocante à vinculação constitucional é irrefutável que, no Estado Constitucional e Democrático de Direito, todos os “poderes” e funções do ente estatal estão juridicamente vinculados às normas constitucionais, de hierarquia superior, carecendo então que se determinem o conteúdo e a extensão de referida vinculação (Idem, ibidem, p. 249). Consoante explica Canotilho, a ponderação de interesses, apreciação de situações de fato ou juízos de valor feitos pelo legislador nada têm a ver com a “existência de limites jurídicos objetivos que se possam determinar inequivocamente numa

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Para o jurista lusitano, a vinculação jurídico-constitucional do legislador

é uma afirmativa contra o poder supremo e absoluto da lei. Dita vinculação, bem como

a liberdade do legislador, estão atreladas tanto à hierarquia substancial das normas

constitucionais quanto a um controle judicial. Do mesmo modo que a Administração é a

executora da lei, competindo aos tribunais desempenhar o controle da legalidade dos

seus atos e decisões, o legislador é o executor da Constituição (embora não realize

somente uma pura e simples execução da Lei Maior), cabendo aos tribunais, ou a uma

jurisdição constitucional, fiscalizar a conformidade formal e material dos atos

legislativos.

Nesse passo, critica-se o controle de constitucionalidade na medida em

que este poderia ferir a democracia, quando, nessa empreitada, não se mantém a devida

independência entre os “poderes”. No entanto, no constitucionalismo democrático, se de

um lado cada “poder” tem seu papel dentro do Estado e sua independência deve ser

respeitada, de outro, conquanto se saiba que o Judiciário, em tese, ao realizar o controle

de constitucionalidade não poderia criar o Direito, criar a lei, pois esta seria a função do

legislador, é sabido também que essa separação seria o ideal, mas, por diversas razões,

não pode ser plenamente concretizada,512 pois as normas do Direito requerem

interpretação e, por conseguinte, devem ser interpretadas antes de aplicá-las aos novos

casos. Destarte, incumbe ao juiz interpretar o Direito instituído ou, mesmo diante de

casos novos em relação aos quais não há nenhum precedente, o magistrado é obrigado a

criar o Direito.

Assim sendo, suas ações, em certas situações, legitimamente, acabam

por ultrapassar os limites do Poder Judiciário e desempenhar papéis que são próprios de

outros poderes – do Legislativo e do Executivo. E isto só acontecerá com o fim de

proteger a democracia e fazer cumprir os direitos constitucionais. Consoante entende

decisão judicial” e que seriam pressupostos apenas de “justiciabilidade de uma medida”. Infere-se daí que o controle judicial não pode transformar-se em um controle político (juridicização do político). O que seria admissível, então, é “apenas um controle dos limites externos dos atos legislativos, mas não já de uma devassa das considerações políticas subjacentes ao ato legislativo” (Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 240).

512 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 128.

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Dworkin, o Judiciário só invade outros poderes quando é imperioso que se faça cumprir

a Constituição.513

Com efeito, não se nega que compete ao Poder Legislativo a missão de

criar as leis. Todavia, essa missão passa a constituir um problema quando leis são

editadas com argumentos de defesa do interesse geral olvidando-se os direitos

fundamentais das minorias. Do mesmo modo que se deve evitar uma tirania do

Judiciário, diante de um ativismo intenso, também se deve impedir que o controle de

constitucionalidade fique a cargo do Legislativo, pois, nesse caso, a maioria seria o

único juiz de suas próprias decisões.514

Ainda, rebate-se a ideia de que as “cláusulas pétreas” seriam ilusórias.

Segundo aqueles que assim pensam, no constitucionalismo moderno, somente por

intermédio dos procedimentos de emenda constitucional e de jurisdição constitucional é

que se conseguiria manter a sincronização entre a Constituição e a realidade social.

Referido argumento evidencia o entendimento de que a existência das

“cláusulas pétreas”, protetivas de direitos fundamentais individuais e sociais,

antepararia uma sincronicidade entre a Lei Maior e a realidade social, na medida em que

seria impeditiva de determinadas mudanças no que diz respeito aos direitos e garantias

que as cláusulas resguardam.

A proteção que conferem seria irreal, pois as “cláusulas pétreas”

cederiam perante emendas constitucionais, uma vez que estas teriam o condão de

prevalecer perante determinados direitos agasalhados pela “petrealidade”, cabendo ao

tribunal constitucional garantir esse prevalecimento por meio da interpretação e

aplicação do Direito, mediante a ponderação de valores, corroborando, por conseguinte,

para que a Constituição se mantenha em sincronia com o que pede a realidade social.

Portanto, uma emenda constitucional, fruto da democracia, entendida como vontade da

513 Dworkin entende que só se justifica a interpretação da Constituição ficar nas mãos do Poder

Legislativo, poder democrático representante da maioria, se se deixar de lado a ideia de que a Constituição protege a minoria contra possíveis abusos de poder da maioria.

514 Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 225.

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maioria, prevaleceria, dependendo da hipótese, sobre direitos resguardados pelas

“cláusulas pétreas”.

No entanto, embora se reconheça que a proteção conferida pelas

“cláusulas pétreas” não é absoluta (cf. itens 3.4.3 e 3.4.5), pensa-se ser inaceitável que o

abrigo que conferem seja ilusório, ao menos no sentido colocado pelo Ministro Joaquim

Barbosa, que transforma direitos e garantias em bens/valores, mensurados conforme

padrões de melhor ou pior, consoante um critério de preferibilidade;515 os valores são

ponderados em uma graduação escalonada, ofendendo a premissa de que todos os

direitos devem ser igualmente assegurados.516 Nesse sentido, a aplicação das normas

não garante a justiça social.

Reconhece-se que as mudanças na Constituição podem ser realizadas,

porém precisam permanecer fiéis às limitações impostas à competência reformadora

contidas na Carta Maior. Isto inclui manter-se leal às disposições previstas nas

“cláusulas pétreas”. Nesse passo, ao Judiciário cabe levar a sério os direitos e garantias,

marcados pelo traço da fundamentalidade, protegidos pela Constituição Federal. E,

nessa tarefa, ficaria afastada do julgador a possibilidade de considerar como apenas uma

miragem o amparo conferido pela Constituição Federal de 1988 aos direitos e garantias

fundamentais dos administrados diante de emendas que lhes sejam ofensivas, dando

margem a relativismos e ponderações que almejam afastar referidos direitos.

Além disso, outro argumento para rebater solidamente a ideia de que as

“cláusulas pétreas” concederiam uma proteção aparente encontra-se na noção de pré-

compromisso constitucional, em que se tem a limitação da competência reformadora da

Constituição, por normas previstas pelo Constituinte Originário, barrando ofensas aos

direitos e garantias fundamentais e afrontas à continuidade da democracia.

Destarte, a competência reformadora da Constituição possui menor

qualidade deliberativa do que a existente na Assembleia Nacional Constituinte, na

515 Lúcio Antônio Chamon Júnior, Teoria constitucional do direito penal: contribuições a uma

reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 61. 516 Contudo, consoante essa visão, os valores equivalem a códigos morais, que são sempre individuais,

e, nesse viés, olvida-se que são os princípios (e não os valores) aqueles impregnados de validade jurídica, de normatividade em virtude de sua forma própria de conformação.

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medida em que longínqua do povo, sobrepujada pelos poderes constituídos, Legislativo

e Executivo, sendo estes os mais suscetíveis às inconstâncias da política corriqueira e

banal, isto é, repita-se, sofrem influência de interesses políticos momentâneos. Dessa

forma, é essencial respeitar a ordem constitucional originária para que o Judiciário não

caia (como têm feito o Executivo e o Legislativo) na tentação de ouvir “o canto

irresistível” das vontades político-econômicas de ocasião, opondo-se bravamente a essas

pretensões, tal qual Ulisses enfrentou amarrado e com o ouvido tapado o canto das

sereias.517

Nessa linha, voltando à temática referente à competência reformadora,

uma vez que esta consiste em uma “faculdade normativa que se situa em um ponto

intermediário entre o poder constituinte originário e o poder legiferante”, ao produzir

“normas constitucionais, consubstancia-se em uma prerrogativa extraordinária – uma

competência de competências”.518 E assim não pode ser equiparada ao Poder

Constituinte Originário. A competência reformadora busca fundamento de validade na

Constituição do que decorre a sua natureza juridicamente balizada pela ordem

normativa constitucional.

Consoante já se explanou acima, os direitos e garantias individuais e

sociais não podem ser abolidos por meio de emenda (art. 60, § 4.º, CF), evidenciando,

de forma clara, a impossibilidade de a competência reformadora infringir mencionado

preceito. Ademais, não se pode olvidar que a competência para reformar a Constituição,

como decorrência de um poder constituído, é limitada, e, como tal, precisa acatar as

diretrizes abalizadas pelo Poder Constituinte Originário.

E para que as “cláusulas pétreas” não sejam ofendidas, isto é, para que

não se profira uma decisão limitativa de direitos e garantias fundamentais, é imperativo

que o desenlace do tema ocorra com embasamento em uma coerência ético-jurídica do

sistema constitucional como um todo. Por via de consequência, ao pronunciar uma

solução, o julgador não deve proceder à interpretação do dispositivo constitucional

ignorando-se a complexidade do processo de interpretação constitucional. O

517 Referida ideia faz alusão ao que já se explicou na nota de rodapé 296 do presente estudo. 518 Brandão, Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: uma proposta de justificação e de

aplicação do art. 60, § 4.º, IV, da CF/88, p. 13-14.

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magistrado, portanto, deve-se ater, na sua decisão, ao resguardo dos direitos

fundamentais dos indivíduos (no caso, à proteção aos direitos fundamentais dos

servidores).

Veja-se que é exatamente porque, em muitas situações, não se observa

essa ampla proteção que o Poder Constituinte conferiu às “cláusulas pétreas”,

especialmente o não reconhecimento de que sua força protetiva clama no sentido de se

tornar mais denso o abrigo conferido aos direitos e garantias fundamentais, que surge a

necessidade de aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social. Nesse ponto, por

conseguinte, torna-se relevante deixar evidente a função do primado do não retrocesso

social no panorama jurídico-constitucional contemporâneo.

3.4.3 O princípio da vedação ao retrocesso social e a proteção que confere aos

direitos e garantias dos servidores públicos

Neste tópico, de início, resgatam-se os argumentos dos Ministros Carlos

Britto e Celso de Mello, dantes expostos nas já referidas Ações Diretas de

Inconstitucionalidade 3.105/DF e 3.128/DF (item 2.1.4.2), visando, por meio das razões

dos seus votos, expor a fundamentação realizada acerca da temática aqui abordada,

fundamentação essa que servirá como norte para o que se pretende afirmar no presente

item.

E, apesar de ambos os ministros terem considerado inconstitucional a

contribuição previdenciária dos servidores inativos, indo contra a maioria da Corte de

Justiça mais alta do País, que decidiu pela constitucionalidade da cobrança (como se viu

no final do Capítulo 2), o que interessa para a exposição que se fará neste tópico são os

trechos das argumentações dos citados ministros, cujos entendimentos quanto ao tema

da vedação ao retrocesso social serão a seguir colacionados, uma vez que bem

demonstram a proteção que o primado do não retrocesso social confere aos direitos e

garantias dos servidores públicos.519

519 Ainda que mais adiante o presente trabalho analise a questão da contribuição previdenciária dos

servidores inativos, reconhecendo a sua justificação, os argumentos dos ministros serão utilizados como passo inicial para a matéria a ser tratada neste tópico.

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Destarte, o Ministro Carlos Britto afirma que as “cláusulas pétreas”

desempenham o papel de serem “impeditivas de retrocesso, ou seja, garantem o

progresso. O progresso então obtido é preciso ser salvaguardado”. E assim o é porque

não se pode negar que a Constituição de 1988 tem o caráter de uma Constituição

avançada, que fez do indivíduo alguém hipossuficiente perante o Poder Público e o

trabalhador hipossuficiente perante o empregador. Nesse diapasão, uma emenda só será

constitucional se for para robustecer esse teor de proteção ao hipossuficiente. De tal

forma, “A petrealidade não chega a ponto de impedir que uma norma protetiva receba

adensamento”.

Nessa passada, o Ministro Celso de Mello, nos mesmos julgados,

pondera sobre a matéria, tratando da questão do princípio da proibição do retrocesso

social nos seguintes termos: “em tema de direitos fundamentais de caráter social, e uma

vez alcançado determinado nível de concretização de tais prerrogativas (como estas

reconhecidas e asseguradas, antes do advento da EC n.º 41/2003, aos inativos e aos

pensionistas)”, referido primado tem o condão de impedir “que sejam desconstituídas as

conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”.

E arremata sua argumentação acerca do princípio dizendo que, em

realidade, “a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de

sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de

natureza prestacional”, fazendo com que se impeça, consequentemente, que os

patamares “de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser

reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em

que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias

governamentais”.

Do que se vê, desses argumentos pode-se destacar o reconhecimento de

que o primado da vedação ao retrocesso social faz parte da comunidade de princípios.

Portanto, o Direito não fica adstrito ao plexo de decisões proferidas em âmbito

institucional, ultrapassando-o, e daí necessitar ser tomado em termos gerais como um

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sistema de princípios edificados a partir da interpretação da história das práticas sociais,

premissa vital que carece estar presente nas decisões institucionais.520

Nesse viés, os direitos e deveres políticos dessa comunidade não estão

conectados tão somente às decisões particulares proferidas no passado, mas são

dependentes de um sistema de princípios que essas decisões pressupõem ou endossam.

Nessa toada, a fim de chegar a uma única resposta correta (juízo de adequabilidade ou

correção) para cada caso controverso, o juiz não deve se esquecer de se pôr na

perspectiva de sua comunidade, concebida “como uma associação de coassociados

livres e iguais perante o Direito, assumindo uma compreensão crítica do Direito positivo

como esforço dessa mesma comunidade, para desenvolver da melhor maneira possível o

‘sistema de direitos fundamentais’”.521 Portanto, o não retrocesso social, como

integrante da comunidade de princípios, faz com que sua aplicação se mostre de grande

importância, nomeadamente para somar-se à proteção que as “cláusulas pétreas”

conferem aos direitos e garantias fundamentais.

Consoante já se ressaltou no Capítulo 2, o primado do não retrocesso

social é autônomo e tem conteúdo próprio, diferente do mínimo existencial e da

dignidade da pessoa humana. Tem substância independente, diversa da proteção à

confiança e distinta da segurança jurídica na sua faceta individual, podendo-se falar em

uma segurança ao nível da coletividade, isto é, aquilo que se incorporou ao patrimônio

jurídico da sociedade, como conquista sua, e não pode ser suprimido, rebaixado ou

diminuído (e aí se está falando do direito adquirido social como um de seus

fundamentos); em última instância, por intermédio dele, resguarda-se o sentido de

caminhar rumo ao desenvolvimento, ao progresso (buscando consolidar o progressivo

alargamento dos direitos fundamentais), almejando a consolidação da democracia.

Destarte, como postulado constitucional autônomo, tendo sedes materiae nas

disposições constitucionais mencionadas no tópico 2.2, pode ser aplicado de per si, para

solucionar um determinado caso; assim, assume o status de princípio constitucional

implícito, dotado de força normativa eficacial.

520 Flávio Quinaud Pedron, É possível uma resposta correta para casos controversos? Uma análise da

interpretação de Robert Alexy da tese dworkiana, Rev. Trib. Reg. Trab. 3.ª Reg., Belo Horizonte, v. 40, n. 70, p. 46, jul.-dez. 2004.

521 Pedron, Esclarecimentos sobre a tese da única “resposta correta”, de Ronald Dworkin, p. 106.

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Deveras, o primado do não retrocesso tem aplicação ampla quanto às

medidas de cunho retrocessivo que possam ofender as normas constitucionais protetivas

dos direitos e garantias fundamentais – aqui evidenciados pelos direitos e garantias

fundamentais dos servidores dantes expostos –, sempre que a medida retrocessiva atinja

o nível mais elevado em relação aos direitos fundamentais constitucionalmente

protegidos. Por conseguinte, o princípio da proibição do retrocesso social terá aplicação

como forma de impedir que se enfraqueça, revogue ou minimize direitos fundamentais

por intermédio de uma emenda constitucional (ou por legislação infraconstitucional em

situação que equivalha a uma omissão legislativa). Ainda que a garantia e o direito já

tenham amparo natural por meio de algum princípio constitucional (ou alguns

princípios), o princípio da vedação ao retrocesso social juntar-se-á a este princípio (ou a

estes princípios) na tentativa de manutenção do grau já alcançado quanto aos direitos

fundamentais.

De tal modo, o princípio do não retrocesso social é justamente o

adensamento, tão bem colocado pelo Ministro Carlos Britto, em termos de agasalho aos

direitos fundamentais, em que referidos direitos encontram abrigo no primado da

vedação ao retrocesso social, que representa um reforço ao grau de resguardo a tais

direitos. E acrescente-se: prima pelo desenvolvimento social do ponto de vista de uma

sociedade moderna, agasalhando o plano mais alto alcançado, protegendo as

modificações ampliadoras de direitos.

Veja-se que a previsão (existência) dos direitos e garantias

fundamentais na Constituição, definitivamente, não pode ser excluída ou extinta por

emenda constitucional exatamente por estar protegida pelas “cláusulas pétreas”. No

entanto, diante de interpretações restritivas que podem ser conferidas à dita proteção

(pelo legislador, pelo administrador e, inclusive, pelo julgador), esta deixa de ser

suficiente para obstar a redução do grau mais elevado alcançado pelos direitos e

garantias fundamentais, especialmente quando se tem a edição de emendas

constitucionais que determinem aos servidores novas exigências redutoras e

minimizantes dos seus direitos fundamentais sem observar-se a equivalência jurídica

(cf. item 3.4.5).

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Daí tornar-se preciso que o grau mais elevado e benéfico obtido em

termos de direitos e garantias fundamentais esteja protegido pelo não retrocesso

social.522 Note-se, nessa passada, que a vedação ao retrocesso operará como

complementação necessária apta a aprimorar e fortalecer o sistema de proteção dos

direitos fundamentais que possam implicar a diminuição do plexo de direitos e garantias

da comunidade de servidores. Visa-se, dessa maneira, por meio da proibição do

retrocesso, manter o nível de proteção social já consagrado, preservando as conquistas

sociais alcançadas pela coletividade de servidores, buscando evitar, com isso, a redução,

diminuição, minimização dos direitos e garantias fundamentais.

Contudo, segundo alguns posicionamentos, diante do advento de uma

emenda, desde que fique mantida a presença em si do direito fundamental no

ordenamento jurídico constitucional, não haveria falar em ofensa ao art. 60, § 4.º, da

Constituição Federal, mesmo que ocorram mudanças minimizantes nas normas

protetivas dos direitos e garantias fundamentais. Não se vislumbraria, ante essa

circunstância de diminuição, ultraje às “cláusulas pétreas”.523 Entretanto, de outro lado,

conquanto não se reconheça ofensa propriamente ao núcleo intocável da Lei Maior, uma

vez que reste nítido que a força do direito e da garantia é esvaziada, minimizada,

reduzida com a emenda que foi promulgada, ainda assim ter-se-á afronta aos direitos e

garantias fundamentais e permanecerá a ofensa à Carta Política brasileira.

Portanto, para que se impeça esse insulto, torna-se necessário o amparo

do princípio da proibição de retrocesso social a fim de vedar esse

estreitamento/rebaixamento do expressivo grau de conquistas alcançado pela

comunidade de servidores, refletido em um plexo de direitos e garantias instituído em

decorrência de todo um processo evolutivo.

522 Com a promulgação de uma emenda constitucional pode-se ter o seguinte: mantida a previsão do

direito fundamental, não se fere a cláusula pétrea. Mantida a previsão, mas reduzido o patamar anterior mais alto alcançado pelos direitos e garantias fundamentais, sem compensações, não se desrespeita a proteção do núcleo do direito conferida pela cláusula pétrea, mas se ofende o primado do não retrocesso social.

523 Esse é o tom da fundamentação exarada pela Ministra Cármen Lúcia na ADI 3.104/DF. Nessa ação, em que foi relatora, entendeu a magistrada, ao se pronunciar acerca das sustentações orais realizadas pelos amici curiae, que haveria afronta ao princípio da proibição de retrocesso social se tivesse sido extinta a possibilidade de aposentadoria, este sim um direito social, não incidindo o acenado princípio quando se tratar de “adaptação dos critérios de transição para o novo modelo previdenciário que se veio a estabelecer”.

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Logo, é possível verificar o papel que esse princípio tem: se no plano

infraconstitucional ele garante a não revogação de leis concretizadoras das normas

constitucionais que prevejam direitos e garantias fundamentais sem que se instituam

medidas equivalentes àquela que foi revogada, evitando que se recaia em uma situação

de vazio normativo ou omissão legislativa (cf. Capítulo 2), no plano constitucional, no

tocante às alterações instituídas, aludido primado deve ser visto como um complemento

protetivo densificador em relação à proteção conferida pelas “cláusulas pétreas” no que

concerne aos direitos e garantias fundamentais, formando, desse modo, uma barreira

contra modificações que visem deprimir, diminuir, aviltar o grau mais alto já

conquistado, particularmente quanto aos direitos e garantias fundamentais dos

servidores públicos efetivos.

E, uma vez que referida situação acabe sendo objeto de apreciação pelo

Judiciário, caberá ao julgador analisar a problemática que chega a suas mãos, com base

no Direito entendido como uma ordem de princípios marcada pela sua “integridade”,

como diz Dworkin.524 Ou seja, diante de um caso difícil,525 o juiz optará por diferentes

decisões de acordo com sua interpretação. No entanto, sua decisão final e suas

conclusões pós-interpretativas devem ser extraídas de uma interpretação que se adapte

aos fatos anteriores e os justifique, até onde isso seja possível. A teoria da integridade

524 Sobre a sua teoria da integridade Dworkin explica: “Estabeleci uma distinção entre duas formas de

integridade ao arrolar dois princípios: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial. A primeira restringe aquilo que nossos legisladores e outros participantes da criação do direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas. A segunda requer que, até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas. Para nós, a integridade é uma virtude ao lado da justiça e da equidade (fairness) e do devido processo legal, mas isso não significa que, em algumas das duas formas assinaladas, a integridade seja necessariamente, ou sempre, superior a outras virtudes. O legislativo deveria ser guiado pelo princípio legislativo da integridade, [...] [sendo que] nunca deve, sejam quais forem as circunstâncias, tornar o direito mais incoerente em princípio do que ele já é. [...] O princípio da integridade na prestação da justiça não é de modo algum superior ao propósito do que os juízes devem fazer cotidianamente. Esse princípio é decisivo para aquilo que um juiz reconhece como direito. Reina, por assim dizer, sobre os fundamentos do direito [...]. O juiz que aceitar a integridade pensará que o direito que esta define estabelece os direitos definitivos que os litigantes têm a uma decisão dele. Eles têm, em princípio, de ter seus atos julgados de acordo com a melhor concepção daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigiam ou permitiam na época em que se deram os fatos, e a integridade exige que essas normas sejam consideradas coerentes, como se o Estado tivesse uma só voz” (O império do direito, p. 261-263).

525 Os casos difíceis são aqueles em que se está diante de um caso controverso, isto é, casos nos quais o juiz não conseguiria resolver a questão por meio da simples aplicação da lei, isto é, da mera subsunção do fato concreto à norma geral e abstrata.

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exige que os juízes, na medida do possível, considerem ser o Direito estruturado por um

conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal, e

pede-lhes que os apliquem aos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a

situação seja sempre justa e equitativa.

A ideia de integridade para Dworkin representa a virtude do Direito por

intermédio da qual o juiz decide sempre em conformidade com a comunidade de

princípios, de modo que se pode esperar que o magistrado decida de maneira

semelhante os casos análogos (a não ser que vislumbre erro na decisão anterior).

Dworkin pondera que a integridade é um corolário do igual tratamento e, de tal modo, é

uma das pilastras do Estado de Direito, ao lado da equidade ou do devido processo

legal, como já destacado. A decisão judicial fundada na comunidade de princípios é

vital para a ideia de integridade no Direito. E, a fim de chegar à resposta correta para o

caso, o juiz não deve se esquecer de se pôr na perspectiva dessa comunidade.

Nesse passo, se o princípio da vedação ao retrocesso social integra a

comunidade de princípios do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, conforme

já se demonstrou, o magistrado pode aplicá-lo para resguardar direitos fundamentais dos

servidores, sendo (em situações normais) um mandamento protetivo densificador.

E, para aqueles que poderiam se opor ao grau de proteção que aqui se

defende no que concerne aos aludidos direitos e garantias, afirmando que pela aplicação

do primado do não retrocesso social, com o papel que se lhe atribui no presente trabalho

(o de adensar a proteção conferida pelas “cláusulas pétreas” e primar pelo

desenvolvimento social), estar-se-ia engessando a Constituição, impedindo a Carta

Política de adequar-se aos tempos atuais, cabe o contra-argumento de que não é o caso

de engessamento da Lei Maior, mas sim da preservação do progresso, do nível mais

alto conquistado, e qualquer mudança deve respeitar esse grau mais elevado de

evolução adquirido pela comunidade de servidores públicos. O problema não é de

mutabilidade normativa, mas de imutabilidade do nível superior alcançado no que toca

aos direitos e garantias fundamentais.

Contudo, obviamente que referida proteção atribuída pelo primado da

proibição de retrocesso social não pode ser entendida de modo irrestrito, pois, se assim

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fosse, as previsões normativas não poderiam sofrer qualquer tipo de alteração que

dissesse respeito aos requisitos e condições para aquisição e perda dos direitos e

garantias dos servidores.526

Mudanças podem ocorrer quanto ao nível elevado que alcançou o plexo

de direitos e garantias fundamentais dos servidores, em regra, para que sofram

adensamento. No entanto, o contrário somente acontecerá se se estiver vivenciando

déficit orçamentário ou carência de recursos devidamente demonstrada e imoralidade

quanto aos recursos. Nestas hipóteses, no entanto, haverá necessidade de se criarem

medidas jurídicas equivalentes, como exigência da própria proibição de retrocesso

social, para evitar minimizações ou revogações que possam abalar profundamente os

direitos e garantias fundamentais (é o que será visto no item 3.4.5 que tratará

especificamente da equivalência jurídica).

Não obstante reconhecer que o primado da vedação ao retrocesso social

não é absoluto, o que virá a ser examinado no último tópico deste estudo, ainda merece

ser analisado, antes do derradeiro ponto, o campo protetivo do princípio do progresso

social, especialmente a proteção que o direito adquirido social, como um dos

fundamentos desse mandamento, desempenha no regime jurídico do servidor público.

3.4.4 O regime jurídico do servidor público ocupante de cargo efetivo e a proteção do

direito adquirido social

Quanto a este terceiro ponto a ser examinado, no que diz respeito à

temática do direito adquirido social, vale destacar que o assunto do direito adquirido na

sua dimensão social foi, de maneira implícita, abordado nos votos dos Ministros Carlos

526 Aqui cabe aproveitar as colocações trazidas por Pontes Filho, quando trata do direito adquirido ao

regime jurídico previdenciário do servidor público, mas que se aplicam também às possíveis mudanças que possam ser introduzidas no regime jurídico do funcionário, sem que sejam ofensivas ao não retrocesso social. Nesse passo, para exemplificar, no plano infraconstitucional, alterações que advenham sem ferir o aludido primado, pode-se, consoante diz o autor, verificar que “Nada obsta, por exemplo, que a carreira a que pertença seja reestruturada, que seu horário de trabalho se modifique [...], ou mesmo que gratificações que perceba sejam modificadas ou extintas (desde que respeitada a irredutibilidade remuneratória que a Constituição lhe assegura)” (Valmir Pontes Filho, Direito adquirido ao regime de aposentadoria, Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 8, nov. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 8 set. 2012, p. 6).

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Britto e Celso de Mello (ADIs 3.105 e 3.128), quando mencionam o princípio da

vedação ao retrocesso social, sobretudo na questão destacada quanto ao progresso pelo

Ministro Carlos Britto e na fundamentação do voto do Ministro Celso de Mello, quando

este julgador diz que o princípio impede que sejam desconstituídas as conquistas já

alcançadas pela formação social em que vive o cidadão – conteúdo exato da noção de

direito adquirido social, um dos fundamentos do primado do não retrocesso social.

Não obstante presentes na mesma matriz constitucional (art. 5.º,

XXXVI, da CF), o direito adquirido individual e social diz respeito a dimensões

diferentes de proteção. Por conseguinte, quando o direito já se incorporou ao patrimônio

jurídico do servidor (quanto aos seus direitos e garantias), fica clara a ofensa perpetrada

ao direito adquirido individual quando há retroatividade da norma; entretanto, quando o

ultraje acontece pelo rebaixamento/enfraquecimento do nível mais alto antes obtido pela

comunidade de servidores públicos, quanto aos seus direitos e garantias, haverá afronta

ao direito adquirido social.

Pois bem, é entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal de

que não há direito adquirido a regime jurídico (como também diante de emenda

constitucional), uma vez que o vínculo que liga o servidor com a Administração

Pública, como visto alhures, é de caráter institucional ou estatutário, portanto decorrente

de lei. E, nesse ponto, o estatuto que rege essa ligação, tendo o Estado-Administração

de um lado e o servidor público de outro, pode ser modificado diante do interesse

público que cabe à Administração defender, incluindo os direitos e garantias que

compõem referido regime.

No entanto, em que pese essa tese preconizada pelo Supremo Tribunal

Federal de que não há direito adquirido a regime jurídico,527 a ideia não é a de rebatê-la,

527 A tese do Supremo Tribunal Federal de que não há direito adquirido a regime jurídico não será

rebatida no presente trabalho. Em verdade, entende-se que a ideia do direito adquirido a regime jurídico significa que os direitos fundamentais dos servidores estariam, em termos de nível de proteção, acobertados com um “plus” em relação à proteção conferida pelo direito adquirido individual. Explica-se: o resguardo oferecido pelo direito adquirido a regime jurídico teria o condão de fazer incorporar ao patrimônio jurídico do servidor um determinado conjunto normativo, responsável por reger o vínculo Estado-servidor, sendo que este plexo de normas não mais poderia ser alterado pelo ente estatal, livremente, em nome do interesse público. As mudanças normativas, para pior, que viessem a ser instituídas após o ingresso do servidor (ocupante de cargo efetivo), nos quadros da Administração, não lhe alcançariam. Veja-se que a esfera de abrigo nessa hipótese

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mas de mostrar que o exame a ser feito deve sê-lo sob dois prismas diversos,

merecendo, de tal modo, ser realizada uma análise acerca da proteção aos direitos

adquiridos dos servidores públicos estatutários, tanto na sua acepção individual quanto

na sua dimensão social. A despeito de não ser o direito adquirido individual o ponto

central do estudo que aqui se faz tratar, consoante já se alertou, não há como fugir dos

comentários a essa dimensão do direito adquirido precisamente por ser inerente à visão

tradicional do tema. Nesse passo, começar-se-á por essa dimensão para, em seguida,

tratar do prisma social do instituto.

Nesse viés, afirma-se, como já se viu, que o vínculo que disciplina a

relação entre o servidor estatutário e o Estado pode sofrer alterações exatamente porque

é um liame que decorre da lei e, assim sendo, como decorrência da própria mutabilidade

das leis, não há a garantia de que permanecerá sendo regido pelas disposições vigentes

quando do ingresso do servidor nos quadros da Administração.

Todavia, a partir do momento em que o servidor público preenche os

requisitos legais para a concessão do benefício que lhe é garantido, este passa a ser um

direito próprio seu, um direito que o servidor passa a fazer jus em virtude de disposição

normativa, conforme o sistema normativo vigente à época em que completa as

condições necessárias para poder gozar do benefício. Portanto, mesmo que a norma seja

alterada após o preenchimento pelo servidor das exigências legais para adquirir o

direito, as alterações normativas, quanto a este seu direito, não lhe alcançarão

justamente porque protegido pelo direito adquirido individual. Em outras palavras, “os

direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos servidores, ou seja, os direitos

adquiridos, continuarão a existir no âmbito individual da relação de cada servidor (que

tenha adquirido o direito) com o poder público”.528 Desse modo, mesmo que

sobrevenha qualquer alteração no regime jurídico do servidor, dever-se-á respeitar a

aquisição de certo direito.

ultrapassa a proteção conferida pelo direito adquirido individual, que requer o preenchimento das exigências necessárias para a obtenção do direito e incorporação do mesmo ao patrimônio jurídico dos servidores públicos (daí ser um “plus”). No entanto, ainda se leva em conta o direito adquirido a certo nível de garantias em relação a cada servidor, nível este que posteriormente poderá ser rebaixado desde que não afete o servidor que já tenha estabelecido o vínculo (legal) com o Estado. Contudo, os demais servidores que ingressarem no Poder Público, após as mudanças, não estariam livres do enfraquecimento nesse nível elevado de direitos.

528 Ana Luísa Celino Coutinho, Servidor público..., p. 162.

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Aliás, nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal sumulou entendimento,

quanto à aposentadoria do servidor, pacificado na Súmula 359, seguindo essa linha de

ideias, lembrado pelo Ministro Marco Aurélio em seu voto nas Ações Diretas de

Inconstitucionalidade 3.105 e 3.128, quando o julgador recorda a todos os ministros que

“a aposentadoria é regida pela legislação em vigor na data em que são atendidos os

requisitos fixados em lei, constantes da legislação ordinária e, acima de tudo, da

Constituição Federal, que está no ápice da pirâmide das normas jurídicas”.

Entretanto, nas aludidas ações diretas de inconstitucionalidade, a Corte

de Justiça mais alta do País quebrou o romance em cadeia,529 nos termos propostos por

Dworkin, quanto à tese da integridade e coerência no Direito, precisamente no que diz

respeito ao direito do servidor aposentado de não precisar contribuir com a previdência,

decidindo pela constitucionalidade da cobrança incidente sobre os proventos de

aposentadoria dos servidores inativos. Na concepção dworkiniana, ao decidir um novo

caso, o julgador deve ter por parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do

qual as várias decisões anteriores são a história, o romance; o trabalho do juiz é dar

continuidade a essa história no futuro por meio do que ele faz presentemente. Ele deve

interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a

incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.530

529 Desse modo, a história e os precedentes são reconstruídos pelo intérprete para que a próxima decisão

seja coerente com a tradição que a antecede. O intérprete, contudo, pode inovar e até mesmo construir uma nova interpretação, ainda que radicalmente nova, desde que coerente com a história que o precede, para adequar a situação a uma nova compreensão da realidade social amparada em uma nova leitura moral dos princípios constitucionais em que se deve buscar a única decisão adequada para o caso concreto. E esta única decisão correta decorre da melhor leitura moral dos princípios para o caso concreto.

530 Por conseguinte, para explanar sua teoria do direito como integridade, Dworkin faz uso da analogia com o exercício literário de criação. Para o autor, o direito como integridade pode ser explicado por um romance em cadeia, em que se tem uma variedade de autores escrevendo um romance conjuntamente. Esclarece que, “Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante”. Isto implica que “Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade”. Nessa trajetória, “Cada romancista pretende criar um só romance a partir do material que recebeu, daquilo que ele próprio lhe acrescentou e (até onde lhe seja possível controlar esse aspecto do projeto) daquilo que seus sucessores vão querer ou ser capazes de acrescentar”. Com isso, “Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes”. Referido processo “exige uma avaliação geral de sua parte, ou uma série de avaliações gerais à medida que ele escreve e reescreve”. Consequentemente é preciso seguir um ponto de vista no que diz respeito ao

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No entanto, pode ser que, às vezes, um argumento jurídico reconheça

explicitamente determinados erros e, nessa hipótese, se a decisão anterior foi errônea,

então ela não deve ser seguida.531 Portanto, um princípio que escorou uma decisão no

passado pode não ter mais o mesmo peso hodiernamente. Por conseguinte, faz-se

imperiosa uma teoria do erro que esclareça a quebra de continuidade das decisões no

mesmo sentido do praticado no passado.

Nesse vértice, se o Supremo Tribunal Federal chegou a sumular

entendimento a respeito do reconhecimento do direito adquirido de servidor em fase de

aposentação, dando prevalência à lei anterior mais benéfica, quando do preenchimento

das condições necessárias para a aposentadoria, em confronto com o advento de norma

posterior mais desfavorável, isso significa que o Supremo Tribunal Federal deu

sequência ao romance em cadeia e, portanto, não deveria quebrá-lo, a menos que

vislumbrasse determinado erro no argumento jurídico anterior, o que, somente nessa

hipótese, diante de decisão antecedente errônea, autorizaria os julgadores a não mais

seguirem-na.

Todavia, não é esse o caso na hipótese da contribuição previdenciária

dos servidores inativos, que mereceria a continuidade da aplicação da Súmula 359. Ao

romance “que se vai formando aos poucos, alguma teoria que lhe permita trabalhar elementos como personagens, trama, gênero, tema e objetivo, para decidir o que considerar como continuidade e não como um novo começo” (Dworkin, O império do direito, p. 275-277). De tal maneira, a incumbência de interpretar a obra escrita em conjunto alcança já o primeiro escritor, como, de igual modo, o gênero que se dispõe a escrever. Assim, os romancistas que elaboram a obra, individualmente considerados, não possuem liberdade criativa, uma vez que existe um dever de eleger a interpretação que, para cada qual, torne a continuação da obra a melhor possível. Acredita-se que, nesse exercício literário, o romance seja redigido como um escrito único, interligado, e não se revele uma mera série de narrativas separadas e autônomas, que têm como único elo tão só os nomes dos personagens. A fim de que isso não se dê, torna-se vital ter como ponto de partida o texto que seu precursor lhe entregou, como também aquilo que ele mesmo acresceu e, na medida do possível, relacionar-se com o que seus sucessores vão desejar ou ser capazes de acrescentar. É possível aplicar essa mesma ideia ao Direito, pois há similitude do exercício literário com a atividade decisória dos juízes, especialmente “quando nenhuma lei ocupa posição central na questão jurídica e o argumento gira em torno de quais regras ou princípios de Direito ‘subjazem’ a decisões de outros juízes, no passado, sobre matéria semelhante” (Dworkin, Uma questão de princípio, p. 236-238).

531 Idem, ibidem p. 240. Dworkin adverte que pode parecer que essa flexibilidade destrói a diferença entre interpretação e uma decisão nova sobre o que o Direito deve ser; no entanto, diz ele: “essa restrição superior existe. O senso de qualquer juiz acerca da finalidade ou função do Direito, do qual dependerá cada aspecto de sua abordagem da interpretação, incluirá ou implicará alguma concepção da integridade e coerência do Direito como instituição, e essa concepção irá tutelar e limitar sua teoria operacional de ajuste – isto é, suas convicções sobre em que medida uma interpretação deve ajustar-se ao Direito anterior, sobre qual delas, e de que maneira. (O paralelo com a interpretação literária também é válido aqui.)” (Idem, p. 240-241).

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desconsiderar o direito adquirido dos servidores, já na inatividade, de não arcarem com

a contribuição previdenciária advinda por meio do art. 4.º da Emenda Constitucional

41/2003, tem-se uma demonstração evidente de que o Supremo Tribunal Federal acaba

por legitimar formalmente a quebra de continuidade das decisões no mesmo sentido do

praticado no passado, decidindo pela “constitucionalização” de norma posterior que

conflita materialmente com a norma anterior. Esta, inclusive, fundada na norma pétrea

do art. 60, § 4.º, IV, que em hipótese alguma haveria de ser transgredida. Sob essa

acepção do direito adquirido, torna-se imperioso permanecer intocável a situação

jurídica que resulta do ato de aposentadoria, cuja produção de efeitos não pode ser

atingida por determinações normativas ulteriores dimanadas do Estado.

O direito adquirido (bem como o ato jurídico perfeito e também a coisa

julgada) existe exatamente em virtude de o ordenamento jurídico ser um sistema

dinâmico, que requer uma consideração especial para os problemas do tempo na

sucessão ou convivência de situações normadas, em que se faz necessário enfrentar a

questão da decidibilidade de conflitos no que diz respeito às situações subjetivas quando

do câmbio de normas ou da simultaneidade da eficácia de normas em contradição.532 É

justamente para proteger a situação de titular já adquirida que se fala no direito

adquirido individual. Dessa forma, é inaceitável ignorar a existência desse instituto

protetivo contemplado na Constituição Federal em seu núcleo central.

O ultraje ao direito adquirido (individual) e ofensa aos direitos e

garantias individuais, tanto na hipótese da contribuição previdenciária dos servidores

inativos como também no tocante à redução dos vencimentos quando estes ultrapassem

o teto remuneratório, e ao desligamento do servidor estável dos quadros da

Administração por insuficiência de desempenho na avaliação periódica e no excesso de

despesas com pessoal (entre outros desrespeitos), para quem já gozava dos aludidos

direitos, são situações claramente atentatórias aos direitos e garantias fundamentais dos

servidores públicos, em que se vê desrespeitadas a irretroatividade normativa e a

segurança jurídica. E, como anota Tercio Sampaio Ferraz Júnior, “A doutrina da

irretroatividade serve ao valor da segurança jurídica: o que sucedeu já sucedeu e não

532 Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação, 4. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 249.

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deve, a todo momento, ser juridicamente questionado, sob pena de se instaurarem

intermináveis conflitos”. Dita doutrina, “portanto, cumpre a função de possibilitar a

solução de conflitos com o mínimo de perturbação social”.533

Entretanto, é possível verificar que, para além da ofensa ao direito

adquirido na acepção individual do instituto, ou da afronta a um direito individual de

cada servidor, existe uma ofensa, em um plano mais amplo, ao direito adquirido pela

comunidade de servidores a um grau elevado em relação aos seus direitos e garantias,

que ultrapassa o âmbito individualizado, sendo justamente o direito adquirido na

dimensão social.

Com efeito, quanto à proteção conferida pelo direito adquirido social, se

a norma posterior não pode desconstituir o nível dantes conquistado no que diz respeito

aos direitos e garantias incorporados ao patrimônio jurídico da comunidade de

servidores em virtude da evolução da sociedade – como decorrência do Estado Social e

Democrático de Direito agasalhado pela Constituição Federal de 1988 –, isso equivale a

dizer que haveria um direito adquirido ao plano mais alto de garantias, aplicado aos

benefícios todos que integram o regime jurídico do servidor, sendo este resguardo

diverso da proteção que vem do direito adquirido individual.

Nesse sentido, uma emenda à Constituição (ou uma nova legislação no

plano infraconstitucional) pode alterar os requisitos dantes estabelecidos para a

concessão de direitos ou vantagens dos servidores, mas não é legítimo que o faça de

modo a reduzir, minimizar ou mesmo revogar referidos direitos e vantagens previstos

em grau mais alto.

Isso significa que o direito ou garantia fundamental resguardado,

consoante essa construção normativa originária, assegura aos servidores beneficiarem-

se daquele cenário jurídico formado pelas disposições constitucionais mais elevadas.

Consequentemente, aquele dado conjunto normativo fica protegido de eventuais

alterações revogadoras ou minimizantes. Com isso, pode-se falar que resta garantido, à

comunidade de servidores, o direito a um plexo normativo que independe da ocorrência

533 Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito..., p. 252.

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de fato específico previsto na norma para que o direito possa incorporar-se ao

patrimônio jurídico dos servidores, na medida em que esse direito existe já no plano da

abstração, como fruto das conquistas sociais. Trata-se de direito adquirido a um

conjunto jurídico normativo que pertence ao patrimônio da coletividade de servidores.

De tal modo, só o direito adquirido social (como um dos fundamentos

do não retrocesso) constitui obstáculo apto a barrar um caminhar para trás que se pode

querer instituir em relação aos servidores; somente ele fortalece o plexo de normas que

instituem os direitos e garantias fundamentais dos servidores como um todo,

favorecendo o direito adquirido às normas todas reunidas, que dispõem acerca dos

citados direitos e garantias em um grau mais altivo.

Com efeito, comparando-se as dimensões diferentes de proteção, pode-

se verificar e entender o seguinte:

a) O direito adquirido individual ampara o direito pessoal de

determinado servidor aos direitos e benefícios que lhe são previstos; entretanto, é

imprescindível, como se disse, que o servidor preencha os requisitos normativos

exigidos para que possa adquirir o direito a se aposentar, ou o direito à estabilidade, ou

a determinadas verbas que compõem seus vencimentos, nas condições previstas pela

norma mais favorável; não tem o poder de impedir retrocessos, mas apenas o de evitar

que a norma retroaja para alcançar situações jurídicas constituídas e que integram o

patrimônio jurídico do servidor.

b) O direito adquirido social, por seu turno, tem aptidão para obstar um

eventual rebaixamento do grau mais elevado de direitos e garantias fundamentais

conquistado pela comunidade de servidores no seu processo evolutivo; referido grau

vem estampado na Carta Política de 1988, não admitindo que se dê marcha a ré nessa

evolução alcançada. logo, por ele, as situações gerais (institucionais) da comunidade de

servidores públicos ocupantes de cargos efetivos ficam protegidas de aviltamento

descabido. Logo, verifica-se que o direito adquirido na sua dimensão social tem larga

amplitude, pois implica que o nível mais alto alcançado pela coletividade de servidores,

em termos de conquistas sociais, deve ser conservado na escala evolutiva mais

favorável.

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Com isso, os servidores passam a fazer jus ao conjunto de normas mais

benéficas em termos de direitos e garantias que lhes dizem respeito, não podendo tal

plexo ser ofendido pelas ações do legislador reformador da Constituição. Ressalta-se,

por conseguinte, que o direito adquirido social tem um vasto campo de proteção,

garantidor de direitos em sua expressão mais altiva, que impede retrocessos.

Contudo, entende-se que esse conjunto normativo, garantido em mais

alto grau, assim permanecerá enquanto não houver a necessidade de que o Estado

realize uma justa distribuição de recursos. Nesse caso, ante essa necessidade, o ente

estatal estará autorizado a instituir mudanças em termos de justiça social, que poderão

acarretar reduções e enfraquecimentos no tocante aos direitos e garantias fundamentais

dos servidores e, por via de consequência, nesse plexo normativo elevado.

Reconhecendo-se de tal forma as mudanças, importará saber quais critérios serão usados

pelo julgador para que ele verifique a justificação (legitimidade) das alterações

(conforme será exposto no próximo item).

c) O ponto de conexão entre a dimensão social e a individual é a

expectativa de direito do servidor. Embora sejam dimensões distintas, elas não

permanecem isoladas uma da outra e, nesse sentido, a proteção conferida pelo direito

adquirido social reflete na esfera individual dos servidores resguardando dita esfera em

um ponto que o próprio direito adquirido individual não consegue proteger: a

expectativa de direito do servidor.

Ou seja, em virtude de o direito adquirido, na dimensão social, requerer

que se preserve o grau mais elevado no que concerne aos direitos e garantias da

coletividade de servidores, surge para o servidor a expectativa, na esfera individual, de

que ele poderá adquirir os direitos e as garantias nesse nível mais alto previsto pela

ordem jurídico-constitucional. E, desse modo, o servidor fica na espera de os referidos

direitos (nesse altivo patamar) passem a integrar, posteriormente, o seu patrimônio após

o preenchimento dos requisitos exigidos para tanto. Obviamente que, se ele ainda não

adquiriu os direitos, porque não completou as condições necessárias estabelecidas pela

norma, ele só tem expectativa de direito e, com isso, ainda não goza da proteção do

direito adquirido individual. No entanto, essa sua expectativa é protegida pela larga

cobertura do direito adquirido social quando se pensa que ele garante o grau mais

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benéfico para toda a coletividade de servidores e, também, para o servidor que integra

essa comunidade.534

Portanto, embora a expectativa de direito possa ser considerada, na

dimensão individual, um não direito-ainda, ou seja, um “vir-a-ser-direito independente

da vontade daquele que espera”,535 ela fica protegida, consequentemente, pelo amplo

agasalho do direito adquirido social.

No entanto, o resguardo conferido pelo princípio do não retrocesso

social não é irrestrito, segundo já se advertiu. Perante certas situações, o princípio do

progresso social não deixa de ser aplicado, mas será admissível uma aplicação fraca do

primado do não retrocesso social. Contudo, é importante, nesses casos, que se observe a

equivalência jurídica. E essa será a questão debatida no item seguinte, que finaliza o

presente trabalho e analisa as principais mudanças no tocante aos direitos e garantias

dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos perante o mandamento do

progresso social.

3.4.5 O princípio da vedação ao retrocesso social e a equivalência jurídica

No que diz respeito às medidas equivalentes e o princípio da vedação ao

retrocesso social, pode-se dizer que aludidas medidas devem ser levadas em

consideração ao se analisarem as alterações referentes aos direitos e garantias

534 Nesse sentido, uma vez que o direito adquirido na sua dimensão social possibilita o direito adquirido

ao conjunto jurídico normativo mais elevado, essa proteção repercute na esfera individual dos direitos e garantias dos servidores, pois acaba protegendo não o direito adquirido individual (visto que este por si só encontra a proteção do art. 5.º, inciso XXXVI, da CF, conforme exposto no Capítulo 2), mas sim a expectativa de direito dos servidores (no plano individual) a gozarem do sistema remuneratório, do sistema previdenciário e das regras referentes à estabilidade, tudo em nível mais elevado. É dizer: haverá a proteção aos servidores que estão em vias de adquirir direitos e garantias, ou que têm a expectativa de adquiri-los, em conformidade com o patamar mais alto.

535 Conforme explica Filipe Antônio Marchi Levada, “Enquanto o direito adquirido integra o patrimônio do titular, a expectativa depende de acontecimento externo para que venha a sê-lo. É um não direito-ainda, com as características de que: (1) para que seja expectativa, deve independer da vontade do sujeito, senão não seria esperança, mas faculdade não exercida; (2) para que seja de direito, deve objetivar a aquisição de um direito, pois senão tal expectativa não seria jurídica, mas mero capricho do ser. Logo, expectativa de direito pode ser conceituada como um vir-a-ser-direito independente da vontade daquele que espera” (Filipe Antônio Marchi Levada, O direito intertemporal e os limites da proteção do direito adquirido, 2009, Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 85-86).

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289

fundamentais. Ou seja, quando se instituir modificação nas normas constitucionais que

contemplem direitos e garantias fundamentais (e, de igual maneira, na legislação

infraconstitucional que concretiza referidos direitos e garantias), será necessário

verificar se foi criada alguma medida equivalente, isto é, que tenha uma finalidade

preservacionista, buscando resguardar um núcleo essencial de direitos.

Logo, a esta altura, parece relevante examinar como seria possível

identificar a ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social. Para tanto, o presente

estudo propõe, neste último tópico, a existência de um critério de justificação

denominado equivalência jurídica, que pode servir como parâmetro para identificar a

ocorrência de uma modificação justificada (legítima) das normas que contemplem

direitos e garantias fundamentais dos servidores. A consideração desse critério aponta

para a observância do princípio da vedação ao retrocesso social. De outro lado, a

ausência desse critério permite identificar a afronta ao primado do não retrocesso social

e, nesse caso, a alteração realizada se mostrará injustificável.

Nesse sentido, para identificar a ofensa torna-se importante, então,

analisar a questão sob dois planos distintos: o plano dos meios e o plano dos fins da

modificação normativa. No plano dos meios, a identificação acontece quando se verifica

a instituição de medida equivalente, ou seja, se foi ou não prevista uma medida em si

(por exemplo, a previdência complementar para os servidores públicos federais seria

uma medida equivalente). No plano dos fins, a identificação se dá quando se constata

que a medida equivalente criada é capaz de preservar a coerência ético-jurídica da

Administração Pública por intermédio de medida que mantenha equilíbrio suficiente

ante a necessidade de mudança (enfraquecimento) de um lado e o imperativo de

progressão social de outro (como exemplo, a aposentadoria complementar manterá o

equilíbrio nos proventos dos servidores inativos equilibrando a revogação da

aposentadoria com proventos integrais).536

536 Nesse ponto, a verificação da medida de equivalência jurídica não se dará apenas por meio de um

cálculo de custo/benefício. Em uma democracia a cada dia mais legitimada pela via do Judiciário, cada vez mais haverá juízes determinando o Direito Administrativo (o “Novo Direito Administrativo” ou o “Direito Administrativo Democrático” ou o “Direito Administrativo Judicializado”), e juízes não devem se limitar a cálculos de custo/benefício (senão deixam de ser juízes e viram simples administradores e perdem a especificidade que lhes permite julgar juridicamente a Administração Pública).

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290

Portanto, apresentados os diferentes planos, parte-se agora para o exame

da temática que ora se propõe. Nessa tarefa, importa recordar o que se viu com

Canotilho (no Capítulo 2) acerca do primado da vedação ao retrocesso social e a criação

de medidas compensatórias.

Segundo o autor, o primado da proibição de retrocesso social não resiste

diante de recessões e crises econômicas (reversibilidade fática). No entanto, afirma que

dito princípio é capaz de limitar a reversibilidade dos direitos adquiridos, em nítida

violação ao princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no domínio

econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao

respeito pela dignidade da pessoa humana. Isto quer dizer, conforme leciona o jurista,

que será ferido o princípio da proibição de retrocesso social quando houver uma medida

legislativa que não preserve o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais já

realizado e efetivado, devendo-se considerar como inconstitucional aludida medida

estatal que, sem a implementação de outros planos alternativos ou compensatórios,

revelem-se na praxis em uma “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples

desse núcleo essencial. Este, por sua vez, limita a liberdade de conformação do

legislador e suas opções político-legislativas.537

Pois bem, partindo dessa ideia da medida compensatória ou alternativa

apontada por Canotilho, verifica-se que o mestre português define como parâmetro apto

para se constatar a não ocorrência de retrocesso, no que diz respeito aos direitos e

garantias fundamentais (e, nesse sentido, obediência ao princípio do não retrocesso

social), a presença de outros planos alternativos ou compensatórios na norma estatal

editada que revoga ou modifica a medida prevista na norma anterior. Referida presença

(de outras medidas alternativas ou compensatórias que ocupam o espaço das anteriores)

é o instrumento (plano dos meios) de que se vale o aplicador para averiguar se não

houve ultraje à proibição de retrocesso social. Diante da constatação da medida criada,

esta deve ter aptidão para conservar o núcleo essencial já realizado e efetivado dos

direitos fundamentais sociais, sem que se revele, no plano prático, em uma anulação,

revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. Aludida conservação

537 Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 374.

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do núcleo essencial por meio de sua “não anulação”, “não revogação” ou “não

aniquilação” (plano dos fins) evidencia a observância do primado da vedação ao

retrocesso social.

Nesse passo, será aproveitada a ideia do autor quanto à importância do

plano dos meios e dos fins para a apreciação da ofensa (ou não) ao princípio da

progressiva ampliação dos direitos sociais. No entanto, essa visão, adverte-se, sofrerá

adaptação para o que se convencionou designar, no presente estudo, de equivalência

jurídica.

De tal modo, é relevante ressaltar que a medida equivalente não

corresponde exatamente à medida compensatória apontada por Canotilho. O que a

medida compensatória e a medida equivalente têm em comum é o fato de que ambas

servem para verificar se ocorreu afronta ao princípio do não retrocesso social. Todavia,

o modo como o intérprete procederá para fazer essa verificação é distinto em cada

medida. Assim, diferem-se quanto ao conteúdo e à maneira de identificar a preservação

ou a ofensa aos direitos e garantias fundamentais e, por conseguinte, diferenciam-se na

forma de alcançar a constatação da observância ou inobservância do primado da

vedação ao retrocesso social.

Enquanto Canotilho deixa a questão da identificação a cargo da

verificação de que houve a salvaguarda do núcleo essencial do direito sem que haja

anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo, no estudo que aqui se

faz, a identificação ocorre mediante a preservação da coerência ético-jurídica do sistema

(no caso, o sistema jurídico constitucional-administrativo) que contempla as normas

protetivas dos direitos e garantias fundamentais.538 E isso ocorre quando a mudança

normativa faz valer o equilíbrio suficiente entre a necessidade de modificação

minimizante (que introduz atenuação no grau protetivo dos direitos e garantias

fundamentais) e o imperativo de progressão social. Referido equilíbrio é atendido

538 A coerência ético-jurídica procura identificar os princípios que podem dar coerência e justificar a

ordem jurídica vigente. Compete ao intérprete guiar-se pelo arcabouço ético-social, fomentando, historicamente, a reconstrução do Direito, com base nos valores morais agasalhados pelos princípios jurídicos (Dworkin, Uma questão de princípio, p. 235-246).

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292

quando se observa uma justa repartição dos recursos, uma igualdade na repartição dos

recursos.

Na esteira dessas ideias, a equivalência jurídica se dá do seguinte modo:

excepcionalmente, quando for caso de déficit orçamentário comprovado, carência de

recursos devidamente provada ou, também, diante da necessidade imperiosa de

moralização dos recursos públicos (para a correção de distorções),539 deverá o ente

estatal proceder a uma justa distribuição de recursos, a qual poderá acarretar, por via de

consequência, a necessidade de se instituírem modificações nos direitos e/ou nas

garantias fundamentais. Se essas alterações resultarem em enfraquecimento dos direitos

e garantias (em virtude da referida repartição de recursos) deve-se ter instituída uma

medida (um instrumento) que possibilite algum tipo de retorno à própria comunidade de

servidores, contrapesando (equilibrando juridicamente) os direitos e as garantias

afetados.

Com efeito, a equivalência jurídica não trata de querer assegurar um

nível idêntico ao que anteriormente era garantido, mas de preservar um grau de

suficiência, em termos jurídicos, assegurado quando o ordenamento jurídico-

constitucional acolhe os direitos e garantias dos servidores, proporcionando-lhes

proteção, ainda que sobrevenham modificações normativas minimizantes.

Pode-se dizer, desse modo, que a equivalência jurídica está relacionada

à aplicação do primado da vedação ao retrocesso social como medida (que deve estar

presente na nova previsão normativa) a ser considerada pelo julgador quando o

princípio do não retrocesso social conflitar com outros princípios.

E a análise do julgador quanto à existência da medida na norma

modificadora acontecerá diante do exame da situação que se impõe ao juiz para

apreciação. No entanto, além desse primeiro passo (exame do caso), há outro aspecto

(ou segundo passo) que precisa ser igualmente considerado pelo julgador, que

corresponde à verificação da validade finalística da norma modificadora, em que não é

539 E, segundo defende Canotilho, poderiam ser considerados também os quadros de diminuição da

atividade econômica de um país, evidenciados pelas recessões e crises econômicas (Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 374).

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293

possível desvincular os meios dos fins (pois a medida presente deve ser apta para o fim

que se pretenda alcançar).

Canotilho trata da questão dos fins da norma modificadora, mas busca a

menor restrição a direitos fundamentais e, por isso, para o autor, a análise dos fins acaba

sendo a verificação de “não anulação”, “não revogação” ou “não aniquilação” do núcleo

essencial de direitos fundamentais (devendo-se proceder, portanto, a uma verificação

negativa, no sentido de identificar o que deve ser evitado pela Administração).

Entretanto, o que o presente estudo propõe é uma ampliação da questão

do plano dos fins, para abarcar também a verificação da preservação da coerência ético-

jurídica do sistema de Direito Administrativo (em especial o sistema jurídico

constitucional-administrativo) por meio da manutenção da noção de igualdade/justa

distribuição de recursos (devendo-se proceder, por conseguinte, a uma verificação

positiva, no sentido de constatar o que deve ser feito pelo Estado-Administração quando

se estiver perante situação de déficit orçamentário, falta de recursos ou necessidade de

moralização dos recursos). E, como exemplo, diante da imoralidade em relação aos

vencimentos de alguns servidores que percebiam quantias altíssimas como remuneração

na Administração, o que o ente estatal pode fazer para moralizar a percepção desses

vencimentos dos servidores públicos é, por meio de uma justa repartição dos recursos,

instituir um teto remuneratório. Quem verificará positivamente essa medida e o fim

alcançado será o julgador (ou seja, analisará se por meio dela foi mantida a coerência do

sistema jurídico).

Assim, o exame da situação (primeiro passo) não anda sozinho. Ele não

é a única dimensão da análise da justificação. Além dele, ainda existe a consideração da

coerência do sistema jurídico constitucional-administrativo como um todo.540

Portanto, diante de todo o exposto, é possível sintetizar algumas das

ideias referentes às mudanças instituídas no tocante aos direitos e garantias

540 Certamente, ainda se poderia dizer que essa ampliação não elimina algum tipo de cálculo de

custo/benefício. No entanto, o importante é que o exame da situação e o cálculo estratégico de custos não se encontram sós. Eles não são os únicos aspectos da “análise da justificação”. Afora eles, tem-se também a consideração da coerência do sistema constitucional-administrativo, como se ressaltou supra.

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fundamentais dos servidores públicos e, de igual modo, acrescentar outras conclusões,

além de análises das principais modificações estabelecidas pelas emendas

constitucionais (dantes estudadas), da seguinte forma:

(a) No que concerne aos direitos e garantias fundamentais que não

dependem diretamente da situação econômica vivenciada pelo Poder Público e dos

gastos públicos realizados, a competência reformadora, ao instituir emendas à

Constituição, deve se ater aos limites que tem o poder de emendar a Lei Maior; se for

além das balizas constitucionais, enfraquecendo ou mesmo revogando ditos direitos e

garantias, estará afrontando o mandamento do progresso social. Defende-se uma

aplicação forte do princípio do não retrocesso social, que tem uma dimensão de peso ou

importância (forte) e que deve prevalecer (ante outro).541

É o caso da garantia da estabilidade dos servidores públicos. Referida

garantia não está diretamente relacionada ao cenário econômico-financeiro vivido pelo

País ou aos gastos públicos.542 Nesse caso, têm-se como ilegítimas as mudanças

instituídas no tocante à acenada garantia, pois as alterações estabelecidas pela Emenda

Constitucional 19/1998 acarretaram o enfraquecimento do instituto, conforme dantes já

apontado e, consequentemente, causaram um caminhar para trás no que diz respeito à

força originariamente conferida à estabilidade pela Constituição de 1988. Seja por

intermédio da avaliação periódica de desempenho, seja mediante a exoneração por

excesso de despesas com pessoal, o que se tem é a afronta ao princípio da vedação ao

541 Quando se diz que a competência reformadora “não deve enfraquecer” ou mesmo “revogar” direitos

e garantias fundamentais, não se está seguindo, nesse ponto, o pensamento de Canotilho, voltado à “verificação negativa” dos fins da medida compensatória no sentido de se preocupar com a menor restrição a direitos fundamentais, e, por isso, para o jurista, a análise dos fins acaba sendo a “verificação de anulação, revogação ou aniquilação de núcleo essencial de direitos fundamentais”. O que se quer dizer com a referida afirmação, na hipótese desta letra (a), e mesmo quando se assevera que deve haver uma “aplicação forte” do princípio do não retrocesso social, é que este mandamento está presente no sistema jurídico-constitucional, e, tratando-se de proteger direitos e garantias fundamentais conferidos ao servidor, que independem diretamente da questão orçamentária, aludido primado deverá ser levado em consideração (aplicado) na decisão do julgador de modo prevalente.

542 Nesse ponto, verifica-se que o legislador reformador, com a EC 19/1998, acabou por relacionar, em parte, a garantia da estabilidade ao orçamento público, na medida em que instituiu a possibilidade de exoneração do servidor estável diante da hipótese de excesso de despesas com pessoal. No entanto, a garantia em si, cuja essência consiste em proteger os servidores da alternância do poder, dos mandos e desmandos dos governantes, não se vincula, estando o servidor dentro do limite previsto com pessoal, aos gastos públicos. O que sucede é que, por meio da estabilidade, têm-se os gastos com remuneração dos servidores e, posteriormente, com os proventos de aposentadoria e com as pensões.

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retrocesso social com abrandamento da segurança que tem o servidor de permanecer nos

quadros da Administração.

(b) No que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais que estão

atrelados diretamente à situação econômica do ente público, aos gastos governamentais

e ao orçamento público, além da necessidade imperiosa de moralização dos recursos

(para a correção de distorções):

(b1) quando se estiver vivenciando situação de certa suficiência de

recursos543 e exista uma situação de moralidade em relação a eles, o legislador

reformador deve respeitar o nível mais alto de garantias originariamente estabelecido na

Carta Constitucional e, por conseguinte, obedecer ao princípio da vedação ao retrocesso

social. Defende-se uma aplicação forte do primado da vedação ao retrocesso social;

(b2) quando se estiver diante de déficit orçamentário ou falta de

recursos devidamente comprovados, ou diante de necessidade de moralização dos

recursos públicos, o princípio do não retrocesso social não deixará de ser aplicado;

todavia, sua aplicação será em um grau de menor força desde que se observe a

equivalência jurídica no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais

afetados.544 Entende-se que haverá uma aplicação fraca do princípio, pois o julgador,

543 Não obstante finitos, como se sabe, diante da realidade no âmbito público, mas aptos a garantirem

direitos fundamentais que satisfaçam a comunidade de servidores. 544 No plano infraconstitucional devem-se fazer as seguintes distinções: (i) em certas situações em que a

Constituição contemple uma determinação para legislar, bastante precisa e concreta, de forma que seja possível estabelecer, seguramente, os meios jurídicos indispensáveis para tornar a ordem constitucional exequível, o legislador terá um espaço muito reduzido de liberdade para retroceder no tocante ao patamar de proteção já alcançado, uma vez que somente poderá atuar nos exatos termos em que a mudança legislativa ambicionada não acarrete como consequência uma inconstitucionalidade por omissão ou retrocesso quanto à determinada configuração normativa existente; (ii) em outras hipóteses, quando a previsão para legislar contida na Constituição contemplar uma determinação menos precisa, mais aberta ou orientadora ao legislador, este terá um espaço de liberdade maior ao editar normas, prevalecendo o princípio da alternância democrática com a possibilidade de revisão das opções político-legislativas. Entretanto, quando estas disserem respeito a opções legislativas fundamentais, o primado do progresso social agirá como barreira impeditiva de retrocesso; (iii) em caso de normatividade constitucional mais aberta, mas estando-se a vivenciar um cenário de crise econômica comprovada e de recursos insuficientes para cobrir os gastos com o custeamento dos serviços e políticas sociais, admitir-se-á uma legislação ulterior mais limitativa. Todavia, só não haverá violação ao princípio da proibição de retrocesso social, nesse caso, se for observada a equivalência jurídica. Logo, se houver respeito a essa medida, legítima será a vontade popular manifestada pela revisibilidade das opções legislativas fundamentais (havendo, por conseguinte, certo espaço de liberdade ao legislador no que concerne às opções, ao tipo de concretização e à própria margem para retroceder).

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ao apreciar a norma modificadora (e aí verificar que se trata de situação enquadrável na

presente letra b2), deverá saber mensurar a força relativa que terá, no caso, o primado da

vedação ao retrocesso social.

Assim, se o mandamento do não retrocesso social tiver aplicação fraca à

hipótese, embora de um lado a dimensão social sofra certo abalo, de outro, sob o prisma

individual, é fundamental que se protejam o direito adquirido e, também, as situações

em que se tenha a expectativa de aquisição do direito por parte dos servidores. Logo, há

a necessidade de que o legislador reformador faça constarem, diante do advento de

emenda constitucional, regras que preservem o direito de quem já o tinha adquirido com

base nas disposições precedentes e, igualmente, a existência de normas de transição

referentes aos servidores que já ingressaram no serviço público, mas que ainda não

preencheram os requisitos necessários para adquirir o direito a ser alterado até a

publicação da emenda modificadora.

Enquadram-se na letra (b) o regime previdenciário próprio dos

servidores (com as aposentadorias e pensões), bem como o regime remuneratório dos

servidores (que contempla os vencimentos e subsídios). Veja-se que nessas hipóteses há

relação direta entre os direitos e garantias fundamentais dos servidores com os gastos

públicos e a moralização dos recursos.

E assim é porque remunerar os servidores e pagar-lhes proventos de

aposentadoria e pensão onera os cofres públicos a ponto de este ônus ser responsável

por levar a competência reformadora a instituir, em relação ao regime remuneratório e

ao regime previdenciário, a maior parte das mudanças constitucionais efetivadas no

tocante ao regime jurídico dos servidores públicos. De tal forma, importa verificar,

ainda (a título de encerramento deste tópico e do capítulo), como se dá a equivalência

jurídica no tocante às principais modificações estabelecidas em relação a ditos direitos e

garantias.

Nesse sentido, viu-se que a aposentadoria dos servidores públicos

efetivos passou a ser dependente de contribuição. No caso, deve-se proceder ao seguinte

raciocínio (válido para as demais mudanças): o julgador, ao apreciar a demanda que

chega até ele, precisará verificar se a redução/minimização prevista na norma

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modificadora prejudicou a coerência ético-jurídica do Direito Administrativo brasileiro;

se a modificação não trouxer prejuízo à coerência do sistema jurídico como um todo, e a

igualdade/justa repartição de recursos foi respeitada, resultando em uma alteração que

traz equilíbrio suficiente em termos de retorno à comunidade de servidores, então o juiz

tem justificativa para aceitar racionalmente a norma modificadora. A medida é

justificável se, para realizar a justiça social, for necessário fazer uma justa distribuição

de recursos.545 Destarte, em nome de uma justiça distributiva de recursos, é possível que

o magistrado verifique, na hipótese, a existência de uma medida que observa a

equivalência jurídica. E aqui, no regime previdenciário contributivo, é defensável que

exista referida observância.

Pode-se explicar melhor a ideia do parágrafo acima por intermédio da

alteração que instituiu a contribuição previdenciária dos servidores inativos, em que a

equivalência jurídica se deu de maneira semelhante à instituição do regime contributivo,

só que, em vez de ter estabelecido a contribuição somente dos servidores ativos, passou-

se a exigir a cobrança da contribuição dos servidores já em inatividade. De qualquer

modo, o raciocínio nas duas situações é análogo. Logo, diante de uma justa distribuição

de recursos no campo da previdência social, diante da “crise da previdência”,

distribuíram-se os encargos inerentes ao custeio do sistema entre seus participantes,

incluindo os inativos. Desse modo, instituiu-se um meio justificador para o alcance do

equilíbrio suficiente entre a necessidade de modificação e o imperativo de progressão

social. Note-se que o retorno acontece em relação à comunidade de servidores, pois com

a medida equivalente garante-se a continuidade do benefício percebido (aposentadorias

e pensões); mantém-se, então, a coerência do sistema e, com isso, os servidores uns

pelos outros, juntos (ativos, e agora também inativos e pensionistas contribuindo),

permitem garantir a observância da justiça social.

545 Darlei Dall’Agnol observa que para Dworkin, “uma distribuição justa de recursos é atingida quando

todos podem usufruir igualmente daquelas condições que são necessárias para a sua forma de vida. Consequentemente, as desigualdades de recursos (terras, casas etc.) devem ser retificadas pela simples transferência e as desigualdades pessoais (diferenças de talentos e saúde) devem ser compensadas por um sistema de impostos redistributivos. Como pode ser visto, o igualitarismo liberal de Dworkin não está fundado apenas numa noção formal de igualdade” (Darlei Dall’Agnol, O igualitarismo liberal de Dworkin, Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 46, n. 111, p. 67, jan.-jun. 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2005000100005>).

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298

O mesmo ocorre no tocante ao reajuste dos proventos de aposentadoria.

Antes havia o critério da paridade quanto aos reajustes; agora o legislador reformador

definiu a linha quanto à preservação permanente do valor real dos benefícios, que

deverão ser periodicamente reajustados de modo a conservarem permanentemente o seu

poder real de compra, de acordo com os requisitos legais. Por conseguinte, foi

eliminada a paridade de vencimentos criando-se um mecanismo que estabelece uma

medida equivalente (reajustes), que retorna à comunidade de servidores preservando a

coerência ético-jurídica do sistema, sem ofensa à vedação ao retrocesso social, por

intermédio de uma distribuição justa de recursos.

Além dessas mudanças, outra importante alteração no regime

previdenciário do servidor público foi a que determinou que o benefício da

aposentadoria estaria sujeito ao teto previdenciário do Regime Geral da Previdência

Social. Percebe-se, assim, mais uma medida estabelecida em decorrência de uma justa

distribuição de recursos. E com a limitação ao teto, criou-se a aposentadoria

complementar instituída para os novos servidores públicos federais diante do cenário de

possível colapso futuro da previdência social, em que se cunhou, na hipótese, uma

medida equivalente juridicamente em substituição à aposentadoria integral dos

servidores públicos.

Em vez de se aposentarem ganhando os proventos equivalentes àquilo

que percebiam na atividade, os servidores efetivos sujeitos ao teto previdenciário, terão

em seu retorno, como forma de equilibrar suficientemente referida alteração, a

possibilidade de que os servidores possam contribuir complementarmente para sua

aposentadoria. Embora o novel regime previdenciário seja obrigatório para os novos

servidores federais (sujeição ao teto previdenciário do Regime Geral da Previdência

Social), a adesão às entidades de previdência complementar será opcional; entretanto,

verifica-se que a possibilidade de contribuir de maneira complementar é a medida

equivalente criada, e a partir do início da contribuição tem-se o exercício do benefício,

que será usufruído com a aposentação do servidor. Com isso, garante-se a preservação

ético-jurídica do sistema constitucional-administrativo.

Quanto ao sistema remuneratório dos servidores, outras tantas

alterações, conforme dantes exposto, foram determinadas pela competência reformadora

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da Constituição. As que mais se destacam são as seguintes: aboliu-se a garantia da

isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou semelhantes do mesmo

Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; determinou-

se a instituição do regime de subsídios por parcela fixa; estabeleceu-se o teto

remuneratório, inclusive para as hipóteses de cumulação de cargos constitucionalmente

permitidas (nessa situação o servidor está sujeito a um teto único que abrange a soma da

dupla retribuição pecuniária).

No que diz respeito a ditas mudanças, a fim de evitar repetições

desnecessárias, e consoante o que já se anotou neste item a respeito das modificações

concernentes ao regime previdenciário dos servidores, pode-se asseverar que as aludidas

alterações referentes à remuneração obedecem, igualmente, a uma repartição justa de

recursos públicos e a uma moralização destes preservando-se a coerência ético-jurídica

do sistema constitucional-administrativo.

Destaca-se, contudo, quanto ao teto remuneratório que, prima facie, a

redução de vencimentos ao limite do teto poderia conflitar com a irredutibilidade de

vencimentos. Todavia, a redução da remuneração, em virtude de ela ultrapassar o teto

estabelecido, trouxe medida equivalente em grau de suficiência quanto ao nível

remuneratório e, de igual modo, moralizadora dos recursos. Nesse vértice, na dimensão

social, a irredutibilidade de vencimentos tem que conviver com a igualdade na

distribuição de recursos.546

O mesmo raciocínio vale para as hipóteses de cumulação de cargos

constitucionalmente previstas. O teto (como medida equivalente) é uma maneira de

moralização dos próprios gastos públicos que retorna à comunidade de servidores de

modo a manter a remuneração dos servidores públicos dentro de um limite (legal), de

forma a permitir um equilíbrio suficiente entre o controle dos gastos e a remuneração

546 Nesse viés, “A instituição de um teto remuneratório máximo para os servidores públicos buscou

exatamente criar um controle dos gastos com o funcionalismo público em todos os poderes e em todas as esferas governamentais. Buscou-se manter a remuneração dos servidores públicos dentro de um limite legal, de forma a permitir um correto e melhor controle dos gastos públicos com a remuneração de seus servidores, além de evitar distorções no sistema que permitiam servidores perceberem salários estratosféricos e totalmente distorcidos da realidade pública, e mesmo econômica” (Henrique Rocha Fraga, Teto remuneratório: aspectos controvertidos, Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Espírito Santo, Vitória, v. 10, n. 10, p. 266, 2.º sem. 2010).

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dos servidores ocupantes de cargos efetivos. Destarte, nas hipóteses em que a

Constituição Federal permite a possibilidade de acumular cargos, o retorno também

deve ser suficientemente equilibrado.547 Uma vez que a equivalência jurídica ocorre

também em casos de moralização dos recursos, é indispensável que se observe essa

moralização na hipótese da cumulação legítima.

No entanto, adverte-se que é necessário remunerar equilibradamente

uma coletividade de servidores que desempenham dois cargos no serviço público, pois

remunerar apenas minimamente um deles seria uma imoralidade e caracterizaria uma

injusta distribuição de recursos,548 e, de tal modo, haveria ofensa à coerência do sistema

jurídico constitucional-administrativo e ultraje à vedação ao retrocesso social.

Logo, examinadas as principais modificações instituídas pelas emendas

constitucionais no que dizem respeito aos direitos e garantias fundamentais dos

servidores públicos, nota-se que a equivalência jurídica é um padrão decisional apto a

fornecer ao julgador subsídios para proferir uma decisão que analise se a norma

modificadora que altera direitos e garantias fundamentais é justificável ou injustificável

por observar ou ofender o princípio da vedação ao retrocesso social, respectivamente. E

ao mesmo tempo, por meio dessa medida, pode-se ter uma aplicação forte ou fraca do

princípio do progresso social dependendo do seu peso ou importância para a hipótese

em apreço.

Em suma, a equivalência jurídica constitui-se em critério de

justificação utilizado pelo julgador para analisar se as modificações referentes aos

direitos e garantias fundamentais dos servidores observaram o equilíbrio entre a

diminuição e a progressão social, sendo, portanto, um parâmetro de decidibilidade a ser

considerado na aplicação do princípio da proibição de retrocesso social, pois, uma vez

instituída a alteração na normatividade que agasalha os direitos e garantias

547 Em alguns casos, somadas as remunerações, em virtude da cumulação permitida, uma delas pode se

tornar mínima ou chegar a quase nada, pois a outra já se aproxima (sozinha) do valor estabelecido como teto remuneratório.

548 Embora seja a legislação infraconstitucional que estabeleça o quantum remuneratório recebido pelos servidores ocupantes de cargos públicos, em situação de cumulação, remunerar justamente é uma exigência da própria ideia de equivalência jurídica inferida do texto constitucional, em especial quando se considera a garantia da irredutibilidade de vencimentos.

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fundamentais, será necessário constatar se há a criação de medida que tenha o condão

de trazer um retorno à comunidade de servidores de modo a preencher equilibrada e

suficientemente a ausência/mudança do benefício antecessor, propiciando uma

contrapartida suficiente para não abolir, ou mesmo não enfraquecer em demasia, os

direitos e garantias fundamentais.

Portanto, encerra-se o presente estudo, cabendo, por fim, tecer as

devidas conclusões.

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CONCLUSÃO

1. A evolução do Direito Administrativo mescla-se com a ideia de

evolução e transformação sofrida pelo próprio Estado. Essa disciplina jurídica tem

ligação direta com as mudanças de modelo estatal, como também com as modificações

introduzidas no seu aparelho. Somente se pode afirmar que o Direito Administrativo

passou a existir quando o plexo de normas disciplinadoras da organização e função

administrativa tornou-se imperioso para as autoridades e compôs-se em um corpo

coerente e sistemático de princípios e regras que possibilitaram afirmar a existência de

um ramo especializado do Direito.

2. Viu-se que o Estado liberal despontou com a preocupação de deixar

as práticas do absolutismo para trás, sendo possível verificar que no plano institucional

o liberalismo significou a construção de um Estado em que o poder se fazia em função

do consenso, e a divisão de poderes se tornava princípio obrigatório. Além disso, o

direito prevalecia em seu sentido formal e a ética social repudiava as intervenções

governamentais. Imperava a ideia de que o Estado que governa melhor é aquele que

governa menos. Nesse modelo de Estado, o Direito Administrativo encontra terreno

fértil para o seu nascimento. Graças a uma soma de vários acontecimentos, alguns dos

quais remonta a séculos, com origens e experiências estatais diversas, essa disciplina

surge. Nasce da confluência das experiências constituídas do tipo estrutural ad actum

principis e do direito de polícia com os princípios constitucionais introduzidos pela

Revolução Francesa, e ainda do espírito de racionalidade dos legistas franceses,

italianos e alemães da época.

3. Demonstrou-se que o Estado social superou o Estado liberal,

buscando instituir a justiça social em vários setores por meio da criação de condições

vitais básicas de existência, traduzidas na prestação de bens, serviços e infraestrutura

materiais. Atenuou as desigualdades sociais causadas pelo liberalismo. Referido modelo

de Estado se constitui fundamentalmente em uma forma de organização política que

marcou fase de grande valor na história da humanidade, pois é o primeiro sistema

político de grandes dimensões que tentou conjugar democracia (no sentido mais geral de

abertura potencial do governo a grande número de pessoas) à ideia de liberdade

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individual. Desse modo, o Estado social retrata perfeitamente a fórmula Estado Social e

Democrático de Direito. E foi nesse modelo que o Direito Administrativo assumiu

papel fundamental em relação ao rumo do Estado e destino da coletividade. As

fronteiras tradicionais com o Direito Constitucional se romperam e houve uma forte

interpenetração entre esses dois ramos jurídicos, sucedendo o processo de

constitucionalização do Direito Administrativo.

4. Com o Estado social apontado como agigantado e burocratizado,

abriu-se espaço para o Estado neoliberal que se caracterizou pela transformação do ente

estatal pautada nomeadamente pela redução das suas dimensões em todos os setores. E

o Direito Administrativo modificou-se também, atravessando a margem da imposição e

obediência, em que se dava primazia ao público e coletivo para a de maior

consensualidade.

5. No entanto, a crise do neoliberalismo deixou evidente que, diante do

panorama de crise no mundo, a política neoliberal não era a solução definitiva para o

capitalismo. Nesse sentido, surgiu a necessidade de superação do Estado neoliberal.

Nesse viés, por mais verdadeira que seja a realidade de que o Direito Administrativo

incorporou as diretrizes neoliberais, também é verdade que ele sofreu uma forte

constitucionalização. Assim sendo, contemporaneamente, toda ação governamental só

deve ser exercida na medida em que atender às balizas e condições constitucionalmente

previstas, além de atuar tão só em consonância com o sentido e o espírito da

Constituição. É imprescindível, por conseguinte, que o Direito Administrativo

incorpore, em tempos atuais, a tese de que representa o “Direito constitucional

concretizado”, em que se tem a força da Constituição a modelá-lo de modo decisivo.

6. Afirmou-se que, embora se tenha implantado um modelo neoliberal

no Brasil, não é descabido asseverar que o Estado conservou, no fundo, sua alma

prestacional e interventiva. Desse modo, fala-se no surgimento do Estado neossocial

brasileiro. Uma vez que as forças de mercado não foram capazes de se autossustentar e

evidenciou-se a impossibilidade de se ignorar o domínio social que clamava (e clama)

pela proteção estatal, o Estado social no Brasil reacendeu sua chama. Como um todo, o

Direito Administrativo passou por mutações decorrentes do final da década de 90 e

começo do século XXI: fala-se então no primado da juridicidade administrativa; o

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Direito Administrativo sofre o impacto de sua maior aproximação com o campo do

Direito Privado; incorporam-se ao Direito Administrativo a previsão e a utilização de

instrumentos contratuais em uma clara contratualização nas relações entre Estado e

particulares e também entre órgãos públicos; são incentivadas as técnicas de fomento

acarretando o alargamento do Terceiro Setor; ocorrem a regulação e o controle dos

serviços públicos por parte das agências reguladoras; discutem-se o papel e a aplicação

do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado; acontece o fenômeno

conhecido como judicialização das políticas públicas; e se efetivam políticas de

flexibilização quanto aos direitos e garantias dos administrados.

7. No que diz respeito ao princípio da vedação ao retrocesso social, seu

estudo foi feito com base na doutrina e jurisprudência estrangeiras desenvolvidas na

Alemanha, Itália e Portugal acerca da matéria, uma vez que nesses países ocorreu um

desenvolvimento maior do primado da proibição de retrocesso social. Em terras pátrias

o exame da matéria foi realizado com base no pensamento doutrinário brasileiro,

destacando-se os principais autores que abordaram o assunto. De todo o exposto firmou-

se posicionamento no sentido de entender que o princípio do não retrocesso deve ter

uma aplicação mais ampla, não somente quando se estiver perante situações

equivalentes a uma omissão legislativa infraconstitucional, mas também aplicado ao

plano constitucional, foco principal, aliás, do estudo desenvolvido na presente tese.

Assim, o exame centrou-se na aplicação do princípio aos casos em que houver uma

emenda à Lei Maior que venha a estabelecer um retrocesso, em termos de direitos e

garantias, no ordenamento jurídico constitucional.

8. Como um dos fundamentos constitucionais do princípio da vedação

ao retrocesso social, argumentou-se que é plenamente defensável conceber um novo

conceito acerca do direito adquirido, conceito este que envolve a evolução do Estado

moderno, que a partir do Estado de bem-estar transpôs o plano do individual para o

plano social, o que representou um marco para o desenvolvimento não só dos direitos

sociais, em que se ultrapassou a seara individualista (do direito privado), como também

para o plexo de conquistas alcançadas pela sociedade, incorporadas ao ordenamento

jurídico, dentro de um plano evolutivo, como expressão civilizatória dessa sociedade.

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9. Nesse sentido, se o modelo estatal brasileiro que se vivencia hoje é de

um Estado neossocial, não se pode mais conceber o instituto do direito adquirido nos

moldes originários que inspiraram a sua noção. No atual estágio, a interpretação que

deve dar o tom ao art. 5.º, inciso XXXVI, da Constituição federal é a interpretação em

sentido lato, uma vez que o momento contemporâneo requer uma releitura do aludido

dispositivo constitucional, em que se torna necessário contemplar a ideia de que a lei

não deverá prejudicar o direito adquirido individual e social.

10. Foi demonstrado que o direito adquirido social ultrapassa o aspecto

restrito, que se refere tão só ao indivíduo, devendo ser concebido como não somente

aquele que se incorporou ao patrimônio jurídico do seu titular, em vista da incidência da

norma aplicável à época do fato (o que se pode denominar direito adquirido individual).

Avançou-se mais além, para considerá-lo a partir da perspectiva da sociedade, como

tudo o que incorporou o patrimônio jurídico desta, em vista da luta diária pela aquisição

de seus direitos, representando, de tal modo, muito mais do que apenas os direitos

sociais, e sim todos os direitos fundamentais que incorporaram o patrimônio jurídico de

certo povo, como conquista civilizatória inconteste deste, e que, portanto, devem ser

preservados no plano constitucional. Dessa maneira, e assim compreendido, verificou-se

que se trata da preservação de patamares civilizatórios, incorporados às relações sociais

por meio do direito, que não podem mais ser objeto de retrocesso.

11. No tocante à competência reformadora da Constituição Federal, que

tradicionalmente não é inicial, nem incondicionada nem ilimitada, mas subordinada ao

Poder Originário, defendeu-se que qualquer mudança na Constituição, perpetrada por

intermédio de uma emenda constitucional que vá contra direito adquirido individual e

social, ultrapassa a competência reformadora legítima para implicar uma ofensa ao

espírito protetor dos direitos e garantias fundamentais agasalhados pela Lei Maior.

12. Expôs-se que o âmbito de proteção do direito adquirido individual e

social é diferente. Embora tenham em comum o mesmo fundamento normativo

constitucional (art. 5.º, XXXVI, da CF), o direito adquirido individual e social efetivam,

no entanto, dimensões diferentes de direitos (uma individual e outra social). Assim, um

determinado direito adquirido pelo indivíduo estará protegido da retroatividade legal

(normativa), assegurando-se, no tempo, a manutenção de direitos oriundos de previsão

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anterior contida na lei (norma); e paralelamente, mais do que o direito social, todos os

direitos fundamentais que fizeram parte do patrimônio jurídico de determinada nação,

como resultado dos progressos da humanidade em sua evolução social, agregados às

relações sociais por meio do Direito, acharão acolhida no direito adquirido social e, por

conseguinte, no princípio da vedação ao retrocesso social.

13. O princípio do não retrocesso social surge da necessidade de uma

maior proteção à totalidade dos direitos fundamentais conquistados pelo povo,

precisamente porque o resguardo a tais direitos requer não só a manutenção do nível

alcançado, como, de igual maneira, o seu adensamento, decorrência lógica, aliás, da

própria evolução do Estado, do Direito e da maneira de interpretá-lo e aplicá-lo. Além

do mais, o aludido mandamento volta-se à proteção do desenvolvimento social, em que

se deve primar por preservar medidas ampliadoras de direitos, nomeadamente em uma

sociedade moderna.

14. Estabeleceram-se como fundamentos constitucionais do princípio da

vedação ao retrocesso social: o instituto do direito adquirido social e, igualmente, os

dispositivos que assinalam no sentido da progressiva ampliação dos direitos

fundamentais da sociedade (art. 5.º, § 2.º, e art. 7.º, caput), visando à paulatina redução

das desigualdades regionais e sociais e à construção de uma sociedade marcada pela

solidariedade e pela justiça social (arts. 3.º, I e III, e 170, caput e VII e VIII), além da

concepção de Estado Democrático e Social de Direito e suas diretrizes e valores

essencialmente voltados ao plano social e, também, os tratados internacionais.

15. No que diz respeito à jurisprudência existente sobre o princípio da

vedação ao retrocesso social, verificou-se que nas Cortes Superiores de Justiça do Brasil

(Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) as decisões fundadas no não

retrocesso social ainda representam um pequeno número, resultado, talvez, da própria

divergência da doutrina quanto ao fundamento, conteúdo e alcance do princípio.

16. Quanto aos direitos e garantias fundamentais dos servidores

públicos foram analisadas as modificações sofridas em decorrência de uma série de

emendas constitucionais advindas com o fim de alterar várias previsões referentes a tais

direitos e garantias. Portanto, como ponto central dos comentários atinentes a ditas

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mudanças, expuseram-se as alterações instituídas pela competência reformadora no

tocante à estabilidade, ao sistema remuneratório e ao regime previdenciário dos

servidores, com a preocupação de mostrar, além das modificações, as ofensas ao direito

adquirido individual dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos. A

preocupação com o plano social do instituto foi analisada a partir do ponto em que se

passou a examinar o princípio da vedação ao retrocesso social e o regime jurídico

constitucional do servidor público ocupante de cargo efetivo, por intermédio dos cinco

pontos destacados na segunda parte do Capítulo 3.

17. No primeiro ponto de destaque viu-se que os juízes devem atuar em

conformidade com os princípios políticos eleitos pela sociedade, em particular aqueles

reunidos no documento constitucional. Assim, os argumentos de princípio mostram que

a decisão protege os direitos dos indivíduos. O Judiciário está legitimado para decidir

baseando-se nos princípios, de modo a resguardar os direitos individuais e sociais

garantidos pela Constituição. Não lhe cabe decidir (somente ou preponderantemente)

com base em argumentos de política. Contudo, com o intento de controlar os gastos

públicos, por vezes o julgador escapa do jurídico, acabando por valer-se de argumentos

econômico-financeiros para avaliar situações que envolvem um viés político-

econômico.

18. Em relação às “cláusulas pétreas”, destacou-se que, se o “poder”

reformador da Constituição for de encontro aos limites de reforma, em especial às

citadas cláusulas, estará atuando de modo inconstitucional, por ofensa aos direitos

fundamentais dos administrados garantidos pelo Poder Constituinte Originário.

Referidas limitações têm o intuito de impedir a eliminação de matérias que formam um

núcleo constitucional que não pode ser tocado se o objetivo do legislador reformador for

o de enfraquecê-lo; logo, pode ser considerado tangível (dentro de uma situação de

regularidade e de moralidade de recursos) tão só se for para receber adensamento, pois

esse núcleo protegido é fruto de uma escolha soberana e limitativa realizada pelo

Constituinte Originário, servindo de filtro para eventuais opções da competência

reformadora se esta se esquecer de promover o compromisso que lhe foi imposto de

instituir medidas progressivas concernentes aos direitos e garantias fundamentais.

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19. No entanto, asseverou-se que é exatamente porque, em muitas

situações, não se observa essa ampla proteção que o Poder Constituinte conferiu às

“cláusulas pétreas”, especialmente, o não reconhecimento de que sua força protetiva

clama no sentido de se tornar mais denso o abrigo conferido aos direitos e garantias

fundamentais, é que surge a necessidade de aplicação do princípio da vedação ao

retrocesso social.

20. Nessa linha, afirmou-se que o princípio da vedação ao retrocesso

social integra a comunidade de princípios do ordenamento jurídico-constitucional

brasileiro. Nesse vértice, o magistrado pode aplicá-lo para resguardar direitos

fundamentais dos servidores, e é sempre, no plano constitucional, um fator protetivo

densificador da proteção conferida pelas “cláusulas pétreas”, representando a

preservação do progresso, do desenvolvimento social, do plano mais alto alcançado, e

qualquer mudança deve respeitar esse grau mais elevado de evolução conquistado pela

comunidade de servidores públicos.

21. Foram comparadas as diferentes dimensões de proteção conferidas

pelo direito adquirido e se verificou que: a) o direito adquirido individual ampara o

direito pessoal de determinado servidor aos direitos e benefícios que lhe são previstos;

entretanto, não tem o poder de impedir retrocessos, mas apenas o de evitar que a norma

retroaja para alcançar situações jurídicas constituídas e que integram o patrimônio

jurídico do servidor; b) o direito adquirido social é o único que tem aptidão para obstar

um eventual rebaixamento do nível mais elevado de direitos e garantias conquistado

pela comunidade dos servidores estatutários no seu processo evolutivo. Contudo,

entende-se que esse conjunto normativo, garantido em mais alto grau, assim

permanecerá enquanto não houver a necessidade de que o Estado realize uma justa

distribuição de recursos; c) o ponto de conexão entre a dimensão social e a individual é

a expectativa de direito do servidor. Embora sejam dimensões distintas, elas não

permanecem isoladas umas da outras e, nesse sentido, a proteção conferida pelo direito

adquirido social reflete na esfera individual dos servidores resguardando dita esfera em

um ponto que o próprio direito adquirido individual não consegue proteger: a

expectativa de direito do servidor.

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22. No último ponto da tese, examinou-se a equivalência jurídica como

medida apta a proporcionar um equilíbrio suficiente diante de uma mudança em relação

aos direitos e garantias fundamentais, sempre por meio de uma justa repartição de

recursos.

23. No que concerne aos direitos e garantias fundamentais que não

dependem diretamente da situação econômica vivenciada pelo Poder Público e dos

gastos públicos realizados, a competência reformadora, ao instituir emendas à

Constituição, deve se ater aos limites que tem o poder de emendar a Lei Maior; se for

além das balizas constitucionais, enfraquecendo ou mesmo revogando ditos direitos e

garantias, estará afrontando o mandamento do progresso social. Defende-se uma

aplicação forte do princípio do não retrocesso social, que tem uma dimensão de peso ou

importância (forte) e que deve prevalecer (ante outro). Essa ideia aplica-se à garantia da

estabilidade dos servidores públicos. E em relação a essa aludida garantia defendeu-se

que houve ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social ante todas as mudanças

por ela sofridas.

24. No que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais atrelados

diretamente à situação econômica do ente público, aos gastos governamentais e ao

orçamento público, além da necessidade imperiosa de moralização dos recursos (para a

correção de distorções): 1) quando se estiver vivenciando situação de certa suficiência

de recursos e existir uma situação de moralidade em relação a eles, o legislador

reformador deve respeitar o nível mais alto de garantias originariamente estabelecido na

Carta Constitucional e, por conseguinte, obedecer ao princípio da vedação ao retrocesso

social. Defende-se uma aplicação forte do primado da vedação ao retrocesso social; 2)

quando se estiver diante de déficit orçamentário ou falta de recursos devidamente

comprovados, ou diante de necessidade de moralização dos recursos públicos, o

princípio do não retrocesso social não deixará de ser aplicado; todavia, sua aplicação

será em um grau de menor força desde que se observe a equivalência jurídica no tocante

aos direitos e garantias fundamentais afetados. Entende-se que haverá uma aplicação

fraca do princípio, uma vez que o julgador, ao apreciar a norma modificadora, deverá

saber mensurar a força relativa que terá, no caso, o primado da vedação ao retrocesso

social.

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25. Nessas situações podem ser enquadrados os direitos e garantias que

integram o sistema remuneratório e o sistema previdenciário dos servidores públicos.

Quanto às mudanças instituídas e analisadas sob a ótica da equivalência jurídica,

constatou-se, pelo menos em relação às principais alterações examinadas, que a medida

equivalente foi observada e, portanto, não houve ofensa ao princípio da vedação ao

retrocesso social.

26. Assim, é possível notar que a equivalência jurídica é um padrão

decisional apto a fornecer ao julgador subsídios para proferir uma decisão que analise se

a norma modificadora que altera direitos e garantias fundamentais é justificável ou

injustificável, por observar ou ofender o princípio da vedação ao retrocesso social

respectivamente. E ao mesmo tempo, por meio dessa medida, pode-se ter uma aplicação

forte ou fraca do princípio do progresso social dependendo do seu peso ou importância

para a hipótese em apreço.

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