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O SÉCULO XII
Aula de Filosofia Medieval
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Fil
2017.1
Os homens do século XII respiram ares de modernidade: já não se acham
simplesmente como herdeiros dos antigos, mas também como iniciadores de algo novo.
Coisas novas vão acontecendo em todos os campos da vida destes homens. Por toda a
parte sopram novos ares. Para entendermos bem o contexto da filosofia no século XII,
vamos tentar descrever as principais correntes de renovação e as confluências culturais,
intelectuais e espirituais que estas correntes, não sem tensões e conflitos, sofrem no
dinamismo que marca a vitalidade do espírito deste tempo.
CORRENTES DE RENOVAÇÃO HISTÓRICA NO SÉCULO XII
Politicamente, o século XII assiste ao nascimento da rivalidade franco-inglesa e à
continuação dos confrontos entre cristandade e islã (II e III cruzadas). A aristocracia,
composta pelos cidadãos nobres ou cavaleiros, são ainda a classe dominante. As cortes
dão origem a toda uma cultura dos relacionamentos de vassalagem entre vassalos e
suseranos, entre cortesãos e reis. A cultura cortesã assiste ao surgimento dos romances
de cavalaria, que exaltam o “fin’amour” (fino amor) dos franceses ou a “hohe Minne”
(alto amor) dos alemães. Ficção poética ou não, trata-se de uma concepção muito
própria do amor. O “amor cortês” (amor curialis) se distingue do amor conjugal. Dá-se
no relacionamento de um cavaleiro com uma dama, que não é sua esposa. Era
apresentado um exercício de nobreza, pois implicava um relacionamento
desinteressado, que não estava em vista de uma sociedade conjugal e familiar, nem de
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descendência. Não obstante, tal amor era visto como perigoso por muitos, pois era
nitidamente erótico e parecia induzir ao adultério. Nos romances de cavalaria, as regras
de devotamento e devoção do vassalo para com o seu senhor se transferem para a dama
ou senhora (cortesia).
Já no fim do século XII aparecem na coorte de Aquitânia poemas destinados a
cavaleiros, que desenvolvem uma nova concepção da relação homem-mulher, ao
menos no plano poético, se não no plano real. A fonte de inspiração é tirada no De
amicia, de Cícero. O maior poeta e trovador francês do século XII foi Chrétien de Troyes,
entre outras coisas, foi autor de um ciclo de histórias relacionadas com o Santo Graal,
com o rei Artur e os cavaleiros da távola redonda, como Lancelote e Percival. Emergem,
assim, romances como o de Erec e Enida, Lancelote e Guinevere, Tristão e Isolda. No
século XIII, o “Roman de la Rose” (Romance da Rosa), de Guilherme de Lorris,
completado por João de Meun, vai representar as vicissitudes e peripécias, as venturas
e desventuras da “ars amandi” (arte de amar) em forma de poema alegórico.
O século XII é também o tempo do renascimento das cidades: é a hora da
revolução comunal. Com as comunas, aparecem também as escolas urbanas: as escolas
de dialética, com a de Abelardo, e as escolas catedrais. Se nas escolas monásticas, os
estudos estavam voltados para a contemplação, e o pensamento trabalhava no silêncio
do claustro, nas escolas urbanas, estão voltados pra a comunicação, para a “doce e
frutífera conexão entre a razão e a palavra”, isto é, para a linguagem, que funda e
fundamenta o convívio entre os homens das cidades. As artes liberais revigoram-se. No
campo do trivium, a gramática e a dialética são cultivadas apaixonadamente. No campo
do quadrivium, o estudo da natureza, cultivado numa perspectiva platônica, sugerida
pelo Timeu, recebe novo impulso. Erguem-se, assim, as escolas de São Vitor e de
Chartres, como representantes, respectivamente, de uma e outra tendência.
Nesse tempo, a própria vida monástica se renova, com a fundação de numerosas
abadias cistercienses. O representante mais insigne desta espiritualidade é Bernardo de
Claraval. Ele renovou os estudos monásticos, assumidos na linha da tradição de Anselmo
e Agostinho. Promoveu o estudo das letras latinas. Com ardor cavalheiresco, levantou
as armas da eloquência em favor da “Scola Christi” (Escola de Cristo) contra a Babilônia
cultural de seu tempo, sob cuja ótica via os mestres da dialética, como Abelardo.
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Mas a mística deste tempo é também feminina. Desponta em primeiro plano a
figura de Hildegarda de Bingen (1098-1179). A abadessa de Bingen (Renânia, Alemanha)
foi uma mulher culta, que conhecia as letras latinas, e, além disso, foi compositora,
poetisa e grande observadora da natureza: das pedras, das plantas e dos animais. Numa
época em que os mosteiros femininos dependiam dos masculinos, ela rompeu com o
costume e fundou o seu próprio mosteiro. Manteve correspondência com papas,
imperadores, bispos, abades e reclamava veementemente uma reforma dos costumes,
dominados pela corrupção e pela simonia. Sua obra prima, intitulada “Scivias” (Conhece
os caminhos), apresenta entre visões e especulações, as vias da união mística entre o
humano e o divino. Ela abrirá um caminho que será trilhado por outras mulheres
extraordinárias da Idade Média: Hadewich de Amberes, Clara de Assis, Ângela de
Foligno, Catarina de Siena, Matilde de Magdeburgo, Juliana de Norwich, entre outras.
Através delas, o fin’amour se transpõe e se expressa com voz feminina para o campo da
mística.
Enquanto isso, são envidados esforços para sistematizar o saber deste tempo.
Nascem, a partir do método dialético do sic et non (sim e não) de Abelardo, os livros das
Sentenças, que tem em Pedro Lombardo, o principal autor. Nasce também a literatura
das Sumas, que irá ter tanta importância no século seguinte.
É na segunda metade do século, porém, que outro movimento de renovação
cultural se despontará. Trata-se da apropriação dos escritos árabes e aristotélicos. O
epicentro deste movimento, levado a cabo por cristãos moçárabes e por cristãos do
norte, estava em Toledo, que tinha sido retomada na empreitada da reconquista no ano
de 1085. Um século depois desta retomada põe-se em movimento toda uma atividade
de tradução do corpus filosófico greco-árabe. Os principais tradutores eram: Gerardo de
Cremona, João Hispano e Domingo Gundissalino. Outra corrente de tradução vem da
Itália, especialmente da Sicília. Trata-se da atividade de helenistas que tinham contato
com Bizâncio e que traduziram textos de Aristóteles diretamente do grego. Destes,
destacam-se Tiago de Veneza e Henrique Aristipo. Foi a partir da atividade destes
homens que, no século seguinte, foi possível uma imensa e decisiva renovação do
pensamento medieval, em cuja vanguarda estiveram Alberto Magno e Tomás de
Aquino.
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HERMENÊUTICA DA HISTÓRIA NO SÉCULO XII
Em meio a um longo outono e inverno da história, no século XII, o medieval
pressente o sabor da primavera. A aterrorizante imagem do Juiz que está às portas e
que vem para fazer a separação dos justos e injustos deixa entrever, no seu íntimo, a
revigoradora imagem do Esposo que diz:
Levanta-te, minha companheira, / bela minha, vem
embora. / Pois eis que o inverno passa, / a chuva cessa e se
vai. / Já se veem flores na terra; / vem o tempo da canção; /
já se ouve em nossa terra / o canto da pomba-rola” (Ct 2,
11s).
Atingida por este chamado, o medievo dos séculos XII e XIII é tomado de uma
ebriedade, que o faz sonhar com novos tempos de paz. As cidades renascem e, com o
seu renascimento, fluem novas relações econômicas e políticas, o feudalismo cede lugar
à atmosfera das comunas e das cidades-repúblicas; os cristãos, até então ameaçados
pelas pressões dos sarracenos, retomam a esperança da conquista da Jerusalém terrena,
por meio das cruzadas. As escolas monásticas e episcopais se transformam em
universidades, que vêem florescer as artes liberais, a filosofia aristotélica e a teologia
escolástica. A arte românica, sóbria, grave e terrena, se transforma na arte gótica, ébria
de luz, aguda e elevada aos céus. Um novo pentecostes parece soprar na Igreja. É nesta
atmosfera que se dá a reforma monástica do século XII, em que sobressaem os
cistercienses, e é neste clima que emergem os evangelismos do século XIII, os quais
provocam uma renovação do laicato e o surgimento das ordens mendicantes. Neste
mesmo ímpeto, movimentos pauperistas se insurgem e postulam reformas eclesiais e
sociais, que anteciparão as revoluções modernas. Aliás, um ar de modernidade já se faz
presente por toda a parte, em meio ao velho mundo da tradição.
No século XII, tudo isso converge para uma figura peculiar e decisiva na
hermenêutica cristã da temporalidade-historicidade: Joaquim de Fiore (c. 1132 – 1202).
No profetismo e na mística apocalíptica deste monge calabrês há algo de tosco, de
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áspero, de solitário, de quase selvagem. Ele mesmo qualificava o seu falar de “rusticus
et impolitus”1. No entanto, tinha se tornado um visionário: ele que peregrinara à
Jerusalém terrestre, acreditava de ver, ao menos em parte, a Jerusalém do alto, que está
iminente. Mais do que o medo, ele queria suscitar a esperança. Mais do que a uma
reforma moral da Igreja, ele aspirava a uma regeneração no Espírito, a um novo
Pentecostes, uma verdadeira e própria renovação carismática de toda a Igreja, em que
todo o peso e opacidade maciça da instituição desse lugar à leveza e transparência do
carisma2. A sua mensagem profética, no entanto, ele queria anunciar corroborado por
uma exegese científica! Assim, Joaquim abandona o terreno tradicional dos quatro
sentidos da Escritura (literal, alegórico, moral e anagógico) e descobre a paisagem de
um novo terreno: o da concordia3. O método da concordia pretende se calcar sobre o
sentido literal do texto da Escritura. Quer ser uma interpretação “científica”, isto é,
exata, sistemática, quase que se poderia dizer “matemática”, feita “more geometrico”
dos textos bíblicos4. Tal método exegético, no entanto, parte de uma posição e
concepção prévia: assim como o Novo Testamento está latente no Antigo e o Antigo
está patente no Novo, tal como acontece na hermenêutica de Paulo e de Agostinho,
assim também os eventos da história da Igreja estão latentes nos eventos da história de
Cristo. A história da Cabeça deve se repetir no seu Corpo. Assim, o livro do Apocalipse
se torna a exposição em linguagem cifrada da história da Igreja. Joaquim procura, assim,
desentranhar o nexo de uma concordância entre os três tempos: o tempo do Antigo
Testamento, o tempo do Novo Testamento e o tempo da Igreja.
1 No prólogo ao Comentário ao Apocalipse. 2 Em vida, Joaquim de Fiore contou com o apoio dos papas. Tendo abandonado a Ordem Cisterciense, ele fundou uma congregação, que contou com a aprovação pontifícia: Celestino III a aprovou. Clemente III aprovou os seus escritos e recomendou que continuasse a trabalhar em sua obra exegética. Somente Inocêncio III o tornou questionável perante a cúria romana. Joaquim, no entanto, reafirmou sua fidelidade e submissão ao pontífice e à Igreja romana. É no tempo de Inocêncio III, cujo pontificado começa em 1198, que começam as contestações curiais a algumas opiniões de sua teologia trinitária. Tais opiniões foram condenadas no Concílio Lateranense IV, quando Joaquim já estava morto (morreu em 1202). 3 Joaquim escreveu, nos anos de 1182 e 1183, o Liber concordiae Novi et Veteris Testamenti (Livro da concordância entre o Novo e o Velho Testamento), bem como, calcado no mesmo método, a Expositio in Apocalipsim – Comentário ao Apocalipse. 4 De Lubac (op. cit. p. 585 – 751) procura mostrar que a exegese de Joaquim é um abandono do “sensus spiritualis” e o surgimento da pretensão de uma exegese literal, exata, “científica”. Para Joaquim, a exegese tinha se tornado uma questão de conjecturas. O que tal método induziu de fantástico e visionário não vinha, pois, do recurso ao “sensus spiritualis’, vale dizer, ao simbolismo alegórico e à interpretação moral e mística. A fantasia das interpretações de Joaquim vinham, paradoxalmente, do racionalismo de seu método, que se pretendia científico.
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Um novo princípio se torna fecundo nesta hermenêutica da história: Joaquim vê
nos três tempos mencionados, um reflexo, uma imagem e uma semelhança da dinâmica
da Trindade. A visão cristocêntrica da história, presente em toda a tradição, se desloca
para a visão trinitária. A história humana não é que a teofania da Trindade. E a
culminância desta revelação trinitária se dá na era do Espírito. É na era do Espírito que
todo o movimento da história se consuma. Só no tempo do Espírito é que Deus pode ser
tudo em todas as coisas5. Esta era do Espírito, Joaquim pensa entrever já como iminente
ao tempo da Igreja. Neste sentido, a Igreja deverá passar por uma transformação que a
levará à perfeita espiritualização: deverá surgir uma Igreja de todo evangélica, pobre,
carismática. Joaquim, no entanto, não deixa claro, até que ponto haverá lugar, nesta
Igreja do Espírito, para a instituição em geral e o papado em particular. É fato, porém,
que ele prevê esta era do Espírito como realidade intra-histórica, a se concretizar ainda
no tempo que antecede a parousía. Assim, a profecia de Joaquim roça o milenarismo,
que, outrora, contara com insignes representantes, como Irineu, Justino e Lactâncio.
5 Cornélio Fabro ressalta, neste sentido, o vínculo entre esta concepção da história de Joaquim de Fiore e a concepção da história no idealismo transcendental de Schelling e Hegel. Hegel, como transparece dos seus escritos da juventude, haure o método dialético das leituras teológicas e místico-teosóficas, sobretudo a leitura de Jakob Böhme, cujas raízes medievais são notórias. Já naqueles escritos da juventude, Hegel mostra uma preferência pelos escritos de João: enquanto Pedro representava o Antigo Testamento (o reino do Pai) e Paulo, em antítese, o Novo Testamento (o reino do Filho), João Evangelista representava a síntese: o reino do Espírito. A concepção cristã segundo a qual a história não é outra coisa do que o desenvolvimento do reino de Deus, transforma-se na concepção idealista segundo a qual a história não é que o desenvolvimento do reino do Espírito. A história é, na verdade, fenomenologia do Espírito: o processo pelo qual, deixando e fazendo aparecer diferentes configurações provisórias e parciais de si mesmo, o Espírito vai, de grau em grau, chegando ao conhecimento (conceito) de si mesmo. Assim, o Reino do Pai é a Idéia ainda indeterminada, o Reino do Filho é a Idéia estranhada na finitude da criação; o Reino do Espírito é a Idéia que retorna a si mesma. Hegel não cita expressamente Joaquim de Fiore. Schelling, no entanto, sim. Na Philosophie der Offenbarung (Filosofia da Revelação), Schelling toma o tríptico Pedro-Paulo-João como imagem da Trindade na história. O Pai corresponde ao reino do passado; o Filho ao reino do presente; o Espírito ao reino do futuro. Assim como o Antigo Testamento foi dominado pelas figuras de Moisés-Elias-João Batista, assim também o Novo Testamento é dominado pelas figuras de Pedro-Paulo-João Evangelista. Moisés e Pedro são figuras da Lei e da estabilidade da tradição, Elias e Paulo, figuras da liberdade e do dinamismo do presente, João Batista e João Evangelista são figuras da consumação. Schelling remete a Angelus Silesius: “Der Vater war zuvor, der Sohn ist noch zur Zeit. Der Geist wird endlich seyn am Tag der Herrlichkeit – O Pai era antes de tudo, o Filho é ainda voltado para o tempo. O Espírito será, finalmente, no Dia da Glória”. Cfr. Fabro, Cornélio. La Storiografia nel Pensiero Cristiano – in: Padovani, Umberto Antonio & Moschetti, Andrea Mario (org.). Grande Antologia Filosofica, Vol. V: Il Pensiero Cristiano. Milano: Marzorati, 1954, p. 359-360.
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BERNARDO DE CLARAVAL
Enquanto especulativa, a teologia mística do século XII guarda vínculos íntimos
com a filosofia. Como contraponto ao empenho de uma teologia dialética, ela acentua
o caráter afetivo do conhecimento de Deus, ou seja, que, em relação a Deus, conhecer
e amar são o mesmo. O conhecimento é, assim, interpretado em termos de um
espiritual experiri (experimentar), sentire (sentir) e videri (ver). Esta impostação afetiva
e introspectiva, por sua vez, produziu finas observações psicológicas e antropológicas,
além de consistentes reflexões teológicas.
Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade cisterciense de grande influência
na vida política e eclesiástica de seu tempo. Opôs-se à suavidade da reforma monástica
de Cluny. Teve um papel importante no incentivo à Segunda Cruzada (1146). Para o seu
primo Hugo de Payns, mestre da Ordem militar dos Templários, escreveu um elogio da
nova cavalaria. Foi ferrenho opositor dos dialéticos, especialmente de Pedro Abelardo e
de Gilberto de Poitiers. Com a ajuda de seu discípulo Guilherme de Saint Tierry,
Bernardo escreveu um Tratado sobre alguns erros de Abelardo. Com o apoio do
arcebispo de Reims, Joscelino, conseguiu a condenação de Abelardo (1141). Pedro o
Venerável, porém, abade de Cluny acolherá Abelardo até a sua morte em seu mosteiro.
Representante de uma teologia monástica mais do que de uma teologia
escolástica, Bernardo de Claraval, no entanto, não repudiava o uso da razão ao interno
da meditação acerca da fé, preferia, porém, se precaver dos abusos que a dialética,
subsumida no horizonte do saber da fé, podia trazer consigo, abusos que, a seu ver, se
demonstravam na vida e na obra de Abelardo. Não obstante, Bernardo se tornou um
grande mestre da psicologia e da mística no século XII. Investigou, com rigor e fineza, as
sutilezas do coração humano, a questão da liberdade humana em face à graça, bem
como a experiência do amor. “Hodie legimus in libro experientiae – hoje lemos no livro
da experiência”, diz ele no terceiro sermão sobre o livro do amor, o Cântico dos Cânticos,
atribuído a Salomão. Seu pensamento se desenvolve, de fato, a partir da leitura
fenomenológica da experiência da alma amante de Deus, da esponsalidade mística
entre o humano e o divino.
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O homem é chamado à verdade e esta se alcança pela humildade. “Humilitas est
virtus qua homo verissima sui agnitione sibi ipsi vilescit – humildade é a virtude pela qual
o homem alcança um conhecimento veríssimo de si e a si mesmo envilece”. Humildade
é virtude que recebe seu nome da terra, do húmus. Humilde é aquele homem que tem
o vigor (virtus) do modo de ser da terra. Mas, em que consiste este modo de ser?
Consiste em, no esquecimento de si, amar e servir, doar-se e proteger a vida. A
humildade é tão esquecida de si que se esquece até mesmo de seu esquecimento.
Envilecer-se tem, aqui, este sentido. Não há outro caminho para o homem ganhar-se a
não ser perdendo-se. Não há outro caminho para o homem elevar-se, a não ser
abaixando-se; para plenificar-se, a não ser esvaziando-se. Todo o crescimento que não
vem da humildade é mera inflação. O verdadeiro crescimento pressupõe o confronto
com o real de si mesmo. O homem não pode alcançar a claridade do céu, se não se
enraíza mais profundamente na escuridão da terra. Não pode se unir ao divino, se não
se tornar mais plenamente humano.
No “Tractatus de gradibus humilitatis et superbiae” (1125), um comentário à
Regra de São Bento, Bernardo expõe os degraus da decida do homem na humildade, ou
seja, os graus da elevação do homem a Deus. Após tratar dos doze degraus da humildade
contidos na Regre beneditina, Bernardo fala de um tríplice grau de conhecimento da
verdade, correspondente à humildade. O primeiro grau da verdade é conhecimento de
nossa própria miséria, criatural e moral. É a experiência do autoconhecimento. O
segundo grau da verdade é o conhecimento da miséria de nossos semelhantes. É a
experiência do amor, no sentido da compaixão. O terceiro grau da verdade é o
conhecimento da sublimidade e grandeza das coisas invisíveis. É a experiência da
contemplação.
Assim, pois, três são os graus ou estados da verdade: ao primeiro ascendemos pelo labor da humildade, ao
segundo pelo afeto da compaixão, ao terceiro pelo excesso da contemplação. No primeiro grau se depara com uma
verdade severa; no segundo, com uma verdade piedosa; no terceiro, com uma verdade pura. Ao primeiro degrau
conduz a razão (ratio), pela qual nós discutimos; ao segundo conduz o afeto (affectus), pelo qual nós temos
misericórdia dos outros; ao terceiro, a pureza arrebata (rapit), pela qual somos elevados às coisas invisíveis (VI, 19:
Apud BOEHNER & GILSON, 2004, p. 292).
A humildade, com o seu correspondente tríplice conhecimento da verdade, é o
único caminho para o amor, pórtico do conhecimento imediato de Deus. “Deus é amor”,
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diz a primeira carta de João (4,8). Essa declaração neotestamentária é a chave que
permite a Bernardo pensar a essência do amor. Somente Deus revela a essência mesma
do amor. Deus é o amor essencial, o amor substancial. Na Carta de Bernardo aos
Cartusianos (Epístola 11) esse pensamento é o ponto de partida. O amor é
substancialmente a vida divina, ou melhor, a vida intradivina, a vida trinitária do Deus
único e uno, segundo o dogma cristão. No Sermão 71, ele esclarece que, na unidade da
essência, as pessoas divinas são uma única realidade (unum) e não realidades diferentes
unidas pela vontade ou consenso (unus) (Apud BOEHNER & GILSON, 2004, p. 294). Em
Deus, trata-se, portanto, de um amor substancial e pessoal, ontológico. Não se trata de
união, mas de unidade.
“Logo, a unidade singular e suprema é aquela que não resulta de uma associação, mas que vigora desde a
eternidade. Esta não se efetua em virtude do referido ágape espiritual, posto que nem sequer é produzida. Ela é, pura
e simplesmente” (Apud BOEHNER & GILSON, 2004, p. 294).
O amor, que torna uno, isto é, unidos (unus), os diversos – o Criador e a criatura,
o divino e o humano –, por sua vez, não é substancial, mas acidental, não é o amor-
essência, mas o amor-qualidade. No entanto, o amor-qualidade é dádiva do amor-
essência. “O amor doa o amor, a saber: o amor essencial doa o amor que se acrescenta
como qualidade” (Apud ENDERS, 2005, p. 99). O universo mesmo, criado a partir da
dádiva do amor, se regula por ele. É pelo amor que todas as coisas criadas são um único
universo e, nessa unidiversidade e unitotalidade, elas estão correlacionadas, tendo, ao
mesmo tempo, número, peso e medida. O amor, deste modo, é divino e cósmico, antes
de ser humano.
O modo de ser do amor, em sua pureza essencial, é gratuidade. É, portanto,
abnegação, esquecimento de si, expropriação do interesse ou da vontade própria,
pobreza e humildade, enfim, serviço. É esse o modo de Deus amar e é esse com esse
modo de amar que o homem deve se medir. “A lei imaculada do Senhor, portanto, é o
amor que não procura o que lhe traga proveito, mas que busque, sim, trazer proveito
para muitos” (Apud ENDERS, 2005, p. 98). A gratuidade, o não reter nada para si, o não
mirar a si mesmo no amor, essa é a marca límpida do amor divino, que a criatura é
chamada, a seu modo, imitar e reproduzir no universo. Ao apropriar-se de sua própria
vontade, o homem imita o Criador às avessas. Essa apropriação é o mal por excelência,
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é a fonte dos males, isto é, das misérias da vida humana. Por conseguinte, a
desapropriação da vontade própria, levada a efeito pela humildade, para amar como
Deus ama e para, em tal amor, se tornar “capaz de Deus” – nisso consiste “o ser imagem
de Deus”–, tornando-se uma só vontade com Ele no amor, é a ascese necessária que a
aprendizagem do amor impõe ao homem, na condição atual de sua “anima curva” (alma
encurvada), dissemelhante de Deus e autoalienada (dissemelhante de si mesma) (cfr.
BOEHNER & GILSON, 2004, p. 285). Tornado escravo de seu egoísmo, o homem não sabe
amar a não ser de modo interesseiro: ama com o amor do escravo, movido pelo medo;
ou ama com o amor do mercenário, movido pelo interesse da recompensa (Cfr. ENDERS,
2005, p. 98). É necessário, pois, que, pela renúncia da vontade própria, em seu modo de
amar, o homem remeta o seu amor de volta, para a sua origem, para o amor fontal, que
é o modo de ser do amor essencial, divino.
No tratado “De diligendo Deo” (Do amar a Deus), Bernardo expõe, a partir de
perguntas, as razões do amor a Deus. Logo no prólogo ele pergunta sobre qual a razão
pela qual se deve amar a Deus e como se deve amá-lo. Numa só resposta, lapidar, ele
declara: “A razão para amar a Deus é Deus. A medida (para amar a Deus) é amar sem
medida” (Apud ENDERS, 2005, p. 100). Deve-se amar a Deus por causa de Deus mesmo,
porque ele é sumamente digno de ser amado e, por conseguinte, nenhum outro amor
é tão justo e tão frutuoso. Ademais, Deus merece ser amado porque ele nos amou por
primeiro. Sua “dilectio” (dileção, amor) é “praedilectio” (predileção, amor que ama por
primeiro, antecipadamente). Esse amor de Deus é universal. Ele se estende a todos os
seres humanos. Deus os ama à medida mesmo que lhes dá o ser, a vida, os bens
corporais e os bens da alma, a saber, a dignitas (dignidade), a scientia (o saber) e a virtus
(o vigor ou potência espiritual, a virtude). Todo amor a Deus é somente uma
correspondência, portanto, ao amor de Deus. É uma restituição agradecida pela
condição agraciada da própria existência humana, criada de modo excelente segundo a
natureza e regenerada de modo ainda mais excelente segundo a graça da encarnação e
da redenção consumadas por Cristo na cruz: “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o
seu filho, o seu único” (Jo 3, 16).
Deus é, em si mesmo, substancialmente, amor infinito. Deus ama a criatura com
amor também infinito. Ele merece ser amado, por conseguinte, com amor infinito.
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Entretanto, o homem só consegue amar a Deus de modo finito, tendo em vista a finitude
de sua criaturalidade. Assim, todo o amor humano a Deus resta inadequado. Entretanto,
o homem deve amar a Deus como pode. Esse amor, contudo, deve ser desinteressado,
como desinteressado e gratuito é o amor de Deus. O amor a Deus não deve ser movido
pelo medo ou pelo interesse da recompensa. O verdadeiro amor “affectus est, non
contractus – é afeto, não contrato” (Apud ENDERS, 2005, p. 101). Entretanto, o amor a
Deus não fica sem recompensa. E a recompensa do amor a Deus é Deus mesmo: sua
autodoação amorosa. O amor puro é aquele que se contenta consigo mesmo, é aquele
que se contenta em amar e, no amor, a receber o próprio amado. O amor se basta em
sua alegria, em sua natureza agraciada. Deus é a causa mesma do amor, é ele que lhe
suscita a ocasião, é ele que desperta o anseio, é ele quem supre a saudade do amor.
Na segunda parte do “De diligendo Deo”, Bernardo descreve os graus do amor,
no retorno do amor humano ao amor fontal, que é o amor divino. O primeiro grau é o
amor carnal, que é amor natural e animal. “Et est amor carnalis quo ante omnia diligit
se ipsum propter se ipsum – e é amor carnal aquele pelo qual, antes de tudo, ama a si
mesmo por causa de si mesmo” (apud BOEHNER & GILSON, 2004, p. 290). Esse amor é,
em si mesmo, bom, pois por ele o homem cuida da manutenção de sua própria vida.
Entretanto, esse amor, na condição atual da “anima curva” (alma encurvada), se
degenera em cobiça e egoísmo. O egoísmo não é o original amor de si, mas a sua
perversão. Ele impede o outro amor, que é também natural, o amor ao próximo. Com
efeito, é natural que se deva compartilhar os dons da natureza com aqueles com quem
se tem uma comum natureza. Na cobiça (concupiscentia), o homem, em vez de abrir-se
à necessidade do próximo, olha apenas para a sua satisfação, ou então, ama o próximo
somente segundo na medida em que o próximo lhe satisfaz. Assim, para amar o próximo
segundo este deve ser amado, o homem precisa libertar-se do seu egoísmo e amá-lo em
Deus, ou seja, segundo o modo como Deus ama, na gratuidade. No segundo grau do
amor, o homem reconhece sua própria miséria e se reconhece dependente de Deus, no
ser e no amor. Entretanto, aqui o homem ainda ama a Deus não por Ele mesmo e sim
por causa de seu próprio interesse. Mas, quando a experiência do amor divino se lhe
torna habitual, isto é, familiar e íntima, o homem aprende a amar a Deus não por causa
de si mesmo e sim por causa de Deus mesmo, porque Deus é sumamente amável em si
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mesmo e substancialmente amante. No terceiro grau, portanto, o homem chega ao
amor puro, gratuito, desinteressado. Trata-se de um amor agraciado e agradecido:
então, o homem “agradece a Deus não porque Deus é bom para ela, mas porque ele é
bom em si mesmo” (Apud ENDERS, 2005, p. 103). Há, ainda, um quarto e último degrau,
que é raramente alcançado nesta vida terrena, e que é propiciado aos bem-aventurados
na vida eterna. Neste grau, o homem ama a si mesmo única e exclusivamente por causa
de Deus. Quando raia o dia claro da eternidade, dissipa-se toda névoa da necessidade,
desvanece-se toda cobiça. O amor se faz puro, absolutamente livre, límpido. O homem
alcança, então, no seu fim, a deificação, a suprema assemelhação a Deus, a semelhança
com Deus, para a qual ele fora criado no princípio. No seu fim, está o seu princípio.
A ESCOLA DE SÃO VITOR
A escola claustral de São Vitor foi fundada junto de uma capelinha nos arredores
de Paris, por Guilherme de Champeaux, ex-mestre de Abelardo, que, após ter sido
derrotado pelo discípulo, ali se refugiou. Dentre os grandes nomes que despontaram
naquela escola, sobressaem os vitorinos: Hugo de São Vitor (+ 1114) e Ricardo de São
Vitor (+ 1173).
Hugo, saxão, é o maior representante da escola de São Vítor. Suas obras mais
importantes são: o Didascalikon de studio legendi (Instrução a cerca do empenho de ler),
traduzido em português como “Da arte de ler”, uma exposição sobre o estudo das
ciências (artes, disciplinas), bem como sobre a leitura da Sagrada Escritura; e o De
Sacramentis fidei christianae (Dos mistérios da fé cristã), uma das primeiras sumas
teológicas da Idade Média ocidental. Hugo também comentou a obra Hierarquia Celeste,
do Pseudo-Dionísio Areopagita, e seu comentário serviu de referência para toda a
escolástica. Do Didascalikon podemos ressaltar sua compreensão da filosofia e de todas
as artes (disciplinas ou ciências) que ela abrange.
Hugo (+ 1141), um dos maiores representantes da escola de São Vitor, perto
de Paris, é o autor da obra que recebeu o título “Didascálicon: da arte de ler” (2001).
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Nesta obra, ele reconduz o saber a pluralidade dos saberes (das “artes”) à unidade
do saber filosófico-teológico. Este saber, no entanto, culmina na contemplação
mística, e essa é obra do amor. “Todos os dias nós nos entretemos discutindo a
respeito do amor”. Assim começa um opúsculo seu, intitulado “Da essência do amor”
(HUGO, 1987, p. 261-269). Este começo nos dá a noção de como o amor ocupava,
cotidianamente, a mente e o pensamento desses mestres do século XII. Eles estavam
cônscios do caráter decisivo do amor na existência humana:
É nossa intenção prestar atenção, de modo que este
(o amor) não se acenda nos nossos corações como um fogo,
e, de uma pequena centelha, se transmude em uma chama,
sem que nos demos conta disso: o amor pode arruinar ou
purificar toda a nossa vida, porque dele depende todo o
nosso bem e todo o nosso mal (HUGO, 1987, p. 261).
Mas, em que consiste o amor? De onde provém, essencialmente? Para qual fim
destina o homem? O opúsculo meditativo de Hugo procura responder a estas perguntas
essenciais sobre a essência do amor, vale dizer, sobre a sua proveniência essencial e o
seu destino essencial. De início, o que se sabe é que o amor é um mistério, que ele é
grande e que ele tem uma força decisiva sobre a existência humana. “O amor, por mais
misterioso que seja, é certamente algo de grande e dele depende tudo quanto está em
nós” (HUGO, 1987, p. 261). Mas, de onde ele vem? Qual sua proveniência? Através de
uma imagem, Hugo nos presenteia com uma meditação sobre a origem do amor:
A fonte do amor se encontra no íntimo de nós
mesmos e é única; ela alimenta dois riachos: o primeiro é o
amor mundano e se chama cobiça, o segundo é o amor
divino e é caridade. No centro de tudo está o coração
humano, do qual jorra a fonte do amor: o amor impelido
para fora se chama cobiça, o amor voltado pelo desejo para
dentro toma o nome de caridade. Há, portanto, dois riachos
que derivam da fonte do amor, a cobiça e a caridade: a
cobiça é a origem de todos os males, a caridade é a origem
de todos os bens. Todo o nosso bem e todo o nosso mal
dependem, portanto, do amor (HUGO, 1987, p. 261).
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Os “dois amores” da Cidade de Deus, de Agostinho, aqui, remontam a uma única
origem. Do coração humano jorra esta única fonte, em direções contrárias, para fora e
para dentro, a da cobiça (cupiditas) e a da caridade (caritas). O coração humano está
entre estas duas direções do amor. Mas, qual a essência a priori do amor, anterior à
experiência dos dois amores contrários? “Isso não é outra coisa que o amor: um
movimento do coração, uno e único por natureza, mas múltiplo nas suas ações” (HUGO,
1987, p. 262). Como não poderia ser una a essência do amor, que tudo reúne e unifica?
Já Dionísio Areopagita tinha visto a unidade e a identidade de eros e ágape. O amor, na
sua origem, é erótico e agápico. Este amor erótico-agápico flui da deidade, cai como
uma cascata na hierarquia dos entes, do mais espiritual e sublime até o mais material e
ínfimo; e, é por meio dele que todos os entes retornam, ascendendo, para a sua fonte,
encontrando na plenitude do amor da deidade o seu fim último. Esse único amor,
disposto segundo a justa ordem, é caridade. Desordenado e desajustado, é cobiça.
Como, porém, definir esse amor único em sua essência?
Como podemos então definir o amor? Devemos
cumprir uma atenta indagação e refletir profundamente,
porque o objeto de nossa investigação é bastante obscuro,
entretanto, quanto mais é colocado no íntimo de nós
mesmos, tanto mais domina o nosso coração em uma ou em
outra direção. O amor parece ser o comprazer-se do coração
de uma pessoa em alguma coisa, por causa de alguma coisa:
se apresenta como desejo na procura, e felicidade na
satisfação da posse, aparece como uma corrida, no que
concerne ao desejo e como um repouso, no que concerne à
alegria da posse (HUGO, 1987, p. 263).
O amor é um comprazer-se em alguma coisa, um deleitar-se com alguma coisa,
por parte do “coração” de uma pessoa. Na idade média, o coração é o centro, o âmago,
o íntimo mais íntimo do ser humano. O amor é uma intencionalidade do coração rumo
ao objeto amado, no qual esse mesmo coração se compraz, com o qual ele se deleita. O
amor é estima e deleite. Seu dinamismo intencional, contudo, apresenta dois
momentos: desejo e felicidade, ou seja, busca e posse, do objeto amado. O amor é
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dinamismo do desejo, que tende à alegria ou felicidade da posse do objeto amado. O
desejo está para a alegria como o movimento está para o repouso.
O bem e o mal dependem do amor. Não, porém, do objeto do amor. Tudo o que
o amor ama é um bem. Do mesmo modo, o homem, que ama, é, em si mesmo, na sua
essência, enquanto homem, melhor, enquanto ente, bom. Então, donde pode vir o mal
do amor ou no amor? O mal não está naquilo que o homem ama, mas no modo como
ele ama. Se o homem ama mal, o seu amor se torna mal. Se o homem ama bem, o seu
amor é bom. Daí o imperativo de ordenar o amor, de seguir a justa ordem do amor,
segundo a declaração do Livro do amor, o Cântico dos Cânticos, em sua versão latina:
“Ordinavit in me caritatem! – Ele dispôs ordenadamente em mim o amor” (Ct. 2, 4).
Como não pensar no “Ordo amoris” (Ordem do amor), de Agostinho? Para
Agostinho, a essência da vontade é o amor. Ela é o seu peso, isto é, sua tendência
natural. A vontade tende para o deleite do amor (delectatio). O amor será ordenado, se
seguir a ordem do ser, que é a mesma ordem do bem: Em primeiro lugar, o homem
precisa servir-se das criaturas, em vez de buscar nelas a satisfação plena dos seus
desejos, pois a meta última da vontade é o Sumo Bem. Deter-se nas criaturas seria
conter a marcha da vontade em seu caminho para o seu fim último. Em segundo lugar,
o homem precisa amar menos o que é menos digno de ser amado: o corpo, menos do
que o espírito. Pois, no próprio homem, há uma hierarquia de ser: o corpo só é
retamente amado quando subsumido no amor ao espírito. Em terceiro lugar, o homem
precisa amar em igual medida o que em igual modo deve ser amado: o próximo. Em
quarto lugar, o homem precisa amar acima de tudo o que acima de tudo é digno de ser
amado: Deus, o Sumo Bem, o próprio amor.
Para Hugo, o amor vem de Deus e seu destino é voltar para Deus. Ele não repousa
plenamente, a não ser na sua origem, que é também o seu fim e consumação: no Sumo
Bem.
Quero confiar-vos um ensinamento, se é que
consigo exprimir aquilo que gostaria de dizer. Deus
onipotente, que não tem necessidade de nada, porque é o
Sumo Bem – Ele que não pode receber algo de ninguém, que
possa acrescentar algo ao seu ser, porque tudo dele provém,
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nem pode perder coisa alguma, ou seja, sofrer diminuição,
porque todas as coisas n’Ele são imutavelmente – , criou a
pessoa humana somente para o amor, não por alguma
necessidade, querendo admiti-la à participação da própria
beatitude. Deus pôs no homem o sentimento do amor com
o escopo de torná-lo capaz de gozar um dia da sua suma
felicidade (HUGO, 1987, p. 264).
O amor de Deus expressa a superabundância de sua gratuidade. A criação é um
ato desnecessário, no sentido de não ser constrangido por nenhuma necessidade; ela é
expressão de um amor sem “por quê”, absolutamente livre, superabundante. Neste
amor está a suprema felicidade ou alegria divina. Deus criou a pessoa humana para
participar dessa alegria. Por isso, inseriu em seu coração o amor. O amor é o liame que
une, ontologicamente, o homem e Deus.
“A pessoa humana foi, portanto, unida ao seu
Criador por meio do amor e é somente o liame do amor que
lhes une um ao outro: quanto mais forte este vínculo, maior
será a causa da felicidade” (HUGO, 1987, p. 264).
Este amor a Deus pode se tornar ainda mais forte, sendo reduplicado com o amor
ao próximo. O amor ao próximo permite que o amor do coração da pessoa se estenda
ainda mais na capacidade de amar a Deus.
Enquanto por meio do amor de Deus todos são
unidos em Um só, por meio do amor do próximo todos se
tornam uma só coisa entre si. Deste modo, toda pessoa
singular, por meio do amor do próximo, consegue possui nos
outros, de modo pleno e perfeito, o que sozinha não
conseguia acolher daquele Bem infinito, ao qual todos
singularmente se unem: assim, no amor o bem de todos é
totalmente possuído por cada um (HUGO, 1987, p. 266).
O imperativo categórico para a vida do homem, no entender de Hugo é: “ordenai
o amor”. Mas, como Hugo entende o “Ordo amoris” (a ordem do amor)? Há três
realidades que podem ser amadas, bem ou mal: Deus, as pessoas humanas e as coisas
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do mundo. “Deus está acima de nós, as pessoas estão ao nosso lado, as coisas do mundo
estão sob nós” (HUGO, 1987, p. 267). A vida do homem é uma corrida, conforme diz o
Apóstolo: “combati o bom combate, cheguei ao termo da minha corrida” (2 Tim. 4,7).
Numa corrida há um ponto de arrancada, um trajeto e uma meta. No desejo do amor,
Deus é o ponto de arrancada, o trajeto e a meta.
“O amor é suscitado por Deus quando recebe dele as
razões pelas quais o ama, percorre o trajeto junto com ele,
quando não se opõe nunca à sua vontade, tende para Deus
como à sua própria meta, quando anela por encontrar nele
a sua paz” (HUGO, 1987, p. 268).
Já as pessoas humanas são apenas ponto de partida e trajeto de nosso desejo
amoroso. Ponto de partida, à medida que suscitam em nós o prazer pelo seu bem e pela
sua perfeição; e são trajeto, no sentido de que elas são nossas companheiras no
caminho para Deus. Já as coisas do mundo são apenas ponto de partida do amor. O
nosso desejo amoroso pode ser suscitado pelas coisas do mundo, à medida que,
enquanto obras da criação divina, despertam em nós a admiração e o louvor. Eis,
portanto, o “Ordo amoris” (a ordem do amor), segundo a versão de Hugo:
Ordenai o amor: o vosso desejo na sua corrida
proceda de Deus, com Deus e rumo a Deus; do próximo, com
o próximo, mas não rumo ao próximo; do mundo, mas não
com o mundo e não rumo ao mundo, e encontre o seu
repouso na alegria de Deus. Esta é a caridade bem ordenada:
tudo aquilo que é privado dessa ordem é desordenada
paixão (HUGO, 1987, p. 269).
Os vitorinos, especialmente Hugo e Ricardo, foram muito bem considerados em
seu século. No século XIII, a teologia e a mística de ambos irá influenciar especialmente
o pensamento franciscano, mormente a São Boaventura que o considerou o maior
doutor dos últimos tempos. Segundo ele, Agostinho foi excelente na ciência da fé;
Gregório Magno, na moral da fé; Dionísio, na mística da fé. Anselmo seguiu a Agostinho;
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Bernardo a Gregório; e Ricardo de São Vitor a Dionísio. A autoridade de Hugo, porém,
abrange as três esferas (ciência, moral e mística) e supera o saber dos três grandes
mestres do século XI e XII: Anselmo, Bernardo e Ricardo.
A MÍSTICA FEMININA: HILDEGARD VON BINGEN E HADEWICH DE AMBERRES
A concepção do amor que Abelardo, Bernardo e Hugo expuseram
especulativamente, é exposta com não menor força especulativa, mas com maior
veemência afetiva pelas mulheres místicas da Idade Média. Vamos destacar apenas
duas delas: Hadewich de Amberes e Hildegarda de Bingen.
Desponta em primeiro plano a figura de Hildegarda de Bingen (1098-1179). A
abadessa de Bingen (Renânia, Alemanha) foi uma mulher culta, que conhecia as letras
latinas, e, além disso, foi compositora, poetisa e grande observadora da natureza: das
pedras, das plantas e dos animais. Numa época em que os mosteiros femininos
dependiam dos masculinos, ela rompeu com o costume e fundou o seu próprio
mosteiro. Manteve correspondência com papas, imperadores, bispos, abades e
reclamava veementemente uma reforma dos costumes, dominados pela corrupção e
pela simonia. Sua obra prima, intitulada “Scivias” (Conhece os caminhos), apresenta
entre visões e especulações, as vias da união mística entre o humano e o divino. Como
em Bernardo, também em Hildegarda as duas virtudes mais luminosas são a humildade
e a caridade. A humildade não se encontra nem no punho do avaro, nem na beleza da
carne, nem nas riquezas terrenas, nem nos ornamentos de ouro, nem nos homens
mundanos. Ela destrói todos os vícios. Ela aparece com todo o seu vigor na encarnação
do Filho de Deus: filho de uma virgem pobre, ele jazia sobre um coxo. Do mesmo modo,
a caridade trouxe o Filho de Deus do seio do Pai às entranhas da Mãe, do céu para a
terra, pois ele não desdenhou os homens pecadores, aos quais ele quis salvar.
A humildade e a caridade são luminosas, mais que as
outras virtudes, pois são como o travamento de alma e
corpo: reúnem uma energia maior que as forças singulares
da alma e os membros do corpo. Como? A humildade é como
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a alma, e a caridade, como o corpo. Não podem separar-se,
mas operam unidas; à semelhança de alma e corpo, que não
podem desligar-se, pois têm de cooperar durante o tempo
em que o espírito habita a carne. E assim os diversos
membros corporais estão submetidos à alma e ao corpo,
segundo a sua natureza, as restantes virtudes colaboram,
segundo sua justeza, com a humildade e a caridade. Então,
oh homens: buscai a humildade e a caridade para a glória de
Deus e a salvação vossa; muni-vos com elas e não temereis
as ciladas do Demônio, mas alcançareis a vida eterna. Que
quem tenha, pois, a ciência do Espírito e as asas da fé, não
passe indiferente por esta exortação minha, mas que se
regozija, celebrando-a na alma, e assim a receba
(HILDEGARDA, 1999, p. 45).
Hildegarda apresenta uma visão dinâmica de Deus. No início de seu “Livro do agir
divino” ela põe na boca da Sabedoria a seguinte declaração:
Eu sou a energia suprema, a energia ígnea. Eu
incendiei cada chispa da vida. Nada mortal prorrompe de
mim. Eu decido de toda a realidade... Por mim se incendeia
toda a vida. Sem origem nem termo, eu sou essa vida que
persiste idêntica e eterna. Essa vida é Deus. Ela é movimento
perpétuo, agir perpétuo, e sua unidade se manifesta numa
tríplice energia: a eternidade é o Pai, o Verbo é o Filho, e o
sopro que os une é o Espírito Santo (Apud HADEWICH, 1989,
p. 18).
Hildegarda abriu um caminho que foi trilhado por outras mulheres
extraordinárias da Idade Média: Hadewich de Amberes, Clara de Assis, Ângela de
Foligno, Catarina de Siena, Matilde de Magdeburgo, Juliana de Norwich, entre outras.
Através delas, o fin’amour se transpõe e se expressa com voz feminina para o campo da
mística. Na voz de Hadewich de Amberes, porém, essa expressão se faz límpida e
apaixonada. Hadewich viveu no século XIII. Escreveu Poemas, Cartas e Visões. Ela viveu
nos Países Baixos e influenciou a obra e o pensamento de Ruusbroeck, grande mestre
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da mística no século XIV, seguidor da mística da essência, de Mestre Eckhart. Foi
inspiradora das Beguinas. Com palavras fulgurantes, a sua especulação sobre Deus e a
alma surpreendem.
Como o homem pode conhecer Deus? O semelhante conhece o semelhante.
Para o homem conhecer Deus, deve tornar-se divino. Compreender é um poder-ser.
Conhecer é um co-nascer, ou seja, um nascer junto com aquilo que se conhece. O
conhecimento de Deus é um conhecimento com a alma, um conhecer que nasce de um
toque, de uma afeição. Mas é também uma iluminação da razão. Aquilo que o homem
assim conhece não pode dizê-lo, isto é, exprimi-lo. Pode, apenas, indicar; indicar a quem
se move no horizonte da experiência religiosa. O saber da mística é um saber de
experiência feito. A experiência do mistério divino dá pouco saber, mas muita alegria.
Deus é mistério tremendo e fascinante. É o maravilhoso puro.
Quem quiser compreender a Deus e saber o que é
em seu nome e sua essência, é necessário que seja
totalmente de Deus e que seja como quem perdeu a si
próprio. O que sabe pouco, pouco tem a falar, conforme
disse Agostinho com muita sabedoria. Isto é o que tenho a
dizer, bem o sabe Deus. Creio e espero muito de Deus,
porém é pouco o que sei de Deus. É bem pouco o que posso
intuir a seu respeito, já que os conceitos humanos não
logram expressar a Deus. Se alguém, porém, foi tocado por
Deus em sua alma, pelo menos este pode indicar algo de
Deus àqueles que compreendem com a alma. A razão
iluminada comunica algo de Deus aos sentidos interiores, e
estes chegam a saber que Deus é admirável em sua suave
natureza, terrível e tremendo de puro maravilhoso, que é
tudo em todas as coisas e está em sua totalidade em cada
coisa (HADEWICH, 1989, p. 145).
Deus e a alma são realidades que se co-pertencem no amor. Ambas são
realidades abissais: sem fundo. O homem, para mergulhar no abismo de Deus, precisa
imergir-se no abismo de si mesmo, de sua alma. Uma lição que será retomada, mais
tarde, por Mestre Eckhart.
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A alma é o caminho pelo qual abre passagem a
liberdade de Deus, desde o mais profundo de si próprio. E
Deus é o caminho pelo qual encontra passagem a liberdade
da alma para o fundo inacessível de Deus, que, todavia,
alcança a alma com o mais profundo de si (HADEWICH, 1989,
p. 124).
O conhecimento de si mesmo (da própria alma) e de Deus em sua abissalidade,
porém, se dá por duas vias: a do amor e a da razão. Ambas as vias se complementam,
mas a via do amor é mais excelente do que a via da razão. Ela retoma, neste sentido, um
ensinamento do amigo de Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint-Thierry.
A visão de que goza naturalmente a alma é a
caridade. Esta visão tem dois olhos, o amor e a razão. A razão
não pode ver a Deus senão naquilo que ele não é. O amor,
por sua parte, não descansa senão no que Deus é. A razão
tem desembaraçados os caminhos por onde progride; o
amor, no entanto, sente sua impotência, e tal impotência a
faz progredir mais do que a razão. A razão adentra no que
Deus é a partir do que Deus não é. O amor se detém no que
Deus não é e encontra sua beatitude no mesmo lugar onde
desfalece, ou seja, no que Deus é. A razão tem mais
possibilidades de se contentar que o amor, porém o amor
experimenta mais delícias celestiais. Contudo, ambos andam
muito necessitados reciprocamente e se prestam mútua
ajuda: a razão ensina ao amor e o amor ilumina a razão. Se,
então, a razão consentir nos desejos do amor e o amor
aceitar submeter-se aos ditados da razão, terão capacidade
para realizar juntos uma obra grandiosa, porém é coisa é
coisa que ninguém poderia saber senão por experiência
(HADEWICH, 1989, p. 125).
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A ESCOLA DE CHARTRES
A escola de Chartres foi fundada já no século XI por Fulberto (+1092), que foi
aluno de de Gerberto de Aurillac (o papa Silvestre II), que teve particular predileção pelo
estudo da matemática e da medicina. O estudo das ciências naturais, da medicina e da
matemática já tinha experimentado um impulso novo na primeira metade do século XII.
O que os latinófonos sabiam de ciências naturais se recolhera na obra de Honório
Augustodunense, que pode ter sido um pseudônimo de um monge que viveu em
Regensburg, na primeira metade do século XII. Este enigmático personagem é autor de
uma obra intitulada “Clavis Physicae” (A chave da física), inspirada em João Escoto
Eriúgena, e de uma outra intitulada “De Imagine Mundi” (Da imagem do mundo) que
expõe a cosmologia de seu tempo. O mundo está em perpétuo movimento. “Mundus”
(mundo) e “motus” (movimento) se identificam. O mundo é redondo e é comparável
com um ovo. A casca seria o céu. Semelhante à clara seria o éter ou fogo. A gema seria
a terra. No centro da terra está o inferno. A terra está no centro por ser o mais pesado
dos elementos. Circundando a terra está a água, que é mais leve, pois escorre sobre a
terra ou, em forma de vapor, sobre para o ar. O ar é um elemento ainda mais leve e se
estende da terra à lua. Da Lua até o firmamento, estende-se o fogo ou éter, que é um
elemento ainda mais leve e tênue. Dentro do envoltório criado pelo fogo ou éter estão
os sete planetas. A Lua é o primeiro deles. Depois vêm Mercúrio e Vênus. Em quarto
lugar vem o Sol, aquele que sozinho (solus) reina sobre a terra, luzindo sobre todas as
coisas. Depois do Sol vêm mais três esferas celestes: as de Marte, Júpiter e Saturno. A
oitava esfera, depois das sete dos planetas, que se movem no elemento do fogo ou éter,
é a do Céu das estrelas fixas, que é chamado de firmamentum (firmamento) por dar
firmeza a tudo. A nona e última esfera é o céu dos espíritos, inacessível aos homens, o
lugar onde habitam os anjos e os espíritos humanos bem-aventurados. Este é o primeiro
céu, o primeiro móvel (primum mobile), que move todos os outros céus. A revolução das
esferas celestes produz sons maravilhosos, cuja harmoniosa consonância resulta na
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mais admirável melodia: a música do universo. Esta música, no entanto, é inaudível aos
ouvidos humanos, pois os sons que ela produz se propaga além do ar e o ouvido humano
só escuta os sons que se propagam no elemento do ar.
Já na primeira metade do século XII, Constantino o Africano prestou um grande
serviço a novos impulsos aos estudos, traduzindo do árabe, escritos de ciências naturais
e de medicina. Constantino nasceu em Cartago e viveu no Egito e no oriente, mas se
estabeleceu em Salerno, na Itália. Depois foi monge em Monte Cassino (mosteiro
fundado por Bento de Núrsia). Adelardo de Bath (+ 1142) também tinha viajado à Sicília,
à Grécia e por terras árabes e traduzira diversos escritos sobre matemática e escrevera
sobre ciências naturais (Quaestiones naturales). Outro tradutor da ciência dos árabes foi
Hermann da Dalmácia, que chegou a traduzir, em 1143, o Alcorão para o latim, tendo
dedicado a sua tradução a Pedro o Venerável, abade de Cluny.
A escola de Chartres absorveu os saberes antigos e os mais recentes em seus
estudos. Grande ímpeto de investigação ela recebeu com Bernardo de Chartres (+ c.
1126). Este dá grande importância à doutrina platônica das ideias. As ideias são eternas
e imutáveis, são as essências eternas das coisas e se encontram como pensamentos na
mente divina. As ideias são os exemplares segundo os quais tudo ganha forma no mundo
do devir. Imagens destes exemplares são as formae nativae (formas nativas), que atuam
na configuração dos entes naturais como princípios concriativos ou formas imanentes
das coisas materiais e sensíveis.
O irmão de Bernardo, Tierry (ou Teodorico) (+ c. 1150), tentou explicar o livro do
Gênesis, segundo não pela via tradicional da interpretação alegórico-mística, mas pela
via da interpretação literal, aplicando ali os conhecimentos de física ou cosmologia
(secundum physicam et litteram: segundo a física e o sentido literal do texto). Na sua
cosmologia, entram elementos neoplatônicos e neopitagóricos. Elabora uma teoria
cinética dos elementos. A leveza do fogo e do ar é a causa do seu movimento; este, por
sua vez, é a causa da dureza e espessura, isto é, do peso da água e da terra. Tierry
também elabora uma visão matemática do universo seguindo uma metafísica do
número, de tradição platônico-pitagórica. Ele distingue entre a Unidade (unitas) e o
número. A unidade não é número, mas princípio do número. Ela é o domínio do que é
sempre o mesmo, do idêntico e do imutável, enfim, de Deus. O número, por sua vez, é
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o domínio da alteridade (alteritas), do que é sempre diverso e mutável, enfim, da
criatura. Deus, a Unidade, é a forma de ser (forma essendi) de tudo, isto é, todas as
múltiplas coisas que compõem o mundo só são, à medida que recebem o ser da
Unidade, que é Deus. Em Deus, o Pai é a Unidade, o Filho é a Igualdade da Unidade
consigo mesma, e o Espírito é a Verdade, pois uma coisa é verdadeira à medida que ela
é igual à sua unidade. Clarenbaldo de Arras (+ 1170) foi aluno de Tierry e dividiu a
speculatio physica (o estudo especulativo da natureza) em três partes: o estudo das
coisas terrestres (terrestris), o estudo das coisas que estão no ar (sublimis), e o das coisas
que estão nos céus (celestis). Acima da speculatio physica (o estudo da natureza móvel)
vem o a speculatio mathematica (o estudo da quantidade abstrata e imóvel) e, por fim,
a theologia (especulação teológica), ou seja, o estudo dos seres espirituais e de Deus. A
teologia é a parte suprema da filosofia. Theologizare est philosophari (teologizar é
filosofar). Bernardo Silvestre escreveu uma obra, em Tours, entre os anos 1145 e 1153,
que dedicou a Tierry, e que se intitulava De mundi universitate sive Megacosmus et
Microcosmus (Da universidade do mundo ou megacosmo e microcosmo). No Nous ou
Intelecto divino estão, desde a eternidade, as ideias ou formae exemplares (formas
exemplares) de todas as coisas. Do Nous nasce a natureza e, por ela, o “mundus
intelligibilis” (mundo inteligível) se torna “mundus sensibilis” (mundo sensível), onde as
coisas que surgem e perecem são imagens dos exemplares ou ideias que estão na mente
divina, melhor, no Filho de Deus.
Aluno de Bernardo de Chartres foi Guilherme de Conches (+ 1154). Escreveu uma
obra intitulada “Philosophia” (filosofia). Na sua filosofia da natureza decide, contra o
platonismo e sob influência árabe, pela teoria atômica de Demócrito. Os quatro
elementos, a partir dos quais tudo surge no mundo visível, são compostos de partículas
simples e mínimas, os átomos. Como Bernardo Silvestre e Thierry, identificava a anima
mundi (Alma do mundo) dos neoplatônicos com o Espírito Santo dos cristãos. Guilherme
de Conches foi combatido ferrenhamente por Walter de São Vitor e, por isso,
encarcerado.
Aluno e sucessor de Bernardo de Chartres foi também Gilberto (bispo) de Poitiers
(Gilberto Porretano ou ainda Gilberto Porreta) (+ 1154). Em 1141, ensinou dialética e
teologia em Paris. Assim como Abelardo, foi perseguido por Bernardo de Claraval. No
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concílio de Reims, Gilberto e Bernardo travaram um combate acirrado. Difícil foi saber
quem foi vencedor e quem foi o vencido. Sua posição é importante no tocante ao
problema dos universais, levantado por Porfírio e transmitido por Boécio. Na sua
posição, tenta conciliar Platão e Aristóteles. Deus é o artífice e a forma essendi, isto é,
forma que dá o ser a tudo o que é. O que quer que seja, dele recebe o ser e o ser tal
coisa, o ser alguma coisa (aliquid). Na mente de Deus estão as ideias, que são os
exemplares ou arquétipos de todas as coisas. Imagens destes exemplares ou ideias são
as formae nativae (formas nativas). Estas não estão na mente de Deus, mas nas coisas
criadas. Elas se relacionam com as ideias como o exemplo com o exemplar, ou seja,
como a cópia com o modelo, quer dizer, elas guardam uma relação de conformidade
(conformitas) com as ideias. A forma nativa é chamada de eidos e é o princípio
determinante e configurador da coisa sensível. Ela é, portanto, imanente à coisa;
encontra-se nela de forma não abstrata (inabstractae), pois con-cresce com a coisa, quer
dizer, é concrescida, concreta (concretae). Este con-crescimento, por sua vez, se dá junto
com outro princípio: a matéria (hyle). A matéria primeira, informe, é a pura disposição
de receber uma forma. No mundo sensível, toda matéria é formada, isto é, configurada
segundo a força da forma que a modela. Todos os corpos provêm de quatro substâncias
materiais simples, que são os quatro elementos: o fogo, o ar, a água e a terra. Daí vem
os minerais, os vegetais e os animais.
Como, porém, os universais, isto é, os conceitos de gênero e espécie, são se
relacionam com as formas? Voltando às perguntas de Porfírio: gêneros e espécies
subsistem em si mesmos, isto é, são substâncias? São separados das coisas sensíveis ou
se dão nelas e com elas? Gilberto distingue dois sentidos da palavra substância: 1. Quod
est sive subsistens (que é ou subsistente); 2. Quod est sive subsistentia (que é ou
subsistência). Os gêneros e espécies são subsistências gerais e especiais, mas não coisas
subsistentes. Eles não subsistem de verdade (non substant vere). Nem todas as
subsistências, porém, são universais. Há subsistências universais, como as gerais e
especiais, e há subsistências individuais também, ou seja, aquelas que se encontram
somente nos indivíduos. Os indivíduos se diferenciam uns dos outros não de modo
acidental, mas a partir de propriedades da sua forma. Entretanto, são as coisas
subsistentes que dão o ser às subsistências (res subsistentes sunt esse subsistentiarum).
26
Os conceitos de gênero e espécie são o produto da abstração que o nosso intelecto
realiza. A abstração consiste em prestar atenção (attendere) à forma, prescindindo do
que é material. O intelecto recolhe, ajunta (colligit) as semelhanças formais entre as
coisas e das coisas com os seus arquétipos. Os conceitos universais são coleções de notas
formais distintivas e comuns entre as coisas. Assim, as formas que são concretas e
imanentes às coisas, passam a ter um ser no intelecto, como universais e abstratas. As
coisas são (sunt) e subsistem (substant). Elas se dão como verdadeiras substâncias,
entendendo substância como o que se dá como res per se subsistens (coisa subsistente
por si mesma) e como substrato ou sujeito (subiectum) dos acidentes. O universal,
porém, é (est), mas não subsiste por si mesmo nem é substrato de acidentes (non
substat). Ele é um produto da abstração, que apreende e recolhe a substantialis
similitudo (semelhança substancial) ou a conformitas (conformidade) entre as coisas
individuais.
Um discípulo de Gilberto Porretano, Otto de Freising (+ 1158), dedicou-se
especialmente ao estudo da história. Inspirando-se em Agostinho e em Orósio, Otto
escreve uma Chronica sive historia de duabus civitatibus (Crônica ou história das duas
cidades). Esta obra abraça toda a história da humanidade até o século XII. Traz toda uma
história da filosofia. A história da filosofia recente de seu tempo é contemplada, ao
invés, em outra obra: Gesta Friderici Imperatoris (Feitos do Imperador Frederico), onde
o autor vê acontecer uma “translatio imperii” (translação do império) para os
germânicos, na dinastia dos Hohenstaufen. Na segunda parte de sua obra aparecem as
principais personagens de seu tempo: Bernardo de Claraval, Abelardo, Roscelino,
Guilherme de Champeaux, Anselmo de Laon, Bernardo e Tierry de Chartres. O mais
celebrado de todos, porém, é Gilberto Porretano.
Outro nome ligado a Gilberto Porretano é o de João de Salisbury (+ 1180). Nasceu
em Sarum, no sul da Inglaterra, mas deixou sua terra e foi para Paris, onde estudou uns
doze anos, inclusive com Abelardo. Depois de escutar vários mestres da dialética, voltou
à Inglaterra, onde participou ativamente da vida política. Foi secretário de Tomas
Becket. Foi feito, enfim, bispo de Chartres. Escreveu um obra política, intitulada
“Polycraticus”. Inspira-se no capítulo XIII da Epístola aos Romanos. Há uma ordem
estabelecida que vem de Deus e se impõe a todos, fracos e poderosos. É preciso
27
obedecer ao princípio, pois a sua autoridade vem de Deus. Mas o príncipe precisa servir
ao povo. A diferença entre um tirano e o príncipe está em que este se submete à lei e,
por meio do seu julgamento, governa o povo, do qual se estima servidor. O príncipe,
detentor do poder, deve também ser o fiador da equidade. O príncipe é o servidor do
bem público e o guardião da equidade, e é nesse sentido que ele tem um papel público,
reparando os erros e danos e punindo com justiça imparcial e com serenidade os crimes.
É em decorrência dessa função de punir que a ele é dado o “poder do gládio” (espada).
Entretanto, o príncipe é detentor de um poder temporal e, por isso, deve se submeter à
classe sacerdotal, detentora do “poder espiritual”. João de Salisbury escreveu também
uma obra intitulada “Metalogicus”, sobre o valor e a utilidade da lógica. Esta obra traz
diversas notícias sobre questões lógicas de seu tempo, especialmente as posições no
debate sobre os universais. Fala de Roscelino e Abelardo, primeiramente. Roscelino
considera os universais como meras vozes. Abelardo, como termos significativos
(sermones). Além destas posições nominalistas temos também uma terceira posição,
conceptualista. Os que têm esta posição consideram os universais como noções ou
conceitos da mente. Já os realistas afirmam que os universais são reais. Dentre as
variantes, a preferência de João de Salisbury tende para a posição de Gilberto Porretano.
Para este a universalidade baseia-se na semelhança ou conformidade entre as formas
imanentes às coisas individuais (formae nativae) e seus respectivos arquétipos (as
ideias) na mente divina. Para João também, a universalidade decorre das semelhanças
das coisas entre si e das coisas com os seus arquétipos em Deus. Deus, porém, não cria,
concretamente, coisas universais. Em si mesmas, as coisas são individuais. Elas só são
universais enquanto pensadas. A semelhança entre diversos indivíduos se chama
espécie; a semelhança entre diversas espécies se chama, por sua vez, gênero. Os
universais são ficções (figmenta) do pensamento, mas não são criações arbitrárias, pois
possuem um fundamento nas coisas individuais e em suas formas. João de Salisbury foi
contra o cultivo unilateral e formalista da dialética. Para ele, a dialética era a ciência do
provável e, como tal, mediava entre a sofística e a ciência demonstrativa. Ele propôs
também o estudo das letras clássicas como importante na formação do teólogo.
Alano de Lille (Alanus ab Insulis) (+ 1203) também foi ligado à Escola de Chartres,
especialmente a Tierry, a Bernardo Silvestre e a Gilberto Porretano. Deste último, Alano
28
levou adiante a proposta de desenvolver um método matemático-dedutivo na teologia.
Esta tentativa já tinha sido tentada por Orígenes e por Boécio. Alano experimenta esta
possibilidade na sua obra De arte catholicae fidei (Da arte da fé católica). A proposta é
partir de axiomas, ou seja, de proposições supremas, máximas ou regras sobre os
mistérios da fé e deduzir daí o conteúdo da ciência teológica. Outro que seguiu Alano
nesta empreitada foi Nicolau de Amiens. Partindo de definições (descriptiones),
postulados (petitiones) e axiomas (communes conceptiones), ele deduz os teoremas
(theoremata) da teologia enquanto ciência da fé. Assim, no fim do século XII, a escola
de Chartres, tão voltada para o estudo da física e da matemática contribui para o
surgimento de uma teologia more geometrico demonstrata (demonstrada ao modo
geométrico). Mais tarde, Spinoza vai seguir este mesmo método para a sua Ética. Assim,
também a teologia se tornou uma ars, um saber racional todo próprio, que articula
razões necessárias, razões prováveis e que se ancora no ensinamento das autoridades:
a Sagrada Escritura e os Padres da Igreja.
PEDRO ABELARDO
Pedro Abelardo (1079-1142) é aquele homem em que a modernidade do século
XII, isto é, a irrupção de um novo modo de ser histórico, se faz visível. Pedro o Venerável
o saudou como o Aristóteles de seu tempo. Por outro lado, foi ferrenhamente
combatido por Bernardo de Claraval e condenado por dois concílios por causa deste
embate. Abelardo nasceu no Burgo Les Pallet, perto de Nantes, filho do cavaleiro
Berengário e de sua esposa Lucia. Foi aluno de Roscelino de Compiègne, o grande
representante do nominalismo do século XII e de Guilherme de Champeaux, que
representava uma posição de extremo realismo na querela dos universais.
Uma concepção nominalista dos universais já aparece no século XI. Hermann de
Tournai, na primeira metade do século XII, cita alguns nomes de mestres, que ensinavam
a dialética juxta quosdam modernos (segundo o modo dos modernos), ou seja, não
segundo Boécio. Estes consideravam que o estatuto dos universais – qual o tipo de ser
se deva atribuir a eles - se encontrava in voce (na palavra) e não in re (na coisa). Anselmo
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afirma que estes “heréticos da dialética” consideravam que os universais não fossem
nada mais do que flatus vocis (sopro da voz). A estes modernos e heréticos da dialética
pertence, sem dúvida, Roscelino de Compiègne, que foi mestre de Abelardo. João de
Salisbury, em seu Metalogicus, diz que a posição segundo a qual os universais, isto é, o
gênero e a espécie, se dão na voz, ou melhor, que as palavras mesmas, em sua sonância
física, é que são universais, surgiu e desapareceu com o próprio Roscelino. O próprio
Abelardo, com efeito, rejeitou a posição extrema do seu mestre. Em vez da tese
“universale est vox” (universal é a voz), Abelardo apresentou outra tese: “universale est
sermo” (universal é o discurso, a linguagem).
Abelardo não aceitou também a posição contrária, a do realismo de seu outro
mestre, Guilherme de Champeaux, o amigo de Bernardo, que, mais tarde, após ter sido
derrotado na disputa com Abelardo, abandonou a dialética e fundou a Escola de São
Vitor. Guilherme ensinava que uma e mesma coisa (res), essencialmente universal,
encontrava-se ao mesmo tempo nos vários indivíduos da mesma espécie, de sorte que
estes não se distinguem quanto à essência, mas apenas pelo conjunto de acidentes.
Depois da disputa com Abelardo, porém, mudou a formulação de sua tese e, em vez de
dizer que a mesma e única coisa (res) existir essencialmente (essentialiter) nos vários
indivíduos, diz que esta mesma e única coisa (res) existe indiferentemente
(indifferenter) nas coisas individuais. Em todo o caso, para ele, o universal era uma coisa
(essencial ou indiferente) que existia nas coisas individuais. Numa perspectiva tão
realista (realis = aquilo que diz respeito à res, coisa), a dimensão do conceito e do
pensamento se retira completamente.
Abelardo reformula o problema de Porfírio. Este formulou o problema dos
universais com três perguntas. Abelardo apresenta uma quarta pergunta. Na
perspectiva de Abelardo, o problema se apresenta assim: 1. Se os universais (gênero e
espécie) têm verdadeiro ser ou se eles consistem somente em algo pensado e dito (in
opinione). 2. Caso se admita que os universais tenham verdadeiro ser, isto é, existência
real, são eles de natureza corporal ou incorporal? 3. Eles existem separados das coisas
sensíveis ou são imanentes a elas? 4. É necessário que exista alguma coisa
correspondente à denominação dos gêneros e espécies, ou o universal continua a existir
“ex significatione intellectus”, ou seja, a partir da significação do conceito, mesmo se
30
não houvesse mais nenhum indivíduo que correspondesse àquela denominação? Ex.: se
não houvesse mais nenhuma rosa, a palavra rosa continuaria a ter significado?
Abelardo rejeita a posição realista segundo a qual o universal é uma coisa
essencialmente idêntica na diversidade dos indivíduos. Argumenta ele: se nos indivíduos
existe uma coisa essencialmente idêntica e se eles se distinguem apenas pelas formas,
segue que uma e mesma coisa toma formas opostas. Por exemplo: a “animalidade”,
essencialmente idêntica no homem e no bicho, apresenta as formas opostas da
racionalidade e da irracionalidade. O que é impossível. Abelardo rejeita também a
posição ainda realista segundo a qual o universal é uma coisa indiferentemente idêntica
na diversidade dos indivíduos. Esta tese entende que uma mesma coisa é universal e
individual. A singularidade se funda numa diferenciação (discretio), já a universalidade
consiste numa indiferenciação (indifferentia), ou seja, numa convergência de
semelhanças (convenientia similitudinis). A objeção principal de Abelardo se volta
contra a pressuposição desta tese, de que universalidade e individualidade poderiam
ser compreendidas de maneira puramente acidental. Isto acarretaria a consequência de
que a individualidade pudesse ser definida por si mesma, o que é contraditório.
Abelardo rejeita também a tese de que o universal é uma coleção (colletio) ou soma de
objetos individuais que caem sob um conceito. Assim, todos os homens constituem o
universal “homem”. Esta tese tem o inconveniente de exigir que o universal como todo
devesse estar em cada indivíduo.
Entretanto, qual a resposta que Abelardo dá à questão dos universais? Já
dissemos que há uma diferença entre a posição de Roscelino e a de Abelardo. A do
primeiro diz: “universale est vox” (universal é voz). Voz é a palavra como ocorrência física
de um som, de um ruído, como algo natural. A posição de Abelardo diz: “universale est
sermo” (universal é discurso, linguagem). O discurso, ao contrário, é uma “institutio
hominum”, uma instituição dos homens. A voz é algo de natural, a palavra ou o discurso
é algo de humano, cultural. Embora a palavra seja também voz, ela é mais do que voz,
ela é uma voz significativa. O ato de significar, porém, é sempre um ato humano, que se
funda na convivência dos homens entre si e no seu mundo cultural. Além disso, Abelardo
define assim o universal: “est autem universale vocabulum quod de pluribus singillatim
habile est ex inventione sua praedicari” – universal é um vocábulo que, com base numa
31
instituição ou invenção humana, é apto a ser predicado individualmente de muitos
(Lógica para iniciantes 16). O universal é, pois, algo que diz respeito à linguagem e não
a coisas. O universal, porém, não é simples “vox”, som da boca humana, mas é um
“vocabulum”, vocábulo, isto é, uma “vox significativa”, uma voz que significa alguma
coisa. Mais ainda: o universal é “sermo”, algo que se dá no exercício concreto do
discurso, no falar uns com os outros. Neste sentido, o universal já foi sempre encontrado
pelo homem no exercício histórico, social e cultural do discurso. O homem o encontra
(invenit) e à medida que o encontra no exercício concreto do discurso (sermo), quer
dizer, do falar humano no mundo da convivência, o universal é uma invenção (inventio)
ou uma instituição, isto é, uma fixação ou estipulação, sócio-cultural-histórica
(institutio).
Na verdade, Abelardo apreende uma dupla função do universal. A primeira é a
da “apellatio” (denominação), entendida como a capacidade de indicar objetos
perceptíveis sensivelmente. A segunda é a da “significatio”, quando se trata de se referir
a objeto que não é perceptível sensivelmente. Assim, quando uso o nome “Pedro” para
este homem aqui, o que está acontecendo é uma denominação. Mas, quando uso o
nome “homem” como conceito de uma espécie, o que está acontecendo é uma
significação. É que “Pedro” é uma res (coisa), mas “homem”, não. “Homem” é um
conceito (intellectus). A coisa é singular, individual. O conceito é universal. A palavra
pode designar uma coisa, mas pode também designar um conceito. O erro do realismo
está em entender o conceito como coisa universal.
Entretanto, como se dá a gênese do conceito? Resposta: através da abstração. O
conceito é um produto da capacidade abstrativa do intelecto humano. A sensibilidade
(sensus) oferece a coisa em sua individualidade; o intelecto (intellectus), ou seja, a razão
(ratio) ou a mente (animus) produz o conceito em sua universalidade. Abstrair é ater-se
unicamente à semelhança formal entre as coisas. Abstrair é uma questão de atenção: é
levar em consideração somente a semelhança entre coisas diferentes individualmente.
Esta semelhança é expressa no conceito. O conceito é uma “res imaginaria quaedam et
ficta”, uma coisa imaginária e fictícia, uma imagem ou representação do real. O universal
é uma imagem comum e indistinta de muitas coisas. Como quando eu digo “casa” não
tenho em vista esta ou aquela casa na sua singularidade e com suas qualidades
32
particulares, mas eu tenho em vista algo de comum e de indiferenciado que pode ser
dito de todas as casas individuais. O conceito “casa” expressa aquilo que é comum e
semelhante em relação a todas as casas individuais, realmente existentes. O conceito,
portanto, enquanto universal, tem em vista a “forma communis”, a forma comum das
coisas individualmente diversas. A representação imaginária que é produzida pela razão
(figmentum) serve de intermediação entre o real e o conceito. Aquilo que o intelecto
intenciona no conceito universal não é algo realmente existente, mas a forma comum.
Por isso, mesmo quando não existe a coisa individualmente dada, realmente existente,
o conceito permanece capaz de significar alguma coisa. Por exemplo, se não existe mais
nenhuma rosa neste mundo, o conceito de rosa continuaria significativo, pois ele se
referiria não a rosas existentes, mas à forma comum, abstrata, de todas as rosas, que já
existiram ou que poderiam existir. A posição de Abelardo, pois, está entre o
nominalismo puro e simples de Roscelino e o realismo extremo de Guilherme de
Champeaux. Em busca de um nome para esta posição, ela poderia ser chamada de
conceptualismo.
Outra contribuição importante de Abelardo para a história do pensamento
medieval é o método dialético do “Sic et non” (Sim e não), nome de uma de suas obras.
Este método, que consiste em contrapor dialeticamente as opiniões das “auctoritates”
(autoridades, autores significativos da tradição), foi doravante amplamente aplicado na
teologia medieval. Trata-se de uma nova forma de investigação, que consiste
fundamentalmente na colocação de questões (quaestio, interrogatio) e na busca da
resposta por meio da confrontação entre tese e antítese. Trata-se também de uma nova
concepção sobre a relação entre “auctoritas” (autoridade) e “ratio” (razão), pois confia
a esta a incumbência de dar a resolução às contradições entre os ditos das autoridades
da tradição.
Não obstante, Abelardo é favorável ao uso da dialética e não ao seu abuso no
campo teológico. A “ratiuncula humana” (razãozinha humana) não pode compreender
nem dizer o mistério divino. Ele distingue entre intelligere seu credere (entender e crer),
por um lado, e o cognoscere e comprehendere (conhecer e compreender), por outro.
Aqui na terra o homem não pode conhecer e compreender o mistério divino, pode
somente entender e crer algo dele. Por isso, o poder da dialética é limitado nesta esfera.
33
O homem deve sempre se recordar do que Platão dizia a respeito do Sumo Bem, quando
o comparava com o Sol, que não pode ser fitado por muito tempo pelo olhar do homem.
Com efeito, o homem não pode fitar diretamente o mistério divino. Deus é, aqui,
incompreensível para o homem e este pode somente entender algo dele por meio de
imagens e semelhanças (similitudines).
A existência humana é compreendida pelo homem medieval em modo agônico,
ou seja, como um combate sem trégua. Trata-se de um combate que dá à temporalidade
uma tensão escatológica. A decisão final e definitiva que deve acontecer no juízo final
incide sobre cada instante da temporalidade da vida humana. A cada instante está em
jogo, num combate ou tentação constante, o ganhar-se ou perder-se da própria alma,
sua destinação eterna. O cotidiano é uma trama que se trança neste embate e combate.
O destino eterno do homem se decide na temporalidade, a cada instante. A vida é uma
luta e uma labuta contínua. Toda essa tensão escatológica dá à experiência da
existencialidade, feita pelos medievais desse tempo, a consciência de viver a vida
sempre no limite, em face de um ultimato, experimentando o tempo presente como a
“última hora”. Na sua “Ética”, Pedro Abelardo (1079-1142) traz à fala este caráter
agônico da vida humana. Viver é suportar bem este caráter agônico da vida. E mestre
Pedro pergunta: contra o que ou contra quem é essa luta?
Onde está, ademais, a luta, se falta o objeto contra o
qual combater e onde está o grande prêmio, se não devemos
suportar uma prova difícil? Quando a luta termina, não se
deve mais combater; aquele é o momento de receber a
recompensa. Neste mundo, aqui em baixo, nós combatemos
interiormente, para que, em outro lugar, triunfantes na luta,
recebamos a coroa. Para que o combate possa existir, é
preciso haver um inimigo que resista e que persista. Este
inimigo é a nossa vontade má, sobre a qual triunfamos,
submetendo-a ao jugo do querer divino; não conseguiremos
nunca eliminá-la de todo, porque temos sempre um inimigo
contra o qual combater (ABELARDO, 1999, p. 88-89).
Neste embate, o homem conta com dois suportes: a razão e a fé. Ambos não só
não se contradizem, mas se complementam. Pelo menos, esta é a compreensão
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dominante, que vem desde Agostinho e que fora reconfirmada, no século XI, por
Anselmo de Cantuária. Poucas são as exceções, como, por exemplo, Pedro Damião,
inimigo radical da tentativa de harmonizar razão e fé, dialética e teologia. Em todo o
caso, na vida do espírito dos homens medievais em geral, a busca intelectual da verdade
se une à experiência mística do Deus da revelação bíblica, a filosofia se une à teologia e
à mística. Com isso, o filósofo não deixa de ser filósofo, pelo contrário, torna-se ainda
mais um filósofo, isto é, um amante da sabedoria. Abelardo, o lógico, o célebre e
invencível mestre da dialética no século XII, em carta a Heloísa, sua companheira num
romance inusitado, defende-se da acusação de que a sua dedicação à lógica o afasta da
fé de Cristo. Ele declara:
Heloísa, irmã a mim cara um dia no mundo, hoje
caríssima em Cristo, a lógica me tornou odioso no mundo.
Homens malvados, que gozam no mal, cuja sabedoria é
voltada unicamente para prejudicar os outros e para
perverter as palavras destes, dizem que eu sou muito perito
e mestre nas ciências lógicas, mas que claudico não pouco
no meu Comentário Sobre São Paulo. Enquanto celebram a
força do engenho, vão gritando que eu estou longe da
verdadeira fé de Cristo. Estes são impelidos a tais juízos por
opiniões falsas e preconceituosas, mais do que por um
verdadeiro conhecimento de minhas obras. Eu não quero ser
filósofo de modo tal a opor-me a Paulo; não quero ser
Aristóteles de modo tal a afastar-me de Cristo... (ABELARDO,
1999, p. 96-97).
Para Abelardo, há dois tipos de saber: um saber operativo, que consiste em fazer
e agir, que se baseia na experiência e no exercício; e um saber discretivo, que consiste
na perspicácia do discernir e que se baseia no aprimoramento da razão. A filosofia é,
assim, ciência, no sentido de saber discretivo. Seguindo a tradição, Abelardo
compreende a filosofia como articulada em três saberes: a física, a ética e a lógica. O
estudo, porém, quer da realidade natural (física), quer da realidade do viver humano
(ética), se faz por meio da lógica, que é, propriamente, uma “scientia discernendi” (um
saber do discernir). Sua definição da lógica, dada no proêmio de seu comentário à
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Isagoge de Porfírio, cuja compreensão segue a tradição de Cícero e de Boécio, apresenta
esta novidade, a saber, a de compreendê-la como saber discernente, e apresenta o
seguinte teor: “a lógica é uso acurado da razão na discussão de um assunto, isto é, o
discernimento (discretio) de argumentos através dos quais se discute, isto é, através dos
quais se debate” (Apud JACOBI, 2005, p. 84). Mas, o que é a razão? No “Tractatus de
intellectibus” (Tratado acerca do intelecto), ele define: “Chamamos razão a força ou
habilidade do espírito discretivo, as quais lhes são suficientes para entrever e julgar de
modo verdadeiro as qualidades naturais das coisas” (Apud JACOBI, 2005, p. 85).
Ora, a “discretio”, o discernimento, era já um valor importante na vida prática do
homem medieval. A “Regra” de São Bento fora já elogiada pelo papa Gregório Magno
por se destacar pelo discernimento. Segundo São Bento, o monge deveria ser
ponderado e moderado tanto nos assuntos mundanos quanto nos assuntos espirituais.
O discernimento comedido seria um sinal do homem virtuoso. Já ficara célebre o dito
de Cassiano, que declarava a “discretio”, o discernimento, como mãe de todas as
virtudes: “omnium namque virtutum generatrix, custos moderatrixque discretio est –
pois de todas a virtudes, a ‘discretio’ (discernimento) é a geradora, a protetora e a
moderadora” (Apud JACOBI, 2005, p. 87). Abelardo conhecia muito bem este uso da
expressão “discretio”, mas dá a ele um significado peculiar, um sentido teorético. Para
ele, a perspicácia do discernimento pertence mais propriamente ao saber da razão do
que ao saber da experiência prática da vida. Contudo, é verdade que uma pessoa pode
ter um saber que vem da experiência prática da vida e que a torne uma pessoa boa, isto
é, virtuosa, e que, por outro lado, uma pessoa pode ter uma capacidade racional de
discernir argumentos e, no entanto, ser uma pessoa moralmente corrompida. O filósofo,
porém, é alguém que passa do saber operativo para o saber discretivo, ou seja, que faz
a passagem da ética, que se baseia no autoconhecimento (Scito teipsum: conhece-te a
ti mesmo) e na prática da virtude, para a lógica, que consiste na perspicácia do
discernimento das argumentações, por meio do uso da razão.
O saber filosófico, que é eminentemente saber racional, porém, não só não se
opõe, como se dirige, de algum modo, para a fé e nela se consuma. No “Dialogus inter
Philosophum, Iudaem et Christianum” (Diálogo entre um filósofo, um judeu e um
cristão), Abelardo põe na boca do filósofo o reconhecimento da credibilidade da
36
pregação cristã, pois ela fora capaz de converter à fé os gregos, um povo que segundo
Paulo (1Cor 1, 22), buscava a “sabedoria” por meio da razão. Ora, a conversão destes
não se deu sem que eles atendessem às razões da pregação cristã. No Diálogo, o filósofo
diz ao cristão:
Por conseguinte, a vossa pregação, ou seja, a cristã, é digna da máxima confiança,
enquanto ela pôde converter à vossa fé aqueles que se apoiavam grandemente sobre a
razão e a possuíam abundantemente, aqueles que essencialmente eram
profundamente peritos no estudo de todas as artes liberais e eram munidos com a
razão. De tais artes estes não foram somente investigadores, mas também
descobridores e das suas fontes jorraram e fluíram rios no mundo inteiro. Eis porque
ainda hoje nós nutrimos grande confiança na vossa disciplina, enquanto, quanto mais
fortemente e firmemente desenvolvida, mais útil ela se torna no debate racional
(ABELARDO, 1999, p. 172).
O cristão, por sua vez, expressa a convicção, aduzida desde Justino, de que os
gregos, isto é, os filósofos foram iluminados pelo Logos, ou pela Sophia de Deus, que é
Cristo, em tudo aquilo que conheceram da verdade. Em contrapartida, o filósofo
reconhece que os cristãos sobre os verdadeiros lógicos, pois mais do que ninguém eles
se voltam para aprender o ensinamento do “Logos”. Agostinho, no capítulo quatro do
livro VIII de “A Cidade de Deus” (AGOSTINHO, 1990, p. 305), já tinha visto na tríplice
partição da filosofia (física, ética e lógica) uma alusão ou insinuação a Deus como “causa
essendi, ratio intelligendi e ordo vivendi” (causa do ser, razão do entender e ordem do
viver). Do mesmo modo, para Abelardo a lógica tem a sua origem e fim no Logos, o
Verbo, a Palavra, o Filho de Deus:
O Filho de Deus, que nós chamamos Verbo, é
chamado pelos gregos de Logos, ou seja, “conceito da mente
divina”, ou seja, “sabedoria ou razão de Deus”. (...) Se Jesus
Verbo do Pai é chamado em grego Logos, como o Pai é
chamado Sophia, concerne especialmente ao Filho aquela
ciência que é estritamente relacionada com ele pelo nome,
ou seja, a lógica, chamada assim a partir do Logos, como nós
somos chamados a partir de Cristo cristãos. Aqueles que
37
amam a lógica são ditos tanto mais verdadeiros filósofos
quanto mais profundamente amam aquela Suma Sabedoria,
que é o Verbo. Antes, a Suma Sabedoria do Sumo Pai,
encarnando-se pera iluminar-nos pela luz da verdadeira
sabedoria e chamar-nos do amor do mundo ao amor d’Ele,
nos fez, ao mesmo tempo, cristãos e verdadeiros filósofos.
(ABELARDO, 1999, p. 170).
Ora, o ensinamento de Cristo, a “disciplina” da pregação cristã, não deve, por
isso, temer a arte da lógica ou dialética, a disputa racional sobre o conteúdo da fé. Não
por acaso, Abelardo se tornou o fundador do método escolástico do “Sic et Non” (sim e
não), que punha em luta os argumentos das autoridades em que parecia haver
contradições e que, assim, impelia o teólogo a buscar a razoabilidade daquilo que é
objeto de fé para os cristãos. O essencial, porém, da “disciplina” cristã está no
ensinamento da caridade. Nesse ponto, para Abelardo, se dá mais uma vez uma
concordância entre o filósofo e o cristão. No “Diálogo”, Abelardo põe na boca do filósofo
a sua concepção sobre a ética. Para o filósofo, a ética é mais do que uma questão de
normas ou de ações exteriores. O que está em questão, na ética, é o homem mesmo e
sua atitude interior. Por isso, o peso do juízo ético está mais na intenção e na consciência
daquele que age do que na exterioridade e no resultado objetivo da ação mesma. Isso
coaduna com o ensinamento (“disciplina”) da pregação cristã, a de que o essencial não
está no cumprimento da letra da Lei, mas na realização do espírito da caridade. É o
filósofo quem diz:
É, portanto, verdadeiro, se se considera a coisa em si
mesma e não a opinião dos homens que julgam e
recompensam o efeito das ações mais do que a qualidade
moral e, segundo a aparência dos atos exteriores, julgam que
alguns são mais justos ou mais corajosos, que outros são
melhores ou piores. Se considerardes com cuidado a vossa
disciplina, não creio que vós estejais longe da nossa opinião.
De fato, como sustentou o vosso grande Agostinho, a
caridade inclui todas as virtudes sob um único nome; como
considera o mesmo autor, ela somente realiza a distinção
38
entre filhos de Deus e filhos do diabo. Eis porque
corretamente escreve em outro lugar (esta é palavra de
Paulo): “onde há caridade, o que pode faltar? Onde ela falta,
o que pode servir? Na verdade, o amor é o pleno
cumprimento da Lei” (Rm 13, 10). E o Apóstolo mesmo que
diz isto, quando descreve tal cumprimento e exclui dele todo
o mal, enquanto aí inclui todo o bem, afirma: “A caridade é
paciente, é benigna; a caridade não se vangloria, não age
sem consideração, etc” (1Cor 13, 4). Entre as outras coisas,
ele sustenta que ela suporta toda coisa, até a morte, como
recorda Cristo: “Ninguém tem um amor tão grande como
este, que dá a vida pelos amigos” (Jo 15, 13). Por
conseguinte, ninguém abunda mais do que outros em
caridade, enquanto ela contém toda coisa em si mesma e
traz consigo toda coisa. Assim, se ninguém é superior a outro
em caridade, ele não é certamente em virtudes ou méritos,
porque a caridade inclui toda virtude, como dizes
(ABELARDO, 1999, p. 173-174).
Na sua Ética, Abelardo retoma esse princípio do primado da caridade. Ele afirma
que a caridade, em sua perfeição, exclui todo o temor. Viver a vida sob o pesado jugo
do temor da lei é uma imperfeição. A perfeição consiste em viver a vida sob o suave e
leve jugo da caridade. Nisso consiste a liberdade evangélica.
Todos aqueles que cumprem algo por temor têm mais fadiga do que aqueles que
seguem a espontaneidade da caridade. O Senhor exorta também aqueles que são
acabrunhados por pesos a portar o suave jugo e o fardo leve para que, fugindo da
escravidão pesada da Lei, acedam à liberdade do Evangelho, e para que possam, depois
de ter começado pelo temor, encontrar a própria perfeição naquela caridade que
facilmente suporta e sustenta toda coisa: o amor de Deus, em nada carnal, mas
espiritual, é tanto mais forte, quanto mais é verdadeiro (ABELARDO, 1999, p. 106).
Assim, com discernimento e caridade, o homem pode tornar mais leve e suave o
bom combate da vida e, ao invés de experimentá-la como uma “Historia Calamitatum”
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(uma história de calamidades ou desgraças), vivê-la como uma história de graça e
salvação.
Abelardo assinala uma guinada na autocompreensão do homem ocidental em
pleno século XII. Entretanto, ele não deixou uma escola. Sua posição sobre o problema
dos universais vai repercutir no nominalismo e do conceptualismo do século XIV, que
será responsável pela autodestruição da grande síntese escolástica do século XIII e pela
irrupção de uma nova época, marcadamente pelo desenvolvimento da ciência moderna.
Seu método dialético, porém, foi decisivo para o desenvolvimento da escolástica no
século XIII.
No fim do século XII, sob o impulso dado por Abelardo e por Hugo de São Vitor,
começam as primeiras tentativas de colecionar os ditos das autoridades da tradição com
o fim de promover uma disputa dialética em torno deles. É a época da “Summa
sententiarum” (Suma das sentenças) e dos “Libri sententiarum” (Livros das Sentenças).
A obra mais famosa neste sentido ficou sendo a de Pedro Lombardo (+ 1160): “Libri
quatuor sententiarum” (Os quatro livros das sentenças). O primeiro livro trata da
doutrina sobre Deus; o segundo, sobre a criação; o terceiro, sobre a redenção; e o
quarto, sobre os sacramentos e a escatologia. Até o século XVI será costume entre os
candidatos ao doutorado em teologia, ler e comentar, durante dois anos, os quatro
livros das sentenças de Pedro Lombardo. De início os comentários produzidos serão
mais aderentes ao texto. Depois, o texto vai se tornando apenas o pretexto para a
discussão das questões (quaestiones), que vão sendo desenvolvidas com cada vez maior
autonomia por parte dos comentadores. O peso vai passando da autoridade da tradição
para a força autônoma da razão. E isso foi decisivo para o desenvolvimento do
pensamento medieval.
O pensamento medieval foi essa obra grandiosa de amor e razão, um saber
experimental, no sentido da experiência da existência e não no sentido do experimento
da ciência, e ao mesmo tempo altamente especulativo; afetivo e ao mesmo tempo
intelectual.
O pensamento do século XII está sob o signo do autoconhecimento: “Scito te ipsum:
conhece-te a ti mesmo”. O autoconhecimento, porém, gera a virtude da humildade
e se completa com a virtude do discernimento (discretio, discernimento). Para os
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medievais do século XII o ditame délfico, tornado socrático na filosofia, se reveste
de um significado cristão. Ele é, antes de tudo agostiniano: o conhecimento de si
passa pelo conhecimento da própria interioridade e, nessa interioridade, do
conhecimento da verdade. Inseparável, porém, do conhecimento da verdade é a
conquista humildade. A humildade é, com efeito, o fruto do autoconhecimento: o
conhecimento da verdade da própria criaturalidade, da própria miséria moral, da
própria mortalidade, enfim, o conhecimento da própria finitude e niilidade. O homem
que se conhece em sua humanidade é o mesmo que é capaz de discernir com
perspicácia o verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Mas todo o saber discernente é
apenas uma passagem a outro saber, mais elevado, que consiste, justamente, na
experiência mística do amor. Sim, pois, a experiência mística do amor é também
uma forma de conhecimento, de conhecimento que é co-nascimento a partir de um
encontro “tu a tu” com Deus. Assim, todo conhecimento da verdade é apenas uma
passagem ao amor. Esta é a virtude maior. Apesar das diferenças que existem entre
Abelardo e Bernardo, que detestava Abelardo; entre os vitorinos e as mulheres
místicas; num ponto todos convergiam: que era sumamente necessário, para a
existência humana, conquistar as virtudes da humildade, do discernimento e do
amor.