o seminario livro 9 a identificacao pdf
TRANSCRIPT
Jacques Lacan
A IdentificaçãoSeminário 1961 - 1962
P U B L I C A Ç Ã O P A R A CIRCULAÇÃO INTERNA
Ç F N I H <) Í)ÍÍ ISIUDOS I Kl'UlHANOÎi |M> K I'C III
T ÍT U L O D O O R IG IN A L
L ’IDENTIFICATIONPublicação interna da Association freudienne internationale
TRADUTORESIvan Corrêa Marcos Bagno
REVISORESDominique Fingermann Francisco Settineri Leticia P. Fonsêca*
41 Responsável pela coordenação do projeto de traduçao e editoração
i
'
'
i
Jacques Lacan
A IdentificaçãoSeminário1961-1962
PUBLICAÇÃO NÃO COMERCIAL EXCLUSIVA PARA OS MEMBROS
DO CENTRO DE ESTUDOS FREUDIANOS DO RECIFE
C E N T R O DE ES Tf DOS FREUDIANOS DO RECIFE
RECIFE, OUTUBRO 2003
Copyright© by Jacques Lacan
Lacan, Jacques A Idetificação: seminário 1961 - 1962/Jacques Lacan
Trad. Ivan Corrêa e Marcos Bagno - Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.
442p.
Título original: U iden t i f ica tion
1. Psicanálise. I. Título. II. Subtítulo.
CDU 159.9
Kdltoraçáo Gráfica: Carlos MarrocosImpressão: Edições BagaçoHua dos Arcos, 150 - Poço da PanelaCEP: 52 0 6 1 - 180Tcl: (81) 3441 0 1 3 3 /3 4 4 1 0134K-rnall: [email protected] no lltasll 2003
I♦
»
*
»
*
»
*
»
>
»
i
»
»
»
f
t
Ir
*■
»
¥
*
*
AVISO AO LEITOR
Esta tradução é efeito de uma transferência de trabalho interinstitucional, em lugares onde o ensino de Lacan se inscreve, se processa e se desdobra. Permite-nos inscrever mais um passo no objetivo principal: fornecer subsídios para o estudo, a partir da leitura textual da obra de Jacques Lacan. Ora, como a carta roubada, esse legado passa adiante. Dá-se, assim, continuidade ao ensino e transmissão da psicanálise, tecendo- se novos laços e abrindo-se novas perspectivas de interlocução.
Reconhecendo a im portância de preservar o estilo e a subjetividade do autor, os tradutores e revisores procuraram manter-se fiéis à letra, evitando qualquer elucidação que pudesse induzir o leitor. Assim, os mistérios foram suportados e os enigmas passados adiante, deixando-se ao leitor o direito de saboreá-los.
Realizada inicialmente a partir das notas estenografadas dos seminários de Lacan e, a seguir, cotejada pelo texto estabelecido pela Associalion freud ienne in terna tiona le , esta tradução destina-se ao uso exclusivo dos participantes do Centro de Estudos Freudianos do Recife, não tendo qualquer finalidade comercial.
Agradecendo a todos que colaboraram conosco tornando possível esta edição, fica aqui um convite àqueles que queiram levar adiante este projeto, através de sugestões ou correções, que serão sempre bem-vindas, fazendo circular a palavra de Lacan.
l t :
Sumário
Lição I, 15 de novembro de 1961 .............................. 11
Lição II, 22 de novembro de 1961..............................25
Lição III, 29 de novembro de 1961 ........................... 37
Lição IV, 6 de dezembro de 1961 ...............................51
Lição V, 13 de dezembro de 1961...............................67
Lição VI, 20 de dezembro de 1961.............................79
Lição VII, 10 de janeiro de 1962................................95
Lição V III, 17 de janeiro de 1962.............................115
Lição IX, 24 de janeiro de 1962 ...............................133
Lição X, 21 de fevereiro de 1962.............................. 147
Lição XI, 28 de fevereiro de 1962 ............................ 159
Lição XII, 7 de março de 1962 ................................. 173
Lição X III, 14 de março de 1962.............................. 189
Lição XIV, 21 de março de 1962 ...............................205
Lição XV, 28 de março de 1962 ................................219
Lição XVI, 4 de abril de 1962 ................................... 237
Lição XVII, 11 de abril de 1962 ................................ 251
Lição XVIII, 2 de maio de 1962................................277
Lição XIX, 9 de maio de 1962 .................................. 305
Lição XX, 16 de maio de 1962.................................. 319
Lição XXI, 23 de maio de 1962 ................................331
Lição XXII, 30 de maio de 1962...............................345
Lição XXIII, 6 de junho de 1962 ..............................361
Lição XXIV, 13 de junho de 1962 ............................ 385
Lição XXV, 20 de junho de 1962.............................. 405
Lição XXVI, 27 de junho de 1962............................ 41!)
LIÇÃO I
15 de novembro de 1961
A Iden tificação , este é m eu títu lo e m eu assunto deste ano. É um
bom título, mas não é um assunto côm odo. Não penso que vocês tenham
a idéia de que seja uma operação ou um processo muito fácil de conceber.
Se é fácil constatá-lo, seria, entretanto, talvez preferível, para bem constatá-
lo, que fizéssem os um pequeno esforço para concebê-lo. Seguram ente
temos encontrado efeitos suficientes disso para nos mantermos no sumário,
quero dizer, em coisas que são sensíveis, inclusive em nossa experiência
in terna , para que vocês tenham um certo sentim ento do que seja. Esse
es fo rço para con ceber lhes parecerá justificado, posteriorm ente - ao
m enos este ano, quer dizer, um ano que não é o prim eiro de nosso
ensino - sem dúvida algum a pelo lugar, pelos problem as aos quais esse
es fo rço nos conduzirá .
Vamos dar hoje um prim eiríssim o passo nesse sentido. Peço desculpas,
isto vai levar-nos, talvez, a fazer esses esforços que cham am os, para
falar propriam ente, de pensamento. Isto não nos ocorrerá freqüentem ente,
a nós não mais que aos outros.
A Iden tificação, se a tomam os por título, por tema de nossa exposição,
con vém que fa lem os dela de m aneira d iferen te do que sob a form a,
podem os dizer, m ítica, sob a qual a deixei no ano passado. Havia qualquer
coisa dessa ordem , em inentem ente da ordem da identificação, que estava
im plicada, vocês se lem bram , nesse ponto onde deixe i m inha exposição
no ano passado, a saber, no nível em que, se posso dizer, o lenço l úm ido
com a qual vocês representam os e fe itos narcísicos que cercam <'knu
rocha, o que em ergia em m eu esquem a ', essa rocha auto-erótlcu <n|u
A Identificação
emergência o falo simboliza, ilha, em suma batida pela espuma de Afrodite,
falsa ilha, pois, aliás, da m esm a form a com o aquela onde figura o Proteu
de C laudel, é uma ilha sem amarra, uma ilha que vai à deriva. Vocês
sabem o que é o Proteu de C laudel: é a tentativa de com p letar o Orestes
através da farsa bufona que na tragédia grega a com pleta obrigatoriamente,
e da qual só nos restam, em toda a literatura, dois destroços de Sófocles
e um Hércules de Eurípedes, se m inha m em ória está boa. N ão é sem
in ten ção que evoco esta re ferên c ia a propósito da form a com o no ano
passado m eu discurso sobre a transferência term inava com essa im agem
da Iden tificação . Apesar de m eus belos esforços, eu não poderia m arcar
m uito bem 2 a barreira onde a transferência encon tra seu lim ite e seu
pivô. Sem nenhum a dúvida, não estava ali a beleza da qual lhes ensinei,
que é o lim ite do trágico, que é o ponto em que a Coisa inapreensível
nos verte sua eutanásia. N ão em belezo nada, apesar do que se im agina
ao escutar, às vezes, alguns rum ores sobre o que ensino, eu não fac ilito
muito o jogo para v o c ê s .E le s sabem disso, aqueles que outrora escutaram
m eu sem in ário sobre a É tica , aqu ele no qual abordei exatam en te a
função dessa barreira da beleza sob a form a da agonia que exige de nós
a Coisa para que nós a a lcancem os.4
Eis, então, onde term inava A Transferênc ia no ano passado. Ind iquei
a todos aqueles que assistiram as jornadas provinciais de Outubro, pontuei,
sem poder lhes d izer mais, que havia, ali, uma re ferên c ia escondida
num côm ico, que é o ponto além do qual eu não podia levar mais longe
o que eu visava em uma certa experiên cia , ind icação, se posso dizer, a
ser reencontrada no sentido escond ido do que se poderiam cham ar os
criptogram as desse sem inário, e que, afinal, eu não perco a esperança
de que um dia um com entário o exp lic ite e o co loque em ev idência , já
que ocorreu até de obter esse testem unho que, neste lugar, é uma boa
esperança. E que o sem inário do penú ltim o ano, aquele sobre a Ética ,
foi e fe tivam en te retom ado - e no d izer daqueles que puderam ler o
trabalho, com pleno sucesso - por alguém que teve o trabalho de relê-
lo para resum ir seus e lem entos, prin cipa lm en te o Sr. Safouan, e eu
espero que, talvez, essas coisas possam ser postas bastante rap idam ente
ao a lcance de vocês, para que aí se possa encadear o que vou trazer-
lhes este ano.
- 1 2 -
Lição de 15 de novembro de 1961
Saltando um ano sobre o segundo depois desse, isso pode lhes parecer
co loca r uma questão, ainda que lam entável com o um atraso, não é,
con tudo, in te iram en te ju stificado , e vocês verão que, se retom arem a
seqüência de m eus sem inários desde o ano de 1953, o prim eiro sobre
Os Escritos Técnicos, o seguinte sobre O Eu, a Técnica e a Teoria freudianas
e p s ica n a l í t i ca s , o terce iro sobre As Estru turas freu d ia na s da Psicose,
o quarto sobre A Relação de Objeto , o qu in to sobre As Formações do
Inconsc ien te , o sexto sobre O desejo e sua in terp re tação , depois A Ética,
A Transferênc ia , A Id en t i f ica çã o ao qual chegam os, são nove. Vocês
podem fac ilm en te encon trar aí uma a lternância, uma pulsação. Vocês
verão que de dois em dois dom ina, a lternadam ente, a tem ática do sujeito
e a do sign ifican te, o que, dado que é pelo s ign ifican te, pela elaboração
da função do s im bólico que com eçam os, faz tam bém reca ir este ano
sobre o s ign ifican te, posto que estam os em núm ero ímpar, já que o
im portan te na iden tificação deve ser, propriam ente, a relação do sujeito
com o sign ifican te.
Essa iden tificação , pois, da qual propom os tentar dar este ano uma
noção adequada, sem dúvida a análise a tornou para nós bastante trivial,
de m odo que alguém que m e é bem próxim o e m e escuta tão bem m e
disse: “ E is este ano o que você escolhe, a id en tifica çã o ” , isto, com uma
careta: “ E xp licação que serve para tu d o !” . D eixando transparecer, ao
m esm o tem po, algum a decepção relativa, em suma, ao fato de que se
esperava de m im outra coisa. Que esta pessoa não se engane! D e fato,
sua expectativa de me ver escapar ao tema, se posso dizer, será decepcionada,
pois espero tratá-lo bem , e espero que tam bém se dissolva a fadiga que
este tem a lhe sugere por antecipação. Falarei exatam ente da identificação
m esm a. Para precisar logo o que entendo por isso, d irei que, quando se
fala de id en tificação , o que se pensa prim eiro é no outro a quem nos
id en tificam os, e que a porta m e é fac ilm en te aberta para enfatizar,
para insistir sobre essa d iferença entre o outro e o Outro, entre o pequeno
outro e o grande Outro, que é um tema sobre o qual posso dizer precisamente
que vocês estão desde já fam iliarizados. N ão é, contudo, por este aspecto
que preten do com eçar. Vou, antes, en fa tizar o que, na identificação, se
co loca im ed ia tam en te com o idên tico , com o fundado sobre a noção do
m esm o, e m esm o, do m esm o ao m esm o, com tudo o que isto traga de
dificu ldades.
- 1 3
A Identificação
Vocês não deixam de saber, mesmo sem poder marcar muito rapidamente
quais d ificu ldades isso nos o fe rece desde sem pre ao pensam ento, A é A ;
se é tão igual assim, por que separá-lo de le m esm o, para tão depressa
aí reco locá-lo?
Isto não é puro e s im p les jogo de esp írito . O bservem , por exem plo ,
que na linha de um m ovim en to de elaboração con ceitu a i que se cham a
de lóg ico-positiv ism o, no qual alguns podem esforçar-se por a lcançar
uma certa m eta que seria, por exem plo, a de não colocar problem a lógico,
a m enos que haja um sentido localizável, com o tal, em alguma experiência
crucial, estariam decid idos a rechaçar seja o que for do problem a lógico
que não possa, de alguma m aneira, o ferecer essa garantia última, d izendo
que é um problema desprovido de sentido com o tal.
N ão obstante, não é m enos verdade que, se Russell pode dar em
seus P r in c íp io s m a tem á t icos um valor à equação, ao estabelec im en to
da igualdade de A = A, por seu lado W ittgen ste in opor-se-á a ela, em
razão propriam ente de im passes que lhe parecem resultar daí, em nom e
dos princípios de partida, e essa recusa será m esm o fixada algebricam ente,
sendo tal igualdade obrigada a um desvio de notação, para en con trar o
que pode servir de equ iva len te ao recon h ec im en to da iden tidade A é A .
Q uanto a nós, vam os - de ixando claro que não é, em absoluto, a v ia do
positivism o lógico a que nos parece, em m atéria de lógica, ser de alguma
m aneira , ju s tificad a - nos in terrogar, quero dizer, no n íve l de uma
experiên cia de fala, aquela na qual con fiam os através de seus equívocos,
até de suas am bigü idades, sobre o que podem os abordar sob o term o de
“ id en tific a çã o ” .
Vocês não deixam de saber que se observa, no con junto das línguas,
certas viragens h istóricas bastante gerais, até universais, para que se
possa fa lar de sintaxes m odernas opondo-as g lobalm en te às sintaxes
não arcaicas, mas s im p lesm en te antigas, en tendam os, das línguas do
que se cham a de Antigu idade. Essas espécies de viragens gerais, eu
disse, são de sintaxe. N ão é o m esm o com o léx ico , onde as coisas são
m uito mais m ovediças; de algum a m aneira, cada língua traz, com relação
à história geral da linguagem , vacilações próprias a seu gên io e que as
tornam , uma ou outra, m ais p rop ícia a co loca r em ev idên cia a h istória
de um sentido.
- 1 4 -
Lição de 15 de novêmbro de l% l
É assim que poderem os nos deter naqu ilo que é o termo, ou noçflo
substantivada do term o, de iden tidade - em iden tidade, iden tificação,
há o termo latim idem - e isso será para mostrar-lhes que alguma experiência
s ign ifica tiva está suportada no term o francês vulgar, suporte da m esm a
função sign ifican te, a do m esm o. Parece, com e fe ito , que seja o em,
su fixo de id em idem, o que encontram os operando a função, eu direi,
de rad ica l, na evolução do indo-eu ropeu no n ível de um certo núm ero
de línguas itálicas; este em é aqui duplicado, consoante antiga que se
en con tra pois com o o resíduo, a relíquia, o retorno a uma tem ática
prim itiva , mas não sem ter reco lh ido de passagem a fase in term ed iária
da etim olog ia , positivam ente, do nascim ento desse m esm o, que é um
m etipsu m fam ilia r latino, e m esm o um m etips iss im u m do baixo latim
expressivo, portanto, leva a reconhecer em qual direção aqui, a experiência
nos sugere procurar o sentido de toda iden tidade, no coração do que se
designa por uma espécie de redup licação de m im m esm o [m oi-m êm e];
esse m im m esm o sendo já, se quiserem, esse metipsissimum, uma espécie
“do d ia ” , de “ no dia de h o je ” [d ’au jou r d ’au jourd ’hui], de que não nos
apercebem os, e que está bem aí no m im m esm o. E, então, em um
m etip s iss im u m que se precip itam , depois do eu [m oi], o tu [to i], o ele,
o ela, o eles, o nós, o vós, e até o se [soi], que acon tece ser, em francês,
um si-m esm o [so i-m êm e]5. Tam bém vem os aqu i, em suma, em nossa
língua, uma espécie de ind icação de um trabalho, de uma tendência
sign ifica tiva especial, que vocês m e perm itirão qua lificar de m ih i l is m o
[m ih ilism e], na m ed ida em que essa experiên cia do eu [m oi] se refere
a esse ato. Seguram ente, a coisa não teria um interesse senão incidenta l,
se não tivéssem os que encon trar outros traços nos quais se revela esse
fato, esSa d iferença n ítida e fác il de assinalar, se pensarm os que em
grego, o autos do si é aqu ele que serve para designar também o mesmo,
assim com o em a lem ão e em inglês, o selbst ou o self, que virão a
funcionar para designar a identidade. Portanto, esta espécie de m etáfora
perm anen te na locução francesa , penso, não é por nada que nós a
destacam os aqui, e nos interrogam os.
D eixarem os en trever que ta lvez ela não deixe de ter relação com o
fato de um nível bem outro, de que seja em francês, quero dizer, em
Descartes, que se tenha podido pensar o ser com o inerente ao sujeito,
de um m odo, em suma, que direm os bastante cativante, pelo que, desde
A Identificação
D esde então, não m e sinto mal honrado que m e in terroguem sobre
esse tem a: “ O nde está a verdadeira verdade de seu d iscu rso?” . E posso
m esm o, afinal, achar que é justam ente enquanto não m e tom am por
um filósofo , mas por um psicanalista, que m e colocam esta questão.
Pois uma das coisas m ais notáveis na literatura filosó fica é, a que ponto,
en tre filósofos, digo enquanto filosofando, não se coloca nunca, no final
das contas, a m esm a questão aos filósofos, exceto para adm itir com
uma fac ilidade desconcertante, que os m aiores en tre eles não pensaram
uma palavra do que eles nos com unicaram preto no branco, e se perm item
pensar, a propósito de Descartes, por exem plo, que não tinha em Deus
senão a fé m ais in certa , porque isto con vém a tal ou qual de seus
com entaristas, a m enos que seja o con trário , o que lhe convém . Há
uma coisa, em todo caso, que nunca pareceu a n inguém abalar o créd ito
dos filósofos, é que se tenha podido falar, a propósito de cada um deles,
e dos maiores, de uma dupla verdade. Que, portanto, para m im que,
entrando na psicanálise, coloco, em suma, os pés no prato7 ao apresentar
esta questão sobre a verdade, sinto, de repente, o tal prato se aquecer sob
a planta de meus pés, afinal, não é senão uma coisa da qual posso m e
alegrar, pois, se vocês refletirem , fui eu, sem dúvida, quem reabriu o gás.
Mas deixem os isto agora, entrem os nas relações da iden tidade do
sujeito, e entrem os aí pela fórm ula cartesiana que vocês vão ver com o
penso abordá-la hoje.
É evidente que não é em absoluto questão de pretender superar Descartes,
mas, sobretudo, de extrair o m áxim o de efeitos da utilização dos impasses
cujo fundo ele conota para nós. Se m e seguem, portanto, em uma crítica,
de m odo algum com en tário de texto, que façam o favor de se lem brar
o que eu pretendo daí tirar pelo bem de m eu próprio discurso.
“ Penso, logo sou ” parece-m e, sob essa form a, con cen trar os usos
com uns, a ponto de se tornar essa m oeda usada, sem figura, à qual
Mallarmé faz alusão em algum lugar. Se a retemos um instante e procuramos
polir-lhe a função de signo, se procuram os rean im ar a função de acordo
com nosso uso, gostaria de assinalar que é essa fórm u la - que eu repito,
que sob sua form a concen trada, só a encontram os em D escartes em
algum ponto do Discurso do M é todo , não é absolutam ente assim , sob
essa form a densa, que ela está expressa. Este “Penso, logo sou” se choca
Lição de 15 de novembro de 1(J61
com esta qhjeção, e c re io que ela nunca fo i feita, é que eu penso não é
um pensam ento. É claro, Descartes nos propõe estas fórmulas ao final
de um longo processo de pensam ento, e certam en te que o pensam ento
de que se trata é um pensam ento de pensador. D irei até mais, essa
característica , é um pensam ento de pensador, não é ex ig ível para que
falemos de pensamento. Um pensamento, em suma, não exige em absoluto
que se pense no pensam ento.
Para nós, particu larm ente, o pensam ento com eça no inconscien te.
Só podem os nos surpreender com a tim idez que nos faz recorrer à fórmula
dos psicólogos quando procuramos dizer alguma coisa sobre o pensamento,
a fórm u la de d izer que é uma ação no estado de esboço, em estado
reduzido, m odelinho econôm ico da ação. Vocês m e dirão que isso se
encontra em Freud, em algum lugar, mas, certam ente, encontra-se tudo
em Freud; na volta de algum parágrafo, e le pode ter fe ito uso dessa
d e fin ição psico lógica do pensam ento. Mas, en fim , é totalm ente d ifíc il
descartar que é em Freud que encontram os tam bém que o pensam ento
é um m odo p erfe itam en te e fica z e, de algum a form a, su fic ien te em si
m esm o, de satisfação masturbatória. Isto para dizer que, no que concerne
ao sen tido do pensam ento, temos, talvez, um palm o um pouco m aior
do que os outros obreiros. Entretanto, isso não im pede que, interrogando
a fórm u la em questão, “ penso, logo sou” , possamos d izer que, pelo uso
que se faz dela, ela só pode nos colocar um problem a; pois convém
in terrogar esta fala, eu penso, por mais am plo que seja o cam po que
tenham os reservado ao pensamento, para ver satisfeitas as características
do pensam ento, para ver satisfeitas as características do que podem os
cham ar de pensam ento. Poderia ser que isso fosse uma fala to talm ente
insuficiente para sustentar o que quer que seja, que pudéssemos finalm ente
loca liza r por essa presença, eu sou.
É justam ente o que pretendo. Para esclarecer o m eu desenvolvim ento,
ind icarei que eu penso, tomado sim plesm ente sob esta forma abreviada,
não é mais sustentável logicam ente, mais suportável, do que o eu m in to ,
que já causou problem a para um certo número de lógicos, este eu m into,
que só se sustenta na vacilação lógica, vazia, sem dúvida, mas sustentável,
que desdobra essa aparência de sentido, bastante suficiente, aliás, para
encontrar seu lugar em lógica formal. Eu m in to , se o digo, é verdade,
portanto, não m into, mas m in to mesmo, contudo, pois, d izendo minto ,
- 1 9 -
A Identificação
afirm o o contrário. É m uito fácil desm ontar essa pretensa d ificu ldade
lógica e mostrar que a pretensa dificu ldade onde repousa esse ju lgam ento
apóia-se nisto: o ju lgam ento que ele com porta não pode apoiar-se em
seu próprio enunciado, é um colapso. E sobre a ausência da distinção de
dois planos, pelo fato de que a ênfase incide sobre o próprio m in to , sem
que se o distinga, que nasce essa pseudo-dificuldade. Isso para dizer-
lhes que, na falta desta distinção, não se trata de uma verdadeira proposição.
Esses pequenos paradoxos, dos quais os lógicos fazem , aliás, m uito
caso, para levá-los im ed iatam ente à sua m edida justa, podem passar por
simples divertimentos. Eles têm, contudo, seu interesse; devem ser retidos
para apreender, em suma, a verdadeira posição de toda lógica formal,
até inclusive esse fam oso positivism o lógico do qual eu falava há pouco.
Entendo por isto, que, em nossa opinião não se fez, justam ente, uso
su ficien te da famosa aporia de Epim ênides, que não é senão uma form a
m ais desenvolvida do que acabo de apresentar-lhes a propósito de eu
m in to , que “Todos os C retenses são mentirosos, assim fala Ep im ênides,
o C re ten se ” , e vocês vêem logo o pequeno to rn iqu ete que se engendra.
Não se a usou o bastante para demonstrar a vaidade da famosa proposição
dita a firm ativa universal A. Porque, de fato, observam os a esse respeito,
está exatam en te aí, nós verem os, a form a mais in teressante de resolver
a d ificu ldade. Pois, observem bem o que se passa, se colocam os isso
que é possível, que foi colocado na crítica da famosa afirm ativa universal
A, da qual alguns pretenderam , não sem fundam ento, que sua substância
nunca tenha sido outra senão a de uma proposição universal negativa:
“ N ão há C retense que não seja capaz de m en tir ” , desde então, não há
mais nenhum problem a. Ep im ên ides pode d izê-lo , pela razão de que
expresso assim, ele não diz, em absoluto, que haja alguém, mesmo Cretense,
que possa m en tir sem parar, sobretudo quando nos apercebem os que
m en tir tenazm en te im plica uma m em ória firm e, que term inaria por
orientar o discurso no sentido equ iva len te a uma confissão, de m aneira
que, m esm o se “Todos os C retenses são m en tirosos” queira d izer que
não há um só Cretense que não queira m en tir sem parar, a verdade
term inará m esm o por escapar-lhe na virada, e na m ed ida m esm a do
rigor dessa vontade. O que é o sentido mais p lausível da confissão do
Cretense Epimênides, de que todos os Cretenses são mentirosos, o sentido
não pode ser senão esse: 1) e le se vangloria disso; 2 ) e le quer, com
- 2 0 -
Lição de 15 de novembro de 1961
isso, desorien tá-los, p reven in do-os verid icam en te de seu m étodo; mas
isso não tem outra in tenção, tem o m esm o resu ltado que esse outro
p roced im en to que consiste em anunciar que não se é polido, que se é
de uma franqueza absoluta; é o tipo que lhes sugere avalizar todos os
seus b lefes.
O que quero d izer é que toda a firm ativa universal, no sentido form al
da categoria , tem os m esm os fins oblíquos, e é m uito bon ito que esses
fins estourem nos exem plos clássicos. Que seja A ristó te les quem toma
o cu idado de reve la r que Sócrates é m ortal, deve, con tudo, nos inspirar
algum interesse, o que quer dizer, o ferecer apoio ao que podemos cham ar
entre nós, de interpretação, no sentido em que esse term o pretende ir
um pouco mais longe que a função que se encontra justam ente no próprio
títu lo de um dos livros da Lógica de Aristóteles. Pois, se é ev iden tem ente
enquanto an im al hum ano que aquele a quem Athenas nom eia Sócrates
está assegurado da m orte, é ju stam ente enquanto nom eado Sócrates
que e le escapa disso, e isso não som ente porque seu ren om e8 dura ainda
tanto tem po quanto v iver a fabulosa operação da transferência operada
por P latão, mas ainda m ais exatam en te, porque é som ente enquanto
tendo consegu ido se constitu ir, a partir de sua iden tidade social, este
ser de atopia que o caracteriza , que o cham ado Sócrates, aquele que se
nom eia assim em Atenas, e é porque e le não podia se exilar, pôde se
sustentar no desejo de sua própria m orte até fa zer dela o act ing out de
sua vida. E le acrescentou , a lém disso, com entusiasm o e a legria0 ter-se
liberado do fam oso galo de Esculápio, do que se teria tratado se tivesse
sido preciso fazer a recom endação de não lesar o vendedor de castanhas10
da esquina.
Há, pois, em A ristóteles, algo que podem os in terp reta r com o algum a
tentativa, justam ente, de exorcizar uma transferência que ele considerava
um obstáculo para o desen vo lv im en to do saber. Era, por outro lado,
um erro de sua parte, pois o fracasso é patente. Seguram ente, era preciso
ir um pouco m ais longe que Platão na desnaturalização do desejo, para
que as coisas se conclu íssem de outro m odo. A c iên c ia m oderna nasceu
num hiperplaton ism o, e não no retorno aristotélico, em suma, sobre a
função do saber segundo o estatuto do con ce ito . Foi necessário, de
fato, algo que podem os cham ar de segunda m orte dos deuses, a saber,
sua saída espectral na época do Renascim ento, para que o verbo nos
- 2 1 -
A Identificação
m ostrasse sua verdadeira verdade, aquela que dissipa, não as ilusões,
mas as trevas do sentido de on de surge a c iên c ia m oderna.
Portanto, dissemos, esta frase “ eu penso” , tem o in teresse de nos
mostrar - é o m ín im o que podem os deduzir disso - a dimensão voluntária
do ju lgam en to . Não tem os necessidade de d izer tanto; as duas linhas
que d istingu im os com o enun ciação e enunciado nos bastam para que
possamos afirm ar que é na m edida em que essas duas linhas se enovelam
e se con fundem , que nós podem os nos encon trar d iante de tal paradoxo
que leva a esse im passe do eu m in to , sobre o qual os detive um instante.
E a prova de que é disso que se trata é, a saber, que posso, ao m esm o
tem po, m en tir e d izer com a m esm a voz que m into ; se d istingo essas
vozes, é in te iram en te adm issível. Se digo: “ E le d iz que m in to ” , isto
funciona, não causa objeção, não mais do que se eu dissesse: “ E le m en te ” ,
mas posso até d izer: “ Eu d igo que m in to ” . H á aqui, contudo, algo que
deve nos deter, é que se eu digo: “ Eu sei que m in to ” , isto tem ainda
algo de in te iram en te con v in cen te que deve nos deter com o analistas,
pois com o analistas, ju stam en te , sabemos que o orig inal, o v ivo e o
apaixonante de nossa in terven ção é isso, que poderm os d izer que somos
fe itos para dizer, para nos deslocarm os na d ireção exatam en te oposta,
mas estritam en te correlativa , que é d izer: “ Mas não, você não sabe
que diz a ve rd ad e” , o que vai im ed ia tam en te m ais longe. M ais que
isso: “Tu não a d izes tão bem senão na m ed ida em que acreditas m entir,
e quando não queres mentir, é para m elhor te resguardares dessa verdade” .
Essa verdade, parece que não se pode apreendê-la senão por seus reflexos,
a verdade, vocês se lem bram de nossos term os, é filha pelo fato de que,
por essência , ela não seria senão, com o toda filha, uma desgarrada.
Pois bem , é o m esm o para o eu penso. Parece exatam en te que se há o
encadeam en to tão fác il para aqueles que o soletram ou retransm item
sua m ensagem , os pro fessores, isto não pode ser senão por não se deter
dem asiadam ente nisso. Se tem os para o eu penso as m esm as ex igênc ias
que para o eu m in to , ou isso quer d izer: “ penso que penso” , o que não
é, en tão, absolutam ente fa lar de nada m ais do que do penso de op in ião
ou de im aginação, o penso com o vocês d izem , quando d izem : “ Penso
que ela m e am a” , o que quer d izer que os aborrecim entos vão com eçar.
Segu indo Descartes, m esm o no texto das Meditações, su rpreendem o-
nos com o núm ero de in c idên c ias nas quais esse penso não é nada
- 2 2 -
Lição de 15 de novembro de 1961
rnais do qu&essa dimensão propriamente imaginária sobre a qual nenhuma
ev idên cia dita radical pode sequer ser fundada, deter-se; ou então isto
quer d izer: “ Sou um ser pensan te” , o que então, é claro, desestabiliza,
an tecipadam ente, todo o processo posto que visa justam ente fazer sair
do eu penso um estatuto sem preconceito , assim com o sem presunção
na m inha existência. Se com eço a d izer: “ Sou um ser” , isto quer d izer:
“ Sou um ser essencial ao ser, sem dúvida” . N ão há necessidade de ir
ad ian te, pode-se guardar seu pensam ento para seu uso pessoal.
Isto pontuado, nós reconhecem os encon trar isso, que é im portante,
reconhecem os encontrar esse nível, este terceiro termo que temos evocado
a propósito do m in to , a saber, que se possa d izer: “ Eu sei que m in to ” ,
no que absolu tam ente m erece que nos detenham os. Com ele ito , 6 aí
que está o suporte de tudo o que uma certa feriom enolog ia desenvolveu
em relação ao sujeito, e aqui trago uma fórm u la que é aquela sobre a
qual serem os levados a retom ar nas próxim as vezes, que é esta: aqu ilo
com que tem os a ver, e com o isso nos é dado, uma vez que som os
psicanalistas, é para subverter rad ica lm ente, é para tornar im possível
esse p recon ceito mais rad ica l, que, no entanto, é o verdadeiro suporte
de todo o desen vo lv im ento da filosofia , do qual se pode d izer que e le é
o lim ite além do qual nossa experiên cia se passou, o lim ite a lém do
qual com eça a possib ilidade do inconscien te . E que jam ais houve, na
corrente filosófica que se desenvolveu a partir das investigações cartesianas
ditas do cogito , jam ais houve senão um ún ico sujeito que fixarei, para
term inar, sob esta form a, o su je ito suposto saber.
É necessário que vocês abasteçam esta fórm ula da repercussão especial
que, de qualquer maneira, traz consigo sua ironia, sua questão, e observem
que, referindo-a à feriom eno log ia e particu larm ente à fenom eno log ia
hegeliana, a função desse sujeito suposto saber toma seu valor ao ser
apreciada enquanto função sincrônica que se desenvolve a esse propósito,
sua presença sempre ali, desde o com eço da interrogação fenom enológica,
em um certo ponto, um certo nó da estrutura nos perm itirá desprender-
nos do desen vo lv im en to d iacrôn ico que se supõe levar-nos ao saber
absoluto. Este saber absoluto, e le mesmo, o verem os, à luz desta questão,
toma um valor singularmente refutável, mas por hoje somente detenhamo-
nos para co locar essa m oção de desconfiança, por atribuir este suposto
saber a quem quer que seja, nem para supor, subjicere, nenhum sujeito
A Identificação
ao saber. O saber é in tersub jetivo , o que não quer d izer que seja o
saber de todos, nem que seja o saber do Outro, com A m aiúsculo. E o
Outro, nós afirm am os, é essencia l m antê-lo assim, o Outro não é um
sujeito, é um lugar ao qual nos esforçam os, d iz Aristóteles, por transferir
o saber do sujeito. N atu ra lm en te, por esses esforços, resta o que H ege l
desdobrou com o a história do sujeito; mas isto não quer absolu tam ente
d izer que o sujeito saiba um tico a m ais sobre o assunto em questão.
E le não tem perturbação, se posso dizer, a não ser em função de uma
suposição indevida, a saber, que o Outro saiba, que haja um saber absoluto,
mas o Outro sabe disso ainda menos que ele, pela simples razão, justamente,
de que e le não é um sujeito.
O Outro é o depositário dos representantes representativos dessa suposição
de saber, e é isso que cham am os de in conscien te, na m ed ida em que o
sujeito perdeu-se, e le m esm o, nessa suposição de saber. E le provoca
isto sem sabê-lo. Isso, são os destroços que lhe voltam do que sofreu sua
rea lidade nesta coisa, destroços m ais ou m enos irrecon h ec íve is . E le os
vê voltar, pode dizer, ou não d izer: “ É isso m esm o” , ou até: “não é isto
de je ito n en h u m ” , con tudo, é rea lm ente isso.
A função do sujeito em D escartes é, daqui que retom arem os nosso
discurso na próxim a vez, com as ressonâncias que de le encon tram os
na análise. Tentarem os, na p róx im a vez, assinalar as re fe rên c ia s à
fen om en o log ia do neuró ' ' -.uma escansão s ign ifican te onde
o su jeito se encontra ii. . . u u.-aa articu lação.
LIÇÃO II
22 de novem bro de 1961
Vocês puderam constatar, não sem satisfação, que pude in troduzi-
los, na ú ltim a vez, a nosso propósito deste ano, por uma reflexão que,
aparen tem en te, poderia passar por m uito filoso fan te, já que se referia
a um a re flexão filosó fica , a de Descartes, sem acarretar da parte de
vocês, m e parece, dem asiadas reações negativas. L on ge disso, parece
que con fia ram em m im pela leg itim idade de sua continuação. A legro-
m e com esse sen tim ento de con fiança que gostaria de poder traduzir
no que pelo menos se percebeu por onde eu queria conduzi-los. Entretanto,
para que vocês não tom em , no que hoje vou con tinuar sobre o m esm o
tem a, o sen tim en to de que m e atraso, gostaria de co locar que esse é o
nosso fim , nessa m aneira de abordar, de engajar-nos nesse cam inho.
D igamo-lo logo por uma fórmula a qual nosso desenvolvim ento esclarecerá
em seguida, o que quero dizer é que, para nós, analistas, o que entendem os
por identificação, porque é isto que encontramos na identificação, naquilo
que há de concreto em nossa experiên cia re feren te à id en tificação , é
uma id en tificação de s ign ifícan te.
R e le iam no Curso de L in g ü ís t ica uma das num erosas passagens nas
quais D e Saussure esforça-se por precisar, com o o faz sem cessar ao
cercá-la, a função do sign ificante, e vocês verão, digo-o entre parênteses,
que todos os m eus esforços não foram , afinal, sem deixar a porta aberta
ao que chamarei menos de diferenças de interpretação do que de verdadeiras
d ivergên cias na exp loração possível do que e le abriu com essa distinção
tão essencia l de s ign ifican te e de s ign ificado. Ta lvez eu pudesse tocar
- 2 5 -
A Identificação
liu ld cn ta lm en te para vocês, para que ao m enos situem aí a ex istência ,
.1 d iferen ça que há en tre tal ou tal escola, a de Praga, à qual perten ce
líikohson, a quem m e re firo tão freqü en tem en te , a de Copenhague, à
qual lljo lin s lev deu sua orien tação sob um títu lo de glossem ática, que
ainda não evoqu ei d iante de vocês. Vocês verão, é quase fatal que m e
vejam levado a voltar a isto, já que não podem os dar um passo sem
tratar de aprofundar esta função do sign ifican te, e em conseqü ência ,
sua relação com o signo. Vocês devem saber desde já - penso que m esm o
aqueles dentre vocês que puderam acreditar, e até m esm o m e censurar,
que eu repetia Jakobson - que de fato a posição que tom o aqu i está
ad iante, em vanguarda com relação à de Jakobson, no que se re fere à
prim azia que outorgo à função do significante em toda realização, digamos,
do sujeito.
A passagem de De Saussure à qual fazia alusão há pouco, só a privilegio
aqui por seu valor de im agem , é aquela em que ele procura m ostrar
qual é a espécie de identidade própria do significante, tomando o exem plo
do expresso das 10:15 hs. O expresso das 10:15 hs, d iz e le , é algo
p e rfe itam en te defin ido em sua identidade, é o expresso das 10:15 hs,
apesar de que, m an ifestam en te, os d iferen tes expressos das 10:15 hs
que se sucedem sem pre id ên ticos a cada dia, não terem absolutam ente,
nem em seu m ateria l, e até m esm o na com posição de sua cadeia, senão
e lem en tos , e m esm o uma estrutura real d iferen te . É claro, o que há de
verdade em uma tal a firm ação supõe, prec isam en te, na con stitu ição
de um ser como aquele do expresso das 10:15 hs, um fabuloso encadeamento
de organ ização s ign ifican te que deve en trar no real por in term éd io de
seres falados. Resta que isto tem um valor de algum a m aneira exem plar,
para d e fin ir o que quero d izer quando profiro , de entrada, o que quero
ten tar articu lar para vocês, [que] são as leis da id en tificação enquanto
id en tificação de s ign ifican tes. Assinalem os ainda, com o um lem brete,
que para nos aterm os a uma oposição que seja para vocês um suporte
su fic ien te , o que se opõe a esta, aquilo de que ela se d istingue, que
necessita que elaborem os sua função, é que a iden tificação da qual ela
se d istancia é a id en tifica ção im aginária, aqu ela da qual, há m u ito
tem po, eu tentava m ostrar a vocês o extrem o no plano de fundo do
e s tá d io " do espelho, no que eu cham arei de e fe ito orgânico da im agem
do sem elhante, o e fe ito de assim ilação que apreendem os em tal ou tal
ponto da h istória natural, e o exem plo que m e agradou m ostrar in
- 2 6 -
Lição de 22 de novembro de 1961
v i lro , sob a form a desse pequeno animal que é chamado de grilo peregrino,
de cuja evolução vocês sabem, o crescim en to, a aparição do que sc
cham a de con junto de fâneros, o que, com o podem os vê-lo em sua
form a, depende, de algum a m aneira, de um encon tro que se produz
em tal m om ento de seu desenvolvim ento, dos estágios, das fases da
transform ação larvária, ou segundo lhe tenham ou não aparecido um
certo núm ero de traços da im agem de seu sem elhante, ele evolu irá ou
não, segundo o caso, segundo a form a que cham am os de solitária ou a
forma que chamamos de gregária. Não sabemos absolutamente, só sabemos
m esm o m uito poucas coisas sobre escalões desse circu ito orgân ico que
a ca rre ta m tais e fe ito s . O que nós sabem os, é que é assegu rado
experim enta lm ente. O rdenem o-lo na rubrica geral dos efeitos de im agem
da qual encon trarem os todas as espécies de form as em n íveis m uito
d iferentes da física e até no m undo inanimado, vocês sabem, se defin im os
im agem com o todo arranjo fís ico que tem por resultado constitu ir uma
con cordân cia b iun ívoca en tre dois sistemas, em qualquer n íve l que
seja. E uma fórm ula bem apropriada, e que se aplicará tanto ao e fe ito
que acabo de dizer, por exem plo, quanto àquele da form ação de uma
im agem , m esm o virtual, na natureza, pelo in term éd io de uma superfíc ie
plana, seja a de um espelho, ou a que evoquei há algum tem po, da
su perfíc ie do lago que re fle te a m ontanha.
Isso quer d izer que, com o é a tendência, e tendência que se espalha
sob a in flu ên cia de uma espécie , eu diria, de em briaguez, que alcança
recen tem en te o pensam ento c ien tífico pelo fato da irrupção do que
não é, no fundo, senão a descoberta da dim ensão da cadeia s ign ifican te
com o tal, mas que, de todas as espécies de m aneiras, vai ser reduzida
por esse pensam ento em term os mais simples, e m ais prec isam en te é o
que se exp rim e nas teorias ditas da in form ação; isso quer dizer, que
seja justa, sem outra conotação, a nossa resolução em caracteriza r a
ligação en tre os dois sistem as, nos quais um é por relação ao outro, a
im agem , por essa id é ia de in form ação, que é m uito geral, im plicando
certos cam inhos percorridos por essa coisa que veicu la a concordância
b iun ívoca? E aí que se encon tra uma grande am bigüidade, quero dizer,
aquela que só pode chegar a nos fazer esquecer os n íveis próprios do
que deve com portar uma in form ação, se querem os dar-lhe um outro
va lor além daquele vago que só chegaria, afinal de contas, a dar uma
espécie de rein terpretação, de falsa consistência, ao que, até aqui, hiivla
- 2 7 -
A Identificação
sido subsumido, e isto, desde a Antigü idade até nossos dias, sob a noção
da form a, algo que pega, envolve, com anda os e lem en tos, dá-lhes um
certo tipo de fina lidade que é, no con junto da ascensão, do e lem en tar
até o com plexo, do inan im ado até o an im ado. É algo que tem , sem
dúvida, seu en igm a e seu valor próprio, sua ordem de rea lidade, mas
que é d iferen te - é isto que pretendo articu lar aqui com vocês com
toda a sua força - do que nos traz de novo, na nova perspectiva c ientífica ,
a valorização, a d istinção do que é trazido pela experiên cia da linguagem
e do que a relação s ign ifican te nos perm ite in trodu zir com o d im ensão
or ig in a l que se trata de d istingu ir rad ica lm ente do real, sob a form a da
d im ensão sim bólica. N ão é, vocês vêem , por aí que abordo o problem a
do que vai nos p erm itir d iv id ir essa am bigü idade.
M esm o assim, já disse o su ficien te para que vocês saibam, que tenham
sentido, apreendido nesses e lem entos de in fo rm ação s ign ifican te , a
originalidade que carrega o traço, digamos, de serialidade que ele comporta,
traço discreto quero dizer, de corte, isto que Saussure não articu lou
melhor, nem de outra maneira, a não ser d izendo que o que os caracteriza
com o cada um, é ser o que os outros não são. D iacron ia e s incron ia são
os term os aos quais in d iqu ei que se referissem , m esm o que tudo isso
não esteja p lenam ente articulado, a d istinção devendo ser fe ita desta
d iacronia de fato, [a qual] é m ui freqü en tem en te som ente o que é visado
na articu lação das le is do sign ificante; há a d iacronia de d ire ito por
on de reencontram os a estrutura. Da m esm a form a, para a sincronia,
im p lica r a sim u ltaneidade virtual em qualquer sujeito suposto ao código
não é d izer tudo sobre ela, pois é tornar a encon trar aqu ilo que na
ú ltim a v e z lhes m ostrei, que para nós há aí um a en tidade insustentável.
Q uero dizer, portanto, que não podem os nos con ten tar de nenhum a
m an eira em recorrer a isso, porque é apenas uma das form as do que
den u n cie i no fim de m eu discurso da ú ltim a vez, sob o nom e de sujeito
suposto saber.
E is aí porque com eço desta m aneira, este ano, m inha in trodu ção à
questão da iden tificação, é que se trata de partir da própria d ificu ldade,
aquela que nos é proposta pelo próprio fato de nossa experiên cia , de
onde ela parte, disso a partir do qual nos é necessário articulá-la, teorizá-
la. É que não podem os, de m odo algum, nem sequer com o aproxim ação,
prom essa de futuro, referirm os, com o I le g e l o faz, a algum a conclusão
possívelju stam ente porque não temos nenhum d ireito de colocá-la com o
- 2 8 -
Lição de 22 de novembro de 1961
possível - do sujeito em algum saber absoluto. Esse sujeito suposto saber,
temos que aprender a prescindir dele em todos os momentos. Não podemos
recorrer a ele em nenhum mom ento, isto está excluído por uma experiência
que já tem os após o sem in ário sobre o desejo e sobre a in terpretação -
p rim eiro sem estre que fo i publicado - é p recisam ente o que m e pareceu,
em todo caso, não poder estar suspenso desta publicação, pois aí está o
fina l de toda uma fase de ensino que fizem os; é que esse sujeito que é
o nosso, esse sujeito que gostaria hoje de interrogar para vocês a propósito
do percurso cartesiano, é o m esm o que nesse prim eiro sem estre eu disse
que não poderíamos aproxim á-lo além do que fiz com esse sonho exem plar
que o articu la in te iro em torno da frase: “ E le não sabia que estava
m orto".
Com todo rigor, está aí, con trariam ente à op in ião de Politzer, o sujeito
da enunciação, mas [é ] em terceira pessoa que podem os designá-lo.
Isto não quer dizer, é claro, que não possam os aproxim á-lo em prim eira
pessoa, mas será prec isam en te saber que ao fazê-lo , e na experiên cia
mais pateticam ente acessível, ele se furta, porque traduzi-lo nessa primeira
pessoa, é a esta frase que chegamos, a dizer o que podemos dizer justamente,
na m ed ida prática na qual podem os con fron tar-nos com esta carruagem
do tem po, com o diz John D onne, "h u r r y in g n e a r ” , e le nos esporeia, e
nesse m om ento de suspensão em que podem os prever o m om ento último,
aqu ele p rec isam en te no qual tudo nos abandona, nos dizer: “ Eu não
sabia que vivia por ser m orta l” . Está bem claro que é na m ed ida em
que podem os d izer tê-lo esquecido quase a todo instante, que serem os
postos nesta incerteza para a qual não há nenhum nom e, nem trágico,
nem côm ico, que possa nos dizer, no m om en to de abandonar nossa
vida, que fomos sempre, à nossa própria vida, de alguma maneira, estranhos.
É aí que está o fundo da in terrogação filo só fica mais m oderna, aquilo
pe lo que, m esm o para aqueles que, se posso dizer, só o com preendem
m uito pouco, inclusive aqueles que dão testem unho de seus sentim entos
de obscuridade, m esm o assim algo se passa, diga-se o que quiser, alguma
coisa passa d iferen te da onda de uma m oda, na fórm u la que nos lem bra
o fundam ento ex istencia l do ser para a morte .
Isto não é um fenôm eno contingente, quaisquer que sejam as causas,
quaisquer que sejam as correlações, inclusive seu alcance, pode-se dizer
que o que podemos cham ar de a profanação dos grandes fantasmas forjados
para o desejo pelo m odo do pensamento religioso, está aí o que nos deixará
- 2 9 -
pirm i
iin nu
mni
A Identificação
descobertos, inermes, suscitando esse oco, esse vazio, ao qual a m editação
rilnsólka m oderna se es força por responder, e ao qual nossa experiência
lem também algo que contribuir, pois que é aí seu lugar, no instante em
que designo, suficientemente, o mesmo lugar no qual o sujeito se constitui
como não podendo saber precisamente o porque se trata aí para ele do
H ido. A í está o valor do que nos traz Descartes, e porque foi bom partir daí.
« A E por isto que volto a isso hoje, pois convém percorrer, para dim ensionar
novam ente o im portante daquilo que vocês puderam ouvir do que cham ei
de impasse, até m esm o o impossível do “ eu penso, logo sou” . E exatam ente
M B esse im possível que constitu i o preço e o va lor desse su jeito que nos
propõe Descartes, se não está aí senão o su jeito em torno do qual a
cogitação sempre girou antes, gira desde então, é claro que nossas objcções,
em nosso ú ltim o discurso, ganham todo o seu peso, o p róprio peso
im plicado na e tim olog ia do verbo francês pensar, que não quer d izer
outra coisa senão pesar-, o que fundar sobre eu penso, se sabem os, nós
analistas, que isso em que eu penso, que podem os apreender, rem ete a
um de que e de onde, a partir do qual penso que se subtrai necessariamente.
E é porque a fórm u la de D escartes nos in terroga para saber se não há
ao m enos este ponto priv ileg iado do eu penso puro, sobre o qual nós
possamos nos fundar; e é porque é ao m enos im portan te que eu os
detenha aí um instante.
Essa fórm u la parece im p licar que seria necessário que o su jeito se
preocupasse em pensar a todo instante, para assegurar-se de ser, condição
já bem estranha, m as ainda su fic ien te? Basta que e le pense ser, para
a lcançar o ser pensante? Pois é ju stam en te aí que Descartes, nessa
incrível magia do d iscurso das prim eiras duas Meditações, nos deixa
suspensos. Ele chega a fazer sustentar, digo, em seu texto, não o m om ento
em que o professor de filosofia tenha pescado o significante, mas mostrará,
m uito fac ilm en te, que o artifíc io , que resulta em form u lar que assim
pensando, eu posso m e d izer uma coisa que pensa, é m uito fac ilm en te
refutável, mas que não retira nada da força de progresso do texto, além
do que devem os in terrogar este ser pensante, perguntarm o-nos se não
é o particíp io de um serpensar [ê trepenser ), escrito no in fin itivo e em
uma só palavra: eu scrpenso { j ’ê trepcnse ), com o se d iz j ' o u t r e c u id e n ,
com o nossos hábitos de analistas nos fazem dizer eu compenso \je compense],
- 3 0 -
Lição de 22 de novembro de 1961
in c lu s ive eu descompenso [je décompense ], eu sobre-compenso sur
compense]. É o m esm o term o, e igualm ente legítim o em sua com posição.
D esde então, o eu pense r13 {je pensêtre ] que nos propusemos para aí
nos introduzir, pode parecer, nesta perspectiva, um artifício mal tolerável,
posto que, ao form u lar as coisas deste modo, o ser já determ ina o registro
no qual se inaugura todo o m eu percurso; este eu penser \je pensêtre],
eu lhes disse na ú ltim a vez, não pode, m esm o no texto de Descartes,
conotar-se m ais do que com traços de engodo e de aparência. Eu penser
Ije pensêtre] não carrega consigo outra consistência m aior que a do
sonho, na qual D escartes e fetivam en te, em vários m om entos de seu
percurso, nos deixou suspensos. O eu penser [je pensêtre] pode tam bém
conjugar-se com o um verbo, mas isto não vai longe, eu penser [je pensêtre],
tu penser es [tu. pensêtres|, com o s no final, se quiserem , o que pode
con tinu ar ainda, in c lu sive ele penser [ i l pensêtre]. Tudo o que podem os
d izer é que se fazem os do tem po do verbo uma espécie de in fin itivo
penser \pensêtrer], só podemos evocá-lo pelo que se escreve nos dicionários,
que todas as outras formas, passada a terceira pessoa singular do presente,
não são usadas em francês. Se quiserm os fa zer humor, acrescentarem os
que elas são com pletadas com um ente pelas m esm as form as do verbo
com p lem en ta r de p e n (s e r )a r [pensêtrer ], o verbo s’empêtrer :H
O que isso quer d izer? Que o ato de serpensar [êtrepenser], porque é
disso que se trata, não desem boca, para aqu ele que pensa, senão em
um pode ser e u ? [peut-ê tre je ? ] , e não sou tam pouco o p rim eiro nem o
único a ter observado desde sempre, o traço de contrabando da introdução
desse eu [je] na conclusão: “ Eu penso, logo sou ” . F ica claro que esse eu
[je[ fica em estado problem ático, e que até o passo seguinte de Descartes,
e verem os qual, não há nenhum a razão para que e le seja preservado do
questionamento tolal que Descartes faz de todo o processo, pelo perfilamento
dos fundam entos desse processo, da função do Deus enganador; vocês
sabem que e le vai m ais a lém , o Deus enganador é ainda um bom Deus;
por estar ali, por a lim entar ilusões, chega até ao gên io m aligno, ao
m en tiroso radical, àqu ilo que m e extravia por extraviar-m e, é o que
cham am os a dúvida h iperbólica . N ão se vê de nenhum a m aneira com o
essa dúvida pode poupar esse eu [je[ e deixá-lo , entretanto, falando
propriam ente, em uma vacilação fundam ental.
Há duas m aneiras de articu lar essa vacilação. A articu lação clássica
que encon trei com prazer, que já se encontra na Psicologia de Brentano,
- 3 1 -
A Identificação
aquela que Brentano refere com justiça a Santo Tom ás de Aqu ino, a
saber, que o ser não poderia apreender-se com o pensam ento senão de
m aneira alternante. É em uma sucessão de tem pos alternantes que e le
pensa, que sua m em ória apropria-se de sua rea lidade pensante, sem
que em nenhum instante possa se jun tar este pensam ento em sua própria
certeza . A outra m aneira, que é a que nos aproxim a m ais da re flexão
cartesiana, é a de percebermos justam ente o caráter, propriam ente falando,
evanescen te desse eu [/<?], de nos fa zer ver que o verdadeiro sen tido do
p rim eiro passo cartesiano é articu lar-se com o um eu penso e eu não
sou. E c laro que podem os insistir nos en foques dessa assunção e nos
dar conta de que gasto, ao pensar, tudo o que posso ter de ser. Que
fiqu e claro que, afina l de contas, é por cessar de pensar que posso
en trever que eu s im p lesm en te seja. Não são m ais que com eços.
O eu penso e eu não sou in trodu z para nós toda uma sucessão de
observações, justam ente daquelas que lhes falava na últim a vez relativas
à m orfo log ia do francês, p rim eiram en te aquela sobre esse eu tanto mais
d epen den te em nossa língua na form a de p rim eira pessoa do que no
ing lês ou no alem ão, por exem plo , ou no latim , onde à pergunta “ quem
fe z is to?” , vocês podem responder I, Ich, E go , mas não eu \j e ] em francês,
e sim sou [ fu i ] eu [c ’es£ m o i ] , ou eu não [pas m o i ] ,
Mas eu [;e] é outra coisa, este eu [je] tão fac ilm en te e lid ido no falar,
graças às propriedades ditas m udas de sua vocalização, esse eu ]je] que
pode ser um não sei [ j ’sais pas], quer d izer que o e desaparece, mas não
sei é d ife ren te de, vocês o percebem bem, por terem do francês uma
experiên c ia orig inal, eu não sei [je ne sais]. O não [ne] do eu não sei
não cai sobre o sei, mas sobre o eu [je], É por isso também que, contrariamente
ao que acon tece com as línguas vizinhas, as quais, para não ir m uito
longe, faço a alusão agora, é antes do verbo que cai esta parte decomposta,
cham em o-la assim por agora, da negação que é o não [ne] em francês.
Seguram en te o não [ne] não é p róprio nem ún ico do francês; o não [ne]
do latim apresenta-se para nós com toda a m esm a prob lem ática , que
não faço aqui senão introduzir, e sobre a qual retornarem os.
Vocês sabem , já fiz alusão ao que P ichon nos trouxe de ind icações, a
propósito da negação em francês; não penso, e tam bém não é novo,
in d iqu ei-lh es nesse m esm o tem po, que as form u lações de P ichon sobre
o forclusivo e o d iscordancial possam reso lver a questão, ainda que os
Lição de 22 de novembro de 1961
introduza de m aneira adm irável. Mas a vizinhança, o trilhamento natural
na frase franceSa do eu \je\ com a prim eira parte da negação, eu não sei
\je ne sa is ], é algum a coisa que entra no registro de toda uma série de
fatos concordantes, em torno de que lhes assinalei o interesse da emergência
particu larm ente sign ificativa em um certo uso lingü ístico dos problemas
que se re fe rem ao sujeito com o tal em suas relações com o sign ificante.
Q uero chegar ao segu in te: que se nos encon tram os m ais fac ilm en te
do que outros postos em guarda con tra essa m iragem do saber absoluto,
aqu ele do qual já é refu tá-lo su fic ien tem en te quando fo r traduzido no
repouso total de um a espéc ie de sétim o dia colossal nesse dom ingo da
vida, no qual o an im al hum ano poderá, en fim , co loca r o foc inh o no
pasto, estando, a partir daí, a grande m áquina ajustada no últim o quilate
desse nada m ateria lizado que é a concepção do saber. E claro que o ser
terá en fim encon trado sua parte e sua reserva em sua estupidez, a
partir daí, d e fin itivam en te alojada, e supõe-se que, ao m esm o tem po,
será arrancado, com a excrescência pensante, seu pedúnculo, a saber,
a preocupação. Mas isto, visto o ritm o com o vão as coisas que estão
feitas, apesar de seu charme para evocar que há aí algo bastante aparentado
com o que nós exercem os, devo dizer, com m uito m ais fantasia e humor,
estes são os d iversos d ivertim en tos do que se cham a com u m en te a
ficção c ien tífica , os que m ostram que sobre esse tem a são possíveis
todas as espécies de variações. A esse respeito, certam en te D escartes
não parece estar em má postura. Se podem os, talvez, deplorar que ele
não tenha sabido mais sobre essas perspectivas do saber, é apenas porque
se ele tivesse sabido mais, sua moral teria sido menos curta. Mas, colocando
à parte esse traço que deixam os aqui p rov isoriam ente de lado pelo
valor de sua reflexão in ic ia l, bem longe disso, e le resulta em algo bem
d iferen te .
Os professores, a propósito da dúvida cartesiana, esforçam -se m uito
para sublinhar que ela é m etód ica . E les fazem questão disso. M etód ico ,
isto quer d izer dúvida a frio . C ertam ente, m esm o em um certo contexto,
consum iam -se pratos frios, mas na verdade, não cre io que seja esta a
m aneira justa de considerar as coisas, não que eu queira, de alguma
form a incitá -los a con siderar o caso psico lógico de Descartes, por mais
apaixonante que possa parecer encontrar em sua biografia, nas condições
de seus parentescos, e m esm o em sua descendência, alguns desses traços
que, reunidos, podem conformar uma figura, por meio da qual encontraremos
- 3 3 -
A Identificação
as características gerais de um a psicasten ia, e m esm o p rec ip ita r nessa
dem onstração a cé leb re passagem dos cabides hum anos, essas espécies
de m arionetes em torno das quais parece possível restitu ir um a presença
que, graças a todo o rode io de seu pensam ento, se vê p rec isam en te
nesse m om ento a pon to de despregar-se, não vejo n isto m uito in teresse.
O que m e in teressa é que, após ter tentado fa ze r sen tir que a tem ática
cartesiana é log icam en te in ju stificável, eu possa rea firm ar que e la não
é , portan to, irrac iona l. E la não é m ais irra c ion a l com o o desejo não é
irrac ion a l por não poder ser articu lável, s im p lesm en te porqu e e le é um
fato articulado, com o acred ito ser todo o sentido do que eu lhes dem onstro
faz um ano, ao m ostrar-lhes com o ele é. A dúvida de Descartes, sublinhei,
e não sou o prim eiro a fazê-lo, é, certam ente, uma dúvida m uito d iferen te
da dúvida cética. Frente à dúvida de Descartes, a dúvida cética se desdobra
in te iram en te no n íve l da questão do rea l. C on trariam en te ao que se
acred ita , e la está lon ge de co locá -lo em causa; e la o lem bra, e la aí
reú n e seu m undo, e tal cético , cujo d iscurso in te iro nos redu z a só
sustentar com o válida a sensação, não a faz, por isso, d esvan ecer-se em
absolu to; e le nos d iz que a sensação tem m ais peso, que e la é m ais rea l
do que tudo que podem os constru ir a seu respeito . Esta dúvida cética
tem seu lugar, vocês sabem , na Fenom eno log ia do E s p í r i t o de H ege l. E
um tem po dessa pesquisa, dessa busca na qual se engajou em re la ção a
si m esm o o saber, este saber que não é senão um não saber ainda [savo ir
pas e n co re ], logo, é por este fato, um já saber. N ão é em absolu tam en te
nada disto que D escartes se em penha. D escartes não tem , em nenhum a
parte seu lugar na F enom eno log ia do E s p í r i t o , e le co loca em questão o
p róp rio sujeito e, apesar de não sabê-lo, é do su jeito suposto saber que
se trata; não é se recon h ecer naqu ilo de que o esp írito é capaz que se
trata, para nós; é do su jeito e le m esm o com o ato inaugural, que é a
questão. É, creio, isto que constitui o prestígio, que dá o valor de fascinação,
que produz o e fe ito de virada, que teve e fe t iva m en te na h istória este
desenvolvimento insensato de Descartes, é que ela tem todas as características
do que chamamos, em nosso vocabulário, de uma passagem ao ato.
O prim eiro tem po da m editação cartesiana tem o traço de uma passagem
ao ato. E le se situa ao n íve l desse estado n ecessa riam en te in su fic ien te ,
e, ao m esm o tem po, n ecessariam en te p rim ord ia l, toda ten tativa tendo
a relação mais radical, m ais original com o desejo. E a prova é exatam ente
isto a que e le é con du zido no d esen vo lv im en to que oco rre logo a seguir;
- 3 4 -
Lição de 22 de novembro de 1961
o que oco rre im ed ia tam en te , o desen vo lv im en to do Deus enganador, o
que e le é ? Ele é o apelo a algo que, por co locá-lo em contraste com uh
provas an teriores, bem en ten d ido , não anuláveis da existência de Deus,
m e perm itirei opor com o o veriss imum ao entissimum. Para Santo Anselmo,
Deus é o mais ser dos seres. O Deus de que se trata aqui, aquele que faz
en trar D escartes nesse pon to de sua tem ática, é esse Deus que deve
assegurar a verdade de tudo o que se articu la com o tal. E o verdadeiro
do verdadeiro , a garantia de que a verdade existe e garantia tanto m aior
de que a verdade, poderia ser outra, nos d iz Descartes, essa verdade
com o tal, que poderia ser se este Deus quisesse, que ela poderia ser,
fa lan do propriam en te, o erro. O que isto quer d izer? Senão que nós
nos en con tram os em tudo aqu ilo que se pode cham ar a ba teria do
s ign ifican te , con fron tada a esse traço único, a esse e in z ige r Z u g qu e já
con h ecem os, na m ed ida em que, a rigor, e le poderia ser substitu ído
por todos os e lem en tos do que constitu i a cadeia s ign ifican te, suportá-
la, essa cadeia por si só, e s im p lesm en te por ser sem pre o m esm o. O
que encontram os no lim ite da experiên cia cartesiana com o tal do sujeito
evan escen te , é a necessidade dessa garantia, do traço de estru tura o
mais simples, do traço único, se ouso dizer, absolutamente despersonalizado,
não som ente de todo o con teúdo subjetivo, mas também de toda variação
que ultrapasse esse ú n ico traço, desse traço que é um , por ser o traço
ún ico. A fundação do um que constitu i esse traço não está tom ada em
nenhum a parte a não ser em sua un icidade. C om o tal, não podem os
dizer dele outra coisa senão que ele é o que tem de comum todo significante,
[de] ser sobretudo constitu ído com o traço, [de] ter esse traço por suporte.
Será que poderem os, em torno disso, encon trar-nos no con creto de
nossa experiên c ia ? Q u ero d izer o que vocês já vêem pontuado, a saber,
a substituição, de uma função que deu tantas dificu ldades ao pensam ento
filo só fico , a saber, esta in c lin ação quase que necessariam ente idealista
que tem toda articu lação do su jeito na trad ição clássica, substitu ir-lhe
essa fu n çã o de id ea liza çã o , na m ed ida em que sobre ela repousa essa
necessidade estru tura l que é a m esm a que já articu le i d iante de vocês
sob a form a de idea l do Eu, na m ed ida em que é a partir desse ponto,
não m ístico , mas p erfe ita m en te con creto de id en tificação inaugural
do su jeito com o s ign ifican te radical, não do um p lotin iano, mas do
traço ún ico com o tal, que toda perspectiva do sujeito com o não sabendo
pode se d esen vo lver de um m odo rigoroso. E que após havê-los le ito
- 3 5 -
passar hoje, sem dúvida, por caminhos com respeito aos quais os tranqüilizo,
d izendo-lh es que é seguram en te o ponto m ais a lto da d ificu ldade pela
qual devo fazê-los passar, franqueada hoje, é o que penso poder com eçar
a form u lar d iante de vocês, de uma m aneira m ais satisfatória, m ais
acabada, para nos fa zer reen con trar nossos h orizon tes práticos.
A Identificação
- 3 6 -
LIÇÃO III
29 de n ovem bro de 1961
Levei-os , na ú ltim a vez, portanto, a esse s ign ifican te, o qual, é preciso
que seja de a lgum a form a o su jeito, para que seja verdade que o sujeito
é s ign ifican te. Trata-se m uito precisam ente do um enquanto traço único;
poderíam os elaborar sobre o fato de que o pro fessor escreve o um assim,
1, com uma barra ascendente que indica, de algum m odo, de onde ele
em erge. Aliás, isto não será um puro requinte porque, afinal, será também
o que irem os fazer, tentar ver de onde ele sai.
M as não estam os aí. Então, com o propósito de acom odar sua visão
m en ta l fo r tem en te perturbada pelos e fe itos de um certo tipo de cultura,
m ais p rec isam en te, aqu ele que deixa aberto o in terva lo entre o ensino
p rim ário e o ou tro dito secundário, saibam que não os estou d irig indo,
n em para o U m de Parm ên ides, nem para o U m de Plotino, nem para
o U m de nen hum a to ta lidade no nosso cam po de trabalho, do qual
fazem os desde há algum tem po tanta questão. Trata-se m ais do 1 que
ch am ei há pouco de professor, do 1 do “ a luno X, você m e fará cem
linhas de 1” , isto é, bastões, “ a luno Y, você tirou um 1 em fra n cê s !” . O
professor, em sua caderneta , traça o e in z ige r Z u g , o traço ún ico do
signo para sem pre su fic ien te da notação m ín im a. É disso que se trata,
da relação disso, com aquilo que está em jogo na identificação. Se estabeleço
uma relação, ela deve ta lvez com eça r a aparecer no esp írito de vocês
com o uma aurora, que não entra imediatamente em colapso, a identificação,
não é simplesmente esse um, em todo caso, não tal com o nós o imaginamos;
tal com o nós o im aginam os, e le não pode ser - j á viram o cam inho pelo
- 3 7 -
A Identificação
(ti.il ini i ciikIu/.o mais do que o instrum ento, a rigor, dessa identificação,
• voct'ti vcríio, se o o lh arm os de perto, que isto não é tão sim ples.
h ii ’i M' r.io que |>cnsa, o ser-pensante de nossa última palestra, perm anece
n i i iilc )’,orla do real em sua opacidade, não é óbvio que e le saia de
1 11 1 1 1 1 1 m t , onde e le não esteja id en tificado ; quero dizer, não m esm o de
iilriiin ser do qual seja, em suma, lançado sobre a extensão de algum a
Mipi 1 1V<• i<■, que tenha precisado prim eiro de um pensam ento para expulsar
i l o inar vazio. N em m esm o chegam os lá a inda. N o n íve l do rea l, o que
|iod(imoK en trever é en trevê-lo tam bém no m e io de tanto ser - em um a
mi palavra, tan toser [ t a n d ’ê tre ], de um ser-sendo [d ’un ê tre -é ta n t ] -
m iilc e le está pendurado por algum a teta, em suma, no m áxim o capaz
ilr i v.lmçar essa espécie de palpitação do ser que tanto faz rir o encantador
mi íim do da tumba, na qual o encerrou a astúcia da dam a do lago.
I cmhrcm-.se de que, há alguns anos, o ano do sem inário sobre o Presidente
Nchieber, a im agem que evoqu e i a partir do ú ltim o sem in ário daqu ele
.mo, aquela , poética , do m onstro Chapalu, depo is de fica r saciado com
ir, corpos das esfinges esm agadas pelo seu salto su icida, aquela palavra,
da <1 1 1 ;i 1 rirá por m uito tem po o encan tador podre, do m onstro Chapalu :
"Aquele que com e não está m ais só ” . C ertam en te , para que o ser venha
.1 In/, há a perspectiva do encan tador; é bem ela que, no fundo, regu la
Indo, C laro que a verdade ira am bigü idade dessa vinda à luz da verdade
c o que con figu ra o h o rizon te de toda a nossa prática, m as não nos é
possível partir dessa perspectiva, da qual o m ito lhes indica suficientem ente
que cia está para além do lim ite m ortal, o encan tador apodrecen do em
Niia lum ba. Tam bém não está aí um pon to de vista que seja jam a is
com p letam en te abstrato para se pensar, em um a época na qual os dedos
cm farrapos da árvore de D a fn e perfilam -se sobre o cam po qu e im ado
pelo cogum elo gigante de nossa onipotência, sempre presente no m om ento
.iiual no horizon te de nossa im aginação, estão aí para nos lem brar do
além de onde se pode d e lin ea r o pon to de vista da verdade. M as não é
i c on lin gên c ia que faz com que eu esteja aqu i a fa la r d iante de vocês
•.obre as con d ições do verdadeiro . É um in c id en te m uito m ais m inúscu lo
que m e põe o desa fio de tom ar conta de vocês enqu anto punhado de
psicanalistas, aos quais lem bro que a verdade, vocês certam en te não a
lem para revender, m as que, m esm o assim , é esse o p e ixe que vocês
vendem .
- 3 8 -
Lição de 29 de novembro de 1961
Está c la ro que, para chegar até vocês, é atrás do verdadeiro [du v ra i |
que se corre , eu o disse na penú ltim a vez, que é o verdadeiro de verdade
\du v ra i de v r a i | que procuram os. E ju stam en te por isso que é leg ít im o
que, no que sc refere à id en tificação , eu tenha partido de um texto, do
qual tentei fazê-los sentir o caráter bastante único na história da filosofia,
já que a questão do verdadeiro está aí colocada de m aneira especialm ente
rad ica l, porque põe em causa, não apenas isso que encon tram os de
verdadeiro no real, mas também o estatuto do sujeito enquanto encarregado
de levar esse verdadeiro ao real, encon trando-m e, ao fim de m eu ú ltim o
discurso, aqu ele da ú ltim a vez, desem bocando nisso que lhes in d iqu ei
com o recon h ec íve l na figu ra já con h ec ida do traço único, do e in z ige r
Z u g , na m ed ida em que é sobre e le que se con cen tra para nós a função
de ind icar o lugar onde está suspensa no significante, onde está pendurada,
no que con cern e ao s ign ifican te , a questão de sua garantia, de sua
função , disso a que serve este s ign ifican te, no advento da verdade. E
por isso que não sei até on de d esen vo lvere i m eu discurso hoje, mas
estará g irando in te iram en te em torno da fin a lidade de assegurar em
seus esp íritos esta função do traço único, a fu nção do um. É claro que
se deve, ao m esm o tem po, co loca r em causa, deve-se ao m esm o tem po
fa ze r avançar - e penso encontrar, por isso m esm o, em vocês uma
espécie de aprovação, de encorajam ento, de ânim o, nosso con hecim en to
do que é esse s ign ifican te.
Vou com eçar, porque isto m e agrada, por fazê-los divagar um p ou co15.
F iz alusão, outro dia, a um observação gen til, a inda que irôn ica , relativa
à escolha de meu tema deste ano com o não sendo absolutamente necessário.
É um a ocasião para ev id en c ia r o que está certam en te um pouco ligado
à c rít ica que im plicava que a id en tifica ção seria a chave para fa zer
tudo, se ela evitasse re fe r ir-se a uma relação im aginária que suporta a
experiên cia disso, a saber, a relação com o corpo. Tudo isto está coeren te
com a m esm a crítica que pode ser-m e endereçada nas vias que persigo,
de m antê-los sem pre m ais no n ível da articu lação linguageira , tal com o
prec isam en te m e es fo rço por d istingu i-la de qua lquer outra. Daí, até à
id é ia de que desconheço aqu ilo que se cham a de pré-verbal, de quo
descon h eço o an im al, de que cre io que o hom em , em tudo isso tem
não se i qu e p r iv ilég io , não há m ais que um passo, fran qu eado tflo
rap idam en te, que não se tem m ais o sen tim en to de tê-lo fo lio I n Io
deve ser repensado, no m om en to em que, m ais do que nunca, osic uno
- 3 9 -
A Identificação
vou fa ze r g irar em torno da estru tura da lingu agem tudo isto que lhes
vou explicar, que m e vo lte i para um a exp eriên c ia próxim a, im ed iata ,
curta, sensível e agradável, que é a m inha, e que ta lvez escla reça que
tam bém tenho m inha noção do pré-verbal que se articu la no in te r io r
da re lação do su jeito com o verbo, de um a m an eira que ta lvez não
tenha aparecido para vocês.
Perto de m im , nas im ed iações do M ilse in [sercom|, onde m e sustento
com o Dasein [serpresen te], tenho uma cadela que cham ei de Justine,
em hom enagem a Sade, sem que, acreditem , eu exerça sobre ela qualquer
m altrato tendencioso. M inha cadela, no m eu en tender e sem am bigüidade,
fala. M inha cadela tem a palavra, sem nenhum a dúvida. Isso é im portante,
porque não quer d izer que ela tenha to ta lm en te a linguagem . A m ed ida
na qual ela tem a palavra sem ter a relação hum ana com a linguagem ,
é um a questão de onde va le a pena investigar o problem a do p ré-verba l.
O que fa z m inha cadela quando fala, no m eu en ten der? D igo que ela
fala, p or que? Ela não fa la o tem po todo; e la fa la, con tra riam en te a
muitos humanos, unicam ente nos mom entos nos quais ela tem necessidade
de falar. E la tem necessidade de fa lar nos m om en tos de in ten s idade
em oc ion a l e de relações com o outro, com igo m esm o, e com algum as
outras pessoas. A coisa se m an ifesta por espécies de pequenos gem idos
guturais. Mas não se lim ita a isso. A coisa é pa rticu la rm en te cham ativa
e patética , por m an ifestar-se em um quase-hum ano, que faz com que
eu tenha hoje a id é ia de lhes fa lar sobre isso; é uma cadela boxer, e
vocês vêem que nessa fa ce quase hum ana, bem nean derta liana afina l
de contas, aparece um certo trem or no lábio, espec ia lm en te no superior,
sob o foc inh o, para um hum ano, um pouco generoso, mas en fim , há
tipos com o esse, tive um a em pregada que se parecia m uito com ela e
esse trem or labial, quando acon tec ia , à em pregada de se com u n icar
com igo em tais auges in ten c ion a is , não era m u ito d iferen te . O e fe ito
de resp iração nas bochechas do an im al não evoca m enos sen s ive lm en te
toda um a gam a de m ecan ism os de tipo p ropriam en te fon a tór io que,
por exem plo , se prestaria p erfe itam en te às experiên cia s cé leb res que
foram as do abade Rousselot, fundador da fon ética . Vocês sabem que
elas são fundam enta is e consistem essen cia lm en te em fazer habitar as
diversas cavidades nas quais se p roduzem as vib rações fon atórias por
pequenos tambores, pêras, instrum entos vibráteis que perm item controlar
em que n íveis e em qual tem po vêm se superpor os d iversos e lem en tos
- 4 0 -
Lição de 29 de novembro de 1961
que con stitu em a em issão de uma sílaba, e m ais p recisam en te, tudo o
que nós cham am os de fon em a , pois esses trabalhos fon éticos são os
an teceden tes naturais do que em seguida é d e fin id o com o fon em ática .
M inha cadela tem a palavra, é incon testáve l, ind iscu tíve l, não som ente
pelas m odulações que resultam de seus esforços propriam ente articulados,
decom pon íve is , in scr itíve is [ in s c r ip t ib les ] in loco, m as tam bém pelas
corre lações de tem po em que esse fen ôm en o se produz, a saber, a co-
habitação em um local em que a experiên cia d iz ao an im al que o grupo
hum ano reu n ido em torn o da mesa devo p erm an ecer m uito tem po,
que alguns restos do que se passa naquele m om ento, a saber, as refe ições,
devem vo lta r para e le ; não se deve acred ita r que tudo esteja cen trado
na n ecessidade, há, sem dúvida, uma certa relação com esse e lem en to
de consum ação, mas o e lem en to de com unhão, pe lo fato de que ela
con som e com os outros, tam bém está aí presente.
O que distingue esse uso da palavra, em suma, m uito su fic ien tem en te
con segu ido pelos resu ltados que tratou de obter m inha cadela, de uma
palavra humana? N ão estou lhes dando as palavras que pretendem cobrir
todos os resultados da questão, eu não dou senão as respostas orientadas
para o que deve ser para nós o que se trata de localizar, a saber, a
relação com a id en tificação . O que d istingue este an im al fa lan te do
que se passa pelo fato de que o hom em fala é que é in teiram en te notável,
no que con cern e à m inha cadela, uma cadela que poderia ser a sua,
uma cadela que não tem nada de extraord inário , é que, con tra riam en te
ao que a con tece com o hom em enquanto fa lan te, ela não m e tom a
jam a is por um ou tro . Isto é m u ito claro! Esta cadela boxer de be lo
porte e que, fa z c rer aos que a observam , que tem por m im sen tim en tos
de amor, deixa-se levar a excessos de paixão por m im , nos quais ela
tom a um aspecto com p letam en te tem íve l para as almas m ais tím idas,
tais com o as que existem , por exem plo, no n íve l de m inha descendência ;
parece qu e se tem e que, nos m om entos em que e la com eça a saltar
sobre m im , baixando as orelhas, e latindo de uma certa form a, o fa to
de e la tom ar m eus punhos en tre seus dentes, pode passar por uma
am eaça. Mas não é nada. R ap idam ente, e é por isso que d izem qu e ela
m e am a, algum as palavras m inhas fa zem tudo reen co n tra r ordem ,
constatada no fina l de a lgum as reiterações, pela parada da b rin cadeira .
É porque ela sabe m u ito bem que sou eu que estou ali, que ela não m e
tom a jam ais por um outro, con tra riam en te ao que toda a exp eriên c ia
Ll
li
ll
A Identificação
de vocês pode testem unhar do que acon tece na m ed ida em que, na
exp eriên c ia analítica, vocês se co locam em con d ições de ter um su jeito
puro fa lan te , se posso d ize r assim, com o se d iz, um “ patê puro p orco ”
\patê p u r p o r c ].
O sujeito puro falante com o tal - está ai o nascimento de nossa experiência
- é levado, pelo fato de perm an ecer puro fa lan te , a tom á-los sem pre
por urn outro. Se há algum e lem en to de progresso nas vias pelas quais
ten to levá-los, é fa zê -los p erceber que ao tom á-los por um outro , o
su jeito os coloca ao n íve l do Outro, com A m aiúscu lo. E ju s tam en te o
que fa lta na m inha cadela, só há para e la o p equ en o outro. N ão parece
que sua relação com a linguagem lhe dê acesso ao grande Outro.
Por que, uma vez que fala, não chegaria com o nós a con stitu ir essas
articu lações de uma form a tal, que o lugar, para ela com o para nós,
desse Outro, se desenvolva on de se situa a cadeia s ign ifican te? L ivrem o-
nos do problem a d izendo que é seu o lfa to que a im pede disso, e não
fa rem os m ais que en con tra r aí uma ind icação clássica, a saber, que no
h om em a regressão orgân ica do olfato está, para m uitos, em seu acesso
a essa d im ensão Outra. Lam en to m uito dar a idéia , com essa referên c ia ,
de restabe lecer o corte en tre a espécie can in a e a espéc ie hum ana.
Isso é para d izer-lh es que vocês estariam com p letam en te equ ivocados
em acred ita r que o p riv ilég io dado por m im à linguagem partic ipa de
algum orgu lho de escon der essa espéc ie de p recon ce ito que fa r ia do
hom em , justam ente, a lgum a cu lm inação do ser. R e la tiv izare i esse corte
d izen do-lh es que se falta à m inha cadela essa espéc ie de possib ilidade,
não rea lçada com o au tônom a antes da ex is tên c ia da análise, que se
cham a de capacidade de transferência , isso não quer dizer, em absoluto,
que isso reduza com seu parceiro, quero dizer, com igo m esm o, o cam po
pa tético do que, no sen tido corren te do term o, cham o ju s tam en te de
relações humanas. Está m an ifesto na con du ta de m inha cadela , no
que con cern e p rec isam en te ao refluxo sobre seu próprio ser dos e fe itos
do con forto , das posições de prestígio, que um a gran de parte, d igam os,
para não d izer a to ta lidade do registro do que produz o p ra zer de m inha
p rópria relação, por exem plo , com um a m u lh er do m undo, está aí,
in te iram en te com pleto. Q uero d izer que, quando ela ocupa um lugar
p riv ileg iado com o este, que consiste em estar em c im a do que cham o
de m inha cama, dito de outra m aneira, o le ito m atrim on ia l, o tipo de
o lh ar de onde m e fita nessa ocasião, suspenso en tre a g lória de ocupar
- 4 2 -
Lição de 29 de novembro de 1961
um lugar der qual situa p e rfe itam en te a s ign ificação priv ileg iada e o
tem or do gesto im in en te que vai fazê-la retirar-se, não é uma d im ensão
d ife ren te disso que nasce no olhar do que cham ei, por pura dem agogia,
de m u lh er do m u n d o10; porque se ela não tem , no que se refere ao que
cham am os prazer da conversação, um privilégio especial, é bem o m esm o
olhar que ela tem , quando, após ter se aventu rado em um ditiram bo
sobre tal film e que lh e parece o supra-sumo do advento tecno lóg ico ,
e la sente suspensa sobre si, a declaração, por m im , de que aborrec i-m e
ao m áxim o, o que, do ponto de vista do n ih i l m i r a r i , que é a le i da alta
soc iedade, já faz surgir ne la esta suspeita de que leria sido m elh or ter-
m e de ixado falar p rim eiro .
Isto, para m oderar, ou m ais exatam ente, para restabelecer o sen tido
da questão que co loco , no que d iz respeito às re lações da fala [p a ro le ]
com a linguagem , destina-se a in trodu zir o que ten tare i d istingu ir para
vocês, re fe ren te ao que espec ifica uma linguagem com o tal, a língua
[ langue ], com o se diz, na m ed ida em que, se é o p riv ilég io do hom em ,
isso não está com p letam en te claro, por que e le aí perm anece con finado?
Isto m erece ser soletrado, é o caso de dizer. Falei da língua; por exem plo ,
não é in d ife ren te notar, ao m enos por aqueles que não ouviram fa lar
de R ousselot aqui pela p rim eira vez, é m esm o assim necessário que
saibam com o são fe ito s os re fle xo s de R ousselot. P e rm ito -m e ver,
im ed iatam ente, a im portância do que ficou ausente em minha explicação
de agora a pouco sobre m inha cadela, é que fa lo de algo de fa r ín geo
[p h a ryn ga l ] , g ló tico [g lo t ta l ] , e então, de algo que se estrem ecia para
lá e para cá, e que é, portan to, reg istrável em term os de pressão, de
tensão. Mas não fa le i de e fe itos de língua, não há nada que faça um
es ta lo , p o r ex em p lo , e m en os a in da um a oc lu sã o ; há h es ita çã o ,
es trem ecim en to , sopro, há todo tipo de coisas que disso se aproxim am ,
mas não há oclusão. N ão quero m e estender dem ais hoje, isso vai retardar
as coisas relativas ao um ; paciência , é preciso aproveitar o tem po para
exp licar as coisas. Se o sublinho de passagem , entendam bem que não
é por prazer, é porque o encon tram os aí, e não poderem os fazê-lo senão
retroativam en te , o sentido. Esse não é, ta lvez, um pilar essencia l de
nossa explicação, mas, em todo caso, tomará seu sentido em um m om ento,
nesse tem po da oclusão; e os traçados de Rousselot, que ta lvez vocês
tenham consu ltado por sua con ta no in terva lo , o que m e perm itirá
abreviar m inha explicação, serão aí talvez particu larm ente sign ificai Ivon
- 4 3 -
A Identificação
Para qu e im agin em desde já o que é esta oclusão, vou dar-lhes um
exem plo . O fon etic is ta aborda, de uma só vez, e não sem razão, vocês
verão, o fonem a p a e o fonem a ap, o que lhe perm ite colocar os princíp ios
de oposição da implosão ap à explosão pa, e nos m ostrar que a consonância
do p, com o no caso de sua filh a , é ser m u d a17. O sen tido do p está en tre
esta im plosão e esta explosão. O p se ouve p rec isam en te por não se
ouvir, e esse tem po m udo no m eio , retenham a fórm u la , é a lgum a coisa
que só ao n íve l fon ético da fala [paro le ], é com o quem faria um a espéc ie
de an ú ncio de um certo pon to de onde, vocês irão ver, os con du zire i
após alguns rodeios. S irvo-m e, sim plesm ente, do que disse sobre m inha
cadela , para assinalar-lhes que, de passagem, e para fazê-los observar,
ao m esm o tempo, que essa ausência das oclusivas na fala de m inha cadela
é ju stam en te o que ela tem em com um com uma atividade fa lante que
vocês con h ecem bem e que se cham a o canto.
Se acontece tão freqüentem ente que vocês não entendam o que tagarela
a cantora, é ju stam en te porque não se pode cantar as oclusivas, e espero
tam bém que estejam con ten tes de ca ir em si e de pensar que tudo se
arranja, um a vez que, em suma, m inha cadela canta, o que a faz en trar
para o con certo dos an im ais. H á m uitos outros que cantam e a questão
não é sem pre dem onstrada no sentido de saber se têm , portanto, uma
lin gu agem . D isso se fa la desde sem pre, o cham a, cuja figu ra tenho
num lindo passarinho cinza fabricado pelos Kwakiutl da Colômbia britânica,
traz no seu dorso uma espéc ie de im agem hum ana que com u n ica uma
língua [ la n gu e ] que o une com uma rã; a rã é suposta com u n icar-lh e a
lingu agem dos anim ais. N ão va le a pena fa ze r tanta etnografia , já que,
com o vocês sabem, São Francisco falava aos animais; não é um personagem
m ítico , v iv ia em uma época já m uito escla rec ida para seu tem po, por
todas as paixões da h istória. Há pessoas que fize ram lindas m in iatu ras
em p in tu ra para m ostrá-lo a nós no alto de um rochedo, e vê-se, até
p erder de vista, bocas de peixes que em ergem do m ar para ouvi-lo , o
que, não obstante, con fessem -no, é o cúm ulo. Podem os perguntar, a
esse propósito, que língua lhes falava. Isto tem sem pre um sen tido no
n íve l da lingü ística m oderna e no n íve l da exp eriên c ia psicanalítica .
A pren dem os a d e fin ir p erfe itam en te a função de certos acon tec im en tos
da língua, do que cham am os o fa lar babyish, esta coisa que para alguns,
para m im , por exem plo, dá nos nervos, esta coisa do “ b ilú-bilú , que
lin d in h a esta c ria n c in h a ” . Isso tem uma fu n ção que vai além dessas
- 4 4 -
Lição de 29 de novembro de 1961
m an ifestações im p líc itas da d im ensão boba, a bobagem consistindo, no
caso, no sen tim en to de su perio ridade do adulto.
N ão há, pois, nen hum a d istinção essencia l en tre o que cham am os
de fa la r babyish e, por exem plo , uma espéc ie de língua com o esta que
cham am os de p id g in , qu er dizer, esses tipos de línguas constitu ídas
quando en tram em relação duas espécies de articu lações linguageiras,
os partidários de uma se con sideram , ao m esm o tem po, na necessidade
e no d ire ito de usar certos e lem en tos s ign ifican tes que são da outra
área, com o propósito de servir-se de les para fa ze r penetrar na outra
área um certo nú m ero de com u n icações próprias de sua área, com
esse tipo de p recon ce ito de que se trata, nessa operação, de fazê-los
aceitar, de lhes transm itir categorias de uma ordem superior. Essas
espéc ies de in tegração en tre área e área linguageira são um dos cam pos
de estudo da lingüística, portanto, m erecem , com o tais, serem considerados
com um va lor com p letam en te ob jetivo, graças ao fato de que existe,
ju s ta m en te , com re la çã o à lin gu agem , dois m u ndos d iferen tes , na
[lingu agem ] da criança e na do adulto. N ão podem os deixar de levar
em conta, nem podem os negligenciar que é nesta referência que podem os
en con tra r a origem de certos traços [tra iís ] bastan te paradoxais da
con stitu ição das baterias s ign ifican tes, quero dizer, a preva lência m uito
particular de certos fonemas na designação de certas relações que chamamos
de paren tesco , a não un iversa lidade, mas a esm agadora m aioria dos
fon em as pa e m a para designar, para fo rn ece r ao m enos um dos m odos
de designação do pai e da m ãe; essa irrupção de a lgum a coisa que só se
ju s tifica por e lem en tos de gên ese na aqu isição da linguagem , isto é,
por fatos de pura fala, só se exp lica prec isam en te a partir da perspectiva
de uma relação en tre duas esferas de linguagem distintas. E vocês vêem
esboçar-se aqu i algo que ainda é o traçado de uma fron te ira . N ão penso
in ovar com isso, já que vocês sabem o que Ferenczi tentou com eça r a
apon tar sob o títu lo de C onfus ion o f tongues, m u ito espec ificam en te
nesse n íve l da relação verbal da criança e do adulto.
Sei qu e essa longa vo lta não m e perm itirá abordar hoje a função do
uin, o qu e m e vai p erm itir acrescentar, pois afina l de contas só se trata
de lim par o terreno, a saber, que não creiam que lá para onde os conduzo
seja um cam po ex te r io r em relação à sua experiên cia , é, ao con trário ,
o cam po mais interno dessa experiência, aquela, por exemplo, que evoquei
há pouco, particu larm en te nessa distinção con creta entre o ou tro e o
- 4 5 -
A Identificação
i »n iin, rssu experiên cia , nós só podem os atravessá-la. A id en tificação ,
I 1 1n i , Isto que pode fa ze r m uito p rec isam en te, e tão in ten sam en te
111 in 1 1 1 (> l'or possível im aginar, que co loca sob algum ser de suas relações
I •tiil>slAnela do outro, é algo que se ilustra em um texto e tn ográ fico
rm lim ites, uma vez que é a esse respeito que se estabeleceu , com
I ,rvy Itrühl, toda uma série de con cepções teóricas que se exp erim en ta
nli os term os “m entalidade pré-lóg ica” , m esm o m ais tarde, “participação
m ls llca ” , quando fo i levado a centrar mais especia lm en te sobre a função
ili' Iden tificação o in teresse do que lhe parecia a v ia de ob jetivação do
cam po con ceb ido com o o seu próprio. Penso aqu i que vocês sabem sob
qual parên tese, sob qual reserva apenas expressa podem ser aceitas as
relações intituladas com tais rubricas. É algo in fin itam en te mais com um ,
que não tem nada a ve r com qua lquer coisa que pusesse em causa a
lógica, nem a rac iona lidade, de onde é preciso partir para situar esses
latos, arcaicos ou não, da id en tificação com o tal. E um fa to sem pre
con h ec ido e ainda con statáve l para nós, quando nos endereçam os a
sujeitos presos a certos con textos que estão por definir, que essas espécies
ile fatos, vou cham á-los por term os que derrubam as barreiras, que
co locam os pés pelas m ãos e de m odo a fa zer en ten der c la ram en te que
não preten do aqu i m e de te r em nen hu m a partic ipação destinada a
obscurecer a p rim ariedade de certos fen ôm en os, esses fen ôm en os de
lalso recon h ec im en to , d igam os, de um lado, b i-locação, d igam os, de
outro, no n ível de tal experiência , nas relações a destacar, os testem unhos
abundam . O ser hum ano - cabe saber por que é com e le qu e essas
coisas acontecem - contrariam ente à m inha cadela, o ser humano reconhece
no surgim ento de tal an im al, o personagem que acaba de perder, quer
se trate de sua fam ília ou de tal personagem em in en te de sua tribo, o
ch e fe ou não, p res iden te de tal soc iedade de joven s , ou qua lquer ou tro ;
é e le , esse bisão, é e le , ou com o naquela lenda cé ltica , da qual é puro
acaso se ela vem , aqu i, por m im , uma vez que seria p rec iso qu e eu
falasse durante a etern idade para lhes d izer tudo o que m e pode despertar
rm m inha m em ória a respeito dessa exp eriên c ia central, tom o um a
lenda cé ltica que não é absolu tam ente uma lenda, que é um traço [trait]
de Ib lc lore rea lçado pelo testem u nho de alguém que fo i em pregado em
uma fazenda. Com a m orte do amo desse lugar, do senhor, ele [o empregado]
vê aparecer um a ratinha, e le a segue. A ratinha vai dar um a vo lta pe lo
cam po, retorna, vai ao ce le iro no qual há instrum entos de arado, passeia
Lição de 29 de novembro de 1961
sobre esses,instrum entos, sobre o arado, o enxadão, a pá e outros, depois
desaparece. D epois disso o em pregado, que já sabia do que se tratava
em relação ã ratinha, tem a con firm ação pela aparição do fantasm a de
seu amo que lhe diz: “Eu estava nessa ratinha, dei uma volta pela propriedade
para d ize r-lh e adeus, queria ver os instrum entos de arado porque são
os ob jetos essencia is aos quais se fica m ais tem po ligado que a qualquer
outro, e é som en te depois de ter dado essa vo lta que pude m e livrar
deles, e tc .” , com in fin itas con siderações con cern en tes a esse propósito,
de um a con cepção das relações do defu nto e de certos instrum entos
ligados a certas condições de trabalho, condições propriam ente campestres,
ou m ais espec ia lm en te , agrárias, agrícolas.
Tom o este exem p lo para cen trar o o lhar sobre a id en tificação do
ser, no que d iz respeito a duas aparições ind iv idua is tão m an ifesta e
fo r tem en te d istintas da que pode se re fe r ir ao ser que, com relação ao
sujeito narrador, ocupou a posição em in en te do am o com este an im álcu lo
con tin gen te , indo, não se sabe aonde, in do a lugar nenhum . Há aí algo
que, em si m esm o, m erece ser tom ado não s im p lesm en te para explicar,
com o con seqü ên cia , m as com o possib ilidade que m erece, com o tal,
ser ind icada.
Q u er isto d izer que um a tal re fe rên c ia pode engendra r outra coisa
que não a m ais com p leta opacidade? Isso seria recon h ecer m al o tipo
de e laboração, a ordem de es fo rço que exijo de vocês em m eu ensino,
pensar que eu possa de algum a m aneira con tentar-m e, m esm o apagando
os lim ites de uma referência folclórica, em considerar natural o fenôm eno
da id en tificação ; porque, uma vez que recon h ecem os isso com o fundo
da exp eriên c ia , não sabem os absolu tam ente m ais nada, ju stam en te na
m ed ida em que àqueles aos quais falo, isso não pode chegar, salvo caso
excep c ion a l. Tem os que m an ter sem pre um a reserva, estejam seguros
de que isso pode ainda p erfe itam en te oco rrer em uma ou outra zona
cam pestre . Q ue isso não possa a con tecer com vocês, a quem falo, é
isso que d iv ide a questão; a partir do m om en to em que isso não pode
a con tecer com vocês, vocês não podem en ten der nada e, não podendo
c o m p re e n d e r nada , n ão c re ia m qu e basta fa z e r a c o n o ta çã o do
acon tec im en to por um in íc io de capítu lo que vocês cham em , com Lévy-
Brühl, de “partic ipação m íst ica ” , ou que vocês o façam en trar com ele
no con ju n to m aior da “m en ta lidade p ré -ló g ica ” , para que vocês tenham
dito a lgum a coisa de in teressante. Resta que o que vocês podem aí
- 4 7 -
A Identificação
dom esticar, tornar m ais fam ilia r por m eio de fenôm enos m ais atenuados,
não será nem por isso m ais válido, já que é desse fundo opaco que
vocês devem partir. Vocês encontram ainda aí uma referência de Apollinaire:
“C om e teus pés à Santa M éh eh o u ld ” 18, d iz, em algum a parte, o h eró i
[a hero ín a ] de M am elles de T irés ias a seu m arido. O fa to de com er seus
pés à M its e in [à moda S er -com ] não reso lve nada. Trata-se, para nós,
de ap reen der a relação dessa possib ilidade que se cham a id en tificação ,
no sen tido em que daí surge o que só ex iste na linguagem e graças à
linguagem , uma verdade, para a qual lá está uma id en tificação que não
se distingue para o servidor da fazenda que acaba de nos contar a experiência
da qual lhes fa le i há pouco; e para nós, que fundam os a verdade sobre A
é A, é a m esm a coisa, porque o que será o pon to de partida do m eu
discurso da próxim a vez será isto, por que A é A é um absurdo?
A análise estrita da fu n ção do s ign ifican te, na m ed ida em que é por
ela que preten do in trodu zir a questão da s ign ificação , é a partir disso,
é que se o A é A constitu iu , se posso dizer, a con d ição de toda um a era
[âge] do pensam ento, cuja exp loração cartesiana pela qual c o m ece i é o
term o, que se pode cham ar de a era teo lógica , não é m enos verdade iro
que a análise lingü ística é corre la tiva ao adven to de outra era, m arcada
por corre lações técn icas precisas, en tre as quais é o advento m atem ático,
quero dizer nas matemáticas, de um uso ampliado do significante. Podemos
nos dar con ta de que é na m ed ida em que o A é A deve ser co locado em
questão, que nós podem os fa ze r avançar o prob lem a da id en tificação .
In d ico-lh es , desde já que se o A é A não fu n c ion a farei g irar m inha
dem onstração em torno da função do um, e, para não deixá-los totalm ente
em suspenso, e para que, ta lvez, cada um de vocês com ece a se form u lar
algo sobre o cam inho do que lhes d ire i m ais ad ian te, lhes rogaria que
se reportassem ao capítulo do Cours de L in gu is l iqu e [Curso de L in g ü ís t ica
Geral] de De Saussure, que term ina na página 175. Este capítu lo term ina
por um parágrafo que com eça à página 174 e le io para vocês o parágrafo
seguinte: “aplicado à unidade, o princípio de d iferenciação pode form ular-
se assim: as características da un idade con fu n dem -se com a própria
unidade. Na língua, com o em lodo sistem a sem io lóg ico ” - isto m ereceria
ser d iscutido - “o que distingue um signo ]s igne ], é tudo o que o constitu i.
É a d iferen ça que faz a característica , com o e la con fe re o va lor e a
u n idade” . D ito de ou tra m aneira , d ife ren tem en te do signo, e vocês o
verão con firm ar-se por pouco que le iam o cap ítu lo , o que d istingue o
- 4 8 -
Lição de 29 de novembro de 1961
sign ificante é som ente ser o que os outros não são; o que, no significante,
im p lica essa função de un idade é ju stam en te ser som ente d iferença. E
enqu anto pura d iferen ça que a unidade, em sua função sign ificante,
se estru tura, se constitu i. Isto não é um traço ún ico, de alguma form a
e le constitu i uma abstração un ilatera l que d iz respeito à relação, por
exem plo , s incrôn ica do s ign ifican te . Vocês verão, na próxim a vez, que
nada é propriam ente pensável, nada da função significante é propriamente
pensável, sem partir disso que form u lo: o Um com o tal é o O u tro . E a
partir disso, dessa estru tura fundam enta l do um com o d iferença, que
podem os ver aparecer essa origem , da qual se pode ver o s ign ifican te
se constitu ir, se posso dizer, é no Outro que o A, do A é A, o A m aiúsculo,
com o se d iz, a grande palavra, está dito.
Do processo dessa linguagem , do sign ifican te, som ente pode partir
uma exp loração que seja fundam enta l e rad ica l de com o se constitu i a
id en tificação . A id en tificação não tem nada a ver com a un ificação.
Som en te d istingu indo-a desta é que se pode dar-lhe, não som ente seu
destaque essencia l, com o suas funções e suas variedades.
- 4 9 -
LIÇÃO IV
6 de dezembro de 1961
R etom em os nossa idéia, a saber, o que lhes anunciei na últim a vez,
que eu pretendia fazer girar em torno da noção do um, nosso problem a,
o da identificação, já tendo anunciado que a identificação não é simplesmente
fazer um. Penso que não será d ifícil para vocês adm itir isso.
Partim os, com o é norm al no que d iz respeito à identificação, do m odo
de acesso m ais com um da exp eriên c ia subjetiva, aqu ele que se exp rim e
pelo que parece a ev idên c ia essen cia lm en te com un icável na fórm u la
que, em uma p rim eira aproxim ação, não parece suscitar objeção, que
A seja A. Eu disse uma p rim eira aproxim ação porque está claro que,
qua lquer que seja o valor de crença que com porta essa fórm u la, não
sou o p rim eiro a levantar ob jeções a ela; basta que vocês abram o m en or
tratado de lógica para encon trarem quais d ificu ldades a d istinção dessa
fórm u la, aparen tem en te a m ais sim ples, suscita em si m esm a. Vocês
inc lu sive poderão ver que a m aior parte das d ificu ldades a reso lver em
m uitos dom ín ios mas é particu larm en te surpreendente que seja em
lógica, mais do que em qualquer outra parte - resulta de todas as confusões
possíveis que possam surgir dessa fórm ula, que se presta em inentem en te
à confusão. Se vocês experim entam , por exem plo, algumas d ificu ldades,
até m esm o algum a fad iga ao lerem um texto tão apaixonante quanto o
do Parm ên ides de Platão, é na m edida em que, sobre esse ponto do A 6
A , d igam os que lhes fa lta um pouco de reflexão, e portanto, justam ente,
se disse agora m esm o que A ê A é uma crença, é preciso en ten dê-lo
com o eu disse, é uma cren ça que seguram ente nem sem pre reinou
sobre nossa espécie , de m aneira que, seja com o for, o A com eçou em
A Identificação
algum lugar, eu fa lo do A, le tra A, e não devia ser tão fác il chegar a
esse n ú cleo de certeza aparente que há no A ê A, quando o hom em não
dispunha dq A. D irei em segu ida por qual cam inho essa reflexão pode
nos conduzir. É conven ien te, assim mesmo, dar-se conta do que acon tece
de novo com o A. No momento, contentemo-nos com o que nossa linguagem
nos p erm ite articu lar aqui, é que A é A, tem o ar de querer d izer algo,
isto faz s ign ificado [ c e la fa i t s ign if ié ] . A firm o - certo de não encon trar
a esse respeito nenhum a oposição sobre esse tem a por parte de ninguém ,
em posição de com petên cia , cuja provação fo i fe ita pelos testem unhos
inegáve is do que se pode le r sobre isso - que, ao in terpe la r este ou
aquele m atem ático su fic ien tem en te fam ilia rizado com sua ciência , para
saber on de nos encon tram os atualm ente, por exem plo , e depois outros,
em todos os dom ínios, eu não encon traria oposição para avançar sobre
certas con d ições de exp licação, que são ju stam en te aquelas às quais
vou subm eter-m e d iante de vocês, que A é A não s ign ifica nada.
E ju s tam en te desse nada que vai se tratar, porque é esse nada que
tem va lo r positivo para d ize r o que isso s ign ifica . Tem os em nossa
exp eriên c ia , m esm o em nosso fo lc lo re analítico, algo, a im agem nunca
su fic ien tem en te aprofundada, exp lorada, que é o jo go do garoto tão
sab iam ente ind icado por Freud, perceb ido de m aneira tão persp icaz
no f o r t -d a . R etom em o-lo por nossa conta, com o no pegar e no atirar
um objeto - trata-se, nessa criança, de seu netinho - Freud soube perceber
o gesto inaugural no jogo . R efaçam os esse gesto, tom em os esse pequeno
objeto, uma bola de p ingue-pongue; eu a pego, a escondo, torno a mostrá-
la; a bola de p ingue-pongue é a bola de p ingue-pongue, mas não é um
s ign ifican te , é um objeto, é uma aproxim ação d izer este pequeno a é
um p e q u e n o a; há, e n tre esses do is m o m en to s , qu e id e n t i f ic o
in con testave lm en te de m aneira legítim a, o desaparec im en to da bola;
sem isso, não há m eio de demonstrar, não há nada que se fo rm e no
plano da im agem . Pois a bola está sempre ali e posso entrar em catalepsia
de tanto o lhar para ela.
Q ue relação existe en tre o é que une as duas aparições da bola e esse
desaparecimento intermediário? No plano imaginário, vocês podem perceber
que pelo m enos se coloca a questão da relação desse é com o que parece
causá-lo, a saber, o desaparecim ento, e aí vocês se aproxim am de um
dos segredos da iden tificação , que é aquele ao qual ten tei rem etê-los
no fo lc lo re da id en tificação , essa assunção, espontânea para o sujeito,
- 5 2 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
da id en tid ad e de duas aparições, no entanto bem d iferen tes. Lem brem -
se da h istória do fa zen d e iro m orto, o qual seu em pregado encon tra no
corpo da ratinha. A relação desse “é e le " com o “a inda é ele” , está aí o
que nos dá a experiên cia m ais sim ples de id en tificação , o m odelo e o
registro. “ E le, depois a inda e le " ex iste aí a visada do ser no “ ainda e le ”
é o m esm o ser que aparece. C om relação ao outro, em suma, isso pode
fu n c ion ar assim, funciona para m inha cadela, que tom ei outro dia com o
term o de referên cia , com o acabo de d izer-lhes, funciona; essa referência
ao ser é su fic ien tem en te suportada, parece-m e, por seu olfato; no cam po
im agin ário , o suporte do ser é rap idam en te con ceb íve l. Trata-se de
saber se é e fe tiva m en te essa relação sim ples que está em jogo em nossa
exp eriên c ia da id en tificação . Q uando fa lam os de nossa experiên cia de
ser, não é por nada que todo o es fo rço de um pensam ento, que é o
nosso, con tem porâneo , vai form u lar algum a coisa da qual nunca desloco
o grande m óve l senão com um certo sorriso, esse Dasein, esse m odo
fundam ental da nossa experiência , do qual parece que é preciso designar
o m óve l dando acesso a esse term o do ser, a re fe rên c ia prim ária.
E logo aí que algum a coisa d iferen te nos obriga a in terrogar-nos sobre
o fato de que a escansão na qual se m anifesta essa presença no m undo,
não é s im p lesm en te im aginária , a saber, que já não é ao outro que aqui
nos re fer im os, mas ao m ais ín t im o de nós m esm os, do que tentam os
fa ze r o ancoradouro, a raiz, o fundam en to do que som os com o sujeitos.
Porque, se podem os articular, com o fizem os no p lano im aginário, que
m in h a cad e la m e re c o n h e c e en qu an to eu m esm o, não tem os, em
con trapartida, nenhum a in d icação sobre o m odo com o ela se id en tifica ;
de qua lquer m aneira que possamos im plicá-la nela m esm a, não sabemos,
não tem os nenhum a prova, nenhum testem u nho do m odo sob o qual
e la ancora essa id en tificação .
É aqu i que aparece a função, o va lor do s ign ifican te com o tal; e é na
p rópria m ed ida em que é do su jeito que se trata, que tem os que nos
in terroga r sobre a relação dessa id en tifica ção do su jeito com o que é
um a d im ensão d iferen te de tudo o que é da ordem do aparecim en to e
do d esaparec im en to , a saber, o estatuto do s ign ifican te . Q ue nossa
exp eriên c ia nos m ostra que os d iferen tes m odos, os d iferen tes ângulos
sob os quais som os levados a nos id en tifica r com o sujeitos, ao m enos
para um a parte den tre eles, supõem o s ign ifica n te para articu lá-lo ,
in c lu s ive sob a form a na m aioria das vezes am bígua, im própria, mal
- 5 3 -
LLULlUllllUL!
nianejável e sujeita a todas as espécies de reserva e de d istinções que é
o A é A. É para lá que qu ero levar sua aten ção ; e antes de m ais nada
quero dizer, sem perder m ais tem po, m ostrar-lhes que, se tem os a chance
de dar um passo a m ais neste sentido, é ten tando articu lar o estatuto
do s ign ifican te com o tal.
Ind ico-o im ediatam ente, o significante não é o signo. Vamos nos esforçar
para dar a essa d istinção sua fórm u la precisa. Q uero d izer que é para
m ostrar onde reside essa d iferença , que poderem os ver surgir esse fato
já dado por nossa experiên c ia , que é do e fe ito do s ign ifican te que surge
o su jeito com o tal. E fe ito m eton ím ico ou e fe ito m eta fór ico? N ós não o
sabem os ainda, e, ta lvez já haja algo a rticu láve l antes desses e fe itos ,
que nos perm ita ver aparecer, form ar em um víncu lo , em uma relação,
a d epen dên c ia do su jeito com o tal, em relação ao s ign ifican te. É isso
que nós vam os co loca r à prova.
Para ad iantar o que trato de fazê-los en tender, para ad ian tá-lo em
uma breve im agem , à qual só im porta atribu ir ainda uma esp éc ie de
valor de suporte, de apólogo, m eçam a d iferen ça en tre o que, a p rincíp io ,
pode parecer-lhes ta lvez um jogo de palavras, mas que ju s tam en te é
um deles, há o rastro de um passo [la trace d ’u n p a s ]19 [e o nen hu m
rastro ]20 [le pas de trace ] . Eu já os leve i por essa pista fo r tem en te tingida
de m isticism o, corre la tiva , ju stam en te , do tem po em que com eça a se
articu lar no pensam ento a função do su jeito com o tal, Robinson, d iante
do rastro do passo [ t race de pas] que lhe m ostra que e le não está sozinho
na ilha. A d istância que separa esse passo [pas], e isso que se tornou
foneticam ente não [le pas] com o instrum ento da negação, são, justam ente,
dois extrem os da cad e ia que rogo-lhes reter, antes de m ostrar-lh es
e fe t iva m en te o que a constitu i, e que é en tre as duas extrem idades da
cadeia que o su jeito pode surgir, e em nenhum outro lugar. Ao en ten dê-
lo, chegarem os a re la tiv iza r algo, de tal m aneira , que vocês possam
con sid erar esta fórm u la, A é A, em si m esm a, com o um a espéc ie de
estigma [stigmate], quero dizer, em seu caráter de crença, com o a afirm ação
do que cham arei uma época, época, m om ento, parêntese, term o histórico,
en fim , do qual podem os, vocês verão, en trever o cam po com o lim itado .
O que ch am ei outro dia um a ind icação , que con tinuará ainda sendo
uma ind icação de id en tid ad e dessa falsa con sis tên cia do A é A, com o
que cham ei de um a era teo lógica , m e perm itirá , creio, dar um passo
no que con cern e o p rob lem a da id en tificação , na m ed ida em que a
- 5 4 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
análise necessita que nós a coloquemos, em relação a um certo acesso ao
idêntico, tránscendendo-a.
Essa fecu n d id ad e , essa esp éc ie de d e term in ação suspensa nesse
s ign ificado do A é A , não poderia apoiar-se sobre sua verdade, já que
essa a firm ação não é verdadeira . O que se trata de alcançar naqu ilo
que m e es fo rço para co loca r d iante de vocês, é que essa fecu nd idade
repousa justam ente sobre o fato objetivo, em prego aqui objetivo no sentido
que tem , por exem plo , no texto de Descartes, quando se vai um pouco
mais longe, vê-se surgir a distinção concernente às idéias, de sua realidade
atual com sua rea lidade objetiva, e na tu ra lm en te os pro fessores nos
saem com volum es eruditos, tais com o um índ ice escolástico-cartesiano
para nos d izer o que nos parece, já que Deus sabe que somos espertos,
um pouco confuso, que é uma herança da escolástica, por m eio da qual
se crê ter exp licado tudo. Q uero d izer que nos libertam os do que se
trata, isto é, porque Descartes, o anti-escolástico, fo i levado a servir-se
desses velhos acessórios. N ão parece que chega tão fac ilm en te à idéia,
m esm o dos m elhores historiadores, que a ún ica coisa interessante é o
que o obriga a tornar a servir-se desse velhos acessórios. Fica claro que
não é para refazer o argum ento de Santo Anselm o que ele torna a colocar
tudo isso novam ente na cena.
O fato ob jetivo de que A não pode ser A, é o que eu queria em prim eiro
lugar colocar para vocês em evidência, justamente para fazê-los compreender
que se trata de algo que tem relação com o fato ob jetivo, e até m esm o
nesse falso e fe ito de sign ificado, que não é senão sombra e conseqüência
do que nos deixa ligados a essa espéc ie de im ed ia tism o que há no A é
A. Q ue o s ign ifican te seja fecu ndo por não poder ser, em nenhum caso,
idêntico a si mesmo, entendam bem o que quero dizer - está absolutamente
c laro que não estou, ainda que valha a pena d istingu i-lo de passagem ,
ten tando fazê-los observar que não há tau tologia no fato de d izer que a
guerra é a guerra. Todo m undo sabe que, quando d izem os que a guerra
é a guerra, estam os d izendo qua lquer coisa, não sabemos exatam en te
o quê, m as podem os procurá-lo, e podem os encon trá -lo e encon tram o-
lo m u ito fac ilm en te ao a lcan ce da mão. Isto qu er dizer, o que com eça
a partir de um certo m om ento, está-se em estado de guerra. Isto im plica
con d ições um pouco d iferen tes das coisas, tal com o Péguy d izia “ que
as pequenas cavilhas não entravam m ais nos pequenos buracos” . É
uma d e fin ição peguysta, quer dizer, que não é nada m enos que certa ;
- 5 5 -
A Identificação
poderíam os sustentar o contrário, a saber, que é justam ente para reco locar
as cavilhas em seus verdadeiros buracos que a guerra com eça , ou, ao
contrário, que é para fazer novos pequenos buracos para velhas pequenas
cavilhas, e assim por d iante. Por outro lado, isso não tem para nós,
estritam en te, nenhum interesse, salvo que essa persegu ição, qua lquer
que seja, se rea liza com um a notável e ficá c ia , por in term éd io da m ais
pro funda im bec ilidade, o que nos deve igu a lm en te fa zer re fle tir sobre
a fu nção do su jeito com relação aos e fe itos do sign ifican te.
Mas tom em os algo sim ples e term in em os rap idam ente. Se d igo
m eu avô é m eu avô, vocês devem assim m esm o com preen der que não
há aí nenhum a tau tologia , que m eu avô, p rim eiro term o, é um uso de
ín d ic e [index] do segundo term o m eu avô, que não é sen s ive lm en te
d iferente de seu nom e próprio, por exem plo, Em ile Lacan, nem tam pouco
do c do c ’est [este é ], quando eu o designo ao en trar em um côm odo,
este é m eu avô. O que não quer d izer que seu nom e p róprio seja a
m esm a coisa que este c de "th is is m y g ra n d fa th e r " . Ficam os estupefatos
que um lóg ico com o Russell tenha pod ido d izer que o nom e próprio é
da m esm a categoria , da m esm a classe s ign ifican te que o this, that ou
i t , sob o pretexto de que são suscetíveis do m esm o uso fu n c ion a l, em
certos casos. Isto é um parên tese, mas com o todos os m eus parên teses,
um parêntese destinado a ser retom ado m ais tarde, a propósito do estatuto
do nom e próprio, do qual não fa larem os hoje. Seja com o for, o que está
em questão em m eu avô é m eu avô, quer d izer isso, que esse execráve l
p equ en o burguês que era o m en c ion ado bom hom em , esse horr íve l
personagem graças ao qual cheguei, em idade precoce, a essa função
fundam ental de m a ld izer Deus, esse personagem é exatam ente o m esm o
que se apóia sobre o estado civ il, com o fica dem onstrado pelos laços do
casam ento, ser pai de m eu pai, já que é ju stam en te do n asc im en to
deste que se trata no ato em questão.
Vocês vêem até que ponto m eu avô é m eu avô não é uma tautologia.
Isso se aplica a todas as tautologias, e não dá uma fórm u la un ívoca,
porque aqu i se trata de uma relação do real com o sim bólico . Em outros
casos, haverá uma relação do im agin ário com o sim bólico e, fe itas todas
as séries de perm utações, trata-se de ve r quais são válidas. N ão posso
com prom eter-m e por essa via, porque, se lhes fa lo disso, que é, de
certa form a, uma m an e ira de descartar as falsas tau tologias que são
s im p lesm en te o uso com um , perm anen te da linguagem , é para d izer-
- 5 6 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
lhes que não é isso que quero dizer. Se a firm o que não há tau tologia
possível, não é enqu an to A prim eiro e A segundo querem d izer coisas
d iferen tes , que digo que não há tautologia, é dentro do estatuto m esm o
de A que está inscrito que A não pode ser A, e fo i aí que term in ei m eu
d iscurso da ú ltim a vez, apontando-lhes em Saussure o ponto em que
está d ito que A, com o sign ifican te, não pode, de nenhum a m aneira, se
d e fin ir senão com o não sendo o que são os outros sign ificantes. Do
fa to de e le não poder se d e fin ir senão ju stam en te por não ser todos os
outros s ign ificantes, depen de essa d im ensão, igu a lm en te verdadeira ,
de que e le não poderia ser e le m esm o.
N ão basta avançar assim dessa m aneira opaca, ju stam en te porque
e la surpreende, porque e la atordoa essa crença suspensa ao fa to de
estar ali o verdadeiro suporte da iden tidade, é preciso fazê-los sentir. O
que é um sign ifican te? Se todo m undo, e não som ente os lógicos, fala
de A, quando se trata de A é A , não é por acaso. É que, para suportar
o que se designa, é p reciso uma letra. Penso que vocês concordam
com igo , m as m esm o assim não tom o esse salto por decisivo, até que
m eu discurso o com prove, o dem onstre de uma m aneira su fic ien tem en te
abundante para que vocês estejam con ven cidos; e estarão tanto m ais
con ven cidos, quando eu tratar de m ostrar-lhes na letra ju stam en te ,
essa essência do s ign ifican te, por on de e le se d istingue do signo. Fiz
algum a coisa para vocês, sábado passado, em m inha casa de cam po, na
qual p endu rei à parede o que se cham a de uma ca ligra fia ch inesa. Se
não fosse ch inesa, eu não a teria pendurado à parede, pela razão de
que só na China a ca lig ra fia ganhou um valor de objeto de arte; é a
m esm a coisa que ter uma p intura, tem o m esm o preço. Há as m esm as
d iferenças, e ta lvez m ais ainda, de uma escrita à outra em nossa cultura,
do que na cu ltura ch inesa, mas nós não atribu ím os o m esm o valor. Por
ou tro lado, terei ocasião de m ostrar-lhes o que, para nós, pode m ascarar
o va lor da letra, o que, em razão do estatuto particu lar do caractere
ch inês, está particu la rm en te bem posto em ev idên cia nesse caractere.
O que vou, portanto, m ostrar-lhes, não tom a sua plena e exata posição
\siluaLion] senão através de uma certa reflexão sobre o que é o caractere
ch in ês; já fiz, não obstante, algum a vez, bastante alusão ao caractere
chinês e a seu estatuto, para que vocês saibam que chamá-lo de ideográfico
não é, de form a algum a, su fic ien te . Eu o m ostrarei a vocês, ta lvez, em
m ais detalhes; é o que e le tem , aliás, de com um com tudo o que se
- 5 7 -
A Identificação
h 1 1 1 iiii 1 1 11 • Ideográfico, não há, propriam ente fa lando, nada que m ereça
i .r ...........mi sen tido em que o im aginam os hab itua lm en te, eu diria ,
■ 1 1 1 >im noinliialn iente, no sentido em que o pequeno esquem a de Saussure,
i uni .irbor r a árvore desen hada em baixo, a inda o sustenta por um a
i |in lr de im prudência que é aquilo a que se prendem os m al-entendidos
r ,ii, ro iiliis õ es21. O que quero m ostrar-lhes, preparei em dois exem plares.
I I aviam m e dado, ao m esm o tem po, um pequ en o in stru m en to novo, o
i|UiiI alguns p intores dão gran de im portância , que é um a esp éc ie de
p incel espesso em que a tin ta vem do in terior, o que p erm ite fa ze r
im ços |/rti i ls j com uma espessura, uma consistência in teressante. D isso
resu ltou , que eu c o p ie i m u ito m ais fa c ilm e n te do que te r ia fe ito
norm alm en te , a form a que tinham os ca racteres em m inha ca ligra fia ;
na co lun a da esquerda, a ca lig ra fia desta frase que quer d izer: a som bra
de meu chapéu dança e t rem u la sobre as f lo res de H a i Tang; do ou tro
lado, vocês vêem escrita a m esm a frase em caracteres m ais com uns, os
mais lícitos, os que o estudante hesitante faz quando escreve corretam ente
seus caracteres. Essas duas séries são p e rfe ita m en te id en tificá ve is , e,
ao m esm o tem po, não se assem elham em nada. Percebam , que é da
m aneira m ais clara que não se parecem em nada, que são ev iden tem ente,
de alto a baixo, à d ireita e à esquerda, os sete m esm os caracteres, m esm o
para a lguém que não tem nen hu m a idéia, não som en te dos caracteres
ch ineses, mas nen hum a id é ia até então, de que havia coisas que se
cham avam caracteres ch ineses. Se alguém descobrir, pela p rim eira vez,
isto desenhado em a lgum a parte de um deserto , veria que se trata, à
d ire ita e à esquerda de caracteres, e da m esm a sucessão de caracteres
à d ire ita e à esquerda.
Isto para in trodu zi-los no que faz a essên cia do s ign ifican te , e que
não é por nada que o ilu strarei m elh or por essa form a m ais sim ples,
(p ie é o qu e designam os desde algum tem po com o o e in z ig e r Zuç j22. O
e in z ig e r Z u g , que é o que dá a essa fu nção seu valor, seu ato e seu
prin cíp io , é o que, para dissipar o que poderia aqu i restar de con fusão,
n ecessita que eu in troduza, para traduzi-lo m e lh o r e m ais p róx im o do
term o, que não é absolu tam en te um n eo log ism o, que é em pregado na
teoria dita dos con juntos, a palavra u n á r io [i in a i r e ] em lugar da palavra
ún ico . A o m en os é ú til que m e sirva dele hoje, para fa zê -los sen tir esse
nervo de que se trata na>distinção do estatu to do s ign ifican te . O traço
unário \lrait u n a i re ] , portan to, seja e le com o aqu i, v ertica l - cham am os
- 5 8 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
a isso “ fazer bastões”23 - ou seja ele, com o o fazem os chineses, horizontal,
pode parecer que sua fu nção exem pla r esteja ligada à redução extrem a,
a seu propósito justam ente, de todas as ocasiões de d iferença qualitativa.
Quero d izer que, a partir do m om ento em que eu deva fazer sim plesm ente
um traço, parece que não há m uitas variedades n em variações possíveis;
é isto que va i con stitu ir seu va lor p riv ileg iado para nós.
N ão se enganem . N ão se tratava, agora há pouco, de desp istar o que
há na fó rm u la não há ta u to log ia , de persegu ir a tau to logia no lugar
on de ju s tam en te ela não está, com o tam pouco se trata aqui de d iscern ir
o que ch am e i de ca rá ter p e r fe ita m en te ap reen s íve l do esta tu to do
s ign ifican te , qu a lqu er que e le seja, A ou um outro, pe lo fa to de que
algum a coisa em sua estrutura elim inaria essas d iferenças - eu as cham o
de qua litativas porque é desse term o que os lóg icos se servem , quando
se trata de defin ir a identidade - da elim inação das diferenças qualitativas,
de sua redução, com o se d iria , a um esquem a s im p lificado ; aí é que
estaria o m ecan ism o desse reco n h ec im en to ca rac terís tico de nossa
apreen são do que é o suporte do s ign ifican te , a letra. N ão é nada disso,
não é disso que estam os tratando. Porque, se fa ço uma linha de bastões,
é p e rfe itam en te claro que, qua lquer que seja m eu em penho, não haverá
um só sem elhan te , e eu d iria mais, e les são m u ito m ais con v in cen tes
com o lin h a de bastões, pois ju s tam en te não m e terei es fo rçado por
fa zê -los r igorosam en te sem elhantes.
D esde que ten to fo rm u la r para vocês o que estou form u lando agora,
com os recursos à m ão, is to é, os que estão dados a todo m undo, tenh o-
m e in terrogad o sobre o que, a fina l de con tas, não está e v id en te de
im ed ia to , em qual m om en to vem os aparecer um a linha de bastões?
E stive em um lugar rea lm en te extraord inário , no qual, ta lvez, a fina l,
com os m eus propósitos vou p rop icia r que se an im e o deserto, quero
d izer que alguns de vocês en trarão lá, qu ero dizer, o M useu Sa in t-
G erm ain . É fasc inan te, é apaixonante, e o será m u ito m ais se vocês
tratarem de en con tra r a lguém que já tenha estado lá antes de vocês,
porque não há nen hum catálogo, nenhum plano, e é com p letam en te
im possíve l saber on de e qua l e o que, e de se o rien ta r na seqü ên c ia das
salas. H á um a sala que se cham a sala P ie tte , o nom e de um ju iz que fo i
um gên io e que fe t as m ais prodigiosas duscobertan da pré-h istória ,
digo, de alguns objetos m iúdos, em geral, de tam anho muito pequeno, que são o que se pode ve r de m ais fascinan te. Segurar nas m ãos um a
- 5 9 -
A Identificação
pequ en a cabeça de m u lh er que tem certam en te trin ta m il anos tem , de
qua lquer m aneira, seu valor, além de essa cabeça estar cheia de questões.
M as, vocês poderão ve r através de uma v itr in e , é m uito fác il de ver,
pois, graças às d isposições testam entárias desse hom em notável, fo i-se
absolutam ente forçado a deixar tudo na m aior desordem , com as etiquetas
com p letam en te u ltrapassadas que encon tram os nos objetos, consegu iu -
se, apesar de tudo, c o lo ca r sobre um pouco de p lástico algo que p erm ite
d istingu ir o valor de alguns desses objetos; com o d izer-lhes dessa em oção
que m e tom ou quando, in c lin ado por sobre um a dessas v itr in es vejo,
sobre um a costela fina, ev id en tem en te a coste la de um m am ífe ro -- não
sei bem qual, e não sei se a lguém saberá m e lh or do que eu - do gên ero
cabrito m ontês, uma sé rie de pequenos bastões, dois p rim e ira m en te ,
logo um pequ eno in terva lo , depois c inco, e depo is recom eçan d o . Eis
aqui, dizia, d irigindo-m e a m im m esm o pelo m eu nom e secreto ou público,
eis porque, em suma, Jacques Lacan , tua filh a não é m uda [ta f i l le
n ’est pas m uette\u . Tua filh a é tua filha, porqu e se fôssem os m udos, ela
não seria tua filh a . E v id en tem en te , isso é vantajoso, m esm o v iven d o
em um m undo m uito com parável àquele de um asilo universal de loucos,
conseqü ência não m enos certa da existência de significantes, vocês verão.
Esses bastões, que só aparecem m uito m ais tarde, m uitos m ilhares
de anos m ais tarde, depo is dos hom ens terem sabido fa zer ob jetos com
uma exatidão realista, que no período Aurignaciano25 desenharam bisões,
atrás dos quais, do ponto de vista da arte da p intura, ainda que corram os
nu nca alcançarem os. M as, bem mais, na m esm a época fazia -se , em
osso, bem pequena, a reprodução de algo pe lo qual não pareceria ter
sido necessário fatigar-se, já que é uma reprodução de uma ou tra coisa
em osso, mas m u ito m aior, um crân io de cavalo. Por que re fa zer em
osso, bem pequeno, essa rep rodu ção in igu a lá ve l, quando rea lm en te
im agin am os que naquela época e les tinham outra coisa para fazer?
Q u ero d ize r que, no C u v ie r26, que tenho em m inha casa de cam po,
ten h o gravuras m u ito n o táveis de esqu eletos de fósseis que são fe itas
por artistas renomados, e que não são m elhores que esta pequena redução
de um crânio de cavalo esculpida no osso, que é de uma exatidão anatôm ica
tal, que não é som ente con v in cen te , mas rigorosa .
M u ito bem ! É som en te m u ito m ais tarde que encon tram os o rastro
[í?'ace] de algo que é, sem am bigü idade, s ign ifican te . E esse s ign ifican te
( ' solitário, porque não sonho em dar, por falta de in form ação, um sentido
- 6 0 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
espec ia l ao p equ en o au m en to no in terva lo que há em algum lugar nessa
linh a de bastões. E possível, m as não posso d izer nada sobre isso. O
que qu ero dizer, ao con trá rio , é que aqu i vem os surgir algo sobre o
qual não digo que é a p rim eira aparição, mas, em todo caso, uma aparição
certa de a lgo que vocês v êem que se d istingue com p letam en te do que
pode se desen har com o a d ife ren ça qua litativa . Cada um desses traços
[t r a i ls ] não é, em absoluto, id ên tico àqu ele de seu v iz inh o, mas não é
porqu e são d iferen tes , que fu n c ion am com o d iferen tes , m as em razão
de que a d ife ren ça s ign ifica n te é d istinta de tudo o que se refere à
d iferen ça qualitativa, com o lhes tenho m ostrado com essas pequenas
coisas que acabo de fa zer c ircu lar entre vocês. A d iferença qualitativa
pode, inclusive, no caso, sublinhar a m esm idade signiiicante. Essa mesinidade
é constitu ída assim, ju s tam en te porque o s ign ifican te com o tal serve
para conotar a d iferença em estado puro, e a prova é que, em sua prim eira
aparição, o um, m an ifestam en te designa a m u ltip lic idade atual.
D ito de ou tro m odo, sou caçador, já que estam os transportados ao
n ív e l do M agda len ian o IV. D eus sabe que p egar um an im al não era
m u ito m ais sim ples naqu ela época, do que o que é em nossos dias para
os qu e se cham am B u shm en27, e era um a aven tu ra ! Parece que logo
após ter a tin g ido o an im al, era p rec iso ba ter n e le lon gam en te, para vê
lo sucum bir ao que era o e fe ito do ven en o . M ato um , é um a aventura,
m ato outro, é uma segunda aven tu ra que posso d istingu ir da p rim eira
por certos traços, m as que se assem elha essen c ia lm en te à p rim eira ,
por estar m arcada pela m esm a linh a gera l. N a quarta vez, pode haver
con fusão, o que é que a d istingue da segunda, por exem plo? N a vigésim a,
com o é que m e situarei, ou m esm o, com o é que saberei que acabei
com v in te? O M arquês de Sade, na Rua Paradis, em M arse ille , fech ad o
com seu rapazinho, p roced ia igu a lm en te com os orgasm os28 [coups |,
ainda que diversam ente variados, que ele tinha na com panhia do parceiro,
ou m esm o com alguns com panheiros d iversam ente variados. Esse hom em
notável, cujas relações com o desejo deviam , seguram ente, ser marcadas
por um ardor pouco com u m , não im porta o qu e se pense, m arcava na
cab ece ira de seu le ito , d izem , com pequ enos traços, cada um de seus
orgasm os [coups] - para cham á-los por seu n om e - que fo i levado a
com ete r até sua consum ação nessa espéc ie de retiro probatório singular.
C om certeza , é p rec iso estar-se bem engajado na aventura do desejo,
pe lo m en os de acordo com tudo o que o com um das coisas nos ensina
- 6 1 -
A Identificação
acerca da exp e riên c ia m ais o rd in ária dos m orta is, para sen tir um a tal
necess idade de se dem arcar na sucessão de suas rea lizações sexuais;
todavia, não é im pen sáve l que, em algum as épocas favorec idas da vida,
algo possa tornar-se vago, no pon to exato em que se está no cam po da
n u m eração decim al.
O que é im portan te no en ta lhe , no traço en ta lhado, é algo que não
podem os ign ora r que aqu i surge algum a coisa nova em relação ao que
se pode cham ar de im a n ên c ia de a lgum a ação essencia l, qu a lqu er que
seja. Este ser, que podem os im agin ar a inda d esp rov ido desse m odo de
orien tação , o que e le fa rá no fim de um tem po bastan te curto e lim itado
pela in tu ição , para não se sen tir s im p lesm en te so lidário de um p resen te
sem pre fa c ilm en te renovado, no qual nada lh e p erm ite d iscern ir m ais
o que ex iste com o d iferença no real? N ão basta dizer, já está bem ev iden te
que essa d iferença está na v ivên c ia do su jeito, do m esm o m odo que
não basta dizer, “mas de todo je ito , esse fu lan o não sou e u ! ” . N ão é
s im p lesm en te porque L a p la n ch e tem os cabe los assim , e que eu os
tenha assado, e que e le tenh a os olhos de certa m aneira , e qu e e le não
tenha exa tam en te o m esm o sorriso que eu, que e le é d iferen te . Vocês
d irão: “ L ap lan ch e é L ap lan ch e , e Lacan é L a ca n ” . M as é ju s tam en te aí
que está toda a questão, já que justam ente, na análise coloca-se a questão
de se Lap lan ch e não é o p en sam en to de Lacan , e se Lacan não é o ser
de Lap lan ch e, ou in versam en te . A questão não está su fic ien tem en te
reso lv ida no real. É o s ign ifica n te que d ec id e , é e le que in trodu z a
d iferença com o tal no real, e ju stam ente na m ed ida em que o que im porta
não são d iferen ças qua litativas.
M as então, se esse s ign ifican te , em sua fu n ção de d ife ren ça , é
algo que se apresenta assim sob o m odo do paradoxo de ser ju s tam en te
d ife ren te dessa d iferen ça que se fundaria sobre, ou não, a sem elhança,
de ser ou tra coisa d istin ta e, rep ito , da qual podem os supor, porque
nós os tem os a nosso a lcan ce , que há seres que v ivem e se suportam
muito bem, ignorando com pletam ente esse tipo de diferença que certamente,
por exem plo , não está acessíve l à m inha cadela - e não lhes m ostro
im ed ia tam en te , porque lhes m ostrarei m ais em deta lhes e de um a form a
m ais articu lada - que é bem por isso que, aparen tem en te, a ún ica coisa
que ela não sabe, é que ela m esm a é. E que e la m esm a seja, devem os
procurar sob qual m odo isto está suspenso a essa espéc ie de d istinção
- 6 2 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
particu larm en te m anifesta no traço unário, já que o que o distingue não
é uma iden tidade de sem elhança, é outra coisa.
a lgum a coisa —> S
(s ign o )
a lguém
Q ual é essa outra coisa? É que o s ign ifican te não é um signo. U m
signo - d izem -n os - é rep resen tar algum a coisa para alguém , o alguém
está lá com o suporte do signo. A p rim eira d e fin ição que podem os dar
de um alguém , é a lguém que está acessíve l a um signo. E a form a, a
m ais e lem en tar, se podem os nos exp rim ir assim , da sub jetiv idade. N ão
há ob jeto algum aqui a inda, há ou tra coisa, o signo, que represen ta
esta a lgum a coisa para a lguém . U m s ign ifica n te se d istingue de um
signo, p r im e ira m en te por aqu ilo que ten te i fa ze r vocês sentirem , é que
os s ign ifican tes não m an ifestam senão a p resença , em p rim eiro lugar,
da d ife ren ça com o tal e nada m ais. A p rim e ira coisa, portan to, que ele
im p lica , é que a relação do signo com a coisa está apagada. A qu eles 1
do osso M agda len iano , bem esperto aqu ele que pudesse d izer signo de
quê e les eram . E nós estam os, graças a Deus, bastante avançados desde
o M agda len ian o IV, para qu e vocês se apercebam disso, que para vocês
tem a m esm a espéc ie , sem dúvida, de ev id ên c ia ingênua, p erm itam -
m e d izer-lh es, que A é A , isto é, que com o lhes ensinaram na esco la ,
não podem os som ar trapos com guardanapos, pêras e cenouras, e assim
por diante; é absolutam ente um erro, isto só com eça a se tornar verdadeiro
a pa rtir de um a d e fin ição de ad ição que suponha, asseguro-lhes, um a
quantidade de axiom as já su fic ien te para cobrir toda esta seção do quadro
negro.
N o n íve l em que as coisas são tom adas em nossos dias, na re flexã o
m atem ática , n om eadam en te , para cham á-la por seu nom e, na teoria
dos conjuntos, não poderia, em absoluto, nas operações mais fundam entais
tais com o, por exem plo , de um a reunião, de um a in tersecção , tratar-se
de co lo ca r con d ições m u ito exorb itan tes para a va lidade das operações.
Vocês podem m u ito bem som ar o que qu iserem no n íve l de um certo
reg istro, pela sim ples razão de que o im portan te em um con junto é,
com o o exp rim iu m u ito bem um dos teóricos especu lan do sobre um dos
d itos paradoxos, não se trata nem de objeto, n em de coisa, trata-se de 1
- 6 3 -
A Identificação
m uito exa tam en te , no que se cham a e lem en to dos con juntos. Isto não
está bem m arcado no tex to ao qual faço alusão, por um a cé leb re razão,
é que justam ente essa reflexão sobre o que é um 1 não está bem elaborada,
in c lu s ive por aqu eles que, na teoria m atem á tica m ais m odern a, fa zem
disso, no entanto, o uso m ais c la ro e o m ais m an ifesto .
E ste 1 com o tal, en qu an to m arca da d ife ren ça pura, é a e le que
vam os nos re fe r ir para co lo ca r à prova, em nossa p róxim a reun ião, as
re la ções do su jeito com o s ign ifica n te . Terem os, em p rim e iro lugar,
que d is tingu ir o s ign ifican te do signo, e m ostrar em que sen tido o passo
que é fran qu eado é aqu e le da coisa apagada; os d iversos a pa ga m entos
{effaçons]29, se m e perm item utilizar essa fórmula, pelos quais o sign ificante
vem à luz, nos darão p rec isam en te os m odos cap ita is da m an ifestação
do su jeito. D esde já para in d icar-lh es , reco rdar-lh es as fórm u las sob as
quais eu anotei para vocês, por exem plo , a fu n ção da m eton ím ia , fu nção
S , / (S ) , na m ed ida em que e le está num a cade ia que con tinua em S ’ ,
S ” , S ’ ” , e t c . ,/ (S, S S ” , S ’ ” , ...) = S (- ) s, é isto que deve dar-nos o
e fe ito que cham ei de p ou co sen tido [peu de sens], na m ed ida em que o
signo m enos designa, con ota um certo m odo de aparição do sign ificado
tal, que e le resulta da co locação em função de S, o s ign ificante, num a
cadeia sign ificante. N ós o colocarem os à prova de uma substituição desses
S e S ’ por 1, já que justam en te , essa operação é absolutam ente líc ita , e
vocês o sabem m elh or do que n inguém , vocês, para quem a repetição é
a base de sua experiência ; o que faz o nervo da repetição, do autom atism o
de repetição para a sua experiên cia , não é que seja sem pre a m esm a
coisa o que é interessante, m as sim o porquê isso se repete, isso de que
o sujeito, do ponto de vista de seu con forto b io lóg ico não tem, vocês o
sabem, estrita e verdadeiram en te nenhum a necessidade, para o que d iz
respeito às repetições que nos interessam, isto é, repetições as mais pegajosas,
as m ais enfadonhas, as m ais s in lom a log ên ica s . E para lá que deve d irigir-
se sua atenção, para revelar ali a incidência com o tal da função do significante.
C om o pode produzir-se essa relação típ ica do su jeito constitu ído pela
ex is tên c ia do sign ifican te com o tal, ún ico suporte possível do que é para
nós orig ina lm en te a exp eriên c ia de repetição?
D e te r-m e -e i aqui, ou in d ica re i a vocês com o é p reciso m od ifica r a
fórm u la do signo para d iscern ir, para com p reen d er o que é im portan te
no adven to do s ign ifican te . O s ign ifican te , ao con trá rio do signo, não é
o qu e rep resen ta a lgu m a co isa para a lgu ém , é o que rep resen ta ,
- 6 4 -
Lição de 6 de dezembro de 1961
prec isam en te , o su jeito para um ou tro s ign ifican te . M inha cadela está
em busca de m eus signos e, portan to, ela fa la, com o vocês sabem ; por
que sua fa la não é um a lingu agem ? Porque, ju stam en te , eu sou para
ela algo que pode lhe dar signos, m as que não lh e pode dar o sign ificante.
A d istinção en tre a fa la [p a ro le J, com o ela ex iste no n íve l p ré-verbal, e
a lin gu a gem , con s is te ju s ta m en te n essa e m e rg ê n c ia da fu n ção do
s ign ifica n te .
LIÇÃO V
13 de dezem bro de 1961
M ovaç ecm %azr\ v exacrrov..T(úv ouxtov ev XeyeTai
Aoi0|aoç 8e t o ex jiovaScov CTuyKEinevoy 7t>.r|9oç
EUCLIDES - Elementos, 4, VII.
Essa frase é um a frase que tom ei em prestada do in íc io do sétim o
livro dos E lem en tos de E u c lid es e que m e pareceu , no fin a l das contas,
a m elh or que encon trei para exprim ir, no plano m atem ático, essa função
sobre a qual quis cham ar a a ten ção de vocês da ú ltim a vez, do um , em
nosso prob lem a. N ão quer d ize r que tive que procurá-la, que m e d e i ao
trabalho para encontrar, nos matemáticos, alguma coisa que se relacionasse
com aqu ilo ; os m atem áticos, pe lo m enos um a parte deles, aqu eles que
na sua época estiveram na ponta na exploração de seu campo, ocuparam -
se m u ito com o estatuto da un idade, mas estão lon ge de terem chegado,
todos, a fórm u las igu a lm en te satisfatórias. P a rece-m e que, para alguns,
isso oco rreu em suas d e fin ições : foram em linh a reta no sen tido oposto
àqu ele que convém .
Seja com o for, a legra-m e pensar que a lguém com o Euclides, que, de
qu a lqu er m aneira , em m atéria de m atem ática , só pode ser con siderado
com o de boa cepa, o fe reça esta fórm u la , ju s tam en te ainda m ais no tável
porque articu lada por um geôm etra , do que é a un idade, pois está aí o
sen tido da palavra ^ ovaç , é a un idade no sen tido preciso com que ten te i
designar para vocês na ú ltim a vez, sob a designação daqu ilo que ch am ei
- a inda re torn are i ao porqu e a ch am ei assim - de traço unário. O traço
unário, enqu anto suporte com o tal da d iferença , é exatam en te o sen tido
que aqu i tem jio va ç . N ão pode haver nenhum ou tro sentido, tal com o a
seqü ênc ia do texto lhes m ostrará.
Portan to, i^ovaç quer d ize r essa un idade no sen tido do traço unário
tal com o aqu i in d ico-lh es que e le recorta , que e le ind ica, em sua função,
aquilo a que nós chegamos, no ano passado, no cam po de nossa experiência,
- 6 7 -
A Identificação
a observar no próprio texto de Freud com o o e in z ig e r Z u g , aqu ilo por
m eio do qual cada um dos entes é dito ser um um , com toda a am bigüidade
que traz este en neu tro de e is que quer d ize r um em grego, sendo
p rec isam en te o que se pode em pregar, tanto em grego com o em francês,
para designar a função da un idade enqu an to e la é o fa to r de coe rên c ia
pe lo qual a lgum a coisa se d is tingu e daqu ilo que a cerca , faz um todo,
um 1 no sen tido un itário da função . Portanto, ^ovocç ó por in term éd io
da un idade que cada um desses seres vem a ser d ito um . O adven to , 1 1 0
dizer, dessa un idade com o ca racterís tica de cada um dos en tes é aqui
designado, e le vem do uso da p.ovaç, que não é nada m ais que o traço
ún ico. Essa coisa m erec ia ser rea lçada ju s tam en te sob a p lum a de um
geôm etra , isto é, de a lguém que se situa na m atem ática de um a m aneira
tal, ap aren tem en te , que para e le , no m ín im o, d evem os d ize r qu e a
in tu ição con servará todo seu va lo r orig inal. E verdade que não se trata
de um geôm etra qualquer, dado que, em suma, podem os d istingu i-lo
na h istória da geom etria com o aqu ele que, pela p rim eira vez, in troduziu ,
com o d even do absolu tam en te dom iná-la , a ex igên c ia da dem onstração
sobre 0 que se pode cham ar de experiên c ia , de fam ilia rid ad e do espaço.
T erm in o a tradução da citação : “ ... que 0 nú m ero, e le , nada m ais é que
essa esp éc ie de m u ltip lic id a de que surge p rec isam en te pela in trodu ção
das u n ida des” , das m ônadas, no sen tido com o são en ten d idas no texto
de E uclides.
Se iden tifico essa função do traço unário, se faço dela a figura desvelada,
daqu ele e in z ig e r Z u g da id en tifica ção , on de fom os levados por nosso
cam in h o no ano passado, apon tem os aqui, antes de avançarm os mais,
e para qu e vocês saibam que o con ta to não é nunca perd ido com aqu ilo
que é o cam po m ais d ireto de nossa re fe rên c ia técn ica e teórica a Freud,
apon tem os que trata-se da id en tifica ção da segunda espécie , página
I 17, vo lu m e 13 das G esam m elte W erke de Freud.
É exa ta m en te na con c lu são da d e fin içã o da segun da e sp éc ie de
id en tificação , que e le cham a de regressiva, tanto quanto está ligada a
um certo abandono do ob jeto que e le d e fin e com o o ob jeto am ado [que
se designa h u m oris ticam en te , no desenho de Toep ffer, com um traço
de união|. Esse ob jeto am ado vai da m u lher [e le ita ] aos livros raros
|“ F il" , com o d iz ia a lguém de m eu m eio , com algum a in d ign ação pela
m inha h ib lio filia ] É sem pre, em algum grau, ligado ao abandono ou à
perda desse ob jeto que se produz, nos d iz Freud, essa espéc ie de estado
- 6 8 -
Lição de 13 de dezembro de 196I
regressivo de onde surge essa id en tificação que e le sublinha, com algum a
coisa que é para- nós fon te de adm iração, com o cada vez que 0 descobridor
designa um traço garan tido de sua exp e riên c ia do qual pareceria , à
prim eira vista, que nada precisa, que se trata aí de um caráter contingente.
Da m esm a fo rm a não 0 ju s tifica , senão por sua exp eriên c ia , que nessa
espéc ie de id en tifica çã o em que 0 eu cop ia na situação, ora 0 ob jeto
não am ado, ora o objeto am ado, mas que nos dois casos essa iden tificação
é parcia l, höchst besch ränk te , a ltam en te lim itada , m as que é acen tu ado
no sen tido de estre iteza , de en co lh im en to , que é n u r e in en e in z ige n
Z u g , apenas um traço ún ico da pessoa ob jetalizada, que é com o o ersatz,
tom ado em prestado da palavra a lem ã.
Pode, portanto, parecer-lhes que abordar essa identificação pela segunda
esp éc ie é tam bém m e besch rä n ken , lim ita r-m e, res tr in g ir o a lcan ce de
m inha abordagem , pois há a outra , a id en tifica çã o da p rim eira espéc ie ,
aqu ela s in gu larm en te am b iva len te que se faz sobre 0 fu n do da im agem
da d evoração assim ilan te . E que relação tem e la com a terce ira , aquela
que com eça im ed ia tam en te depois desse ponto que designo no parágrafo
freu d ian o, a id en tific a çã o com o outro, por in te rm éd io do desejo, a
id en tific a çã o que con h ecem os bem , que é h istérica , m as ju s tam en te
que lhes en s in e i que não se pod ia d istingu ir bem - acho que vocês
devem se dar con ta disso su fic ien tem en te - que a partir do m om en to
em que se tem estru tu rado 0 dese jo (e não ve jo n in gu ém que o tenha
fe ito em ou tro lugar senão aqu i e antes que isso se fizesse aqu i) com o
supondo em sua subjacência, exatam en te, no m ín im o, toda a articu lação
que tem os dado das re la ções do su jeito p rec isam en te com a cade ia
s ign ifican te , já que essa relação m od ifica p ro fu n dam en te a estru tura
de toda re lação do su jeito com cada um a de suas necessidades?
Essa parc ia lidade da abordagem , essa en trada - se posso d izer assim
- enviesada den tro do prob lem a, tenh o o sen tim en to de que, ao designá-
la a vocês, con vém que eu a le g it im e hoje, e espero poder fa zê -lo bem
depressa para m e fa ze r en ten d e r sem m uitos desvios, lem brando-lhes
um p rin c íp io de m étodo para nós: que, visto nosso lugar, nossa função ,
0 que tem os de fa ze r em nossa abordagem in ic ia l30, devem os desconfiar,
d igam os - e le vem isso 0 m ais lon ge que qu iserem - do gên ero e m esm o
da classe. Pode lhes parecer singu lar que a lguém que para vocês acentua
a p regn ân cia de nossa articu lação dos fen ôm en os qu e nos con cern em ,
da fu n ção da linguagem , se d istinga aqui por um m odo de relação que
- 6 9 -
ü í í < <
<' 1 i
Mtm
tintn
'
r vn iladeiram en te fu n dam en ta l no cam po da lóg ica . Com o indicar, fa la r
■ Ir uma lóg ica que deve, nu m p rim e iro tem po de sua partida, m arcar a
<l(•:.<o n fia iiça , que en ten do co lo ca r com o in te iram en te orig inal, da noção
de ( lasse? E p rec isam en te em que se or ig in a liza , se d istingue o cam po
que (rn tam os articu lar aqu i. N ão ó nen hu m p recon ce ito de p r in c íp io
que m e leva ali, é a n ecessidade m esm a de nosso ob jeto que nos em purra
.ui que se desenvolve efetivam ente no curso dos anos, segmento por segmento,
uma articu lação lóg ica que fa z m ais que sugerir, que vai cada ve z m ais
perto p recisam en te, nesse ano, espero - de destacar os algoritm os que
me perm item cham ar de lógica esse capítulo que terem os de acrescentar às
funções exercidas pela linguagem num certo cam po do real, aquele do qual
nós outros, seres falantes, somos os condutores. D esconfiem os, portanto, ao
m áxim o de toda Koivcovia xaiu yevucou, para em pregar um term o platônico,
de tudo o que é a figura de com unidade em qualquer gênero e, m ais
especialmente, naqueles que são para nós os mais originais. As três identificações
não form am provavelm ente uma classe. Se elas podem , todavia, levar o
m esm o nom e que aí traz um a sombra de conceito; cabe-nos também, sem
dúvida, dar conta disso. Se operarm os com exatidão, isso não parecerá uma
tarefa acim a das nossas forças.
De fato, sabemos desde já que é no n ível do particu lar que sem pre
surge o que para nós é fu nção universal, e não tem os m u ito por que nos
surpreenderm os com isso no n íve l do cam po em que nos m ovem os, posto
que, no que con cern e à fu n ção da iden tificação , sabem os desde já - já
trabalham os bastante ju n tos para sabê-lo - o sen tido dessa fórm u la , que
o que se passa, se passa essencia lm ente no nível da estrutura. E a estrutura,
será preciso lem brá-lo, e c re io que justam en te hoje, antes de dar um
passo m ais adiante, será preciso que eu o lem bre, que é o que tem os
in trodu zido p rin c ipa lm en te com o especificação, registro do s im bólico?
Se o d istingu im os do im ag in á r io e do real, esse registro s im bó lico -
acho d ever in d ica r tam bém tudo o que poderia h aver ali de hes itação
ein deixar à m argem aquilo em relação ao qual não vi n inguém se inqu ietar
abertam en te , razão a m ais para dissipar toda a am b igü idade sobre isso
não se trata de uma d e fin içã o on to lóg ica , não estão aqui os cam pos
do ser que eu separo. Se, a p a rtir de um certo m om en to , e ju s tam en te
a q u r lr do n asc im en to desses sem inários, a c red ite i d eve r d e ixar en trar
«■ui jo g o essa tríade do s im bólico , do im agin ário e do real, é na m ed ida
r ui i|iir esse terce iro e lem en to , que até aí não era abso lu tam en te, em
- 7 0 -
Lição de 13 de dezembro de 1961
nossa exp eriên c ia , su fic ien tem en te d iscern ido com o tal, é exatam en te
aos m eu s olhos o que é con stitu ído exa tam en te pelo fato da reve lação
de um cam po de exp eriên c ia . E, para su prim ir toda a am bigüidade
desse term o, trata-se da experiên c ia freudiana, eu diria , de um cam po
de experiên cia . Q uero d izer que não se trata de E rleb n is , trata-se de um
cam po con stitu ído de um a certa m aneira, até um certo grau por algum
artifíc io , aqu ele que inaugura a técn ica psicanalítica com o tal, a face
com p lem en ta r da descoberta freudiana, com p lem en ta r com o a fren te o
é ao avesso, rea lm en te colado. O que é revelado p rim eiro nesse cam po,
vocês sabem bem , natura lm en te, que fo i a função do sím bolo e ao m esm o
tem po o sim bólico. D esde o in íc io esses term os tiveram o e fe ito fascinante,
sedutor, cativan te que vocês sabem , no con junto do cam po da cultura,
esse e fe ito de choque ao qual, vocês sabem, quase nenhum pensador, e
m esm o den tre os m ais hostis, pôde se subtrair.
É prec iso d ize r que é tam bém um fato de exp e riên c ia que perdem os,
do tem po da reve lação e de sua corre lação com a fu n ção do sím bolo,
nós p erd em os seu frescor, se se pode dizer, esse frescor corre la tivo ao
qual ch am ei de e fe ito de choque, de surpresa, com o propriam ente o
defin iu o próprio Freud, com o característica dessa em ergência das relações
do in con sc ien te ; essas espécies de flash sobre a im agem , característicos
dessa época, por m eio dos quais, se se pode dizer, apareciam novos m odos
de in clusão dos seres im aginários, por onde sub itam ente algum a coisa
guiava seus sentidos, falando propriam ente, se esclarecia por uma apreensão
que não poderíam os m elh or qu a lificar senão designando-os pelo term o
B e g r if f , apreensão pegajosa, ali on de os planos colam , função da fixação,
de não sei qual H a ftu n g , tão característica de nossa relação [abordagem ]
no cam po im aginário, ao m esm o tem po evocando uma dimensão da gênese
on de as coisas se d ilatam m ais do que evoluem ; certa am bigüidade que
p erm itir ia deixar o esquem a evolução com o presente, com o im plicado,
eu direi, na tu ra lm en te no cam po de nossas descobertas.
C om o em tudo isso podem os d izer que, no fina l das contas, o que
ca rac teriza que esse tem po m orto - in d icado por todas as espécies de
teóricos e de práticos na evo lu ção da doutrina, sob ind icações e rubricas
d iversas - se tenha p rodu zido? C om o essa espéc ie de fracasso surgiu, o
qua l nos im põe o que é p rop riam en te nosso ob jeto aqui, aqu ele on de
tento lhes guiar, retom ar toda nossa dialética sobre princípios mais seguros?
E exa tam en te que em algum lugar nós devem os designar a fon te dessa
- 7 1 -
A Identificação
esp éc ie de extrav io que fa z com que, em sum a, possam os d ize r que, ao
cabo de certo tem po, esses dados só fica vam vivos para nós para nos
rem e te r ao tem po de seu su rg im en to , e isso m ais a inda sobre o p lano
da e ficá c ia em nossa técn ica , no e fe ito de nossas in terp re ta ções , em
sua parte e fica z . Por qu e as im agos descobertas por nós, de a lgum a
m an eira , se bana liza ram ? Será apenas por um a espéc ie de e fe ito de
fam iliaridade? Aprendem os a viver com esses fantasmas, nos avizinham os
ao vam piro, ao polvo, resp iram os no espaço do ven tre m atern o ao m enos
por m etá fora . As revistas em quadrinhos tam bém , com um certo estilo,
o d esen h o hu m orís tico , fa zem -n os v iv er essas im agen s com o n u n ca se
viu nu m a ou tra época , ve icu lan d o as p róprias im agen s p rim ord ia is da
reve lação an a lítica ao fa ze r delas um ob jeto de d ivertim en to corren te .
N o horizonte, o relógio m ole e a função do grande masturbador, guardados
nas im agen s de D ali. Será apenas para isso que a nossa com p etên c ia
p a rece fa ze r o uso in s tru m en ta l dessas im agen s com o reve ladoras?
S egu ram en te que não, pois projetadas, se posso dizer, aqui nas cria ções
de arte, e las guardam a in da sua força , que ch am are i não apenas de
p ercu c ien te , m as de crít ica . E las guardam algum a coisa de seu ca rá ter
de irr isão ou de a larm e. Mas, não é disso que se trata, em nossa relação
com aqu ele que vem para nós designá-los na atu alidade do tra tam en to?
Aqu i, não nos resta m ais com o desígn io de nossa ação senão o d eve r de
fa ze r bem , sendo o fa ze r r ir apenas um cam in h o m u ito ocas ion a l e
lim itado em seu em prego . E a li o que nós v im os acon tecer não é nada
m ais que um e fe ito que podem os cham ar de reca ída ou de degradação,
isto é, que aquelas im agen s, nós as v im os s im p lesm en te retorn ar àqu ilo
que se designou m u ito bem sob o tipo de arquétipo, isto é, de ve lh o
truque da loja dos acessórios em uso. E um a trad ição que se recon h eceu
sob o títu lo de a lqu im ia ou de gnose, m as que estava ligada ju s tam en te
a uma confusão muito antiga e que era aquela onde tinha ficado atravancado
o cam po do p en sam en to hu m ano durante sécu los.
Pode parecer que m e d istingo, ou que lhes co lo co em guarda con tra
um m odo de com preensão de nossa re ferên c ia que seja aquele da Gestalt.
N ão é exato. Estou lon ge de subestim ar o que trouxe, num m om en to
da h is tó ria do pen sam en to , a fu n ção da G estalt, m as para m e expressar
rapidam ente, e porque aí faro essa espécie de varredura de nosso horizonte
que é p reciso que eu refaça de tem pos em tem pos para ev itar ju stam en te
que renasçam sem pre as : ,mas con fusões, in trodu zire i, para m e fa ze r
- 7 2 -
Lição de 13 de dezembro de 1961
en tender, essa d istinção : o que con stitu i o n ervo de algum as produções
desse m odo de exp lo ra r o cam po da Gestalt, o que cham arei de G esta ll
crista lográfica, aquela que acentua esses pontos de junção, de parentesco
en tre as fo rm a ções natura is e as organ izações estru turais, à m edida
que eles surgem e são defin íveis apenas a partir da combinatória significante,
é aqu ela que faz disso a fo rça subjetiva, a e ficá c ia desse ponto on to lógico
on de nos fo i d e ixada a lgum a coisa da qual tem os m uita necessidade,
qu e é, a saber, se há a lgum a relação que ju s tific a essa in trodu ção ao
m odo de relha do e fe ito do sign ificante no real. Mas isso não nos concerne,
porqu e esse não é o cam po qu e nos ocupa; nós não estam os aqu i para
ju lga r o grau de natura l da fís ica m odern a, a inda que e le possa nos
interessar. É o que faço de tem pos em tem pos, d ian te de vocês, algum as
vezes, ao m ostrar que h is to ricam en te é ju s tam en te na m ed ida em que
e la n eg lig en c io u in te ira m en te o natural das coisas que a fís ica com eçou
a en trar n o real.
A G esta lt con tra a qual co loco -lh es em guarda é uma G estalt que
vocês o observarão ao con trá rio daqu ilo a que se sen tem ligados os
in iciadores da teoria da Gestalt - dá uma referência puram ente confusional
à fu n ção da Gestalt, qu e é aqu ela que cham o de Gestalt an tropom órfica ,
aquela que, por algum a via que seja, con funde o que traz nossa experiência
com a ve lh a re fe rên c ia an a lítica do m acrocosm o e do m icrocosm o, do
h om em un iversa l, reg istros bem curtos no fina l das contas, e que a
an álise, na m ed id a em que e la acred itou se en con tra r aí, não fa z senão
m ostrar um a ve z m ais a re la tiva in fecu n d id ad e . Isso não quer d izer
que as im agen s que evoqu e i há pouco, h u m oris ticam en te , não tenham
seu peso, nem que elas não estejam aí para que nós nos sirvam os delas
a inda. Para nós m esm os d eve ser in d ica tiva a m aneira que há m u ito
tem po p re fe rim os d e ixar na som bra. N ão se fa la m ais, absolu tam ente,
senão a um a certa d istância. E las estão ali, para em pregar uma m etáfora
freud iana, com o um a dessas som bras que, no cam po dos in fern os , estão
prontas a surgir. N ós não podem os, verdade iram en te, rean im á-las; não
lhes dem os sem dúvida bastante sangue a beber. Mas afinal, tanto melhor,
não som os necrom antes .
E ju s tam en te aqu i qu e se in sere essa cham ada caracterís tica do que
lhes ensino , que está aí para m udar in te iram en te a face das coisas, a
saber, de m ostrar que o con tunden te do que trazia a descoberta freudiana
- 7 3 -
A Identificação
não con sistia nesse re to rn o dos velhos fantasm as, m as num a re lação
outra. Su b itam en te, ho je de m anhã en con tre i, do ano de 1946, um
desses p equ en os P ro p ós itos sobre a ca u sa lida d e p s íq u ica p e los quais
eu fa z ia a m inha en trada no c írcu lo ps iqu iátrico , im ed ia tam en te depo is
da gu erra . E aparece nesse p equ en o texto que, ve jam , pub licado nas
en trev istas de B onneva l, num a espéc ie de aposto ou de in c id ên c ia no
in íc io de um m esm o parágrafo conclusivo, c in co linhas antes de term inar
o qu e eu tin ha a d izer sobre a im ago: “m ais in a cess íve l a nossos olhos
fe itos para os signos do cam b ista ” , pouco im porta a seqü ência , “qu e os
do caçador do deserto” , digo, que só evoco isso porque nós o encon tram os
da ú ltim a vez, se m e lem bro bem , “ sabe ve r o traço im p ercep tíve l, o
passo da gaze la sobre o roch edo, um dia se reve la rão os aspectos da
im ago ” . N o m om ento, o acen to é para ser co locado no in íc io do parágrafo,
“m ais inacessível a nossos o lh os ...” O que são esses “ signos do cam bista” ?
Q uais signos? E qual m udança? Ou qual cam bista? Esses signos são,
p rec isam en te , o que lhes con vo qu e i a a rticu lar com o os s ign ifican tes ,
isto é, esses signos en qu an to e les operam p rop riam en te pela v irtu de
de sua associa tiv idade na cadeia , de sua com u ta tiv idade , da fu n ção de
perm u tação tom ada com o tal. E is aí on de está a fu n ção do cam bista , a
introdução no real de uma mudança que não é absolutamente de m ovimento,
n em de nascim en to , n em de corru pção nem de todas as ca tegorias da
m udança que desenha uma tradição que podem os cham ar de aristotélica,
aqu ela do con h ec im en to com o tal, m as de um a ou tra d im ensão, on de
a m udança de que se trata é defin ida com o tal na com binatória topológica
qu e e la nos p erm ite d e fin ir com o em ergên cia desse fato , pe lo fa to de
estru tura, com o degradação na ocasião, a saber, qu eda nesse cam po da
estru tu ra e retorno à captura da im agem natural.
Em sum a, desenha-se com o tal o que é apenas, a fina l, o quadro
fu n c io n a n te do pensam en to, d irão vocês. E por que? N ão esqueçam os
que essa palavra pensam en to está presen te, acen tu ada desde a or igem
por Freud com o, sem dúvida, não podendo ser ou tra senão o que e la é,
para designar o que se passa no inconscien te. Porque não era certam en te
a n ecess id ad e de conservar o p riv ilég io do pen sam en to com o tal, eu
não sei qua l p rim azia do esp ír ito que pod ia aqu i gu iar Freud. Bem
lon ge disso, se e le pudesse ev ita r esse term o, e le o teria fe ito . E o que
é que isso qu er d izer nesse n íve l? E por que é que esse ano a c red ite i
d eve r partir, não do p róprio P latão, para não fa la r absolu tam en te dos
- 7 4 -
Lição de 13 de dezembro de 1961
outros, m as tam pou co de Kant, n em de H ege l, m as de D escartes? É
justam ente para designar que o que está em questão, onde está o problem a
do in co n sc ien te , para nós, é a au tonom ia do su jeito, tanto quanto e la 6
não apenas preservada, que e la é sublinhada com o nunca fo i em nosso
cam po; e p rec isam en te por esse paradoxo, pois esses cam inhos que aí
descobrim os não são absolutam ente concebíveis se, falando propriam ente,
não fosse o su je ito qu e é o gu ia, e de m an eira tan to m ais segura quanto
o é sem saber, sem ser cú m p lice disso, se posso dizer, conscius , porque
e le não pode progred ir em d ireção a nada, se não fo r se loca lizan do
nisso só depois, pois nada é por e le engendrado, senão, ju s tam en te , à
m ed ida de um d esco n h ec im en to in ic ia l. É isso que d istingue o cam po
do in con sc ien te , tal com o é reve lado por Freud. É im possíve l fo rm a lizá -
lo, form u lá -lo , se não vem os a todo instante que e le só é con ceb íve l ao
ve r preservada, e da m an e ira m ais ev id en te e sensível, essa au tonom ia
do su jeito, quero dizer, isso pe lo que o su jeito em nen hu m caso p od eria
ser red u z ido a um sonho do m undo.
Dessa perm anência do sujeito lhes mostro a referência, e não a presença,
pois essa presença não poderá ser cingida senão em função dessa referência.
Eu a d em on stre i, d es ign e i da ú ltim a vez, em nosso traço unário , nessa
fu n ção do bastão com o figu ra do um enqu anto e le não é senão traço
d istin tivo , traço ju s tam en te tanto m ais d is tin tivo quanto está apagado
quase tudo o que e le d istingue, exceto ser um traço, acen tu ando esse
fa to de que m ais e le é sem elh an te , m ais e le fu n c ion a , eu não d igo
absolu tam en te com o signo, mas com o suporte da d iferença , e isso sendo
apenas um a in trodu ção ao re levo dessa d im en são que tento pon tuar
d ian te de vocês. Pois na ve rd ad e não ex iste “ m a is ” ; mas, não há id ea l
da s im ilitu de, id ea l do apagam en to dos traços. Esse apagam ento das
d istinções qualitativas só está aí para nos p erm itir ap reen der o paradoxo
da a lte r idade rad ica l d esignada pelo traço e, a fina l, é pouco im portan te
que cada um dos traços se pareça com o outro. E alhures que res ide o
que ch am ei, há pouco, de fu n ção de a lter idade. E, term in an do da
ú ltim a ve z m eu d iscu rso, in d iq u e i qual era sua função , aquela que
garan te à rep e tição ju s tam en te aqu ilo que, por essa função , apenas
por ela, essa rep etição escapa; à id en tidade de seu ete rn o retorno sob
a figu ra do caçador in sc reven d o o nú m ero de que? De traços por onde
e le atingiu sua presa, ou do d iv ino M arquês que nos m ostra que, m esm o
no auge de seu desejo, e le tom a m uito cu idado de con tar esses golpes,
- 7 5 -
A Identificação
e que está aí um a d im en são essencia l, posto que e la jam ais abandona a
n ecess id ad e que ela im p lica em quase n en h u m a de nossas fu nções.
C on ta r os golpes, o traço que conta, o que é isso? Será que ainda
aqu i vocês acom panham bem ? Apreendam bem o que pretendo designar.
O que p reten do designar é isso que é fa c ilm en te esqu ec ido em seu
p rin c íp io , é que isso com que lidam os no au tom atism o de rep e tição é
isso, um c ic lo , de a lgum a m an eira tão am putado, tão d e fo rm ado, tão
corro íd o , que nós o d e fin íam os desde então que e le é c ic lo e que e le
com p orta retorno a um pon to fina l, nós podem os con ceb ê-lo sobre o
m od e lo da necessidade, da satisfação. Esse c ic lo se repete ; que im porta
que seja rea lm en te o m esm o, ou que e le ap resen te m ín im as d iferen ças ,
esses m ín im as d iferenças não serão m an ifes tam en te fe itas senão para
con servá -lo em sua fu n ção de c ic lo com o se re fe r in d o a a lgum a coisa
de d e fin ív e l com o a um certo tipo pe lo qual, ju s tam en te , todos os c ic los
qu e o p re c ed e ra m , na m ed id a em que se rep ro d u zem , para fa la r
propriam ente, se identificam no instante com o sendo os mesmos. Tom em os
com o exem p lo do que estou lhes d izendo, o c ic lo da d igestão. Cada ve z
que fa zem os um a, repetim os a digestão. É a isso que nos re fe r im os
quando fa lam os, na análise, de au tom atism o de repetição? Será que é
em v irtu d e de um au tom atism o de rep e tição que fa zem os d igestões
que são sen s ive lm en te sem pre a m esm a d igestão? N ão lhes d e ixa re i a
abertura , de d ize r que até a í é um sofism a. Pode haver, na tu ra lm en te ,
in c id en tes nessa d igestão que sejam devidos a lem branças de antigas
d igestões que foram perturbadas, e fe itos de desgosto, de náusea, ligados
a tal ou qua l ligação con tin gen te de tal a lim en to com tal c ircun stância .
Isso não nos fará transpor, con tudo, um passo a m ais na d istância a
cob rir en tre o retorno do c ic lo e a fu nção do au tom atism o de repetição .
Pois o que quer d izer o au tom atism o de rep e tição enqu an to tem os a
ver com e le , é isso, é que se um c ic lo d e te rm in a d o que fo i apenas
aqu e le a li - é aqu i que se p e rfila a som bra do “tra u m a ” , que eu não
co lo co aqu i senão en tre aspas, porque não é seu e fe ito traum ático que
o retém , m as apenas sua u n ic idade - aqu ele , portan to, que se designa
por um certo s ign ifican te que pode sozinho suportar o que aprenderem os
a segu ir a d e fin ir com o uma letra, instância da letra no in con sc ien te ,
esse A m aiúscu lo, o A in ic ia l enqu anto é n u m erável, que aqu ele c ic lo
aí, e não um outro, equ iva le a um certo s ign ifica n te ; é nesse sen tido
Lição de 13 de dezembro de 1961
que o com p ortam en to se rep e te para fa ze r ressu rgir esse s ign ifican te
que é, com o tal, o n ú m ero que e le funda.
Se para nós a rep e tição s in tom ática tem um sen tido para o qual lhes
d ir ijo n ovam en te , re flitam sobre o a lcan ce de seu p róprio pensam ento.
Q uando vocês fa larem da in c id ên c ia repetitiva na form ação sintom ática,
é na m ed id a em que o que se rep e te está lá; não apenas para p reen ch er
a fu n ção na tu ra l do signo, que é de rep resen tar um a coisa que seria
aqu i a tu alizada, m as para p resen tifica r com o tal o s ign ifican te que essa
ação se tornou. D igo que é enquanto o que está recalcado é um significante,
que o c ic lo de com portam en to rea l se apresen ta em seu lugar. É aqui,
posto que eu m e im pus dar um lim ite de hora prec iso e côm odo para
um certo n ú m ero den tre vocês, quanto ao que devo expor d ian te de
vocês, que eu pararei. O que se im põe a tudo isso de con firm ação e de
com en tá rios con tem com igo para lhos dar, a seguir, da m aneira a m ais
c o n ven ien tem en te articu lada, por m ais espantoso que tenha parec ido
a vocês o abrupto do m om en to em que expus tudo isso.
- 7 7 -
■
■
LIÇÃO VI
2 0 de dezembro de 1961
Da ú ltim a vez de ixe i-lh es nessa observação fe ita para dar o sen tim ento
de que m eu d iscurso não p erd e suas am arras, a saber, a im portân c ia
para nós nessa pesquisa, esse ano, liga-se ao fato de que o paradoxo do
a u to m a tism o de r e p e t iç ã o é qu e vo c ê s ve ja m su rg ir um c ic lo de
com p ortam en to in scr itíve l, com o tal, nos term os de um a reso lução de
tensão do par, portanto, n ecessidade-satisfação, e que, todavia, qua lquer
que seja a fu n ção im p licada nesse c ic lo, por m ais carnal que vocês a
suponham , não é errado d ize r que o que e la qu er dizer, enqu anto ,
autom atism o de repetição é que ela está aí para fazer surgir, para lembrar,
para fa ze r in s is tir a lgum a coisa que não é nada m ais, em sua essência ,
do que um s ign ifican te , d es ignáve l por sua função , e espec ia lm en te
sob essa face , que e la in trodu z no c ic lo de suas repetições , sem pre as
m esm as em sua essên cia e, portan to, con ce rn en te a a lgum a coisa que
é, sem pre, a m esm a coisa, a d iferen ça , a d istinção , a un icidade. Q ue é
porque a lgum a coisa, na or igem , se passou, que é todo o sistem a do
traum a, a saber, que um a ve z que se produziu algo que tom ou desde
en tão a fo rm a A, na repetição , o com portam en to , por m ais com p lexo e
por m ais engajado que vocês o suponham na in d iv idu a lidade an im al,
está aí para fa ze r ressurgir esse signo A. D igam os que o com portam en to,
desde então, é exp rim íve l com o o com portam en to n ú m ero tal. É, esse
com p ortam en to n ú m ero ta l, d igam os, o acesso h is térico , por exem plo .
Um a das form as, em um determ inado sujeito, são seus acessos histéricos.
É isso que sai com o com portam en to n ú m ero ta l. Apenas o nú m ero está
p erd ido para o sujeito. É ju s tam en te enqu an to o nú m ero está perd ido
que ele sai, esse com portam ento, mascarado nessa função de fazer ressurgir
- 7 9 -
A Identificação
o n ú m ero atrás do que se cham ará de psico log ia de seu acesso, por trás
das m otivações aparen tes. E vocês sabem que sobre esse pon to não será
d if íc il para n in gu ém lh e en con tra r o ar de um a razão: é p róp rio da
psico log ia fa ze r sem pre aparecer uma som bra de m otivação. E, portanto,
n esse abraço estru tura l de a lgum a coisa inser ida rad ica lm en te nesta
in d iv id u a lid ad e vita l com esta fu nção s ign ifican te , que nós estam os na
exp e riên c ia analítica. V ors te llu n gs -rep rã sen ta n z : é isto que é reca lcado ,
é o n ú m ero perd ido do com p ortam en to tal.
O n de está o su jeito a í d en tro? E le está na in d iv id u a lid ad e rad ica l,
real? N o paciente puro desta captura? N o organism o desde então aspirado
pelos e fe itos do isso fa la , p e lo fa to de que um ser v ivo en tre os dem ais
fo i cham ado a se tornar o que o Sen hor H e id eg g e r cham a de “ o pastor
do s e r ” , tendo sido preso nos m ecan ism os do s ign ifican te . N o ou tro
extrem o, é e le id en tific á ve l ao p róprio jo g o do s ign ifican te? E o su je ito
é apenas o sujeito do discurso, arrancado de algum a form a a sua im anência
vita l, con den ado a sobrevoá-la , a v iver nessa esp éc ie de m iragem que
decorre dessa redup licação que faz com que não apenas e le fa le de tudo
o que e le vive, mas que o v iven te o v iva fa lan do-o e que o que e le v ive se
in screva num enoç, uma saga tecida ao lon go de seu próprio ato? Nosso
esforço, esse ano, se e le tem um sentido, é ju s tam en te o de m ostrar
com o se articu la a fu nção do sujeito, em algum lugar que não seja em
um ou ou tro desses pólos, jogan do entre os dois. É, afinal, im agino, o
que a cogitação de vocês - pe lo m enos gosto de pensar assim - depois
desses poucos anos de sem inários, pode dar-lhes, com o ponto de referência
pelo m enos im p lic itam en te , a todo instante. Será que basta saber que a
função do sujeito está no entre-dois, entre os e feitos idealizantes da função
sign ifican te e essa im an ên c ia vita l que vocês con fu nd iriam , penso, ainda,
de bom grado, apesar de m inhas advertências, com a função da pulsão?
E ju stam en te nisso que estam os engajados e que tentam os levar m ais
adiante, e é por isso que acred ite i dever com eçar pelo “ cog ito ” cartesiano,
para tornar sensível o cam po que é aquele no qual tentamos dar articulações
mais precisas con cern en tes à iden tificação.
Eu lh es fa le i, há alguns anos, do P equ en o H ans. Há, na h is tó ria do
P equ en o H ans - acho que vocês guardaram a lem brança de a lgum a
form a - , a h istória do sonho ao qual se poderia ap licar o títu lo da g ira fa
am arrotada, zerw u tze lt G ira ffe . Esse verbo, zerw u tze ln , que se traduz
por amarrotar, não é um verbo m uito corrente do léx ico germ ânico com um .
- 8 0 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
P ode-se en con tra r w u rze ln , m as não zerw u tze ln . Z e rw u tze ln quer d ize r
fa ze r um a bola. Está in d icad o , no texto do sonho da gira fa am arrotada,
que é um a g ira fa que está ali, ao lado da grande g ira fa v iva um a gira fa
de papel, e que com o tal pode se transform ar nu m a bola. Vocês sabem
todo o sim bolism o que se desenrola, ao longo dessa observação, da relação
en tre a g ira fa e a g ira fin h a , g ira fa am arrotada nu m a de suas faces,
con ceb íve l sob a ou tra com o a g ira fa reduzida , com o a gira fa segunda,
com o a g ira fa que pode s im bo liza r um bocado de coisas. Se a grande
g ira fa s im bo liza a m ãe, a ou tra g ira fa s im bo liza a filha, e a re la ção do
P equ en o H an s com a g ira fa ; no pon to em que está n aqu ele m om en to
de sua an álise, ten derá de bom grado a encarnar-se no jo g o v ivo das
riva lidades fam ilia res . L em b ro -m e do espanto - e le não oco rre r ia m ais
hoje - que provoquei então, ao designar naquele m om ento, ali, na observação
do p equ en o Hans, e com o tal, a d im ensão do sim bó lico , em ato, nas
produções psíquicas do jo vem sujeito a propósito dessa girafa am arrotada.
O que é que poderia haver, ali, de m ais in d ica tivo da d iferen ça rad ica l
do s im bó lico com o tal? Sen ão ver aparecer na p rodução - ce rta m en te
sobre esse pon to não sugerido, pois não há traço nesse m om en to aí de
um a a rticu lação sem elh a n te con cern en te à fu n ção in d ire ta do sím bolo
- na observação , a lgum a co isa que encarne, verd ad e iram en te , para nós
e nos dê a im agem da aparição do sim bólico com o tal na d ialética psíquica.
“N a verdade , on de você pôde en con trar isso?” , d iz ia -m e um de vocês
g en tilm en te após aqu ela sessão. A coisa su rp reen den te não é qu e eu
tenha visto isso ali, pois isso d ificilm ente pode ser indicado mais cruam ente
no p róprio m ateria l. É que, sobre isso, pode-se d izer que o p róprio Freud
não pára, quero dizer, não põe todo o rea lce que con vém sobre esse
fen ôm en o , sobre o que o m ateria liza , se se pode dizer, a nossos olhos.
É exatam ente o que prova o caráter essencial destas delineações estruturais,
é que, ao não fazê-las , ao não ind icá-las, ao não articu lá-las com toda
a en erg ia da qual som os capazes, há uma certa face, uma certa d im ensão
dos próp rios fen ôm en os que estam os nos con den ando de a lgum a fo rm a
a desconhecer.
N ão vou, nesta oportu n idade, re fa zer para vocês a articu lação daqu ilo
de qu e se trata, do que está em jo go no caso do P equ en o H ans. As
coisas fo ram bastan te pub licadas, e o bastante para que vocês possam
se r e fe r ir a elas. M as a fu n ção com o tal, nesse m om en to crítico , aqu ele
d e term in ad o por sua suspensão rad ica l ao desejo de sua m ãe, de um a
- 8 1 -
(
A Identificação
m aneira, se podem os dizer, que é sem com pen sação, sem recurso, sem
salda, é a fu nção de a r tifíc io que lhes m ostre i ser aqu ela da fob ia , na
m edida em que ela introduz um m ecanism o sign ificante chave que perm ite
ao su jeito preservar o que está em questão, para e le , a saber, esse m ín im o
de an coragem , de cen tragem de seu ser, que lh e p e rm ite não se sen tir
um ser com p letam en te à deriva do caprich o m atern o . É disso que se
trata, m as o que quero in d ica r nesse n íve l é o segu in te : é que, num a
p rodução em in en tem en te pouco su jeita à caução , na ocasião - d igo
isso tanto mais porque tudo aquilo para o qual se orientou precedentem ente
o p equ en o Ilan s , pois D eus sabe que o o r ien tam , com o lhes m ostre i,
nada disso é de natureza a co locá -lo num cam po deste tipo de elaboração
o p equ en o Hans m ostra-nos aqui, sob uma figu ra fech ada certam en te,
mas exemplar, o salto, a passagem, a tensão entre o que defin i prim eiram ente
com o os dois extrem os do su jeito, o su jeito an im al que rep resen ta a
m ãe, m as tam bém com seu pescoço grande, n in gu ém duvida, a m ãe
en qu an to e la é esse im en so fa lo do desejo, te rm in an d o ainda no b ico
fam into deste an im al voraz; e o outro, algum a coisa sobre uma su perfíc ie
de papel - reto rn arem os sobre essa d im ensão da su p erfíc ie - esse a lgo
que não é desprov ido de todo acen to subjetivo, porque se vê bem toda a
trama de que se trata, a grande girafa, vendo-o brincar com a pequena
amarrotada, grita bem alto, até que finalm ente ela se cansa, esgota seus
gritos, e o Pequeno Hans, sancionando de alguma m aneira a tomada de
posse, a Besitzung de que se trata, a trama m isteriosa do caso, senta-se
encim a, draufgesetzt.
Essa bela m ecânica deve nos fazer sentir o que está em causa, se é de
sua identificação fundam ental, da defesa dele m esm o contra essa captura
original no m undo da mãe, com o ninguém naturalm ente duvida, no ponto
em que estam os da elucidação da fobia. Aqui já vem os exem plificada essa
função do significante.
E exatam ente aí que quero m e deter hoje ainda, no que concerne ao
ponto de partida do que temos a dizer sobre a identificação. A função significante,
enquanto ponto de amarração de alguma coisa de onde o sujeito continua,
é o que vai fazer com que eu m e detenha um instante, hoje, sobre algo que,
parece-m e, deve vir naturalm ente ao espírito, não apenas por razões de
lógica geral, mas tam bém por alguma coisa que vocês devem tocar com a
experiência de vocês, quero dizer: a função do nom e.
- 8 2 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
N ão o n om en , o n om e d e fin id o gram atica lm en te , o que cham am os
de substantivo, nas esco las, m as o nam e, com o em inglês, e em a lem ão
tam bém , aliás, as duas fu nções se distinguem . Eu queria d izer um pouco
m ais sobre isso aqui. Mas vocês com preendem bem a d iferen ça de nam e:
é o n om e p ró p r io . Vocês sabem , com o analistas, a im portân c ia que tem ,
em toda an álise, o n om e p róp rio do su jeito. Vocês têm sem pre que
prestar a ten ção em com o se cham a seu pac ien te . N u n ca é in d ife ren te .
E se vocês p edem os nom es na análise é algo m u ito m ais im portan te
que a descu lpa que vocês podem dar ao pacien te , a saber, de qu e toda
e spéc ie de coisas pode escon der-se atrás dessa esp éc ie de d issim u lação
ou de apagam en to que haveria no nom e, re fe r in d o -se às relações que
e le tem para pôr em jo go com algum outro su jeito. Isso vai m u ito a lém .
Vocês d evem pressenti-lo , senão sabê-lo.
O que é um n om e p róp rio? D everíam os te r m u ito a d izer aqui. O fa to
é que, de fato , podem os tra zer m u ito m ateria l ao n om e. Esse m ateria l,
nós analistas, nas p róprias superv isões, m il ve zes irem os ilu s tra r a
im portân c ia disso. N ão acho que pudéssem os dar, ju s tam en te aqu i,
todo seu a lcan ce sem nos re fe r irm os - está aí um a ocasião a m ais para
com p reen d erm os c la ram en te a necessidade m etod o lóg ica - àqu ilo que
a esse respeito o lingüista tem a dizer. N ão para nos submeter forçosam ente
a isso, m as porque con ce rn en te à função, à d e fin ição do s ign ifican te ,
que tem sua orig inalidade, devem os pelo m enos encontrar aí um controle,
senão um com p lem en to do que podem os dizer. D e fato, é exa tam en te
o que vai se produzir. Em 1954, fo i pub licado um opúscu lo de S ir A llan
H . G ardiner. H á todo tipo de trabalhos d e le e, particu larm en te, um a
gram ática eg íp c ia m u ito boa, quero d izer do E gito antigo. É en tão um
eg ip tó logo , m as é tam bém e antes de tudo um lingü ista. G ard iner fe z -
fo i nessa época que o adqu iri, durante uma v iagem a Lon d res - um
liv rin h o que se cham a A te o r ia dos nom es p ró p r io s . E le o escreveu de
um a m an e ira um pouco con tin gen te . E le o cham a de um co n tro v e rs ia l
essay, um ensaio con trovertido . Pode-se m esm o dizer, isso é uma litotes,
um ensa io po lêm ico . E le o escreveu após a in ten sa exasperação a que
o levara um certo n ú m ero de en u n ciações de um filóso fo que não lhes
apresen to pela p rim e ira vez, B ertrand Russell, do qual vocês sabem o
en o rm e papel na e laboração do qu e se poderia cham ar, em nossos dias,
de lógica matematizada, ou a m atem ática logificada. Em tom o dos P r in c ip ia
m a th e m a tica , com W h iteh ea d , e le nos deu um sim bolism o gera l das
- 8 3 -
A Identificação
o p erações lóg icas e m atem áticas que não se pode d e ixar de le va r em
con ta , quando se en tra nesse cam po. Portan to, Russell, em um a de
suas obras, dá uma certa d e fin ição in te iram en te paradoxal - o paradoxo
é, aliás, uma dim ensão a qual e le está lon ge de repugnar para se deslocar,
bem ao con trá rio : e le , por sua vez, serve-se de la m ais freq ü en tem en te
- M . Russell trouxe, portan to, c on cern en te ao n om e p róprio , a lgum as
observações que co locaram litera lm en te M . G ard iner fora de si. A querela
é, em si m esm a, bastan te s ign ifica tiva , de m an e ira que acho dever,
ho je , in trodu zi-los n e la e, nesse sentido, acrescen ta r observações que
m e parecem im portan tes. Por qual ponta vam os com eça r? Por G ard iner
ou por Russell? C om ecem os por Russell.
Russel se en con tra na posição do lóg ico . O lóg ico tem um a posição
que não data de on tem . E le faz fu n c ion a r um certo aparelho ao qual
e le dá d iversos títu los, razões, pensam en tos. E le descobre um certo
n ú m ero de le is im p líc itas . N um prim eiro tem po, e le destaca essas leis,
são aquelas sem as quais não haveria nada que fosse da ordem da razão,
qu e fosse possível. É no curso dessa pesqu isa in te iram en te o r ig in a l do
p en sam en to que nos govern a, [a re flexã o grega], que ap reen dem os, por
exem p lo , a im portân c ia do p rin c íp io de con trad ição . Esse p rin c íp io de
con tra d ição descoberto , é em torno do p r in c íp io de con trad ição que
algum a coisa se desprende e se organ iza , qu e m ostra segu ram en te que,
se a contradição e seu princíp io fossem apenas alguma coisa de tautológica,
a tau to log ia seria s in gu larm en te fecu nda , pois não é s im p lesm en te em
a lgum as páginas que se desen vo lve a lóg ica a risto té lica .
C om o tempo, contudo, o fato histórico é que, longe do desenvolvim ento
da lóg ica se d ir ig ir para um a on tologia , um a re fe rên c ia rad ica l ao ser
que se suporia ser v isado nessas le is m ais gera is do m odo de apreensão
n ecessá rio à verdade, e le se orien ta para um form a lism o, ou seja, que
àqu ilo a qu e se consagra o líd e r de um a esco la de p en sam en to tão
im portan te , tão d ec is iva na orien tação que e la dá a todo um m odo de
p en sam en to em nossa época, que é B ertrand Russell, ch egu e a co loca r
tudo o que con ce rn e à c rít ica das op erações em jo go n o cam po da
lógica e da m atem ática, numa form alização geral tão estrita, tão econôm ica
quanto possível. Em suma, a correlação do es fo rço de Russell, a inserção
do es fo rço de Russell nessa m esm a d ireção , em m atem áticas, term in a
na fo rm ação do qu e se cham a de teor ia dos con juntos, cu jo a lcan ce
gera l se pode ca rac teriza r pelo que se es fo rça em redu z ir todo o cam po
- 8 4 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
da exp e riên c ia m atem ática acum ulada por sécu los de desenvo lv im ento,
e acho que não podem os dar m e lh or d e fin içã o disso senão redu zindo
o a um jo g o de letras. Isso, portan to, d evem os leva r em conta com o um
dado do progresso do pensam en to, d igam os, em nossa época, essa época
sendo d e fin id a com o um certo m om en to do d iscurso da c iênc ia . O que
é qu e B ertrand R ussell fo i levado a dar com o d e fin ição de um nom e
p róprio , nessas con d ições , no dia em que e le se in teressou por isso? É
algo que, em si m esm o, va le que aí nos detenham os, porque é o que vai
nos p erm itir ap reen der - poderíam os apreen dê-lo alhures, e vocês verão
que m ostra re i que o ap reen dem os alhures - d igam os, essa parte de
d e sco n h ec im en to im p lica d a nu m a certa pos ição , que a co n te c e ser
e fe t iva m en te o ângu lo on de é em pu rrado todo o es fo rço de elaboração
secu lar da lóg ica . Esse d escon h ec im en to é, para fa la r p ropriam en te,
que sem nen hu m a dúvida, dou-lhes de algum a sorte, de saída, no que i
c o lo q u e i aí fo rç o sa m en te por um a n ecess id a d e da exp os ição : esse
desconhecim ento é exatam ente a relação a mais radical do sujeito pensante
com a letra . B ertrand Russell vê tudo exce to isso: a função da letra. E
o que espero poder fa zer vocês sentirem e lhes mostrar. Tenham con fiança
e m e sigam . Vocês vão ve r agora com o vam os avançar. O qu e é que e le
dá com o d e fin ição do n om e p róprio? U m n om e próprio é, d iz e le , a
w ord f o r p a r t ic u la r , um a palavra para designar as coisas particu lares
com o tais, fora de toda descrição.
H á duas m aneiras de abordar as coisas; descrevê-las por suas qualidades,
suas referên c ias , suas coordenadas no pon to de vista do m atem ático , se
qu ero designá-las com o tais. Esse ponto, por exem plo , d igam os aqu i que
eu possa d izer-lhes, e le está à d ire ita no quadro, m ais ou m en os a tal
altura, e le é branco, e isso e aquilo. Isto é um a descrição, nos d iz M.
Russell. São as m aneiras que ele tem de designá-lo, fora de toda descrição,
com o particular, é isso que vou cham ar de nom e próprio. O prim eiro
n om e próprio para M . Russell - já f iz alusão a isso em m eus sem inários
precedentes - é o this, esse aqui, this is the question. Vejam o demonstrativo
e levado à categoria de nom e próprio. N ão é m enos paradoxal que M.
Russell encare friam en te a possib ilidade de cham ar este m esm o ponto
de John. É p reciso recon h ecer que tem os aí, contudo, o signo, que talvez
haja a lgum a coisa que ultrapasse a experiên cia , pois o fa to é que é raro
que se ch am e jo h n um ponto geom étrico . Todavia, Russell n u nca recuou
d ian te das expressões as m ais extrem as de seu pensam ento.
- 8 5 -
A Identificação
De qu a lqu er m odo é aqu i que o lingü ista se a larm a. A larm a-se tanto
1 1 1 ;i is quanto en tre essas duas ex trem idades da d e fin içã o russelliana,
word f o r p a r t ic u la r , há essa con seqü ên c ia in te ira m en te paradoxa l que,
lógico con sigo m esm o, R ussell nos d iz que S ócra tes não tem nen hu m
d ire ito de ser con siderado por nós com o um n om e p róprio , dado qu e há
m uito tem po não é m ais um particu lar. Vou abrev iar o que d iz Russell.
A crescen to até um a nota de humor, mas é exa tam en te o esp ír ito do
que e le qu er nos dizer, a saber, que Sócrates e ra para nós o m estre de
IMatão, o hom em que tom ou c icu ta, etc. E um a descrição abreviada.
Portanto, não é m ais assim que e le cham a “ um a palavra para designar
0 particular em sua particu laridade” . É certo que aqui vem os que perdem os
In te iram en te a m eada do que nos dá a con sc iên c ia lin gü ís tica , ou seja,
que se é p rec iso que e lim in em o s tudo o que dos nom es próp rios se
Insere num a com unidade da noção, chegam os a um a espéc ie de im passe
que é exa tam en te aqu ilo con tra o qual G ard iner ten ta con trapor as
perspectivas p rop riam en te lingü ís ticas com o tais.
O que é n o táve l é que o lingü ista , não sem m érito , não sem prá tica ,
c não sem hábito, por uma experiên cia tanto m ais profunda do sign ificante
porque não é por nada qu e lh es assinalei que é a lgu ém cujo labor em
parlo se d esen vo lve num ân gu lo e sp ec ia lm en te su gestivo e r ico da
experiência.,, que é o do h ie róg lifo , já que é e g ip tó logo - vai, p or sua
ve/., ser levado a con tra -fo rm u lar para nós o que lhe parece característico
da lun ção do n om e p róprio . Esta ca rac terís tica da fu n ção do n om e
próprio, e le , para e laborá-la , vai fa ze r re fe rên c ia a John Stuart M ill e a
um gram ático grego do sécu lo I I A .C ., que se cham a de D ion ís io T rácio .
S in gu larm en te , e le vai en con tra r nesses autores a lgu m a co isa que, sem
desaguar 1 1 0 m esm o paradoxo de Bertrand Russell, dá conta das fórm u las
que, num prim eiro aspecto, p oderão aparecer com o h om on ím icas , se
tie pode d ize r assim. O n om e próprio , lô io v o v o ^ a , aliás, é apenas a
tradução do que os gregos trouxeram a este estudo, e p r in c ipa lm en te
1 llon ls lo T rácio : tS iov oposto a x o tv o v . Será que lô to v aqu i se con fu n d e
com o particu lar, no sen tido russelliano do term o? O bv iam en te não,
pois está claro que não seria aí que G ard iner se apoiaria , a m en os que
quisesse en trar em acordo com seu adversário. In fe lizm en te , e le não
eim segtie esp ec ifica r a d iferen ça , aqu i, do te rm o de p rop ried a d e com o
Im p licado 1 1 0 que d is tingu e 0 pon to de v ista grego or ig in a l, com as
1 iiiiseqíW m cias paradoxa is às quais chega um certo fo rm a lism o. M as,
- 8 6 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
ao abrigo do progresso que lhe perm ite a referência aos gregos, completamente
no fundo , e em seguida a M ill, m ais p róx im o dele, e le va loriza o ponto
em questão, isto é, o que fu n c ion a no n om e próprio que faz com que o
distingam os im ed iatam ente, que o reconheçam os com o um nom e próprio.
C om um a p ertin ên c ia corre ta na abordagem do prob lem a, M ill sublinha
o segu in te : é que aqu ilo em que um nom e p róprio se d istingue do nom e
com um é algo que está no nível do sentido. O nom e com um parece concernir
o ob jeto enqu anto , ju n to com ele , vem um sentido. Se algum a coisa é um
nom e próprio, 6 porque não é o sentido do objeto que e le traz consigo,
mas algo que é da ordem de uma m arca aplicada de algum a m aneira ao
objeto, superposto a ele, e que, por causa disso lhe será tanto mais estreitamente
solidária quanto m enos for aberta, devido à ausência de sentido, a toda
participação com uma d im ensão por onde esse objeto se ultrapassa, se
com unica com os outros objetos. Aliás, M ill, nesse ponto, faz intervir, jogar
uma espécie de pequeno apólogo ligado a um conto: a entrada em jogo de
uma im agem da fantasia. E a história do papel da fada M organa* que quer
preservar alguns de seus protegidos de não sei que flagelo ao qual eles
estão condenados* pelo fato de alguém ter fe ito uma m arca de g iz em suas
portas. M organa evita que eles caiam vítim as do flagelo exterm inador,
fazendo a m esm a m arca em todas as portas da m esm a cidade.
Aqui, Sir Gardiner não m ede esforços para demonstrar o desconhecim ento
que esse apó logo im p lica ; é que, se M ill tivesse tido uma noção m ais
com p leta daqu ilo de que se trata na in c id ên c ia do n om e próprio , não
seria apenas do cará ter de id en tifica çã o da m arca que e le dever ia ter
levado em conta em sua própria construção, é também do caráter distintivo.
E, com o tal, o apólogo seria m ais con ven ien te se se dissesse que a fada
M organa teve de m arcar as outras casas tam bém com um sinal de giz,
m as d ife ren te do p rim eiro , de m odo a que aqu ele que, in trodu zindo-se
na c idade para cu m prir sua m issão, procurasse a casa on de e le devia
fa ze r in c id ir sua fa ta lidade, não soubesse m ais de que sinal se tratava,
por não te r sabido p rev iam en te qual o sinal exa to que era necessário
recon h ecer, em m eio aos dem ais. Isso leva G ard iner a uma articu lação
que é a segu in te : é que, em re fe rên c ia m an ifesta à d istinção en tre
s ign ifican te e s ign ificado, que é fundam enta l para todo lingüista, m esm o
que e le não a p rom ova com o tal em seu discurso, Gardiner, não sem
fu ndam en to , observa que não é tanto a ausência de sen tido que im porta
no uso do n om e p róprio , pois tudo d iz o con trá rio . M u ito am iúde os
- 8 7 -
A Identificação
nom es próprios têm um sen tido. M esm o D urand tem um sentido. Sm ith
qu er d ize r fe rre iro , e é c la ro que não é p orqu e o Sr. F erre iro seria
fe rre iro por acaso que seu n om e de ixaria de ser um n om e p róp rio . O
que causa o uso do n om e p róp rio - d iz-nos G ard in er - é que o acen to
em seu em prego é posto não sobre o sentido, m as sobre o som en qu an to
d is tin tivo . H á aí m an ifes tam en te um en o rm e progresso das d im en sões,
o qu e na m a ioria dos casos nos perm itirá p ra ticam en te p e rceb er que
algo fu n c ion a m ais esp ec ia lm en te com o um n om e próprio.
Todavia , é de toda m an e ira paradoxa l v e r ju s tam en te um lingü ista ,
cuja p rim e ira d e fin ição qu e e le terá a dar de seu m ateria l, os fon em as,
é que são ju s tam en te sons que se d istinguem uns dos outros, dar com o
um traço particu lar à fu n ção de um n om e p róp rio o fato de le, o n om e
próprio, ser composto de sons distintivos, os quais nos perm item caracterizar
um n om e próprio com o tal.
Pois, ev id en tem en te , sob um certo ângulo, é e v id en te que todo uso
da lin gu agem está ju s ta m en te fundado sobre isso: é que um a lín gu a é
fe ita com um m ateria l que é o de sons d istin tivos. E v id en tem en te , essa
ob jeção não deixa de aparecer ao p róp rio au tor dessa e laboração . E
aqu i qu e e le in trodu z a n oção sub jetiva - no sen tido p s ico lóg ico do
term o - da atenção d ispensada à d im en são s ign ifican te com o, aqu i,
m ateria l sonoro. O bservem vocês o que estou m ostrando aqu i: que o
lingü ista que deve es forçar-se por afastar - não d igo e lim in ar to ta lm en te
de seu cam po - tudo o que é re fe rên c ia p rop riam en te ps ico lóg ica , é
apesar de tudo levado aqui, com o tal, a apoiar-se numa dimensão psicológica
com o tal, quero dizer, d ev id o ao fato de que o su jeito, d iz e le , in veste ,
presta a ten ção esp ec ia lm en te no que é o corpo de seu in teresse quando
se trata do nom e próprio . É en qu an to e le v e icu la um a certa d ife ren ça
sonora que e le é tom ado com o nom e próprio , fa zen d o observar que
inversam en te no discurso com um , o que eu estou com u n ican do a vocês,
por exem p lo , agora, não presto a m en or a ten ção ao m ateria l sonoro
d isto que lhes con to. Se eu prestasse a ten ção dem ais n isso eu seria
logo levado a ver m eu d iscu rso am ortecer-se e esvaziar-se. Eu ten to
p rim e ira m en te com u n icar-lh es a lgum a coisa. É porque cre io saber fa lar
fran cês que o m ateria l, e fe t iva m en te d is tin tivo em seu fundo , m e vem .
E le está aí com o um ve ícu lo ao qual não presto m u ita a tenção. Penso
no ob je tivo que tenho, que é fa ze r passar para vocês certas qua lidades
de p ensam en tos que lhes com u n ico .
- 8 8 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
Será de fato um a verdade que cada vez que nós pronun ciam os um
nom e próprio nós sejamos psico log icam ente advertidos deste acento posto
sobre o m áteria l sonoro com o tal? D e fo rm a algum a, não é verdade.
N ão penso m ais no m ateria l sonoro S ir A la n G a rd in e r quando lhes fa lo
d e le ou q u a n d o fa lo de z e rw u tz e ln ou de q u a lq u e r ou tra co isa .
P r im e ira m en te , m eus exem plos aqui seriam m al escolh idos porque são
já palavras que, ao escrevê-las no quadro, co loqu e i em ev idên cia com o
palavras. É certo que qu a lqu er que seja o va lor da reiv in d icação aqu i do
lingü ista, e la fracassa m u ito espec ificam en te , ainda que e la cre ia não
ter outra re fe rên c ia a fa ze r va ler que a psico lógica. E e le fracassa em
quê? P rec isam en te em articu lar algo que é, talvez, a função do sujeito,
mas do su jeito d e fin ido de uma m aneira bem outra que pelo que quer
que seja da ordem do p s ico lóg ico concreto, do su jeito tanto quanto nós
poderíam os, que nós deveríam os, que farem os defin i-la , p rop riam en te
fa lando, em sua re fe rên c ia ao sign ificante. H á um sujeito que não se
con funde com o significante com o tal, mas que se desdobra nesta referência
ao sign ificante, com traços, com características perfe itam ente articu láveis
e fo rm a lizáve is e que devem perm itir-nos captar, d iscern ir com o tal o
caráter id ió tico - se tom o a re ferên c ia grega é porque estou lon ge de
con fu nd i-la com o em prego da palavra p a r ticu la r na defin ição russelliana
- o caráter id ió tico com o tal do nom e próprio.
Ten tem os agora in d ica r em que sentido preten do fa zer com qu e vocês
o ap reen dam . N esse sen tido* on de há m u ito tem po fa ço in te rv ir no
n ív e l da d e fin içã o do in co n sc ien te a fu nção da letra. Essa fu n ção da
letra, eu a f iz in terv ir para vocês de m aneira , p rim eiram en te, de a lgum a
form a poética . O sem in ário sobre A C arta roubada, em nossos prim eiros
anos de e laboração, estava a li para in d icar que, de um a fo rm a ou de
outra, a lgum a coisa, a tom ar no sen tido litera l do term o le ttre , já que
se tratava de uma m issiva, era algum a coisa que nós podíam os considerar
com o d e te rm in an te até na estru tura psíqu ica do su jeito. Fábula, sem
dúvida, m as que só fa z ia en con tra r a m ais pro funda verdade em sua
estru tura de ficção . Q u an do fa le i da instância da le tra no in co n sc ien te ,
alguns anos m ais tarde, pus, ali, através de m etá foras e m eton ím ias ,
um acen to bem m ais prec iso .
C h egam os agora, com essa largada que fizem o s a partir da fu n ção do
traço unário , a algo que va i p erm itir-n os ir m ais lon ge . D igo que não
pode h aver d e fin ição do n om e próprio senão na m ed ida em que nós
- 8 9 -
A Identificação
iih' npcicísbem os da relação da em issão n om ead ora com algo que, em
miii natureza rad ica l, é da ordem da letra. V ocês m e dirão: e is a í um a
i■ i .1 1 u 1c• d ificu ldade, pois existe um a im ensidão de pessoas que não sabem
lei e que .sc servem dos nom es próprios; a lém do mais, os nom es próprios
existiram com a identificação que eles determ inam antes do aparecim ento
<l.i escrita. E sob este term o, sob este registro, O H om em antes da escrita ,
que fo i pub licado um liv ro m u ito bom que nos dá a ú ltim a n o tíc ia do
que sc con h ece a tu alm en te da evo lução hum ana antes da h istória. A lém
disso, com o nós de fin iríam os a etnografia , que alguns ju lgaram p lausível
d e fin ir que se trata, para fa la r p rop riam en te , de tudo o que é da ordem
da cu ltu ra e da trad ição e que se desen vo lve fo ra de toda possib ilidade
de d ocu m en tação por m eio da escrita? Será assim tão verdade iro?
I lá um liv ro ao qual posso p ed ir a todos os que se in teressam por isso
e alguns já se an tec iparam à m in h a in d icação - que se rem etam , é o
livro de Jam es F évr ie r sobre A h is tó r ia da e sc r ita . Se vocês tiverem
tem po durante as férias, peço-lhes que o leiam . Vocês verão ali se desdobrar
com ev id ên c ia algo de qu e lhes in d ico o m ecan ism o gera l, porque e le
do certa form a não está destacado e porque está p resen te em toda parte,
é que p ré -h is to r ica m en te fa lan do , se posso e x p r im ir -m e assim , quero
di/.er, na m edida em que os estágios estratigráficos do que nós encontram os
atestam um a evo lu ção técn ica e m ateria l dos acessórios hum anos, pré-
h is to ricam en te tudo o que podem os ver do que se passa no adven to da
escrita e, portan to, na re lação da escrita com a língua, tudo se passa
da segu in te m aneira , cu jo resu ltado aqu i está p rec isam en te , articu lado
d ian te de vocês, tudo se passa da segu in te m an eira : sem dúvida algum a
podem os adm itir que o h om em , desde que é h om em , tem um a m issão
vocal com o fa lan te . Por ou tro lado, há algo que é da ordem daqueles
traços de qu e lhes con te i a em oção adm irativa que tive, ao encon trá-los
marcados num certo alinham ento sobre algumas costelas de antílope. Há
no m ateria l pré-histórico uma in fin idade de m anifestações de traçados que
não têm outro caráter senão serem , com o esse traço, significantes e nada
mais. Fala-se de ideogram a ou de ideografism o, o que quer dizèr isso?
O que vem os sem pre cada v e z que se pode fa ze r in te rv ir esta e tiqu eta
de id eogram a é algo que se ap resen ta com o, de fato , m u ito p róx im o de
uma im agem , m as que se torna ideogram a na m ed id a em que perde,
em que se apaga cada vez m ais este ca rá ter de im agem . Foi assim o
n asc im en to da escrita cu n e ifo rm e: é, por exem p lo , um braço ou um a
- 9 0 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
cabeça de cabrito m on tês que, a partir de um certo m om en to tom a um
aspecto, por exem plo , com o este, para o braço, isto é, nada m ais da
origem 6 recon h ec íve l. O fato das transições ex istirem ali não tem ou tro
peso senão nos con fo rta r em nossa posição, ou seja, que o que se cria
é em qua lquer n íve l que vejam os surgir a escrita, a bagagem , uma bateria
de algo que não tem os o d ire ito de cham ar de abstrato, no sen tido com
que em pregam os hoje esta palavra, ao fa larm os de p in tu ra abstrata.
Pois são, de fato , traços que saem de algo que, em sua essência , é
figu rativo , e é por isso que se c rê que é ideogram a, m as é um figu ra tivo
apagado, usem os a palavra que nos vem aqui fo rçosam en te ao esp írito ,
reca lcada, ou m esm o reje itada . O que fica é a lgo da ordem daqu ele
traço un ário enqu an to fu n c ion a com o d istin tivo , enqu an to pode, no
m om en to , d esem pen h ar o papel de m arca.
Vocês não ign oram - ou ignoram , pouco im porta - que na casa de
cam po de A z il, ou tro lugar vascu lhado por P ie tte , de quem lhes fa lava
outro dia, en con traram -se calhaus, seixos sobre os quais vêem -se coisas,
por exem p lo , com o isso. Será em verm elho, por exem plo , sobre seixos
de tipo bastan te bon itos, esverdeados. Sobre um ou tro vocês verão,
sem dúvida, isso que é tan to m ais bon ito porqu e este sinal é o que
serve na teoria dos con juntos para designar que um e lem en to perten ce
a um con jun to . E há um ou tro que quando você o olha de longe, parece
um dado, vê-se c in co pontos. D o outro você vê dois. Quando vocês olham
do ou tro lado é a inda dois pon tos. N ão é um dado coino os nossos <•, kc
- 9 1 -
A Identificação
você p ed ir ao en carregado que lh e abra a v itr ina , vo cê vê que do ou tro
lado do c in co há um a barra, um 1. Portan to, não é, de fo rm a algum a
um dado, m as é im pressionante que, à p rim eira vista, você tenha pensado
tratar-se de um dado. E, a fina l de contas, vo cê terá razão, pois é c laro
que um a co leção de ca racteres m óveis - para cham á-los pe lo n om e -
desta espéc ie , é algo que, seja com o for, tem um a fu n ção s ign ifican te .
Vocês jam a is saberão para que aqu ilo servia, se era para tirar a sorte,
se eram ob jetos de troca, se eram tésseras p rop riam en te ditas, ob jetos
de reco n h ec im en to ou se serviam para qu a lqu er coisa que vocês possam
elucubrar sobre tem as m ísticos. Nada m uda no fa to de que vocês tenham
aí significantes. Que o m encionado P iette tenha levado, após isso, Salom on
R e in ach a d e liberar sobre o cará ter arca ico e p rim ord ia l da c iv iliza ção
oc id en ta l, porqu e p re ten sam en te aqu ilo seria já um a lfabeto, essa já é
ou tra h istó ria ; m as isso deve ser ap rec iado com o s in tom a, m as tam bém
crit ica d o em seu a lcance rea l. Q ue nada nos p erm ita obv iam en te fa la r
de escr ita a rqu iarca ica no sen tido em que aqu eles ca racteres m óve is
teriam serv ido para cria r um a espéc ie de im pren sa das cavernas, não é
disso que se trata. O que está em questão é isso, já que tal id eogram a
qu er d ize r a lgum a coisa, para tom ar o p equ en o ca rá ter cu n e ifo rm e que
lhes m ostre i há pouco, no n íve l de uma etapa to ta lm en te p rim itiva da
escrita , e le designa o céu. D aí resu lta que é a rticu lado an. O su je ito
que o lh a este id eogram a cham a-o an, já que e le rep resen ta o céu . M as
o que va i resu ltar daí é que a posição se in ve rte , pois, a partir de um
dado m om en to , esse id eogram a do céu va i servir, num a escrita do tipo
silábico, de suporte para a sílaba an, que não terá m ais nenhum a relação,
agora, com o céu. Todas as escritas id eográ ficas , sem exceção , ou ditas
id eográ ficas , trazem o traço da s im u ltaneidade desse em p rego que se
cham a de ideográfico com o uso que se cham a fon ético do m esm o m aterial.
M as o que não se articu la , o que não se põe em ev id ên c ia , aqu ilo d ian te
do que m e parece que n in gu ém se tenha detido até o p resen te m om en to ,
é isso: é qu e tudo a con tece com o se os s ign ifican tes da escrita, tendo
sido p rim eiram ente produzidos com o m arcas distintivas, e disso nós tem os
testem u nhos h istóricos, pois a lguém que se cham a S ir F landers P e tr ie
m ostrou que, bem antes do nasc im en to dos ca rac te res h ie róg lifos , na
cerâm ica que nos resta da indústria dita p ré-d inástica , encon tram os,
com o m arca sobre a cerâm ica , ap rox im adam en te todas a form as que
Ibrain u tilizadas em seguida, isto é, após um a lon ga evo lu ção h is tó rica
- 9 2 -
Lição de 20 de dezembro de 1961
no a lfabeto grego , etrusco, la tin o , fen íc io , tudo o que nos in teressa no
m ais a lto grau com o ca racterís ticas da escrita .
Vocês v êem aonde quero chegar. Em bora em ú ltim o term o o que os
fen íc ios , p rim eiro , e depo is os gregos, fize ra m de adm irável, ou seja,
este a lgo que p erm ite um a notação em aparên c ia tão estrita quanto
possível das funções do fonem a com auxílio da escrita, é numa perspectiva
to ta lm en te con trá ria qu e d evem os ve r o que nos im porta . A escrita
com o m ateria l, com o bagagem , esperava - em segu ida a um processo
sobre o qual re torn are i: o da form ação, d irem os, da m arca, que hoje
en carn a esse s ign ifican te de qu e lhes fa lo - a escrita esperava para ser
fon etizad a , e é na m ed ida em que ela é voca lizada , fon etizad a com o
outros ob jetos, que a escrita apren de, se posso d ize r assim , a fu n c ion ar
com o escrita . Se vocês le rem essa obra sobre a h istó ria da escrita , vocês
encon trarão a todo m om en to a con firm ação do que lhes dou aqui com o
esquem a. Pois, cada vez que há um progresso da escrita, é porque uma
população tentou sim bolizar sua própria linguagem , sua própria articulação
fon em ática com o auxílio de um m ateria l de escrita tom ado em prestado
de um a ou tra popu lação e que só era aparen tem en te bem adaptado a
uma outra língua - pois ela não era m elh or adaptada, ela jam ais é bem
adaptada, ev iden tem en te, pois que relação há entre esta coisa m odulada
e com p lexa e um a articu lação falada? - mas que era adaptada pelo fato
m esm o da in teração que há en tre um certo m ateria l e o uso que se lhe
dá num a ou tra form a de linguagem , de fon em ática , de sintaxe, tudo o
que quiserem, isto é, que era o instrum ento em aparência menos apropriado,
no com eço , ao que se queria fa ze r com ele.
Assim se passa a transm issão daqu ilo que fo i p rim e ira m en te fo rjado
pelos sum érios, is to é, antes que isso ch egu e ao pon to em que estam os,
e quando é reco lh id o pelos Akkadianos, todas as d ificu ldades p rovém
do fa to de qu e esse m ateria l se adapta m u ito m al ao fon em atism o onde
e le tem de entrar, mas, em con trapartida , um a vez que e le ali entra,
e le o in flu en c ia segundo toda aparência e eu retom are i esse assunto.
Em ou tras palavras, o que represen ta o adven to da escrita é o segu in te:
que algum a coisa que já é escrita - se considerarm os que a característica
é o iso lam en to do traço s ign ifican te - sendo nom eada, vem a poder
serv ir com o suporte deste fam oso som sobre o qual G ard iner põe todo o
acen to , no que d iz respe ito aos nom es próprios.
- 9 3 -
A Identificação
< )<|ti(! resulta disso? Resulta que devem os encontrar, se m inha h ipótese
<• Jtisla, algo que assinale sua va lidade. H á m ais de um a va lidade, desde
que iiisso pensemos, elas form igam ; mas a mais acessível, a m ais aparente,
r csla que eu vou im ediatamente lhes dar, a saber, que uma das características
do nom e p róprio - terei, é c laro , de vo lta r a esse pon to e sob m il form as,
vocT-s verão m il d em on strações disso - é que a caracterís tica do n om e
próprio ú sem pre m ais ou m en os ligada a este traço de sua ligação, não
ao som , m as à escrita. E um a das provas, a que hoje qu ero pôr em
prim eiro plano, é esta: é que, quando tem os escritas indecifradas, porque
não c o n h e c em o s a l in g u a g em que elas en ca rn a m , fic a m o s m u ito
em baraçados, pois tem os de esperar ter uma in scrição b ilíngü e, e não
avançam os se não sabem os nada sobre a na tu reza de sua lin gu agem ,
isto ó, de seu fonetism o. O que esperam os, quando som os crip tografistas
e lingü istas? É d iscern ir nesse texto in d ec ifrad o algo que poderia bem
ser um nom e próprio, porque existe essa dimensão, à qual nos surpreendemos
que G ard in er não reco rra , e le que de qu a lqu er m an e ira tem , com o
ch e fe de fila , o líd e r in au gu ra l de sua c iên c ia , C h am po llion , e que e le
não se lem b re de que fo i por causa de C leópatra e P to lom eu que toda a
d ec ifra ção do h ie róg lifo e g íp c io com eçou , porqu e em todas as línguas
C leópatra é C leópatra , P to lom eu é P to lom eu . O que d istingue um n om e
próprio , apesar de p equ enas aparências de adaptação - cham am os de
C o lôn ia a c idade de K óln - é que de um a lín gu a para ou tra isso se
con serva em sua estru tura, sua estru tura sonora p rovave lm en te ; m as
essa estru tura sonora se d is tin gu e pelo fato, ju s tam en te , de que a esta,
em m eio a todas as outras, nós devem os respeitar, e isso em razão da
a fin idade ju s tam en te do n o m e p róp rio com a m arca, com a design ação
d ireta do s ign ifican te com o objeto. E eis-nos ap a ren tem en te reca in d o
da m an eira m esm o m ais b ru ta l sobre o w o rd fo r p a r t ic u la r . Q u er d ize r
que agora eu dou razão a B ertrand Russell? Vocês sabem que certam en te
não. Pois, no in terva lo está toda a questão, ju s tam en te , do n a sc im en to
do s ign ifica n te a partir daqu ilo de que e le é o signo. O que qu er d izer?
K aqui que se in sere com o tal um a função qu e é a do su jeito, não do
su je ilo no sen tido p s ico lóg ico , m as do su jeito no sen tido estru tural.
C om o podem os, sob que a lgoritm os podem os - já que se trata de
form a lização - situar este su jeito? É na ordem do s ign ifican te que tem os
um m eio de rep resen tar o qu e con cern e à gên ese , ao n a sc im en to , à
em ergência do próprio s ign ificante? É para lá que se dirige o m eu discurso
e que re tom are i no ano que vem .
- 9 4 -
LIÇÃO VII
10 de ja n e ir o de 1962
Eu n u nca tive tão pouca von tade de fa ze r m eu sem inário . N ão tive
tem po de ap ro fu n dar por qual causa, con tudo... m u itas coisas a dizer.
H á m om en tos de abatim ento , de lassidão. R ecordem os o que eu disse
da ú ltim a vez. Eu lhes fa le i do n om e próprio , já que nós o encon tram os
em nosso cam inho da identificação do sujeito, segundo tipo de identificação,
regressiva, ao traço unário do O utro. A propósito desse nom e próprio ,
v im os a a ten ção que e le so lic itou de alguns lingü istas e m atem áticos
na fu n ção de filóso fo .
O que é o n om e p róprio?
Parece que a coisa não se entrega à p rim eira abordagem , mas, tentando
reso lver essa questão, tivem os a surpresa de en con tra r a fu n ção do
s ign ifican te , sem dúvida no estado puro. Era bem nesse cam inho que o
p róp rio lingü is ta nos d irig ia , quando nos d iz ia : um nom e p róp rio é
algo que va le pe la fu n ção d is tin tiva de seu m a te r ia l sonoro. C om isso,
naturalmente, ele só fazia repetir as próprias prim ícias da análise saussuriana
da linguagem , a saber: que é o traço distintivo, é o fon em a com o acoplado
a um con ju n to , a um a certa bateria , porquanto u n icam en te e le não é o
que os ou tros são, que nós o encon trávam os aqui deven do designar
com o o que era o traço espec ia l, o uso de um a fu nção do su jeito na
lin gu agem , aqu ela de n om ear por seu n om e próprio . É certo que nós
não pod íam os nos con ten ta r com essa d e fin içã o com o tal, m as que
estávam os, con tudo, postos no cam inho de algum a coisa, e essa algum a
coisa nós pudem os ao m en os ap rox im arm o-nos dela, c ircundá-la ao
designarm os o que está, se se pode dizer, sob um a form a la ten te na
p rópria lingu agem : a fu n ção da escrita , a fu n ção do signo enqu anto e le
m esm o se lê com o um objeto. É um fa to que as letras têm nom es. Tem os
m u ita ten d ên c ia a con fu nd i-los , pelos nom es s im p lificados que elas têm
- 9 5 -
A Identificação
em nosso alfabeto, que têm o ar de se con fundir com a em issão fonem ática
à qual a le tra fo i redu zida . U m a tem o ar de q u ere r d izer a em issão a.
U m b não é, fa lan do p rop riam en te , um bê, e le não é um bê senão na
m ed ida em que, para que a con soan te b se faça escutar, é p rec iso que
ela se apó ie num a em issão vocá lica .
O lh em os a coisa m ais de perto . Verem os que, por exem plo , em grego,
alfa, beta , gam a e a seqü ên c ia são nada m ais, nada m en os que nom es
e, coisa m ais su rpreen den te , nom es que não têm sen tido algum na
língua grega em que e les se form u lam . Para com preen dê-los , é p rec iso
se ap erceb er que e les rep rod u zem os nom es correspon den tes às letras
do alfabeto fenício, de um alfabeto proto-sem ítico, alfabeto tal que podem os
reconstitu ir com um certo nú m ero de estágios, de estratos das inscrições.
N ós en con tram os as form as s ign ifican tes disso; esses nom es têm um
sentido na língua, seja fen íc ia textual, seja tal que nós possamos reconstruí-
la, essa língua p ro to -sem ítica de onde seria d erivada um certo n ú m ero
- eu não insisto sobre seu deta lh e - das lingu agens na evo lu ção das
quais está estre itam en te ligada a p rim eira aparição da escrita. Aqu i, é
um fato que é im portan te ao m enos, que vem no p rim eiro p lano, que o
p róp rio n om e do aleph tenh a um a relação com o boi, que a dita p rim eira
form a do aleph reproduziria, de um a m aneira esquem atizada, em diversas
posições, a cabeça. Resta a inda algum a coisa: podem os v e r a inda em
nosso A m aiúscu lo a fo rm a de um crân io de boi in vertido , com os ch ifres
que o pro longam . Igu a lm en te , cada um sabe que bet é o n om e da casa.
N atu ra lm en te , a d iscussão se com p lica , até se anuvia, quando se tenta
fazer um recenseam ento, um catálogo do que designa o nom e da seqüência
das ou tras letras. Q u an do ch egam os ao g im e l som os m u ito ten tados a
encontrar ali o nom e árabe do cam elo, mas, in fe lizm en te , há um obstáculo
de tem po ; é no segundo m ilên io m ais ou m en os an tes de nossa era que
esses a lfabetos p ro to -sem íticos pod iam estar em con d ições de con o ta r
esse n om e da terce ira le tra do alfabeto. O cam elo , in fe lizm e n te para
nossa com od idade, a inda não tinha fe ito sua aparição no uso cu ltu ra l
com o m e io de transporte nessas reg iões do O r ien te M éd io . Vai-se, pois,
en trar num a série de d iscussões sobre o que pod ia a fina l rep resen ta r
esse nom e g im el [Aqui, Lacan faz um desenvolvim ento sobre a terciariedade
con son ân tica das línguas sem íticas e sobre a perm an ên cia dessa fo rm a
na base de toda form a verba l no h ebra ico ]. E um dos traços por on de
podem os ver que o que está em questão, no que d iz respe ito a um a das
- 9 6 -
Lição de 10 de janeiro de 1962
ra ízes da estru tura on de se con stitu i a lingu agem , é essa algum a co isa
que se cham a, p r im e ira m en te , le itu ra dos signos, um a ve z que e les já
aparecem an tes de todo uso da escrita - j á ass inale i isso para vocês, ao
term inar, da ú ltim a v e z - de um a form a su rpreenden te, de um a fo rm a
que parece an tec ip a r - se a coisa deve ser adm itida - em quase um
m ilên io o uso dos m esm os sinais nos a lfabetos que são os a lfabetos
m ais corren tes, que são os ancestra is d iretos do nosso: a lfabeto latino,
etrusco , etc ., os quais se acham , pela m ais ex traord in ária m im ic ry 3' da
h istória , sob um a fo rm a id ên tica em m arcas fe itas em cerâm icas pré-
d inásticas do an tigo E gito . São os m esm os sinais, em bora não se deva
cog ita r que e les tenh am pod ido, àquela época , de a lgum a fo rm a ser
em pregados em usos alfabéticos, já que a escrita alfabética estava, naquele
m om en to , lon ge de nascer. Vocês sabem que, m ais acim a, f iz alusão
àqu eles fam osos seixos do M as d ’A zil, que são m u ito im portan tes nos
achados fe itos ali, a pon to de, no fin a l do pa leo lítico , um estágio ser
d en om in ado com o te rm o az ilian o pelo fa to d e le se re la c ion ar com o
que podem os d e fin ir com o o pon to de evo lu ção técn ica no fin a l do
p a leo lítico , no p eríodo não p rop riam en te fa lan do de transição, m as de
p ré-tran sição do p a leo lít ic o ao neo lítico . N esses seixos do M as d ’A z il
encontram os sinais análogos, cuja estranheza espantosa, por se assem elhar
tão de perto aos sinais do nosso alfabeto, pôde desviar, vocês sabem ,
espíritos que não eram especialm ente medíocres a toda sorte de especulações
que só pod iam levar à con fu são, até ao rid ícu lo .
Pe rm an ece , todavia , o fa to de que a presença daqueles e lem en tos
está a li para nos fa ze r tocar a lgum a coisa qu e se p ropõe com o rad ica l
den tro do que podem os cham ar de en laçam en to da lin gu agem com o
rea l. O b v iam en te , p rob lem a que só se co lo ca um a vez que pudem os
ve r p r im e iro a n ecess idade , para com p reen d er a linguagem , de ordená-
la p o r m e io do que podem os cham ar de um a re fe rên c ia a si m esm a, a
sua p róp ria estru tura com o tal, que nos co locou o que podem os quase
cham ar de seu sistema, com o algo que de algum a m aneira não se sustenta
com um a gênese puram en te utilitária, instrum ental, prática, um a gênese
psico lóg ica , que nos m ostra a linguagem com o um a ordem , um reg istro,
um a fu n ção on de toda a nossa p rob lem ática é que precisam os vê-la
com o capaz de fu n c io n a r fo ra de toda con sc iên c ia por parte do su jeito ,
e cu jo cam po som os levados a d e fin ir com o sendo ca racterizado por
valores estruturais que lhe são próprios. Desde logo, é necessário estabelecer
- 9 7 -
*
A Identificação
.1 Junção de seu fu n c ion am en to com aquela co isa que, no rea l, leva a
mu m arca. É ela cen trífu ga ou cen trípeta? E aí, ao red o r deste p rob lem a
que nós estam os por enqu an to , não detidos, m as em suspensão.
K, portan to, enqu an to o su jeito, a p ropósito de algo que é m arca,
que é signo, já lê antes de se tratar dos sinais da escrita , que e le p ercebe
<Iii<• sinais podem trazer pedaços d iversam en te reduzidos, recortados
ilr sua m odulação falante e que, invertendo sua função, pode ser adm itido
a sor em segu ida o suporte fon ético , com o se d iz. Vocês sabem que é de
fa lo assim que nasce a escrita fon ética , que não há nen hum a escrita
cm seu co n h ec im en to 32, m ais exa tam en te , que tudo o que é da ordem
da escrita , p rop riam en te fa lan do , e não s im p lesm en te de um desenho,
é a lgo qu e com eça sem pre com o uso com b in ad o desses d esen h os
s im p lificados , desses desenhos abreviados, desses desenhos apagados
(|iie cham am os diversamente, im propriam ente de ideogram as em particular.
A com b inação desses desenhos com um uso fo n é t ico dos m esm os sinais
i|iie têm a aparência de rep resen tarem algum a coisa, a com b inação de
am bos parece, por exem plo , e v id en te nos h ie róg lifo s egípc ios. A liás,
poderíamos, bastando olhar uma inscrição hieroglífica , crer que os egípcios
não tinham outros ob jetos de in teresse a lém da bagagem , som a m u ito
lim itada, de um certo nú m ero de an im ais, de um n ú m ero m u ito grande,
do um n ú m ero de pássaros a b em d izer su rp reen d en te pela in c id ên c ia
com a qual podem e fe t iva m en te in terv ir os pássaros nas in scr ições que
precisam ser com em oradas, de um nú m ero sem dúvida abundante de
lorm as instru m en ta is agrárias e outras; de alguns sinais tam bém que,
desde sem pre, foram úteis sob sua form a s im p lificada : o traço unário
p rim eiro , a barra, a cru z da m u ltip licação que, aliás, não designam as
operações que foram p os ter io rm en te relacionadas a esses sinais, m as
enfim no conjunto, é to talm ente eviden te, à prim eira vista, que a bagagem
de desen hos de que se trata não tem proporções, não tem con gru ên c ia
com a d ivers idade e fe t iva dos ob jetos que p od eria m ser va lidam en te
evocados em inscrições duráveis. Assim , o que vocês vêem , o que ten to
des ign ar-lh es e que é im portan te designar de passagem para dissipar
con fu sões para aqueles que não têm tem po de ir v e r as coisas m ais de
perto, é que, por exem plo , a figu ra de um gran de bu fo, de um a coru ja,
para tom ar uma form a de pássaro noturno particularm ente bem desenhada,
v is íve l nas in scr ições c lássicas em pedra, nós a verem os reapa recer
ex trem a m en te am iúde, e por quê? N ão é c e rta m en te porqu e se trate
- 9 8 -
Lição de 10 de janeiro de 1962
sem pre deste an im al, é que o n om e com um desse an im al na língua
eg íp c ia an tiga pode ser a ocasião de um suporte para a em issão lab ial
m e que cada v e z que você vê esta figu ra an im al, trata-se de um
m e d e m ais nada, cu jo m , aliás, lon ge de estar rep resen tado sob seu
va lor som en te lite ra l, cada v e z que você en con tra essa figu ra da dita
gran de coru ja, é su scetíve l de a lgo que se faz m ais ou m en os assim . O
m s ign ificará m ais de um a coisa e, em particular, o que nós não podem os,
não m ais nessa língua que na língua hebraica, quando não tem os a
ad junção dos pontos-vogais, que nós não estam os bem fixados sobre os
suportes vocá licos , não saberem os com o exa tam en te se com p leta esse
m , m as já sabem os bastante, a partir do que podem os con stru ir da
sintaxe, para saber que esse m pode igu a lm en te represen tar um a certa
função, que 6 aproxim adam en te uma função in trodu tória do tipo: ve ja m ,
um a fu n ção de fixação da a ten ção, se se pode dizer, um eis a qu i. Ou
ainda, em ou tros casos, em que p rovavelm en te e le devia se d istingu ir
por seu apoio vocálico, podia representar uma das formas, não da negação,
m as de algo que é necessá rio precisar, com m ais in ten s idade, do verbo
negativo , de a lgo que iso la a n egação sob um a fo rm a verbal, sob um a
fo rm a con ju gáve l, sob um a fo rm a não s im p lesm en te não, m as de algo
com o d iz -se que não. Em resum o, que é um tem po particu lar de um
verbo que nós con h ecem os, que é certam en te negativo, ou m esm o m ais
exa tam en te um a fo rm a particu lar em dois verbos negativos: o verbo
im i por um lado, que p arece qu erer d izer não ser, e o verbo tm , por
ou tro lado, que in d ica r ia m ais espec ia lm en te a n ã o-ex is tên c ia e fetiva .
A Identificação
S ign ifica d ize r a vocês, a esse respeito , e in tro d u z in d o a esse respe ito
de um a fo rm a an tecipada a função , que não é à-toa que isso d ian te do
qu e nós nos acham os ao avançarm os n este cam in h o é a re la ção que
aqu i se encarna, se m an ifesta im ed ia tam en te da coa lescên c ia a m ais
p rim itiva do s ign ifican te com algum a coisa que im ed ia tam en te levan ta
a questão do que é a negação, de quê e la está m ais p róxim a.
Será que a negação é s im p lesm en te um a con otação que, todavia , se
p ropõe com o da questão do m om en to em que, em relação à ex is tên c ia ,
ao exe rc íc io , à con stitu ição de um a cade ia s ign ifican te , in trodu z-se ali
um a esp éc ie de ín d ice , de sigla suplem entar, de palavra v irtu a l com o
nos exp rim im os , que d everia , portan to, ser sem pre con ceb ida com o
uma espécie de invenção segunda, m antida pelas necessidades da utilização
de a lgo que se situa em diversos n íveis? N o n ív e l da resposta, o qu e é
posto em questão pela in terrogação s ign ifican te , isso não está lá, será
que é no n íve l da resposta que este não é ? p arece bem m an ifestar-se na
lín gu a com o a possib ilidade da em issão pura da negação n ã o ? Será
que, por ou tro lado, é na m arca das re lações que a negação se im põe,
é su gerida pela n ecessidade da disjunção, ta l co isa n ã o é se ta l o u tra é,
ou n ã o ■poderia ser com ta l o u tra , em sum a, o in stru m en to da negação?
N ós o sabem os, claro, não m enos que outros. M as se, no que d iz respeito
à g ên ese da linguagem , estam os reduzidos a fa ze r do s ign ifican te a lgo
que d eve pouco a pou co se e laborar a pa rtir do signo em oc ion a l, o
p rob lem a da n egação é a lgo que se co loca com o, p rop riam en te fa lando,
de um salto, até m esm o de um im passe.
Se, fa zen d o do s ign ifica n te a lgum a coisa to ta lm en te outra, algo, cuja
g ên ese é p rob lem ática , nos leva ao n ív e l de um a in terrogação sobre
um a ce rta relação ex is ten c ia l, aqu ela que, com o tal, já se situa nu m a
re fe rên c ia de n ega tiv idade, o m odo sob o qual a n egação aparece, sob o
qua l o s ign ifican te de um a nega tiv idade e fe t iva é v iv ido , pode surgir, é
a lgum a coisa que tom a um in teresse todo ou tro e que não é, desde já ,
por acaso, e sem ser de na tu reza a esc la recer-n os , quando nós vem os
que, desde as p rim eiras p rob lem áticas, a estru tu ração da lingu agem se
id en tific a , se se pode dizer, na recuperação da p rim e ira con jugação de
um a em issão vocal com um signo com o tal, is to é, com algo que já se
re fe re a um a p rim e ira m an ipu lação do ob jeto . N ós a cham am os de
s im p lificad ora , quando se tratou de d e fin ir a g ên ese do traço. O que é
que há de m ais destru ído, de m ais apagado de um ob jeto . Se é do ob jeto
- 1 0 0 -
Lição de 10 de janeiro de 1962
que o traço surge, é algo do ob jeto que o traço retém , ju stam en te , sua
u n ic idade. O apagam ento, a destru ição absoluta de todas essas outras
em ergências, de todos esses outros prolongam entos, de todos esses outros
apênd ices, de tudo o que pode haver de ram ificado , de palp itante, ora,
essa re la çã o do ob jeto com o n asc im en to de algo que se cham a aqu i
signo, já que ele nos interessa no nascim ento do sign ilicante, é exatam ente
em torn o disso que estam os detidos, e em torno do que não é sem
prom essa que tenham os fe ito , se se pode dizer, um a descoberta - pois
acred ito que é um a - esta in d icação de que há, d igam os, nu m tem po,
um tem po recu perável, h is to ricam en te de fin ido , um m om en to em que
a lgum a co isa está ali para ser lida, lida com a lin gu agem quando ainda
não há escrita . E é pela in versão dessa relação, e dessa relação de le itu ra
do signo, que pode nascer em segu ida a escrita , uma vez que e la pode
serv ir para con otar a fon em atização .
M as se parece , nesse n íve l, que ju stam en te o n om e próprio, enqu anto
e le especifica com o tal o enra izam ento do sujeito, está mais especia lm ente
ligado que um outro, não à fon em atiza ção com o tal, à estru tura da
lin gu agem , m as àqu ilo que já na língua está p ron to , se podem os d izer
assim , para receb er essa in fo rm ação do traço; se o n om e próprio ainda
traz a m arca disso a té para nós e em nosso uso, sob essa fo rm a que de
um a lín gu a para ou tra não se traduz, já que e le apenas se transpõe, se
transfere , e é exa tam en te essa sua ca racterís tica - eu m e cham o Lacan
em todas as línguas e vocês tam bém , cada um por seu nom e. Isso não
é um fa to con tin gen te , um fa to de lim itação , de im portância , um fato
sem sentido, posto que, ao contrário, é aqui que jaz, que reside a propriedade
m u ito pa rticu la r do n om e, do nom e próprio na s ign ificação . N ão será
isso fe ito para fa ze r com qu e nos in terrogu em os sobre o que há nisso,
nesse pon to rad ica l, arca ico, que prec isam os com toda a necessidade
supor na or igem do in con sc ien te , isto é, dessa a lgum a coisa pela qual,
en qu an to o su jeito fa la, e le só pode avan çar sem pre m ais ad ian te na
cadeia, no desenrolar dos enunciados, mas que, dirigindo-se aos enunciados,
por esse fa to m esm o, na en u n ciação e le e lid e a lgo que é, p ropriam en te
fa lan do, o que e le não pode saber, isto é, o nom e do que e le é enqu anto
su jeito da enu n ciação . N o ato da enun ciação há essa nom inação la ten te
que é con ceb ív e l com o sendo o p rim e iro núcleo , com o s ign ifican te, do
que em seguida vai se organizar com o cadeia giratória, tal com o representei
- 1 0 1 -
A Identificação
l>:ir.i vocês desde sem pre, desse cen tro , do coração fa lan te do su jeito
que cham am os de in con sc ien te .
Aqu i, antes que avan cem os m ais ad iante, c re io d eve r in d ica r a lgum a
coisa que é apenas a con vergên c ia , a ponta de um a tem ática que já
;ibordamos em várias ocasiões neste seminário, em várias ocasiões tomando-
a nos d iversos n íveis aos quais Freud fo i levado a abordá-la, a represen tá-
la, a rep resen tar o sistem a, p r im e iro sistem a psíqu ico , tal com o lh e fo i
necessário represen tá-lo , de a lgum a m aneira , para fa ze r sen tir o que
está em causa, sistema que se articu la com o inconscien te, pré-conscien te,
con sc ien te . M u itas vezes tive de descrever, nesse quadro, sob form as
d iversam en te e laboradas, os paradoxos aos quais as fo rm u lações de
Freud, no n ív e l do E n tw u rf, p or exem plo , nos con fron tam . H o je m e
atere i a um a topo log ização tão sim p les quanto a que e le dá no fin a l da
'Ira u m d e u tu n g , ou seja, a das cam adas através das quais podem acon tecer
as u ltrapassagens, os lim iares, as irru pções de um n ív e l para o outro,
tal com o nos in teressa no m ais a lto grau, a passagem do in co n sc ien te
no p ré -con scien te , por exem plo , que é de fa to um prob lem a, que é um
problema - aliás, noto-o com satisfação, de passagem, esse não é certam ente
o m en or es fo rço que eu possa esperar do es fo rço de r igo r em que arrasto
vocês, que im pon h o a m im m esm o para vocês aqu i, é que os que m e
escutam , que m e ou vem , levam as coisas a um grau su scep tíve l de ir
ad iante. Em seu n otáve l texto, pub licado em Tem ps m odernes , sobre o
assunto do Inconscien te , Lap lan ch e e Lec la ire - não distingo por enquanto
a parte de cada um deles nesse trabalho - se interrogam qual a am bigüidade
que p erm an ece na enu n c iação freud iana, que con cern e ao que se passa
quando p od em os fa la r da passagem de a lgum a co isa que estava no
inconscien te e que vai no pré-con scien te . S ign ifica d izer que se trata
apenas de um a m udança de investim en to , com o e les co locam m u ito
ju stam ente a questão, ou trata-se de que há um a dupla inscrição? Os
autores não d isfarçam sua p re fe rên c ia pela dupla inscrição, e les nos
Indicam isso em seu texto. A í está, no entanto, um prob lem a que o texto
deixa aberto e, afinal, isso com que nos ocupam os nos perm itirá , este
ano, trazer ta lvez algum a resposta a isso ou pelo m en os algum a precisão.
Gostaria, à guisa de in trodu ção , de lhes sugerir o segu in te : é que, se
devem os con sid erar que o in co n sc ien te é esse lugar do su jeito on de
ifiso laia, acabam os por nos aprox im arm os desse pon to on de podem os
dl/,cr que alguma coisa, à revelia do sujeito, está profundam ente rem anejada
Lição de 10 de janeiro de 1962
pelos e fe itos da retroação do sign ificante, im plicados na fala. É na m edida
- e pela m en or de suas palavras - em que o su jeito fala, que tudo o que
e le pode sem pre fazer, um a vez m ais, é nom ear-se sem o saber, sem
saber por qual n om e? Será que não podem os ve r que, para situar, em
suas re la ções , o in co n sc ien te e o p ré -con scien te , o lim ite para nós não
deve ser situado p rim e iro em algum lugar no in terior, com o se d iz, de
um su je ito que m ais não seria que o equ iva len te do que se cham a, no
sentido am plo, de psíquico? O sujeito de que se trata para nós e, sobretudo,
se ten tam os a rticu lá -lo com o o su jeito do in con sc ien te , com porta um a
outra constitu ição da fronteira; aqu ilo que é do pré-consciente, na m edida
em que o que nos interessa no pré-conscien te é a linguagem , a linguagem
tal com o e fe t iva m en te nós não apenas a vem os, a ou vim os falar, mas
tal com o e la escande, articu la nossos pensam en tos. Todos sabem que
os p en sam en tos de que se trata, no n íve l do in con sc ien te , m esm o se
d igo que e les são estru turados com o uma lin gu agem - ev id en tem en te ,
é p orqu e e les estão estru turados em ú ltim o term o e num ú ltim o n íve l
com o um a lin gu agem que e les nos in teressam - m as a p rim eira coisa a
constatar, os p ensam en tos de que fa lam os, é que não é fá c il fa zê-los
exprim irem -se na linguagem com um . O que im porta é ver que a linguagem
articu lada do d iscurso com um , em relação ao su jeito do in con sc ien te ,
en qu an to e le nos in teressa , está do lado de fora . U m lado de fo ra que
reú n e em si o que cham am os de nossos p ensam en tos ín tim os, e essa
lin gu agem que escoa do lado de fora , não de um a m aneira im ateria l,
porque sabemos bem, pois toda sorte de coisas ali está para no-lo representar,
nós sabem os o que não sabiam ta lvez as cu ltu ras em que tudo se passa
no sopro da palavra, nós que tem os d iante de nós qu ilos de linguagem ,
e que sabem os, a lém do m ais, in sc reve r a fa la m ais fu g id ia em discos,
sabem os bem que o que é fa lado, o d iscurso e fe t ivo , o d iscurso pré-
con sc ien te , é in te iram en te h om ogen e izá ve l com o algo que se m antém
do lado de fora . A linguagem , em substância, co rre as ruas e, ali, há
e fe t iva m en te um a in scrição sobre uma fita m agn ética da necessidade.
O p rob lem a do que se passa quando o in co n sc ien te chega a se fa zer
ou vir ali é o p rob lem a do lim ite en tre esse in con sc ien te e esse pré-
con sc ien te .
C om o p rec isam os ver esse lim ite? E o p rob lem a que, por enquanto,
vou d e ix a r aberto . M as o qu e podem os , no m om en to , in d ica r é que,
- 1 0 3 -
A Identificação
ao passar do in co n sc ien te para o p ré -con sc ien te , o que se con stitu iu no
in con sc ien te en con tra um discurso já ex is ten te , se se pode dizer, um
jo go de signos em lib erdade, não som en te in ter fe r in d o com as coisas do
real, mas pode-se dizer estreitamente, tal um micélio, tecido em seus intervalos.
D o m esm o m odo, não é a í que está a razão verdadeira do que se pode
cham ar de fascinação, de estorvo idealista? N a experiência filosófica , se o
hom em se apercebe, ou crê se aperceber que nunca tem m ais que idéias
das coisas, isto é, que das coisas e le só conhece en fim as idéias, é justam ente
porque, já no m undo das coisas, esse em brulho num universo do discurso
é algo que não é de form a algum a desem baraçável. O pré-conscien te, em
suma, está desde já no real, e o estatuto do inconscien te, por sua vez, se
e le levanta um problem a, é porque se constitu iu num n ível to talm ente
outro, num n ível m ais rad ical da em ergên cia do ato de enunciação. N ão
há, a princípio, ob jeção à passagem de algo do inconscien te para o pré-
consciente, o que tende a se manifestar, cujo caráter contraditório Laplanche
e Lec la ire notam m uito bem . O inconscien te tem , com o tal, seu estatuto
com o algo que, por posição e por estrutura, não poderia penetrar 1 1 0 n ível
em que é suscetível de um a verbalização pré-conscien te. E, no entanto,
d izem -nos, esse inconscien te, a todo m om ento, faz esforço, em purra em
d ireção a fazer-se conhecer. Seguram ente, e não sem razão, é que ele
está em sua casa, se podem os dizer, em um universo estru turado pelo
discurso. Aqui, a passagem do inconscien te para 0 p ré-conscien te não é,
pode-se dizer, mais que uma espécie de e fe ito de irradiação norm al do
que gira na constituição do inconsciente com o tal; daquilo que no inconsciente,
m antém presente 0 funcionam ento prim eiro e radical da articu lação do
sujeito enquanto sujeito fa lante. O que é preciso ver é que a ordem que
seria aquela do inconsciente pré-consciente e depois chegaria à consciência,
não pode ser aceita sem ser revista, e pode-se d izer que, de certo m odo, já
que devem os adm itir o que é p ré-conscien te com o defin ido, com o estando
na circu lação do m undo, na circulação real, devem os conceber que o que
se passa no n ível do p ré-conscien te é algo que tem os de ler da m esm a
m aneira, sob a m esm a estrutura, que é aquela que eu tentava fa zer vocês
sentirem , nesse ponto de ra iz onde algo vem trazer à linguagem o que se
poderia cham ar de sua ú ltim a sanção, esta leitura do signo.
- 1 0 4 -
Lição de 10 de janeiro de 1962
C
Dpercepção
N o n ível atual da vida do sujeito constituído, de um sujeito elaborado por
uma longa história de cultura, o que se passa é, para o sujeito, um a leitura
do lado de fora do que é am biente, pelo fato da presença da linguagem no
real, e no nível da consciência este n ível que, para Freud, sempre pareceu
ser um problema; e le nunca deixou de indicar que era certam ente o objeto
de uma futura precisão, de uma articulação mais precisa quanto à sua função
econôm ica. N o n ível em que e le no-lo descreve no com eço, no m om ento
em que se liberta seu pensam ento, lembremo-nos de com o ele nos descreve
essa camada protetora que ele designa com o term o j; é antes de tudo algo
que, para ele, deve ser com parado com a película de superfície dos órgãos
sensoriais, isto é, essencia lm ente com o algo que filtra, que fecha, que só
retém esse índ ice de qualidade cuja função nós mostramos ser hom óloga
com esse índ ice de realidade que nos perm ite até apreciar o estado em que
estamos, bastante para ficarm os seguros de que não sonhamos, se se trata
de algo análogo. É, na verdade, algo do visível o que vemos. Da m esm a
forma, a consciência, em relação ao que constitui o pré-consciente e nos
faz este m undo estreitam ente tecido por nossos pensamentos, a consciência
é a superfície por onde algum a coisa que está no coração do sujeito recebe,
se se pode dizer, de fora seus próprios pensamentos, seu próprio discurso. A
consciência ali está para que o inconsciente, se se pode dizer assim, recuse
o que lhe vem do pré-conscien te ou escolha ali da m aneira m ais estreita
aquilo de que e le tem necessidade para seus ofícios.
Ics Préc. - ConsP P \ / P R
les com m e parole
- 1 0 5 -
A Identificação
I'', o que é isso? É bem aqu i que encon tram os esse paradoxo que é o
que cham ei de o en trecru za m en to das fun ções s istêm icas, nesse p rim eiro
n ível, tão essen cia l de ser reco n h ec id o , da a rticu la ção freu d ian a , o
In con sc ien te é rep resen tado por e le com o um flu xo , com o um m undo,
com o um a cade ia de pensam entos. Sem dúvida a con sc iên c ia tam bém
ó Ibita da coe rên c ia das p ercepções. O teste de rea lida de é a articu lação
das p ercepções entre si num m undo... In versam ente, o que encon tram os
no in co n sc ien te é essa rep e tição s ign ifica tiva que nos leva de algo que
se cham a pensam en tos, G edanken , m u ito bem fo rm ados , d iz Freud, a
urna con ca ten ação de p ensam en tos que nos escapa a nós m esm os. Ora,
o que é que o p róprio Freud va i d izer-n os? O que é o que o su jeito
busca no n ív e l de um e de ou tro dos dois s istem as? Q ue n o n ív e l do
p ré-con scien te o que buscam os seja, propriam ente fa lando, a id en tidade
dos pensam entos, é o que fo i elaborado por todo esse capítu lo da filosofia ;
o es fo rço de nossa organ ização do m undo, o es fo rço lóg ico , é, fa lan do
p ropriam ente, redu z ir o d iverso ao idên tico , é id e n tif ic a r pensam en to
;i pensamento, proposição a proposição em relações diversam ente articuladas
que form am a própria tram a do que se cham a de lóg ica form a l, o que
levanta, para aqu ele que con sid era de um m odo ex trem a m en te id ea l o
ed ifíc io da c iên c ia com o poden do ou deven do, m esm o v irtu a lm en te ,
ser já acabado, o que levan ta o p rob lem a de saber se e fe t iva m en te toda
c iên c ia do saber, toda cap tação do m undo de um a fo rm a ordenada e
articu lada não desem boca nu m a tau tologia . N ã o fo i à toa que vocês
me ouviram várias vezes evocar o problem a da tautologia e não poderíam os
de m aneira a lgum a term inar, n este ano, nosso d iscu rso sem trazer para
essa questão um ju lgam en to de fin itivo .
O m undo, portanto, este m undo, cuja fu n ção de rea lidade é ligada à
função p ercep tiva , é, apesar de tudo, aqu ilo em torn o do qual nós só
progred im os em nosso saber pe la via da id en tid ad e dos pensam entos.
Isso, para nós, não é de fo rm a a lgum a um paradoxo, m as o paradoxa l é
ler, no texto de Freud, que o que o in con sc ien te busca, o que e le quer,
se podem os d izer assim , que o que é a ra iz de seu fu n c ion am en to , de
sua entrada em jogo , é a id en tid ad e das p ercep ções , is to é, que isso
não teria lite ra lm en te sen tido algum se o que estava em questão não
fosse o segu in te : que a relação do in con sc ien te com o que e le busca
cm seu m odo próprio de retom o é justam ente aquilo que um a vez percebido
c o id en ticam en te id ên tico , se podem os dizer, é o perceb ido daquela
- 1 0 6 -
Lição de 10 de janeiro de 1962
vez a li, 6 esse an el que e le passou ao dedo dessa vez com a punção. E
é ju s tam en te isso o que fa ltará sem pre: é que, em toda espéc ie de outra
reaparição do que respon de ao s ign ifican te orig ina l, no ponto onde está
a m arca que o su je ito recebeu deste, seja o qu e for, que está na origem
do U rverd rãn g t, faltará sem pre ao que quer que seja que venha representá-
lo, essa marca que é a m arca única do surgimento original de um significante
or ig in a l que se ap resen tou um a vez no m om en to em que o ponto, o
algo do U rv e rd rã n g t em questão passou à ex is tên c ia in con sc ien te , à
in s is tên c ia nessa ordem in tern a que é o in con sc ien te , en tre , por um
lado, o que e le receb e do m u ndo ex te r io r e onde e le tem coisas a ligar;
e, p e lo fa to de ligá-las sob um a fo rm a s ign ificante, e le só as pode receb er
em sua d iferen ça . E é exa tam en te por isso que e le não pode de m an eira
nenhum a ser satisfeito por essa procura com o tal da identidade perceptiva,
se é isso m esm o que o espec ifica com o inconsc ien te . Isso nos dá a tríade
consciente-inconsciente-pré-consciente, numa ordem ligeiramente modificada
e, de certa form a , que ju s t ific a a fórm u la que já ten te i dar a vocês do
in con sc ien te , ao d ize r que e le se achava en tre p ercep ção e con sc iênc ia ,
tal com o se d iz: en tre o cou ro e a carne.
É exa tam en te aí que está algo que, um a ve z que o co locam os, nos
in d ica que nos reportem os àqu e le pon to do qual eu parti ao fo rm u la r
as coisas a partir da exp e riên c ia filo só fica da procu ra do su jeito, tal
com o e la ex is te em D escartes, já que ele é es tre itam en te d iferen te de
tudo o que se pôde fa zer em algum outro m om en to da re flexão filosó fica ,
porqu e é o p róp rio su je ito que é in terrogado, que busca sê-lo com o tal,
o su jeito en qu an to aí va i com toda a verdade em seu propósito; que o
que é ali in terrogado é não o rea l e a aparência , a relação de quem
existe e de qu em não ex iste , do que p erm an ece e do que foge , m as
saber se se pode con fia r no O utro, se, com o tal, o que o su jeito receb e
do e x te r io r é um signo con fiá ve l.
E u sou <— E u penso
E u sou <— E u penso
E u sou <— E u penso, etc
O penso logo sou, eu já o tr itu re i su fic ien tem en te d iante de vocês
para que possam ver agora m ais ou m enos com o se co loca o problem a.
Esse penso, do qual d issem os que p ropriam en te fa lan do era um noii
- 1 0 7 -
A Identificação
sens - e é o que lh e dá o va lor - e le , ob v iam en te , não tem m ais sen tido
que o m in to , m as ele, a partir de sua articu lação , só pode dar-se con ta
de que lo go e x is to não é a con seqü ên c ia que e le tira , m as é que e le só
pode p ensar a partir do m om en to em que v e rd ad e ira m en te e le com eça
a pensar.
Q u er d ize r que é enqu an to este eu penso im poss íve l passa a a lgo
que é da ordem do p ré -con sc ien te , que e le im p lica com o s ign ificado , e
não com o con seqü ên cia , com o determ in ação on to ló g ica , que im p lica
com o s ign ifica do que este penso rem ete a um sou que doravante não é
m ais senão o x desse su jeito que buscamos, a saber, do que há na partida
para que se possa p rodu zir a id en tifica ção desse penso. O bservem que
isso con tin u a , e assim por d iante; se penso que penso que sou - não
estou m ais iron izan do, se penso que não posso fa ze r m ais que ser um
pensa -ser ou um serpensante - o penso que está aqu i no d en om in ador
vê m u ito fa c ilm en te se rep rodu zir a m esm a du p lic idade , a saber: que
tudo o que posso fa ze r é dar-m e conta de que, pensando que penso,
esse penso qu e está na ex trem id ad e de m eu pensam en to , sobre m eu
pensam en to , é e le p róp rio um penso que rep rod u z o penso logo sou.
Será isso ad in f in itu m ? C ertam en te não. É tam bém um dos m odos
m ais corren tes dos exercíc ios filosóficos, quando se com eçou a estabelecer
um a tal fórm u la , que, ao ap licar que o que se pôde re ter de exp eriên c ia
e fe t iva é, de a lgum a m aneira , in d e fin id am en te m u ltip licá ve l com o num
jo go de espelhos. H á um p equ en o exe rc íc io qu e é aqu e le ao qual m e
d ed iq u e i num tem po - m eu p equ en o sofism a pessoal - o da asserção
de certeza antecipada a propósito do jo go dos discos, on de é da re ferên c ia
daqu ilo que fazem os dois ou tros que um su je ito deve d edu zir a m arca
p a r ou ím p a r de que e le p róprio está a fe tado em suas costas, isto é,
algo de m uito próxim o àquilo de que se trata aqui. É fácil ver, na articulação
deste jo g o que, lon ge que a hesitação que é, de fato , com p letam en te
possível de se ver produzir, pois se vejo os ou tros d ec id irem dem asiado
rap idam en te, pela m esm a decisão que quero tom ar, isto é, que estou,
com o eles, m arcado por um disco da m esm a cor, se os vejo tirar dem asiado
rap idam en te suas conclu sões, tirarei disso ju s tam en te a con clu são...
Posso, no m om en to , ve r surgir para m im algum a hesitação, a saber, que
se e les v iram tão rap idam en te o que eles eram , é que eu m esm o sou
bastante d istin to deles p a ra jn e fa ze r apanhar, pois com toda lóg ica e les
- 1 0 8 -
Lição de 10 de janeiro de 1962
devem fa ze r a m esm a re flexã o . N ós os verem os tam bém oscilar e d izer-
se: “ O lh em os isso duas v e z e s ” , isto é, que os três su jeitos terão a m esm a
hesitação ju n íos , e dem onstra-se fa c ilm en te que é e fe tiva m en te ao cabo
de três osc ila ções hesitan tes qu e e les poderão verd ad e iram en te ter e
terão, certam en te e de algum a form a plenam ente, figuradas pela escansão
de sua hesitação , as lim itações de todas as possib ilidades contraditórias.
H á algo de análogo aqui. N ão é in d e fin id am en te que podem os inc lu ir
todos os penso, logo sou em um p en so . O nde está o lim ite? E o que nós
não podem os im ed ia tam en te aqu i tão fa c ilm en te d ize r e saber. M as a
questão que co lo co , ou m ais exa tam en te , a que vou ped ir-lh es que
a com pan h em , porque, é óbvio, vocês vão se surpreender, ta lvez, m as é
da seqü ên c ia que vocês verão v ir ju n tar-se aqu i que pode m od ificar,
quero d ize r tornar operan te u lter io rm en te , o que m e pareceu à p rim eira
v ista só com o um a espéc ie de jo go , até com o se d iz uma recreação
m atem ática . Se vem os que a lgum a coisa na apreensão cartesiana, que
term in a ce rta m en te em sua enu n c iação em dois n íve is d iferen tes , já
que tam bém há a lgum a coisa que não pode ir m ais lon ge que isso que
é in scr ito aqu i, e é p rec iso que e le faça in te rv ir a lgo que vem , não da
pura e laboração, sobre o que eu m e posso fu ndar? , o que é con fiáve l? .
E le va i ser levado com o todo o m u ndo a ten tar se desem baraçar com o
que se v ive no exterior, m as na id en tifica çã o que é a que se fa z com o
traço unário . Será que não há bastan te disso para suportar esse ponto
im pen sá ve l e im possíve l do penso, ao m en os sob sua form a de d iferen ça
rad ica l? Se é por 1 que nós rep resen tam os esse penso que, rep ito , na
m ed ida_que e le só nos in teressa porque tem relação com o que se dá na
origem da nom in ação , já que é o que im p lica o n asc im en to do su jeito -
o su jeito é o que se n om eia - se n om ear é antes de tudo algo que tem
a ve r com um a le itu ra do traço 1, designando a d iferen ça absoluta,
podem os perguntar-nos com o c ifrar a espécie de sou que aqui se constitu i
em a lgum a espéc ie retroa tivam en te , s im p lesm en te pe la repro jeção do
que se con stitu i com o s ign ifica do do penso, a saber, a m esm a coisa, o
d escon h ec id o [i] do que está na or igem sob a fo rm a do sujeito.
Se o 1 que aqu i ind ico , sob a fo rm a d e fin itiva que vou lhe deixar, é
a lgo que aqu i se supõe nu m a p rob lem ática total, a saber, que é tão
ve rd ad e iro que e le não é, posto que e le só é ao pensar a pensar, é
todavia corre la tivo , in d ispen sáve l - e é exa tam en te o que faz a fo rça do
a rgu m en to cartesiano de toda apreensão de um pensam ento, desde o
- 1 0 9 -
A Identificação
m om ento em que e le se encade ia - esse cam inho lhe é aberto em d ireção
íi um co g ita tu m de a lgo qu e se articu la : co g ito ergo sum . Vou saltar por
hoje os in term ed iá r ios disso, porqu e vocês verão na seqü ên c ia don de
eles vêm e porque, a fina l, no pon to em que m e en con tro , fo i n ecessá rio
que eu passasse por ali. H á algo de que d ire i que é ao m esm o tem po
paradoxa l - por que não d ize r d ivertid o? - m as lhes rep ito : se isso tem
um in teresse , é pe lo que isso pode ter de operan te . U m a tal fórm u la em
m atem ática é o que se cham a de série. Passo para vocês aqu ilo que pode
imediatamente, para qualquer pessoa que tenha uma prática da matemática,
se co loca r com o questão: se é um a série, é um a série con vergen te? Isso
quer d izer o quê? Isso quer d izer que, se no lugar de ter p equeno i vocês
tivessem 1 por toda parte, um es fo rço de fo rm a lização lhes p erm itir ia
im ed ia tam en te ver que essa série é con vergen te , isto é, que se m inha
lem brança é boa, ela é igual a algo com o:
1+V52
O im portante é que isso quer d izer que se vocês efetuarem as operações
de que se trata, vocês terão, portanto, os valores que, se vocês os reportarem ,
tom arão ap rox im adam en te essa form a, até v ir a con verg ir sobre um
va lor p e rfe ita m en te con stan te que se cham a de lim ite :
1+, 1 3 , 1l4TÏT "2 1
1+ í+r1+-
1+ -
1. > etc ' 5
1+ 1+1
E n con tra r um a fo rm u la co n ve rgen te na fó rm u la p re c e d en te nos
in teressaria tanto m en os quanto o su jeito é um a fu nção que ten d e a
um a p erfe ita estab ilidade. M as o que é in teressan te - e é aí que dou
um salto, porque, para fo rn ece r os e lem entos necessários à com preensão,
não ve jo outro je ito senão com eça r a p ro jetar a tarefa e vo lta r em seguida
s\ lanterna - tomem i con fiando em mim com o valor que ele tem exatam ente
n;i teoria dos núm eros, on de é cham ado de im agin ário - não é um a
Lição de 10 de janeiro de 1962
h om on ím ia que, por si só, m e parece aqui ju s tific a r essa extrapo lação
m etód ica , esse pequ eno m om en to de salto e de con fia n ça que lhes peço
fa ze rem -- esse va lor im agin ário é o segu in te : >/.] Vocês sabem, seja
com o for, o su fic ien te de a r itm ética e lem en ta r para saberem que -y/_ j
ra iz de m en os um não é nen hu m nú m ero rea l. N ão há nenhum nú m ero
negativo, /-1/ por exem plo , que possa de algum m odo p reen ch er a função
de ser a ra iz de um n ú m ero qu a lqu er cu jo fa to r seria a/-1 Por que?
Porque, para ser a ra iz quadrada de um nú m ero negativo , qu er d ize r
que e levado ao quadrado, dá um núm ero negativo. Ora, nenhum núm ero
e levado ao quadrado pode dar um n ú m ero negativo , já que todo nú m ero
n ega tivo e leva do ao quadrado torna-se positivo . E por isso que é
apenas um algoritm o, m as um a lgoritm o que serve.
Se vocês d e fin em com o n ú m ero com p lexo todo n ú m ero com posto de
um n ú m ero rea l a ao qua l é acresc ido um n ú m ero im agin ário , isto é,
um n ú m ero que não pode de fo rm a algum a se ad ic ion ar a e le - já que
e le não é um n ú m ero rea l - fe ito do produto de a/^1 ̂ com b, se você
d e fin e isso com o nú m ero com p lexo , você poderá fa ze r com esse núm ero
com p lexo , e com o m esm o sucesso, todas as operações que você pode
fa ze r com nú m eros rea is, e quando vocês se tiverem lançado nesse
cam in h o , vocês terão tido não som en te a satisfação de p erceber que
isso fu n c ion a , m as que isso p erm itirá fazer descobertas, isto é, perceber
que os núm eros assim constituídos têm um valor que perm ite notadam ente
operar de m an e ira pu ram en te nu m érica com o que se cham a de vetores,
is to é, com grandezas que serão não som en te p rovidas de um va lor
d iversam en te rep resen táve l por um com prim en to , mas, a lém disso, que
graças aos núm eros com plexos vocês poderão im plicar em sua conotação,
não som en te a d ita grandeza , m as sua d ireção e, sobretudo, o ângu lo
que e la fa z com tal ou tra grandeza, de sorte que que não é um
n ú m ero rea l, m ostra, do pon to de vista op era tório , ter um a p otên cia
s in gu la rm en te m ais prodigiosa, se posso dizer, que tudo aqu ilo de que
você d ispôs até agora lim itando-se à série dos núm eros reais. Isso para
in trodu zi-los ao que é esse pequeno i.
E então, se se supõe que buscamos aqui conotar, de m aneira num érica ,
a lgu m a co isa sobre a qu a l podem os operar, dando a ela esse va lor
convencional de-^T^ sso quer dizer o que? Que, assim com o nos dedicamos
a e laborar a fu n ção da un idade com o fu nção da d iferen ça rad ical na
A Identificação
d e te rm in ação desse c en tro id ea l do su jeito , que se cham a de Id ea l do
Eu, assim também na seqüência, e por uma boa razão, é que o identificarem os
àqu ilo qu e até agora in trodu zim os em nossa con otação pessoal com o 1
isto é, a fu n ção im ag in ária do fa lo. Vamos nos d ed ica r a ex tra ir dessa
conotação , ^ -1 , tudo aquilo a que ela pode nos servir de um modo operatório.
Mas, enquanto aguardam os, a utilidade de sua introdução, nesse n íve l,
se ilu s tra nisso: é que se vocês pesqu isam o que e la faz, essa função ,
em ou tros term os, é que está ali em toda parte onde vocês v iram
um p equ en o i, vocês v ê em ap arecer um a fu n ção que não é de fo rm a
a lgu m a um a fu n ção con vergen te , que é um a fu n ção p e rió d ica qu e é
fa c ilm en te ca lcu láve l; é um va lor que se renova, se se pode d izer, a
cada três tem pos na série . A séria se d e fin e assim:
Vocês en con tra rão p erio d icam en te , isto é, cada três vezes na série ,
esse m esm o valor, esses m esm os três va lores que vou dar. O p r im e iro é
i + 1, is to é, o pon to de en igm a em que estam os para pergu n tar-n os
qual va lo r poderíam os dar a i para con otar o su je ito enqu an to su jeito
de an tes de toda n om in ação . P rob lem a que nos interessa. O segundo
va lo r que vocês en con tra rão , a saber
i + 1 p rim e iro term o da série,
1
1+ ------ : segundo te rm o da série , ei + 1 / + 1
/+ 1é es tritam en te igu a l a ——
Lição de 10 de janeiro de 1962
e isso é bastante in teressante, pois a prim eira coisa que nós encon tram os
é o segu in te : é que a re la çã o essen cia l desse a lgo que buscam os com o
sendo o su je ito , antes que e le se n om eie , no uso que e le pode fa ze r de
seu n om e s im p lesm en te para ser o s ign ifican te do que há a sign ificar,
isto é, da questão do s ign ificado ju stam en te dessa ad ição de le m esm o
com seu próprio nom e, é im ed ia tam en te s p lit te r , d iv id i-lo em dois, fa zer
com que só reste um a m etad e de lite ra lm en te
1 + 1— -— , daqu ilo que havia em p resença.
C om o vocês p od em ver, m inhas palavras não são preparadas, mas
são a inda assim ca lcu ladas e essas coisas são, apesar de tudo, o fru to
de um a e laboração qu e re fiz por m il portas de en trada assegurando-
m e de um certo num ero de controles, tendo em seguida um certo nú m ero
de o r ien ta ções nos cam inhos que vão seguir. O te rce iro valor, isto é,
quando vocês in terrom p em a li o term o da série , será 1 s im p lesm en te ,
o que, p or m u itos lados, p od e te r para nós o va lo r de um a esp éc ie de
con firm ação de fech o . Q uero d ize r que é, a saber, que se é no te rce iro
tem po - coisa curiosa, tem po rum o ao qual nenhum a m editação filosó fica
não nos levou a nos d e te rm os esp ec ia lm en te - is to é, no tem po do
penso en qu an to e le é e le m esm o objeto de pensam en to e se tom a com
objeto, é nesse m om en to aí que parecem os con segu ir a lcan çar essa
fam osa u n idade, cu jo ca rá te r satis fa tório para d e fin ir o que qu er que
seja não é segu ram en te duvidoso, mas que podem os nos indagar se é
da m esm a un idade qu e se trata, daquela de que se tratava no m om en to
da partida, ou seja, na id en tific a çã o p rim ord ia l e desen cadeadora , de
todo m odo, é p rec iso que eu deixe, por hoje, aberta essa questão.
- 1 1 3 -
.
1
LIÇÃO VIII
17 de ja n e ir o de 1962
Eu não cre io que, por m ais paradoxa l que possa parecer, à p r im e ira
v ista, a s im bo lização com a qual te rm in e i m eu d iscu rso na ú ltim a vez ,
fa zen d o o su je ito suportar-se no sím bolo m atem ático ypT, não c re io que
tudo para vocês ali seja apenas m era surpresa.
Q uero d ize r que, se nos lem brarm os do próprio m étod o cartesiano,
não poderem os e squ ecer a que este m étodo leva seu autor. E i-lo dando
um bom passo em d ireção à verdade, m ais a inda: essa verdade não é,
de form a algum a, n e le com o em nós, posta no parêntese de um a dim ensão
que a d istingue da rea lidade. Essa verdade sobre a qual D escartes avança,
com seu passo conqu istador, é bem daquela da co isa que im porta . E
isso nos leva a que? A esvazia r o m undo até não d e ixar n e le m ais que
esse vazio que se cham a de extensão.
C om o isto é possível? Vocês sabem que e le vai escolher, com o exem plo,
d erre ter um b loco de cera . Será, por acaso, que e le esco lh e essa m atéria
ou será que e le é levado a e la por ser a m atéria id ea l para receb er o
selo, a assinatura d ivina? N o entanto, após essa operação quase a lqu ím ica
que e le rea liza d ian te de nós, e le vai fa zê-la d esvan ecer-se, redu zir-se
a não ser m ais qu e a pura extensão; nada m ais on de possa se im p r im ir
aqu ilo que, ju s tam en te , está e lid ido em sua exp eriên c ia . N ão há m ais
re lação en tre o s ign ifica n te e nen hum traço natural, se posso exp r im ir-
m e assim , e, m ais p rec isam en te , o traço natural por ex ce lên c ia que
con stitu i o im agin ário do corpo. Isso não quer dizer, ju s tam en te , que
esse im ag in ário possa ser rad ica lm en te repe lid o , mas e le está separado
do jo go do sign ifican te. E le é o que é: e fe ito do corpo, e com o tal recusado
com o tes tem u n h a de qu a lqu er verdade. N ada a fa ze r com ela senão
- 1 1 5 -
A Identificação
v iver dela, dessa im aginária teoria das paixões, m as sobretudo não pensar
com ela. O hom em pensa com um discurso reduzido às evidências daquilo
que se cham a de lu z natural, isto é, um grupo log ís tico que, desde logo,
ter ia pod ido ser outro, se D eus o tivesse qu er id o [Teoria das pa ixões].
Aqu ilo de que Descartes não pode ainda se dar conta é que nós podem os
qu erê - lo em seu lugar; é que uns 150 anos após sua m orte nasce a
teoria dos conjuntos - ela o teria entusiasm ado - on de m esm o os núm eros
um e zero são apenas o ob jeto de uma d e fin ição litera l, de um a de fin ição
ax iom ática , p u ram en te fo rm a l, e lem en to neu tro . E le teria pod ido fa ze r
a econ om ia do D eus veríd ico , o D eus en gan ador só poden do ser aqu ele
que trapacearia na solução das p róprias equ ações . M as n in gu ém jam a is
v iu isso; não ex is te o m ilagre da com b inatória , a não ser o sen tido que
lh e dam os. Já é suspeito a cada vez que lh e dam os um sen tido. É por
isso que o Verbo ex is te , m as não o D eus de D escartes . Para que o D eus
d e D escartes existisse* seria n ecessá rio que tivéssem os um pequ en o
co m eço de prova de sua von tade c riadora no d om ín io da m atem ática .
O ra, não fo i e le quem in ven tou o transfin ito de Cantor, fom os nós. É
bem por isso que a h istória nos con ta que os g ran des m atem áticos , que
abriam esse a lém da lóg ica divina, E u ler em p rim e iro lugar, tiveram
m u ito m edo. E les sabiam o que faziam ; e les encon travam , não o vazio
da exten são do passo cartesiano, que fin a lm en te , apesar de Pascal, não
p rodu z m ais m ed o em n in gu ém , porque já se tem co ragem de ir habitá-
lo cada ve z m ais lon ge , m as o vazio do O utro, lugar in fin ita m en te m ais
tem íve l, já que é p reciso a lguém n e le . É por isso que, c in g in d o a questão
do sen tido do su jeito, tal com o e le se evoca na m ed ita ção cartesiana,
não acred ito fa ze r nada - m esm o se piso nu m d om ín io tantas vezes
p erco rr ido , que acaba parecen do tornar-se reservado a alguns - não
acred ito fa ze r algo de que eles possam se desinteressar, aqueles m esm os,
já que a questão é atual, m ais atual que nenhum a outra, e m ais atualizada
a in da - acred ito poder m ostrá-lo a vocês - na psicaná lise .
A qu ilo em d ireção a que, portan to, ho je vou con du zi-los é a um a
con sid eração , não da origem , m as da posição do su jeito, já que na ra iz
do ato da fa la há algo, um m om en to em que e la se insere num a estrutura
de linguagem , e que essa estrutura de linguagem , enquanto é caracterizada
n esse pon to orig ina l, ten to cercá-la , d e fin i- la em torno de um a tem ática
que, de m an e ira im aginada, se encarna, está com p reen d id a na id é ia
de um a con tem p oran e id ad e or ig in a l da escrita e da p rópria lingu agem ,
- 116-
c
Cum a v e z que a escr ita é con otação s ign ifica n te , não é tanto qu e a fa la
a c ria m as sim que e la a le ia , que a gên ese do s ign ifican te num certo
n ív e l do rea l, qu e é um de seus eixos ou ra ízes, é, para nós, sem dúvida,
o p r in c ipa l para con ota r a v inda à luz do dia dos e fe itos , d itos efe itos de
sen tid o . N essa re lação p rim e ira do su jeito, n aqu ilo que e le pro jeta atrás
de si n a ch tra g lich , apenas pelo fato de se engajar por sua fala, a p rincíp io
ba lbucian te, depo is lúd ica, até m esm o con fu siona l, no d iscurso com um ,
o qu e e le p ro jeta atrás de seu ato, é a í que se p rodu z esse a lgo em
d ireção ao qua l tem os a coragem de ir, para in terrogá -lo em n om e da
fó rm u la wo es war, so ll ic h w erden, que ten d eríam os a em pu rrar rum o
a um a fórm u la m u ito lige iram en te d iferen tem en te acentuada, no sentido
de um sendo tendo sido, de um Gewesen que subsiste na m ed ida em
que o su jeito, ao avançar nesse rum o, não pode ign ora r que é p rec iso ,
um trabalho de pro fu ndo rev iram en to de sua posição para que e le possa
ap reen der-se ali. D esde já , a í algo nos d ir ig e rum o a algo que, por ser
in ve rtid o , nos sugere a observação de que, por si só, em sua ex is tênc ia ,
a negação, desde sem pre, não deixa de escon d er um a questão; o que
e la supõe? E la supõe a a firm ação sobre a qual se apóia? Sem dúvida.
M as será qu e tal a firm ação será, apenas, a a firm ação de a lgum a coisa
do rea l qu e estaria s im p lesm en te suprim ida? N ão é sem surpresa, não
é sem m a líc ia que podem os encon trar, sob a pena de Bergson, a lgum as
linh as pelas quais e le se levan ta con tra toda id é ia do nada, posição
bem co n fo rm e a um pensam en to em seu fu n do atado a um a esp éc ie de
rea lism o in gên u o :_ “ E x is te m ais, e não m en os, na id é ia de um ob jeto
con ceb id o com o não ex is ten te do que na id é ia desse m esm o ob jeto
c o n c e b id o co m o e x is te n te , po is a id é ia do ob je to não e x is te n te é
necessa riam en te a idé ia do ob jeto existindo com , a mais, a represen tação
de um a exclu são desse ob jeto pela rea lidade atual tom ada em b lo c o ” .
Será, assim, que podem os con ten tar-nos em situá-lo? Por um m om en to ,
le v em os nossa a ten ção para a p rópria negação . É assim que podem os
con ten tar-n os , nu m a s im p les exp eriên c ia de seu uso, de seu em prego ,
em s ituar-lhes os e fe itos . r
C on du zam o-n os, então, por todos os cam in h os de um a in vestigação
lin gü ís tica , a lgo a que não podem os fu rtar-nos. D e resto, já avançam os
nesse sen tido , e se vocês bem se lem bram , já se fe z alusão aqu i, há
m u ito tem po, às observações m u ito sugestivas, senão escla recedoras,
de Eduard P ich on ou D am ourette , em sua co laboração a um a gram ática
cc
Lição de 17 de janeiro de 1962
- 1 1 7 - C
A Identificação
m uito r ica e m u ito fecu n d a a considerar, gram ática esp ec ia lm en te da
língua francesa na qual suas observações vêm apon tar qu e não ex iste ,
d izem eles, p rop riam en te fa lan do , n egação em francês. Q u erem d izer
que essa fo rm a s im p lificad a , em seu sen tido da ab lação rad ica l, tal
com o e la se exp r im e na queda de certas frases alem ãs, d igo na queda
p orqu e é exa ta m en te o te rm o n ic h t qu e , por v ir de u m a m a n e ira
surpreendente na conclusão de uma frase prosseguida em registro positivo,
p erm itiu ao ou v in te fica r até o fin a l na m ais p e rfe ita in d e te rm in ação e
rad ica lm ente num a posição de crença; por m eio desse n ich t que a rasura,
toda a s ign ifica çã o da fra se se acha exc lu ída . E xc lu íd a de quê? Do
campo da adm issibilidade da verdade. P ichon observa, não sem pertinência,
que a d ivisão, a separação m ais ord inária em fran cês da n egação en tre
um ne de um lado e um a palavra auxiliar, o pas, o person ne , o r ie n , o
p o in tx o m ie , o g o u tte 33, que ocu pam um a pos ição na frase en u n c ia tiva
que resta a p rec isar em re la ção ao ne n om eado p rim eiro , que isto nos
sugere p rin c ipa lm en te , ao o lh ar de p erto o uso separado que pode disso
ser feito, atribuir a uma dessas funções uma significação dita d iscordancia l,
à ou tra um a s ign ifica ção exc lu s iv a . É ju s tam en te de exc lu são do rea l
que estaria en carregado o pas, o p o in t , ao passo qu e o ne e xp r im ir ia
essa d issonância por vezes tão sutil que não passa de um a som bra, e
p r in c ipa lm en te nesse fam oso ne, que vocês sabem que f iz gran de caso
para tentar, pe la p rim e ira vez, ju s tam en te , de n e le m ostrar a lgo com o
o rastro 34 do su je ito do in con sc ien te , o ne d ito exp le tivo . O ne desse je
cra in s q u ’ i l ne v ien n e [rece io que e le venha], vocês sabem perfe itam en te
que e le não quer d izer nada m ais que j ’ esperais q u ’ i l v ien n e [eu esperava
que e le v iesse ]. E le exprim e a discordância de nossos próprios sentim entos
em relação a essa pessoa, e le ve icu la de a lgum a m an e ira o rastro tanto
m ais sugestivo de ser encarnado em seu sign ifican te, já que o cham am os
em ps icaná lise de am b iva lên c ia . Je c ra in s q u ’ i l ne v ien n e , não é tanto
exp r im ir a am b igü idade de nossos sen tim en tos quanto m ostrar, por
essa sobrecarga, o quanto, num certo tipo de relações, é capaz de ressurgir,
de emergir, de se reproduzir, essa distinção do sujeito do ato da enunciação
enqu an to tal, em relação ao su je ito do enu n ciado , m esm o se e le não
está p resen te no n ív e l do en u n c iado de um a fo rm a que o d esigne . Je
cra in s q u ’ i l ne v ie n n e é um te rce iro ; seria, se se d issesse j e c ra in s que
je ne fasse [rece io que eu faça ], o que não se d iz m u ito , em bora seja
con ceb íve l, o que se estaria no n ív e l do en u n ciado . Todavia , pou co
Lição de 17 de janéiro de 1962
im porta que e le seja designável, aliás, vocês podem ver que posso fa zê -
lo aparecer, no n ív e l do enun ciado, e um su jeito , m ascarado ou não no
n íve l da enunciação, represen tado ou não, nos leva a fazer-nos a pergunta
da fu n ção do su jeito, de sua form a, daqu ilo qu e e le suporta, e a não
nos enganarm os, a não crerm os que é s im p lesm en te o j e [s h ifte r ] que,
em sua fo rm u lação do enu n ciado , o designa com o o que, no instan te
que d e fin e o p resen te , tom a a palavra?
O su je ito da enu n c iação ta lvez tenha sem pre um ou tro suporte. O
qu e a rticu le i é que, m u ito m ais, esse p equ en o ne, aqu i ap reen síve l sob
a fo rm a exp le tiva , é aí que devem os recon h ecer, p rop riam en te fa lando,
num caso exem plar, o suporte. E claro, tam bém não é d ize r tam pouco
que, nesse fen ôm en o de exceção , nós devam os reco n h ecer seu suporte
exc lu s ivo . O uso da língua va i-m e p e rm itir sub linhar d ian te de vocês,
de um a m aneira bem banal, não tanto a d istinção de P ichon , na verdade,
eu não a acho sustentável até seu term o descritivo. Fenom enologicam ente,
e la repousa sobre a idé ia , in adm iss íve l para nós, de que se pode de
a lgum a fo rm a fra gm en ta r os m ov im en tos do p en sam en to . C on tudo,
vocês têm essa con sc iên c ia lingü ís tica que lhes p e rm ite im ed ia tam en te
ap rec ia r a o r ig in a lid ad e do caso em que vocês têm som en te , em que
vocês podem , no uso atual da língua... isso n em sem pre fo i assim ; em
tem pos arca icos a fo rm a que vou agora fo rm u la r d ian te de vocês era a
m ais com u m . Em todas as línguas, um a evo lu ção se m arca com o um
deslizam ento, que os lingüistas tentam caracterizar, das form as da negação.
O sen tido com o esse d es lizam en to se exe rce , ta lvez daqu i a pouco lhes
d iga sua linh a gera l, e la está expressa sob as penas dos especia listas.
M as, por enqu an to , tom em os o s im ples exem p lo daqu ilo qu e se o fe re c e
a nós simplesmente na distinção entre duas fórmulas igualmente admissíveis,
igu a lm en te receb idas, igu a lm en te expressivas, igu a lm en te com uns: a
do j e ne sais com a do j ’ sais pas35. Vocês v êem , acho, de im ed ia to , qual
é a d iferen ça , d ife ren ça de acento. Este j e ne sais não deixa de ter seu
m an eir ism o, é lite rá rio , é p re fe r íve l a je u n e s n a tio n s , m as é da m esm a
ordem . Am bos são M arivaux, senão riva is36. O qu e exp r im e este j e ne
sais é essen c ia lm en te a lgum a coisa com p le tam en te d ife ren te do ou tro
cód igo de expressão, o do j ’sais pas: exp r im e a oscilação , a hesitação ,
m esm o a dúvida. Se evoqu e i M arivaux não fo i por acaso; é a fo rm a
ord in ária na cen a on d e p od em fo rm u lar-se as con fissões veladas. Junto
a este j e ne sais, careceria d ivertim o-nos ortografando, com a am bigüidade
- 1 1 9 -
A Identificação
dada por m eu jo g o de palavras, o j ’ sais pas p e la ass im ilação qu e e le
so fre d ev ido à v iz in h an ça com o s inau gu ra l do verbo, o j do j e que se
tom a um chê aspirado, que é aí sibilante surda. O ne aqui engolido desaparece:
toda a frase vem repousar sobre o pas pesado da oclusiva que o determ ina.
A expressão só ganhará seu acento um pouco irrisório, até m esm o vulgar,
no m om en to justam ente de seu desacordo com o que haverá de expresso
então. O ch ’sais pas m arca, se posso d izer assim, até m esm o o corte de
alguma coisa onde, bem ao contrário, o sujeito sofre um colapso, é esmagado.
“ Com o é que isso acon teceu ?” - pergunta a autoridade, depois de algum
episódio malogrado, ao responsável. “Ch’sais pas”. E um buraco, uma hiância37
que se abre, no fundo do qual o que desaparece, subm erge, é o próprio
sujeito. Mas aqui e le não aparece m ais em seu m ovim en to oscilatório no
suporte que lhe é dado por seu m ovim en to original. Mas, ao contrário,
sob uma form a de constatação de sua ignorância, propriam ente dita, expressa,
assumida, até m esm o projetada, constatada, é algo que se apresenta com o
um não estar ali, projetado sobre uma superíic ie , sobre um plano onde e le
é com o tal reconhecido.
E o que nós nos aproxim am os, por esse cam inho , nessas observações
con tro láve is de m il m aneiras, p o r toda a sorte de ou tros exem plos , é
a lgo de que, no m ín im o, d evem os re ter a id é ia de um a dupla ve rten te .
Será que essa dup la v e rten te é ve rd ad e ira m en te de oposições , com o
P ich on deixa en trever? Q uanto ao próprio aparelho, será que um exam e
m ais avançado pode perm itir-nos reso lvê-lo? O bservem os p rim eiram en te
que o ne desses dois term os tem a aparência de so frer a a tração do que
se pode cham ar de grupo de fren te da frase, já qu e e le é agarrado,
suportado pela fo rm a p ron om in a l. Esse p e lo tão de fren te , em fran cês,
é n o táve l nas fórm u las que o acum u lam , tais com o je ne le, j e le lu i,
isso agrupado antes do verbo não deixa de refletir uma profunda necessidade
estru tura l. Q ue o ne ven h a agregar [-se] aí, eu d ire i que não é isso o
que nos parece o m ais n o táve l. O que nos p a rece m ais n o táve l é o
segu in te : é que, ao v ir agregar-se, e le acen tu a o que eu ch am aria de
s ign ifican tiza ção subjetiva. N o tem , de fato , que não é por acaso que
fo i no n ív e l de um je ne sais, de um je ne pu is , de um a certa ca tego ria
que é aqu ela dos verbos on de se situa, se in sc reve a posição sub jetiva
p rop riam en te , que eu en co n tre i m eu exem p lo de em p rego iso lado do
ne. Há, de fato , todo um reg istro de verbos cu jo uso é ap ropriado a
- 1 2 0 -
Lição de 17 de janeiro de 1962
fazer-nos observar que sua função muda profundam ente, se são empregados
na p rim e ira , na segun da ou na te rce ira pessoas. Se eu d igo j e c ro is
q u ’i l va p le u v o ir [c re io que va i ch over], isso não d istingue de m inha
en u n c iação que va i chover, um ato de crença . Je cro is q u ’i l va p le u v o ir
conota s im p lesm en te o caráter con tingen te de m inha previsão. O bservem
que as coisas se m od ifica m , se passo às outras pessoas: tu c ro is q u ’i l va
p le u v o ir [você c rê qu e va i ch o ver ] fa z m u ito m ais ape lo a a lgum a coisa,
àqu e le a qu em m e d irijo , fa ço ape lo a seu testem u nho. I l c r o it q u ’i l va
p le u v o ir [e le c rê que va i ch o ver ] dá cada ve z m ais peso à adesão do
su je ito a sua cren ça . A in trodu ção do ne será sem pre fá c il quando e le
v ie r ju n ta r-se a esses três suportes p ronom in a is desse verbo que tem
aqu i fu n ção variada: a p rin c íp io , do m atiz en u n c ia tivo a té o en u n c iad o
de um a posição do su je ito , o peso do ne serv irá sem pre para recon d u zi-
lo em d ireção ao m a tiz en u n c ia tivo . Je ne cro is pas q u ’i l va p le v o ir [não
creio que vai chover] é ainda mais ligado ao caráter de sugestão disposicional,
que é a m inha . Isso pode não ter nada a ve r com um a n ão-cren ça , m as
s im p lesm en te com m eu bom -hum or. Je ne cro is pas q u ’i l va p le v o ir , j e
ne cro is pas q u ’i l p leu ve [não acred ito que ch ova ], isso qu er d ize r que
as coisas não m e parecem desfavoráveis. Da m esm a form a, ao acrescentá-
lo às duas outras fo rm u lações , o que aliás vai d is tin gu ir duas ou tras
pessoas, o ne ten d erá a “ eu -iza r” aqu ilo de que se trata nas ou tras
fórm u las. T u ne c ro is pas qu i l va p leu vo ir, i l ne c r o it pas qu i l d o ive
p le u vo ir , estão igu a lm en te bem . E exa tam en te en qu an to são a tra ídos
pelo je que eles serão, pe lo fa to de que é com o acrésc im o dessa pequ en a
partícu la n egativa , aqu i, in trodu zidos no p rim e iro m em bro da frase.
Será que, d ian te disso, devam os fa zer do pas a lgo que, b ru ta lm en te ,
conota o puro e sim ples fato da privação? Tal seria seguram ente a tendência
da análise de P ich on , um a ve z que e le , de fato , ten d e a agru par os
exem p los para dar-lhes todas as aparências. D e fato, não acred ito nisso,
por razões que se prendem prim eiram ente à própria origem dos significantes
de que se trata. S egu ram en te , tem os a gên ese h is tó rica de sua fo rm a
de in trodu ção na lin gu agem . O rig in a lm en te , j e n 'y va is pás p ode se
acen tu ar por um a virgu la : j e n 'y vais, pas un seul pas não vou lá, n em
um só passo], se posso dizer. Je n 'y vo is p o in t, m êm e pas d ’ u n p o in t, je
n 'y tro u v e g o u tte , i l n 'e n reste m ie [não ve jo ab so lu tam en te nada;
não en con tre i nada lá, n em um a gota; não resta nada, n em um a m igalha],
trata-se de a lgum a coisa que, lon ge de ser, na sua or igem , a con otação
- 1 2 1 -
A Identificação
de um buraco, da ausência , exp rim e bem ao con trá rio a redu ção , o
desaparecim en to ta lvez, mas não acabado, de ixan do atrás de le as m arcas
do m en or traço, o m ais evan escen te . D e fato , essas palavras, fá ce is de
restitu ir a seu va lor positivo, ao pon to em que são co rren tem en te a inda
em pregadas com esse valor, recebem sua carga nega tiva do deslizam en to
que se p rodu z em d ireção a elas da fu n ção do ne, e m esm o quando o ne
está e lid ido , é sem pre a carga n ega tiva sobre aqu elas palavras que e le
con tin u a a exercer. A lgum a coisa, se se pode dizer, da rec ip roc id ad e,
d igam os, desse pas e desse ne nos será trazida p e lo qu e oco rre , quando
in ve r tem o s sua ordem do enu n ciado da frase. N ós d izem os, exem p lo
de lóg ica : “Pas u n h om m e q u i ne m e n te ". A í tem os o pas que abre o
fogo. O qu e qu ero aqu i designar, fa zê -los captar, é que o pas, por abrir
a frase, não d esem pen h a absolu tam en te a m esm a fu n ção que lh e seria
atribu ída, no d ize r de P ich on , se fosse a qu e se exp r im e na fórm u la
segu in te : eu ch ego e v e r ific o : “I l n 'y a i c i pas u n ch a t” [A qu i não há
um só gato].
Entre nós, d e ixem -m e assinalar-lhes de passagem o va lor esclarecedor,
p riv ileg iado , até redu p lican te do p róp rio uso de um a tal pa lavra: pas
un ch a t. Se tivéssem os de fa ze r o catá logo dos m eio s de expressão da
negação, eu proporia que puséssem os, sob esse rótu lo , esse tipo de
palavras que se tornam um suporte da negação. E las não d e ixam de
con stitu ir um a ca tego ria espec ia l. O qu e tem o gato a ve r com essa
questão? Mas d e ixem os isso de lado, por enqu an to . Pas u n h om m e qu i
ne m en te [N ão há um só h om em que não m in ta ] m ostra sua d ife ren ça
com esse con certo de carên c ia , a lgo que está to ta lm en te no ou tro n íve l
e que é su fic ien tem en te in d icad o pe lo em prego do subjuntivo. O pas
un h om m e q u i ne m en te é do m esm o n íve l que m otiva , que d e fin e todas
as form as as m ais d iscordanciais, para em pregarm os o te rm o de P ich on ,
que possam os atribu ir ao ne d esde o j e c ra in s q u ’ i l ne v ie n n e [rece io
que e le ven h a ] até o a va n t qu i l n e v ie n n e [an tes que e le ven h a ], até o
plus p e t it que je ne le c roy a is [m en or do que eu pensava] ou, a inda, i l y
a lon g tem p s que je ne V a i vu [há m u ito que não o ten h o v is to ], que
levan tam - d igo -lhes de passagem - toda sorte de qu estões que, por
enquanto, sou obrigado a deixar de lado. Faço com que notem , de passagem,
o que está con tid o num a fó rm u la com o i l y a lon g tem p s que je ne l ’ a i
vu, vocês não podem dizê-lo a propósito de um m orto ou de um desaparecido;
- 1 2 2 -
Lição de 17 de janeiro de 1962
i l y a lon g tem p s que je n c V a i vu supõe que o p róx im o en con tro é
sem pre possível.
Vocês vêem com que pru dên cia o exam e, a investigação desses term os
d eve ser m anejada . É por isso, no m om en to de ten tar expor, não a
d icotom ia , m as um quadro gera l dos d iversos n íve is da negação, na
qual nossa e x p e r iên c ia nos traz entradas de m atr izes de ou tro m odo
m ais ricas do que tudo o que se tinha fe ito no n ív e l dos filóso fos, desde
Aristóteles até Kant - e vocês sabem com o elas se cham am , essas entradas
de m atriz : p rivação , fru stração , castração. São elas que vam os ten tar
retom ar, para con fron tá -las com o suporte s ign ifica n te da n egação , tal
com o podem os ten tar id en tificá -lo . Pas un hom m e q u i ne m en te . E o
que nos sugere essa fó rm u la , “H om o m e n d a x ” , esse ju lgam en to , essa
proposição que lhes apresento sob a form a típ ica da a firm ativa un iversal,
à qual ta lvez vocês saibam que, no m eu p rim e iro sem in ário deste ano,
eu já havia fe ito alusão, a p ropósito do uso cláss ico do s ilog ism o: “ todo
h om em é m orta l, Sócrates ... e tc .” , com o que c o n o te i de passagem sua
função transferencia l. C reio que algo pode ser trazido a nós na abordagem
dessa função da negação, no n ível do uso original, radical, pela consideração
do s istem a fo rm a l das proposições, tal com o A r is tó te les as c lass ificou
nas categorias ditas da un iversa l a firm ativa e n ega tiva e da pa rticu la r
dita igua lm en te negativa e afirm ativa : A E I O. D igam o-lo im ed ia tam en te :
esse assunto d ito da oposição das p roposições, o r igem , em A ris tó te les ,
de toda sua an á lise, de toda sua m ecân ica do silog ism o, não deixa ,
apesar da aparên c ia , de apresen tar as m ais num erosas d ificu ldades .
D ize r que os d esen vo lv im en tos da log ística m odern a esc la receram essas
d ificu ldades seria m u ito ce rta m en te d ize r a lgum a coisa con tra a qual
toda a h istó ria lan ça desm en tidos. M u ito pe lo con trá rio , a ú n ica coisa
que ela pode fazer aparecer de surpreendente é a aparência de uniform idade
na adesão qu e essas fórm u las ditas aristoté licas en con tra ram até Kant,
já que Kant m an tin h a a ilusão de que estava aí um ed ifíc io in a tacáve l.
S egu ram en te , não é coisa pouca poder, por exem plo , fa ze r no tar que a
acen tu ação de sua fu n ção a firm ativa e negativa não é a rticu lada com o
tal no p róp rio A r is tó te les , e que é m u ito m ais tarde, com A verró is ,
p rovave lm en te , qu e con vém m arcar-lhes a or igem disso. S ign ifica d ize r
qu e as coisas não são tão s im ples, quando se trata de sua ap reciação .
Para aqu eles qu e n ecess itam fa ze r um a rev isão da fu n ção dessas
p roposições, vou re lem brá-la s b revem en te . H o m o m en d a x , já qu e é o
- 1 2 3 -
A Identificação
que esco lh i para in trodu zir essa revisão, tom em o-lo então, hom o e m esm o
om n is hom o, om n is hom o m endax, todo hom em é m en tiroso . Q ual é a
fó rm u la negativa? Segundo uma form a [qu e traz] e em m uitas línguas,
om n is hom o n on m en d a x pode bastar. Q uero d ize r que om n is hom o n on
m en d a x qu er d izer que, de todo hom em , é verdade iro que e le não seja
mentiroso. Todavia, para efeito de clareza, é o term o nu llus que empregamos,
n u llu s hom o m endax. Eis aí o que é con otado h ab itu a lm en te pela letra,
respectivam en te , A e E da un iversal a firm ativa e da un iversa l negativa.
O qu e va i oco rre r no n íve l das a firm ativas particu lares? Posto que
nos in teressam os pela negativa , é sob um a fo rm a nega tiva que vam os
aqu i p od er in trodu zi-las . N on o m n is hom o m en d a x , nem todo h om em é
m e n tiro s o , d ito de ou tra m aneira , eu esco lh o e v e r if ic o que há hom en s
que não são m en tirosos. Em sum a, isso não qu er d ize r que qu a lqu er
um , a liq u is , não possa ser m en tiroso , a liq u is hom o m en d a x , tal é a
p a rticu la r a firm a tiva h ab itu a lm en te d esignada , na n o tação clássica ,
pela le tra I. Aqu i, a negativa particu lar, O, será, o n on o m n is , sendo
aqu i resum ida por n u llu s , n on n u llu s hom o n on m en d a x , não há n en h u m
hom em que n ã o seja m e n tiro s o . Em ou tros term os, na m ed ida em que
tínham os escolh ido aqui, O, para d izer que nem todo hom em era m en tiroso,
isso o exp r im e de um a ou tra m aneira , a saber, qu e n ã o há n en h u m que
ha ja a í de ser n ão m en tiroso . Os term os assim organ izados se d istinguem ,
na teor ia c lássica , pe las form u las segu in tes, que as põe rec ip rocam en te
em posição dita de co n trá r io ou de subcon trá rio , isto é, que as proposições
u n iversa is A e E se opõem em seu p róp rio n ív e l com o não sabendo e
não p od en d o ser verdade iras ao m esm o tem po . N ão pode ao m esm o
tem po ser verdadeiro que todo hom em possa ser m en tiroso e que nenhum
h om em não possa ser m en tiroso , quando todas as ou tras com b in ações
são possíveis. N ão pode ser ao m esm o tem po errad o que haja hom en s
m en tirosos e hom en s não m en tirosos. A oposição d ita c o n tra d itó r ia é
aqu ela pe la qual as p roposições situadas em cada um desses quadrantes
se op õem d iagon a lm en te, A - O e E - I, de fo rm a que cada um exc lu i,
sendo verdadeira, a verdade daquela que lhe é oposta a título de contraditória,
e, sendo falsa, exc lu i a fa ls idade daquela que lh e é oposta a títu lo de
con tra d itó r ia . Se há hom en s m en tirosos, I, isso não é com p a tíve l com
o fa to de qu e n en h u m hom em não seja m en tiroso , E. In ve rsam en te , a
re lação é a m esm a da particu la r negativa , O, com a a firm ativa , A.
- 1 2 4 -
Lição de 17 de janeiro de 1962
A
omnis homo mendax
nullus homo non mendax
E
omnis homo non mendax
nullus homo mendax
aliquis homo mendax
non omnis homo non mendax
aliquis homo non mendax
non omnis homo mendax
O
O que é qu e vou p ropor a vocês, para fa zê - lo s sen tir o que, no n íve l
do texto a r is to té lico , se apresenta sem pre com o o que se d esen vo lveu ,
na h istória , de em baraço em torno da d e fin ição , com o tal, da un iversa l?
O bservem p rim e ira m en te que, se aqu i in tro d u zo o n o n o m n is hom o
m en d a x , O, o pas to u t (n ã o to d o ), o te rm o pas in c in d in d o sobre a noção
de to u t com o d e fin in d o a particu lar, não é que isso seja leg ít im o , pois
p rec isam en te A r is tó te les se opõe a isso de um a m an e ira que é con trá ria
a todo d esen vo lv im en to que pode ter em segu ida a especu lação sobre a
lóg ica form a l, a saber, um desen vo lv im en to , um a exp licação em extensão
fa zen d o in te rv ir a carcaça s im bo lizáve l p or um círcu lo , p o r um a zona
na qual os objetos que constituem seu suporte são agrupados: A ristóteles,
m u i p rec isam en te , antes dos P rim e iro s A n a líticos , pe lo m en os na obra
qu e an teced e no agru pam ento de suas obras, m as que ap aren tem en te
o a n teced e lo g ica m en te , senão c ro n o lo g ica m en te que se cham a Da
In te rp re ta çã o , fa z observar que - e não sem ter p rovocado o espanto
dos h is to riadores - não é sobre a qu a lifica ção da u n iversa lidade que
d eve in c id ir a negação . E, pois, exa tam en te por a lgum h om em , a liq u is ,
que se trata e de um algum hom em que devem os enqu anto tal in terrogar
com o m en tiroso . A qu a lificação portan to do o m n is , da om n itu de, da
C ontrárias
I * — r--------------— * 0subcontrarias
- 1 2 5 -
A Identificação
paridade da ca tego ria un iversa l é aqu i o que está em causa. Será que é
a lgum a coisa que seja do m esm o n íve l, do n íve l de ex is tên c ia do que
pode suportar ou não suportar a a firm ação ou a negação? Será que há
h om ogen e id ad e en tre esses dois n íve is? D ito de ou tra form a : será que
é de a lgum a co isa que s im p lesm en te supõe a co leção com o rea lizad a
que se trata, na d ife ren ça que há da un iversa l para a p articu lar?
Su bvertendo o a lcan ce daqu ilo que estou ten tando exp lica r-lh es , vou
p ropor-lh es algo, a lgo que é fe ito de certa fo rm a para resp on d er a quê?
À questão que liga, ju s tam en te , a d e fin ição do su je ito com o tal àqu ela
da ordem de a firm ação ou de n egação na qual e le en tra na operação
dessa d iv isão p ropos ic ion a l. N o en s in o c lássico da lóg ica fo rm a l, é d ito
- e se se buscar a qu em isso rem on ta , vou d izer-lh e , não d e ixa de ser
a lgo p ican te - é d ito que o su je ito é tom ado sob o ângu lo da qu a lidade
e que o atribu to que vocês vêem aqu i en carn ado pe lo te rm o m en d a x é
tom ado sob o ân gu lo da qu an tidade. D igo de ou tra fo rm a : em um eles
são todos, e les são vários, até há um. É o que Kant a inda con serva no
n íve l da C r ít ic a da R a zão P u ra , na d ivisão ternária . O que não d e ixa de
levan ta r grandes ob jeções por parte dos lingü istas. Q u an do se o lh a as
coisas historicam ente, percebe-se que essa distinção qualidade-quantidade
tem um a o r igem : ap arece pela p r im e ira v e z num p equ en o tratado,
p a radoxa lm en te, sobre as dou trinas de P latão e isso - é, ao con trá rio , o
enunciado aristotélico da lógica form al que é reproduzido, de um a m aneira
abreviada m as não sem d idática, e o autor é n in gu ém m en os que Apu le io ,
1 o au tor de um tratado sobre P latão - acaba por ter aqu i um a s ingu lar
função histórica, a saber, ter in trodu zido
um a ca tegorização , a da qu an tidade e
da qu a lidade, da qual o m ín im o que se
pode dizer é que é por ter sido introduzida
e por ter ficado por tanto tem po na análise
das form as lógicas que fo i ali introduzida.
Eis, de fa to , o m od e lo em torn o do
qu a l p ro p o n h o a v o c ê s h o je qu e
con cen trem sua re flexã o . A qu i está um
quadrante [ 1 ] dentro do qual vamos colocar
tra ços v e r t ic a is . A fu n ç ã o t r a ç o va i
preencher a do sujeito e a função v e rt ica l
} E
- 1 2 6 -
Lição de 17 de janeiro de 1962
que, aliás, é esco lh id a s im p lesm en te com o suporte, a do atributo. Eu
bem p od eria ter d ito que tom ava com o atribu to o te rm o unário , mas
para o lado rep resen ta tivo e im agin ável do que tenh o a lhes m ostrar,
eu os pon ho vertica is . A qu i [3 ], tem os um segm en to do quadran te onde
há traços vertica is , m as tam bém traços oblíquos. Aqu i, [2 ], não há traços.
O que isto é destinado a ilustrar é a distinção universal-particular, enquanto
e la fo rm a um par d istin to da oposição a firm ativa -n ega tiva , d eve ser
con siderada com o de um reg istro bem d ife ren te daquele que, com m aior
ou m en or destreza , os com en tadores , a partir de A p u le io , acred ita ram
d ever d irig ir, nessas fórm u las tão am bíguas, escorregad ias e con fusas
que se cham am resp ec tivam en te de qu a lidade e qu an tidade, e opô-lo
nestes termos. Cham arem os de oposição universal-particu lar uma oposição
da ordem da Àe£iç, o que é para nós Àeyü) [à e y e iv ] , eu le io , m as tam bém
eu escolho, m uito exatam en te ligada a essa função de extração, de escolha
do s ign ifica n te que é aqu ilo sobre o que, p or en qu an to , o terren o , a
passarela sobre a qual estam os avançando. Isto para distingui-la da cpamç,
isto é, de a lgo que aqu i se p ropõe com o um a fa la por onde, sim ou não,
eu m e enga jo quanto à ex is tên c ia desse a lgo qu e é posto em causa pela
XeÇiç p rim e ira . E, de fato , vocês vão ver, de que é qu e vou poder d ize r
todo traço é vertica l? O b viam en te , do p rim e iro setor do quadran te [1],
mas, observem -no, tam bém do setor vazio [2]. Se d igo todo traço é vertica l
isso qu er d ize r que, quando não há vertica is , não há traço. Em todo
caso, isso é ilu strado pe lo setor vazio do quadran te. N ão som en te o
setor vazio não contradiz, não é contrário à afirm ação todo traço é vertical,
m as a ilu stra . N ão há nen h u m traço que não seja v e rtica l, nesse setor
do quadran te. E is, portan to, ilustrada pelos dois p rim e iro s setores a
a firm ativa un iversa l.
A nega tiva un iversa l vai ser ilustrada p e los dois setores de d ire ita [2
e 4], m as o que im porta aí se form u lará pela articu lação seguinte: nenhum
traço é ve rtica l. N ão há, nesses dois setores, n en h u m traço. O que há a
ser no tado é o setor com u m [2 ], que essas duas p ropos ições recobrem
que, segundo a fórm u la, a doutrina clássica, em aparência, não poderiam
ser verdadeiras ao m esm o tem po. O que é qu e irem os encon trar seguindo
nosso m ov im en to g ira tó r io que tam bém com eço u m u ito bem ; aqu i 0,
com o fórmula, assim com o aqui I, para designar os dois outros agrupamentos
possíveis dois a dois dos quadran tes? A qu i I, nós vam os v e r o verdade iro
desses dois quadran tes sob um a fo rm a a firm ativa , há - d igo -o de uma
- 1 2 7 -
A Identificação
m an e ira fásica, con stato a ex is tên c ia de traços ve rtica is - há traços
v e r t ica is , há a lgu n s tra ços v e r t ic a is que posso encon trar, seja aqu i [1]
sem pre, seja aqui [3], em certos casos. Aqui, se tentam os defin ir a distinção
da un iversa l e da particu lar, vem os quais são os dois setores [3 e 4 ] que
respon dem à en u n c ia ção particu la r O, a li há tra ços n ã o v e r t ic a is , n on
n u llu s n on v e r t ic a lis . Assim com o, há pouco, es tivem os um in stan te
suspensos pe la am b igü idade dessa rep e tição da negação, o n on ... n on ...
está lon ge de ser fo rçosa m en te e q u iva len te ao s im , e é a lgo a que
retorn arem os em segu ida.
O qu e isso qu er d izer? Q ual é o in teresse para nós de nos serv irm os
de um tal apare lho? Por que eu ten to destacar para vocês este p lano da
XeÇiç do p lano da (paaiç? Vou tom ar essa d ireção im ed ia ta m en te e não
por quatro cam inhos, e vou ilustrá-lo .
O que podem os d ize r nós, analistas? O que nos ensina Freud? U m a
v e z que o sen tido fo i com p le ta m en te perd ido, daqu ilo que se cham a de
p ro p os içã o u n iv e rs a l, desde, ju s tam en te , um a fo rm u lação à fren te da
qua l pode-se co lo ca r a fo rm u lação eu lerian a que con segu e rep resen tar
para nós todas as fu n ções do s ilog ism o por um a série de p equ en os
círculos, seja excluindo-se uns aos outros, reagrupando-se, interseccionando-
se, em ou tros term os e para fa la r p rop riam en te em ex ten sã o, a que se
opõe a com preensão que seria d istingu ida s im p lesm en te por não sei
que in ev itá ve l m an e ira de com preender. D e com p reen d er o quê? Q ue
o cava lo é b ranco? O que há a com p reen d er? O que nós trazem os e
que ren ova a questão é isto; d igo que Freud p rom u lga , avança a fó rm u la
que é a seguinte: o pa i é Deus ou todo pa i é Deus. Daí resulta, se mantiverm os
essa p roposição no n íve l un iversa l, a de que n ã o há o u tro p a i senão
Deus, o qual, por ou tro lado, quando à ex is tên c ia , é antes na re fle xã o
freud ian a aufgehoben , antes posto em suspensão, até m esm o ein dúvida
radical. O que está em questão é que a ordem de função que in troduzim os
com o N om e do p a i é essa algum a coisa que, ao m esm o tem po, tem seu
va lor un iversa l, m as que rem ete a você , ao outro, o encargo de con tro la r
se há um pai ou não dessa na tureza.
Se não há, é sem pre ve rd ad e iro que o pai seja D eus. S im p lesm en te ,
a fórm u la só é con firm ad a pe lo setor va z io [2] do qu adran te, p or m e io
do qual, no n íve l da (pacnç, tem os há pa is que p reen ch em m ais ou m en os
a fu nção s im bólica que devem os denunciar com o tal, com o sendo aquela
do N o m e do pai, há os que, e há os que não. Mas, que haja que n ã o que
- 1 2 8 -
Lição de 17 de janeiro de 1962
sejam n ã o em todos os casos, o que aqu i é suportada pelo setor [4 ], é
exa tam en te a m esm a co isa que nos dá apoio e base à fu n ção un iversa l
do N o m e do pai, pois, agru pado com o setor no qual não há nada [2],
são ju s tam en te esses dois setores, tom ados no n íve l da àeÇiç, que se
encon tram , em razão deste aqui, deste setor suportado que com plem enta
o ou tro , que dão seu p len o a lcan ce ao que podem os en u n c ia r com o
a firm ação un iversa l.
Vou ilu strar de um a ou tra m aneira , já que tam bém , até ce rto ponto,
pode ter sido fe ita a questão sobre o seu valor, fa lo em relação a um
ensino tradicional, que deve ser o que eu trouxe na últim a vez, concernente
ao pequ en o i . A qu i, os p ro fessores d iscu tem : “ o que vam os d iz e r? ” O
professor, aqu e le que ensina , deve ensinar o quê? O que os ou tros têm
ens inado antes de le. Q u er d ize r que e le se funda sobre o quê? Sobre o
que já sofreu um a certa ÀeÇiç. O que resulta de toda ÀeÇtç é, ju s tam en te ,
aqu ilo que im porta para nós no m om en to , e no n ív e l do qual tento
m anter vocês hoje: a letra. O professor é letrado; em seu caráter universal,
e le é aquele que se funda sobre a letra no n ível de um enunciado particular.
Podem os dizer, agora, qu e e le pode ser m etad e m etade, e le pode não
ser tod o le tra d o . D a í resu ltará que ainda que não se possa d ize r que
n en h u m p ro fessor seja ile trado , haverá sem pre, no seu caso, um pou co
de letras. N ão é m en os ve rd ad e iro que se, por acaso, h ou vesse um
ângu lo sob o qual pu déssem os d izer que há even tu a lm en te , sob um
certo ângu lo , [p ro fessores ile trados ] que se ca ra c te r izem com o dando
lugar a um a certa ign orân c ia da letra, isso não nos im ped ir ia , ainda
assim , de fe ch a r o c írcu lo e de ver que o retorn o e o fu n dam en to , se se
pode d ize r assim , da d e fin içã o un iversal do pro fessor está es tritam en te
nisso, é que a id en tid a d e da fórm u la de que o pro fessor é a que le que se
id e n t if ic a com a le tra im põe, ex ige m esm o o com en tá r io de que pode
haver professores analfabetos. A casa negativa [2], com o correlativa essencial
da d e fin ição da u n iversa lidade, é algo que está p ro fu n d am en te ocu lto
no n íve l da ÀeÇtç p rim itiva .
- 1 2 9 -
(• '* )
A Identificação
todo traço é vertical (=quando não há vertical, não a traço)Todo pai e Deus(não há outro pai senão Deus)O professor se funda sobre a letra
NNão há nem traço nem vertical
Nome do pai Professor analfabeto
Pai não-pai causa perdida
(
0 (
c >1
(
Há traços verticais (A.P)Há pais que preechem + ou - a função simbólica do Nome do pai O professor não se funda senão parcialmente sobre a letra
- 1 3 0 -
Nenhum traço é vertical Há alguns que não
Nenhum professor se funda sobre a lexis
Lição de 17 de janeiro de 1962
Isso qu er d ize r a lgum a coisa: na am bigü idade do suporte particu lar
que podem os dar no en ga jam en to da nossa palavra ao N om e do pai
com o tal, não é m en os ve rd ad e iro que não podem os fa ze r o que quer
que seja que, asp irado na a tm osfera do hum ano, se posso d ize r assim,
possa - se se pode dizer - considerar-se como com pletam ente desembaraçado
do N o m e do pai. Q ue m esm o aqu i [2 vazio ] on de só há pais para quem
a fu nção do pai é, se assim posso exp rim ir-m e, de pura perda, o pai-
não-pai, a causa p erd id a sobre a qual te rm in ou m eu sem in ário do ano
passado, é todavia em fu n ção dessa perda [d éch éan ce ], em re la ção a
um a p rim e ira A.e^iç, que é aqu ela do N o m e dos pai, que se ju lg a essa
ca tegoria particu lar. O h om em só pode fa ze r com que sua a firm ação ou
sua negação, com tudo o que e la im plica , a quele é m eu -pai, ou aquele
é seu p a i, não esteja in te ira m en te suspensa por um a Àe^iç p rim itiva
que, bem en ten d ido , não é do senso com um , do sign ificado do pai que
se trata, m as de algo a que som os provocados aqu i a dar seu verdadeiro
suporte e que legitim a, m esm o aos olhos dos professores - que, vocês
vêem , estaria em grande perigo de serem sempre postos em alguma suspensão
quanto a sua fu nção rea l - que, m esm o aos olhos dos pro fessores, deve
ju s tifica r que eu ten te dar, m esm o a seu n íve l de pro fessores, um suporte
a lgoritm o a sua ex is tên c ia de su jeito com o tal.
- 1 3 1 -
1
-
LIÇÃO IX
24 de ja n e iro de 1962
E xp erim en to um a certa d ificu ldade para re tom ar com vocês o que
estou p ersegu in do , esses traços sutis, lig e iros , pe lo fa to de que on tem
à n o ite tive qu e d ize r coisas m ais pesadas38. O im portan te , no que se
re fe re à con tin u ação deste sem inário , é que o que eu disse on tem à
n o ite c o n ce rn e e v id en tem en te ã fu nção do ob jeto , do p equ en o a na
id en tific a çã o do su jeito , isto é, algo que não está im ed ia ta m en te ao
nosso a lcan ce , qu e não será reso lv ido im ed ia tam en te , sobre o qua l de i
on tem à n o ite , se posso dizer, um a in d icação an tec ipada , serv in do -m e
do tem a dos três escrín ios. Este tem a dos três escr ín ios esc la rece m u ito
o m eu en s in o porque, se vocês abrirem o que se cham a b iza rram en te
de Ensaios de Ps icanálise A p licad a e lerem o artigo sobre os três escrínios,
vocês se aperceberão que, no fina l das contas, vocês ficam um pouqu inho
insa tis fe itos. Vocês não sabem m u ito bem on de e le qu er chegar, nosso
pai Freud. C re io que, com o que lhes disse on tem à no ite , que id en tifica
os três escr ín io s à dem an da, tem a com o qual, penso, vocês já são
craqu es há m u ito tem po, que d iz que em cada um dos três escr ín ios -
sem isto não h averia ad iv inh ação , não h averia p rob lem a - há o ob je to
a, o ob jeto que é, en qu an to nos in teressa a nós analistas, mas não
fo rçosam en te , o ob jeto que correspon de à dem anda. D e m aneira algum a
fo rçosam en te tam bém não o con trá rio , porqu e sem isto não haveria
d ificu ldades . Esse ob jeto é o ob jeto do desejo , e o dese jo on de está?
Está fo ra ; e aí on de está ve rd ad e ira m en te , o pon to d ecis ivo , é você , o
analista, na m ed ida em que seu desejo não d eve se en gan ar sobre o
ob jeto do desejo do su jeito . Se as coisas não fossem assim , não haveria
A Identificação
m érito em ser analista. H á um a coisa que lhes d igo tam bém , de passagem,
é que tenho, a inda assim , acen tu ado, d ian te de um au d itó rio suposto
não saber, a lgo sobre o qua l ta lvez não tenha insistido su fic ien tem en te
aqui, isto é, que o sistem a do in conscien te , o sistem a ¥ , é um sistem a
parcial. M ais um a ve z repu d ie i - e v id en tem en te com m ais en erg ia que
m otivos, visto que deveria andar ráp ido - a re fe rên c ia à totalidade, o que
não exclui que se fale de parcial. Insisti, nesse sistema, sobre sua característica
extra-plana, na sua característica de superfíc ie sobre a qual Freud insiste
com toda força, o tem po todo. Pode-se apenas ficar surpreso que isso tenha
engendrado a m etáfora da psicologia das profundezas. É in te iram en te por
acaso que, há pouco, antes de vir, tenha encontrado um a nota que eu
havia tom ado sobre O Ego e o Id : “ o eu é antes de tudo um a entidade
corporal, não som ente uma entidade toda em superfície, mas uma entidade
correspondente à projeção de um a su perfíc ie ” . É um nada! Q uando se lê
Freud, lê-se sem pre de uma certa m aneira que cham arei de m aneira surda.
R etom em os agora nosso bastão de p eregrin o [?], retom em os de on de
estamos, onde lhes deixei na ú ltim a vez, a saber, na id é ia de que a negação,
se ela está em algum lugar no cen tro de nosso problem a, que é aqu ele do
su jeito, não é an tes im ed ia tam en te , nada m ais que tom á-la em sua
fenom eno log ia , a coisa m ais s im ples de manejar. Está em m uitos lugares,
e depois acon tece todo tem po que ela escorrega en tre nossos dedos. Vocês
viram , por exem plo , da ú ltim a vez, durante um instan te a respeito do
non n u llu s n on m endax, vocês m e viram co lo ca r este n on , retirá-lo , e
reco locá-lo . Isto se vê todos os dias. A lguém m e assinalou, no in terva lo ,
que nos discursos daquele que a lguém num b ilhete , m eu pobre e caro
am igo M erleau-Ponty, cham ava “ o grande hom em que nos govern a” , num
discurso que o d ito grande hom em pronunciou , escuta-se “não se pode
não crer que as coisas se passarão sem prob lem as” . Sobre isso, exegese:
o que e le quer d izer? O in teressan te não é tanto o que quer dizer, é que
ev iden tem en te com preendem os m uito bem , justam ente, o que quer d izer
e, se analisarm os log icam en te , verem os que d iz o con trário . É um a bela
fórm u la na qual se desliza sem cessar para d izer a a lguém : “ vocês não
deixam ignorar...” [vous n’êtes pas sans...]. N ão são vocês que estão errados,
é a relação do sujeito com o sign ificante que de tem pos em tem pos em erge.
N ão são s im p lesm en te pequenos paradoxos, lapsos que aponto aí, de
passagem. E ncon trarem os essas fórm u las pelo cam inho, e penso dar-lhes
a chave desse porque “vocês deixam de ign ora r” , quer dizer, o que vocês
- 1 3 4 -
Lição de 24 de janeiro de 1962
querem dizer. Para que vocês se localizam aí posso dizer-lhes que é sondando-
o que en con trarem os o ju sto peso, a ju s ta in c lin ação dessa balança onde
coloco, d iante de vocês, a relação do neurótico com o objeto fá lico, quando
lhes digo, para agarrar essa relação, é n ecessário d izer: “ e le não é sem
tê - lo ” . Isso ev id en tem en te não quer d izer que e le o tem . Se o tivesse,
não haveria questão.
Para ch egar aí, partam os de um p equ en o lem b re te da fen om en o log ia
de nosso n eu ró tico , con ce rn en te ao pon to em que estam os: sua relação
com o s ign ifica n te . H á algum tem po com eço a lh es fa ze r ap reen der o
que há de escr ito no caso do s ign ifican te , de escr ito orig ina l. D eve,
m esm o assim , te r-lh es v indo à m en te que é essen c ia lm en te com isso
que o obsessivo tem a ver todo tem po: ungeschehen m a ch en , fa ze r com
que isso não tenha acon tec ido . O que isto qu er dizer, a que isso se
re fe re? E v id en tem en te , isso se vê no seu com p ortam en to : o que e le
q u er ex tin gu ir é o que o analista escreve ao lon go de sua h istória , o
annalista com dois n 39, o que e le tem em si. São os anais do caso que
e le qu er apagar, raspar, extingu ir. Por qua l v iés nos a tin ge o d iscurso
de Lad y M acbeth , quando e la d iz que toda a água do m ar não apagaria
essa p equ en a m ancha, se não fosse por a lgum eco que nos gu ia ao
c e rn e de nosso assunto? S om en te , ve jam , apagando o s ign ifica n te -
com o está c la ro que é disso que se trata - em sua m an e ira de fazer, em
sua m an e ira de apagar, em sua m an eira de raspar o que está inscrito ,
o qu e está m u ito m en os claro para nós, porqu e disso nós sabem os um
pou qu in h o m ais que os outros, é o que e le qu er ob ter com isso.
É n isso qu e é in stru tivo con tin u ar nessa estrada em que estam os,
aonde lhes levo, no que se refere a com o advém um sign ifican te enquanto
tal. Se isso tem um a tal re lação com o fu n d am en to do su jeito , se não
há ou tro sujeito pensável a lém dessa algum a coisa x de natural, enquanto
e la é m arcada p e lo s ign ifican te , d eve a inda assim h aver um p rin c íp io
m o to r para isso. N ão nos con ten tarem os com essa esp éc ie de verdade
de o lh os vendados. Está bem claro que é necessá rio que en con trem os
o su je ito na or igem do p róp rio s ign ifican te . “ Para sair um coe lh o de
um a ca r to la ...” , fo i assim que c o m ece i a sem ear o escânda lo nos m eus
p ropósitos p rop riam en te ana líticos. O pobre caro h om em defu n to , e
com oven te em sua frag ilidade, estava lite ra lm en te exasperado com esse
lem b re te que eu fa z ia com m uita in s is tên c ia porqu e, nesse m om en to ,
são fórm u las ú teis - de que, para fa ze r sair um coe lh o de um a cartola ,
- 1 3 5 -
A Identificação
era p rec iso tê-lo p rev iam en te co lo cado lá. D eve ser do m esm o m odo,
no qu e con cern e ao s ign ifica n te , e é o que ju s t if ic a essa d e fin içã o que
dou do sign ifican te, essa distinção fe ita com o signo: é que, se o signo
represen ta algo para alguém , o s ign ifican te é articu lado de ou tra form a,
rep resen ta o su je ito para um ou tro s ign ifica n te . Isso vocês o ve rão
su fic ien tem en te con firm ado, em todos os passos, para não largar esse
firm e corrim ão. E se e le represen ta assim o sujeito, com o é isso?
Voltem os ao nosso pon to de partida, ao nosso signo, ao pon to e le t iv o
em qu e podem os tom á-lo com o rep resen tando algo para a lgu ém , no
n íve l do rastro. Partam os outra v e z do rastro para rastrear nosso pequ eno
problema. U m passo, um rastro, o passo de Sexta-feira na Ilha de Robinson:
em oção, o coração batendo d ian te desse rastro. Tudo isso não nos ensina
nada, m esm o se desse coração batendo resu lta todo um pateado em
torno do rastro. Isso pode a con tecer a qu a lqu er c ru zam en to de rastros
an im ais. M as se, surgindo aí, en con tro o rastro daqu ilo , de que a lguém
se es fo rçou para apagar o rastro, ou m esm o se não en con tro m ais o
rastro, desse es fo rço , se re to rn e i porque sei - não f ic o m ais orgu lhoso
para tanto - que de ixe i o rastro, que eu acho que, sem nen hum corre lativo
que perm ita liga r esse apagam en to a um apagam en to gera l dos traços
da con figu ração , rea lm en te apagou-se o rastro com o tal, ten h o ce rte za
aí de que estou m e deparan do com um su je ito rea l. O bservem que,
nesse desaparecim ento do rastro, o que o sujeito procura fa zer desaparecer
é sua passagem de su je ito m esm o. O desapa rec im en to é redobrado pe lo
desaparecim ento visado que é o do ato, o próprio ato de fa zer desaparecer.
Isso não é um m au traço para que aí reconheçam os a passagem do sujeito,
quando se trata de sua relação com o s ign ifican te, na m ed ida em que
vocês já sabem que tudo o que ensino da estru tura do sujeito, tal com o
tentam os articu lar a partir dessa relação com o sign ifican te, con verge
para a em ergên c ia desses m om en tos de fa d in g p rop riam en te ligados a
essa batida em ec lipse do que só aparece para desaparecer e reaparece
para de novo desaparecer, que é a m arca do su jeito com o tal.
D ito isto, se o rastro é apagado, o su jeito cerca o lugar por um cern e ,
a lgo que desde en tão lh e con cern e , e le , a re fe rên c ia a partir do lugar
on de e le en con trou o rastro, vocês têm aí o n asc im en to do s ign ifica n te .
Isso im p lica todo esse p rocesso que com porta o reto rn o do ú ltim o tem po
sobre o prim eiro , que não poderia haver aí articu lação de um sign ifican te
sem esses três tempos. U m a vez constituído o significante, há forçosam ente
- 1 3 6 -
Lição de 24 de janeiro de 1962
dois outros antes. U m s ign ifican te é uma m arca, um rastro, um a escrita ,
m as não se pode lê - lo só. D ois s ign ifican tes é um qü ip roqu ó, ju n ta r
alhos com bugalhos. T rês s ign ifican tes é o retorno daqu ilo de qu e se
trata, isto é, do prim eiro. É quando o passo marcado no rastro é transformado,
no voca lise de qu em o lê, em pas [não], que esse passo, na con d ição de
que se esqu eça que e le qu er d izer o passo pode serv ir in ic ia lm en te , no
que se cham a de fon etism o da escrita, para rep resen tar pas e, ao m esm o
tem po, para transform ar o ra s tro de passo [la trace de pas] even tua lm ente
em n en h u m ra s tro [pas de tra ce ].
Penso que vocês escu tam de passagem a m esm a am bigü idade da qual
m e serv i quando fa le i, a respe ito do ch iste, do pas de sens40, da ausência
de sen tido, jo ga n d o com a am bigü idade da palavra sen tid o com esse
salto, essa u ltrapassagem que nos su rpreende ali on de n asce o riso,
quando não sabem os por que um a palavra nos faz rir; essa transform ação
sutil, essa pedra rejeitada que, por ser retom ada, torna-se a pedra angular,
e fa re i de bom grado o jo g o de palavras com o Jir41 da fórm u la do c írcu lo ,
tanto m ais qu e é n e la - an u n c ie i isso ou tro dia, in trodu zin d o a
que verem os que se m ede , se posso dizer, o ângu lo ve tor ia l do su jeito
em relação ao fio da cade ia s ign ifican te . E aí que estam os suspensos e
é aí que devem os nos habituar um pouco a nos deslocar, num a substituição
por on de o que tem um sen tido se transform a em equ ívoco e reen co n tra
seu sentido. Essa articulação constantem ente giratória do jogo da linguagem ,
é em suas p róprias s ín copes que tem os de lo ca liza r o su jeito , nas suas
diversas fu n ções .
As ilu strações n u nca são ru ins para adaptar um a ótica m en ta l, em
que o im ag in ário d esem p en h a um grande papel. É por isso que, m esm o
sendo um rode io , não acho ru im traçar rap idam en te para vocês um a
pequ en a observação , s im p lesm en te porque a en con tro , a essa altura,
em m inhas notas. Fa le i m ais de um a vez a p ropósito do s ign ifica n te ,
dos carac teres ch in eses , e m e em pen h o m u ito em lhes d esen ca n ta r da
id é ia de que sua o r ig em é um a figu ra im ita tiva . H á um exem p lo disso,
que tom ei som en te porqu e era o que m elh or m e servia: tom e i o p rim e iro
daqu eles a rticu lados nesses exem plos, essas form as arca icas na obra
de Karlgren que se cham a G ra m m ata serica , o que quer d izer exatam en te
os s ig n if ica n te s ch ineses. O p rim e iro do qual se serve sob sua m od ern a
fórm u la é o segu in te, é o caractere fcè, que quer d izer poder no Shuow én,
que é um a obra de e ru d ito , ao m esm o tem po prec iosa para nós p e lo seu
- 1 3 7 -
A Identificação
caráter relativam ente antigo, mas que já é m uito erudito, isto é, emaranhado
de in terp re ta ções sobre as quais podem os ter qu e retom ar. P arece que
não é sem razão que podem os con fia r na ra iz que o com en tad o r nos dá,
que é bem bon ita, a saber, que se trata de um a esqu em atização do
ch oqu e da co lu n a de ar tal com o e la vem a im pelir, na oclusiva gutural,
contra o obstáculo que lhe opõe a parte posterior da língua con tra o palato.
Isto é tanto mais sedutor que, se vocês abrem uma obra de fonética, encontrarão
um a im agem que é quase aquela para traduzir o fu ncionam ento da
oclusiva. E con fessem que não fica m al que s e ja -̂ o que é esco lh ido para
representar a palavra poder, a possibilidade, a função axial in troduzida no
m undo pelo advento do sujeito ao belo m eio do real.
A am bigüidade é total, pois um grande núm ero de palavras se articulam
kê em ch inês, nas quais isto nos serv irá de fon ética , com o acrésc im o
t 7 [fcoM], que as com p leta , com o p resen tifican do o su je ito na arm adura
s ign ifican te , e isto, t7 [k o u ], sem am bigü idade e em todos os caracteres,
é a rep resen tação da boca. C o loqu em esse signo ^ [da ] ac im a, é o
s igno dà que quer d ize r grande - f . Tem m an ifes tam en te a lgum a relação
com a pequ en a fo rm a hum ana , em gera l desprov ida de braços. Aqu i,
com o é de um grande que se trata, há braços. Isto, "Sf nada tem a ver
com o que se passa quando vocês acrescen ta rem esse s igno, com o
s ign ifican te p receden te ^ . De agora em d iante isto se lê j í , mas conserva
a m arca de um a p ron ú n cia antiga , da qual tem os provas graças ao uso
desse term o na rim a de antigas poesias, p r in c ipa lm en te aquelas do C h i-
K in g que é um dos exem p los m ais fabu losos das d esven tu ras literárias,
um a vez que e le teve o destino de se tornar o suporte de todas as espécies
de e lu cu b rações m ora lizan tes, de ser a base de todo um ensino m u ito
en ro lad o dos m andarins sobre os d everes do soberano, do povo e do
t u t t i q u a n ti, a inda que se trate p r in c ipa lm en te de can ções de am or de
o r igem cam ponesa . U m pouco de prá tica da lite ra tu ra ch in esa - não
p rocuro fazê-los crer que tenho grande prática, não m e tom o por W ie g e r
que, quando faz alusão à sua exp e r iên c ia da C h ina ..., - trata-se de um
parágra fo qu e vocês poderão en con tra r nos livros do pai W ieger, ao
a lcan ce de todos. O que quer que seja, ou tros a lém d e le esc la receram
esse cam in h o , p rin c ipa lm en te M aree i G ranet, que, a fina l, vocês não
perdem nada em abrir seu belo liv ro sobre as danças e lendas e sobre
- 1 3 8 -
Lição de 24 de janeiro de 1962
as festas antigas da C h ina . C om um pouco de es fo rço , vocês podem se
fam ilia r iza r com essa d im en são verd ad e iram en te fabu losa que aparece
do que se pode fa zer com algo que repousa nas form as m ais e lem en ta res
da a rticu la ção s ign ifica n te . Por sorte, nessa lín gu a as pa lavras são
m onossílabas. Elas são soberbas, invariáveis, cúbicas, não dá para se
enganar. E las id en tificam -se com o s ign ifican te , é o caso de d izê -lo .
Vocês têm grupos de quatro versos, cada um com posto de quatro sílabas.
A s ituação é s im p les. Se vocês as v irem e pensarem que daí tudo pode
sair, m esm o um a dou trin a m eta fís ica que não tem nen hu m a relação
com a sign ificação original, isso com eçará, para aqueles que não chegaram
lá a inda, abrindo a sua m en te . Entretan to é assim ; du ran te sécu los
ensinou-se a m oral e a po lítica com estribilhos que sign ificam no con junto
“ gostaria de trepar com v o c ê ” . N ão exagero nada, vocês vão ver.
Isso, , qu er dizer, j i , que se com en ta gra n d e poder, enorme-, isso,
naturalmente, não tem absolutamente nenhuma relação com essa conjunção.
J i igualm en te não quer d izer m ais “ grande poder” quanto essa palavrinha
para a qua l em fra n cês não há rea lm en te a lgo que nos satisfaça; sou
fo rçado a tradu zi-la por o ím pa r, no sen tido em que a pa lavra ím p a r
pode tom ar de des lizam ento , de erro , de fa lh a , de coisa que não acontece,
que m a n ca , em ing lês tão lin dam en te ilustrado pela pa lavra odd. E,
com o eu d iz ia há pouco , é o que m e lançou para o C h o u -K in g . Por
causa do C h o u -K in g , sabem os que estava m u ito ap rox im ado do kê, p e lo
m en os nisso: é que havia um a gutural na lín gu a antiga , que dá a ou tra
im p lan tação do uso desse s ign ifican te para designar o fon em a j i . Se
acrescen ta rem isso antes, que é um determ in a tivo , o da á rvore, e
que designa tudo o qu e é de m adeira , terão, um a ve z qu e as coisas
estão aí, 1 1 1 1 1 s igno, que designa a cadeira . Isto se d iz y i, e assim
por d ian te. Isto con tin u a assim , não há razão de parar. Se co loca rem
aqu i, no lugar do signo da árvore, o signo de cava lo [m á ], is to quer
d ize r insta lar-se escach ado ,|£ .
Esse p equ en o rode io , eu 0 con sidero, tem sua u tilid ade para lhes
fazer ver que a relação da letra com a linguagem não é algo a ser considerado
nu m a lin h a evo lu tiva . N ão se parte de uma origem consisten te , sensível,
para destacar daí um a fo rm a abstrata. N ão há nada que p areça com o
qu e qu er que possa ser con ceb id o com o para le lo ao p rocesso d ito do
- 1 3 9 -
A Identificação
con ce ito , nem m esm o apenas da g en era lização . H á um a seqü ên c ia de
a ltern ân cias em que o s ign ifican te vo lta a ba ter a água, se posso dizer,
do flu xo pelas pa lhetas de seu m oinho, sua roda levantando, a cada vez,
algo que jo rra para de novo recair, enriquecer-se, com plicar-se, sem que
nunca possamos, em nenhum m om ento, apreender o que dom ina; a partida
concreta ou o equívoco.
E is o que va i nos levar ao pon to de hoje, com o passo que lhes fa re i
dar, um a gran de parte ilu sões qu e nos param de um a vez, aderên cias
im agin árias, nas quais pouco im porta que todo m u ndo fiq u e aí m ais
ou m en os com as patas presas com o m oscas, m as não os analistas, são
p rec isam en te ligadas ao que cham arei de ilu sões da lóg ica fo rm a l. A
lóg ica fo rm a l é um a c iên c ia m u ito útil, com o ten te i apon tar a id é ia da
ú ltim a vez, com a con d ição de vocês p erceberem que e la lhes p e rve rte
n isso que, um a vez que e la é a lóg ica form a l, d eve r ia lhes interd itar, a
todo instante, de lhe dar o m en or sentido. É, n a tu ra lm en te , aqu ilo a
qu e se chegou com o tem po. Mas os im portan tes , os bravos, os honestos
da lóg ica s im bólica , con h ec idos há cerca de c in qü en ta anos, isso lhes
causa, asseguro, um m al danado, porque não é fá c il de con stru ir um a
lóg ica tal com o d eve ser, se e la responde v e rd ad e ira m en te ao seu títu lo
de lógica formal, só se apoiando estritamente no significante, se interditando
toda relação e, portan to, todo apoio in tu itivo no que pode se insu rg ir
do s ign ificado , no caso em que fazem os erros. Em gera l, é n isso que
nós nos re fe ren c iam os , rac ioc in o m al, porque, nesse caso, resu ltaria
qu a lqu er coisa: m in h a avó de cabeça pra baixo. O que é que isto pode
nos fa zer? Em gera l não é com isto que nós som os gu iados, porque
som os m u ito in tu itivos . Se faz-se lóg ica fo rm a l, só se pode sê-lo.
Ora, o d ivertido é que o livro de base de um a lógica sim bólica encerrando
todas as necessidades da criação m atem ática , os P r in c ip ia M a th em a tica
d e Bertrand Russel e W h iteh ead , chega a algo que está bem perto de ser
a fina lidade, a sanção de um a lóg ica s im bó lica d igna desse nom e, de
en cerra r todas as necessidades da criação m atem ática , m as os próprios
autores bem perto se detêm con siderando com o um a con trad ição de
natureza a questionar toda a lóg ica m atem ática , esse paradoxo dito de
B ertrand Russel. Trata-se de algo cu jo viés atinge o va lor da teoria d ita
dos con juntos. Em que se d istingue um con junto de um a d e fin ição de
classe, a coisa é deixada num a rela tiva am bigu idade, um a vez que o que
- 1 4 0 -
Lição de 24 de janeiro de 1962
vou lhes d izer - e que é adm itido por qua lquer m atem ático - é, a saber,
que o que d istingue um con junto dessa form a da d e fin ição do que se
cham a um a classe não é nada além de que o con junto será defin ido por
fórm u las que se cham am de axiom as, que serão co locadas no quadro em
símbolos reduzidos a letras às quais se juntam alguns significantes suplementares
in d ican do relações. N ão há absolu tam ente nen hum a outra especificação
dessa lóg ica dita s im bólica com relação à lóg ica trad iciona l, senão essa
redução a letras. Garanto-lhes, podem crer, sem que eu tenha m ais que
m e engajar em exem plos.
Portan to, qual é a v irtude, que está fo rçosam en te em algum lugar,
para que seja em razão dessa ún ica d ife ren ça que se tenh a pod ido
d esen vo lv e r um m on tão de con seqü ên cias , as quais asseguro que a
in c id ên c ia no d esen vo lv im en to de algo que se cham a de m atem ática
não é escassa, em re lação ao aparelho de que se dispôs durante sécu los
e cu jo cu m prim en to que lh e fo i fe ito , que não tenha evo lu íd o en tre
A ristó te les e Kant, se in verte? Está bem , se apesar de tudo as coisas
com eçam a fugir com o têm fe ito - pois os P r in c ip ia M a lh cm a lica constitui
dois enorm es vo lum es e só têm um in teresse m u ito escasso - m as en fim ,
se o cu m prim en to se in verte é que o aparelho outrora , por algum a razão,
encon trava-se s ingu larm en te estagnado. Então, a partir daí, com o os
autores chegam a se espantar com o que se cham a de paradoxo de Russel?
O paradoxo de Russel é o seguinte: fala-se do con junto de todos os
con juntos que não se com preendem a eles m esm os. É preciso que eu
esclareça um pouco essa história que pode parecer, à prim eira vista, árida.
Ind ico-lhes isso im ed iatam ente. Se desperto-lhes o in teresse para isso,
pelo m enos é o que espero, é com este objetivo: de que há a m ais estreita
re la çã o -e não apenas homonímica, justamente, porque trata-se de significante
e, em conseqüência, trata-se de não com preender - com a posição do
sujeito analítico enquanto, com ele tam bém, num outro sentido da palavra
compreender... e, se digo de não compreender é para que possam compreender
de todas as m aneiras que e le tam bém não se com preen de a e le m esm o.
Passar por aí não é inútil, vão ver, pois vam os por essa estrada poder
criticar a função de nosso objeto. Mas paremos um instante nesses conjuntos
que não se com preendem a eles mesm os.
E v iden tem en te, para con ceber o que está em questão, é preciso partir...
um a ve z que, apesar de tudo não podem os na com u n icação , não nos
fa zer concessões de referên cias intuitivas, porque as referên cias intuitivas
- 1 4 1 -
A Identificação
vocês já têm . É p rec iso , portan to, desarrum á-las para co lo ca r outras.
Com o vocês têm a id é ia de que há um a classe, e com o há um a classe
m am ífera, é preciso, m esm o assim, que eu tente ind icar que é necessário
re fe r ir-se a ou tra coisa. Q uando se en tra na ca tegoria dos con jun tos, é
p rec iso r e fe r ir a c lass ificação b ib liográ fica , cara a alguns, c lass ificação
com posta de d ecim a is ou outra ; porém , quando se tem algo de escrito ,
é p reciso que isso se arru m e em algum lugar. É prec iso saber com o
en con trá -lo au tom aticam en te . Então, tom em os um con ju n to que se
c o m p re e n d e a e le m esm o . T o m em o s , p o r e x e m p lo , o e s tu d o das
humanidades numa classificação bibliográfica. Está claro que será necessário
co lo ca r no in te r io r os trabalhos dos hum anistas sobre as hu m an idades.
O con ju n to do estudo das hu m an idades d eve com p reen d er todos os
trabalhos con cern en tes ao estudo das hu m an idades en qu an to tal. M as
considerem os agora os conjuntos que não se com preendem a eles mesm os:
isto não é m en os con ceb íve l, é m esm o o caso m ais com u m . E, um a vez
que som os teóricos dos con ju n tos e que já há um a classe do con ju n to
dos conjuntos que se com preendem a eles mesmos, não há verdadeiram ente
nen hum a ob jeção a que façam os a classe oposta - em prego classe, aqu i,
porque é bem aí qu e a am b igü idade vai res id ir - a classe dos con juntos
que não se com preendem a eles m esm os, o con junto de todos os conjuntos
que não se com preen dem a e les m esm os. E é ai que os lóg icos com eçam
a quebrar a cabeça , a saber, qu e e les d izem a si m esm os: esse con ju n to
de todos os con ju n tos qu e não se com p reen d em a e les m esm os, será
que e le se com preen de a e le m esm o ou será que e le não se com preen de?
N um caso com o no ou tro e le vai ca ir na con trad ição . Pois se, com o
parece, e le com p reen d e a e le m esm o e is-nos em con trad ição com o
princípio que nos dizia que se tratava de conjuntos que não se com preendem
a e les m esm os. Por ou tro lado, se e le não se com preen de, com o excetuá-
lo justam ente do que dá essa defin ição, a saber, que e le não se com preende
a e le m esm o? Isso pode p a rece r bastan te in fan til, m as o fa to de que
isso toca a pon to de parar os lóg icos, que não são p rec isam en te pessoas
de um a natureza que pára d ian te de uma vã d ificu ldade, e se e les sentem
aí a lgo que podem cham ar de contradição, co lo ca n d o em causa todo seu ed ifíc io , é exa tam en te porqu e há algo que d eve ser resolvido e que
con cern e - se qu iserem m e escutar, a nada a lém disso - que con ce rn e
à ún ica co isa que os lóg icos em questão não têm exa tam en te em vista,
a saber, que a le tra da qual e les se servem é algo que tem , em si m esm o,
- 1 4 2 -
Lição de 24 de janeiro de 1962
poderes, um p rin c íp io m oto r ao qual e les não parecem absolu tam en te
acostum ados.
Pois - se ilustrarm os isso na ap licação do que dissem os, que não se
trata de nada m ais do que do uso sistem ático de um a letra - ao reduzir,
ao reserva r à letra sua função s ign ifican te para fa ze r reca ir sobre ela e
u n icam en te sobre ela todo o ed ifíc io lóg ico , chegam os a esse algo m uito
sim ples, que é to ta lm en te e s im p lesm en te que isto re to m a ao que se
passa quando encarregam os a letra A, por exem plo , se nos co locam os a
especu lar sobre o a lfabeto, de representar com o letra A todas as outras
letras do alfabeto. Das duas coisas uma: ou as outras letras do alfabeto,
enum erando-as de R a Z, em que a letra A as representará sem ambigüidade
sem , entretan to, com preen der a si m esm a; m ais está c laro do outro lado
que, rep resen tan do essas letras do alfabeto, en qu an to le tra e la vem
na tu ra lm en te - eu não d iria m esm o enriquecer, m as - com pletar, no
lugar de onde a tiram os, exclu ím os, a série das letras e s im p lesm en te
n isto que, se partim os disso: que A - está a í nosso pon to de partida
con cern en te à iden tificação - essencia lm ente não é A, não há ai nenhum a
d ificu ldade: a letra A, no in ter io r do parên tese onde são orientadas todas
as letras que ela vem sim bo licam en te subsumir, não é o m esm o A e é, ao
m esm o tem po, o m esm o. N ão há aí nenhum a espéc ie de d ificu ldade.
N ão deveria haver nenhum a, tanto m enos que os que vêm algum a são
ju stam en te aqueles que inven taram a noção de con junto para fa ze r face
às d e fic iên c ias da noção de classe, e, por con seqü ên cia , descon fiando
de que deve haver outra coisa na função do con junto além do que há na
fu nção da classe.
M as isso nos in teressa , pois o que isso qu er d izer? C om o in d iq u e i
on tem à n o ite , o ob jeto m eton ím ico do desejo , esse que, em todo os
objetos, represen ta esse ob je to a e le tivo , on de o su jeito se perde, quando
esse ob jeto em erge de um a m an e ira m eta fór ica , quando ch egam os a
substituí-lo ao sujeito que, na demanda, chega a se sincopar, a desaparecer,
ausência do rastro, $ barrado, nós reve lam os o s ign ifican te desse sujeito,
dam os-lhe seu nom e: o bom objeto, o seio da m ãe, a mama. Eis a m etáfora
na qual, d igam os, estão presas todas as id en tific a ções articu ladas da
d em an da do su jeito. Sua dem an da é oral, é o seio da m ãe que as prende
no seu parên tese. É o a que dá seu va lor a todas essas un idades que vão
se ad ic ion a r à cadeia s ign ifican te , a (1 + 1 + 1 ...). A questão que tem os a
co lo ca r é es tab e lecer a d ife ren ça que há en tre esse uso que fa zem os da
- 1 4 3 -
A Identificação
m am a, com a fu n ção que e la tom a na d e fin ição , por exem p lo , da classe
m am ífera. O m am ífero é reconhec ido porque tem mamas. Entre nós, é
bastante estranho que sejamos tão pouco in form ados sobre o que se faz
com isso e fetivam ente, em cada espécie. A etologia dos m am íferos está
ainda arrastando-se rudem ente, uma vez que estamos, nesse assunto, com o
na lógica form al, quase não além do n ível de Aristóteles, exce len te , a obra
A H is tó r ia dos A n im a is . Mas, para nós será que é isso que quer d izer o
s ign ificante ‘m am a ’ , na m ed ida em que e le é o objeto em torno do qual
substantiflcam os o sujeito num certo tipo de relações ditas pré-genitais?
Está bem claro que fa zem os disso um uso com p le tam en te d ife ren te ,
bem m ais p róx im o da m an ipu lação da le tra E no nosso paradoxo dos
con juntos e, para m ostrá-lo , lhes fa re i ve r o segu in te : a (1 + 1 + 1) é
que, entre esses um da dem anda do qual revelamos a significância concreta,
há ou não o p róp rio seio? Em outros term os, quando fa lam os de fixação
oral, o seio la ten te , o atual, aqu ele após o qual o seu su jeito fa z “ ahl
ah! a h ! ’’ , é m am ário? É bem ev id en te que não o é, porque os seus orais
que adoram os seios, adoram os seios porque esses seios são um fa lo . E
é m esm o por isso, porque é possível que o seio seja tam bém fa lo que
M e lan ie K le in o fa z ap arecer im ed ia tam en te tão ráp ido com o o seio,
desde o in íc io , d izendo-n os que, afinal, é um pequeno seio m ais côm odo,
m ais portátil, m ais delicado. Vocês vêem bem que co locar essas d istinções
estru tura is pode nos leva r a a lgum lugar, na m ed ida em que o seio
reca lcado reem erge , se sobressai no sin tom a, ou s im p lesm en te num
lan ce que não qu a lificam os de ou tra form a: a fu n ção sobre a esca la
perversa, a p rod u zir essa ou tra co isa que é a evocação do ob jeto fa lo . A
coisa se in sc reve assim:
X seio (a )
seio fa lo
O qu e é o a? C o loqu em os no seu lugar a pequ en a bola de p ingu e-
pongue, isto é, nada, o qu e qu er que seja, qu a lqu er suporte do jo g o de
alternância do sujeito no fo rt-d a . A í vocês vêem que não se trata estritamente
de nada a lém da passagem do fa lo de a + a a - e que, através disso
vem os, na relação de id en tific a çã o - um a vez que sabem os qu e nisso
que o su jeito assim ila , é e le , na sua fru stração , nós sabem os que a
re lação do g com esse , 1/A - e le , 1, enqu an to assum indo a s ign ifica ção
- 1 4 4 -
Lição de 24 de janeiro de 1962
do O utro com o tal - tem a m a ior relação com a rea lização da a lternân cia
a x -a , este p rodu to de a p or -a que fo rm a lm en te faz -a2.
Saberem os por que um a negação é irredu tíve l. Q uando há a firm ação
e negação, a afirm ação da negação faz uma negação; a negação da afirm ação
tam bém . Vem os aí apontar, nessa própria fórm u la do -a2, reen con tram os
a necessidade de co lo ca r em causa, na raiz desse produto, a V - l. Trata-
se não s im p lesm en te da presença, nem da ausência do pequ eno a, mas
da con junção dos dois, do corte. E da disjunção do a e do -a que se trata,
e é aí que o sujeito vem se alojar com o tal, que a id en tificação tem que se
fazer, com esse algo que é o objeto do desejo. E por isso que o ponto a que
os leve i hoje é um a articu lação que nos servirá daqui por diante.
- 1 4 5 -
c
(>c-
c ( . cç ■»r
(
■
( .
c
C
' (
Ç \
c
( ‘ ç ,
( »
( ■
(
LIÇÃO X
21 de fevere iro de 1962
Term inei, na ú ltim a vez, com a apreensão de um paradoxo con cern en te
aos m odos de a p a rec im en to do objeto. Essa tem ática , partindo do ob jeto
enquanto m etoním ico, se interrogava sobre o que fazíam os quando fazíam os
aparecer esse ob jeto m eton ím ico , com o fa to r com u m dessa lin h a dita
do sign ifican te, cu jo lugar eu designei com o nu m erador na grande fração
saussuriana, s ign ifica n te sobre s ign ificado . E o que faz íam os qu ando o
faz íam os a p a recer com o s ign ifican te , quando designávam os esse ob jeto
com o, por exem plo , o da pulsão oral. C om o esse tipo n ovo designava o
gên ero do ob jeto, e para lhes fa ze r ap reen dê-lo , eu lhes m ostre i o que
há de novo, trazido à lóg ica pela m aneira com o é em pregado o s ign ifican te
em m atem ática , na teoria dos con juntos. M an e ira que é im pen sá ve l se
não co locam os, ali, num p rim e iro p lano, com o con stitu tivo , o fam oso
paradoxo, d ito p a ra d o x o de Russel, para fa zê -los ap reen d er de on de
parti, a saber, enquanto tal o significante, não som ente, não está subm etido
à le i das con trad ições , m as é p rop riam en te fa lan do seu suporte, a saber,
que A 6 u tilizáve l, en qu an to s ign ifican te , na m ed ida que A não é A. D e
onde resultava que o objeto da pulsão oral, considerado com o seio primordial,
a propósito dessa m am a gen érica da ob jetalização psicanalítica, a questão
pod ia se co loca r: o se io rea l, nessas con d ições , é m am ário? Eu d iz ia
não, com o é bem ev id en te , v isto que, na m ed id a em que o se io se
en con tra no e ró tic o oral, ero tizado , é na m ed id a em que e le é um a
co isa to ta lm en te d ife ren te de um seio, com o vocês não o ign oram , e
a lguém , após a au la ve io , ap rox im an do-se de m im , d ize r-m e : “ N essas
con d ições , o fa lo é fá l ic o ? ”
- 1 4 7 -
A Identificação
O que é p rec iso d izer é que, enqu an to é o s ign ifica n te fa lo que vem
com o fa to r reve lador do sentido da função s ign ifican te num certo estado,
é na m ed ida em que o fa lo vem no m esm o lugar, sobre a função sim bólica
on d e estava o seio, é na m ed ida em que o su jeito se constitu i com o
fá lico , que o pênis, que está no in ter io r do parên tese do con junto dos
ob jetos que chegaram para o sujeito no estado fá lico , que tanto o pênis,
podem os dizer, não é m ais fá lico quanto o seio não é m am ário , m as que
as coisas se co locam m uito m ais gravem en te nesse n íve l, a saber, que o
pênis, parte do corpo real, cai sob o corte dessa am eaça que se cham a de
castração. É em razão da função s ign ifican te do fa lo, com o tal, que o
pên is rea l cai sob o golpe do que fo i de in íc io ap reen d ido na experiên cia
ana lítica com o am eaça, a saber, a am eaça da castração. Eis, então, o
cam in h o pelo qual os condu zo. Eu lhes m ostro aqu i o ob jetivo e o que
visamos. Trata-se agora de percorrê-la, passo a passo, dito de outra m aneira,
de ch egar ao que, desde o in íc io deste ano, eu preparo e abordo pouco a
pouco, a saber, a função p riv ileg iada do fa lo na id en tifica ção do sujeito.
E n ten dem os que em tudo isso, a saber, que neste ano, fa lam os da
id en tific a çã o e, a saber, que a partir de um certo m om en to da obra
freudiana, a questão da identificação vem ao prim eiro plano, vem dominar,
vem rem an eja r toda a teoria freud iana. É na m ed id a em que - quase
coram os de ter que d izê -lo - que a partir de um ce rto m om en to , para
nós depo is de Freud, para Freud an tes de nós, a questão do su je ito se
co lo ca com o tal, a saber, o que é que... o que está ali? O que é que
funciona? Q uem é quem fala? O que são m uitas coisas ainda, e é enquanto
era p rec iso , todavia , esperar por isso, num a técn ica que é um a técn ica
grosseira de com u n icação , de en d ereçam en to de um ao ou tro e, para
resum ir, de re lação , era p rec iso igu a lm en te , saber bem quem é que
fa la , e a q u e m ? E rea lm en te por isso que, n este ano, u tilizam os a lóg ica .
N ão dá para evitar. N ão se trata de saber se isso m e agrada ou desagrada.
Isso não m e desagrada. Isso pode não desagradar a outros, m as o que é
ce rto é que é in ev itá ve l. T rata-se de saber a qua l lóg ica isso nos leva.
Vocês pu deram ve r rea lm en te, já lh es m ostre i - eu m e es fo rço por ser
tão cu rto -c ircu itan te quanto possível, e lhes asseguro que não estou
enrolando - onde nos situamos em relação à lógica form al, e que certam ente
não estam os nisso sem ter nossa palavra para dizer.
Eu lhes lem bro o p equ en o quadran te que con stru í para todos os fin s
ú te is e sobre o qual terem os, ta lvez, m ais de um a vez, ocasião de vo lta r
- 1 4 8 -
Lição de 21 de fevereiro de 1962
a e le , ao m en os isso, em razão do r itm o que som os forçados a m an ter
para chegar, n es te ano, ao nosso ob jetivo , não d eve p erm an ecer ainda
d u ra n te a lgu n s m eses ou anos, um a p ro p o s iç ã o su spen sa para a
en gen h os ida d e daqu eles que se es fo rçam para vo lta r sobre o que lhes
ensino . M as, segu ram en te , não se trata senão da lóg ica form a l. Trata-
se, e é do que se cham a desde Kant, qu ero dizer, de um a fo rm a bem
con stitu ída desde Kant, um a lóg ica tran scen den ta l, em ou tros term os,
a lóg ica do con ceito? Seguram ente não. É m esm o bastante su rpreendente
v e r a que pon to a n oção do con ce ito está ausen te, ap aren tem en te , do
funcionam ento de nossas categorias. O que fazem os - não vale absolutamente
a pena nos esforçarm os dem ais por hora, para dar sobre isso uma defin ição
m ais p rec isa - é um a lóg ica da qual, de in íc io , a lguns d izem qu e ten te i
c on stitu ir um tipo de lóg ica e lástica . M as, en fim , isso não é su fic ien te
para con stitu ir a lgum a coisa recon fortan te para o espírito . Fazem os uma
lógica do funcionam ento do significante, pois, sem essa referência constituída
com o prim ária , fu n dam en ta l, da re la ção do su je ito com o s ign ifican te ,
o que eu adianto, é que e le é, p rop riam en te fa lando, im pen sável, m esm o
que se ven h a situar on de está o erro, on de se engajou p rogressivam en te
toda a an á lise e qu e se p ren de p rec isam en te a isso, que ela não fe z
essa c r ít ica da lóg ica tran scen den ta l no sen tido kantiano, que os fatos
novos qu e e la traz im põem estritam en te. A qu i - vou fa ze r a con fid ên c ia ,
que não tem em si um a im portân c ia h is tó rica , m as que acred ito poder
ao m en os lh es com u n ica r a títu lo de estím u lo - isto m e levou durante
p ou co ou m u ito tem po, du rante o qual eu es tive separado de vocês e de
nossos en con tros sem anais, m e levou a reco lo ca r o nariz, não com o
tin ha fe ito há dois anos, na C r ít ic a da R a zão P rá tic a , m as, na C r ít ic a
da R a zão P u ra .
O acaso tendo fe ito com que eu não tivesse trazido, por esqu ec im en to ,
a não ser o m eu exem p la r em alem ão, não f iz a re le itu ra com p leta ,
m as som en te a do capítu lo d ito d ’A In tro d u çã o à A n á lise T ra n scen d en ta l,
e em bora d ep lo ran do que alguns dez anos desde os quais eu m e d irijo
a vocês, não ten h am tido, creio , m u ito e fe ito na propagação en tre vocês
do estudo do a lem ão, o que não deixa de m e causar sem pre adm iração
- é um desses p equ en os fatos que obrigam algum as vezes a re fle t ir
m in h a p róp ria im agem com o aquela desse person agem de um film e
su rrea lis ta bem con h ec id o que se cham a Le ch ie n a n d a lou , im agem
que é aqu ela de um h om em que, com a ajuda de duas cordas, carrega
- 1 4 9 -
A Identificação
atrás dele um p iano, sobre o qua l repousam , sem alusão, dois burros
m ortos... salvo que, ao m en os todos aqu eles que já saibam o alem ão,
não h es item em re le r o cap ítu lo qu e lhes in d ico da C r ít ic a da R azão
Pura . Isso os ajudará seguram ente, a m elhor centrar a espécie de reviravolta
que tento articu lar para vocês, este ano. C re io poder m u ito s im p lesm en te
lem brar que a essên cia p ren de-se de m an e ira rad ica lm en te d ife ren te ,
descen trada, que ten to lhes fa ze r ap reen der um a n oção que é aqu ela
que dom ina toda a estru tu ração das categorias em Kant. É n isso que
e le só fe z co lo ca r o pon to pu rificado , o pon to fech ad o , o pon to fin a l
naqu ilo que dom in ou o pen sam en to filo só fico , até que este , de a lgum a
m aneira , a í a lcan ce a fu n ção de E in h e it , que é o fu n dam en to de toda
s ín tese a p rio ri, com o e le se exp r im e , e que p a rece m u ito , com e fe ito ,
se impor, desde o tem po de sua progressão a partir da m ito log ia p latôn ica,
com o a via necessária: o U m , o grande U m que dom ina todo o pensam ento,
de P latão a Kant, o U m que, para Kant, en qu an to fu nção s in té tica , é o
próprio m od e lo do que em toda ca tegoria a p rio ri traz con sigo , disse
ele , a fu n ção de um a norm a, en ten dam bem , de um a regra un iversa l.
Bem , d igam os, para acrescen ta r seu pon to sens íve l a isso que, d esde o
in íc io deste ano, eu a rticu lo para vocês, que se é ve rd ad e iro que a
fu nção do um na id en tificação , tal que a estru tura a d ecom põe, a análise
da exp e riên c ia freu d ian a , é aqu ela , não do E in h e it , m as aqu ela que
ten te i fa ze r vocês sen tirem con cre tam en te desde o in íc io do ano, com o
o acen to or ig in a l do que ten h o cham ado de tra ço u n á r io , isso qu er
dizer, bem d iferente do círculo que junta, sobre o qual, em suma, desem boca
num n íve l de in tu ição sum ária toda a fo rm a lização lóg ica ; não o c írcu lo ,
mas ou tra coisa; a saber o que ch am ei para vocês, de um 1; esse traço,
essa coisa in s itu ável, essa aporia para o p en sam en to que con sis te em
que, ju s tam en te , n isso e le é tan to m ais apurado, s im p lificado , red u z ido
a qua lquer coisa. C om su fic ien te en fra q u ec im en to de seus apênd ices,
e le pode te rm in ar redu z in do-se a isso: um 1. O que há de essen cia l, e
faz a o r ig in a lid ad e disso, da ex is tên c ia de um traço unário e de sua
função, e de sua in trodu ção, por onde? E ju s tam en te o que d e ixo em
suspenso, pois não é tão c laro que isso seja pelo h om em , se é, por um
certo lado, possível, p rovável, em todo o caso, posto em questão por
nós que é de lá qu e o h om em tem saído. Então, esse u m , seu paradoxo
é justam ente isso: é que tan to m ais se assem elha , quero d izer, quanto
m ais a d ivers idade das sem elh an ças se apaga, quanto m ais e le suporta,
Lição de 21 de fevereiro de 1962
m ais u m -ca rn a [u n -c a rn e ] - d ire i se vocês m e passam esta palavra - a
d ife ren ça com o tal. A rev iravo lta da posição em torn o do U m fa z com
que, da E in h e it kantiana, consideramos que nós passamos para a E in z igke it,
a u n ic id ad e expressa com o tal. Se é por aí, se posso d ize r que tenh o -
para tom ar em prestado um a expressão, espero, cé leb re para vocês, de
um a im prov isação lite rá r ia de P icasso - se é por a í que esco lh i, este
ano, ten tar fazer, o que espero levá -los a fazer, is to é, agarrar o desejo
pelo rabo, se é por aí, quer dizer, não mais a prim eira form a de identificação
d e fin id a por Freud, que não é fác il m anejar, aqu ela da E in v e r le ib u n g ,
a da con su m ação do in im igo , do adversário , do pai, se parti da segunda
fo rm a da id e n t i f ic a ç ã o , a saber, dessa fu n ç ã o do tra ço u n á rio , é
ev id en tem en te neste ob jetivo . Mas vocês ve jam on de está a rev iravo lta ,
é que essa fu nção , - c re io que é o m e lh o r term o que nós tenham os
para tom ar p orqu e é o m ais abstrato, é o m ais m a leáve l, é o m ais,
p ro p riam en te fa lando, s ign ifican te - , é s im p lesm en te um F m aiúscu lo.
Se a fu n ção que dam os ao um não é m ais aqu ela da E in h e it , m as a da
E in z igke it, é que passamos - o que conviria contudo que não esquecêssemos,
que é a n ovidade da análise - passamos das v irtudes da norm a às virtudes
da exceção . Coisas que vocês retiveram , m esm o um p ou qu in h o e com
razão ; a tensão do pensam en to , a g en te se v ira com isso, d izen do : a
exceção con firm a a regra. Com o muitas besteiras, é uma besteira profunda,
basta, s im p lesm en te , saber desm ontá-la . Se tivesse só retom ado essa
b este ira to ta lm en te lu m inosa com o um desses p equ en os fa ró is que se
vêm em c im a dos carros da po líc ia , isso já seria um p equ en o ganh o no
p lano da lóg ica . Mas ev id en tem en te , é um b en e fíc io lateral. Vocês o
verão , sobretudo se alguns den tre vocês... ta lvez alguns pudessem ir
até se dedicar, até fa ze r no m eu lugar, um dia, um pequ en o resum o da
form a com o seria necessário repontuar a analítica kantiana. Vocês pensem
bem que há esboços de tudo isso; quando K ant d istingue o ju lgam en to
un iversa l e o ju lga m en to particu lar e quando e le iso la o ju lgam en to
singular, m ostrando nisso as a fin idades pro fundas com o ju lgam en to
u n iversa l, quero dizer, isso que todo m u ndo se apercebeu an tes de le,
m as m ostran do que não basta ju n tá-los , en qu an to que o ju lgam en to
s ingu lar tem exa tam en te sua in d ep en d ên c ia , ex is te aí com o um a pedra
de espera, o esboço dessa rev iravo lta da qual lhes fa lo. Isso só é um
exem plo . H á m uitas outras coisas que esboçam essa rev iravo lta em Kant.
O que é cu rioso é que não se tenha fe ito isso antes.
- 1 5 1 -
A Identificação
É ev id en te qu e isto ao qual eu fa z ia alusão, de passagem , d ian te de
vocês, quando da p en ú ltim a vez, a saber, o lado que escan da lizava tanto
o senhor Jespersen , lingü ista , o que prova que os lingü istas não são de
m odo algum providos de nen h u m a in fa lib ilid ad e - a saber, que h averia
algum paradoxo àquilo que Kant coloca, a negação na rubrica das categorias
designando as qua lidades, a saber, com o segundo tem po, pode-se dizer,
das ca tegorias da qu a lidade, a p rim e ira sendo a rea lida de , a segunda
sendo a negação e a terce ira sendo a lim itação. Esta coisa que surpreende,
a qual nos su rpreende que su rpreenda m u ito esse lingü ista , a saber,
Mr. Jerpensen , nesse lon go trabalho sobre a n egação que e le pu b licou
nos A n a is da A ca d em ia D in a m a rq u esa . E stam os tanto m ais su rpresos
qu e esse lon go artigo sobre a n egação seja ju s tam en te fe ito , em resum o,
do com eço ao fim , para nos m ostrar que, lin gu is ticam en te , a n egação é
algum a coisa que só se sustenta, se posso dizer, por um a supervalorização.
N ão é então uma coisa tão s im p les com o co loca r a rubrica da quantidade
onde ela se con fundiria pura e sim plesm ente com o que ela é na quantidade,
isto é, o zero. Mas, ju s tam en te , sobre isso eu já tenh o in d icad o bastante.
À qu eles a quem isso in teressa dou a re fe rên c ia , o gran de trabalho de
Jespersen é verd ad e ira m en te a lgum a coisa de con s id eráve l.
M as, se vocês ab rirem o D ic io n á r io de e tim o lo g ia la t in a de E rn ou t e
M eille t, referindo-se s im plesm ente ao artigo ne, percebem a com plex idade
h istórica do problem a do fu ncionam en to da negação, isto é, essa profunda
am b igü idade que faz com que, depo is de te r sido essa fu n ção p rim itiva
de d iscordân cia , sobre a qual ten h o ins istido, no m esm o tem po que
sobre sua na tu reza or ig in a l, é p rec iso sem pre que e la se apó ie sobre
a lgum a coisa que é ju s ta m en te essa n a tu reza do u m , tal qual ten tam os
cercá -lo aqu i, de p erto ; que a n egação n u nca é lin gü is tica m en te um
zero , m as um não u m . N o pon to que o sed n om la tim , por exem p lo ,
para ilu strar o que vocês podem en con tra r nessa obra pu b licada na
A cad em ia d inam arquesa du ran te a gu erra de 1914 e, p or isso, m u ito
d ifíc il de encon trar, o p róp rio não la tino, que p arece ser a fo rm a de
negação a m ais s im p les do m undo, já é um ne o in o n , na form a de u n u m .
Já é um n ã o u m e, no fina l de um certo tem po, esqu ece que 6 um não
um e se co lo ca ainda um um na seqü ên c ia . E toda a h istó ria da negação
é a história desta consumação por alguma coisa que está onde? E justam ente
o que ten tam os cercar: a fu n ção do su jeito com o tal. E por isso que as
observações de P ich on são m u ito in teressantes, que nos m ostram que
- 1 5 2 -
Lição de 21 de fevereiro de 1962
em francês é bem v is íve l o jo go dos dois e lem en tos da negação, a relação
dada do ne com o pas, p oden do-se d izer que o francês, com e fe ito , tem
esse p riv ilég io que, aliás, não é o ún ico en tre as línguas, de m ostrar que
não há verdade iram en te negação em francês. O que é curioso, aliás, é
que e le não se apercebe que, se as coisas são assim, isso deve ir um
pouqu inho m ais lon ge que o cam po do dom ín io francês, se a gen te pode
exprim ir-se assim. É, de fato, m uito fácil, sobre todas as d iferen tes formas,
de se aperceber que é forçosam en te assim em todo lugar, visto que a
fu nção do su jeito não está suspensa até a ra iz à d ivers idade das línguas.
É m uito fác il aperceber-se que, o n ot, num certo m om en to da evo lução
da língua inglesa, é a lgum a coisa naught.
Voltamos ao assunto, a fim de assegurar-lhes que não perdem os nosso
objetivo. Partam os n ovam en te do ano passado, de Sócrates, de A lc ib íades
e de toda a c laque que, espero, tem fe ito naquele m om en to o d ivertim en to
de vocês. Trata-se de conjugar essa reviravolta lógica con cernen te à função
do um com algum a coisa com que nos ocupam os há bastante tem po, a
saber, o desejo. C om o, há tem po que não lhes fa lo nisso, é possível que
as coisas tenham se tornado, para vocês, um pouco nebulosas. Faço um
pequeno lem brete que acred ito ser ju stam ente o m om en to de fa ze r nesta
exposição deste ano, con cern en te a isso. Vocês se lem bram , é um fato
d iscursivo que é através disso que in troduzi, no ano passado, a questão
da identificação. E, propriam ente falando, quando abordei o que, a respeito
da relação narcísica, deve se constitu ir para nós com o con seqü ên cia da
equ iva lên c ia a lcançada por Freud entre a lib ido narcísica e a lib ido de
objeto. Vocês sabem com o a s im bolizei na época: um pequ eno esquem a
in tu itivo; quero d izer a lgum a coisa que se represen ta, um esquem a, não
um esquem a no sen tido kantiano. Kant é uma re fe rên c ia m u ito boa, em
francês, é cinzento. M essieurs Tremesaygues e Pacaud realizaram , contudo,
essa p roeza de to rn ar a le itu ra da C r ít ic a da R a zão P u ra , qu e não é
ab so lu tam en te im p en sá ve l d ize r que, sob um certo ân gu lo , p ode-se
le r com o um liv ro e ró t ic o , em a lgum a coisa ab so lu tam en te m on ó ton a
e p oe iren ta . T a lvez , graças aos m eus com en tá r ios , vocês ch egarão ,
m esm o em fra n cês , a lh e res titu ir um a esp éc ie de p im en ta que não é
exagerado d ize r que e le com porta . Em todo o caso, eu tin ha-m e sem pre
deixado persuadir que, em alem ão, estava m al escrito porque, em prim eiro
lugar, os a lem ães, com exceções de alguns, têm a repu tação de escrever
A Identificação
mal. Isso não é verdade.
A C r ít ica da Razão Pu ra
é tão bem escrita quanto
os liv ros de Freud e isso
não é d izer pouco.
O e s q u e m a é o —
segu in te:
T rata-se do que nos ~~ .......
fa la Freud, no n ív e l da
In tro d u çã o ao N a rc is is m o , a saber, que am am os o ou tro pela m esm a
substância úm ida da qual nós som os o reserva tó r io , que se cham a a
lib id o , e é en qu an to e la está aqui, em 1, que ta lvez e la possa estar ali,
em 2, isto é, rodeando, afogando, m olhando o ob jeto que está em fren te .
A re fe rên c ia do am or ao úm ido não é m inha , e la está no B a nqu ete que
nós com en tam os no ano passado. M ora lid ad e dessa m eta fís ica do am or
- visto que é disso que se trata, o elem ento fundam ental da Liebesbedingunf,
da con d ição do amor, m ora lidade, num certo sen tido eu não am o - o
que se cham a amar, o que cham arem os aqu i de amar, m an e ira de saber
tam bém o que há com o resto, a lém do am or, en tão, o que se cham a de
am ar de um a certa m an e ira - eu só am o m eu corpo , m esm o quando,
este amor, eu o transfiro sobre o corpo do outro. C ertam en te resta sem pre
um a boa dose sobre o m eu . É m esm o, até ce rto pon to, in d ispen sáve l, a
não ser no caso ex trem o no n íve l do que é p rec iso que fu n c io n e auto-
ero ticam en te , a saber, m eu pên is - para adotar por sim p lificação o ponto
de vista androcêntrico. N ão há nenhum inconven ien te nessa sim plificação,
com o vocês vão ver, isto não é o que nos interessa . O que nos in teressa
é o falo.
Então, eu lhes propus im p lic itam en te , senão exp lic ita m en te , nesse
sen tido que é m ais exp líc ito a inda agora do qu e no ano passado... Eu
lhes propus defin ir, em relação ao que eu am o no outro, que e le está
subm isso a essa con d ição h id ráu lica de eq u iva lên c ia da lib ido, a saber,
que quando isso sobe de um lado, sobe tam bém do ou tro , o que eu
desejo , o que é d iferen te do que eu exp erim en to , é o que, sob a form a
de puro re flexo do que resta de m im in ves tid o em todo estado de causa,
é ju s tam en te o que falta no corpo do outro, en qu an to e le é con stitu ído
por essa im pregn ação do úm ido do amor. N o pon to de vista do desejo ,
no n ív e l do desejo , todo esse corpo do ou tro , p e lo m en os tão pou co
- 1 5 4 -
Lição de 21 de fevereiro de 1962
quanto eu o am e, só va le ju stam en te pelo que lh e falta. E é p rec isam en te
por isso que eu ia d izer que a heterossexualidade é possível. Pois é preciso
se en ten der: se é verdade, com o a análise nos ensina, que é pelo fato da
m ulher ser efetivam ente do ponto de vista peniano, castrada, que amedronta
a alguns; se o que d izem os aí não é absolu tam ente insensato, e não é
absolu tam ente insensato, porque é ev iden te, a gen te en con tra isso em
todas as viradas, nos neuróticos, eu insisto, d igo que é aí rea lm en te que
o descobrim os. Q uero d izer que estam os certos disso pelo fato de que é aí
que os m ecan ism os en tram em jogo, com um refin am en to tal que não há
outra h ipótese possível para exp licar a form a pela qual o neurótico institui,
constitu i seu desejo, h is térico ou obsessivo. O que nos levará, neste ano,
a articu lar com p letam en te para vocês o sentido do desejo do h istérico ,
com o do desejo do obsessivo, rap idam ente, pois eu d irei, até um certo
ponto, é urgen te. Se é assim, é ainda mais con sc ien te no hom ossexual
que no neurótico . O hom ossexual, e le próprio lhe d iz que isso provoca
nele, assim m esm o, um e fe ito m uito penoso de estar d iante desse púbis
sem pinto. E ju stam en te por causa disso que podem os con fia r tanto nisso
e, aliás, tem os razão. E por isso que m inha re ferên c ia , eu a tom o no
neurótico . D ito tudo isso, restam ainda m uitas pessoas para as quais
isso não provoca m edo e que, por conseqüência, não é loucura - digam os
sim p lesm en te, sou forçado a abordar a coisa dessa form a, um a vez que,
a final, n ingu ém disse assim , quando eu lhes tiver d ito duas ou três vezes,
penso que isso term inará por se tornar com p letam en te ev id en te para
vocês - não é loucura pensar que, nos seres que podem ter relação norm al,
satisfatória, quero dizer, de desejo com o parceiro do sexo oposto, não
apenas isso não lhes provoca m edo, mas é justam ente isso que é interessante,
a saber, que não é porque o pênis não está ali que o fa lo não está. Eu
d ire i m esm o, ao contrário.
O que p e rm ite reen co n tra r um certo n ú m ero de encru zilh adas, em
particu lar isso: que o que o desejo procura é m enos, no outro, o dese jáve l
que o dese jan te, is to é, o que lh e fa lta . E aí, a inda, p eço -lh es para
re lem brar que é a p rim e ira aporia, o p rim eiro bê-á-bá da questão, tal
qual ela com eça a se articular quando vocês abrirem esse fam oso Banquete,
que parece só ter atravessado sécu los para que a gen te faça em torno
dele teologia. Tento fazer disso outra coisa, a saber, fazer vocês se aperceberem
que, a cada linha, fa la-se e fetivam en te do que se trata, isto é, do Eros.
Eu desejo o outro com o desejante. E, quando d igo com o desejan te, nem
sequer disse, não disse expressam ente com o m e desejando, pois sou eu
1 A Identificação
quem deseja, e desejando o desejo, esse desejo não poderia ser desejo de
m im senão se eu m e reen con tro nessa rev iravo lta on de estou bem seguro,
isto é, se m e am o no outro, de outra m aneira , se sou eu a quem amo.
Mas, então, eu abandono o desejo.
O que estou acen tu ando é esse lim ite , essa fro n te ira que separa o
dese jo do am or. O que não quer d ize r que e les não se con d ic io n em por
todos os tipos de pontas. E exa tam en te aí que está todo o dram a, com o
penso que isso deve ser a p rim eira observação que vocês d evem fa ze r
sobre sua exp eriên c ia de analista, estando bem en ten d id o que acon tece,
com o para m u itos ou tros su jeitos nesse n ív e l da rea lida de hum ana, e
que seja freq u en tem en te o hom em com u m qu e esteja m ais perto do
qu e ch am are i, nessa ocasião, de osso. O que se deseja é ev id en tem en te
sem p re o que fa lta , e é bem por isso que, em fran cês, o dese jo se cham a
d es id eriu m '12, o que quer d izer lam en to43.
E isso tam bém ju n ta -se àqu ilo que, no ano passado, a cen tu e i com o
sendo esse pon to visado desde sem pre pela é tica da paixão, que é fazer,
não digo, essa sín tese, mas, essa con ju nção qu e se trata de saber se ela
não é, ju s tam en te , es tru tu ra lm en te im possíve l, se e la não p erm an ece
um pon to id ea l fora dos lim ites da épura, o que ch am ei de a m e tá fo ra
do v e rd a d e iro a m o r, qu e é a fam osa equ ação o epcov sobre epoanevov,
epcov se substitu indo... O desejan te substitu indo-se ao desejado nesse
ponto, e por essa m etá fora equ iva len te à p e r fe içã o do am ante, com o
está igu a lm en te articu lado no B anquete, a saber, a rev iravo lta de toda
a p rop riedade do qu e se pode cham ar de o am áve l natura l, a separação
no am or que co lo ca tudo o que se pode ser a si m esm o de d esejáve l
fo ra do a lcan ce do adorável, se posso dizer. O n o li m e am a re, que é o
v e rd ad e iro segredo , a verdade ira ú ltim a palavra da pa ixão id ea l desse
am or cortês , do qual não é à toa que eu usei o te rm o tão pouco atual,
quero dizer, tão perfeitam ente confuso que se tenha tornado, na perspectiva
que eu tin ha no ano passado articu lado, p re fe r in d o antes substitu í-lo
com o m ais atual, m ais exem plar, esse tipo de exp e riên c ia - de m odo
algum idea l m as p e rfe ita m en te acessíve l - que é a nossa, com o nom e
de tran sferên cia , e que lhes ilustrei, m ostre i já no B a nqu ete , sob essa
fo rm a to ta lm en te paradoxal da in terp reta ção , p rop riam en te fa lando,
analítica de Socrátes, depois da longa declaração loucam ente exibicionista,
en fim , a regra an alítica aplicada a todo vapor àqu ilo que é o d iscurso de
A lc ib íades. Sem dúvida, vocês puderam reter a iron ia im p lic itam en te
con tida nisso, que não está escond ida no texto, é que aqu ele a quem
-156-
Lição de 21 de fevereiro de 1962
Sócrates deseja no m om en to , para a b e leza da dem onstração, é Agaton,
em outros term os o b este irógra fo44, o esp írito puro, aquele que fala do
am or de um a m aneira tal, com o se deve sem dúvida falar, com parando-
o à paz das ondas, com o tom fran cam en te côm ico , mas sem fa ze r de
p ropósito, ou m esm o sem se aperceber disso. D izen do de ou tro m odo, o
que quer dizer Sócrates? Por que Sócrates não amaria Agaton se, justamente,
a besteira ne le com o em M. Teste é, justam ente, o que lhe falta? “A besteira
não é o m eu fo r te ” . E um ensinam ento, pois isso quer dizer, e isso está
então articu lado com todas as letras para A lcib íades: “ M eu belo am igo
conversa sem pre, pois é a e le que tu tam bém amas. E para Agaton todo
esse longo discurso. A d iferença é un icam ente que tu não sabes do que se
trata. Tua força, teu dom ínio, tua riqueza te ilu dem ” . E, de fato, nós sabemos
bastante, ao longo da vida de Alcibíades, para saber que poucas coisas lhe
faltaram na ordem do mais exagerado que se possa ter de primeira necessidade.
A sua m aneira, in teiram ente d iferen te da de Sócrates, e le tam bém não
era, em lugar algum , recebido, aliás, de braços abertos por onde e le ia, as
pessoas sem pre fe lizes dem ais com uma tal aquisição. U m a certa a to n ia
fo i sua sorte. E le era e le m esm o m uito embaraçador. Quando chegou a
Esparta, e le achava sim plesm ente que fazia uma grande honra ao rei de
Esparta - a coisa é narrada em Plutarco, articulada às claras - engravidando
sua mulher, por exem plo. E para lhes m ostrar seu estilo; é a m en or das
coisas. Existem uns que são brabos. Foi preciso, para acabar com ele,
cercá-lo de fogo e abatê-lo a golpes de flechas.
Mas para Sócrates o importante não está aí. O importante é dizer: “Alcibíades,
ocupa-te um pouco de tua a lm a” , o que, creiam -m e, estou bem convencido
disso, não tem de m odo algum o m esm o sentido em Sócrates que o sentido
que tom ou na seqüência do desenvolvim ento p latôn ico da noção do Um .
Se Sócrates lhe responde “ Eu não sei nada, senão, ta lvez o que seja da
natureza do E ros” , é exatam ente que a função em in en te de Sócrates é de
ser o p rim eiro que tenha conceb ido qual a verdadeira natureza do desejo.
E é exatam en te por isso que, a partir dessa revelação até Freud, o desejo
com o tal, em sua função - o desejo enquanto própria essência do hom em ,
diz Spinoza, e cada um sabe o que isso que dizer, o hom em em Spinoza é
o sujeito, é a essência do sujeito - que o desejo se m anteve, durante um
núm ero respeitável de séculos, com o uma função pela m etade, a três quartos
ou quatro quintos, ocultada na história do con hecim ento.
O sujeito de que se trata, aquele do qual seguim os o rastro, é o sujeito
do desejo e não o sujeito do amor, pela sim ples razão de que não se é
su je ito do am or; é -se o rd in a r ia m en te , n o rm a lm en te , sua v ítim a . E
- 1 5 7 -
A Identificação
com pletam ente d iferen te . Em outros termos, o am or é uma força natural.
É isto que justifica o ponto de vista que cham am os de b io logizante, de
Freud. O am or é uma realidade. E por isso, aliás, que lhes digo, os deuses
são reais. O am or é A frod ite que bate, sabia-se m uito bem , na antigu idade.
Isso não causava espanto a n inguém . Perm itam -m e um jogo de palavras
m uito bonito. Foi um dos m eus m ais divinos obsessivos que o fez, há alguns
dias: “A horrorosa dúvida do herm a frod ita ” .45 Q uero d izer que não posso
fazer m enos senão pensar nisso, desde que ev iden tem en te acon teceram
coisas que nos fizeram deslizar da A frod ite à horrorosa dúvida. H á m uito
a d izer em favor do C ristian ism o; eu não saberia sustentá-lo bastante, e
especia lm ente quanto ao desprend im ento do desejo com o tal. N ão quero
dellorar dem ais o sujeito, mas estou decid ido, a esse respeito, de avançar
para vocês coisas incríveis que, contudo, para obter en tre todos esse fim
louvável, esse pobre am or tenha sido colocado na posição de tornar-se um
m andam ento, e, de qualquer m odo, ter pago caro a inauguração dessa
busca que é a do desejo. N atura lm en te, nós, m esm o assim, os analistas,
seria preciso que soubéssem os resum ir um pouquinho a questão sobre o
sujeito, que o que nós adiantam os sobre o amor, é que e le é a fon te de
todos os males. Isso os faz rir!? A m ínima conversa está aí para lhes demonstrar
que o am or de m ãe é a causa de tudo. N ão digo que se tenha sem pre
razão, mas é ainda assim por essa via que nos exercitam os todos os dias. É
o que resulta de nossa experiên cia cotidiana. Portanto, está bem claro
que, con cernen te à busca do que é, na análise, o sujeito, a saber, a que
convém identificá-lo , em bora fosse só de m aneira alternante, não poderia
se tratar senão do sujeito do desejo.
E nisso que eu lhes de ixare i hoje, não sem fazer-lhes observar ainda
que, claro, estejam os na postura de fazê-lo m uito m elh or do que fo i fe ito
pelo pensador que vou nomear, não estamos tanto no no m an 's land.
Q uero d izer que, logo após Kant, há alguém que lem brou disso, que se
chama Hegel, do qual toda A fenom enologia do esp írito parte daí, da Bergierde.
Só havia um erro, o de não ter nenhum con hecim ento, ainda que se possa
aí designar o seu lugar, do que seria o estád io do espelho. D on de essa
irredu tíve l confusão que põe tudo sob o ângulo da relação do m estre e do
escravo, e que torna inoperante essa caminhada, e que é necessário retom ar
todas as coisas a partir daí. Quanto a nós, esperam os que, favorecidos pelo
gên io de nosso m estre, possamos focar, de m aneira m ais satisfatória, a
questão do sujeito do desejo.
LIÇÃO XI
28 de fevere iro de 1962
P ode-se achar que m e ocupo aqui um pou co d em asiadam en te disso
que se cham a de - D eus con d en e tal d en om in a çã o ! - grandes filóso fos.
É que ta lvez não apenas eles, mas eles, em in en tem en te , articu lam o
que se pode bem cham ar de um a busca, pa té tica pe lo fato dela sem pre
retornar, se souberm os con siderá-la através de todos os seus desvios,
seus ob jetos m ais ou m enos sublimes, nesse nó rad ica l que tento desatar
para vocês, a saber: o desejo. É o que espero nessa busca, se vocês m e
qu iserem seguir, restitu ir dec is ivam en te a sua p rop riedade de pon to
inultrapassável, inultrapassável no sentido m esm o que com preendo quando
d igo -lhes que cada um daqueles a quem se pode cham ar p e lo nom e de
gran de filó so fo não poderia estar, num certo pon to, u ltrapassado. C re io
ter o d ire ito de lan çar-m e, com a assistência de vocês, num a tal tarefa
porqu e, en qu an to psicanalistas, o dese jo é nosso n egóc io . S in to -m e
igu a lm en te con vocado a d ed icar-m e a esse assunto e a con vocá -los a
fa zê - lo com igo , porque é som en te re tifican d o nossa visão sobre o desejo
que podem os m an ter a técn ica an a lítica em sua fu n ção p rim e ira - a
pa lavra “ p r im e ira ” d even do ser en ten d ida no sen tido de p rim e ira m en te
surgida na h istória, não havia dúvida no in íc io - um a fu nção de verdade.
É isso, sem dúvida, que nos leva a in terrogar essa fu n ção num n íve l
m ais rad ica l. É esse que tento m ostrar-lh es, ao articu lar para vocês o
segu in te , que está no fu n d o da e x p e r iên c ia an a lítica : que estam os
escravizados, com o hom ens, quero dizer, com o seres desejan tes, quer
o saibam os ou não, acred itan do ou não que qu e iram os isto - a essa
- 1 5 9 -
A Identificação
função de verdade. Porque, será preciso lembrá-lo, os conflitos, os impasses,
que são a m atéria de nossa práxis, só podem ser ob jetivados ao fa ze rem
in terv ir no seu jo go o lugar do su je ito com o tal, en qu an to ligado com o
su jeito na estru tura da exp eriên c ia . Está aqu i o sen tido da id en tifica ção
enqu an to tal, na d e fin ição de Freud.
N ada é m ais exato, nada é m ais ex ig en te que o cá lcu lo da con ju n tu ra
subjetiva, quando se lhe encon trou aqu ilo que posso c h a m a r -n o sentido
p róp rio do term o, sen tido com o fo i em pregado por Kant - de razão
prática . P re firo cham á-la assim do que d ize r v iés opera tór io , p or causa
daqu ilo que esse term o operatório im plica , há algum tem po: um a espécie
de ev itação do fu n dam en to . Lem brem -se , a esse respe ito , daqu ilo que
lhes ensinei, há dois anos, sobre essa razão prática , no sen tido em que
e la in teressa o desejo. Sade está m ais perto que Kant, em bora Sade,
quase louco, se se pode dizer, p or sua visão, só se possa com preen der,
nesta ocasião, re la c ion ad o à m ed ida de Kant, tal com o ten te i fazer.
L em brem -se do que lhes disse, da ana log ia espantosa en tre a ex ig ên c ia
total da liberdade do gozo, que está em Sade, com a regra un iversa l da
con du ta kan tiana. A fu n çã o na qual se fu n d a o dese jo , para nossa
e xp eriên c ia , torna-se e v id en te que e la nada tem a ver com o que Kant
d istingu e com o W ohl, opon do-o ao G u t e ao bem , d igam os com o bem -
estar, com o útil. Isso nos leva a p e rceb er que i-sso va i bem a lém , que
essa fu n ção do desejo, não tem nada a ver, eu diria , com aqu ilo que,
em gera l, Kant cham a - para re legá -lo a um segundo p lano nas regras
da condu ta - de p a to ló g ic o . Portan to, para aqu eles que não se lem bram
bem em qual sentido Kant em prega tal term o, para aqueles que poderiam
fa ze r a li um con tra -sen so , ten tare i traduzir fa lan do do p ro to p á tic o , ou,
ainda m ais am plam ente, do que há na experiên cia de hum ano dem asiado
humano, de lim ites ligados ao côm odo, ao conforto, à concessão alimentar.
Isso vai m ais lon ge, vai até im p lica r a p róp ria sede tec idua l. N ão nos
esqueçam os do papel, da fu n ção que atribuo à an orex ia m en ta l, com o
aqu ele cu jos p rim e iros e fe itos nos quais poderíam os sen tir essa fu n ção
do desejo, e o papel que lh e dei, a títu lo de exem plo , para ilu strar a
diferença entre desejo e necessidade. Portanto, tão longe de ser com odidade,
con fo rto , concessão... N ão m e venham falar de com prom isso, pois disso
estam os fa lan do todo o tem po. M as os com prom issos pelos quais ela
tem de passar, essa função do desejo, são de uma ordem d iferen te daqueles
ligados, por exem plo , à ex is tên c ia de um a com u n idade fundada sobre a
- 160-
Lição de 28 de fevereiro de 1962
associação vita l, pois é sob essa form a que, m ais com u m en te , tem os de
evocar, constatar, exp lica r a função do com prom isso. Vocês bem sabem
que, no ponto em que estam os, se seguirm os até o extrem o o pensam ento
freu d ian o, a tais com prom issos in teressam a relação de um in stin to de
m orte com um instin to de vida, os quais, ambos, não são m enos estranhos
a con sid era r em suas re la ções d ia léticas que em sua d e fin ição .
Para recom eçar, com o faço sem pre, em algum pon to de cada d iscurso
que lhes d ir ijo sem an a lm en te , lem bro-lh es que esse in stin to de m orte
não é um verm e roedor, um parasita, uma ferida, nem m esm o um princip io
de con tra riedade, algo com o um tipo de Yin oposto ao Yang, de e lem en to
de a lternância . É, para Freud, algo n it idam en te articu lado: um prin c íp io
que en vo lve todo o desv io da vida, cuja vida, cu jo desv io só en con tram
seu sen tido ao se ju n ta rem a e le . Para d izer a palavra, não é sem m otivo
de escândalo que alguns se afastam disso, pois vem o-n os sem dúvida
de volta, de retorno, apesar de todos os prin cíp ios positivistas, é verdade,
na m ais absurda extrapo la ção , p rop riam en te fa lan do , m eta fís ica e em
d e trim en to de todas as regras p ré-con ceb idas da p ru dên cia . O in stin to
de m orte , em Freud, é-nos apresentado com o o que, penso, em seu
lugar, se situa para nós se igualando ao que cham am os aqui de s ign ifican te
da vida, já que o que Freud nos d iz disso é que o essen cia l da vida,
reinscrita nesse quadro do instinto de m orte, nada mais é senão o desígnio,
n ecess itado pela le i do prazer, de realizar, de rep e tir o m esm o desvio
sem pre para re to rn ar ao inan im ado. A d e fin ição do in s tin to de v ida em
Freud - não é in ú til vo lta r a isso, acen tu á-lo n ovam en te - não é m en os
atóp ica , não é m en os estranha pelo fato de que é sem pre con ven ien te
ressa ltá -lo : que e le é red u z id o a Eros, à lib ido. O bservem bem o que
isso s ign ifica . Vou acen tu á-lo por m e io de um a com paração , daqu i a
pouco, com a posição kantiana.
Mas, desde já , vocês v êem a que pon to de con tato estam os redu zidos ,
no que c o n ce rn e à re la ção com o corpo. Tra ta-se de um a esco lha , e de
tal form a e v id en te que isso, na teoria , vem a m a teria liza r-se nessas
figu ras em relação às quais não se deve esqu ecer que, ao m esm o tem po,
elas são novas, e quais d ificu ldades , quais aporias, até m esm o quais
im passes elas nos opõem para justificá -las , até m esm o para situá-las,
para d e fin i-la s exa tam en te . Penso que a fu nção do fa lo , de ser aqu ilo
em to rn o do qu a l v em se a rticu la r esse E ro s , essa lib id o , des ign a
su fic ien tem en te o que aqu i p reten do salientar. N o con junto , todas essas
-161-
A Identificação
figuras, para retom ar o term o que acabo de em pregar, que tem os de
m anejar no que con cern e ao E ros, o que têm elas a fazer, o que têm
elas em com u m , por exem plo , para fa ze r-lh es sen tir a d istância , com as
p reocu pações do em brio logista , em re la ção ao qua l não se pode, de
qu a lqu er form a, d ize r que não tem nada a fa ze r com o in s tin to de vida,
quando e le se in terroga sobre o qu e é um organ iza do r no c resc im en to ,
no m eca n ism o da d iv isão ce lu lar, na segm en ta çã o dos fo lío lo s , na
d ife ren c ia çã o m orfo lóg ica?
E span tam o-n os quando en con tram os em algum lugar, sob a p lum a
de Freud, que a análise tenha levado a uma descoberta b io lógica qualquer.
Isso se en con tra às vezes, pe lo m en os qu e eu m e lem bre , no A bris fí.
Q ue bicho o terá m ordido, naquele instante? Pergunto-m e qual descoberta
b io ló g ica fo i fe ita à lu z da análise. M as tam bém , já qu e se trata aqu i de
sa lien ta r a lim itação, o pon to e le tiv o de nosso con ta to com o corpo,
enquanto, é claro, e le é o suporte, a presença dessa vida, é su rpreendente
que, para re in teg ra r em nossos cá lcu los a fu n ção de con servação desse
corpo, seja necessá rio que passem os pela am b igü idade da n oção do
narcisismo, suficien tem ente designada, penso, para não ser preciso articulá-
la novam ente, na própria estrutura do conceito narcísico - e a equ ivalência
que é posta ali, na ligação ao ob jeto - su fic ien tem en te designada, repito,
pe lo acen to posto, desde a In tro d u çã o ao N a rc is is m o , sobre a fu n ção da
dor, e desde o p rim e iro artigo - re le iam esse artigo, e x c e len tem en te
tradu zido - en qu an to a dor não é sinal de dano, m as fen ôm en o de
auto-erotismo, com o há pouco tem po eu lembrava, num a conversa fam iliar
e a p ropós ito de um a exp e riên c ia pessoal, a a lgu ém que m e escu ta, a
exp e r iên c ia de que um a dor apaga um a outra. Q u ero d ize r que, no
presen te, é d if íc il so frer de duas dores ao m esm o tem po ; um a tom a a
d ian teira , faz esqu ecer a outra; com o se o in ves tim en to lib id ina l, m esm o
sobre o p róprio corpo, se m ostrasse ali su bm etido à m esm a le i, que
cham arei de parcia lidade, que m otiva a relação com o m undo dos objetos
do desejo. A dor não é s im p lesm en te , com o d izem os técn icos , em sua
natureza ap razíve l. E la é p riv ileg iada , ela pode ser fe tich e . Isso para
levar-n os àqu e le pon to que já a rticu le i, num a recen te con fe rên c ia , não
aqui, que é atual em nosso propósito, de pôr em causa o que quer d ize r
a organ ização sub jetiva que designa o p rocesso p rim ário , o que e la
quer d ize r quanto ao que é e o que não é de sua relação com o corpo.
Lição de 28 de fevereiro de 1962
É aqu i que, se posso dizer, a re fe rên c ia , a analog ia com a in vestigação
kantiana va i-nos servir.
P eço descu lpas, com toda a hu m ildade possível, àqu eles que têm dos
textos kantianos um a experiên cia que lhes dá d ireito a algum a observação
à m argem , quando eu fo r um pouco depressa na m inha re fe rên c ia ao
essen cia l do que a exp loração kantiana nos o fe rece . N ão podem os, aqu i,
dem orarm os nesses m eandros, ta lvez em alguns pontos às custas do rigor,
m as tam bém , por ou tro lado, se nos detiverm os dem asiadam en te neles,
podem os p erd er a lgum a coisa do que têm de m aciço , em alguns pontos,
os seus relevos; fa lo da C rít ica kantiana e principalm ente daquela chamada
da Razão P u ra . D esde já , tenho o d ire ito de deter-m e por um instante
naqu ilo que, para qua lquer um que s im p lesm en te tenha lido um a ou
duas vezes com um a atenção escla rec ida a citada C r ít ic a da R azão p u ra ,
isto que, aliás, não é contestado por nenhum com entador, que as categorias
ditas da Razão Pura ex igem seguram ente, para fu n c ion ar com o tais, o
fundam ento do que se cham a de in tu ição pura, a qual se apresenta com o
a form a norm ativa e, vou m ais longe, obrigatória, de todas as apreensões
sensíveis. D igo de todas, qua isquer que sejam. É nisso que essa in tu ição,
que se organ iza em categorias do espaço e do tem po, acha-se designada
por Kant com o exclu ída daqu ilo que se pode cham ar de o rig in a lidade da
experiên cia sensível, da S in n lic h k e it , de onde só pode sair, só pode surgir
a lgum a a firm ação que seja de rea lidade palpável, essas a firm ações de
rea lidade estando, em sua articu lação, subm etidas às categorias da dita
razão pura, sem as quais elas não poderiam , não som ente ser enunciadas,
mas tam pouco ser perceb idas. D esde então, tudo se acha suspenso no
prin c íp io dessa função dita s intética, o que não d izer outra coisa a lém de
un ifican te, que é, se podem os d izer assim, o term o com um de todas as
funções categoriais, term o com um que se ordena e se decom põe no quadro
m uito sugestivam ente articu lado que dá Kant, ou, antes, nos dois quadros
que e le dá disso, as form as das categorias e as form as do ju lgam en to , que
apreende que em direito, enquanto ela marca, na relação com a realidade,
a espontaneidade de um sujeito, essa intuição pura é absolutamente exigível.
O esquem a kantiano, podem os chegar a reduzi-lo à B e h a rr lich k e it , à
perm anência , à con tinu idade, d iria eu, vazia, mas à con tinu idade possível
do que quer que seja no tem po.
- 163 -
A Identificação
Essa in tu ição pura em d ire ito é abso lu tam en te ex ig id a em Kant para
o funcionam ento categorial, mas afinal, a existência de um corpo, enquanto
e le é o fu n d am en to da S in n lic h k e it , da sen soria lidade, não é ex ig íve l
em absoluto. Sem dúvida, quanto ao qu e podem os ch am ar va lidam en te
de um a relação com a rea lidade, isso não nos levará m u ito lon ge porque,
com o ressalta Kant, o uso de tais ca tegorias do en ten d im en to só d irá
respe ito ao que e le vai cham ar de con ceitos vazios. Mas, quando d izem os
que isso não nos levará longe é porque som os filósofos, e m esm o kantianos.
M as, a pa rtir do m om en to em que não o som os m ais - o que é o caso
com u m - cada um sabe ju stam en te , ao con trá rio , qu e isso leva m u ito
lon ge , porqu e todo es fo rço da filo so fia con sis te em ir con tra toda uma
sé r ie de ilusões, de S ch w ä rm ere i, com o se d iz na lín gu a filo só fica e
p a rticu la rm en te kantiana, de sonhos ru ins - na m esm a época , Goya
nos diz: “O sono da razão engendra os m onstros” - cujos efeitos teologizantes
m ostram -n os bem todo o con trá rio , a saber, que isso leva lon ge , posto
que, por in term éd io de m il fanatismos, isso leva sim plesm ente às violências
sangu inárias, qu e con tinuam , aliás, m u ito tran qü ilam en te , apesar da
presença dos filósofos, a constituir, é preciso d izê-lo, um a parte im portante
da tram a da h istória hum ana.
E por isso que não é in d ife ren te m ostrar on de passa e fe t iva m en te a
fro n te ira do que é e fica z na exp eriên c ia , m algrado todas as pu rificações
teó r icas e as re t ifica çõ es m orais . F ica p e r fe ita m en te c laro, em todo
caso, que não há com o adm itir com o sustentável a estética transcendenta l
de Kant, apesar de eu ter fa lado do cará ter inu ltrapassáve l do serv iço
que e le nos presta em sua crít ica e espero fa zê - lo sen tir ju s tam en te , ao
m ostrar pe lo que é p rec iso substitu í-la. Porque, ju s tam en te , se é p reciso
substitu í-la por a lgo e que isso fu n c io n e con servan do a lgum a coisa da
estru tura que e le articu lou , é isso que prova que e le pe lo m en os entreviu ,
qu e e le en trev iu p ro fu n dam en te a dita coisa. E assim que a esté tica
kan tiana é in su sten táve l, p e la sim ples razão de que e la é, para e le ,
fu n d am en ta lm en te apoiada nu m a argu m entação m atem á tica que se
funda no que poderíam os cham ar de época geom etrizan te da m atem ática.
É na m edida em que a geom etria euclidiana está incontestada, no m om ento
em que Kant prossegue sua m ed itação , que é susten táve l para e le que
haja, na ordem espaço-temporal, certas evidências intuitivas. Basta abaixar-
se, abrir seu texto, para reco lh er exem plos daqu ilo que pode parecer,
agora, a um aluno m ed ian am en te avançado na in ic iação m atem ática ,
- 164 -
Lição de 28 de fevereiro de 1962
de im ed ia ta m en te re fu tá ve l. Q uando e le nos dá, com o exem p lo de uma
ev id ên c ia qu e não tem sequ er n ecessidade de ser dem onstrada, que
por dois pon tos só pode passar uma reta, cada um de nós sabe, na
m ed ida em que o esp ír ito se tenha fa c ilm en te in c lin ad o à im aginação,
à in tu ição pura de um espaço curvo pela m etá fora da es fera , que por
dois pon tos pode passar m ais de uma reta e m esm o uma in fin ida de de
retas. Q u an do e le nos dá, no seu quadro dos N ich ls , dos nadas, com o
exem p lo do leere r Gegenstand ohne B eg riff, do ob je to v a z io sem co n ce ito ,
o e xem p lo segu in te , que é bastante n o táve l: a ilu stração de um a figu ra
re t ilín ea que teria som en te dois lados, e is a lgo que pode parecer, ta lvez
a Kant - e p ro vave lm en te não a todo m u ndo em sua época - com o o
p róp rio exem p lo do ob jeto in ex is ten te , e a lém do m ais im pen sáve l. Mas
o m ín im o uso, eu d iria , de um a exp e riên c ia de g eôm etra to ta lm en te
elem entar, a busca do traçado descrito por um ponto ligado a um a ciclóide,
o que se cham a de um a c ic ló id e de Pasca l, m ostrar-lh es-á que uma
figu ra re t ilín ea , na m ed ida em que ela p rop riam en te põe em causa a
p e rm an ên c ia do con ta to de duas linhas ou de dois lados, é a lgo que é
verd ad e ira m en te p rim ord ia l, essen cia l a toda espéc ie de com preen são
geo m étr ica ; que há ali, sem dúvida, a rticu lação con ce itu a i, e m esm o
ob jeto com p le tam en te d e fin íve l.
D a m esm a fo rm a , m esm o com essa a firm ação de que nada é fecu n d o
senão o ju lga m en to s in té tico , e le pode, a inda, após todo o es fo rço de
lo g ic iza ção da m atem ática , ser con siderado com o su jeito à revisão. A
pretensa in fe cu n d id a d e do ju lgam en to an a lítico a p riori, a saber, disso
qu e ch am arem os s im p lesm en te de uso pu ram en te com b in a tó r io de
e lem entos extraídos da posição prim eira de um certo núm ero de defin ições,
que esse uso com b in a tó rio tenha em si um a fecu n d id ad e própria , é o
que a crítica m ais recen te, m ais avançada dos fundam entos da aritm ética,
por exem plo , pode seguram ente dem onstrar. Q ue haja, em ú ltim o term o,
no ca m p o da c r ia ç ã o m a te m á tic a , um res íd u o o b r ig a to r ia m e n te
indem onstrável, é aquilo a que sem dúvida a m esm a exploração logicizante
p arece ter-nos con du zid o - o teorem a de G õde l - com um rigor até
aqu i não re fu tad o . M as não é m en os v e rd a d e iro que é pe la v ia da
d em on stração fo rm a l que essa certeza pode ser adqu irida . E, quando
d igo form a l, en ten do os p roced im en tos m ais expressam en te form alistas
da com b in ató ria log ic izan te .
- 165 -
A Identificação
O que isso qu er d izer? Será, no en tan to , que essa in tu ição pura, tal
com o Kant, nos term os de um progresso cr ít ico que con ce rn e às form as
ex ig íve is da c iên c ia , que essa in tu ição pura não nos ens ina nada? Ela
nos ensina seguram ente a d iscern ir sua coerência e tam bém sua disjunção
possível do exercíc io , ju stam ente sintético, da função un ifican te do term o
da un idade enqu an to con stitu in te em toda fo rm ação ca tegoria l e, sendo
uma vez m ostradas as am bigü idades dessa função da un idade, a m ostrar-
nos a qual escolha, a qual inversão somos conduzidos a partir da solicitação
de d iversas experiên c ia s . E v id en tem en te , só nos im porta aqu i a nossa.
Mas, será que não é m ais s ign ifica tivo que de anedotas, de ac iden tes ,
até de façanhas, no pon to p rec iso em que se pode fa ze r no tar a finu ra
do ponto de con junção en tre o fu n c ion am en to categoria l e a exp eriên c ia
sensível em Kant, o pon to de estrangu lam en to , se posso dizer, em que
pode ser levan tada a questão: se a ex is tên c ia de um corpo, to ta lm en te
ex ig íve l de fato, é c laro, não poderia ser posta em questão na p erspectiva
kantiana, quanto ao fa to de qu e e la seja ex ig ida em d ire ito? Será que
algum a coisa não é absolutam ente fe ita para p resen tifícar essa questão,
na situação dessa criança perd ida que é o astronauta de nossa época em
sua cápsula, no m om ento em que ele está no estado de im ponderabilidade?
N ão insistirei m ais sobre essa observação de que a to lerância, parece-m e,
em bora ta lvez nunca posta à prova durante longo tem po, a to lerância
surpreendente do organism o no estado de im ponderabilidade é de qualquer
form a fe ita para obrigar-nos a form u lar uma pergunta. Posto que, a final
de contas, uns sonhadores se in terrogam sobre a origem da vida, e entre
eles há os que d izem que ela com eçou de repen te a fru tifica r sobre nosso
globo, mas outros d izem que deve ter vindo por um germ e vindo dos espaços
astrais - eu não saberia d izer-lhes a que ponto esse tipo de especu lação
m e é ind iferente - seja com o for, a partir do m om ento em que um organismo,
seja e le humano, seja o de um gato ou o do m en or senhor do re in o vivo,
parece se portar tão bem no estado de im ponderabilidade, não será e le
justam ente essencial à vida, digamos, simplesmente, que ela esteja de alguma
form a num a posição de equ ipolaridade em relação a todo e fe ito possível
do cam po gravitacional? Bem entendido, o astronauta está sem pre sob os
efeitos da gravidade, no entanto é uma gravidade que não lhe pesa. Ora,
pois, lá onde e le está, em seu estado de im ponderabilidade, trancado com o
vocês sabem em sua cápsula, e ainda m ais sustentado, acolchoado por
-166-
Lição de 28 de fevereiro de 1962
todos os lados pelas dobras da dita cápsula, o que transporta e le consigo de
uma intuição, pura ou não, mas fenom enolog icam ente defin ível, do espaço
e do tem po?
A questão é tanto m ais in teressan te quanto nós sabem os que, desde
Kant, tem os ainda assim retorn ado a ela. Q u ero d izer que a exp loração ,
ju s tam en te qu a lificada de fen om en o lóg ica , a inda assim , vo ltou a d irig ir
nossa atenção sobre o fato de que aquilo que se pode cham ar de d im ensões
ingênuas da in tu ição - sobretudo espacia l - não são, m esm o para um a
in tu ição , tão pu rificadas com o pensam os, tão fa c ilm en te red u tíve is e
que o alto, o baixo, até a esquerda, con servam não som en te toda a sua
im portân c ia de fato, m as m esm o de d ire ito para o pensam en to m ais
crít ico . O que é que adveio para G agárin , para T itov, ou para o G lenn
de sua in tu ição do espaço e do tem po, em m om en tos em que certam en te
e le tinha, com o se diz, outras idéias na cabeça? Talvez não fosse totalm ente
des in teressan te, en qu an to e le estivesse lá em c im a, de ter com e le um
p equ en o d iá logo fen om en o lóg ico . N a tu ra lm en te , em tais experiên cia s,
con sid erou -se que isso não era o m ais u rgen te. D e resto, tem os o tem po
de vo lta r a esse assunto. O que constato é que, seja o que fo r desses
pontos sobre os quais podem os estar bastante apressados para ter respostas
da E rfa h ru n g , da exp eriên c ia , e le , em todo caso, isso não o im ped iu de
estar to ta lm en te capacitado ao que ch am are i de apertar botões, pois
está c laro, ao m en os para o ú ltim o, que a co isa fo i com andada em tal
m om en to , e m esm o d ec id id a do in terior. E le perm an ec ia , portan to,
em p lena posse dos m eios de um a com b in ató ria e fica z . P ro va ve lm en te
sua razão pura estava poderosam ente aparelhada com toda uma m ontagem
com p lexa , que con stitu ía certam en te a e ficá c ia ú ltim a da exp eriên c ia .
N ão é m en os ve rd ad e iro que, por tudo que podem os supor e tão lon ge
quanto possam os supor o e fe ito da con strução com binatória no aparelho
e m esm o nas aprendizagens, nos comandos repetidos, na form ação exaustiva
im posta ao próprio piloto, por mais longe que nós o suponham os in tegrado
ao que se pode ch am ar de au tom atism o já con stru ído da m áqu in a ,
basta que e le tenha de apertar um botão na d ireção certa e sabendo
porquê para que se to rn e ex trao rd in a riam en te s ign ifica tivo que um tal
e x e rc íc io da razão com b in ató ria seja possível, em con d ições que ta lvez
este jam lon ge de ser a inda o ex trem o a tin g ido do que podem os supor
de constrangim entos e de paradoxos im postos às condições de m otric idade
natura l, m as que já podem os ver que as co isas são levadas m u ito lon ge
- 1 6 7 -
A Identificação
desse duplo e fe ito , ca rac terizado , por um lado, pe la lib eração da dita
m otr ic id a d e dos e fe ito s da gravidade, sobre os quais se pode d ize r que
nas con d ições natura is não é dem asiado d ize r qu e e la se apóia sobre
essa m otric idade, e que, correlativam ente, as coisas não fu nc ionam senão
porque o dito sujeito m otor está literalm ente aprisionado, preso na carapaça
que, sozinha, assegura a con ten ção , ao m en os em tal m om en to de vôo,
do organ ism o naqu ilo que se pode cham ar de sua so lida riedade natural.
A qu i está, portan to, esse corpo que se tornou - se posso d ize r - uma
espéc ie de m olusco, m as arrancado de seu im p lan te vege ta tivo . Essa
carapaça torna-se um a garan tia tão dom in an te da m an u ten ção dessa
so lidariedade, dessa u n idade, que não estam os lon ge de pensar que é
nela , n o fin a l das contas, que e la consiste ; que se vê a li nu m a espéc ie
de re la ção e x te r io r iza d a da fu n ção dessa u n ida de com o ve rd ad e iro
con tin en te do que se pode cham ar de polpa viva. O con traste dessa
posição corpora l com a pura fu n ção de m áqu in a de rac ioc inar, essa
razão pura que con tin u a sendo tudo o que há de e ficá c ia e tudo do que
esperam os uma eficác ia qua lquer no interior, é bem ali algo de exem plar
que dá toda sua im portância à questão que levantei há pouco, da conservação
ou não da intuição espaço-temporal, no sentido em que a frisei suficientemente
com o aquilo que cham arei de falsa geom etria do tem po de Kant. Será que
essa intu ição está sem pre presente aí? Tenho grande tendência a pensar
que ela está sem pre ali. E la está sem pre ali, essa falsa geom etria , tão besta
e tão idiota, porque é e fetivam en te produzida com o uma espécie de reflexo
da atividade combinatória, mas reflexo que não deixa de ser também refutável,
pois, com o a experiên cia da m ed itação dos m atem áticos já o provou, sobre
esse solo não estam os m enos arrancados à gravidade do que naquele lugar
lá em cim a, onde seguíam os nosso astronauta. Em outros term os, que essa
in tu ição pretensam ente pura saiu da ilusão de logros ligados à própria
função com binatória, to talm ente passíveis de serem dissipados, m esm o
se ela se m ostra m ais ou m enos tenaz. E la é apenas, se posso dizer, a
sombra do núm ero.
M as ev id en tem en te , para p od er a firm ar isso, é p rec iso ter fu n dado o
p róp rio nú m ero em ou tro lu gar que nessa in tu ição . D e resto, a supor
que nosso astronauta não a conserva, essa in tu ição euclid iana do espaço,
e aquela , m u ito m ais d iscu tíve l, a inda do tem po que lh e é ligada em
Kant, a saber, algo que pode se projetar sobre uma linha, o que é que isso
provará? Provará s im plesm ente que e le é, de toda form a, capaz de apertar
- 168 -
Lição de 28 de fevereiro de 1962
corretamente os botões sem recorrer a seu esquematismo, provará simplesmente
que o que é, desde já , refu tável aqui, é refu tado lá em cim a na própria
intu ição! O que redu z ta lvez um pouco - vocês m e dirão - o a lcance da
questão que tem os a lhe colocar. E é exatam ente por causa disso que há
outras questões m ais im portantes a lhe colocar, que são justam ente as
nossas, e particularmente esta: o que se toma, no estado de imponderabilidade,
uma pulsão sexual que tem o hábito de se m anifestar tendo o aspecto de ir
contra. E, se o fato de que e le esteja in teiram en te colado no in ter io r de
uma m áquina - en ten do no sentido m ateria l da palavra - que encarna,
m anifesta, de um a m aneira tão eviden te o fantasm a fálico, não o aliena
particularmente em sua relação com as funções de imponderabilidade natural
ao desejo m acho? Eis aí uma outra questão na qual m e parece que tem os
todo o d ire ito de nos introm eter.
Para re tom ar a questão do nú m ero, a qual pode lhes su rp reen d er
que eu faça um e lem en to tão ev id en tem en te desligado da in tu ição pura,
da exp e r iên c ia sensível, não vou fa ze r aqu i para vocês um sem in ário
sobre os F ou n d a tion s o f a r ith m e t ic , títu lo ing lês de Frege, ao qua l p eço
que vocês se reportem , pois é um livro tão fasc inan te quanto as C rôn ica s
M a rc ia n a s , no qual vocês verão que é, em todo caso, e v id en te que não
há n en h u m a dedu ção em p ír ica possível da fu n ção do n ú m ero , m as
que, com o não tenho a in ten ção de dar-lhes uma aula sobre esse assunto,
m e con ten ta re i, pois está em nosso propósito , em fa zê -los observar que,
por exem p lo , os c in co pontos assim dispostos que se podem ve r
sobre a fa ce de um dado, é p rec isam en te um a figu ra que pode s im bo liza r
o n ú m ero c inco , m as que vocês estariam red on d am en te enganados em
crer que, de a lgum m odo, o núm ero c in co seja dado por essa figu ra .
C om o não dese jo cansá-los, fazen do -lh es desvios in fin itos , acho que o
m ais ráp ido é fa zê -lo s im ag in ar uma exp e riên c ia de c o n d ic io n a m en to
qu e vocês estariam rea lizan d o com um an im al.
É m u ito freq ü en te , para ve r essa facu ldade de d is ce rn im en to nesse
an im al, em tal situação constitu ída por ob jetivos a atingir, suponham
que vocês lh e d êem d iversas form as. [Su ponh am qu e] ao lado dessa
d isposição, co isa que con stitu i uma figu ra , vocês não espera rão em
n en hu m caso, e de nen h u m anim al, que e le rea ja da m esm a m an e ira à
segu in te figu ra : . . . . . . que é, no entanto, tam bém um c in co , ou esta
aqu i qu e não o é m en os, a saber, a form a do pen tágon o. Se a lgum a
v e z um an im a l reagisse da m esm a m an e ira a essas três figu ras, ora,
- 1 6 9 -
A Identificação
vocês f ic a r ia m es tu p e fa to s , e não sem ra zão , po is es ta r iam en tã o
absolu tam en te con ven c id os de que o an im al sabe contar. Ora, vocês
sabem que e le não sabe contar. Isso não é um a prova, certa m en te , da
o r igem não em p ír ica da função do n ú m ero . Eu lh es rep ito : isso m erece
um a discussão detalhada, cuja ún ica razão verdadeira , sensata, séria,
que tenho para lhes aconselhar v ivam en te a se in teressarem por isso é
que é surpreendente ver a que ponto poucos m atem áticos, ainda que, bem
en tend ido , sejam apenas m atem áticos que trataram bem desses assuntos,
in teressam -se verdadeiram ente por isso. Portanto, tratar-se-á, da parte de
vocês, se vocês verdadeiram ente se interessarem por isso, de uma obra de
m isericórdia, visitar os doentes, interessar-se por questões pouco interessantes,
será que não é tam bém , de algum a form a, a nossa função?
Vocês verão que, em todo caso, a un idade e o zero , tão im portan tes
para toda constitu ição racional do núm ero, são o que há de m ais resistente,
ev iden tem en te , a toda tentativa de um a gên ese experim en ta l do núm ero,
e m ais e sp ec ia lm en te se se p reten de dar um a d e fin içã o h om ogên ea do
n ú m ero com o tal, red u z in d o a nada todas as gên eses que se pode ten tar
dar do n ú m ero a partir de um a co leção e da abstração da d ife ren ça a
partir da d ivers idade. A qu i tom a seu va lo r o fa to de eu ter sido levado,
pe lo fio d ire to r da progressão freud ian a, a articu lar, de um a m an eira
que m e pareceu necessária , a fu n ção do traço unário , en qu an to e la faz
aparecer a gên ese da d iferen ça num a operação que se pode d ize r situar-
, se na linha de uma sim plificação sempre crescente, que está num propósito
que é o que leva à linha de bastões, isto é, à rep e tição do ap aren tem en te
id ên tico , que é criado , destacado, o que ch am o não de sím bolo, m as de
en trada no rea l com o s ign ifican te in sc r ito - e é isso o qu e qu er d ize r o
term o prim azia da escrita, a entrada no rea l é a form a desse traço repetido
pe lo caçador p rim itivo , da d ife ren ça absoluta en qu an to e la a li está. Da
m esm a form a, vocês não terão d ificu ldades - vocês os en con tra rão na
le itu ra de Frege, em bora Frege não se enga je n este cam inho , por fa lta
de teor ia su fic ien te do s ign ifican te - para en con tra r no tex to de F rege
que os m elh ores analistas m atem áticos da fu nção da un idade, sobretudo
Jevons e Schröder, puseram exatam en te o acento, do m esm o m odo com o
eu fiz , na fu n ção do traço unário . E is o que m e fa z d ize r que o que
tem os de articu lar aqu i é que, ao in verter, se posso d izê-lo , a po la ridade
dessa fu nção da un idade, ao abandonar a un idade u n ifican te , a E in h e it ,
pela un idade d istin tiva , a E in z ig k e it , levo-os ao pon to de levan ta r a
- 1 7 0 -
Lição de 28 de fevereiro de 1962
questão, de defin ir, de a rticu lar passo a passo a so lidariedade do estatuto
do su jeito en qu an to ligada àqu ele traço unário , com o fa to de que o
su jeito está con stitu ído , em sua estru tura, on de a pulsão sexual en tre
todas as a fe r iç õ es do corpo tem sua fu nção p riv ileg iada .
Sobre o p r im e iro fato , a ligação do su jeito com esse traço unário , vou
pôr ho je o pon to fin a l, con sideran do a via su fic ien tem en te articu lada ,
lem b ran d o -lh es que esse fa to tão im portan te em nossa exp eriên c ia ,
posto por Freud à fren te do que e le cham a de n arc is ism o das pequ en as
d iferen ças , é a m esm a coisa que cham o de fu n ção do traço unário ;
pois não é ou tra coisa senão o fato de que é a partir de um a p equ en a
d iferença - e d izer pequena d iferença não quer d izer senão essa d iferen ça
absoluta de que lhes fa lo , essa d iferen ça destacada de toda com paração
possível - é a partir dessa pequena d iferen ça , enqu an to é a m esm a
coisa que o grande I, o Idea l do eu, que se pode acom odar todo o propósito
narcísico; o su jeito se constitu i ou não com o portador desse traço unário.
E o que nos p erm ite dar, hoje, nosso p rim eiro passo no que con stitu irá o
ob jeto de nossa lição segu in te, a saber, a retom ada das fu nções privação,
frustração e castração. É ao retom á-las, antes de tudo, que poderem os
entrever onde e com o se coloca a questão da relação do m undo do significante
com o que cham am os de pulsão sexual, p riv ilég io , p reva lência da fu n ção
e ró tica do corpo na con stitu ição do sujeito.
Abordemo-la um pouquinho, belisquemo-la, essa questão, partindo da privação,
pois é o mais simples. Existe um menos a no mundo, há um objeto que falta
a seu lugar, o que é bem a concepçáo mais absurda do mundo, se se dá seu
sentido à palavra real. O que pode estar faltando no real?
Da m esm a form a , é em razão da d ificu ldade dessa questão que vocês
vêem ainda, em Kant, arrastarem -se, se posso d ize r assim , b em para lá
da in tu ição pura, todos aqu eles velhos restos de teo logia que o en travam ,
e sob o n om e de con cep ção cosm ológ ica . “ In m u n d o n on est ca su s ",
lem bra-nos e le , nada de casual, de ocasional. “ In m u n d o n on e s t fa tu m ” ,
nada é de um a fa ta lidade que estaria a lém de uma n ecessidade rac ion a l.
“In m u n d o n on est s a ltu s ” , não há nada de salto. “In m u n d o n on est
h ia tu s ” , e o g ran de re fu tad or das im pru d ên c ias m eta fís icas en carrega-
se dessas quatro d en egações, em relação às quais lhes p ergu n to se na
nossa perspectiva e las podem aparecer com o ou tra coisa senão o p róp rio
estatuto, in ve rtid o , daqu ilo de que nos ocupam os sem pre: casos, n o
sen tido p róp rio do te rm o ; fa tu m , fa lan do p rop riam en te , já que nosso
- 1 7 1 -
A Identificação
in con sc ien te é oráculo, tantos hia tus quanto há de s ign ifican tes distintos,
tan tos sa ltos qu an to se p roduz de m eton ím ias . É p orqu e há um su je ito
qu e se m arca a si m esm o ou não com o traço u n ário , que é 1 ou -1, que
p od e h a ver um -a , que o su jeito pode id en tific a r -se com a bo lin h a do
n e to de Freud e esp ec ia lm en te na con otação de sua fa lta , n ã o há, ens
p r iv a t iv u m . O bv iam en te , há um vazio e é daí que va i pa rtir o su jeito :
le e re r G egenstand ohne B eg riff.
Das qu atro d e fin ições do nada que Kant dá e que re tom arem os na
p róx im a lição, só um a se m antém com rigor: há a li um nada. O bservem
que no quadro que lhes dei dos três termos, castração, frustração, privação,
a contrapartida, o agente possível, o sujeito propriam ente falando im aginário
do qua l pode d eriva r a privação, a en u n c iação da privação , é o su jeito
da on ip o tên c ia im agin ária , isto é, da im agem in ve r tid a da im po tên c ia .
Ens ra t io n is , leerer B e g r if f ohne G egenstand , c o n ce ito vaz io sem objeto,
puro co n ce ito da possib ilidade, e is o quadro em qu e se situa e aparece
o ens p r iv a t iv u m .
Kant, sem dúvida, não deixa de iron izar sobre o uso pu ram en te form a l
da fó rm u la que parece ser óbvia: todo rea l é possível. Q u em d irá o
con trá rio ? F orçosam en te ! E e le dá o passo m ais ousado, fa zen d o -n os
n o ta r que, portan to, algum rea l é possível, m as que isso pode qu erer
d ize r tam bém que algum possível não é real, que há poss íve l que não é
rea l. Da m esm a fo rm a , sem dúvida, o abuso filo s ó fic o que se pode fa ze r
disso é aqu i den u n ciado por Kant. O que nos im porta é que p ercebam os
que o poss íve l de que se trata aqu i não é nada senão o possível do
su jeito. Só o su je ito pode ser esse rea l n ega tivado por um poss íve l que
não é rea l. O -1, con stitu tivo do ens p r iv a t iv u m , nós o vem os assim
ligado à estru tura a m ais p rim itiva de nossa exp eriên c ia do in con sc ien te ,
na m ed id a em que e la é aquela , não do in terd ito , n em do d ito que nã o,
m as do n ã o -d ito , do pon to on de o su jeito não está m ais para d ize r se
e le não é m ais m estre dessa identificação ao 1, ou dessa ausência repentina
do 1, que poderia m arcá-lo . Aqu i se en con tra sua fo rça e sua ra iz. A
poss ib ilidade do h ia tu s , do sa ltus , casus, fa c tu s , é ju s tam en te aqu ilo
qu e espero, a partir da p róx im a sessão, m ostrar-lh es: qual ou tra form a
de in tu ição pura e m esm o espacia l está espec ia lm en te im p licad a na
fu n ção da su p erfíc ie , enqu an to a c re io cap ita l, p rim ord ia l, essen cia l a
toda articu lação do su jeito que poderem os form u lar.
- 172-
LIÇÃO XII
07 de m arço de 1962
Ao reagrupar os pensamentos difíceis aos quais estamos sendo conduzidos,
em torn o dos quais d e ix e i vocês da ú ltim a vez , com eça n d o a abordar
pe la p rivação o que con cern e ao pon to m ais cen tra l da estru tura da
id en tific a çã o do su jeito, ao reagrupar tais pensam en tos eu m e ap reen d i
partindo n ovam en te de a lgum as observações in trodu tórias . N ão é do
m eu costu m e retom ar absolu tam en te e x -a b ru p to o fio in terrom p id o ;
essas observações fa z iam eco a alguns desses estranhos person agen s
de que lhes falava, na ú ltim a vez, e que cham ávam os de filósofos, grandes
ou p equ enos. Essa observação era m ais ou m en os esta, no que nos d iz
respe ito : que o su je ito se engana. Está aí, com certeza , para todos nós,
analistas, tanto quanto filóso fos, a exp e r iên c ia inaugu ral. M as se ela
nos in teressa , a nós, é c la ram en te , e d ire i, ex c lu s ivam en te pe lo fato,
que e le p od e se dizer. E esse d izer se d em on stra in fin ita m en te fecu n d o
e m ais especia lm en te fecu ndo na análise que alhures, ao m enos gostam os
de supor assim . Ora, não esqu eçam os de que a observação fo i fe ita por
em in en tes pensadores, qu e o que está em questão, no caso, é o rea l, a
v ia d ita da re t ifica çã o dos m eios do saber p od eria bem - é o m ín im o
que se pode d ize r - afastar-nos in d e fin id a m en te do que se trata de
atingir, is to é, do absoluto, pois, trata-se s im p lesm en te do real. Trata-
se disso. Tra ta-se de a tin g ir o que é visado com o in d ep en d en te de todas
as nossas am arras; na p rocu ra do que é v isado, é isso que se cham a de
absolu to; portan to , so ltem tudo até o fim , toda sobrecarga. E sem pre
um a m a n e ira m ais sobrecarregada que ten de a es tab e lecer os critér ios
da c iên c ia , na p ersp ectiva filo só fica , en ten d o eu. N ão estou fa lan do
- 1 7 3 -
A Identificação
daqueles eruditos que, bem longe do que se crê, de nada duvidam. É nessa
m edida que somos os mais seguros disso que eles ao m enos abordam: o real.
N a p erspectiva filo só fica da c rít ica da c iênc ia , devem os fa ze r a lgum as
observações; e p rin c ipa lm en te o term o do qual devem os d escon fia r m ais
para avançarm os nessa crít ica , é o term o aparência , pois a aparênc ia
está m u ito lon ge de ser nossa in im iga , d igo, quando se trata do rea l.
N ão fu i eu que f iz en carn ar o que lhes d igo, nessa s im p les p equ en a
im agem . É bem na aparên c ia dessa figu ra que m e é dada a rea lida de
do cubo, que ela m e salta aos olhos com o realidade. Ao reduzir essa im agem
à função de ilusão de óptica, desvio-m e sim plesm ente do cubo, isto é, da
realidade que esse artificio é fe ito para lhes mostrar. O m esm o se dá na
relação com uma mulher, por exem plo. Todo aprofundam ento cien tífico
dessa relação irá, no fim das contas, àquela das
fórmulas, com o aquela célebre, que certamente vocês
conhecem , do coronel Bramble, que reduz o objeto
em questão, no caso a mulher, àquilo que ele é,
justamente, do ponto de vista científico: um aglomerado
de albuminóides, o que, eviden tem ente, não está
m uito de acordo com o m undo de sentim entos que
são relacionados ao dito objeto.
D e toda m aneira , está p e rfe itam en te claro que
o que cham arei, se vocês perm itirem , de vertigem
do objeto no desejo, essa espécie de ídolo, de adoração que pode prosternar-
nos, ou pe lo m en os nos cu rva r d ian te de um a tal m ão, d igam os m esm o,
para m e lh or nos fazerm os en ten d e r sobre o assunto que a exp e riên c ia
nos o fe rece , que não é porqu e é sua m ão, posto que num lugar m esm o
m enos term inal, um pouco mais acima, alguma penugem sobre o antebraço
pode tom ar para nós, de rep en te , este gosto ú n ico qu e nos faz de algum
m odo trem er, d ian te dessa apreensão pura de sua ex is tênc ia . É e v id en te
que isso tem m ais re la ção com a rea lida de da m u lh er que qu a lqu er
e lu c idação daqu ilo que se cham a de atração sexual, na m ed ida em que
e lu c idar a a tração sexual co lo ca em p rin c íp io que se trata de pôr em
questão seu engodo, en qu an to esse en godo é sua p róp ria rea lidade.
Se o su jeito se engana, pois, e le pode ter razão do pon to de v ista do
absoluto. A con tece , todavia , qu e m esm o para nós, que nos ocupam os
do desejo, a pa lavra erro m an tém seu sentido. A qu i, p erm itam -m e dar
aqu ilo que con clu í, de m in h a parte, a saber, dar-lhes com o acabado o
- 1 7 4 -
Lição de 7 de março de 1962
fru to de um a re fle x ã o cuja seqü ên c ia é p rec isam en te o que eu vou
d esen vo lver hoje. Vou ten tar m ostrar-lh es o bom fu n dam en to dessa
re flexã o : é que não é possível dar um sen tido a esse term o erro, em
qu a lqu er dom ín io e não apenas no nosso - é um a a firm ação ousada,
m as isso supõe que con s id ero que, para em p regar um a expressão à
qual re to rn a re i, no curso de m inha lição de hoje, d e i a volta bem em
torno dessa questão - se trata apenas, se a palavra “ e rro ” tem um sentido
para o su je ito , de um erro em sua con ta. D ito de ou tro m odo, para todo
su je ito qu e não con ta, aí não poderia h aver erro . N ão é um a ev idên cia .
E prec iso ter ta teado num certo n ú m ero de d ireções para se aperceber
que se c rê - é aqu i que estou e peço-lh es que m e sigam - que só há isso
que abre os im passes, os d ivertícu los nos quais nos enga jam os em torn o
dessa questão. Isso, ev iden tem en te, quer d izer que a a tiv idade de contar,
para o su jeito, com eça cedo. Tenho fe ito um a am pla rele itu ra de alguém ,
e todos sabem que não tenh o grandes in c lin a ções por e le , apesar da
estim a e do respe ito que m erece sua obra e, a lém disso, do charm e
in co n tes tá ve l que sua pessoa espalha, re firo -m e ao Sr. P iaget; m as não
é para desaconse lhar quem quer que seja de lê -lo ! F iz, en tão, a re le itu ra
de L a genèse du n om bre chez V e n fa n t. E de causar con fu são que se
possa c re r p od er d e tec ta r o m om en to em que aparece num su je ito a
função do n ú m ero fa zen do -lh e perguntas que, de algum m odo, im p licam
suas respostas, m esm o se tais perguntas são fe itas por in te rm éd io de
um m ateria l do qual se im agine que exclua o caráter orientado da pergunta.
Pode-se d ize r uma só coisa, que, no fim das con tas, se trata an tes de
um en god o nessa m an eira de proceder. A qu ilo que a crian ça parece
d esco n h ecer não está absolu tam en te seguro de que não se re la c ion e
com as próprias con d ições da exp eriên c ia . M as a força desse te rren o é
tam anha que não se pode d ize r que não haja m u ito a instru ir, não
tanto no pouco que é, en fim , reco lh ido dos pretensos estágios da aquisição
do n ú m ero na criança , quanto das re flexõ es fu n dam en ta is do Sr. P iaget
- que é certam en te m u ito m elh or lóg ico que psicó logo - d izendo respeito
às re lações da psico log ia e da lóg ica . E, sobretudo, é o que torna um a
obra in fe lizm e n te in en con tráve l, pub licada pela ed ito ra V rin em 1942,
que se cham a Classe, re la tio n et n om bres , um a obra m u ito instru tiva ,
porqu e nela , sim , se va lo r izam as re la ções estru turais, lóg icas, en tre
classe, re lação e núm eros, a saber, tudo o que se p re ten de a segu ir ou
prev iam en te encon trar na criança que m an ifestam en te já está construído
- 1 7 5 -
A Identificação
a p rio ri. E, ob v iam en te a exp e r iên c ia nos m ostra a li apenas o que se
organ izou para en con tra r an tes de tudo.
É um p arên tese que con firm a isso, que o su je ito con ta b em antes de
ap licar seus talentos a um a co leção qualquer, ainda que, é claro, uma
de suas prim eiras atividades concretas, psicológicas, seja constituir coleções.
Mas ele está im plicado com o sujeito na relação dita do côm puto, de m aneira
m u ito m ais rad ica lm en te constitu in te do que se quer im aginar, a partir
do fu n c ion am en to do seu sen soriu m e de sua m otric idade. U m a ve z m ais
aqui, o gên io de Freud ultrapassa a surdez, se posso dizer, daqueles a
quem e le se d irige com toda a am plidão das advertên cias que e le lhes dá
e que en tram por um ou vido e saem pelo outro. O que p rovavelm en te
ju s tifica o apelo ao terce iro ouvido m ístico do Sr. T h ed o r Reik, que não
estava n aqu ele dia m u ito inspirado, pois para quê um terce iro ou vido se
já não se ouve nada com os dois que se tem ! O sen soriu m em questão,
quanto ao que Freud nos ensina, serve para quê? Será que isso não quer
nos d izer que só serve para isso, para nos m ostrar que o que já está ali
no cá lcu lo do su jeito é bem real, ex iste bem ? Em todo caso, é o que
Freud diz, é com e le que com eça o ju lgam en to de ex istência , isso serve
para ve rifica r as contas, o que, de qua lquer m aneira , é um a posição
estranha para alguém que é tido com o ligado em linha direita ao positivismo
do sécu lo X IX .
Então, retom em os as coisas on de as havíam os deixado, já que se trata
de cálcu lo, e da base, e do fu ndam ento do cá lcu lo para o su jeito: o traço
unário. Pois, obviam ente, se com eça tão cedo a fu nção do contar, não
andem os dem asiadam ente depressa quanto ao que o su jeito pode saber
de um núm ero mais e levado. Parece pouco pensável que 2 e 3 não venham
bastante depressa, mas, quando nos d izem que certas tribos ditas prim itivas
do lado da desembocadura do Amazonas só puderam descobrir recentem ente
a v irtu de do núm ero quatro e lhe erguerem altares, não é o lado p itoresco
dessa h istória de selvagens que m e surpreende; isso m e parece m esm o
óbvio, pois, se traço unário é o que lhes digo, a saber, a d iferença , e a
d iferença não som ente que suporta, m as que pressupõe a subsistência,
ao lado dele, de 1 + 1 + 1... [um, m ais um, e a inda um ] o m ais estando
ali apenas para m arcar a subsistência rad ica l dessa d iferença . A li onde
com eça o problem a, é ju stam en te que se possa ad icionar-lhes, d ito de
outro m odo, que dois, que três têm um sentido. Visto desse pon to de
vista, isso apresenta d ificu ldades, m as não há por que se espantar com
- 176-
Lição de 7 de março de 1962
isso. Se vocês tom arem as coisas no sentido con trário , ou seja, se vocês
partirem de 3, com o o fa z John Stuart M ill, vocês não consegu irão nunca
reen con tra r 1, a d ificu ldade é a m esm a.
Para nós, aqu i - ass ina lo-lhes isso de passagem - com nossa m an eira
de in terrogar os efe itos da linguagem em term os de e fe itos de s ign ificante,
en qu an to esse e fe ito de s ign ifica n te , estam os habituados a reco n h ecê -
lo no n ível da m eton ím ia , ser-nos-á mais simples do que a um m atem ático
so lic ita r a nosso aluno reco n h ece r em toda s ign ifica çã o de n ú m ero um
e fe ito de m eton ím ia v irtu a lm en te surgido de nada m ais e, com o de seu
pon to e le tivo , da sucessão de um nú m ero igua l de s ign ifican tes . E na
m ed ida em que a lgo se passa que faz sen tido da s im p les sucessão de
exten são x de um certo n ú m ero de traços unários, que o n ú m ero três,
p or exem plo , pode fa ze r sen tido , a saber, que faz sen tido - qu e isso
tenh a ou não sen tido ; que escrever a palavra and em in g lês , ta lvez
esteja a í a inda a m e lh o r m an e ira que tenham os de m ostrar a aparição
do n ú m ero 3, porque há três letras. A nosso traço unário , não nos é
n ecessário , no que nos toca, p ed ir-lh e tanto, pois sabem os que, no n íve l
da sucessão freu d ian a , se vocês m e p erm item essa fórm u la , o traço
unário designa algo que é rad ica l para a exp e r iên c ia orig in ária , é a
u n ic idade, com o tal, da vo lta na repetição .
Penso ter m arcado su fic ien tem en te , para vocês, que a noção da função
da rep e tição no in co n sc ien te se d istingue abso lu tam en te de todo c ic lo
natura l, no sen tido de qu e o que é acen tu ado não é seu retorn o , é que
o que é p rocu rado pe lo su jeito , é sua u n ic idade s ign ifica n te e en qu an to
um a das voltas da rep e tição - se podem os d ize r - m arcou o su je ito que
se põe a rep e tir o que e le não poderia e v id en tem en te repetir, pois isso
nu nca será m ais que um a repetição , mas com o ob jetivo , com o desígn io
de fa ze r ressurgir o unário p rim itivo de um a de suas voltas. C om o que
acabo de lh es d izer, não m e é necessário acen tu ar isso, é que isso já
fu n c ion a antes que o su je ito saiba contar. Em todo caso, nada im p lica
que e le tenha n ecess id ad e de con tar dem ais as voltas do que e le repe te ,
pois e le o rep e te sem sabê-lo. N ão é m en os verdade iro que o fa to da
repetição está en ra izada neste unário orig inal, que, com o tal, este unário
está es tre ita m en te co lado e co -ex ten s ivo à p rópria estru tu ra do su jeito,
enqu an to e le é pensado com o repetindo , no sen tido freu d ian o.
O que vou m ostrar-lhes hoje, por m eio de um exem plo e com um m odelo
que vou introduzir, o que vou lhes mostrar hoje é isso: que não há nenhum a
C )
cnecessidade de que e le saiba con tar para que se possa d izer e dem onstrar
( com que necessidade constitu in te de sua função de su jeito e le vai fa zer
um erro de conta. N en h u m a necessidade de que e le saiba, sequ er que
procure contar, para que esse erro de conta seja constitu in te dele, sujeito,
enqu an to tal, e le é o erro. Se as coisas são com o lhes digo, vocês devem
( estar d izen do a si m esm os que esse erro pode durar m u ito tem po sobre
tais bases, e isso é um a verdade. E tão verdade iro que não é som en te no
in d iv ídu o que isso va i atuar em seu e fe ito , os e fe itos disso atuam nos
caracteres m ais rad ica is do que se cham a de pensam ento. Tom em os, por
( um instante, o tema do pensamento, quanto ao qual existe, de toda maneira,
, lugar para um a certa prudência ; vocês sabem que, a esse respeito, a
p ru dên cia não m e falta; não é tão certo que se possa va lidam en te re ferir-(
se ao pensam ento de uma form a que seja considerada com o uma dim ensão
propriam ente falando genérica. Tomemo-lo, todavia, com o tal: o pensamento
da espéc ie hum ana. Está bem claro que não fo i por nada que, m ais de
um a vez, avan cei-m e, de uma form a inev itáve l, a pôr em causa aqui,
desde o com eço do m eu discurso deste ano, a fu nção da classe e sua
relação com o universal, a tal pon to que é, de a lgum a m aneira , o inverso
e o oposto de todo esse discurso que ten to trazer d ian te de vocês. A esse
respeito , lem brem -se apenas do que eu tentava m ostrar-lhes a propósito
( do pequ eno quadrante exem plar, sobre o qual ten te i rearticu lar, d iante
de vocês, a relação do universal ao particular e das proposições respectivamente
a firm ativa e negativa.
U n idade e to ta lidade aparecem aqu i na trad ição com o solidárias, e
não é por acaso que vo lto a elas sem pre para delas fa zer surgir a categoria
fu ndam enta l. U n idade e totalidade, ao m esm o tem po solidárias, ligadas
um a a ou tra nessa relação que se pode cham ar de relação de inclusão, a
to ta lidade sendo totalidade em relação às unidades, m as a un idade sendo
C o que funda a tota lidade com o tal, ao lan çar a un idade em d ireção a esse
( ou tro sentido, oposto àqu ele que distingo com o sendo a un idade de uin
todo. E em torno disso que prossegue esse m al-en tend ido dentro da lógica
dita das classes, o m al-en tend ido secu lar da extensão e da com preensão
( sobre o qual, parece, a tradição e fetivam en te ainda se apóia, se é verdade,
( ao tom ar as coisas na perspectiva , por exem plo , da m etade do sécu lo
X IX , sob a p lum a de um H am ilton , se é verdade que só se com eçou
1 francam en te a articu lá-lo a partir de D escartes e que a lóg ica de Port-
( Royal, vocês sabem, é calcada sobre o ensinam ento de Descartes. Ademais,
( A Identificação
( 1
Lição de 7 de março de 1962
isso não é m esm o verdade, pois ela existe há m uito tem po, e desde o
próprio A ristóte les , essa oposição en tre extensão e com preensão . O que
se pode d izer é que e la nos causa, no que d iz respeito ao m anejo das
classes, d ificu ldades sem pre m ais irresolvidas, de on de todos os es forços
que fe z a lógica para co locar o nervo do problem a alhures: na quantificação
p roposic iona l, por exem plo . M as por que não ver que, na estru tura da
própria classe com o tal, um novo ponto de partida nos é o fe rec id o se, na
relação de inclusão, substituím os uma relação de exclusão com o a relação
radical? D ito de outro m odo, se nós consideramos com o logicam ente original
quanto ao su jeito isso, que eu não descubro, que está ao a lcan ce de um
lóg ico de classe m éd ia , é que o verdade iro fu ndam en to da classe não é
nem sua extensão, nem sua com preensão, que a classe supõe sem pre a
classificação. D ito de ou tro m odo, os m am íferos, por exem plo , para fazer-
m e com preender im ed ia tam en te, são aquilo que se exclu i dos vertebrados
p elo traço unário m am a. O que isso quer d izer? Q u er d izer que o fa to
p rim itivo é que o traço unário pode faltar, que há de in íc io ausência de
m am a, e que se d iz: não pode acon tecer que fa lte a m am a. E is o que
constitu i a classe dos m a m ífe ros . Vejam bem as coisas ao pé do m uro, ou
seja, reabram os tratados para dar a volta em torno dessas m il pequenas
aporias que lhes o fe rece a lóg ica form al, para vocês se aperceberem de
que é a ún ica d e fin ição possível de uma classe, se vocês qu iserem de fa to
assegurar-lhe seu estatuto un iversal, enquanto e le constitu i ao m esm o
tem po, de um lado, a possib ilidade de sua inex istên cia , sua inex istên c ia
possível com essa classe, pois vocês podem tam bém , e é vá lido, fa ltan do
ao un iversal, d e fin ir a classe que não com porta nenhum in d iv ídu o, o
que não deixará de ser um a classe constitu ída un iversa lm en te, com a
con cilia ção , digo, dessa possib ilidade extrem a com o va lor n orm ativo de
todo ju lgam ento universal, enquanto ele só pode transcender toda in ferência
indutiva , ou seja, saída da experiên cia . A
Esse é o sen tido do p equ en o quadrante que
eu havia rep resen tad o a p ropós ito da classe, a
constitu ir entre os outros, ou seja, o traço vertical.
P r im e ira m en te , o su je ito con stitu i a ausência l { :
de tal traço. C om o tal, e le p róprio é o quarto
no alto, à direita. O zoólogo, se vocês m e perm item +1
ir tão lon ge , não corta a classe dos m am íferos
na to ta lidade assum ida da m am a m atern a : é
- 1 7 9 -
A Identificação
p orq u e e le destaca a m am a que pode id en tif ic a r a ausência de m am a.
O su jeito com o tal é -1. É a partir daí, do traço unário enqu an to exc lu ído,
que e le decre ta que há um a classe on de u n iversa lm en te não pode haver
ausência de m am a: - (-1 ). E é a partir disso que tudo se ordena, sobretudo
nos casos particu lares, para todos e qu a lqu er um , há ou não há. U m a
oposição con trad itória estabelece-se em d iagona l, e é a ún ica verdade ira
contradição que subsiste no nível do estabelecim ento da dialética universal-
particu lar, n ega tiva -a firm a tiva , pe lo traço unário . Tudo se ordena, pois,
para todos e cada um, no n íve l in ferior, há ou não há, e isso só pode
ex is tir na m ed id a em que é con stitu ído , pe la exc lu são do traço, o n íve l
do v a le -tu d o ou v a len d o com o tud o no n ív e l superior. É, portan to, o
su jeito, com o era de se esperar, qu e in trodu z a p rivação e pe lo ato de
en u n c iação , o qua l se form u la essen c ia lm en te assim : s eria poss íve l que
houvesse m a m a ? AB - N e que não é nega tivo , ne que é es tritam en te da
m esm a natu reza do que se cham a exp le tivo na gram ática francesa . S eria
possível que houvesse m a m a ? N ão possível ...nada, pode ser. É aí o com eço
de toda en u n c iação do su jeito, no que con ce rn e o rea l.
N o p rim eiro quadrante (1 ), trata-se de p reservar os d ire itos do n a d a ,
n o alto, porque é e le que cria, em baixo, o pode ser, isto é, a possib ilidade.
L on ge de se poder d izer com o axiom a - e tal é o erro espantoso de toda
a dedu ção abstrata do transcendenta l - lon ge de se poder d izer que todo
rea l é possível, é som en te a partir do n ão poss ível que o rea l ganha lugar.
O que o su jeito busca é esse real enqu anto ju stam en te não possível; é a
exceção , e esse rea l existe, obviam ente. O que se pode d izer é que só há,
ju s tam en te , o não possível na origem de toda enun ciação. M as isso se vê
na m ed ida em qu e é do enunciado do nada que ela parte. Isso, para
d ize r a verdade, está já assegurado, escla rec ido em m inha enu m eração
tr íp lice : privação - frustração - castração, tal com o eu anunciara que a
desen vo lveríam os outro dia.
E alguns se p reocu pam que eu não dê lu gar à V e rw e rfu n g . E la está
lá, antes, m as é im possíve l partir d e la de um a m an eira dedu tíve l. D ize r
que o su jeito con stitu i-se p r im e ira m en te com o -1 é algo on de vocês
p od em ver qu e e fe t iva m en te , com o era de se esperar, é com o v erw o rfen
que nós o vam os encon trar, m as para p erceb er qu e isso é verdade será
p rec iso dar um a vo lta in c r íve l. É o que vou in ic ia r agora.
Para fa zê -lo , é p rec iso que eu desven de a b a ter ia anunciada , o que
não se faz sem es trem ecim en to , vocês podem im agin ar o quanto, e que
- 1 8 0 -
Lição de 7 de março de 1962
eu tire da m in h a m anga para vocês um a das m inhas rev iravo ltas, sem
dúvida lon ga m en te preparada. Q u ero d ize r que, se vocês p rocu ra rem
no re la tó r io de R om a, já en con trarão em algum a parte o lugar disso
in d icad o ali: fa lo da estru tura do su jeito com o a de um anel. M ais tarde,
qu ero dizer, no ano passado, e a propósito de P la tão - e vocês o vêem
sem pre em re la ção com o que se trata, nesse m om en to , ou seja, a classe
in c lu s iva - vocês v iram todas as reservas que ach e i te r de in trodu zir a
p ropós ito dos d ife ren tes m itos do B a n q iie lc , tão in t im am en te ligados ao
pen sam en to p la tôn ico , no que d iz resp e ito à fu nção da es fera . A esfera ,
esse ob jeto obtuso, se posso assim dizer, basta o lh ar para ela, vê-la !
T a lvez seja um a boa fo rm a , mas, com o ela é to la ! E la é cosm ológ ica ,
tudo bem . A na tu reza é suposta m ostrar-n os m u itas delas, m as não
tantas assim, quando a gen te olha de m ais perto ; e as que e la nos mostra,
nós nos apegam os a elas. E xem plo : a lua, que, no en tan to , seria de um
uso bem m elh or se nós a tom ássem os com o exem plo de um objeto unário.
M as d e ixem os isso de lado. Esta nosta lg ia da es fe ra que nos faz, com
um Von U exk ü ll, arrastar para den tro da p rópria b io log ia essa m etá fora
do W elt, in n e n e u m , eis o que con stitu ir ia o organ ism o. Será que é
com p le tam en te satis fa tório pensar que no organ ism o, para d e fin i- lo , .
devam os satisfazer-nos com a correspondência , da coaptação desse in n en
e desse u m ? Sem dúvida há aí um a visão pro funda, porqu e é bem aí
qu e está, de fato , o p rob lem a, e já som en te no n íve l em que estam os,
qu e não é do b ió logo , m as do analista do su jeito. O que fa z o WelL lá
den tro? É o que m e pergun to. Em todo caso, pois é n ecessá rio que, ao
passar por aqu i, nós nos isen tem os de não sei qual h om en agem aos
b ió logos, pergu n tare i por que, se é verdade que a im agem es fé r ica tenha
de ser con sid erada aqu i com o rad ica l, que se p ergu n te en tão por que
esta b lástu la só cessa quando se gastru la, e que, sendo gastru lada, e la
só esteja con ten te quando ela tiver redobrado seu o r if íc io estom ático
p or um ou tro , a saber, de um buraco do cu? E por que, tam bém , num
certo estág io do sistem a nervoso, e le se apresen ta com o um a pequ en a
trom pa aberta nas duas ex trem id ad es para o in te r io r? Sem dúvida,
isso se fech a , e m esm o está m u ito bem fech ado , m as isso, vocês verão,
não é para nos desencora jar, pois aban donarei desde já este cam in h o
d ito da N a tu rw is s en s ch a ft. N ão é isso que m e in teressa agora e estou
bem d ec id id o a levar a questão para ou tro lado, m esm o se eu devo,
- 181-
A Identificação
para isso, lhes p a rece r m e enfiar, é o caso de d izê-lo , em m eu toro. Pois
é do toro que vou fa la r-lh es hoje.
A partir de hoje, vocês estão vendo, abro d e lib e rad am en te a era dos
p ressen tim entos. N u m certo tem po, eu gostaria de en carar as coisas sob
o dublo aspecto do a torto e a d ire ito , e m u itas outras coisas que lhes
são o ferec idas . T en tem os agora esc la rece r o que lhes vou dizer. Eu acho
que vocês sabem o que é um toro. Vou fa ze r um desen ho grosseiro . E
algo com que se b rinca, quando é fe ito de borrach a. E côm odo ; um toro
se deform a, é redondo, é cheio. Para o geôm etra, é uma figura de revoluções
en gen d rada pela revo lu ção de uma c ircu n fe rên c ia em torno de um e ixo
situado em seu plano. A c ircu n fe rên c ia gira; no fim , você está en vo lv id o
pelo toro . A ch o até qu e e le fo i cham ado de bam bolê . O que gostaria de
ressa ltar aqu i é que este toro - fa lo no sen tido g eo m étr ico estrito do
term o, isto é, segundo a d e fin içã o geo m étr ica - é um a su p erfíc ie de
revo lu ção , é a su p erfíc ie de revo lu ção deste c ircu lo em torn o de um
e ixo , e o que é en gen d rado é um a su p erfíc ie fech ada . Isso é im portan te
porque vem encon trar-se com algo que lhes an u ncie i, nu m a con fe rên c ia
fora da sé r ie47, em re la ção ao que lhes d igo aqu i, m as a lgo a que m e
tenho re ferido desde então, ou seja, o acento que en tendo pôr sobre a
superfíc ie na função do sujeito. H o je em dia é m oda encarar quantidade
de espaços com m ultidões de dim ensões. D evo d izer-lhes que, do ponto de
vista da reflexão m atemática, pede-se que não se acredite nisso sem reservas.
Os filósofos, os bons, aqueles que deixam atrás de si um cheiro bom de giz,
com o o Sr. Alain, dirão a vocês que já a terceira dimensão, ora, está bastante
c laro que, do ponto de vista que eu avançava há pouco sobre o real, é
completamente suspeita. Em todo caso, para o sujeito duas bastam, acreditem-
m e. Isso explica m inhas reservas sobre o term o p s ico log ia das profundezas
e não nos im ped irá de dar um sentido a tal term o.
Lição de 7 de março de 1962
Em todo caso, para o su jeito , tal com o vou d e fin i- lo , d izem vocês que
este ser in fin ita m en te p lano que fazia , penso, a a legria de suas aulas
de m atem ática , quando vocês estudavam filosofia , o sujeito in fin itam en te
p lano, d iz ia o professor, com o a classe era bagu nceira , e eu m esm o o
era, não se ou via tudo. É aqu i, ora, ora! É aqu i qu e nós vam os avançar
no sujeito in fin itam en te plano, tal com o o podem os conceber, se quisermos
dar o seu va lo r verd ad e iro ao fato da id en tific a çã o tal com o Freud no-lo
p rom ove. E isso terá a inda m uitas vantagens, vocês verão , pois, en fim ,
se é exp ressam en te à su p erfíc ie que lhes p eço aqu i de se re fe r irem é
pelas p rop ried ad es topo lóg icas que ela va i estar em con d ições de lhes
dem onstrar. É uma boa su perfíc ie , vocês vêem , pois e la p reserva , d ire i
n ecessa riam en te , ela não poderia ser a su p erfíc ie que e la é se não
houvesse um interior. C onseqü en tem en te, tranqü ilizem -se, não subtraio
a vocês n em ao vo lu m e, n em ao sólido, n em a este com p lem en to de
espaço do qual vocês certamente têm necessidade, para respirar. Simplesmente
p eço -lh es para observar que, se vocês não se p ro ib irem de en tra r nesse
in terior, se vocês não con sideram que m eu m od e lo é fe ito para serv ir
no n ív e l s im p lesm en te das p rop riedades da su p erfíc ie , vocês vão, posso
dizer, p e rd er todo o sal disso, pois a van tagem dessa su p erfíc ie está
ju s tam en te no que vou lhes m ostrar de sua topo log ia , do que e la traz
de or ig in a l, topo log icam en te , em re lação , por exem p lo , à es fera ou ao
plano. E, se vocês se puserem a tran çar coisas no in terior, a ter levado
linhas de um lado para o ou tro dessa su p erfíc ie , quero dizer, con tudo,
que e la tem a aparênc ia de se opor a si m esm a, vocês vão p erd er todas
as suas p rop riedades topológicas. De tais p rop riedades topo lóg icas vocês
vão ve r o n ervo , o tem pero e o sal. Consistem essencia lm ente num a
palavra suporte, que m e perm iti in trodu zir sob form a de adivinhação, na
con ferência de que falava, há pouco; e essa palavra, que não podia aparecer
a vocês, naquele m om ento, em seu verdadeiro sentido, é o Zaço48 [/acs].
Vocês vêem que, à m edida que avançamos, eu reino sobre m inhas palavras;
durante um certo tem po, eu ench i os ouvidos de vocês com a lacuna,
agora la cuna se reduz a laço.
O toro tem essa van tagem con sid erável sobre um a su perfíc ie , todavia
bastan te boa para se degustar que se cham a esfera , ou s im p lesm en te
p lano, de não ser de fo rm a algum a U m w elt quanto aos laços, qua isquer
que sejam . La ços é en tre laçam en to , é la c is , que vocês podem traçar
em sua su p erfíc ie . D ito de ou tro m odo, vocês podem , sobre um toro,
- 1 8 3 -
A Identificação
assim com o sobre qu a lqu er ou tra su perfíc ie , fa ze r um pequ en o c írcu lo ,
e depois, com o se d iz, p or en co lh im en tos progressivos, vocês o redu zem
a nada, a um pon to. O bservem que, qu a lqu er qu e seja o laço que vocês
s ituam assim , em um p lano ou na su perfíc ie de um a esfera , será sem pre
possível red u z i- lo a um ponto, e tanto é que, com o nos d iz Kant, há
um a esté tica tran scen den ta l, acred ito . S im p lesm en te c re io qu e a de le,
Kant, não é correta , ju s tam en te porqu e é um a es té tica tran scen den ta l
de um espaço que não é espaço de in íc io , e em segundo, on d e tudo
repousa sobre a poss ib ilidade da redu ção do qu e qu er que seja traçado
à su perfíc ie , o que ca rac te r iza essa estética , de m an e ira a p od er se
redu z ir a um pon to, de m an e ira que a to ta lidade da in c lu são que d e fin e
o c írcu lo possa red u z ir-se à un idade evan escen te de um pon to qu a lqu er
em torno do qual e le se con cen tre , de um m u n do cuja es té tica é tal
que, tudo poden do dobrar-se sobre tudo, se c rê sem pre p od er ter o
tudo na palm a da m ão. D ito de ou tro m odo, que o que qu er qu e seja
que se desen h e ali, está-se em con d ições de p rodu zir ali essa sorte de
colapso que, quando se tratar de s ign ificância , se cham ará de tau tologia.
Tudo en tran do em tudo, con seqü en tem en te o p rob lem a se co loca : com o
pode a con tecer que, com con stru ções p u ram en te an a líticas, possa-se
ch egar a d esen vo lver um ed ifíc io que faça tão b em co n co rrên c ia ao
real, com o as m atem áticas?
Proponho que se adm ita que de uma m aneira que sem dúvida com porta
um escam oteam ento, algo de escondido que será preciso trazer, reencontrar
on de está, co lo ca -se que há um a estru tu ra topo lóg ica da qual se tratará
de d em on strar em que e la é n ecessa riam en te a do su jeito , estru tu ra
que com porta que haja alguns de seus laços que não possam ser reduzidos.
É todo o in teresse do m od e lo do m eu toro. É que, com o vocês vêem ,
basta o lh ar para e le , há sobre esse toro um certo n ú m ero de c írcu los
traçáveis; aquele, já que se fech aria em si m esm o, eu o cham arei, sim ples
questão de den om in ação , c ír c u lo p le n o . N en h u m a h ip ó tese sobre o que
está em seu in terior, é um a s im p les e tiqu eta que acred ito , D eus m eu ,
não ser pior que nenhum a outra, considerando-se tudo. Hesitei longam ente,
quando falava a respeito com m eu filho - porque não citá-lo? - poderíam os
cham ar isso de c ír c u lo e n g cn d ra n te , m as D eus sabe aon de isso nos
levaria ! M as suponham os, portan to, que toda en u n c iação dos m étodos
que se cham a de s in té tica - porqu e espan tam o-n os espec ia lm en te com
isso, a inda que se possa enunciar, a p rio ri; e las têm o aspecto , não se
- 1 8 4 -
c
(sabe onde, não se sabe o quê, de con te r a lgum a coisa, e é o que se
cham a de in tu ição ; e busca-se seu fu n dam en to estético , transcenden ta l
- suponham os, pois, que toda en u n ciação s in té tica - há certo nú m ero
delas no p rin c íp io do su jeito e para con stitu í-lo - se desen ro la segundo
um desses c írcu los , d itos c írc u lo s p lenos e que é isso o que m e lh o r nos
dá a im agem daqu ilo que, no g iro dessa enu n ciação , é série irred u tíve l.
N ão vou lim ita r-m e a esse sim ples gracejo, porque teria podido con tentar-
m e em tom ar um c ilin d ro in fin ito ; depois, porqu e se isso se lim itasse
ao que se disse, não haveria com o ir m ais lon ge . M etá fo ra in tu itiva ,
geom étrica , digam os. Cada um sabe a im portância que tem toda a batalha
en tre m a tem á ticos : e la só se desen cade ia em torno de e lem en tos dessa
espéc ie . P o in ca ré e ou tros sustentam que há um e lem en to in tu itivo
irredutível, e toda a escola dos axiomáticos pretende que podem os form alizar
in te ira m en te a partir de axiom as, de d e fin ições e de e lem en tos , todo o
d esen vo lv im en to das m atem áticas, isto é, arrancá-lo a toda in tu ição
topo lóg ica . F e lizm en te , o Sr. Po in ca ré p ercebe m u ito bem que é na
topo log ia que se en con tra o suco do e lem en to in tu itivo , e qu e não se
pode reso lvê-lo . E que, eu d iria m ais, fora da in tu ição não se pode (
fa ze r essa c iên c ia que se cham a de topo log ia , não se pode com eça r a
articu lá-la , porqu e é um a grande c iênc ia .
H á grandes verdades prim eiras que estão ligadas ao redor da construção
do toro, e vou fa zê -los ap reen der a lgum a coisa: sobre um a es fe ra ou (
sobre um plano, vocês sabem que se pode desen har qu a lqu er m apa,
por m ais com p lica do que seja, que se cham a de g eográ fico , e que, para
co lo r ir seus dom ín ios, de m odo a p e rm itir que não se con fu n d a com •*
seu v iz in h o , bastam qu a tro cores. Se vocês en co n tra rem um a boa (
dem onstração dessa verdade verd ad e iram en te p rim eira , vocês poderão
le vá - la a qu em de d ire ito , p orqu e lh e darão um p rêm io , já qu e a
d em on stração até ho je a inda não fo i encon trada . Sobre o toro, não é
experim en ta lm en te que vocês verão, m as isso se dem onstra: para reso lver (
o m esm o prob lem a, são necessárias sete cores. D ito de ou tro m odo,
sobre o toro vocês podem , com a ponta de um lápis, d e fin ir até sete
dom ín ios, e nen h u m a m ais, sendo estes dom ín ios d e fin id os cada um
com o tendo um a fro n te ira com um com os dem ais. S ign ifica d ize r que (
se vocês tiv e rem um pouco de im aginação, para vê-los bem c la ram en te ,
vocês desen harão tais dom ín ios hexagon a lm en te . É fa c ílim o m ostrar
que vocês podem , sobre o toro, desen har sete hexágonos e n em um a
c
O
j
Lição de 7 de março de 1962
- 1 8 5 - (
A Identificação
m ais, cada um tendo com os dem ais um a fro n te ira com um . Isso, eu
p eço descu lpas, é para dar um pouco de con sis tên cia a m eu objeto.
N ão é uma bolha, não é um sopro esse toro; vocês vêem com o se pode
fa la r de le, a inda que in te iram en te , com o se d iz na filo so fia clássica,
com o con stru ção do esp írito , e le tem toda a res is tên c ia de um rea l.
Sete dom ín ios? Para a m a ior ia de vocês, im possíve l. E nqu anto eu não
o tiver dem onstrado, vocês estão no d ire ito de m e opor esse im possíve l.
Por que não seis? Por que não oito?
A gora , con tin u em os. N ão há apenas aqu ela argo la que nos in teressa
com o irred u tíve l. I iá outras que vocês podem desen har na su p erfíc ie
do toro e das quais a m en or é o que podem os cham ar de o m ais in tern o
desses c írcu los, que cham arem os de c írcu los vazios. E les dão a volta
em torno do buraco. Podem os fa ze r m u itas coisas com ele . O que há de
certo é que e le é essen cia l, ap a ren tem en te . Agora que e le está ali,
vocês p od em esvaziá-lo - o toro de vocês, com o um a bóia - e co locá -lo
no bolso, pois não p roced e da natu reza desse toro que e le seja bem
redondo, bem igual. O que im porta é essa estru tura esburacada. Vocês
poderão en ch ê-lo n ovam en te cada vez que tiv e rem n ecessidade, mas
e le pode, com o a girafinha do pequeno Hans,
que fa z ia um nó com seu pescoço , torcer-
se. H á um a coisa que lhes quero m ostrar
im e d ia ta m e n te . Se é v e rd a d e qu e a
enunciação sintética, enquanto ela se m antém
no u m das voltas, na rep etição desse u m ,
não lhes p arece que isso va i ser fá c il de
rep resen tar? Basta-m e continuar o que eu
prim eiram ente desenhara em cheio, depois
em pontilhados, isso vai dar uma bobina. Vejam,
portanto, a série das voltas que fazem , na
repetição unária, com que o que volta seja o
que caracteriza o sujeito primário em sua relação
sign ificante de automatismo de repetição. Por
que não levar a bobinagem até o fim , até que
essa pequena serpente de bobina m orda sua
própria cauda? Não é uma im agem a se estudar
com o analista que existe sob a plum a do Sr.
Jones. O que se passa no fina l desse circu ito?
- 1 8 6 -
Lição de 7 de março de 1962
Elo se fecha. Encontram os, aliás, ali, a possibilidade de conciliar o que há
suposto, de im plicado e de últim o retorno, no sentido da Naturw issenschaft,
com o que sublinho concernente à função necessariam ente unária do Todo.
Isso não lhes aparece aqu i, tal com o o rep resen to para vocês, m as já
lá, no com eço , e na m ed ida em que o su jeito p e rco rre a sucessão das
voltas, e le n ecessa riam en te se enganou de 1 na sua con ta, e vem os
aqu i reapa recer o -1 in con sc ien te , em sua fu nção constitu tiva . Isso pela
sim ples razão de que a vo lta que e le não pode con tar é a que e le fe z ao
fazer a volta do toro, e vou ilustrá-lo para vocês de uma m aneira im portante,
através do que é p róprio para in trodu zi-los na função que vam os dar
aos dois tipos de laços irredu tíve is , aqueles que são c írcu los p lenos e
aqu eles que são c írcu los vazios, dos quais vocês já ad iv inh am que o
segundo deve ter alguma relação com a função do desejo. Pois, em relação
a essas voltas que se sucedem , sucessão de
c írcu los p lenos, vocês devem perceber que
os círcu los vazios, que estão de algum m odo
presos nos anéis dessas argolas e que unem
en tre si todos os c írcu los da dem anda, deve
haver, bem aí, alguma coisa que tenha relação
com o objeto a, objeto da metonímia, enquanto
e le é esse objeto. Eu não disse que é o desejo
que está s im bo lizado por tais c írcu los, mas
o objeto, com o tal, que se propõe ao desejo.
Isso para lhes m ostrar a d ireção na qual
a van ça rem os em segu ida. É apenas um
com ecin ho.
O ponto sobre o qual quero concluir, para
que vocês sintam que não há artifíc io algum
nessa espéc ie de volta saltada, que pareço
qu erer fa ze r passar para vocês, com o que
por um a escam oteação , qu ero m ostrá-lo a
vocês, antes de deixá-los. Q uero m ostrá-
lo, antes de deixá-los, a p ropósito de uma
só volta sobre o c írcu lo p leno. Eu poderia
m ostrá-lo fa zen d o um desen ho no quadro-
negro. Posso traçar um c írcu lo que esteja
de tal sorte pronto para dar a volta com pleta
- 187-
A Identificação
em torn o do toro . E le vai passear no ex te r io r do bu raco cen tra l e depois
vo lta r p e lo ou tro lado. U m a m aneira m e lh o r de fa ze r vocês sen tirem
isso: vocês tom am o toro e um a tesoura, vocês cortam -n o segundo um
dos c írcu los p lenos - e i-lo aberto com o um ch ou riço de duas pontas.
R etom em a tesoura e cortem ao com prido: ele pode abrir-se com pletam ente
e es ten der-se . É um a su p erfíc ie que é equ iva len te à do toro. Basta,
para isso, que a d e fin am os assim : que cada um a de suas bordas opostas
ten h a um a equ iva lên c ia im p lican d o a con tin u id ad e com um dos pon tos
da borda oposta. O que acabo de desen h ar sobre o toro desdobrado se
p ro je ta assim .
Vejam com o algo que não é m ais do que um ú n ico laço vai apresentar-
se sobre o toro con ven ien tem en te cortado por esses dois golpes de tesoura.
E esse traço ob líqu o d e fin e o que podem os cham ar de um a terce ira
esp éc ie de c írcu lo , m as que é ju s tam en te o c írcu lo que nos in teressa ,
no que d iz respeito a esse tipo de p ropriedade possível que tento articu lar
com o estru tu ra l do su jeito, que, ainda qu e e le tenha dado só um a volta,
e le s im p lesm en te deu duas, a saber: a vo lta do c írcu lo p leno do toro e
ao m esm o tem po a volta do c írcu lo vazio ; e que, assim , essa vo lta que
fa lta na con ta é ju s tam en te isso que o su jeito in c lu i nas necessidades
de sua própria su perfíc ie de ser in fin itam en te p lano, que a sub jetiv idade
não poderia ap reen der senão por m eio de um desvio : o desv io do O utro.
É para lhes mostrar como se pode imaginá-lo de uma maneira particularmente
exem plar, graças a esse a rtifíc io topo lóg ico, ao qual, não tenh am dúvida,
con ced o um pou co m ais de peso que apenas um a rtífic e , assim com o, e
p e la m esm a razão , pois é a m esm a coisa - que, ao resp on d er a um a
p ergu n ta que m e fize ra m em re lação à ra iz de -1, tal com o a in trodu zi
na fu n ção do su jeito:
“ Será que ao articu lar a coisa assim ” , perguntaram -m e, “ você en ten de
m anifestar outra coisa além de uma pura e simples simbolização, substituível
por qua lquer outra, ou algum a coisa que se prenda m ais rad ica lm en te à
própria essência do su je ito? ” “ S im ” , respondi, “ é nesse sentido que é
n ecessário en ten der o que desen vo lv i d iante de vo c ê s ” e é o que m e
proponho con tinu ar a desenvolver, com a form a do toro.
- 188-
LIÇÃO XIII
( ' ( )
C )
14 de m a rço 1962
C )
C )
C )
C )
( )
Q C )oC)o o
N o d iá logo que em preen do com vocês, há forçosam en te h ia tu s , saltus,
casus, ocas iões , para não fa lar do fa tu v i . D ito de ou tro m odo, e le é
cortado por d iversas coisas, por exem p lo : on tem à n o ite ou vim os a
in teressante, a im portan te com u n icação de Lagache na sessão c ien tífica
da S oc ied ad e , sobre a sublim ação. Esta m anhã, eu tin ha von tade de
retom ar a partir daqu e le ponto, mas, por ou tro lado, d om in go eu havia
partido de ou tro ponto, quero dizer, de um a espéc ie de observação sobre
o caráter daquilo que se persegue aqui com o investigação. É, evidentem ente,
um a in ves tigação con d ic ion ada por quê? Por enqu an to , por um a certa ( j
p ersp ectiva que cham arei de perspectiva de um a e ró tica . C on s id ero
isso leg ít im o , não que sejam os por na tu reza essen c ia lm en te destinados
a fa zê - la quando estam os no cam in h o on de e la é ex ig ida , qu ero dizer, !
que estam os um pouco nesse cam inho assim com o aqueles que, no curso >
dos séculos, m editaram sobre as condições da ciência estiveram no cam inho
daqu ilo em que a c iência e fetivam en te tem êxito, don de m inha re fe rên c ia
ao astronauta, que tem seu sentido, na m ed id a em que aqu ilo em que
ela tinha êx ito certam en te não era forçosam en te aqu ilo que e la esperava,
até um certo ponto, em bora as fases de sua investigação estejam abolidas,
refu tadas por seu êxito . É certo que tem gen te - em pregam os esse term o
no sen tid o m ais am plo, a m en os qu e o em p regu em os num sen tido
ligeiram en te reduzido, o dos gentios, o que ev iden tem en te de ixaria aberta ( j
a cu riosa questão dos gen tios d e fin id os em relação a x - vocês sabem
de on de parte essa d e fin ição de gen tio - o que d e ixaria aberta a curiosa
questão de saber com o acon tece que os gen tios rep resen tem , se posso (
O—189 —
OC j
C )
A Identificação
dizer, um a classe secu ndária no sen tido em que eu a en ten d ia da ú ltim a
vez: algum a coisa fundada num a certa acepção anterior. Apesar de tudo,
isso não seria ruim , pois, em tal perspectiva , os gen tios são a cristandade,
e todos sabem que a cristandade, com o tal, está num a re la ção notória
com as d ificu ldades do eró tico , a saber: que as quere las do cristão com
V énus são, todavia , algo que é m u ito d if íc il desconhecer, a inda que se
fin ja tom ar a coisa, se posso dizer, nas coxas.
D e fato, se o fundo do cristian ism o encon tra-se na R evelação paulina,
ou seja, num determ inado passo essencia l dado nas relações com o pai,
se a relação de am or com o pai é o passo essencia l disso, se e le represen ta
verdadeiram ente a ultrapassagem de tudo o que a tradição sem ita inaugurou
de grande, nessa fundam enta l relação com o pai, nessa baraka49 originária
à qual é de toda form a d ifíc il d escon h ecer que o pensam ento de Freud
se ata, ainda que de uma m aneira contraditória, m aleditória [m aledictoire]
- não podem os duvidar disso, pois, se a re ferên c ia ao Éd ipo pode deixar
a questão aberta, o fato de le ter term in ado seu d iscurso sobre M oisés,
com o e le o fez, não deixa dúvidas de que o fu ndam ento da R evelação
cristã está, pois, nessa relação da graça que Paulo faz su ceder à L e i. A
d ificu ldade é que o cristão não se m an tém - e não sem razão - à altura
da R evelação e que, entretan to, e le a v ive num a sociedade tal que se
pode d izer que, m esm o reduzidos à fo rm a m ais leiga , seus prin cíp ios de
d ire ito são, todavia, oriun dos de um catec ism o que não deixa de ter
relação com aqu ela R evelação paulina. N o entanto, com o a m ed itação
do C orpo m ístico não está ao a lcance de cada um, fica aberto um vazio
que faz com que p ra ticam en te o cristão se ache reduzido a algo que não
é tão norm al, fu ndam enta l, de não ter rea lm en te nen hum outro acesso
ao gozo, com o tal, senão fa zen do amor. E o que cham o de suas querelas
com Vênus. Pois, bem en ten d ido , com aqu ilo com que e le está co locado
nessa ordem , tudo se arranja m u ito m al no côm puto final.
Isto que d igo é m u ito sensível, por exem plo , quando se sai dos lim ites
da cristandade, quando se va i às zonas dom inadas pe la acu ltu ração
cristã, quero d ize r não as zonas que foram con vertidas ao cristian ism o,
mas as que sofreram os e fe ito s da soc ied ad e cristã. H e i de m e lem brar
por m u ito tem po de um a lon ga con versa , tida num a n o ite de 1947,
com alguém que era m eu gu ia para um a v iagem fe ita ao Egito. Era o
que se cham a de um árabe. Era, na tu ra lm en te , p or suas fu n ções , e
tam bém pela zona on de viv ia , tudo o que há de m ais in c lu so na nossa
- 1 9 0 -
Lição de 14 de março de 1962
ca tegoria . Estava inu ito n ítido , em seu d iscu rso, esse tipo de e fe ito de
p rom oção da questão eró tica . C ertam en te , e le estava preparado, por
toda sorte de ressonâncias m u ito antigas de sua esfera, a pôr no p rim eiro
p lano da questão da ju stificação da ex is tên c ia o seu gozo; mas, a m aneira
com o e le o encarnava na m u lher tinha todas as características em im passe
do que se pode im agin ar de m ais desnudado em nossa própria sociedade:
a ex igên c ia , em particu lar, de uma ren ovação de um a sucessão in fin ita ,
devida ao caráter de sua natu reza essen c ia lm en te não satis fa tória do
objeto, era exatam ente o que fazia o essencial, não apenas de seu discurso,
m as de sua vida prática. Person agem , d ir-se-ia num ou tro vocabu lário ,
essen c ia lm en te desarra igada às norm as de sua trad ição.
Q uando se trata do eró tico , o que d evem os pensar de tais norm as?
D ito de outro m odo: estamos encarregados de dar, por exem plo, justificativa
à subsistência p rática do casam en to com o in stitu ição através m esm o
de nossas tran s fo rm ações m ais revo lu c ion á ria s? C re io que não há
necessidade algum a de todo o esforço de um W esterm arck para justificar,
através de toda sorte de argum entos, de na tu reza ou da trad ição, a
in s titu ição do casam en to, pois, s im p lesm en te , e la se ju s tific a por sua
pers is tên c ia , que tem os visto sob nossos o lh os, e sob a fo rm a m ais
n it id a m en te m arcada de traços p equ en o-bu rgu eses, através de um a
sociedade que, no início, acreditava poder ir m ais longe no questionam ento
das relações fundam enta is, quero dizer, na sociedade com unista . Parece
m u ito ce rto que a n ecessidade do casam en to sequ er fo i tocada pelos
e fe itos dessa revolução. Será que, falando propriam ente, esse é o dom ín io
ao qual som os levados a tra zer a luz? N ão o c re io , em absolu to. As
necessidades do casam ento, para nós, m ostram ser um traço propriam ente
socia l de nosso con d ic ion am en to ; elas d e ixam com p le tam en te aberto
o problem a das insatisfações que resultam, a saber, do con flito perm anen te
on de se en con tra o su jeito hum ano, apenas por isso que e le é hum ano,
com os e fe itos , as repercu ssões dessa le i do casam ento.
O que é que nos dá testem unho disso? M u ito sim plesm ente a ex istência
do que nós constatam os, desde que nos ocupam os do desejo , qu ero
dizer, que ex is te nas soc iedades, sejam elas bem organ izadas ou não,
qu e se façam nelas em m a io r ou m en or abundância as con stru ções
necessárias ao habitat dos indivíduos, constatam os a existência da neurose;
e não se vá p en sar que lá on d e as c o n d iç õ es de v ida são as m a is
- 1 9 1 -
A Identificação
satisfatoriam ente asseguradas, nem onde a tradição está m ais assegurada,
a n eu rose seja m ais rara. L on ge de ser assim !
O qu e qu er d ize r a n eu rose? Q ual é, para nós, a au toridade, se posso
dizer, da neurose? Isso não está s im p lesm en te ligado à sua pura e sim ples
ex is tên c ia . A posição é dem asiado fá c il n aqu eles que, em tais casos,
atribuem seus efeitos a uma espécie de deslocam ento da hum ana fraqueza.
Q uero d izer que aquilo que se verifica , e fetivam ente, fraco na organização
soc ia l com o tal, é lan çado sobre o n eu ró tico , do qual se d iz que é um
inadaptado. Q ue provai P a rece-m e que o d ire ito , a au toridade que deriva
do que tem os a ap ren der do n eu rótico , é a estru tura que e le nos reve la .
E, no fu n do , aqu ilo qu e e le nos reve la , a partir do m om en to em que
com p reen d em os que seu desejo é exa tam en te o m esm o que o nosso, e
não sem razão, o que, pou co a pouco, vem reve la r a nosso estudo, o
que con fe re a d ign idade ao n eu rótico , é que e le quer saber. E, de a lgum a
m an eira , é e le qu em in trodu z a psicaná lise . O in ven to r da ps icaná lise
não é Fireud, m as Anna O, com o todos sabem , e, bem en ten d id o , por
trás de la m u itos outros, nós todos.
O n eu ró tico qu er saber o quê? Aqu i, vou d im in u ir o r itm o do m eu
d iscurso, para qu e vocês com p reen d em bem , pois cada pa lavra tem
im portân c ia . E le qu er saber o que há de rea l n aqu ilo de que e le é a
paixão, ou seja, o que há de rea l no e fe ito do s ign ifican te , o qu e supõe,
é c laro, que já avançam os su fic ien tem en te lon ge para saberm os qu e o
que se cham a de desejo , no ser hum ano, é im pen sáve l a não ser d en tro
dessa relação com o s ign ifica n te e os e fe itos que a li se in screvem . Esse
s ign ifican te que e le m esm o é por sua posição, ou seja, enqu an to neurose
viva, é - se vocês se rep o rta rem a m in h a d e fin ição do s ign ifica n te - é,
aliás, in versa m en te o que a ju s tifica , é que e la é ap licáve l, aqu ilo por
qu e esse crip togram a que é um a neurose, o que o faz assim , o neu rótico ,
com o tal um s ign ifican te e nada mais, pois o su jeito a que e le serve
ju stam en te está em ou tra parte: é o que cham am os de seu in con sc ien te .
E é por isso que e le é, segundo a d e fin ição que lhes dou, en qu an to
neurose, um s ign ifican te : é que e le represen ta um su jeito ocu lto. M as
para quê? Para nada m ais que um ou tro s ign ifican te .
Q ue o que ju s t ific a o n eu ró tico com o tal, porquan to a análise - d e ixo
passar esse term o tom ado em prestado do discurso de m eu am igo Lagache,
on tem - o va lo r iza é porque sua neu rose vem con trib u ir para o adven to
d esse d is cu rso e x ig id o p o r u m a e ró t ic a e n f im c o n s t itu íd a . E le ,
- 1 9 2 -
Lição de 14 de março de 1962
ev id en tem en te , nada sabe disso e não o procura . E nós tam bém , só
tem os de p rocu rá -lo p o rqu e vocês estão aqu i, isto é, para que eu lhes
esc la reça sobre a s ign ifica çã o da psicanálise em re la ção a este adven to
ex ig id o de um a eró tica . Vale dizer, daqu ilo por m e io do qua l é pensável
que o ser hu m an o faça tam bém , nesse dom ín io - e por qu e não? - , a
m esm a brecha e que, aliás, term in e nesse instante b izarro do astronauta
d en tro de sua carapaça . O que lhes p e rm ite pensar que não procuro
sequ er en tre v e r o que poderá dar um a e ró tica fu tura. O que há de
certo é que os ú n icos qu e sonharam con ven ien tem en te com isso, ou
seja, os poetas, sem p re chegaram a con stru ções m u ito estranhas. E, se
a lgum a p re figu ra çã o pode-se en treab rir n isso em que m e d em o re i m ais
lon gam en te, os esboços que podem ser dados disso, em alguns pontos
paradoxa is da trad ição cristã , o am or cortês, por exem p lo , fo i para (
ressaltar as singu laridades absolu tam ente b izarras - de que os que foram
os ou vin tes d isso se lem bram - de alguns sonetos de A rnau lt D an iel,
por exem p lo , que nos abrem perspectivas bem curiosas sobre o que
rep resen tavam e fe t iva m en te as relações en tre o en am orado e sua dam a.
D e fo rm a algum a, isso é in d ign o da com paração com o que ten to situar
com o pon to ex trem o sobre os aspectos do astronauta. O bv iam en te , a
ten tativa pode parecer-n os partic ipa r de a lgum a fo rm a da m istifica ção
e, de resto, e la deu em nada. M as e la é com p le tam en te esc la recedo ra
para nos situar, por exem plo , aqu ilo que se deve en ten der por sublim ação.
Eu lem bre i, on tem à n o ite , que a sublim ação, no d iscu rso de Freud, é
in separável de um a con trad ição , ou seja, que o gozo, a p ersp ectiva do
gozo , subsiste e é, nu m certo sen tido , rea lizada em toda a tiv id ad e de
sub lim ação. Q ue não há reca lcam en to , que não há apagam en to , que
não há sequ er com prom isso com o gozo, que há paradoxo, que há desvio,
que é pe los cam in h os ap aren tem en te con trá rios ao gozo que o gozo é
obtido. Isso só é p rop riam en te p ensável porquanto, no gozo, o m éd iu m
que in terv ém , m éd iu m por on d e é dado acesso a seu fu n d o que só
pode ser - eu lhes m ostre i - a Coisa, que este m éd iu m tam bém só pode
ser um s ign ifican te . D on de esse estranho aspecto qu e tom a, a nossos
o lhos, a dam a no am or cortês. N ão con segu im os acred ita r n isso porque
não podem os m ais iden tifica r, nesse ponto, um su jeito v ivo com um
s ign ifican te , um a pessoa que se cham a B eatriz , com a sabedoria e com
o que era , para D an te , o con ju n to , a to ta lidade do saber. N ã o estáv1
com p le tam en te exc lu íd o , pela na tu reza das coisas, que D an te tenha
- 1 9 3 -
( > ___________________________________________
( '
A Identificação( )
e fe t iva m en te d orm ido com B eatriz. Isso não m uda em nada o prob lem a.
Q u erem os c re r que não, m as isso não é fu n d am en ta l na relação. Tendo
fe ito tais observações, o que d e fin e o n eu ró tico? O n eu ró tico se en trega
a um a cu riosa retran s fo rm ação daqu ilo de que e le so fre o e fe ito . O
n eu ró tico , em sum a, é um in o cen te : e le qu er saber. Para saber, e le
parte na d ireção m ais natural, e é n a tu ra lm en te por isso m esm o que
e le é logrado. O n eu ró tico quer retran s fo rm ar o s ign ifica n te n aqu ilo
de que e le é o signo. O n eu ró tico não sabe, e não sem razão, que é
enquanto sujeito que e le fom entou isso: o advento do sign ificante enquanto
o s ign ifican te é o apagador50 prin cipa l da coisa; que é ele, o su jeito que,
ao apagar todos os traços da coisa, faz o s ign ifican te. O n eu rótico quer
apagar esse apagam ento, quer fa zer com que isso não tenha acon tec ido .
Esse é o sentido m ais pro fundo do com portam en to sum ário, exem plar,
do obsessivo. A qu ilo sobre o qual e le volta sem pre, sem jam ais poder,
obviam ente, abolir seu e fe ito - pois cada um de seus es fo rços para aboli-
lo só faz reforçá-lo - é fazer com que esse advento da função de s ign ificante
não se tenha produzido, que se en con tre o que há de real na origem , a
saber, aqu ilo de quê tudo isso é signo. Isso, eu o deixo aqui ind icado,
introduzido, para voltar mais tarde de uma form a generalizada e ao m esm o
tem po m ais d iversificada , ou seja, segundo as três espécies de neuroses:
fob ia, h isteria e obsessão, depois que eu tiver dado a volta à qual tal
preâm bulo está destinado a trazer-m e de volta, em m eu discurso.
Esse desvio , portan to, fo i fe ito para situar, e ju s t if ic a r ao m esm o
tem po, a dupla perspectiva de nossa investigação, que é a que perseguim os,
este ano, no terreno da identificação. Por mais extrem am ente metapsicológica
que nossa in ves tigação possa parecer, a alguns, para não prossegu i-la
exa tam en te sobre a m esm a aresta on de a prossegu im os, p orqu an to a
análise só se con ceb e nessa perspectiva das m ais esca to lóg icas, se assim
posso exp rim ir-m e, de uma erótica , m as im possíve l tam bém sem manter,
ao m en os num certo n íve l, a con sc iên c ia do sen tido dessa p erspectiva
de fa ze r com con ven iên c ia na prática , o que vocês têm a fazer, is to é,
obv iam en te , não p regar um a eró tica , m as se v ira r com o fa to de que,
m esm o en tre as pessoas m ais norm ais e no in te r io r da ap licação p lena
e in te ira , e de boa von tade, das norm as, b em ! Isso não fu n c ion a . Q ue
não apenas com o La R och fou cau ld disse, “ há bons casam en tos, m as
não os há d e lic io sos ” , podem os acrescen ta r que, desde en tão , tudo se
deterio rou um pouco maíg, já que não os há tam pouco bons, digo, den tro
( '
(
- 1 9 4 -
A A
~V
Lição de 14 de março de 1962
*
-f
f*
f*
da p ersp ectiva do desejo . Seria, todavia , um pou co in veross ím il que
tais propósitos não possam ser postos no prim eiro plano, num a assem bléia
de analistas. Isso não fa z de vocês os propagandistas de um a eró tica
nova, isso lhes situa o que vocês têm a fa ze r em cada caso particu lar:
têm a fa ze r exa tam en te o que cada um tem a fa ze r para si e p e lo m otivo
que o leva a m aior ou m en or necessidade de sua ajuda, ou seja, aguardando
o astronauta da e ró tica fu tura, so luções artesanais.
R etom em os as coisas de onde as de ixam os na ú ltim a vez: no n ív e l da
privação. Espero ter-m e fe ito com preender, no que con cerne a esse sujeito
enquanto o s im bolizei por aquele -1, a volta, forçosam en te não contada,
contada a m enos na m elh or hipótese, ou seja, quando deu a volta da volta,
a volta do toro. O fato de eu ter logo em seguida estendido o fio que relaciona
a função daquele -1 ao fundam ento lóg ico de toda possib ilidade de uma
a firm ação universal, ou seja, a possibilidade de fundar a exceção - e é
isso, aliás, que ex ige a regra: a exceção não con firm a a regra, com o se d iz
gen tilm en te, ela a exige; é ela que é o verdadeiro p rin c íp io . Em sum a,
M r 1)
#■
♦
*
*
♦
- f '
ao traçar-lhes m eu pequ en o quadran te, is to é ao m ostrar-lh es qu e a
ún ica ve rd ad e ira segu ran ça da a firm ação un iversa l é a exc lu são d e um
traço n ega tivo : não há h om em que não seja m orta l, posso ter p rovocad o
um a con fu são que en ten do agora retificar, para que vocês saibam em
qu e terreno , a p rin c íp io , faço-os avançar. Eu lhes dava essa re fe rên c ia ,
m as é c la ro que nâP se d eve tom á-la com o um a dedu ção do p rocesso
in te iro a partir do s im bó lico . A parte vazia , on de não há nada no m eu
- 1 9 5 -
A Identificação
quadran te, é p rec iso , nesse n íve l, a inda con s id erá -la com o destacada.
O -1, qu e é o su je ito nesse n íve l em si m esm o, não é de fo rm a algum a
sub jetivado, não se trata a inda, de fo rm a algum a, de saber ou de não
saber. Para que alguma coisa da ordem desse advento aconteça, é necessário
que todo um cic lo seja fechado, c ic lo do qual a privação é apenas, portanto,
o p r im e iro passo. A p rivação em questão é p rivação rea l, para a qual,
com o suporte da in tu ição , da qual vocês m e c on ced e rã o que eu possa
ter o d ire ito , tudo o que faço aqui é segu ir as próprias pegadas da tradição,
e a m ais pura. C on ced e-se a Kant o essen cia l de seu p roced im en to , e
tal fu n dam en to do esquem atism o, procuro um m elh or para ten tar torná-
lo sen s íve l a vocês, in tu itivo . O m ecan ism o dessa p rivação rea l, eu o
fo r je i. É, portan to, som en te depo is de um lon go desv io que pode advir,
para o su jeito , esse saber de sua re je ição or ig in a l. M as, daqu i até lá,
d igo -lh es logo em seguida, m uitas coisas se passarão para que, quando
v ie r à luz, o su je ito saiba não apenas que esse saber o re je ita , m as que
esse saber, e le próprio , d eve ser reje itado , um a ve z que e le se m ostrará
estar sem pre ou a lém ou aquém do que é n ecessário atingir, para a
rea liza ção do desejo . D ito de ou tro m odo, se jam a is o su je ito - o que é
seu ob je tivo desde o tem po de P arm ên ides - ch ega à id en tifica ção , à
a firm ação de que é to auxo, o m esm o, que pensar e ser, uoevo x a i evuou,
nesse m om en to aí e le próprio se encon trará irrem ed ia ve lm en te d iv id ido
entre seu desejo e seu ideal. Isso, se posso dizer, está destinado a dem onstrar
o que eu p od eria cham ar de estru tura ob jetiva do to ro em questão.
M as, por que m e recu sariam esse uso da pa lavra ob je tivo , já que é
c lássico , no que con ce rn e ao dom ín io das id é ias , e a inda em p regad o
até D escartes?
N o pon to, pois, em que estam os, e para não m ais vo lta r a e le , aqu ilo
de que se trata de rea l é p e rfe ita m en te tocáve l, e só se trata disso. O
que nos levou à con strução do toro, no pon to em que estam os, fo i a
necessidade de d e fin ir cada um a das voltas com um u m irredu tive lm en te
d iferen te . Para que isso seja real, a saber, que essa verdade sim bólica ,
já qu e e la supõe o côm puto, a con tagem , seja fundada, se in trodu za no
m undo, é p rec iso e basta que algo tenha aparec ido no real, que é o
traço unário . C om preen der-se -á que, d ian te desse 1, que é o qu e dá
toda sua rea lidade ao idea l - o idea l é tudo o que há de rea l no sim bólico,
e basta - com p reen d e-se que nas origen s do pensam en to , com o se diz,
no tem po de P latão e em P latão, para não rem on ta r m ais lon ge , isso
- 196 -
(
tenh a acarre tado a adoração , a p rostern ação ; o 1 era o bem , o be lo , o
ve rd ad e iro , o ser suprem o. A qu ilo em que consiste a inversão à qual
som os so lic itados a fa ze r fren te , nessa ocasião, é aperceberm o-n os que,<
por m ais leg it im a que possa ser essa adoração, do pon to de vista de
um a e lação a fe tiva , não é m en os verd ad e iro que o 1 nada m ais é senão
a rea lida de de um m u ito estúp ido bastão. Só isso. O p rim e iro caçador,(
eu lhes d isse, que, sobre uma coste la de an tílope , fe z um en ta lhe, para,
se lem b ra r s im p lesm en te de que havia caçado 10 vezes, 12 ou 13 vezes;
e le não sabia contar, observem , e é m esm o por causa disso que era
n ecessá rio co locá -los , esses traços, para que as 10, 12, 13 vezes não se
con fu n d issem um as den tro das ou tras, com o m erec iam , todavia , ser
con fu n d idas . Portan to, no n ív e l da privação de que se trata, enqu anto
o su jeito é, de in íc io , ob jetivam ente, essa p rivação na coisa; essa privação
que e le não sabe que é da volta não con tada, é de lá que partim os, para
com p reen d e r o que se passa. Tem os ou tros e lem en tos de in form ação,
para que daí e le venha a con stitu ir-se com o desejo , e que e le saiba a
relação que há dessa con stitu ição com essa or igem , en qu an to ela pode
nos p e rm it ir c o m eça r a a rticu la r a lgum as re la ções s im bó licas mais<
adequadas do que estas até aqu i p rom ovidas, no que c o n ce rn e ao que,
é sua estru tu ra de desejo, ao su jeito. Isso não nos faz, de qu a lqu er
form a, p resum ir o que se m anterá da noção da fu nção do sujeito, quando
o tiverm os posto em situação de desejo; é o que som os forçados a percorrerf
com e le , segu n do um m étodo que é tão som en te o da exp e r iên c ia - é o
subtítulo da Fenom enologia , de H egel: W issenschaft der E rfa hru n g , ciência
da exp eriên c ia - segu im os um cam inho análogo, com os dados d iferen tes1
que são os que nos são o ferec idos .
O passo segu in te está centrado - eu poderia , aqui, tam bém não m arcar
com um títu lo de cap ítu lo , fa ço -o para fin s d idá ticos - é aqu e le da
fru stração . É no n ív e l da fru stração que se in trodu z, com o O utro, a
poss ib ilidade, para o su jeito, de um n ovo passo essen cia l. O um da
volta única, o um que distingue cada repetição em sua d iferença absoluta,
não vem ao su jeito, m esm o se seu suporte nada m ais é que o do bastão
rea l, não vem de céu algum , vem de um a ex p e r iên c ia constitu ída, para
o su je ito do qual nos ocupam os, pe la ex is tên c ia , antes que e le tenha
nascido, do un iverso do discurso; pela n ecessidade que essa experiên cia
supõe, do lugar do O u tro com o gran de A, tal com o an terio rm en te o
d e fin i. É aqu i que o su jeito va i con qu istar o essencia l, o que ch am ei de
(
c
Lição de 14 de março de 1962
- 1 9 7 - c
( )
c '
segunda d im ensão, um a ve z que e la é fu n ção rad ica l de sua p rópria
re fe rên c ia em sua estru tura, a inda qu e m eta fo r ica m en te , m as não sem
p re ten d er atingir, nessa m etá fo ra , a p róp ria estru tu ra da co isa , nós
cham am os de estrutura de toro essa segunda dimensão, já que ela constitui,
em m eio a ou tras, a ex is tên c ia de laços irred u tíve is a um pon to, de
laços não evanescentes. E no Outro que vem necessariam ente se encarnar
essa irred u tib ilid ad e das duas d im en sões, porque, se e la é, em algum
lugar, sensível, isso só pode ser - posto que, até o m om en to , o su je ito só
é su jeito porqu e fa la - no dom ín io do s im bó lico . E na e x p e r iên c ia do
sim bólico que o sujeito deve encon trar a lim itação de seus deslocam entos,
que lh e fa z en trar em p rim e iro lugar na exp eriên c ia , a pon ta, se posso
dizer, o ângu lo irred u tíve l dessa du p lic idade das duas d im en sões. É
para isso que o esqu em atism o do toro va i-m e serv ir ao m áx im o - vocês
vão ve r - e a pa rtir da exp e r iên c ia m ajorada pela ps ican á lise e pela
observação que e la desperta.
O su jeito pode em p reen d er d ize r o ob jeto de seu desejo . E le só fa z
A Identificação
isso m esm o. E m ais qu e um ato de enu n ciação ; é um ato de im agin ação.
Isso suscita n e le um a m anobra da fu n ção im agin ária , e, de um m odo
necessário , essa fu nção se reve la presente, tão logo aparece a frustração.
Vocês sabem a im portân c ia , o acen to que tenh o posto, depo is de outros,
depo is sobretudo de Santo Agostin ho, sobre o m om en to do despertar
da paixão c iu m en ta na con stitu ição desse tipo de ob jeto que é o m esm o
que con stru ím os com o sub jacen te a cada um a de nossas satis fações: a
crianc inh a , presa da pa ixão c iu m en ta , d ian te de seu irm ão que, para
ela, em im agem , faz su rgir a posse desse ob jeto , o seio p r in c ipa lm en te ,
que até en tão fo i apenas o ob jeto sub jacen te, e lid ido , m ascarado para
e le por trás desse re to rn o de um a p resença ligada a cada um a de suas
satis fações; que não fo i - nesse r itm o em que se inscreveu , em que se
sen te a n ecess id ad e de sua p r im e ira d ep en d ên c ia - senão o ob jeto
m eton ím ico de cada um de seus retornos; e i-lo repen tinam en te produzido
para e le na c la r idade, nos e fe ito s para nós assinalados por sua p a lid ez
m orta l, a c la r ida de dessa a lgum a co isa de nova qu e é o desejo . O desejo
do objeto com o tal, um a vez que e le repercu te até no próprio fu ndam ento
do sujeito, que e le o abala bem a lém de sua con stitu ição, com o satis fe ito
ou não, com o rep en tin am en te am eaçado no m ais ín t im o de seu ser,
com o reve lan do sua fa lta fu n dam en ta l, e isso na fo rm a do O utro, com o
trazendo à luz ao m esm o tem po a m eton ím ia e a perda que ela condiciona.
-198 —
í >C »
/
Lição de 14 de março de 1962
Essa d im ensão de perda, essencial à m eton ím ia , perda da coisa no objeto,
está aí o v e rd a d e iro sen tido dessa tem ática do ob jeto enqu an to perd ido
e jam ais reencontrado, o m esm o que está no fundo do discurso freudiano,
e in cessan tem en te repetido.
U m passo a m ais: se levam os a m eton ím ia m ais lon ge , vocês sabem ,
é a perda de algum a coisa de essen cia l na im agem , nessa m eton ím ia
que se cham a de Eu, nesse pon to de n asc im en to do desejo , nesse pon to
de p a lid ez on de Santo Agostinho pára, d ian te do lactan te, com o faz
Freud, d ian te de seu neto, d ezo ito sécu los m ais tarde. E fa lsa a id é ia de
que se pode d ize r que o ser de quem ten h o c iú m es, o irm ão , é m eu
sem elh an te . E le é m inha im agem , no sen tido em que a im agem em
questão é im agem fundadora de m eu desejo. Essa é a revelação im aginária,
e é o sen tido e a fu n ção da frustração. Tudo isso já é con h ec ido . Tudo
o que fa ço é re lem brá-lo , com o segunda fon te da exp eriên c ia , depo is
da privação rea l, a fru stração im agin ária . Mas, com o para a p rivação
rea l, ten h o tentado, hoje, situar a vocês para que e la serve no term o
que nos interessa, ou seja, na fundação do sim bólico, assim com o estam os
aqu i para ve r com o esta im agem fundadora , reve ladora do desejo , vai
s ituar-se no s im bólico .
Essa situação é difícil. Seria, bem entendido, com pletam ente im possível,
se o s im bó lico não estivesse ali, se - com o tenh o lem brado, m arte lado
desde sem pre e há tem po su fic ien te para que isso lhes en tre na cabeça
- se o O utro e o discurso onde o su jeito tem de se situar não o esperassem
desde sem pre, desde antes de seu nasc im en to , e que, p e lo in term éd io
ao m en os de sua m ãe, de sua lactan te, se fa la para ele. O p rin c íp io de
que se trata, este qu e é ao m esm o tem po o bê-á-bá, a in fân c ia de nossa
exp eriên c ia , m as para a lém do qual, há algum tem po, não se sabia
m ais avançar por fa lta ju s tam en te de saber fo rm a lizá -lo com o bê-á-bá,
é este, a saber: o cru zam en to , o in tercâm b io in gên u o que se p roduz
pela d im ensão do O utro en tre o desejo e a dem anda. Se há, vocês sabem,
algo a que se pode d ize r que, desde o in íc io , o n eu ró tico fo i pego, é
nessa arm adilha ; e e le tentará fa ze r passar na dem an da o que é o ob jeto
de seu desejo , de obter do O utro não a satisfação de sua necessidade,
pela qua l a dem anda é fe ita , mas a satis fação de seu desejo , isto é, de
ter o ob jeto , is to é, p rec isam en te o que não se pode dem andar. E isso
está na or igem do que se cham a de d epen dên c ia , nas re lações do su jeito
com o O u tro. Da m esm a m aneira , e le ten tará , m ais paradoxa lm en te
- 199 -
A Identificação
ainda, satis fazer pela con fo rm ação de seu desejo à dem an da do O u tro .
E não há ou tro sentido, sen tido corre ta m en te articu lado , qu ero dizer,
para aqu ilo que é a descoberta da aná lise e de Freud, para a ex is tên c ia
do Su perego com o tal. N ão há ou tra d e fin ição corre ta , d igo , nen h u m a
ou tra que p erm ita escapar de d es lizes qu e criam con fu sões.
Penso, sem ir m ais lon ge , qu e as ressonâncias práticas, con cre tas de
todos os dias, ou seja, o im passe do n eu ró tico , são em p rim e iro lu gar e
antes de tudo o p rob lem a dos im passes de seu desejo , esse im passe
sensível a cada instan te, g ro sse iram en te sensível, e con tra o qual a
gen te o vê sem pre chocar-se. É o que
e x p r im ire i su m aria m en te , d izen d o
que, para seu desejo, é-lh e necessária
a sanção de um a dem an da. O que
vocês lh e negam , senão isto que e le
espera de vocês, que lh e p eçam que
dese je con gru en tem en te? Sem fa la r
do que e le espera de sua côn ju ge ,
de seus pais, de sua lin h agem e de
todos os con form ism os que o rodeiam .
O que é que isso nos perm ite construir
e p e rc eb er? N a m ed id a em que a
dem anda se renova, segundo as voltas
percorridas, segundo os círculos plenos,
bem em torno e os sucessivos retornos
de que necessita a revinda mais inserida
pelo laço da demanda, da necessidade,
su p os to q u e , c o m o lh e s d e ix e i
en ten d er através de cada um de tais
, retornos, o que nos perm ite d izer que
o c írcu lo e lid ido , o c írcu lo qu e ch am ei s im p lesm en te - para que vocês
vejam o que quero dizer, em re la ção ao toro - de c írcu lo vazio , vem
aqu i m a te r ia liza r o ob jeto m eton ím ico sob todas as dem andas. U m a
construção topológica é imaginável de um outro toro, que tem por propriedade
perm ítir-rtos im ag in ar a ap licação do ob jeto de desejo , c írcu lo in tern o
vazio do p r im e iro toro, sobre o c írcu lo p len o do segundo qu e con stitu i
um anel, um desses laços irred u tíve is . In versam en te , o c írcu lo sobre o
p rim e iro toro , de um a dem an da, vem aqu i superpor-se no ou tro toro , o
- 200 -
Lição de 14 de março de 1962
toro aqu i suporte do ou tro , do ou tro im agin ário da frustração, vem aqu i
superpor-se ao c írcu lo va z io deste toro, isto é, p reen ch er a fu n ção de
m ostrar essa in versão : dese jo num , dem an da no outro; dem anda de um,
desejo do outro, que é o nó onde se atravanca toda a d ialética da frustração.
Essa depen dên cia possível das duas topologias, a de um toro à do outro,
não exprim e, em suma, nada além do que é o ob jetivo de nosso esquem a,
uma vez que o fazem os suportar pelo toro. É que, se o espaço da in tu ição
kantiana, eu diria deve, graças ao novo esquem a que introduzim os, ser
posto entre parênteses, anulado, aufgehoben, com o ilusório, porque a extensão
topológica do toro nos perm ite isso, só considerando as propriedades da
superfície, estam os certos da m anutenção, da solidez, se posso dizer, do
volum e do sistema, sem ter de recorrer à in tu ição da profundidade.
O que, vocês vêem , e o que isso represen ta é que, ao nos m anterm os,
em toda a m ed ida em que nossos hábitos intuitivos no-lo perm item , nesses
lim ites , resulta daí que, já que se trata apenas, en tre as duas superfíc ies,
de uma substituição por aplicação biunívoca, ainda que ela esteja invertida,
a saber, que uma vez recortada, será nesse sentido sobre uma das superfícies
e neste ou tro sobre a outra. N ão é m enos verdadeiro
V
T
b ’ -
que o que isso torna sensível é que, do ponto de vista do espaço ex ig ido,
estes dois espaços [superfícies], o in terior e o exterior, a partir do m om ento
em que nos recusam os a lh es dar outra substância que não topológica ,
são os m esm os. É o que vocês verão expresso na frase [que o ind ica ] já,
no re la tório de Rom a, o uso que eu contava fa ze r disso para vocês, a
saber, que a p ropriedade do anel, enquanto s im boliza a função do sujeito
-201
(
c(
c(c(
c<(
c(cc(c(
ccctc(
((
c
c
A Identificação
em suas re lações com o O utro, se deve ao fa to de que seu espaço in ter io r
e o espaço ex te r io r são os m esm os. O sujeito, a partir disso, constró i seu
espaço exterior sobre o m odelo de irredu tib ilidade de seu espaço interior.
Mas, o que esse esquem a mostra é, ev iden tem ente, a carência de harm onia
ideal que poderia ser exig ida do objeto à dem anda,
da demanda ao objeto. Ilusão que está suficientemente
dem onstrada pela experiência , eu acho, para que
tenham os sentido a necessidade de constru ir esse
m odelo necessário de sua necessária discordância.
C onh ecem os o p rincíp io disso, e bem entendido, se
pareço avançar a passos m uito lentos, acred item -
m e, nenhum a estagnação é demasiada se querem os
assegurar-nos dos passos seguintes.
O que já sabemos, e o que há aqui de representado
in tu itivam en te , é que o p róp rio ob jeto com o tal,
e n q u a n to o b je to do d e se jo , é o e fe i t o da
impossibilidade do Outro para responder à demanda.
É o que se vê aqui, m anifestam ente, nesse sentido,
é que à dita dem anda, qualquer que seja seu desejo,
o O u tro não p od e ria a ten dê -la , qu e e le d e ixa
fo r ç o s a m e n te a d e sc o b e r to a m a io r p a r te da
estru tura. D ito de ou tro m odo, que o su jeito não
é en vo lv id o , com o se acred ita , no todo, que pelo
m en os no n íve l do su jeito que fala, o U m w elt não
en vo lve seu In n en w e lt. Q ue se houvesse algo a
fazer, para im agin ar o su jeito em relação à esfera
idea l, d esde sem pre o m od e lo in tu itivo e m en ta l
da estrutura de um cosmos, seria, preferencialm ente,
que o su je ito fosse, se posso p erm itir-m e avançar,
exp lora r - m as vocês verão que há m ais de um
m odo de o fa ze r - sua im agem in tu itiva , seria
represen tar o sujeito pela ex istência de um buraco
na dita es fera e seu su p lem en to por duas suturas.
Suponham os o sujeito a constitu ir sobre uma esfera
cósm ica . A su perfíc ie de um a esfera in fin ita é um
plano: o p lano do qu adro-n egro in d e fin id a m en te
prolongado. Eis o sujeito: um buraco quadrangular,Segunda sutura
- 202 -
Lição de 14 de março de 1962
com o a con figu ração gera l de m in h a pe le há pouco, m as dessa v e z em
negativo . Eu costu ro um a borda na outra, mas com a con d ição de que
são bordas opostas, que eu d e ixe livres as duas outras bordas. R esu lta
disso a figu ra segu inte, a saber, com o vazio preench ido aqui, dois buracos
que p erm an ecem na esfera de su perfíc ie in fin ita . Basta puxar cada
um a das bordas destes dois buracos para constitu ir o sujeito de su perfíc ie
in fin ita , com o con stitu ído , em sum a, por isso que é sem pre um toro,
m esm o se e le tem um a lforje de raio in fin ito, a saber, um a alça em ergin do
ã su p erfíc ie do plano. E is o que isso quer dizer, ao m áxim o: a re la ção
do su jeito com o gran de Todo. Verem os as ap licações que disso podem os
fazer.
O que é im portan te captar aqu i é que, para esse reco b r im en to do
objeto à dem anda, se o ou tro im aginário [é] assim constitu ído, na inversão
das fu n ções do c írcu lo do desejo com o da dem anda, o O u tro, para a
satisfação do desejo do sujeito, deve ser de fin ido com o sem poder. Insisto
sobre esse sem , pois, com ele, em erge um a nova form a de negação , na
qual se in d icam , p rop riam en te fa lan do, os e fe itos da fru stração . Sem é
um a n egação , m as não um a qu a lqu er: é um a n egação -liga ção , que
m ateria liza bem , na língua ing lesa, a h om o log ia con fo rm is ta das duas
re lações dos dois s ign ifican tes : w ith in e w ith o u t. E um a exclu são ligada
que, já em si só, in d ica sua inversão . U m passo a m ais, vam os dá-lo, é
o do não-sem . O O u tro sem dúvida se in trodu z, na p ersp ectiva in gên u a
do desejo com o sem poder, m as essen c ia lm en te o qu e o liga à estru tura
do desejo é o não-sem : e le tam bém não é sem poder. E por isso que
esse O utro, que in trodu zim os enqu an to m etá fora do traço unário , isto
é, do qu e en con tram os em seu n íve l e que e le substitu i num a regressão
in fin ita , já que e le é o lugar em que se su cedem esses u m d ife ren tes
uns dos outros, dos quais o su jeito é apenas a m eton ím ia , esse O utro
com o u m - e o jo g o de palavras fa z parte da fórm u la que em p rego aqu i
para d e fin ir o m odo sob o qual o in trodu zi - acha-se, um a v e z fech ada
a n ecess id ad e dos e fe itos da fru stração im agin ária , com o ten d o esse
va lo r ún ico , pois e le só não é sem , não-sem poder, e le está na origem
possível do desejo posto com o con d ição , m esm o se tal con d içã o fica
em suspenso. Por isso, e le é com o não-um e le dá ao -1 do su je ito uma
ou tra fu nção , que se encarna, antes de tudo, nessa d im en são que esse
com o situa para vocês, com o sendo o da m etá fora . É nesse n íve l, no
n íve l do com o não-um e de tudo o que va i fica r em segu ida suspenso,
- 2 0 3 -
A Identificação
com o o que ch am ei de con d ic ion a lid ad e absolu ta do desejo , qu e nós
nos ocu parem os na p róx im a vez, is to é, no n íve l do te rce iro term o, da
in trodu çã o do ato de desejo com o tal, de suas re la ções com o su jeito ,
p or um lado, à ra iz desse poder, à rea rticu lação dos tem pos desse poder,
na m ed id a em qu e - vocês vêem - ser-m e-á n ecessá rio vo lta r atrás
sobre o passo poss íve l51 para m arcar o cam in h o qu e fo i cu m prid o na
in trodu ção dos term os poder e sem -poder. E na m ed ida em que terem os
qu e prossegu ir essa d ia lé tica , na p róxim a vez , qu e paro aqu i, p or hoje.
- 204 -
■* C rw (
H ((jVJ (
■' ((
c ; (
(
Eu os de ixe i, da ú ltim a vez, no n íve l desse abraço s im bólico dos dois
toros, on de se encarna im agin ariam en te a relação de in terversão, se se
pode dizer, v iv ida pelo neurótico , na m ed ida sensível, clín ica, onde vem os
que aparen tem en te , ao m enos, é num a depen dên c ia da dem anda do
O utro que e le tenta fundar, institu ir seu desejo. E v iden tem en te, há aí
a lgum a coisa de fundada nessa estru tura que cham am os de estru tura do
su jeito, na m ed ida em que e le fa la, que é aquela para a qual fom en tam os
para vocês essa topologia do toro, que nos parece fu ndam enta l. E la tem
a fu nção daqu ilo que se cham a, em topolog ia , de grupo fu ndam enta l e,
a fina l, será a pergunta para a qual será preciso que ind iqu em os um a
resposta. Espero que essa resposta, no m om en to em qu e fo r p reciso dá-
la, já esteja de fa to abundantem ente delineada. Por que, se está a í a
es tru tu ra fu n d a m en ta l, fo i d u ran te tão lon go tem p o e sem p re tão
p ro fu ndam ente desconhecida pelo pensam en to filosó fico? Por que, se é
assim , a ou tra topolog ia , a da esfera, [é] que trad ic ion a lm en te parece
dom inar toda a elaboração do pensam ento, no que con cern e à sua relação
com a coisa?
R e tom em os as coisas on de as d e ixam os na ú ltim a vez , e on d e eu
in d icava a vocês o que está im p licad o em nossa p rópria exp eriên c ia :
há, n esse nó com o O utro, posto que e le nos é o fe rec id o com o um a
p rim e ira ap rox im ação sensível, ta lvez fá c il dem ais - verem os qu e o é,
certam en te - há, nesse nó com o Outro, tal com o ele é aqui representado,
um a re la ção de engodo. R etorn em os aqu i ao atual, ao a rticu lado dessa
re la ção com o O utro. N ós o con h ecem os . C om o não o con h eceríam os ,
LIÇAO XIV
21 de m a rço 1962
quando som os cada dia o p róp rio suporte de sua pressão, na an álise, e
quando o su jeito n eu rótico , com quem trabalham os fu n dam en ta lm en te,
se apresenta d ian te de nós ex ig in d o de nós a resposta, isso m esm o se
nós lhe ensinam os o preço que há em suspender essa resposta? A resposta
sobre o quê? E ju s tam en te a í qu e se ju s tific a o nosso esqu em a , um a
v e z que e le nos m ostra, um substitu indo ao outro, desejo e dem an da é
que, ju s tam en te , a resposta é sobre seu desejo e sobre sua satis fação.
Aqu ilo , sem dúvida, a que h o je serei quase lim itado c e rta m en te pelo
tem po que m e 6 dado, é em bem articular a quais coordenadas se suspende
essa dem anda fe ita ao Outro, essa dem anda de resposta, a qual espec ifica
em sua razão verdadeira, em sua razão última, jun to a qual toda aproximação
é in su fic ien te , aqu ela que, em Freud, é designada com o versa gen , la
Versagung, o desdito, ou ainda a palavra enganosa, a ruptura de promessa,
en fim , a va n ita s , en fim , da m á palavra, e a am b igü idade - lem bro-lh es
aqu i - que une o term o b las fêm ia àqu ilo que deu, através de toda sorte
de transform ações , aliás, em si m esm as in teressan tes e va len d o ser
seguidas, a desaprovação. N ão avan çare i m ais nesse cam inho . A relação
essen cia l da fru stração - da qual nos ocupam os - com a palavra é o
pon to a sustentar, a m anter, sem pre rad ica l, sem o qual nosso con ce ito
de fru stração se degrada: e la d egen era a té red u z ir-se ao d e fe ito de
gra tificação con ce rn en te ao que, em ú ltim o term o, não pode m ais ser
con ceb ido senão com o a n ecessidade. O ra, é im possíve l não se lem brar
do que o gên io de Freud nos assegura o r ig in a lm en te quanto à fu nção
do desejo, aqu ilo de que e le partiu ao dar seus prim eiros passos, de ixem os
de lado as cartas a F liess, c om ecem os pela C iê n c ia dos Sonhos e não
nos esqu eçam os de que Totem e tabu era seu livro p re fe rid o , e o que o
gênio de Fireud nos assegura é o seguinte: que o desejo é fundam entalm ente,
rad ica lm en te estru tu rado por esse nó que se cham a de É d ipo , e de
on de é im possíve l e lim in a r esse nó in tern o que é o que ten to sustentar
d ian te de vocês por estas figu ras, esse nó in tern o que se ch am a de
Édipo, um a ve z que e le é essen c ia lm en te o quê? E le é essen c ia lm en te
o segu in te: um a relação en tre um a dem anda que tom a um va lor tão
p riv ileg iad o que se torn a o com an do absoluto, a le i, e um dese jo que é
o desejo do O utro, do O u tro de que se trata, no Édipo. Essa dem an da
articu la-se assim : tu não desejarás aqu ela que fo i m eu desejo . O ra, é
isso que funda em sua estru tu ra o essencia l, o pon to de partida da
verdade freud iana. E está aí, é a partir daí que todo dese jo possível
A Identificação
- 206-
Lição de 21 de março de 1962
está, de a lgum a m aneira , obrigado a esse tipo de desvio irredu tíve l,
esse a lgo sem elh an te à im possib ilidade no toro da redução do laço sobre
certos c írcu los , que fa z com que o dese jo deva in c lu ir em si o vazio,
esse bu raco in tern o espec ificad o na re la ção com a L e i orig ina l. N ão
nos esqu eçam os de que os passos, para fu n dar a re lação p rim e ira em
torno da qua l - nós nos esqu ecem os d em asiadam en te disso - são para
Freud articu láve is , e apenas por elas, todas as L iebesbed ingu ngen , todas
as d e te rm in açõ es do amor, não nos esqu eçam os dos passos que, na
d ia lética freud iana, isso exige: é a relação com o Outro, o pai assassinado,
a lém desse passam ento \trépas\ do assassinato orig inal, que se constitu i
essa fo rm a suprem a do amor. É o paradoxo, não de todo d issim ulado,
m esm o se e le é e lid id o por esse véu nos olhos, que parece sem pre
acom panh ar a le itu ra de Freud. Esse tem po é in e lim in á ve l, que após o
assassinato do pai surge para e le m esm o - se isto não é su fic ien tem en te
exp licad o , é o bastan te para que nós reten h am os disso o tem po com o
essen c ia l n isso que se pode cham ar de estru tura m ítica do E d ipo -
esse am or suprem o pe lo pai, o qual fa z ju s tam en te desse passam ento
do assassinato or ig in a l a con d ição de sua presen ça doravante absoluta.
A m orte , em sum a, desem pen h an do esse papel, m an ifestava-se com o
pod en d o apenas fixá -lo nesse tipo de rea lidade, sem dúvida a ún ica
com o absolutamente perdurável, de ser enquanto ausente. Não há nenhuma
ou tra fo n te para o absolu tism o do m an dam en to orig ina l.
E is on d e se con stitu i o cam po com u m no qual se in stitu i o ob jeto do
desejo , na posição sem dúvida que nós lh e sabíam os já com o necessário ,
no n ív e l u n icam en te im agin ário , a saber, um a posição te rce ira . A ún ica
d ialética da relação com o outro enquanto transitivo, na relação im aginária
do estád io do espelho, vocês já tinham apren d ido que constitu ía o objeto
do in teresse hum ano com o ligado a seu sem elh an te , o ob jeto a, aqui,
em re la çã o a essa im agem que o in c lu i, que é a im agem do ou tro no
n ív e l do estád io do espelho: i ( a ) . M as esse in teresse só é de algum
m odo um a form a , é o ob jeto desse in teresse n eu tro em torn o do qual
m esm o toda a d ia lé tica da in ves tigação do Sr. P ia ge t pode organ izar-se,
pon do em p rim e iro p lano essa relação que e le cham a de rec ip roc id ad e,
que e le c rê p od er ju n ta r a um a fó rm u la rad ica l da re la ção lóg ica . É
dessa equ iva lên c ia , dessa id en tific a çã o com o ou tro com o im agin ário
qu e a te rn a r ieda de do su rg im en to do ob jeto se institu i. E tão-som en te
um a estru tura in su fic ien te , parcia l e, portan to, que devem os en con trar
A Identificação
no fin a l com o dedu tiva da in stitu ição do ob jeto do desejo no n ív e l em
que, aqu i e hoje, o articu lo para vocês. A re la çã o com o O u tro não é de
fo rm a a lgum a essa re la ção im agin ária , fundada sobre a e sp ec ific id a d e
da form a genérica, posto que essa relação com o Outro ali está especificada
p e la dem anda, um a ve z que e la fa z surgir dessé O utro, que é o O utro
com O m aiúscu lo , sua essen cia lidade, se posso dizer, na con stitu ição
do su jeito, ou - para re tom ar a fo rm a que se dá sem pre ao verbo in te r
essar - sua in ter-essen c ia lida de com o su jeito. O cam po do qua l se
trata não poderia, pois, de m odo algum ser reduzido ao cam po da necessidade
e do ob jeto que, pe la r iva lida de de seus sem elhan tes, pode, em ú ltim a
análise, im por-se, pois esta será aí a inclinação on de nós irem os encon trar
nosso recu rso para a r iva lida de derrade ira : im por-se com o ob jeto de
subsistência para o organ ism o. Esse ou tro cam po, que nós d e fin im o s e
para o qual é fe ita nossa im agem do toro, é um ou tro cam po, um cam po
de s ign ifican te , cam po de con otação da p resença e da au sênc ia e on de
o ob jeto não é m ais ob jeto de subsistência, m as de ex-s istência do sujeito.
Para ch egar a d em on strá -lo , trata-se, exa tam en te , em ú ltim o term o,
de um certo lugar de ex-s is tên c ia do su jeito n ecessá rio e que está aí a
fu n ção à qual é e levado , con du zid o o ob jeto a da r iva lida de p rim eira .
Tem os, d ian te de nós, o cam in h o que nos resta a percorrer, desse cum e
aonde le v e i vocês na ú ltim a vez , do dom ín io do ou tro na in s titu ição da
relação fru stran te . A segunda parte do cam in h o d eve con du zir-n os da
fru stração a essa re lação a defin ir, que con stitu i, com o tal, o su je ito no
d ese jo , e vocês sabem qu e é s om en te aí qu e p o d e rem o s a r t icu la r
con ven ien tem en te a castração. Portanto, só saberemos, em últim a análise,
o que qu er d ize r esse lugar de ex-s istência , quando o cam in h o tiv e r
term inado. D esde já , podem os, d evem os m esm o lem brar, m as lem b ra r
aqu i o filó so fo m en os in trodu zid o em nossa exp eriên c ia , esse pon to
singular, ao vê -lo tão am iú de esqu ivar-se de seu p róp rio d iscu rso. É
que há um a questão, a saber, por que é n ecessário qu e o su je ito seja
rep resen tad o - e d igo no sen tid o freu d ian o - rep resen tad o por um
rep resen tan te rep resen ta tivo com o exc lu íd o do p róp rio cam po on de
e le tem de ag ir em re la ções d igam os lew in ian as com os ou tros com o
ind iv ídu os, que é prec iso , no n ív e l da estru tura, que con sigam os dar
con ta do porquê é p rec iso que e le seja rep resen tado em algum lugar
com o exc lu ído desse cam po para aí in terv ir, nesse m esm o cam po. Pois,
a final, todo o rac ioc ín io a que nos leva o psico-sociólogo, em sua de fin ição
- 2 0 8 -
Lição de 21 de março de 1962
do que acabei de cham ar de cam po lew in ian o , n u nca se apresen tam
senão com um a p erfe ita e lisão dessa necessidade de que o su jeito esteja,
d igam os, em dois lugares topo log icam en te defin idos, isto é, nesse cam po,
m as tam bém essen c ia lm en te exc lu ído desse cam po, e que e le ch egu e a
articu lar a lgum a coisa, m as a lgum a coisa que se sustente. Tudo o que,
num pensam en to da con du ta do hom em com o observável, ch ega a se
d e f in ir c o m o a p re n d iz a g e m e, em ú lt im o te rm o , o b je t iv a ç ã o da
ap ren d izagem , isto é, m on tagem , form a um discurso que se sustenta e
que até um ce rto pon to dá con ta de um a m u ltidão de coisas, salvo
disso: que e fetivam en te o sujeito funciona, não com esse em prego simples,
se posso dizer, m as num duplo em prego, no qual va le a pena que nos
detenham os e que, por m ais fu g id io que e le se nos apresen te, é sens íve l
de tantas m an eiras que basta, se posso dizer, debruçar-se para reco lh e r
as provas disso. N ão é ou tra coisa que ten to fa zê -los sen tir cada vez,
por exem plo , que in c id en tem en te trago as arm adilhas da dupla n egação
e que o eu não sa iba que eu q u e ira não é en ten d id o da m esm a m an eira ,
penso, que eu sei que eu n ã o quero.
R eflitam sobre esses p equ en os prob lem as jam a is esgotados, pois só
os lógicos da língua exercitam-se aí e seus balbucios são mais que instrutivos,
pois, tão freq ü en tem en te quanto houver palavras que escoam e m esm o
escr ito res que d e ixem flu ir as coisas na ponta de sua p lum a com o elas
se d izem , dir-se-á a alguém - j á insisti nisso, mas nunca é dem ais retom ar
- você n ã o d e ix a de ig n o ra r para lhe d ize r você sabe bem, m esm o a ss im !
O duplo p lano sobre o qua l se rep resen ta isso é que isso fu n c ion a ,
qu e a lgu ém es c re v e assim e que a con teceu . Isso m e fo i lem b ra d o
recen tem en te nu m desses textos de P révert, dos quais G ide se adm irava:
“ Será que e le qu is iro n iza r ou será que e le sabe bem o que e s c re v e ? ” .
E le não quis iron iza r: isso escorreu - lh e da plum a. E toda a c r ít ica dos
lógicos não fará com que nos advenha, por pouco que estejam os engajados
num verdadeiro d iálogo com alguém , a saber, que se trate de um a m aneira
qu a lqu er de um a certa con d ição essen cia l a nossas re la ções com e le -
que é esta à qual penso ch egar daqu i a pou co - que é essen cia l que
a lgum a coisa en tre nós se institua com o ignorân cia , que eu d es liza re i
a lh e d izer, p or m ais sábio e purista que eu seja, você n ã o é sem ig n o ra r .
N o m esm o d ia em que eu lhes falava aqu i, d esv ie i-m e de c ita r o que
acabava de le r no L e C anard E n ch a in é , no fin a l de um desses trech os
de bravura que se pu b lica sob a assinatura de A n d ré R ibaud, com o
- 209 -
A Identificação
títu lo de A C orte : “ N ão há por qu e se e x im ir ” , nu m estilo pseudo-saint-
s im on ian o , assim com o B alzac escrev ia nu m a lín gu a do sécu lo X V I
in te iram en te inven tada por ele , “ de um a certa descon fiança dos reis".
Vocês com preendem perfe itam en te o que Isso quer dizer. Ten tem analisá-
lo log icam en te e verão que isso diz exatam en te o con trá rio daqu ilo que
vocês en ten deram ; e vocês estão in te iram en te no d ire ito de com preender
o que com preendem , porque está na estru tura do sujeito. O fato de as
duas negações que aqui se superpõem , não apenas não se anularem ,
m as antes efetivam ente se sustentarem, deve-se ao fato de uma duplicidade
topo lóg ica que fa z com que o não há p o r que se e x im ir não se d iga sobre
o m esm o plano, se posso dizer, em que se institu i o a lgu m a desconfiança
dos re is . A enun ciação e o enunciado, com o sem pre, são p erfe itam en te
separáveis, m as aqu i a h iância52 en tre e les brilha.
Se o toro, com o tal, pode-nos servir, vocês verão , de pon te, con firm a-
se já su fic ien te para nos m ostrar em que con siste , um a ve z passado no
m u n do esse desdobram en to , essa am b igü idade do su je ito , não seria
bom nesse pon to d eterm o-n os sobre o que essa topo log ia com porta de
ev id ên c ia , e an tes de m ais nada em nossa m ais s im p les exp eriên c ia ,
quero dizer a do sujeito? Quando falamos de engajam ento, serão necessários
grandes desvios, desses que aqui faço vocês ultrapassarem pelas necessidades
de nossa causa? Serão necessários grandes desvios, para os m enos iniciados,
para evoca r isso: que se engajar im p lica , já em si, a im agem do corredor,
a im agem de en trada e da saída e até um certo pon to a im agem da
saída atrás de si fech ada, e que é m esm o nessa relação com esse fech a r
a saída qu e o ú ltim o term o da im agem do enga jam en to se revela? M uitos
desv ios são ainda necessários? E toda a litera tu ra que cu lm in a na obra
de Kafka pode fazer-n os p erceber que basta retorn ar aqu ilo que, parece,
na ú ltim a vez, não desenhei su fic ien tem en te, ao m ostrar-lhes essa form a
particu la r do toro, sob a fo rm a de um alça destacada de um plano,
sendo que o p lano só apresen ta aqu i o caso particu la r de um a esfera
in fin ita a largando um lado do toro. Basta fa ze r bascu lar essa im agem ,
apresen tá-la de barriga para c im a e com o o cam po terrestre on de nós
nos debatem os, para nos m ostrar a razão m esm a on d e o h om em se
apresen ta com o o que e le fo i, e ta lvez o que e le con tin u a a ser: um
an im al de toca, um an im al de toro. Todas essas arqu itetu ras não são,
con tudo, sem algo que deve reter-nos por suas a fin idades com algum a
coisa que deve ir m ais longe que a sim ples satisfação de uma necessidade;
- 210-
Lição de 21 de março de 1962
w V
-------------- - í > -
Pode ser
por um a ana log ia qu e salta aos olhos que
e la é ir red u tíve l, im poss íve l de se exc lu ir
de tudo o que se cham a para e le in ter io r
e ex te r io r e que um e ou tro desembocam um sobre o ou tro e se com andam , o que
ch am ei há pou co de corredor, de galeria ,
de su b te rrâ n eo . M e m ó r ia s e scr ita s do
subterrâneo, intitu la Dostoievski esse ponto
ex trem o , on de e le de tecta a palp itação de
sua questão última. Será que aí está alguma
coisa que se esgota na noção de instrumento
socialmente utilizável? Evidentemente, como
nossos dois toros, a fu n ção de ag lom erado
socia l e sua re la ção com as vias, enquanto
sua anastom ose sim u la algo que ex iste no
m ais ín tim o do organ ism o, é para nós um
objeto p re figu rado de in terrogação. Aqu ilo
que não é nosso p riv ilég io , a form iga e o
cu p im o con h ecem ; m as o texu go , de que
n os fa la K a fk a , em sua to ca n ão é
precisam ente um anim al sociável. Que quer
d izer esse lem brete? E, para nós, no ponto
em que temos de avançar, que se essa relação
de estru tura é tão na tu ra l que, bastando
pensar nela nós encontramos, por toda parte
e m u ito lon ge , im pregn adas suas ra ízes
na estru tu ra das coisas, o fa to de que,
quando se trata de que o pensam en to se
organiza, a relação do sujeito com o mundo,
e le o descon h eça no curso das eras tão
ab u n da n tem en te , le van ta ju s tam en te a
questão de saber p o r qu e há aí, tão longe,
o reca lqu e, d igam os pe lo m enos, descon h ec im en to .
Isso nos traz de vo lta a nosso pon to de partida, que é o da re la ção
com o O utro, tal com o a cham ei, fundada sobre algum engodo que se
trata agora de articu la r em ou tra parte que não nessa relação natural,
posto que tam bém vem os o quanto e le se esqu iva do pensam en to, o
- 211-
A Identificação
quanto o pen sam en to o recusa. É de ou tro pon to que d evem os partir e
da pos ição da questão ao O u tro, da questão sobre seu dese jo e sua
satisfação. Se há um engodo, e le deve decorrer, em algum ponto, daquilo
que ch am ei, há pouco, de d u p lic idade rad ica l da posição do su jeito. E
é o qu e eu gostaria de fa zê -los sentir, no n ív e l p róp rio do s ign ifican te ,
tal com o e le se e sp ec ifica por du p lic idade da posição subjetiva, e por
um instan te p ed ir a vocês que m e sigam em algum a coisa que se cham a,
em ú ltim o term o, a d ife ren ça pela qual o gra fo ao qual, du ran te um
certo tempo de meu discurso, mantive vocês presos, é, para falar propriamente,
forjado . Essa d ife ren ça se cham a de d ife ren ça en tre a m en sagem e a
questão. Esse gra fo se in sc reve r ia tão bem aqu i.
N a p róp ria h iân c ia por on de o su jeito se liga du p lam en te ao p lano do
d iscu rso un iversa l vou in sc reve r ho je os quatro pon tos de con flu ên c ia
que são aqueles que vocês conhecem : A; s (A ), a s ign ificação da m ensagem
en qu an to é do retorn o v indo do O utro, do s ign ifica n te que ali res ide;
aqu i $ < > D, a re la ção do su jeito com a dem an da, en qu an to aí se
e sp ec ifica a pulsão, aqu i o S ( A ) , o s ign ifica n te do O u tro , um a ve z que
o Outro, em últim o termo, só se pode formalizar, se sign ificantizar enquanto
m arcado e le p róp rio pe lo s ign ifican te , d ito de ou tro m odo, enqu an to
e le nos im p õ e a ren ú n cia a toda m eta lin gu agem . A h iân c ia que se trata
aqu i de a rticu la r se suspende in te ira m en te na fo rm a em que, no ú ltim o
term o, esse pedido ao Outro que responda alterna, oscila num a seqüência
de retornos entre o nada pode ser e o pode ser nada. É aqui uma m ensagem .
E la se abre sobre o que nos apareceu com o a abertu ra con stitu ída pela
entrada de um sujeito no Real. Estamos, aqui, em relação com a elaboração
a m ais certa do term o possib ilidade: M ö g lich k e it . N ão é do lado da coisa
que está o possível, m as do lado do su je ito . A m en sagem se abre sobre o
term o da eventualidade constituída por uma espera na situação constituinte
- 212-
ldo desejo , tal com o nós tentam os aqu i c in g i-la . Pode ser, a possib ilidade
é anterior a esse nom inativo nada que, no extrem o, toma valor de substituto
da pos itiv idade. É um ponto, e só isso, pon to fin a l. O lugar do traço
unário está ali reservado no vazio que pode respon der à espera do desejo.
É um a ou tra co isa d ife ren te da questão, en qu an to e la se articu la
nada pode s e r? Q ue o pode ser, no n íve l da dem anda “ o que é que eu
q u e ro ? ” , fa lan do ao O utro, que o pode ser que vem aqu i em posição
hom óloga àqu ilo que no n ível da m ensagem constitu ía a resposta eventual.
Pode ser na da , é a p rim e ira fo rm u lação da m en sagem . Pode ser nada,
isso pode ser um a resposta, m as será a resposta à pergunta nada pode
s e r? Ju stam en te não ! Aqu i, o en u n c ia tiv o nada, com o co lo ca n d o a
poss ib ilidade do não-lu gar53 de conclu ir, in ic ia lm en te , com o a n te rio r à
quota de ex is tên c ia , à p o tên cia de ser, esse en u n c ia tivo no n íve l da
questão tom a todo seu va lo r de um a substantivação do nada da p rópria
questão. A frase nada pode ser se abre, p or sua vez, sobre a probab ilidade
de que nada a d e term in a com o questão, de que nada seja d eterm in ado ,
de que con tin u a possível que nada seja seguro, de qu e é possível que
não se possa conclu ir, a não ser p e lo recu rso à an te rio rid ad e in fin ita
do processo kafk iano, que haja pura subsistência da questão com a
im possibilidade de concluir. Só a eventualidade do Real perm ite determ inar
a lgum a coisa, e a nom in ação do nada da pura subsistência da questão,
eis aqu ilo a que, no n ív e l da p rópria questão, nos ded icam os. Pode ser
nada pod ia ser no n íve l da m en sagem um a resposta, m as a m en sagem
não era ju s tam en te um a questão. N a d a pode ser, no n íve l da questão, (
não dá senão um a m etá fora , a saber, a p o tên c ia de ser é do a lém . Toda
e ven tu a lid ad e já desapareceu ali, e toda su b jetiv idade tam bém .
H á apenas e fe ito de sentido, rem essa do sen tido ao sen tido até o
infinito, exceto que para nós, analistas, já estamos habituados por experiência (
a estru tu rar essa rem essa em dois p lanos e que é isso que m u da tudo,
a saber, qu e a m etá fora para nós é con den sação , o que qu er d ize r duas
cade ias e que e la faz, a m etá fora , sua aparição de m an eira in esperada,
bem no m e io da m ensagem , que e la se torna tam bém m en sagem no (
m e io da questão, que a questão fam ília com eça a se a rticu la r e que
surge n o exa to m eio o m ilhão do m ilion á rio , que a irru pção da questão
na m ensagem se faz nisso que nos é revelado, que a m ensagem se m anifesta
no exa to m e io da questão, que se esc la rece no cam in h o on d e som os
cham ados à verdade, que é através de nossa questão de verdade, d igo ,
Lição de 21 de março de 1962
- 2 1 3 -
A Identificação
da própria questão e não na resposta à questão, qu e a m en sagem se
escla rece. E, portan to, nesse pon to preciso, p rec ioso pela a rticu lação
da d ife ren ça en tre en u n c iação e enu n ciado , qu e era necessá rio nos
determ os um instante. Essa possibilidade do nada, se ela não é preservada,
é o que nos im ped e ver, m algrado esta on ip resença que está no p rin c íp io
de toda a rticu lação possível p rop riam en te subjetiva, esta h iân c ia que
está igu a lm en te m u i p rec isam en te encarnada na passagem do signo ao
s ign ifican te , on de vem os aparecer o que é que d istingu e o su je ito nessa
d iferen ça .
E e le signo, a fina l de con tas, ou s ign ifican te? S igno, signo de quê? É
justam ente o signo de nada. Se o sign ificante se defin e com o representando
o su jeito ju n to a ou tro s ign ifican te , rem essa in d e fin id a dos sen tidos, e
se isso s ign ifica a lgum a coisa, é porque o s ign ifica n te s ign ifica , ju n to
do ou tro s ign ifican te , essa co isa p riv ileg iada que é o su jeito en qu an to
nada. É aqui que nossa experiência nos perm ite pôr em relevo a necessidade
da via por on de se suporta nenhum a rea lidade na estrutura id en tificáve l,
enqu anto ela é a que nos p erm ite prossegu ir nossa experiên c ia . O O utro
não responde, portan to, nada, a não ser que nada é seguro, m as isso só
tem um sen tido, é que há a lgum a coisa da qual e le não qu er saber
nada e m u ito p rec isam en te dessa questão. N esse n íve l, a im p o tên c ia
do O utro se en ra íza num im possíve l, que é exa tam en te o m esm o sobre
a via do qual nós já tín ham os con du zid o a qu estão do su jeito . N ão
possível era esse vazio on de v inh a surgir, em seu va lor d iv isório , o traço
unário. Aqui, vem os esse im possíve l tom ar corpo e un ir-se ao que vim os,
há pouco, ser d e fin id o por Freud da con stitu ição do desejo na in terd ição
orig inal. A im po tên c ia do O u tro em respon der se d eve a um im passe, e
esse im passe nós o con h ecem os : cham a-se de lim itação de seu saber.
E le não sabia que estava m orto, que e le só ch egou a essa absolu tidade
do O utro pela m orte não aceita , m as sofrida , e so fr ida pe lo dese jo do
su jeito. D isso o su jeito sabe, se posso d izer; que o O u tro não deva sabê-
lo, que o O utro dem an da não saber. Está aí a parte p riv ileg iad a nessas
duas demandas não confundidas, a do sujeito e a do Outro, é que justam ente
o desejo se d e fin e com o a in tersecção daqu ilo que, nas duas dem andas,
não é para ser d ito. É som en te a partir daí que se lib eram as dem andas
fo rm u láveis por toda parte, m en os no cam po do desejo .
O desejo, assim , se con stitu i in ic ia lm en te , por sua natu reza , com o
aqu ilo que está escon d ido do O u tro por estru tura. É o im poss íve l ao
- 2 1 4 -
Lição de 21 de março de 1962
O utro ju s tam en te que se torna o desejo do su jeito. O desejo constitu i-se
com o a parte da dem an da que está escon d ida do O utro. Esse O utro que
não garante nada, ju stam ente enquanto Outro, enquanto lugar da palavra,
é aí que e le tom a sua in c idên c ia ed ifican te, e le tom a-se o véu, a cobertura,
o prin cíp io de ocu ltação do próprio lugar do desejo, e é aí que o objeto vai
se esconder. Que, se há um a existência que se constitu i prim eiram ente, é
esta, e que ela substitui a existência do próprio sujeito, porque o sujeito,
enquanto suspenso ao Outro, fica igualm ente suspenso ao fato de que, do
lado do Outro, nada está seguro, salvo ju stam en te que ele esconde, que
ele cobre algum a coisa que é esse objeto, esse objeto que ta lvez ainda não
seja nada enquanto vai tornar-se o objeto do desejo. O objeto do desejo
existe com o esse próprio nada, do qual o O utro não pode saber que é tudo
aqu ilo em que e le consiste. Esse nada, enquanto ocu lto ao Outro, toma
consistência , torna-se o invó lucro de todo objeto d iante do qual a própria
questão do sujeito estanca, na m edida em que o sujeito torna-se, então,
apenas im aginário. A dem anda é liberada da dem anda do Outro, na m edida
em que o sujeito exc lu i esse não-saber do Outro. Mas, há duas formas
possíveis de exclusão. Lavo m inhas mãos quanto a você saber ou não saber,
e ajo. Você não d eixa de ig n o ra r quer d izer a que ponto eu pouco m e
im porto com que você saiba ou não. Mas há tam bém a outra m aneira, é
absolutam ente necessário que você saiba, e é o cam inho que o neurótico
escolhe, e é por isso que e le é, se posso dizer, designado an tecipadam ente
com o vítim a. A m aneira certa para o neurótico reso lver o problem a desse
campo do desejo, enquanto constituído por esse campo central das demandas,
que justam ente se recortam e por isso devem ser excluídas, é que ele acha
que a m aneira correta é que você saiba. Se não fosse assim, e le não faria
psicanálise.
O que faz o hom em dos ratos, ao levantar à noite, com o Teodoro? E le se
arrasta em pantufas, em d ireção ao corredor, para abrir a porta ao fantasma
de seu pai m orto, para lhe mostrar o quê? Que ele está tendo uma ereção.
N ão estará aí a revelação de uma conduta fundam ental? O neurótico quer
que, por falta de poder, já que está assegurado que o Outro nada pode, que
ao m en os e le saiba. Falei-lhes há pouco de engajam ento; o neurótico,
contrariam ente ao que se crê, é alguém que se engaja com o sujeito. E le se
fecha após a saída dupla da m ensagem e da questão; ele próprio se põe em
balanço para decid ir entre o nada pode ser e o pode ser nada, ele se põe
com o real face ao Outro, isto é, com o im possível. Sem dúvida, lhes parecerá
- 2 1 5 -
A Identificação
m elhor saber com o isso se produz. N ão fo i à-toa que hoje fiz surgir essa
im agem do Teodoro freudiano em sua exibição noturna e fantasmática, é
que há algum m eio e, para m elhor dizer, algum instrumento para essa incrível
transmutação do objeto do desejo na existência do sujeito, e que é justam ente
o falo. Mas isso está reservado para nosso próxim o debate. Hoje, verifico
sim plesm ente que falo ou não, o neurótico chega ao cam po com o o que do
real se especifica com o im possível.
Isso não é exau stivo , pois essa d e fin ição não poderá ser ap licada à
fob ia. Só poderem os fa zê - lo na p róx im a vez, m as podem os m u ito bem
ap licá-la ao obsessivo. Vocês não com p reen d erã o nada do obsessivo se
não se lem brarem dessa d im en são que e le encarna , n isso que e le é a
m ais, é, para e le , sua fo rm a do im possíve l, e que, desde que e le tenta
sair de sua posição em boscada de ob jeto ocu lto, é p rec iso que e le seja
o ob jeto de lugar nen hu m . D on de essa esp éc ie de a v id ez quase fe ro z ,
no obsessivo, de ser aqu e le que está por toda parte, para não estar
ju s tam en te em lugar nen hu m . O gosto de u b iqü idade do obsessivo é
bem con h ec ido e, na fa lta dessa re fe rên c ia , vocês não com p reen d erã o
nada na m a ior parte de seus com portam en tos . A m en or das coisas, já
que e le não pode estar em toda parte, é de estar, em todo caso, em
vários lugares ao m esm o tem po, isto é, que, em todo caso, em nen h u m
lugar o possam os apreender. O h is tér ico tem um ou tro m odo, que é o
m esm o, ev id en tem en te , um a ve z que a ra iz deste, em bora m en os fác il,
m en os im ed ia ta à com preen são . O h is tér ico tam bém pode co lo ca r-se
com o real en qu an to im possíve l, en tão seu truque é que esse im possíve l
subsistirá, se o O utro o ad m ite com o signo. O h is tér ico se apresenta
com o signo de algum a coisa em que o O u tro poderia crer; m as, para
con stitu ir esse signo ela é bem rea l, e é p rec iso a todo p reço que esse
signo se im pon h a e m arque o O utro.
Eis, pois, on de desem boca essa estru tura, essa d ia lé tica fu ndam en ta l,
repousando in te ira m en te sobre a fa lên c ia ú ltim a do O utro en qu an to
garan tia do certo . A rea lidade do desejo a li se in s titu i e tom a lu gar por
interm édio de algo de que jam ais assinalaremos suficientem ente o paradoxo,
a d im en são do ocu lto , is to é, a d im en são que é exa tam en te a m ais
con trad itória que o esp írito possa construir, quando se trata da verdade.
O que há de m ais natural que a in trodu ção desse cam po da verdade, se
não fosse a posição de um O u tro on isc ien te? N o pon to em que o filó so fo
mais afiado, mais perspicaz, não pode fazer sustentar-se a própria dim ensão
- 216-
, (
( '
I?da verdade, senão ao supor que é essa c iên c ia daqu ele que sabe tudo
que lhe perm ite sustentar-se. E, no entanto, nada da rea lidade do hom em ,
nada do que ele busca e do que ele segue se sustenta senão dessa dim ensão
do ocu lto, uma vez que é ela que in fere a garantia de que há um objeto
ex isten te, sim, e que ela dá por reflexão essa dim ensão do ocu lto. A fina l,
é ela que dá sua ún ica consistência a essa outra prob lem ática , a fon te de
toda fé, e da fé em Deus em inentem ente, é bem o fato de nós nos deslocarmos
dentro da própria d im ensão daquilo que, em bora o m ilagre do fato de
que e le deva saber tudo lhe dê, em suma, toda sua subsistência, nós
agim os com o se sem pre os nove décim os de nossas in ten ções fossem por
e le ignorados, e le não sabia nada disso. N em uma palavra à Rainha-
m ãe, tal é o p rin cip io sobre o qual toda constitu ição subjetiva se desdobra
e se desloca.
Será que não é possível que se con ceba um a con du ta na m ed id a
desse verd ad e iro estatuto do desejo, e será m esm o possível não nos
aperceberm os de que nada, nem um passo de nossa condu ta é tica pode,
apesar da aparência , apesar da ladainha secu lar do m oralista, sustentar-
se sem um a re fe rên c ia exata da fu nção do desejo? Será poss íve l que
nós nos con ten tem os com exem plos tão derrisórios quanto os de Kant
quando, para nos reve la r a d im ensão irredu tíve l da razão prá tica , e le
nos dá, com o exem plo , que o hom em honesto, m esm o no cú m u lo da
fe lic id a d e , não deixará de ter pelo m en os um instan te em que ponha
em balanço que e le ren u nciaria àquela fe lic id ad e para não lançar con tra
a in o cên c ia um fa lso testem u nho em b en e fíc io do tirano? E xem p lo
absurdo, pois, na época em que v ivem os, e tam bém na de Kant, não
será que a questão não estará em ou tro pon to? Pois o ju sto vai hesitar,
sim , para saber se, para preservar sua fam ília , e le deve ou não lan çar
um fa lso testem u nho. M as o que qu er isso d izer? Será que qu er d ize r
que, se e le dá ch an ce através disso ao ód io do tirano con tra o in o cen te ,
e le poderia lançar um testem unho verdadeiro, denunciar seu com panheiro
com o ju deu , quando e le o é de fato? N ão será aí que com eça a d im en são
m oral, que não é saber qual o dever que tem os de p reen ch er ou não
fa ce à verdade, n em se nossa conduta cai ou não sob o go lp e da regra
un iversa l, m as se nós d evem os ou não satis fazer ao desejo do tirano?
A í está a balança é tica p rop riam en te fa lan do ; e é nesse n íve l que, sem
fa ze r in te rv ir nen hu m dram atism o ex tern o - não prec isam os disso -
tem os tam bém de nos ocu par com aqu ilo que, no té rm in o da análise,
(
r
Lição de 21 de março de 1962
- 217 —
A Identificação
fica suspenso ao O u tro . É enqu an to a m ed ida do desejo in con sc ien te ,
no té rm in o da análise, p e rm an ece ainda im p licada no lugar do O utro
que encarnam os, com o analistas, que Freud, no té rm in o de sua obra,
pode m arcar com o irredutível o com plexo de castração, com o inassum ível
pe lo su jeito. A rticu la re i isso na p róxim a sessão, fa zen d o força para lhes
deixar pelo m enos entrever que uma justa defin ição da função do fantasma
e de sua assunção pe lo su jeito nos perm ite , ta lvez, ir m ais lon ge na
redução do que pareceu até aqui, à exp eriên c ia , com o um a fru stração
ú ltim a.
- 2 1 8 -
LIÇÃO XV
28 de m a rço 1962
Para que nos serve a topologia dessa superfície, dessa superfície cham ada
toro, se sua in fle xã o con stitu in te, isso que necessita essas voltas e m ais
voltas é o que pode m elhor nos sugerir a le i à qual o sujeito está submetido,
no processo de id en tifica çã o? Isso, é c laro, só poderá nos aparecer,
fin a lm en te , quando tiverm os rea lm en te fe ito a vo lta de tudo o que e le
represen ta e até que pon to con vém à d ia lé tica p rópria do su jeito, na
qua lidade de d ia lé tica da id en tificação . A títu lo, então, de re fe ren c ia l e
para que, quando eu ressaltar tal ou qual ponto, acen tu ar tal relevo,
vocês gravem , se posso dizer, a cada instan te o grau de orien tação , o
grau de p ertin ên c ia em relação a um certo ob jetivo a ser a lcan çado do
que nesse m om en to eu ad ian tarei, eu lhes d ire i que, de certa m aneira ,
o que pode inscrever-se nesse toro, por m ais que isso possa nos servir,
va i m ais ou m en os s im bolizar-se assim , que essa form a, esses c írcu los
desenhados, essas letras p erten cen tes a cada um desses c írcu los vão
nos designá-lo im ed ia tam en te . O toro, sem dúvida, parece possuir um
va lor p riv ileg iado . N ão acred item que seja a ún ica form a de su perfíc ie
n ão-es fé r ica capaz de nos interessar. Eu não poderia encora jar dem ais
aqu eles que têm por isso a lgum a in c lin ação , a lgum a fac ilid ad e , em
re fe r ir-se ao que se cham a de topo log ia a lgébrica e às form as que ela
lh es p ropõe nesse algo que, se vocês qu iserem , em relação à geom etria
- 2 1 9 -
A Identificação
clássica, aquela que vocês guardam inscrita no íntim o, em conseqüência
de sua passagem pelo ensino secundário, apresenta-se exatamente na analogia
do que tento m ostrar-lhes no plano simbólico, o que cham ei de uma lógica
elástica, uma lógica flexível. Isso se m anifesta ainda mais na geom etria de
que se trata, pois esta, na topologia algébrica, apresenta-se ela m esm a com o
a geom etria das figuras feitas de borracha. E possível que os autores façam
in tervir essa borracha, esse rubber, com o se d iz em inglês, para bem colocar
no espírito do ouvinte de que se trata. Trata-se de figuras deform áveis e
que, através de todas as deform ações, perm anecem em relação constante.
Esse toro não é forçado a se apresentar, aqui, em sua form a mais plena.
N ão cre iam que, en tre as su perfíc ies que se d e fin em , que se deve
definir, que são aquelas que nos interessam essencia lm ente, as superfícies
fechadas, em bora que, em todo caso, o su jeito se apresente, e le m esm o,
com o algo fechado, as superfícies fechadas, qualquer que seja seu talento,
vocês verão que existe todo um cam po aberto às invenções mais exorbitantes.
Não creiam, aliás, que a imaginação presta-se de tão bom grado ao forjam ento
dessas form as flex íve is , com plexas, que se enrolam , se atam en tre elas
m esm as. Vocês têm som ente que tentar se tornar flex íve is à teoria dos
nós, para perceber o quanto já é d ifíc il se represen tar as com binações
m ais sim ples; isso ainda não lhes levara m u ito longe, já que dem onstra-
se que, sobre toda su perfíc ie fechada, por m ais com plicada que ela seja,
vocês chegarão sem pre a reduzi-la, através de p roced im entos apropriados,
a algo que não pode ir m ais longe que uma esfera provida de alguns
apêndices, dentre os quais estão justam ente os do toro, que se representam
com o um a alça anexa, uma alça acrescentada a uma esfera , tal com
desen hei recen tem en te para vocês, no quadro, um a alça su fic ien te para
transformar a esfera e a alça num toro, do ponto de vista do valor topológico.
Logo, tudo pode se red u z ir à ad junção da form a de um a esfera , com
um ce rto n ú m ero de alças, m ais um certo n ú m ero de ou tras form as
even tua is . Espero que, na sessão antes das férias , eu possa in ic ia r-lh es
nessa fo rm a que é bem engraçada - porém , quando penso que a m a ioria
de vocês aqu i nem m esm o im agina a sua ex is tên c ia ! É o que se cham a,
em inglês, de cross-cap ou, o que se pode designar pela palavra francesa,
rn itre.54 E n fim , suponham um toro que teria com o p ropriedade, em
algum a parte do seu con torno , in ve r te r sua su p erfíc ie , qu ero d ize r que,
num lugar que se situa aqui entre dois pon tos A e B, a su perfíc ie ex ter io r
atravessa... a su p erfíc ie que está na fren te atravessa a su p erfíc ie que
- 220-
Lição de 28 de março de 1962 c c
está atrás, as su perfíc ies se cru zam en tre elas. Eu posso apenas aqui
ind icá-lo a vocês. Isso tem propriedades m uito curiosas e pode ser bastante
exem pla r, em bora , em todo caso, é um a su p e r fíc ie que possui essa
p rop ried ad e de que a su p erfíc ie ex tern a , se qu erem , en con tra -se em
con tin u id ad e com a fa ce in terna , passando ao in ter io r do objeto, e então
pode vo lta r em um só g iro para o ou tro lado da su p erfíc ie de on de ela,
partiu . É a coisa m ais fá c il de fazer, da m an e ira m ais s im ples, quando
você fa z com um a tira de papel, o que con sis te em p ren dê-la e torcê-la
de m odo que sua borda seja colada à borda ex trem a estando revirada.
V ocê percebe que se trata de um a su p erfíc ie que tem rea lm en te uma
só face , no sen tido de que algo que passeia por lá não en con tra jam ais ,
num certo sen tido, algum lim ite , que passa de um lado para o ou tro ,
sem que você possa perceber, em nen h u m instan te, on de o passe de
m ágica se rea lizou . Logo , aí ex iste a possib ilidade sobre a su p erfíc ie de
um a es fe ra qualquer, com o v in do para rea lizar, para s im p lifica r um a
su p erfíc ie , por m ais com p licada que seja, a possib ilidade dessa form a
aí. A c rescen tem os aí a possib ilidade de buracos; vocês não podem ir(
a lém , qu er d ize r que, por m ais com p licada que seja a su p erfíc ie qu e (
vocês im agin em , qu ero dizer, por exem p lo , que por m ais com p licada
que seja a su p erfíc ie com a qual vocês tenham a ver, vocês não poderão
nu nca en con tra r a lgo m ais com p licado que isso. D e m an e ira que ex is te
um ce rto na tu ra l em se re fe r ir ao toro com o a fo rm a m ais s im p les
in tu it ivam en te , a m ais acessível.
Isso pode nos ensinar algo. A respeito disso, eu lhes falei da sign ificação1
que podíam os dar, por convenção, artifício , a dois tipos de laços circulares,!
en qu an to e les são p riv ileg iados . Este que g ira em torno do qu e se pode
ch am ar de c írcu lo gerador do toro, se e le é um toro de revo lu ção , na
m ed ida em que é su scetíve l de rep e tir-se in d e fin id a m en te , de certa
m an e ira o m esm o e sem pre d iferen te . E le é bem fe ito para represen tar,(
para nós, a in s is tên c ia s ign ifica tiva e e sp ec ia lm en te a in s is tên c ia da
dem an da repetitiva . Por ou tro lado, o que está in c lu so nessa sucessão
de voltas, a saber, um a c ircu la ridade com p leta , em bora in te iram en te
desaperceb ida pelo su jeito, e que sucede nos o fe re c e r um a sim bolizaçãoi
passiva e v id en te e, de a lgum a form a , m áxim a quanto à sensib ilidade
in tu itiva do que está incluso nos term os próprios do desejo in con sc ien te ,
já que o su je ito segue as suas vias e os seus cam inhos sem saber. A través
de todas essas dem andas, é, de a lgum a form a, esse desejo in con sc ien te ,
A Identificação
a m eton ím ia de todas essas dem andas. E
vocês v êem aí a en ca rn a çã o v iva dessas
re fe rên c ia s às quais lhes to rn e i flex íve is ,
h a b itu a d o s ao lo n g o do m eu d is cu rso ,
p r in c ip a lm e n te ao da m e tá fo r a e da
m eton ím ia . Aqu i, a m eton ím ia encon tra , de
algum m odo, sua ap licação m ais sensível,
com o sendo m an ifestada pelo desejo, sendo
este o qu e nós a rticu lam os com o suposto
na sucessão de todas as demandas, enquanto
e las são repetitivas . N ós nos en con tram os
em face de a lgum a co isa on d e vocês vêem
que o c írc u lo aqu i d e sc r ito m e re c e qu e
atribuam os a e le o s ím bolo D m aiúscu lo,
c o m o s ím b o lo da D em a n d a . E sse a lgo ,
c on ce rn en te ao c írcu lo in terior, d eve estar
re la c ion ad o com o que ch am are i de desejo
m eton ím ico . Bem , há en tre esses c írcu los, a p rova que podem os fazer,
um círcu lo p riv ileg iado que é fá c il de descrever: é o c írcu lo que, partindo
do ex te r io r do toro , en con tra o m e io de fech ar-se , não s im p lesm en te
in ser in d o o toro na sua espessura de alça, não s im p lesm en te ao passar
através do buraco central, mas ao circundar o buraco central sem, contudo,
passar pe lo bu raco cen tra l. Esse c írcu lo a í tem o p riv ilég io de fa ze r as
duas coisas ao m esm o tem po. E le passa através e o c ircu n da . E le é,
en tão, a som a desses dois c írcu los, qu er d izer, e le represen ta D + d, a
som a da dem an da e do desejo , e de a lgum m odo nos p erm ite s im bo lizar
a dem anda com sua sub jacência de desejo.
Qual é o in teresse disso? O interesse é que, se chegam os a uma dialética
e lem entar, com o a da oposição de duas dem andas, se é no in ter io r desse
m esm o toro que eu sim bolizo por um outro c írcu lo análogo a dem anda
do outro, com o que e le vai com portar para nós de “ ou ...ou ...” , “ ou o
que eu dem an d o” , ou o que tu dem an das” . N ós vem os isso todos os dias,
na vida cotid iana. Isso para lem brar que, nas con d ições priv ileg iadas,
no n íve l onde vam os procurá-la, in terrogá-la na analise, é p reciso que
nos lem brem os disto, a saber, da am bigüidade que existe sempre no próprio
uso do term o ou, ou en tão, esse term o da disjunção, s im bolizado em
lógica assim: A v B.
Lição de 28 de março de 1962
H á dois usos desse ou ... ou ... N ão é à toa que a lóg ica m arcaria todos
os seus es fo rços e, se posso assim d izer, fa z fo rça para lh e con servar
todos os va lores da am bigü idade, isto é, para m ostrar a con ex ão de um
ou... ou... inclusivo com um ou... ou... exclusivo. Que o ou... ou... concernente,
por exem p lo , a esses dois c írcu los pode qu ere r s ign ifica r duas coisas: a
esco lha d en tre um dos dois desses c írcu los. P orém isto qu er d izer que
s im p lesm en te quanto ã posição do ou... ou ... haja exc lu são? N ão. O
que vocês v êem é que o c írcu lo no qual vou in tro d u z ir esse ou... ou...
com p orta o que se cham a de in terseção , s im bo lizada na lóg ica por n . A
re la ção do dese jo com um a certa in terseção , com portan do certas leis,
não é s im p lesm en te cham ada para co lo ca r no loca l, m a tte r o f fa c t , o
que se pode cham ar o con trato, o acordo das dem andas; é con siderando-
se a h e te rogen e id ad e pro fu nda que ex iste en tre esse cam po [1] e aqu ele
[2], suficientem ente simbolizado por isto: aqui estamos fren te ao fecham ento
da su p erfíc ie [1 ], e aí, fa lan do c la ram en te , ao seu vazio in te rn o .[2] É
isso que nos p ropõe um m ode lo que nos m ostra que se trata de outra
coisa, e não de ap reen der a parte com um en tre as dem andas. Em outras
palavras, tratar-se-á, para nós, de saber em que m ed ida essa fo rm a pode
nos p erm itir s im bo liza r com o tais os con stitu in tes do desejo , na m ed ida
em que o desejo , para o su jeito , é esse a lgo que e le tem que con stitu ir
no cam in h o da dem anda. D esde já , m ostro-lh es que há dois pontos,
duas d im en sões que podem os p riv ileg iar, nesse c írcu lo particu larm en te
s ign ifica tivo na topo log ia do toro: por um lado, é a d istância que ju n ta
o cen tro do vazio cen tra l com esse ponto que ocorre ser, que pode defin ir-
se com o um a espéc ie de tan gên cia , graças ao que um p lano que corta o
toro vai nos p e rm itir destacar, da m an e ira m ais sim ples, esse c írcu lo
- 2 2 3 -
A Identificação
priv ileg iado . É isso que nos dará a d e fin ição , a m ed id a do pequ en o a
enqu an to ob jeto do desejo. Por ou tro lado, na m ed ida em que e le m esm o
seja lo ca lizá ve l, d e fin ív e l apenas em re la çã o ao p róp rio d iâm etro desse
c írcu lo excepcion a l, é no raio, na m etade desse d iâm etro , se vocês assim
o p re fe r irem , que ve rem os o que é o p rin c íp io , a m ed ida ú ltim a da
relação do su je ito com o desejo, a saber, o p equ en o <p com o s ím bo lo do
fa lo. E is aqu i em que d ireção nós ten dem os e o que tom ará seu sen tido,
sua ap licab ilidade, e seu a lcan ce , do cam in h o que te rem os p erco rr id o
antes, para nos p e rm itir con segu ir tornar para vocês f le x ív e l, sen s íve l e
até certo pon to sugestivo de um a verdade ira in ten s idade estru tural, essa
im agem m esm o. D ito isto, está bem en ten d id o que o su jeito, na tare fa
que nos ocupa, com esse p a rce iro que apela para nós, n a qu ilo qu e
tem os à nossa fren te na fo rm a desse apelo, e o que vem fa la r na nossa
fren te , apenas o que se pode d e fin ir e escan d ir com o o su jeito , apenas
isso se identifica. Vale a pena lem brá-lo porque, em todo caso o pensam ento
desliza fa c ilm en te . Por que, se não se co locam os pontos nos “ is ” , porque
não se d iria que a pulsão se id en tific a e que um a im agem se id en tific a ?
S om en te pode ser d ito com ju s tiça id en tifica r-se , som en te in trodu z-se
no p en sam en to de Freud o term o id en tifica ção , a partir do m om en to
em que se pode, num grau qualquer, m esm o se não está a rticu lad o em
Freud, con s id era r com o a d im en são do su je ito - não qu er d ize r que isso
não nos con du za m u ito m ais lon ge qu e o su je ito - essa id en tific a çã o . A
prova aí tam bém - eu lh es lem bro isso que não se pode saber se é nos
an teced en tes , os p rim e iros , ou se é no fu tu ro do m eu d iscu rso que o
apon to - é que a p rim e ira fo rm a de id en tific a çã o , e essa à qua l se faz
re ferên c ia com tanta leveza, com psitacism o de papagaio, é a id en tificação
que, d izem -n os, in co rp ora , ou a inda - acrescen tan d o um a con fu são à
im prec isã o da p rim e ira fórm u la - in tro jec ta . C on ten tem o-n os com o
“ in co rp o ra ” , que é a m elhor. C om o com eça r por essa p rim e ira fo rm a de
id en tificação , já que nem a m ín im a ind icação , nem a m ín im a re fe rên c ia ,
senão vagam en te m eta fó r ica , não lhes é dado nu m a tal fó rm u la sobre o
que isso pode, de fato, qu erer d izer? Ou então, se se fala de incorporação ,
é porqu e deve se p ro d u zir a lgum a co isa no n ív e l do corpo. Eu não sei
se podere i, este ano, con du zir as coisas tão lon ge - eu o espero m esm o
assim , tem os tem po, d ian te de nós, para consegu ir, v in d o lá de on de
partimos, dar seu sentido pleno e seu sentido verdadeiro a essa incorporação
da p rim e ira id en tifica ção .
- 2 2 4 -
Lição de 28 de março de 1962 ( ;
l % c y
c rVocês o verão, não há outro m eio de fazê-la intervir, senão reunindo-
a n ovam en te por uma tem ática que já fo i elaborada, e desde as trad ições
m ais antigas, m íticas e m esm o religiosas, sob o term o “ corpo m ístico ” . ( )
Im possível não tom ar as coisas na m ed ida que vai da con cepção sem ítica
prim itiva : há algo do pai de sem pre a todos os que descendem dele,
id en tidade de corpo. Porém , na outra extrem idade, vocês sabem , há a
noção que acabo de cham ar pelo seu nom e, aquela de corpo m ístico , (
enquanto é de um corpo que se constitu i uma igreja. E não é a toa que
Freud, para nos d e fin ir a iden tidade do eu, nas suas relações com o que
e le cham a, na ocasião, de M assenpsychologie , refere-se à corporeidade
da Igreja. Mas, com o lhes fazer partir daí sem cair em confusões e acreditar (
que, com o o term o “m ís t ico ” o ind ica su fic ien tem en te , é em cam inhos
com p letam en te d iferen tes que esses onde nossa experiên cia qu eria nos
arrastar. É apenas retroativam ente, de algum m odo, voltando às condições
necessárias da nossa experiên cia , que poderem os nos in trodu zir no que (
nos sugere an tecipadam ente toda tentativa de abordar na sua p len itude
a rea lidade da iden tificação.
Portanto, a abordagem que escolhi, com a segunda form a de identificação,
não fo i ao acaso; é por que essa id en tifica ção é ap reen síve l, sob o m odo (
de abordagem pelo s ign ificante puro, pelo fato que nós podem os apreender
de um a m an e ira clara e rac iona l um a via para en tra r no qu e qu er
d izer a id en tifica çã o do su jeito, enqu an to este faz surgir no m u ndo o
traço un ário ... antes, que o traço unário, uma vez destacado, fa z aparecer (
o sujeito com o aquele que conta - no duplo sentido do term o. A am plitude
da am b igü idade que vocês podem dar a essa fórm u la aqu ele qu e con ta,
a tivam en te sem dúvida, mas tam bém o que con ta s im p lesm en te na
rea lidade, o qu e con ta verdade iram en te, ev id en tem en te va i d em orar a
en con trar-se na sua con ta, exa tam en te o tem po que gastarem os para
p erco rrer tudo o que acabo de lhes in d ica r aqu i - terá, para vocês, seu
sen tido p leno. Sh ack leton e seus com pan h eiros na A n tártica , a várias
centenas de quilômetros da costa, exploradores entregues à m aior frustração, f
essa que não d iz respeito som ente às carências mais ou m enos elucidadas,
n aqu ele m om en to - porque é um texto escrito já há uns c in qü en ta
anos - às carên c ias m ais ou m en os elucidadas de um a a lim en tação
espec ia l que está ainda, nesse m om en to , em fase exp erim en ta l, m as
que se pode d ize r desorien tados d en tro de um a paisagem , se posso
dizer, a inda v irgem , ainda não habitada pela im agin ação hum ana, nos
C- 2 2 5 - C
/
trazem em notas bem singulares de se ler, que eles con tavam sem pre
um a m ais do que eram , que e les não se reen con travam nessa con ta:
“ N ós nos pergun távam os sem pre para on de tinha ido o au sen te ” , o
ausen te que não fa ltava senão pe lo fa to de que todo es fo rço de conta
lhes sugeria sem pre que havia um a m ais, logo, um a m enos. Vocês
tocam aí no aparec im en to no estado nu do su jeito, que não é nada
m ais do que isso, nada m ais a lém da possib ilidade de um s ign ifica n te a
m ais, de um 1 a mais, graças ao qual e le constata por si próprio , que
ex is te um que fa lta. Se lhes lem bro isso, é s im p lesm en te para indicar,
num a d ia lé tica com portan do os term os m ais extrem os, on de situam os
nosso cam inho , e on de vocês poderão acred ita r e às vezes se perguntar
m esm o se nós não esqu ecem os certas referên cias. Vocês podem m esm o,
por exem plo , se perguntar que relação ex iste en tre o cam in h o que lhes
fiz p e rco rrer e esses dois term os com os quais nós tivem os um con tato ,
nós tem os con tato con stan tem en te , porém em m om en tos d iferen tes ,
do O utro e da Coisa.
C laro, o su jeito, e le próprio , no ú ltim o term o é destinado à Coisa,
m as sua le i, m ais exa tam en te seu destino, é esse cam inho que e le só
pode d escrever através da passagem pelo Outro, enqu an to o O u tro é
m arcado pelo s ign ifican te . E é no aqu ém dessa passagem n ecessária
para o s ign ifican te que se con stitu em com o tais o desejo e seu objeto.
O aparec im en to dessa d im ensão do O utro e a em ergên c ia do su jeito,
eu não saberia lem brá-lo dem ais para lhes dar o sen tido do que se trata
e cu jo paradoxo, eu acho, deve ser su fic ien tem en te a rticu lado nisso,
que o desejo, no sen tido m ais natural - en ten dam - deve e apenas
pode constitu ir-se dentro da tensão criada por essa relação com o Outro,
a qual se o rig in a no adven to do traço unário - na m ed id a em que,
p rim e ira m en te e para com eçar, e le apaga tudo da coisa - esse algo,
coisa bem d ife ren te que esse um que fo i, para sem pre insubstitu íve l. E
nós en con tram os aí, desde o p rim eiro passo - ressalto-o para vocês de
passagem - a fórm u la , aí term in a a fó rm u la de Freud: on de estava a
Coisa, eu [Je ] devo advir. Seria p rec iso substitu ir na origem : W ò es war,
da durch den E in , de preferência por durch den E ins, aí, pelo um enquanto
um, o traço unário, werde Ich , tornar-se-á o eu [Je]. Tudo do cam in h o
é in te iram en te traçado, a cada pon to do cam inho.
A Identificação
- - 226-
Lição de 28 de março de 1962
Foi exa tam en te aí que ten te i lhes de ixar em suspenso na ú ltim a vez,
m ostrando-lh es o p rogresso n ecessário a esse instante, enqu anto e le só
possa in stitu ir-se pela d ia lé tica e fe t iva que se rea liza na relação com o
O utro. Estou surpreso com a espéc ie de xequ e-m ate no qual pareceu -
m e que m inha articu lação caía, articu lação , en tretan to, bem cuidada,
do nada pode ser e do pode ser nada. O que é preciso, en tão, para lhes
tornar sensíveis a isso? Ta lvez, m eu texto ju s tam en te nesse pon to e a
espec ificação de sua d istinção com o m en sagem e questão, depois, com o
resposta, porém não no n íve l da questão, com o suspensão da questão
no n íve l da questão, fo i com p lexo dem ais para ser en ten d ido fac ilm en te
por aqu eles que não anotaram os seus d iversos con tornos, a fim de
vo lta r a e les posteriorm en te. Por m ais d ecep c ion ad o que eu possa estar,
sou eu, in ev ita ve lm en te que estou errado. É por isso que vo lto a isso, e
para m e fa zer entender. Será que hoje, por exem plo, eu não lhes sugeriria
ao m en os a n ecessidade de voltar n ovam en te a isso? E, a fina l de contas,
é s im p lesm en te lhes perguntando: Vocês pensam que “nada de segu ro” ,
com o enu n ciação , pode lhes parecer prestar-se ao m ín im o deslize , à
m ín im a am bigü idade com “certam en te n ada” ? Contudo, não é parecido.
E xiste a m esm a d iferen ça en tre o nada pode ser e o pode ser nada. Eu
d iria m esm o que existe no prim eiro , no nada de seguro, a m esm a virtude
de solapar a questão na or igem que há no nada pode ser. E m esm o no
ce rta m e n te nada ex iste a m esm a v irtu d e de resposta even tu a l, sem
dúvida, porém sem pre an tecipada em re lação à questão, com o é fá c il
apreender, m e parece, se eu lhes lem brar que é sem pre antes de qualquer
questão e por razões de segurança, se assim posso dizer, que se aprende
a dizer, ao longo da vida, quando se é criança, certa m en te nada. Isso
quer d izer: certam en te, nada além daqu ilo que já é esperado, isto é, o
que se pode considerar an tecipadam ente com o redutível a zero, com o o
laço. A virtude desangustiante do E rw a rtu n g , eis o que Freud sabe articular
para nós, na ocasião, nada senão o que já sabemos. Q uando estam os
assim, estam os tranqüilos, porém não é sem pre que estam os assim.
Portan to, o que nós vem os é que o su jeito, para en con tra r a Coisa,
envereda , a p rin c íp io , na d ireção oposta, que não há m eios de a rticu lar
esses p rim e iros passos do sujeito, senão por um nada que é im portan te
fazer-lh es sen ti-lo nessa d im ensão m esm a, ao m esm o tem po m eta fó r ica
e m eton ím ica do p rim e iro jo go s ign ifican te , por que, cada vez qu e nos
con fron tam os com essa relação do su jeito com o nada, nós, analistas,
- 2 2 7 -
A Identificação
escorregam os regu larm en te entre duas inclinações. A inclin ação com um ,
que tende em direção a um nada de destruição, é a inoportuna interpretação
da agressividade, considerada com o puram ente redutível ao poder biológico
de agressão, que não é, de maneira alguma, suficiente senão por degradação,
para suportar a ten d ên c ia ao nada, tal qual e la aparece num certo
estág io n ecessá rio do pensam en to freu d ian o - ju s tam en te logo antes
de e le in trodu zir a id en tifica ção - com o instin to de m orte. O ou tro é
um a nad ificação que se assim ilaria à negativ idade hegeliana. O nada
que tento, para vocês, fa zer proceder desse m om en to in ic ia l na institu ição
do sujeito, é outra coisa. O su jeito in trodu z o nada com o tal e esse nada
é distinto de qua lquer ser de razão, que é aqu ele da negativ idade clássica,
de qua lquer ser im aginário, que é aqu ele do ser im possível quanto à sua
ex istência , o fam oso Centauro que detém os lógicos, todos os lógicos, e
m esm o os m etafísicos, na entrada de seus cam inhos em direção à ciência ,
que tam bém não é o ens p r iv a tiv u m que é, p ropriam en te falando, o que
Kant, adm iravelm en te, na de fin ição dos seus quatro nadas, da qual e le
tira tão pouco partido, cham a de n ih i l n eg a tiv u m , a saber, para em pregar
seus próprios term os: leere r Gegenstand ohne B eg riff, um objeto vazio,
porém acrescentem os, sem conceito , sem ser possível agarrá-lo com a
mão. E por isso, para in troduzi-lo , que tive de recolocar, d iante de vocês,
a rede de todo o grafo, a saber, a rede constitu tiva da relação com o
Outro e todas as suas conexões.
Eu gostaria, para lhes con du zir nesse cam inho , de lad rilh a r essa via
com flores. Vou exerc ita r-m e nisso hoje, quero dizer, m arcar m inhas
in ten ções . Q uando lhes d igo que é a partir da p rob lem ática do a lém da
dem an da que o ob jeto se con stitu i com o ob jeto do desejo ; quero d izer
que é porque o O utro não responde a não ser nada pode ser, que o p ior
não é sem pre certo , que o su jeito va i en con tra r num ob jeto as p róprias
v irtu des de sua dem an da in ic ia l. E n ten dam que é para lh es lad rilh a r a
via com flores qu e lhes lem bro essas verdades de exp e riên c ia com u m ,
da qual não se recon h ece bastan te a s ign ificação , e tratar de lhes fa zer
sen tir que não é acaso, analog ia , com paração , nem som en te flores,
m as a fin idades profundas que m e farão lhes in d ica r a a fin idade, por
fim , do ob jeto com esse O utro - com O m aiúscu lo - enqu an to , por
exem plo , que ela se m anifesta no amor, que o fam oso trecho que E liante,
no M is a n tro p o , retom ou do De n a tu ra re ru m de L u créc ia :
- 2 2 8 -
Lição de 28 de março de 1962
“A pálida, em brancura, é com parada aos jasm ins;“A negra causa m ed o a um a m oren a adorável;
“A m agra tem estatura e lib erdade;
“A gorda 6, no seu porte , ch e ia de m ajestade;
“A suja, carregada de poucos atrativos;
“ E con h ec ida pe lo n om e de b e leza d escu idada ” , etc.
Isso não é nada m ais do que o signo im poss íve l de se apagar, pe lo
fa to de que o ob jeto do desejo con stitu i-se apenas na relação com o
Outro, enqu anto e le p róprio se orig ina do va lor do traço unário. N en h u m
p riv ilég io no ob jeto, senão nesse va lor absurdo dado a cada traço por
ser um priv ilég io .
O que fa lta a inda para lhes co n ven ce r da d ep en d ên c ia estru tu ra l
dessa con stitu ição do ob jeto , ob jeto do desejo , em relação à d ia lé tica
in ic ia l do s ign ifican te , enqu anto ela vem enca lh ar na não-resposta do
O u tro? Senão o cam in h o já p ercorr ido por nós da busca sadiana, que
lon ga m en te lhes m ostrei - e se está perd ido, saibam ao m en os que m e
em p en h e i a vo lta r a esse assunto, num p re fá c io que p ro m eti a um a
ed ição de Sade - que nós não podem os descon h ecer, com o que cham o
aqu i de a fin idade estru tu ran te desse cam in h o em d ireção ao O utro,
enqu an to e le d e term in a toda institu ição do ob jeto do desejo , que vem os
em Sade, a cada instan te, m isturadas, en tran çadas um a com a ou tra , a
in vec tiva - quero d ize r a in vec tiva con tra o S er Suprem o, sua n egação
não sendo senão um a fo rm a de in vec tiva , m esm o que isto seja sua
n egação m ais au tên tica - absolu tam en te en tre laçadas com o que eu
chamaria, para aproximar, para abordá-la um pouco, não tanto de destruição
do ob jeto, m as o que poderíam os tom ar in ic ia lm en te por seu sim u lacro ,
porqu e vocês con h ecem a excep c io n a l res is tên c ia das v ítim as do m ito
sadiano, em todas as provas pelas quais as fazem passar o texto rom anesco.
E depois, que quer dizer essa espécie de transferência para a m ãe encarnada
na na tu reza de um a certa e fu n dam en ta l abom inação de todos os seus
atos? Será que isso deve d issim ular o que está em questão e que não
nos d izem , entretanto: que se trata, im itando-o nos seus atos de destruição
e levando-os até o ú ltim o lim ite , por um a von tade ap licada, de fo rçá -la
a recr ia r ou tra coisa, quer d izer o que? D ar n ovam en te lugar ao criador.
N o fin a l das contas, em ú ltim a instância , Sade o disse sem saber, e le
- 2 2 9 -
A Identificação
articu la isso por seu en u n ciado : eu te dou tua rea lidade abom inável, a
ti, o Pai, substitu in do-m e a ti nessa ação v io len ta con tra a m ãe. C laro ,
a restitu ição m ítica do objeto ao nada não visa apenas à vítim a privilegiada,
no fin a l das con tas adorada com o ob jeto do desejo , porém a p rópria
m u ltip lic idade de tudo aqu ilo que é. L em brem -se das tram as anti-socia is
dos heróis de Sade, essa restituição do objeto ao nada simula essencialm ente
a an iqu ilação da potência sign ificante. A í está o outro term o con traditório
dessa relação fu n dam en ta l com o O utro, tal com o e le se in stitu i no
desejo sadiano, e e le é su fic ien tem en te m ostrado no ú ltim o dese jo do
testam en to de Sade, na m ed ida em que visa p rec isam en te a esse term o
que e sp ec ifiq u e i para vocês com o a segunda m orte , a m orte do p róprio
ser, na m ed ida em que Sade, no seu testam ento , espec ifica , que do seu
túm ulo e in ten c io n a lm en te de sua m em ória , apesar de ser escritor,
não deve lite ra lm en te p e rm a n ecer nen h u m traço \pas de tra ce ], E a
flo resta deve ser recon stitu ída no loca l on de e le tiv e r sido sepu ltado.
Q ue de le , essen c ia lm en te , com o su jeito, é o nen h u m traço que ind ica
aí on de e le qu er se a firm ar: m ui p rec isam en te com o o que ch am ei de
an iqu ilação da po tên c ia s ign ifican te .
Se ex is te ou tra co isa qu e d evo lh es lem brar, aqu i, para escan d ir
su fic ien tem en te a leg itim idade da inclusão necessária do objeto do desejo
nessa re lação com o O utro, na m ed ida em que e le im p lica a m arca do
s ign ifican te com o tal, eu a des ign a re i a vocês m en os em Sade que num
de seus com en tários recen tes, con tem porân eos, m ais sensíveis e m esm o
os m ais ilustres. Esse texto, que apareceu im ed ia tam en te após a guerra,
num núm ero de Tempos M od ernos, reed itado recen tem en te aos cu idados
do nosso am igo Jean-Jacques Pauvert, na nova ed ição da p rim eira versão
de Justine, é o p re fá c io de Pau lhan. U m texto com o aqu ele não pode
nos ser in d ife ren te , na m ed ida em que vocês acom panh em , aqu i, os
rode ios do m eu d iscurso; porque é n o táve l que seja pelas ún icas vias de
um r igo r re tó r ico , vocês verão , que não há ou tro guia para o d iscurso
de Pau lhan, o autor de F leu rs de Tarbes, a não ser o seu desem baraço
tão sutil, isto é, por essas vias, de tudo o que fo i articu lado até o m om en to
sobre o su jeito da s ign ifica ção do sad ian ism o, a saber, o que e le cham a
de cu m p lic id ad e da im agin ação sad iana com o seu ob jeto, is to é, a
visão do exterior, quero d ize r pe la ap roxim ação que pode fa ze r disso
um a análise lite ra l, a visão m ais segura, m ais estrita que se possa dar
da essência do m asoqu ism o, do qual ju s tam en te e le não d iz nada, a
- 2 3 0 -
Lição de 28 de março de 1962
não ser que e le nos fa z sen tir m u ito bem que está nessa via, que está aí
a ú ltim a palavra do p roced im en to de Sade. N ão para ju lgá-lo c lin icam ente
e, de algum a m aneira, de fora onde, en tretan to, o resultado se m anifesta.
É d if íc il se o fe re c e r m ais a todos os m aus tratos da soc iedade do que
Sade o fe z a cada m inu to , porém não está a í o essencia l, o essencia l
estando suspenso nesse texto de Paulhan, que lhes peço para ler, que
não p ro ced e senão pelas vias de uma análise re tó r ica do texto de Sade
para nos fa ze r sentir, apenas atrás de um véu , o pon to de con vergên cia ,
en qu an to e le se situa nesse rev iram en to aparen te fundado na m ais
pro funda cu m p lic id ad e com esse algo do qual a v ítim a é, no fina l das
contas, apenas o sím bolo m arcado por uma espécie de substância ausente
do idea l das v ítim as sadianas. E enqu an to ob jeto que o su jeito sadiano
se anula.
Em que efetivam ente e le reúne o que fenom enolog icam ente nos aparece
en tão nos textos de M asoch. A saber, que o fim , que o cú m u lo do gozo
m asoqu ista não res ide tanto no fato que e le se o fe rece a suportar ou
não tal ou qual so fr im en to corpora l, porém nesse ex trem o singu lar que,
nos livros, vocês en con trarão sem pre nos textos pequ enos ou grandes
da fantasm agoria m asoquista, essa anulação propriam ente dita do sujeito,
na m ed ida em que e le se torna puro ob jeto. H á apenas com o fim o
m om en to on de o rom ance m asoqu ista , qu a lqu er que seja, chega a esse
pon to que, de fora , pode p a rece r tão su pérflu o , e m esm o de flo re ios , de
luxo, que é, p rop riam en te fa lando, que e le se forja a si p róprio , esse
su je ito m asoqu ista , com o o ob jeto de um a transação com erc ia l ou, m ais
exa tam en te , de um a venda en tre os dois ou tros que o transferem com o
um bem . Bem vena l e, observem , nem m esm o fe tich e , porque o fim
ú ltim o se in d ica pelo fato de que se trata de um bem vil, ven d ido por
pouco d in h eiro , que não prec isará n em m esm o ser p reservado com o o
escravo an tigo qu e ao m en os se con stitu ía , se im pu n h a ao respeito
pe lo seu va lor com erc ia l.
Tudo isso, esses rode ios , esse cam in h o lad rilh ado com as flo res de
Tarbes p rec isam en te , ou com as flores literárias, para lhes m arcar bem
o que quero dizer, quando fa lo do que a cen tu e i para vocês: a saber, a
pertu rbação p ro funda do gozo , na m ed id a em que o gozo se d e fin e em
relação à Coisa, pela d im en são do O utro com o tal, enqu an to que essa
d im en são do O u tro se d e fin e pela in trodu ção do s ign ifican te.
A Identificação
A in da três p equ en os passos à fren te , e d e ixa re i para a p róx im a ve z a
con tin u ação desse d iscurso, com rece io de que vocês não percebam
dem ais que fadiga gripal se abate sobre m im , hoje. Jones é um personagem
curioso, na h is tó ria da análise. C om re la ção à h istó ria da an álise, o
que ele im põe a m eu espírito - eu lhes direi im ed iatam ente, para continuar
com esse cam in h o de flo res, de h o je - é qual d iabó lica von tad e de
dissim ulação podia bem haver em Freud, para ter con fiado nesse astucioso
galês, com o tal, com um a visão m u ito curta, para que e le não fosse
lon ge dem ais no trabalho que lh e era con fiado , o ze lo de sua p rópria
b iogra fia . E aí, no artigo sobre o s im bolism o, que con sagre i à obra de
Jones - o que não s ign ifica s im p lesm en te o dese jo de con c lu ir m eu
artigo com um a piada - o que s ign ifica sobre o que eu con c lu í, is to é,
a com paração da ativ idade do astucioso galês com o trabalho do lim pador
de cham inés. C om e fe ito , e le lim pou m u ito bem todos os canos e poder-
se-á m e fa ze r ju s tiça que, no d ito artigo, eu o acom pan h e i em todas os
rodeios da cham iné, até sair com ele, todo preto, pela porta que desem boca
no salão, com o ta lvez vocês se lem brem . O que m e va leu , da parte de
um ou tro em in en te m em bro da S oc iedade analítica , um dos que adm iro
e gosto m ais, galês tam bém [W in n ico tt], a certeza , nu m a carta, de que
e le não com preen d ia absolu tam en te nada da u tilidade que eu acred itava
ap aren tem en te en con tra r nesse m in u c ioso p roced im en to . Jones nu nca
fe z nada m ais, na sua b iogra fia , para m arcar, a inda que um pouco,
suas d istâncias, a não ser tra zer um a lu zin h a exterior, com o os pontos
onde a construção freu d ian a se en con tra em desacordo, em con trad ição
com o evan ge lh o darw in ian o - o que é, de sua parte, s im p lesm en te
um a m an ifestação p rop riam en te grotesca de su perio ridade chauvin ista .
Jones, então, no curso de um a obra da qual o en cam in h am en to é
apa ixonan te em razão de seus próp rios d escon h ec im en tos , a propósito
e spec ia lm en te do estado fá lico e de sua exp e r iên c ia ex cep c io n a lm en te
abundante das hom ossexuais fem in in as , Jones en con tra o paradoxo do
com p lexo de castração, que con stitu i ce rta m en te o m e lh o r de tudo a
que e le aderiu - e bem fe z em ad erir - para articu lar sua exp eriên c ia ,
e on de lite ra lm en te e le n u nca p en e trou um tanto assim ! [gesto com a
m ão). A prova é a in trodu ção desse term o, ce rta m en te fle x ív e l, com a
con d ição de que se saiba o que fa ze r d e le , por exem plo , que se saiba
lo ca liza r aí o que não pode ser para com p reen d er a castração: o term o
acpavip iç55. Para d e fin ir o sen tido do que posso cham ar, sem nada fo rça r
- 2 3 2 -
Lição de 28 de março de 1962
IF
aqu i, do e fe ito de É d ipo , Jones nos d iz a lgo que não pode m elh or se
situar no nosso discurso; aqui, e le acaba por com pactuar, quer e le queira
ou não, com o fa to de que o O utro, com o a rticu le i para vocês na ú ltim a
vez, in te rd ita o ob jeto ou o desejo. M eu ou é, ou parece ser, exclusivo.
N ão exa tam en te : ou tu desejas o que eu deseje i, eu, o D eus m orto , e
não há m ais ou tra prova - porém ela basta - da m inha ex is tên c ia que
esse m an dam en to que te p ro íbe o ob jeto ; ou, m ais exa tam en te , que te
fa z con stitu í-lo na d im en são do perd ido. Tu não podes m ais, por m ais
que tu faças, senão encon trar um outro, jam a is aquele. É a in terp retação
mais in teligente que posso dar a esse passo que Jones transpõe alegrem ente
- e, asseguro-lhes, veem en tem en te . Q uando se trata de m arcar a entrada
dessas hom ossexuais no dom ín io su lfú reo que será, desde então, seu
habitat, ou o ob jeto, ou o desejo, eu lhes asseguro que isso não dem ora .
Se m e d e ten h o aí é para dar a essa esco lha , vel... ve l... , a m e lh o r
in terp reta ção , quer d ize r que exagero , faço fa la r da m e lh o r m an e ira
possível m eu in terlocu tor. “ Ou tu renuncias ao d ese jo ” , nos d iz Jones,
quando se fala rap idam en te, isso pode p arecer ev iden te , m ais ainda
porqu e e antes deram -nos a oportu n idade do descanso da a lm a e ao (
m esm o tem po da com preensão fác il, traduzin do-nos a castração com o
ct(potvipiç. Mas, o que qu er d izer ren u n c ia r ao desejo? Será qu e é tão
sustentável, essa CMpaviotç do desejo, se nós lhe atribu ím os essa fu nção ,
com o em Jones, de su jeito de tem or? Será que é m esm o con ceb ív e l
p r im e ira m en te com o experiên c ia , no pon to on de Freud o fa z en tra r
em jo go num a das saídas possíveis, e eu concordo, exem plares do con flito
freu d ian o, esse do hom ossexual fem in in o? O bservem os isso de perto .
- 2 3 3 -
(
Esse dese jo que desaparece, ao qual, su jeito, tu ren u ncias, será que
c
nossa exp eriên c ia não nos ensina que isso quer d izer que, desde então,
teu dese jo vai estar tão bem escon d ido que, por um tem po, e le pode
p a rece r ausen te? D igam os m esm o, à m an eira de nossa su p erfíc ie do
cross -ca p , ou da m itra : e le se in ve rte na dem anda. A dem anda, aqu i, (
uma ve z m ais, recebe sua própria m ensagem de form a invertida. Porém ,
no fin a l das contas, o que quer d ize r esse dese jo escon d ido? A não ser
o que nós cham am os e descobrimos, na experiência, com o desejo recalcado?
Em todo caso, ex iste apenas um a co isa que sabem os m u ito bem que
não encon tra rem os nunca, no su jeito : é o m ed o do reca lcam en to com o
tal, no p róp rio m om en to em que e le se opera, no seu instante. Se se
trata, na cccpavicnç, de a lgo que con ce rn e ao desejo, é arb itrário , dada a
c c(
c
A Identificação
m aneira pe la qual nossa exp eriên c ia nos ensina a vê-lo se esquivar. É
im pensável que um analista articu le que, na consciência , possa se form ar
algo que seria o tem or do desapa rec im en to do desejo . Lá, on de o desejo
desaparece, isto é, no recalcam ento, o sujeito está com pletam en te incluso,
não separado desse d esaparec im en to. E nós o sabem os: a angústia , se
e la se produz, não vem nu nca do d esaparec im en to do desejo , m as do
ob jeto que e le d issim ula, da verdade do desejo, ou, se vocês p re fe rirem ,
daqu ilo que nós não sabem os do desejo do O utro. Toda in terrogação da
con sc iên c ia con cern en te ao desejo, com o poden do desfa lecer, só pode
ser cu m p lic idade. C onscius quer dizer, aliás, cú m plice , no que, aqui, a
etim ologia retom a seu frescor na experiên cia e é por isso que lhes lem brei,
há pouco, no m eu cam inho ladrilhado de flores, a relação da ética sadiana
com o seu ob jeto. É o que cham am os de am b iva lên c ia , de am bigü idade,
a revers ib ilid ade de certos pares pulsionais. M as nisso nós não vem os -
para d izer s im p lesm en te , isso desse equ iva len te que se reverte , que o
sujeito se torna objeto, e o objeto, sujeito - não apreendem os o verdadeiro
p rin c íp io que im p lica sem pre essa re fe rên c ia ao grande O utro, onde
tudo isso fa z sentido.
Então, a acpavtotç, exp licada com o fon te da angústia no com p lexo de
castração é, p rop riam en te fa lan do , um a exclu são do prob lem a; porque
a única questão que um teórico analista tem a se colocar aqui - com preende-
se m u ito bem que e le tenha, com e fe ito , um a questão a se colocar,
porque o com p lexo de castração perm an ece , até o p resen te m om en to ,
um a rea lidade não com p letam en te e lu c idada - a ún ica pergunta que
e le tem a fa ze r a si p róp rio é aquela que parte desse fato fe liz que,
graças a Freud, legou para e le a sua descoberta a um estág io bem m ais
avançado que o pon to onde e le pode alcançar, com o teó r ico da análise,
a questão é saber porque o instru m ento do desejo, o falo, tom a esse
va lor tão decis ivo . Por que é e le e não o desejo que está im p licad o
num a angústia, num tem or do qual não é a inda assim vão, a propósito
do term o acpavim ç, que tenham os fe ito testem unho, para não esqu ecer
que toda angústia é angústia de nada, na m ed ida em que é do nada
pode ser que o su jeito deve se proteger. O que qu er d izer que, por um
tem po, é para e le a m e lh or h ipó tese: nada pode ser tem ido . Porque é aí
que surge a fu n ção do fa lo, aí onde, de fato , tudo seria sem e le tão fá c il
de com preender, in fe lizm en te de um a m an eira com p letam en te ex te r io r
à exp eriên c ia ? Por que a coisa do fa lo, por que o fa lo vem com o m ed ida ,
- 2 3 4 -
Lição de 28 de março de 1962
no m om en to em que trata-se de quê? D o vazio in c lu ído no coração da
dem anda, quer dizer, do a lém do P r in c íp io do Prazer, do que faz da
dem anda sua rep e tição etern a , isto é, o que constitu i a pulsão. Um a
ve z m ais, e is-nos trazidos a esse pon to que não u ltrapassei hoje, em
que o dese jo se con stró i no cam inho de um a questão que o am eaça e
que pertence ao dom ínio do “não ser”56, que vocês m e perm itirão introduzir
aqu i com esse trocad ilho .
U m a últim a reflexão fo i-m e sugerida, nesses dias, com a presentificação
sem pre cotid ian a da m aneira pela qual con vém articu lar d ecen tem en te,
e não som en te grace jan do , os p rin c íp ios e tern os da Igreja ou os desvios
vac ilan tes das d iversas le is naciona is sobre o b ir th c o n tro l. A saber,
que a p rim e ira razão de ser, na qual nen hu m leg is lador até ho je se
apoiou, para o n asc im en to de uma criança , é que se a deseja e que
nós, que con h ecem os bem o papel disso - que ela fo i ou não desejada -
em todo o desen vo lv im en to u lterior do sujeito, não parece que tenham os
sentido a necessidade de lembrar, para introduzi-lo, fazê-lo sentir através
dessa discussão ébria, que oscila entre as necessidades utilitárias evidentes
de uma política dem ográfica e o tem or angustiante - não o esqueçam -
das abom inações que even tualm ente o eugen ism o nos prom eteria. E um
prim eiro passo, um pequeno passo, mas um passo essencial, e quanto, ao
colocá-lo à prova, vocês o verão, desem patando, que ao fazer observar a
relação constitu inte, efetiva , em todo o destino futuro, supostam ente a se
respeitar com o o m istério essencial do ser que está por vir, que e le tenha
sido desejado e por que. Lem brem -se que ocorre freqü en tem en te que o
fundo do desejo de uma criança é sim plesm ente isso que n inguém diz:
“ que e le seja com o nenhum , que ele seja m inha m aldição sobre o m u ndo” .
- 2 3 5 -
y
■
■
-
_
í04 de a b r il de 1962
((
LIÇAO XVI
A qu eles que, por d iversas razões, pessoais ou não, se d istingu iram
por sua ausência nessa reunião da S ociedade que se cham a de p rovincia l
vão sen tir-se v ítim as de um p equ en o aparte ; pois, por agora, é aos
ou tros que vou d ir ig ir -m e, já que é com e les que estou em d ívida , pois
eu disse a lgum a coisa nesse p equ en o congresso. Isso fo i para d e fen d e r
a parte que eles tom aram e isso não se deu em m im , devo d izê -lo , sem
reco b r ir certa in satisfação a respeito deles. E preciso, apesar de tudo,
filo so fa r um pouco sobre a na tu reza do que se cham a de congresso . É,
em p rin c íp io , um desses tipos de en con tro on de se fa la, m as cada um
sabe que qua lquer coisa que diga partic ipa de algum a in d ecên c ia , de
sorte que é bem natural que não se diga, ali, m ais que nadas pom posos,
e cada um fica bem aparafusado no papel que se reservou . N ão é bem
isso o que se passa no que cham am os, m ais m odestam en te , de nossas
jorn adas. Mas, desde há algum tem po, todos são m odestos. C ham a-se
isso de co lóqu io , en con tro . Isso não m uda nada... N o fu n do da coisa,
continua sem pre a ser um congresso. Há a questão das relações57 [ra pport].
P a rece-m e que va le a pena que nos detenham os nesse term o, porque,
fin a lm en te , é bem in teressan te o lhá-lo de perto : relação en tre o quê,
ou m esm o, re lação con tra o quê? C om o diz, o pequ eno rela tor? Será
que 6 bem isso o que se qu er d izer? Seria p rec iso ver. Em todo caso, se
a pa lavra relação 6 c lara, quando se d iz: “ o re la tór io [ra p p o r t ] do Sr.
Fu lano de tal sobre a situação fin a n ce ira ” , não se pode, apesar de tudo,
d ize r qu e estam os à von tade para dar um sen tido que deve ser an á logo
a um term o com o “ rela tório sobre a angústia” , por exem plo. Vocês devem
- 237- ((
A identificação
reco n h ece r que é bastan te curioso que se faça um re la tór io \ra pport]
sobre a angústia, ou sobre poesia, aliás, ou sobre um certo n ú m ero de
term os desse gên ero . Espero, seja lá com o for, que a es tran h eza da
coisa lhes apareça, e espec ifiqu e não som ente congressos de psicanalistas,
m as um certo nu m ero de outros congressos, d igam os, de filó so fo s em
gera l. O term o ra p p o r t , d evo dizer, fa z hesitar; eu m esm o, duran te
algum tempo, não hesitava em cham ar de discurso o que se podia cham ar
com term os análogos: “ Discurso sobre a causalidade psíquica” , por exem plo.
E p recioso . C om o todo o m undo, acabei vo ltan do a ra p p o rt.
C ontudo, esse te rm o e seu uso são fe itps para la ze r com que vocês
co loqu em ju stam en te a questão do grau de con ven iên c ia com que se
m ed e essas re lações estranhas com seus estranhos objetos. E ce rto que
há um a certa p roporção de tais re lações com um certo tipo con stitu in te
da questão ao qual e las se re lacionam : o va z io que está no c en tro de
m eu toro, por exem plo . Q uando se trata da angústia ou do desejo , é
m u ito sensível. O que nos p erm itir ia crer, com p reen d er que o m elh or
eco de s ign ifican te que poderíam os ter do term o ra p p o rt d ito c ien tífic o ,
no caso, seria a ser tom ado com aqu ilo que se cham a tam bém de relação,
qu ando se trata da re la çã o sexual. U m a e ou tra não d e ixam de ter
re lação com a questão de que se trata, m as é b em ass im .. É exa tam en te
aí que en con tram os essa d im en são do não sem , enqu an to fu n dadora
do p róp rio pon to em que nos in trodu zim os no desejo e na m ed id a em
que o acesso do desejo ex ige que o su jeito não esteja sem tê-lo , te r o
quê? A í é que está toda a questão. D ito de ou tra m aneira , que o acesso
ao desejo reside num fato , nesse fato de que a cob iça do ser d ito hum ano
deva deprim ir-se in a u gu ra lm en te para se restau rar sobre os degraus
de um a potên cia , da qual a questão é saber do que ela é, mas sobretudo
saber em d ireção a que essa p o tên c ia se es fo rça . O ra, aqu ilo em d ireção
ao qual e la se es fo rça v is ive lm en te , sen s ive lm en te , através de todas as
m etam orfoses do desejo hum ano, parece que é em d ireção a algo sem pre
m ais sensível, m ais prec isado, que se ap reen de para nós com o aqu ele
bu raco cen tra l, aquela coisa, a qual é p rec iso cada vez m ais con tornar,
para que se trate desse dese jo que con h ecem os , esse desejo hum ano,
en qu an to é cada vez m ais in fo rm ado.
Eis o que faz, portanto, até um certo ponto leg ítim o , com que a relação
deles, do rela tór io sobre a angústia em particu la r daqu ele ou tro d ia, só
possa ter acesso à questão por não estar sem relação com a questão .
- 2 3 8 -
Lição de 4 de abril de 1962
Isso não qu er d izer que o sem , se posso dizer, deva p reced er o não, d ito
de outra m aneira, que se creia um pouco dem asiadam ente fácil responder
ao vazio constitutivo do cen tro de um sujeito, por excessivo desnudam ento
nos m eio s de sua abordagem . E aqu i vocês m e perm itirão evocar o m ito
da V irgem louca que, na tradição judaico-cristã, responde tão perfeitam ente
ao da p e n ia 58, da m iséria , em O B anquete de P latão. A pen ia consegue
o que qu er porqu e está a serv iço de Vênus, m as isso não é forçado; a
im previdên cia que simboliza a dita V irgem louca pode m uito bem m alograr
seu en gravidam en to .
Então, on de está o lim ite im perdoável, nessa questão -p o rq u e , en fim ,
é bem disso que se trata, é do estilo daqu ilo que pode com u n icar-se
num certo m odo de com u n icação que ten tam os de fin ir, aqu ele que ine
fo rça a vo lta r à angústia , aqu i, não com o p re tex to para repreen der,
n em dar liç ã o àqu e les que fa la ram disso, não sem fa lh as - lim ite
e v id en tem en te buscado, a partir do qual se pode fa ze r um a rep rim en da
aos con gressos em gera l, por seus resu ltados. O n de se deve buscá-lo?
Já que fa lam os de algo que nos perm ite ap reen der o vazio quando se
trata, por exem plo , de fa lar do desejo; será que vam os buscá-lo nessa
espéc ie de pecado no desejo con tra não sei que fogo da paixão, da paixão
da verdade, por exem plo, que é o m odo no qual poderíam os designar
m u ito bem , por exem plo, uma certa postura, um certo estilo: a postura
un iversitária , por exem plo? Isso seria côm odo dem ais, seria fácil demais.
N ão vou , ev iden tem en te, aqui, parodiar sobre o fam oso rugido do vôm ito
do E tern o d iante de um a tep id ez qualquer; um certo calor desem boca
tam bém m uito bem - é sabido - na esterilidade. E na verdade, nossa
m oral, um a m ora lidade que já se sustenta m u ito bem , a m oral cristã, diz
que não há m ais que uin só pecado: o pecado con tra o Espírito.
O ra, quanto a nós, d irem os que não há p ecado con tra o desejo , assim
com o não há tem or da (pavia iç , tal com o en ten de M. Jones. N ão podem os
d ize r que, em nen hu m caso, possam os rep reen der-n os de não desejar
su fic ien tem en te . Só há um a coisa - e quanto a isso nada podem os - só
há um a coisa a se tem er: é essa obtusão em reco n h ecer a curva própria
do processam ento desse ser in fin itam en te plano, do qual lhes dem onstro
a propu lsão n ecessária sobre esse ob jeto fech ad o que cham o aqui de
toro, que, a bem dizer, é apenas a form a, a m ais in ocen te , que a dita
cu rva tu ra pode tom ar - já que, em tal ou tra form a, que n ão é m enos
possível, nem m enos d ifu n d ida - e le está na própria estru tura de tais
- 2 3 9 -
A Identificação
form as, às quais pude in trodu z ir vocês na ú ltim a sessão, que o su jeito,
ao se deslocar, se en con tra com a sua esquerda no lugar da d ireita e isso
sem saber com o tal pôde acontecer, com o isso se fez . Isso, a essa altura,
todos aqueles que aqui m e escutam nada têm, a esse respeito, de privilegiados;
até um certo ponto, d ire i que eu tam bém não; isso pode m e acontecer,
tanto quanto aos outros. A ún ica d iferen ça entre eles e eu, até o presente,
parece-m e, resid ia apenas no trabalho que dedico a isso, um a vez que
invisto nisso um pouqu inho m ais do que eles.
Posso d izer que num certo n ú m ero de coisas que fo ram avançadas
sobre um assunto que, p rovave lm en te , a inda não abordei, a angústia ,
não é isso o que m e fa z d ec id ir an unciar a vocês que será o tem a do
m eu sem inário do ano que vem , se o sécu lo nos p erm itir que haja um
sem inário . Sobre esse assunto da angústia tenho ouvido m uitas coisas
estranhas, coisas aventuradas, nem todas erradas e que não terei que
retom ar, d irig in do -m e espec ificam en te a esta ou aquela, a um a ou outra.
Parece-m e, entretan to, que o que se reve lou ali, um a certa fa lência , era
bem a de um cen tro e de form a algum a de natureza a recobrir o que
cham o de o vazio do centro. De toda form a, alguns propósitos de m eu
ú ltim o sem in ário d ever iam ter posto vocês em guarda quanto aos pontos
m ais vivos; e é por isso que m e parece tam bém legítim o abordar a questão
sob este prisma, hoje, já que isso se en cade ia exatam en te no discurso de
o ito dias atrás. N ão fo i à-toa que sub linhei tudo aquilo, que lem bre i a
d istância que separa, em nossas coordenadas fundam enta is, estas em
que se devem in serir nossos teorem as sobre a id en tificação este ano,
sobre a d istância que separa o Outro da Coisa, nem tam pouco que, em
term os próprios, acred ite i ter de apontar-lhes a relação da angústia com
o desejo do Outro. N a falta de verdadeiram ente partir dali, de se enganchar
a isso com o a um a sorte de alça firm e e por só ter dado voltas em círculos,
não sei por qual pudor, isso verdade iram en te em alguns m om en tos, d ire i
quase todo o tem po, e m esm o naquelas relações de que fa le i, relações
com não sei quê, que se liga a esse tipo de fa lta que não é o bom , até
nessas relações, assim m esm o, vocês podem con otar à m argem esse não
sei quê, que era sem pre a convergência , im pondo-se com um a espéc ie
de orien tação de agulha, de bússola, que o ún ico term o que pod ia dar
um a un idade a essa espéc ie de m ov im en to de oscilação, em torno do
qual a questão trem ia, era esse term o: a relação da angústia com o desejo
do O utro. E é isso que eu queria... pois seria falso, vão, m as não sem
- 2 4 0 -
(
Lição de 4 de abril de 1962
risco, d.e não m arcar aqui algo de passagem que possa ser com o um germ e,
para im ped ir tudo o que se tem dito, sem dúvida de interessante, no
d eco rrer das horas dessa pequena reun ião onde coisas cada vez mais
acentuadas vinham enunciar-se, para que isso não se dissipe, para que
isso se ligue a nosso trabalho, perm itam-me tentar, aqui, muito grosseiramente,
com o à m argem e quase em antecipação, m as não tam bém sem uma
pertinência de pontos exatos, no ponto a que havíamos chegado, de pontuar
um certo núm ero de ind icações prim eiras. É a referência que não deveria,
em m om en to algum , fa zer falta a vocês.
Se o fa to de que o gozo, enqu an to gozo da Coisa, é pro ib ido em seu
acesso fu ndam enta l, se é isso o que lhes disse durante todo o ano do
sem in ário sobre A É t ic a , se é nessa suspensão, no fato de e le estar, este
gozo, aufgehoben , suspenso, p ropriam en te , que ja z o p lano de apoio
on de vai-se con stitu ir com o tal e se sustentar o desejo - isso é, na
verdade, a ap roxim ação m ais lon gín qua de tudo o que o m u ndo pode
d izer - vocês não vêm que podem os fo rm u la r que o Outro, esse O utro
enqu an to , a um só tem po, e le se apresenta ser e que não é, que e le está
para ser, o O utro aqui, quando avançam os em d ireção ao desejo , nós
vem os bem que, enquanto seu suporte é o sign ificante puro, o sign iflcante
da le i, que o O utro se apresenta aqu i com o m etá fora dessa in terd ição .
D ize r que o O utro é a le i ou que é o gozo enqu an to proib ido, é a m esm a
coisa. Então, a lerta àqu ele - que, aliás, não está aqu i ho je - que da
angústia fe z o suporte e o signo e o espasmo do gozo de um si identificado,
id en tific a d o exa tam en te com o se e le não fosse m eu aluno, com esse
fu n do in e fá ve l da pulsão com o do coração, do centro, do ser ju s tam en te
onde não há nada. Ora, tudo o que lhes ensino sobre a pulsão é justam ente
que e la não se con fu n de com este si m ítico , que ela nada tem a ver
com o que dela se faz dentro de uma perspectiva junguiana. Evidentem ente,
não é com um se d izer que a angústia é o gozo daqu ilo que se poderia
cham ar de ú ltim o fundo de seu p róprio in con sc ien te . E a isso que se
re fe r ia esse discurso. N ão é com um , e não é porque não é com u m que
é verdade iro . E um ex trem o ao qual pode-se ser levado quando se está
den tro de um certo erro que repousa in te iram en te sobre a e lisão da
re la ção do O u tro com a Coisa, enqu an to an tinôm ica . O O u tro está
para ser, e le a inda não é. E le tem , ainda assim, algum a rea lidade, sem
isso eu não poderia sequ er d e fin i-lo com o o lugar onde se desdobra a
cade ia s ign ifican te . O ú n ico Outro rea l, já que não há nen h u m O utro
c
- 2 4 1 -
A Identificação
do O u tro , nada que garan ta a verdade da le i, sendo o ú n ico O u tro rea l
aqu ilo de que se p od eria gozar, sem a le i. Essa v irtu a lidade d e fin e o
O utro com o lugar. A Coisa, em suma, e lid ida , redu zida a seu lugar, eis
aí o O utro com O m aiúscu lo.
E vou ser bem rápido sobre o que tenho a d izer a propósito da angústia.
Isso passa, eu já lhes anunciara, pelo desejo do Outro. Então, é a í que
nós estam os, com o nosso toro, e é aí que devem os d e fin i- lo passo a
passo. E aí que fa rei um p rim e iro percurso, um pouco depressa dem ais;
isso n u n ca é ru im , porque se pode vo lta r atrás. P rim e ira abordagem :
vam os d ize r que essa relação que articu lo , d izen do que o dese jo do
h om em é o desejo do O utro, o que ev iden tem en te p retende d izer algum a
coisa, m as agora o que está em questão, o que isso já in trodu z, é que,
ev id en tem en te , eu d igo um a coisa to ta lm en te d iferen te , d igo que: o
dese jo x do su jeito ego é a relação com o desejo do Outro, que estaria,
em relação ao desejo do Outro, dentro de um a relação de B eschränkung,
de lim itação , v ir ia a se con figu ra r num sim p les cam po de espaço v ita l
ou não, con ceb id o com o hom ogên eo , v ir ia lim itar-se por seu ch oqu e.
Im agem fundam enta l de toda sorte de pensam entos, quando se especu la
sobre os e fe itos de um a con junção psico -socio lóg ica . A relação do desejo
do su jeito, do su jeito com o desejo do O utro, nada tem a ver com o que
q u er que seja de in tu itivam en te suportável desse registro. U m p rim e iro
passo seria d izer que, se m ed ida quer d ize r m ed ida de gran deza , não
há, de fo rm a algum a, en tre e les m ed ida com u m . E nada m ais que, ao
dizer, encon tram o-nos com a experiên cia . Q uem , algum a vez, encon trou
um a com u m m ed ida en tre seu desejo e qu a lqu er pessoa com quem
tem a ve r com o desejo? Se não se põe isso em p rim e iro lugar em toda
c iên c ia da experiên cia , quando se tem o títu lo de H egel, o verdadeiro
títu lo da Fenom enolog ia du e sp ír ito , pode-se perm itir tudo, in c lu sive as
pregações deliran tes sobre as ben feitorias da gen ita lidade. E isso e nada
além disso que quer d izer m inha introdução do s í m b o l o é algo destinado
a sugerir a vocês que -v/Tf x ■y/TXj’ o produto de m eu desejo pelo desejo do
Outro, isso só dá e só pode dar uma falta, - 1, a fa lta do sujeito, nesse
ponto preciso. Resu ltado: o produto de um desejo pe lo outro só pode ser
essa falta, e é daí que se deve partir, para obter algum a coisa. Isso quer
d izer que não pode haver nenhum acordo, nenhum contrato no plano
do desejo, senão isso de que se trata nessa id en tificação do desejo do
hom em com o desejo do Outro, é isso, que lhes mostrarei num jogo manifesto;
- 2 4 2 -
Lição de 4 de abril de 1962
fa zen do atuar, para vocês, as m arionetes do fantasm a, uma vez que elas
são o suporte, o ún ico suporte possível do que pode ser, no sentido próprio,
uma rea lização do desejo.
O ra, pois, quando ch egarm os a esse pon to - vocês já podem , de toda
form a, ve r in d icad o em m il re ferên c ias ; as re fe rên c ia s a Sade, para
tom ar as m ais próxim as, o fan tasm a um a c r ia n ça é ba tida , para tom ar
uma das vias p rim eiras com as quais com ece i a in trodu zir esse jo go - o
que m ostra re i é que a rea lização do desejo s ign ifica , no p róprio ato
dessa rea lização , só pode s ign ifica r ser o instrum ento , serv ir o desejo
do O utro, que não é o ob jeto que vocês têm na sua fren te , no ato, mas
um ou tro que está por trás. Tra ta-se aí do term o possível na rea lização
do fantasm a. É apenas um term o possível, e an tes de vocês m esm os se
terem fe ito o in stru m ento desse O utro, situado num h iperespaço, vocês
lidam pura e s im p lesm en te com desejos, com desejos reais. O desejo
existe, está constituído, passeia através do mundo e exerce suas devastações,
antes de qu a lqu er ten tativa de im agin ações de vocês, eróticas ou não,
para rea lizá -lo , e m esm o sequ er está exclu ído que vocês encon trem ,
com o tal, o desejo do O utro, do O utro real, tal com o d e fin i há pouco. E
nesse pon to que nasce a angústia.
A angústia é besta com o chuchu . É in acred itáve l que, em m om en to
algum , eu não tenha visto sequ er o esboço disso que parecia, em certos
m om en tos, com o se d iz, ser um jogo de esconde-esconde, que é tão
sim ples. Foi-se procurar a angústia, e, m ais exa tam en te , o que é m ais
orig ina l que a angústia, a pré-angústia, a angústia traum ática. N in gu ém
falou sobre isso, a angústia é a sensação do desejo do Outro. Todavia,
com o, ev id en tem en te , cada vez que alguém lança uma nova fórm u la,
não sei o que se passa, as p reced en tes caem no fundo de seus bolsos ou
dali não saem mais. É preciso, apesar de tudo, que eu im agin e isso, eu
que m e desculpo, e até grosse iram en te, para fa ze r sentir o que pretendo
dizer, para que, depois disso, vocês tentem servir-se, e isso pode servir
em todos os lugares on de há angústia. P equ en o apólogo, que ta lvez não
seja o m elhor, a verdade é que eu o fo r je i nesta m anhã, d izen do-m e
que era prec iso que eu tentasse fa zer-m e com preender. N orm alm en te ,
fa ço -m e com preen der de um a m an eira enviesada, o que não é tão ruim ;
isso ev ita que vocês se en gan em da m aneira certa . Lá, vou tentar fazer-
m e com preen der no lugar certo e evitar-lhes erros. Im aginem -m e dentro
de um rec in to fech ado, sozinho com um lou va-a-deus59 de três m etros
- 2 4 3 -
A Identificação
de altura. É a p roporção corre ta para que eu tenha o tam anho do dito
m acho. A lém do m ais, estou vestindo um a pe le do tam anho do dito
m acho, que tem l,7 5 m , m ais ou m en os m inha altura. Eu m e m iro,
m iro m inha im agem assim fantasiada den tro do olho facetado do louva-
a-deus fêm ea . Será que a angústia é isso? E m u ito perto disso. N o
entanto, d izen do-lh es que é a sensação de desejo do Outro, tal de fin ição
m an ifesta -se pe lo qu e e la é, ou seja, pu ram en te in trodu tória . É preciso
e v id en tem en te qu e vocês se reportem à m in h a estru tura de sujeito,
isto é, con h ecer todo o d iscurso a n teced en te para com p reen d er que,
se é do O utro com O m aiúscu lo que se trata, não posso con ten ta r-m e
em não ir m ais longe, para só rep resen tar nesse n egóc io essa pequena
im agem de m im com o louva-a-deus m acho dentro do olho m u ltifacetado
do outro. Trata-se, p rop riam en te fa lando, da apreensão pura do desejo
do Outro com o tal, se justam ente eu desconhecia o quê? M inhas insígnias:
a saber, que estou fan tasiado com a p e le do m acho. N ão sei o que sou,
com o ob jeto para o O utro. D iz-se que a angústia é um a fe to sem objeto,
m as essa fa lta de objeto, é p reciso saber on de e la está: está do m eu
lado. O a feto da angústia é um e fe ito con otado por uma fa lta de objeto,
m as não por um a fa lta de rea lidade. Se eu não m e sei m ais ob jeto
even tu a l desse desejo do Outro, esse O u tro que está à m in h a fren te ,
sua figu ra é -m e in te iram en te m isteriosa na m ed ida, sobretudo, em que
essa form a com o tal, que tenh o d ian te de m im , tam pouco pode, de
fato, estar constitu ída para m im com o objeto, mas onde, de toda m aneira,
posso sen tir um m odo de sensações que fa zem toda a substância do
que se cham a de angústia , dessa opressão in d iz ív e l por on de chegam os
à própria d im en são do lugar do O utro, enqu an to pode ap arecer ali o
desejo . E isso, a angústia . E som en te a partir daí que vocês podem
com p reen d er as d iversas vias que tom a o n eu rótico , para se arranjar
nessa relação com o desejo do Outro.
- 2 - H -
Lição de 4 de abril de 1962
Então, no pon to em que estam os, esse dese jo - eu o m ostrei a vocês
na ú ltim a vez - com o in c lu íd o p rim e ira m en te e n ecessa riam en te na
dem an da do O utro. A liás, aqui, o que vocês encon tram com o verdade
prim eira , senão o com um da experiência quotid iana? O que é angustiante,
quase que para qu a lqu er um , não som en te para as criancinh as, mas
para as c rian c in h as que todos som os, é o que, em algum a dem anda,
pode bem escon der-se desse x, desse x im pen etrá ve l e angustian te , por
ex ce lên c ia , de “o que é que e le pode estar querendo aqu i? ” . O que a
con figu ração aqu i dem anda, vocês podem ver bem , é um m e d iu m en tre
dem an da e desejo. Esse m e d iu m , e le tem um nom e: cham a-se fa lo . A
fu n ção fá lica não tem nen h u m ou tro sentido, senão ser aqu ilo qu e dá
a m ed ida desse cam po, e tam bém , se qu iserm os, que tudo o que nos
con ta a teoria an a lítica , a dou trin a freu d ian a , na m atéria , con sis te
ju s tam en te em nos d ize r que é por ali, a fina l de contas, que tudo se
arran ja. N ão con h eço o dese jo do O utro, angústia , m as con h eço -lh e o
in stru m en to : o fa lo , e quem quer que eu seja, espera-se que eu passe
por a li e não crie h istórias; o que se cham a, em lingu agem corren te , de
con tin u a r os p rin c íp ios de papai. E, com o cada um sabe que, desde há
algum tem po, papai não tem m ais p rin c íp io , é com isso que com eçam
todas as in fe lic id ad es . Mas, enqu an to papai es tiver ali, en qu an to e le
fo r o cen tro em torno do qual se organ iza a tran sferên cia daqu ilo que
é, nessa m atéria , a un idade de troca, a saber,
1
<Pqu ero dizer, a un idade que se instaura, que se torna a base e o p rin c íp io
de todo sustentácu lo, de todo o fu ndam ento , de toda a rticu lação do
[cam po do] desejo ... O ra, ora, as coisas podem ir b em ! E las estarão
exatam ente estendidas entre o 7ir| tpuvat, pudesse ele ja m a is ter-m e gerado!,
no lim ite , e o que se cham a de b a ra k a m na trad ição sem ítica , e até
b íb lica , para fa lar p rop riam en te , a saber, ao con trário , o que m e torna
o p ro lon gam en to vivo, ativo, da le i do pai; o pai com o origem daqu ilo
que va i-se transm itir com o desejo.
A angústia de castração, portan to, vocês vão ver aqui que ela tem
dois sen tidos e dois n íveis. Pois se o fa lo é esse e lem en to de m ed iação
que dá ao desejo o seu suporte, ora, a m u lh er não é a m enos favorec ida ,
nessa h istória , porque, a fin a l de contas, para e la é m u ito s im p les: já
que e la não o tem , tudo o que lhe resta é desejá-lo ; e, m inha fé , nos
- 2 4 5 -
A Identificação
casos m ais fe lizes , é, de fato , um a situação à qual ela se acom oda m u ito
bem . Toda a d ia lé tica do com p lexo de castração, enqu an to para ela,
e la in trodu z o Edipo, d iz-nos Freud, isso não qu er d izer ou tra coisa.
G raças à p rópria estru tu ra do desejo hum ano, a via para e la necessita
m en os desvios, a via n orm al, que para o hom em . Pois, para o hom em ,
para que seu fa lo possa serv ir de fu n dam en to ao cam po do desejo , vai
ser p rec iso que e le peça para tê-lo? E exa tam en te de algo assim qu e se
trata, no n íve l do com plexo de castração, é de um a passagem transicional
daquilo que, nele, é o suporte natural, tornado m eio estrangeiro, vacilante,
do desejo , através dessa hab ilitação pela le i; aqu ilo em que esse pedaço,
essa libra de carne vai tornar-se a caução, a lgo por onde e le vai se
designar no lugar onde e le tem de se m an ifestar com o desejo, no in ter io r
do círculo da demanda. Essa preservação necessária do campo da demanda,
que hu m an iza pela le i o m odo de relação do desejo com seu ob jeto , eis
do que se trata, nesse pon to, e o que fa z com que o perigo para o
su jeito seja, não com o se d iz em todos aqu eles desvios que fazem os, há
anos, ao ten tar con tra ria r a análise, que o perigo para o su je ito não
seja de abandono algum da parte do O utro, m as de seu abandono de
su jeito à dem anda. Pois, na m ed id a em que e le v ive, que d esen vo lve a
con stitu ição de sua re lação com o fa lo es tritam en te sobre o cam po da
dem an da, é aí que essa dem an da não tem , p rop riam en te fa lando, fim ;
pois esse fa lo - a inda que seja n ecessário para introduzir, para instaurar
esse cam po do desejo, que e le seja d em an dado - com o vocês sabem ,
não está no poder do O utro, p rop riam en te fa lando, fa ze r d e le o dom ,
no p lano da dem anda.
E na m edida em que a terapêutica não consegue absolutamente resolver,
m e lh or do que tem fe ito , o té rm in o da análise, não con segue fa zê -la
sair do c írcu lo p róprio à dem anda, que ela esbarra, que ela term in a no
fim nessa form a re iv in d ica tór ia , esta form a in term in áve l, u n en d lich e ,
que Freud, em seu ú ltim o artigo, “A a ná lise te rm in á v e l e in te rm in á v e l" ,
assinala com o angústia não reso lv ida da castração, no h om em , com o
Pen isn e id , na m ulher. M as um a justa posição, um a posição corre ta da
fu n ção da dem anda na e fic iê n c ia ana lítica e da m aneira de d irig i-la
poderia ta lvez perm itir-nos, se não tivéssem os quanto a isso tanto atraso,
um a tra so já s u f ic ie n te m e n te d e m o n s tra d o , p e lo fa to de q u e ,
m an ifes tam en te , é som en te nos casos m ais raros que con segu im os nos
deparar com esse térm in o, m arcado por Freud com o ponto de parada
- 2 4 6 -
Lição de 4 de abril de 1962
em sua própria experiência . Perm itisse o céu que chegássem os ali, m esm o
que com o um im passe! Isso p rovaria já ao m en os até onde podem os ir,
en qu an to que aqu ilo que im porta é saber e fe t iva m en te se ir até a li nos
con du z a um im passe ou se poderem os passar ad ian te.
Será p rec iso que, antes de lhes deixar, eu lhes in d iqu e alguns desses
pequenos pontos que lhes darão satisfação, para lhes m ostrar que estamos
no lugar certo, quando nos referim os a algo que esteja em nossa experiência
do n eu ró tico? O que faz, por exem plo , o h is térico ou a neurose obsessiva
no reg istro qu e acabam os de ten ta r constru ir? O que fa zem ambos, um
e outra , nesse lugar do desejo do O utro com o tal? An tes que ca iam os
em suas arm adilhas, ao incitá-los a jogar todo o jogo no plano da demanda,
ao im ag in arm os - o que, aliás, não é um a im agin ação absurda - que
chegarem os, fin a lm en te , a d e fin ir o cam po fá lico com o a in tersecção
de duas frustrações, o que é que eles fazem espontaneam ente? A h istérica
é bem sim ples, o obsessivo tam bém , mas é m en os ev iden te . A h istérica
não tem n ecessidade de ter assistido a nosso sem in ário para saber que
o dese jo do h om em é o desejo do O utro e que, por con segu in te, o O utro
pode perfe itam en te , nessa função do desejo, ela, a h istérica, suplem entá-
la. A h is té r ica v ive sua relação com o ob jeto fom en tan d o o desejo do
O utro, com O m aiúscu lo, por esse objeto. R epo rtem -se ao caso D ora.
C re io ter su fic ien tem en te a rticu lado isso, em todas as m edidas, para
que não haja necessidade de relem brá-lo aqui. Faço apelo s im p lesm en te
à exp e riên c ia de cada um e às operações ditas de in trigan te re fin ada
que vocês podem ver desenvolverem -se em todo com portam ento histérico,
que consiste em sustentar, em seu am bien te im ed iato , o am or de alguém
por um ou tro que é sua am iga e verdade iro ob jeto ú ltim o de seu desejo ;
p e rm an ecen d o sem pre, ev id en tem en te , bem pro funda a am bigü idade
de saber se a situação não deve ser com preen d ida no sen tido inverso .
Por quê? É o que, ev iden tem en te , vocês poderão, na seqü ência de nossa
exposição, ver com o perfe itam en te calculável, pelo simples fato da função
do fa lo, que pode sem pre aqu i passar de um ao ou tro dos dois parce iros
da h istérica . M as isso será v isto por nós m ais p orm en orizadam en te .
E que é que faz ve rd a d e ira m en te o obsessivo com respeito , fa lo
d ire tam en te , ao seu n egóc io com o desejo do O utro? É m ais astucioso,
porque esse cam po do desejo é constituído pela demanda paterna, enquanto
é ela que preserva, que d e fin e o cam po do desejo com o tal, in terd itando-
o. Ora, que e le en tão se v ire sozin h o ! A qu e le que é encarregado de
- 2 4 7 -
A Identificação
sustentar o dese jo no lu gar do ob jeto, na neu rose obsessiva, é o m orto .
O su jeito tem o fa lo , pode m esm o ocas ion a lm en te ex ib i-lo , m as é o
m orto quem é ch am ado a serv ir-se d e le . N ão é à-toa qu e apon te i a
h is tó ria do “H o m em dos ra tos” , a hora no tu rna em que, depo is de ter-
se lon gam en te con tem p lado em ereção no espelho, e le vai à porta de
entrada abrir para o fantasm a do pai, p ed ir-lh e que ve r ifiqu e que tudo
está pronto para o suprem o ato narcís ico que é, para o obsessivo, o desejo.
Aqu i, então, não se espantem vocês que com tais m eios, a angústia só
a ílo re de tem pos em tem pos, que ela não apareça ali o tem po todo, que
ela seja m esm o m uito m ais e m uito m elh or afastada no h is térico que no
obsessivo, já que a com p lacên c ia do O utro é m uito m aior que aquela,
todavia, de um m orto que é sem pre d ifíc il, todavia, m an ter presen te, se
pode dizer. E por isso que o obsessivo, de tem pos em tem pos, cada vez
que não pode ser repetido à saciedade todo o arranjo que lh e perm ite
arranjar-se com o desejo do Outro, vê ressurgir, e v id en tem en te de uma
m an eira m ais ou m en os transbordante, o e fe ito de angústia.
Daí apenas, para voltar um pouquinho para trás, vocês podem com preender
que a h istória fób ica m arca um p rim e iro passo, nessa ten ta tiva que é
p rop riam en te o m odo n eu ró tico de reso lver o p rob lem a do desejo do
O utro, um p rim e iro passo, digo, da m an e ira com o isso se pode resolver.
Esse é um passo, com o todos sabem , que está longe, ev id en tem en te , de
ch egar àquela solução rela tiva da relação de angústia. Bem ao con trário ,
é apenas de um a m an e ira absolu tam en te p recária que essa angústia é
dom inada, vocês sabem, por in term éd io desse objeto cuja am bigü idade já
nos fo i bastante sublinhada para nós, en tre a função pequeno a e a função
pequeno (p. O fator com u m , que constitu i o pequeno (p em todo pequeno a
do desejo, está ali, de algum a m aneira extra ído e revelado. E sobre isso
que salientarei, ressaltarei na próxim a vez, para retom ar a partir da fobia,
para precisar em quê exatam en te consiste essa função do falo.
H o je , grosso m odo, o que vocês vêem ? E que, afina l de con tas, a
solução que p ercebem os do prob lem a da re lação do sujeito com o desejo,
em seu fundo rad ica l, p ropõe-se assim : já que se trata de dem an da e
que se trata de d e fin ir o desejo, d igam o-lo g rosse iram en te : o su jeito
dem an da o fa lo e o fa lo deseja. R ea lm en te , é tão bobo assim . M as é daí,
pelo menos, que se deve partir, com o fórm u la radical para ver efetivam ente
o que, de fato , se dá na exp eriên c ia . Esse m od e lo se m odu la em torno
Lição de 4 de abril de 1962
da relação do sujeito com o falo porquanto, vocês vêem , ele é essencialmente
de n a tu reza id en tifica tó r ia e que, se há algum a coisa que e fe tiva m en te
pode p rovocar su rg im en to da angústia, ligado ao tem or de um a perda,
é o fa lo . Por que não o desejo? N ão há tem or da a fân ise, há o tem or de
p erd er o fa lo , porque só o fa lo pode dar seu cam po próprio ao desejo.
M as agora, que não nos fa lem tam pouco de d e fesa con tra a angústia.
N in gu ém se d e fen d e con tra a angústia, assim com o não há tem or da
a fân ise . A angústia está nos p rin c íp ios das defesas, m as n in gu ém se
d e fen d e con tra a angústia. E v id en tem en te , se lhes d igo que consagrarei
um ano in te iro ao tem a da angústia, isso s ign ifica d izer que não pretendo
dar a vo lta com p leta no assunto hoje; que isso não causa prob lem a. Se
a angústia - é sem pre nesse n íve l que fo i d e fin id o para vocês, quase
carica tu ra lm en te , por m eu p equ en o apólogo, que se situa a angústia -
se a angústia pode tornar-se um signo, é claro que, transform ada em
signo, e la ta lvez não seja com p letam en te a m esm a coisa que a li onde
ten te i colocá -la para vocês, p rim eiram en te em seu ponto essencia l. Há
tam bém um sim u lacro da angústia. N esse n ível, ev iden tem en te, pode-
se ser tentado m in im izar-lh e o a lcance, já que é bem sensível que, se o
su jeito envia a si m esm o signos de angústia, é m an ifestam en te para que
isso seja m ais alegre. Mas não é, contudo, daí que vam os partir para
d e fin ir a função da angústia. E depois, en fim , para dizer, com o p reten d i
u n icam en te fazê-lo hoje, coisas m aciças, que possam os nos abrir a esse
pensam en to que, se Freud nos disse que a angústia é um sinal que passa
no n íve l do eu, é preciso sem pre saber que é um sinal para quem ? N ão
para o eu, já que é no n íve l do eu que e le se produz. E isso tam bém ,
lam en te i m u ito que, em nosso ú ltim o encon tro , essa sim ples observação
não fo i fe ita por n inguém .
.
t
)
.
'
* ( '
I*
LIÇÃO XVII
11 de a b r il 1962
Eu havia anunciado que con tinu aria hoje a fa la r sobre o fa lo. Ora,
não lhes fa la re i sobre e le , ou m elhor, só lhes fa la re i sob essa fo rm a do
o ito in ve rtid o , que não é assim tão tranqü ilizadora . N ão se trata de um
novo s ign ifican te . Vocês vão ver. E ainda do m esm o s ign ifican te que
estou a falar, desde o p rin c íp io do ano. N o entanto, por que reapresentá-
lo com o essencia l? É para renovar com a base topológ ica de que tratamos,
isto é, o que isso quer d izer, a in trodu ção fe ita , este ano, do toro. N ão
está assim tão certo que o que eu disse sobre a angústia tenha sido
bem ouvido. A lguém m u ito s im pático e que gosta de ler, pois é a lguém
do m e io on de estuda-se, observou -m e m u ito oportu n am en te - e d igo
que esco lh o esse exem p lo porque é bastante estim u lan te - que o que
eu disse sobre a angústia com o desejo do Outro abrangia aqu ilo que se
lê em K ierkegaard . N a p rim e ira le itu ra, pois é m esm o verdade, vocês
pensam que eu m e lem brava que K ierkegaard, para fa lar da angústia,
evocou a m ocinh a no m om en to em que, pela p rim eira vez, ela dá-se
con ta de que é desejada. N o entanto, se K ierkegaard o disse, a d iferen ça
com o que eu d igo é, se posso assim d izer, em pregan do um term o
k ierkegaard iano, que eu o rep ito . Se houve a lguém que fe z notar que
nunca é à toa que a gen te d iz: “ Eu o d igo e o rep ito ” , fo i ju stam en te
K ierkegaard . Se se sente a n ecessidade de ressaltar que se repete após
ter d ito , é porque, p rovavelm en te , não é de form a algum a a m esm a
coisa rep e tir e d izer; e é absolu tam en te certo que, se o que eu disse na
ú ltim a ve z tem um sentido, é ju stam en te n isto que o caso levan tado por
- 2 5 1 -
A Identificação
K ierkegaard é algo absolu tam en te particu la r e, com o tal, obscu rece , ao
in vés de esclarecer, o sen tido verdade iro da fórm u la: a angústia é o
desejo do Outro, com o m aiúsculo. Pode acon tecer desse Outro encarnar-
se para a m ocinha, num m om ento de sua existência, em algum vagabundo
qualquer. Isto nada tem a ver com a questão que levan te i na ú ltim a vez
e com a in trodu ção do desejo do O utro com o tal para d ize r que é a
angústia , m ais exa tam en te que a angústia é a sensação desse desejo .
H o je vou, portan to, re to rn ar à m inha v ia deste ano, e tan to m ais
r igo rosam en te porque, na ú ltim a vez, tive de fa zer uma excursão. E é
por essa razão que, m ais r igorosam en te que nunca, vam os trabalhar
com topolog ia . E é p rec iso trabalhar com ela, porque vocês não fazem
m ais do que trabalhar com ela a todo instan te, quero dizer, qu er vocês
sejam lóg icos ou não, qu er vocês saibam ou não o p róp rio sen tido da
pa lavra topo log ia . Por exem plo , vocês u tilizam a preposição ou. Ora, é
bastante notável, mas seguram ente verdadeiro, que o uso dessa con junção
só fo i, no cam po da lóg ica técn ica, da lóg ica dos lógicos, bem articu lada,
bem precisada, bem posta em ev idên cia , nu m a época bastan te recen te ,
recen te dem ais para que, em suma, seus e fe itos já tenham ch egado até
vocês. E é por isso que basta le r o m en or texto an a lítico co rren te , por
exem plo , para ver que, a todo instan te, o pensam en to tropeça, desde
que se trate, não som ente do term o iden tificação , mas m esm o da sim ples
p rática de id en tifica r o que quer que seja do cam po de nossa experiên cia .
E preciso partir dos esquem as, apesar de tudo, digam os, inaba lados no
p en sam en to de vocês, inaba lados por duas razões: p rim eiro , porque
eles rem etem àquilo que chamarei de uma certa incapacidade, propriam ente
falando, típica do pensam ento intuitivo ou, m ais simplesmente, da intuição,
o que qu er d izer das p róprias bases de um a exp eriên c ia m arcada pela
organ ização daqu ilo que se cham a de sen tido visual. Vocês se darão
conta m uito fac ilm en te dessa im potência intu itiva, se eu tiver a fe lic idade
de que, depo is dessa pequ en a conversa, vocês se ponham a co lo ca r
para si m esm os s im p les prob lem as de represen tação sobre o que vou
lhes m ostrar que pode se passar na su p erfíc ie de um toro. Vocês verão
a d ificu lda de que terão para não se em baralharem . E, no en tan to , um
toro é b em sim ples: é um anel. Vocês se em baralharão, aliás, eu tam bém
m e em baralho com o vocês: fo i-m e necessário exercíc io para m e encontrar
a li um pouco e m esm o para dar-m e con ta do que isso sugeria e do que
isso p erm itia fu n dar p ra ticam en te . O ou tro term o está ligado àqu ilo
- 2 5 2 -
Lição de 11 de abril de 1962
(
(
c
(que se cham a de instrução, isto é, que essa espécie de im potência intuitiva,,
fa z-se tudo para encora já-la , para assentá-la, para dar-lhe um cará ter
de absolu to, e isso, ev id en tem en te , com as m elh ores in ten ções . Foi o
que acon teceu , por exem plo , quando, em 1741, Euler, um gran de nom e
na h istória da m atem ática , in trodu ziu seus fam osos círcu los que, saibam
vocês ou não, m u ito fize ra m , de fato, para es tim u lar o ensino da lóg ica
c lássica num certo sen tido que, lon ge de abri-la, só pod ia tender a tornar
in op ortu n a m en te ev id en te a id é ia que dela pod iam fa ze r os s im p les
alunos. A co isa p rodu ziu -se porqu e E u ler havia posto na cabeça - e só
D eus sabe porquê - ensinar a um a princesa, a princesa de Anhalt Dessau.
D u ran te todo um período , ocupou-se m u ito das princesas, a inda nos
ocu pam os com elas, e isso é dep loráve l. Vocês sabem que D escartes
tinha a sua: a fam osa C h ristin e . É um a figu ra h is tó rica de ou tro re levo :
e le m orreu por causa dela. Isso não é assim tão subjetivo; há um a espéc ie
de fed o r m uito particu lar que se destaca de tudo o que envolve a en tidade
p rin cesa ou P rin zess in . Tem os, du rante um período de m ais ou m en os
três sécu los, a lgum a coisa que está dom inada pelas cartas endereçadas
a princesas, as m em órias das princesas, e isso tem um lugar certo den tro
da cu ltu ra . É uma esp éc ie de su p lênc ia daquela D am a cuja fu n ção
ten te i exp lica r-lh es , fu n ção tão d ifíc il de se com preender, tão d if íc il de
se abordar na estru tura da sub lim ação cortês, cu jo ve rd ad e iro a lcan ce
não estou m u ito seguro, a fin a l de contas, de ter-lhes fe ito perceber. N a
verdade, só lhes pude dar a lgum as pro jeções, com o se tenta rep resen ta r
num ou tro espaço figu ras em quatro d im en sões que não se p od e ver.
F iqu e i sabendo, com prazer, que algum a coisa disso chegou a ouvidos
que m e são próx im os e que com eça m a se interessar, em ou tros lugares
a lém daqui, por aqu ilo que poderia ser o am or cortês. Já é um resultado.
D e ixem os de lado a p rin cesa e os em baraços que ela pode ter causado
a Eu ler. E le escreveu -lh e 241 cartas, não u n ica m en te para fa zê - la
com p reen d e r os c írcu los de Euler. Pub licadas em 1775 em Lon dres,
con stitu em um a sorte de corpus do p en sam en to c ien tíf ic o da época . .
Delas, a ún ica coisa que se destaca e fe t iva m en te são esses pequ enos
c írcu los, esses c írcu los de E u ler que são c írcu los com o todos os círcu los;
trata-se s im plesm ente de ver o uso que deles se fez. Serviam para exp licar
as regras do s ilog ism o e, a fina l de contas, a exclusão, a inclusão e depo is
o que se pode cham ar de in tercessão de dois o quê? D e dois cam pos
ap licáve is a quê? Mas, m eu D eus, ap licáve is a m uitas coisas, ap licáve is,
- 2 5 3 - c(
A Identificação
por exem plo, ao cam po onde um a certa proposição é verdadeira, aplicáveis
ao cam po on de um a ce rta re la çã o ex is te , ap licáve is s im p lesm en te ao
cam po on de um ob jeto ex iste .
Vocês vêem que o uso do círcu lo de Euler - se vocês estiverem habituados
à m u ltip lic id a d e das lóg icas tal com o e laboraram nu m im en so es fo rço ,
cu ja m a io r parte está na lóg ica p ropos ic iona l, re lac ion a l e lóg ica das
classes - fo i d istingu ido da m an e ira m ais ú til. N ão posso sequ er son har
em entrar, ev id en tem en te , nos deta lhes que necessitaria dar a d istinção
de tais e laborações. O que quero s im p lesm en te fa ze r reco n h ecer aqu i
é que vocês têm ce rta m en te a lem bran ça de tal ou tal m om en to de sua
e x is tê n c ia em que lh es c h e g o u , sob essa fo rm a de su p o rte , u m a
dem on stração lóg ica qu a lqu er de algum ob jeto com o ob jeto lóg ico , qu er
se tratasse de proposição, re lação , classe, ou até m esm o de ob je to de
e x is tên c ia . T om em os um ex em p lo no n ív e l da ló g ica das c lasses e
rep resen tem os, por exem p lo , p or um p equ en o c írcu lo no in te r io r de
um m aior, os m am íferos em relação à classe dos vertebrados. Isto é
fá c il, e a in da m ais s im ples, porqu e a lóg ica das classes é c e rta m en te
aqu ilo que, no p rincíp io , preparou os cam inhos da m aneira m ais côm oda
para essa e laboração fo rm a l e para que nos reportem os ali a a lgo já
en carn ado num a e laboração s ign ifican te , a da c lass ificação zoo lóg ica
s im p lesm en te , que verd ad e ira m en te dá o m odelo . Só que o un iverso
do d iscurso, com o se d iz com razão, não é um u n iverso zoo lóg ico , e, se
qu iserm os estender as propriedades do universo da classificação zoo lóg ica
a todo o un iverso do d iscu rso, escorrega rem os fa c ilm en te nu m certo
nú m ero de arm adilhas que nos in c itam a co m e te r erros e de ixam m u ito
rap idam en te ouvir o sinal de a larm e do im passe sign ifica tivo . U m desses
in co n ven ien tes é, por exem plo , um uso in con s id erad o da negação. Foi
ju s tam en te num a época recen te que esse uso se achou aberto com o
possível, a saber, ju sto na ép oca em que se fe z a observação de que, no
uso da negação, esse círculo de Euler exterior da inclusão devia desem penhar
um papel essencia l, a saber, que não é abso lu tam en te a m esm a coisa
fa la r sem nen h u m a p rec isão, por exem plo , do que é não-hom em , ou do
que é n ão-h om em no in te r io r dos an im ais. Em outros term os, que para
que a negação faça sentido, um sen tido m ais ou m en os seguro, u tilizáve l
em lóg ica , é n ecessário saber em relação a que con ju n to a lgum a coisa
está sendo negada. Em ou tros term os, se A’ é não A , é p rec iso saber em
quê e le é não A , a saber, aqu i, em B. A negação, vocês a verão - se
- 2 5 4 -
Lição de 11 de abril de 1962
abrirem A ristóte les nesta ocasião - arrastada a toda sorte de d ificu ldades.
Todavia , não é m en os con testá ve l que não se esperou de form a algum a
essas observações, nem tam pou co se fe z o m en or uso desse suporte
fo rm a l, qu ero d ize r que não é n o rm a l fa ze r uso disso para se serv ir da
negação, a saber, qu e o su je ito em seu d iscurso fa z freqü en tem en te
uso da n egação , em casos on d e não há a m en or possib ilidade do m undo
de garan ti-la sobre essa base fo rm a l. D on de a u tilid ad e das observações
que lh es fa ço sobre a n egação , d is tin gu in d o a n egação no n íve l da
en u n ciação , ou com o con stitu tiva da negação no n íve l do enunciado.
Isso qu er d ize r que as le is da negação, ju s tam en te no pon to em que
elas não estão asseguradas por essa in trodu ção com p letam en te decisiva
e que data da d istinção recen te da lóg ica das re la ções com a lóg ica das
classes, que é, em sum a, para nós, absolu tam en te em outra parte e
não ali on de ela encon trou seu equ ilíb rio que tem os de d e fin ir o estatuto
da negação. É um lem brete , um lem brete destinado a esc la recer-lh es
re tro sp ec tivam en te sobre a im portân c ia d isto que, desde o p rin c íp io
do d iscu rso deste ano, su g iro -lh es no que co n ce rn e à orig in a lid ad e
p rim ord ia l, em relação a essa d istinção , da fu n ção da negação.
3
n x
união u x
Vocês vêem , portan to, qu e esses c írcu los de E u le r - não fo i E u ler
que se serv iu deles com esse fim . Foi necessário , depo is dele, que se
in trodu zisse a obra de B oole, depo is a de De M organ , para que isso
fosse p lenam ente articulado. Se retorno a esses círculos de Euler, portanto,
não é porqu e e le p róp rio tenh a fe ito tão bom uso assim deles, mas é
Intersecção
- 2 5 5 -
A Identificação
que é com seu m ateria l, com o uso desses c írcu los que se puderam
fa ze r os p rogressos que se segu iram e dos quais lhes dou ao m esm o
tem po um dos qu e não são os m en ores nem o m en os n o tór io , em todo
caso p a rticu la rm en te in teressante, de apreen são im ed ia ta . E n tre E u ler
e D e M organ o uso desses c írcu los p erm itiu um a s im bo lização que é
tão ú til quanto lhes parece, de resto, im p lic ita m en te fu n d am en ta l, que
repousa na posição desses dois c írcu los que se estru tu ram assim . É o
qu e cham arem os dois c írcu los que se recortam , que são esp ec ia lm en te
im portan tes , por seu va lor in tu itivo , que parecerá a cada um de vocês
in con tes táve l, se lh es fa ço observar que é em torno desses c írcu los que
podem articu lar-se, p rim eiro , duas re la ções que con vém ressaltar bem ,
que são, p rim e iro , a da reun ião . Q ue se trate do que qu er que seja que
en u m ere i há pouco , sua reun ião, é o fa to de que, após a operação da
reun ião , o que é u n ificad o são estes dois cam pos. A op eração dita da
reun ião , que se s im b o liza n o rm a lm en te assim u , é p rec isam en te o que
in trodu ziu esse sím bolo, é, vocês vêem , algo qu e não é de fo rm a algum a
parec ido com a ad ição. É a van tagem desses círcu los, fa ze r sen tir essa
d iferen ça . N ão é a m esm a coisa ad ic ionar, por exem plo , dois c írcu los
separados ou reu n i-los nessa posição. H á um a ou tra relação , que é
ilustrada por esses dois c írcu los que se reco rtam : é a da in tersecção ,
s im bo lizada pe lo sinal n , cuja s ign ifica çã o é com p letam en te d iferen te .
O cam po de in tersecção está com preen d ido den tro do cam po de reunião.
N o que se cham a de álgebra de B oole , m ostra-se que, até pe lo m enos
um certo ponto, essa operação da reu n ião é bastan te análoga à ad ição,
para que se possa simbolizá-la pelo sinal da adição ( + ) . Mostra-se igualm ente
que a in tersecção é estru tu ra lm en te bastan te análoga à m u ltip licação ,
para que se possa s im bo lizá -la pe lo s inal da m u ltip licação (x ) .
G aranto-lhes que faço aqu i um extra to u ltra-ráp ido, destinado a levar
vocês até on de ten h o de levá-los , e m e escu so ju n to àqu eles para quem
tais coisas se apresen tam em toda a sua com p lex idade, quanto às e lisões
que isso com porta , po is é p rec iso que avan cem os ainda m ais lon ge . E,
sobre o pon to p rec iso que ten h o a in trodu zir, o
que nos in teressa é a lgo que. até D e M organ - e
tem os de fica r espantados com um a sem elh an te
om issão não tin h a sido. p rop riam en te fa lan do .
r c > ; ' - ;r . j v i f c c u . c c rs í. iu í í ir r . ír . t ç u t í iessas
• c p e su e ô e v e r i r r . r.:r.vs.T -ietEtn
Lição de 11 de abril de 1962
(.
(
uso absolutamente rigoroso da lógica; é precisamente esse campo constituído
pela extração , na re la ção desses dois c írcu los, da zona de in tercessão .
E con sid era r o que é o produto, quando dois c írcu los se reco rtam , no
n íve l do cam po assim de fin id o , isto é, a reu n ião m enos a in tersecção , é
o que se cham a de d ife ren ça s im étrica . Essa d iferen ça s im étr ica é o
que va i nos reter, o que para nós, vocês verão porquê, é do m ais e levado
in teresse . O term o d ife ren ça s im étrica é aqu i um a den om in ação que
lhes p eço s im p lesm en te que tom em em seu uso trad ic iona l, é assim
que a cham aram . N ão tentem dar um sentido analisável gram atica lm ente
a essa p reten sa sim etria . A d iferen ça s im étr ica quer d ize r o segu in te :
esses cam pos, nos dois c írcu los de Euler, enqu an to d e fin em com o tal
um “o u ” de exclusão. D izen d o respeito a esses dois cam pos [recortados],
a d ife ren ça s im étrica m arca o cam po tal com o está constru ído, se vocês
dão ao ou não o sen tido a lternativo , e que im p lica a poss ib ilidade de
um a id en tidade loca l en tre os dois term os, e o uso corren te do term o
ou, que fa z com que, de fato, o term o ou se ap lique aqu i m u ito bem ao
cam po da reun ião . Se um a coisa é ou A ou B, é assim que o cam po de
sua extensão pode ser desenhado, a saber, sob a form a p rim e ira em
que esses dois cam pos estão recobertos. Se, ao con trário , é exc lu s ivo , A
ou B, é assim que podemos simbolizá-lo, a saber, que o campo da intersecção
está exc lu ído .
ou A ou B v e l A ou B é exc lu s ivo
Isso deve nos levar a um retorno a uma re ílexão que d iz respe ito
àqu ilo que supõe in tu itivam en te o uso do c írcu lo com o base, com o
suporte de algo que se fo rm a liza em função de um lim ite. Isso se d e fin e
m u ito su fic ien tem en te pe lo fato de que, num plano de uso corren te , o
que não qu er d izer um p lano natural, um p lano fabricáve l, um plano
que en trou com p letam en te no nosso un iverso de instrum entos, a saber,
um a fo lh a de papel - v iv íam os m u ito m ais em com panh ia de fo lh as de
papel que em com panh ia de toros. D eve haver razões para isso, mas,
en fim , razões que não são ev iden tes. Por que, afinal, o hom em não
- 2 5 7 -
A Identificação
fab rica r ia m ais toros? A liás, durante sécu los, o que tem os a tu a lm en te
sob a fo rm a de fo lh as eram rolos, que d eviam ser m ais fam ilia res com a
n oção do vo lu m e em ou tras épocas que na nossa. E n fim , há ce rta m en te
um a razão para que essa su p erfíc ie p lana seja a lgo que nos baste e,
m ais exa tam en te , algo com que nos bastem os. Essas razões devem estar
nalgum lugar. E, éu o ind icava há pouco, não se poderia atribuir dem asiada
im portância ao fato de que, con trariam ente a todos os esforços dos físicos,
assim com o dos filóso fos, para nos p ersu ad irem do con trá rio , o cam po
visual, por m ais que se diga, é essen c ia lm en te em duas d im en sões.
N u m a fo lh a de papel, num a superfíc ie p ra ticam en te sim ples, um círcu lo
desen h ado de lim ita da m an eira m ais c lara um in te r io r e um exterior.
E is todo o segredo, todo o m istério , o m ecan ism o sim ples do uso que
d e le é fe ito na ilu stração eu leriana da lóg ica .
C o lo co a vocês a segu in te questão: o que a con tecer ia se Euler, ao
in vés de desenhar esse c írcu lo , desenhasse m eu o ito in vertid o , este
com que quero hoje en tre te r vocês? A p a ren tem en te , é apenas um caso
particu lar do círcu lo com o cam po in terior que e le d e fin e e a possib ilidade
de te r um outro c írcu lo no in terior. S im p lesm en te o c írcu lo in te r io r
toca - eis o que, à p rim e ira vista, alguns poderão d ize r-m e - o c írcu lo
in te r io r toca no lim ite con stitu ído pelo c írcu lo exterior. Só que não é,
apesar de tudo, exa tam en te isso, no sen tido de que está b em claro, da
m a n e ira com o eu o d esen h o , que a lin h a aqu i do c írcu lo e x te r io r
con tin u a na linha do c írcu lo in ter io r para se reen co n tra r aqu i. E então,
s im p lesm en te para m arcar logo em seguida o in teresse , o a lcan ce dessa
fo rm a tão sim ples, eu lhes sugeriria que as observações que in trodu zi
nu m ce rto ponto de m eu sem in ário , qu ando in trodu zi a fu n ção do
s ign ifican te , consistiam no segu in te: em lem brar-lh es o paradoxo, ou
pretenso paradoxo, in troduzido pela classificação dos conjuntos, lem brem -
se, que não se com p reen d em eles p róprios. L em b ro -lh es a d ificu lda de
- 2 5 8 -
Lição de 11 de abril de 1962
que e les in tro du zem : d evem os in c lu ir ou não esses con juntos que não
se com p reen d em eles m esm os, no con junto dos con juntos que não se
com p reen d em e les m esm os? Vocês vêem aí a d ificu ldade. Se sim , é,
portan to, que eles se com p reen d erã o e les m esm os nesse con junto dos
con juntos que não se com p reen d em eles m esm os. Se não, acham o-nos
d iante de um im passe análogo. Isso é fac ilm en te resolvido, com a sim ples
con d ição de que se perceba pe lo m enos o segu in te - é a solução, aliás,
que deram os form alistas, os lóg icos - que não se pode falar, digam os da
m esm a m aneira , dos con juntos que se com preendem eles m esm os e dos
con juntos que não se com p reen d em eles m esm os.
EE: conjuntos que se copreendem e les m esm os
Ell::conjuntos que não se com preendem e les m esm os
Em outras palavras, que os exc lu am os com o tais da d e fin ição sim ples
dos c on ju n to s , qu e c o lo q u e m o s , a fin a l, qu e os co n ju n to s qu e se
com p reen d em eles m esm os não podem ser co locados com o con juntos.
Quero d izer que, longe que essa zona in terior de objetos tão consideráveis
na con stru ção da lóg ica m od ern a com o os con jun tos, lon ge de que
um a zon a in te r io r d e fin id a por essa im agem do o ito in ve rtid o pelo
recobrim en to ou pelo redobram ento , nesse recobrim en to de uma classe,
de um a relação, de um a propos ição qua lquer por si m esm a, por seu
a lcan ce na segunda potên cia , lon ge que isso d e ixe num caso n o tór io a
classe, a proposição, a relação de um m odo geral, a categoria no in ter io r
de si m esm a de um m odo algo m ais pesada, m ais acentuada, isso tem
por e fe ito redu z i-la à h om ogen e id ad e com aqu ilo que está no exterior.
Com o isto é con ceb íve l? Porque, en fim , deve-se de toda m aneira d izer
que, se é assim que a questão se apresenta, a saber, en tre todos os
con juntos um con ju n to que se recobre a e le m esm o, não há nenhum a
razão a p rio ri de não fa ze r d e le um con junto com o os outros. Vocês
d e fin em com o con junto , por exem plo , todas as obras que d izem respeito
às hu m an idades, isto é, às artes, às c iências, à etnografia . Vocês fa zem
um a lista. As obras que são obras fe itas sobre a questão do que se deve
c lass ificar com o hu m an idades farão parte do m esm o catálogo, isto, que
- 2 5 9 -
A Identificação
o que acabo de d e fin ir ao articu lar o títu lo “obras que d izem resp e ito às
hu m an idades” , fa z parte do que há a catalogar. Com o podem os con ceber
qu e algo que se co lo ca assim com o se redobran do sobre si m esm o na
d ign idade de uma certa categoria , possa p ra ticam en te nos leva r a uma
an tin om ia , a um im passe lóg ico tal com o som os, ao con trário , forçados
a reje itá -lo? E is a lgum a coisa que não é assim de tão pouca im portân c ia
com o se poderia crer, porqu e tem os visto os m elh ores lóg icos ve rem aí
um a espéc ie de fracasso, de obstáculo, de pon to de vacilação de todo o
e d ifíc io form a lista , e não sem razão. Eis, no entanto, algo que fa z à
in tu ição um a sorte de ob jeção maior, sozin ha inscrita , sensível, v is íve l
na própria form a desses dois círcu los que se apresentam , na perspectiva
eu lerian a , com o inclusos um em relação ao outro.
E ju s tam en te em c im a disso que vam os ve r que o uso da in tu ição de
rep resen tação do toro é com p letam en te u tilizáve l. E, dado que vocês
sen tem bem , im agino, aqu ilo de que se trata, a saber, um a certa relação
do s ign ifican te con sigo m esm o, eu lho disse, é na m ed ida em que a
d e fin ição de um conjunto aproxim ou-se cada vez mais de uma articu lação
puram ente sign ificante que ela conduziu a esse impasse. É toda a questão,
pe lo fa to de que se trata para nós de pôr em p rim eiro p lano qu e um
s ign ifican te não poderia s ign ifica r-se a si m esm o. D e fato, é um a coisa
excessivamente besta e simples esse ponto tão essencial de que o significante,
en qu an to e le pode serv ir a se s ign ifica r a si m esm o, deve co loca r-se
com o d ife ren te de si m esm o. E isso que se trata de s im bolizar, em
p rim e iro lugar, porque é tam bém isso que vam os encontrar, a té um
ce rto pon to de extensão que se trata de determ inar, em toda a estru tura
subjetiva até o desejo, in c lusive . Quando um dos m eus obsessivos, ainda
m u ito recen tem ente, após ter desenvolvido todo o refinam en to da c iência
de seus exercícios para com objetos fem in inos aos quais, com o é conhecido
nos ou tros obsessivos, se posso dizer, e le con tin u a ligado por aqu ilo
que se pode cham ar de um a in fid e lid ad e constan te: ao m esm o tem po
im possib ilidade de abandonar qua lquer um desses ob jetos e ex trem a
d ificu ldade de m an tê-los todos jun tos, e, quando e le acrescen ta que é
m uito ev iden te que nessa relação [re la tio n ], nesse ra pport tão com plicado
que n ecess ita este tão a lto re fin am en to té cn ico , se posso d izer, na
m anutenção de relações que, em princípio, devem perm anecer exteriores
um as às outras, im perm eáve is , se se pode dizer, um as às ou tras e no
en tan to ligadas, que, se tudo isso, m e d iz e le , não tem ou tro fim senão
- 2 6 0 -
(
d e ixá -lo in tac to para um a satis fação con tra a qual aqu i e le tropeça, e la
deve portan to, achar-se em ou tro lugar, náo apenas num futuro sem pre
recuado, m as m an ifes tadam en te num ou tro espaço, posto que dessa
in ta c titu d e e de seu fim e le é incapaz, no fin a l das contas, de d izer
sobre o quê, com o satisfação, isso pode desembocar. D e qualquer m aneira,
tem os aqu i sensível algo que, para nós, levan ta a questão da estru tura
do desejo da m aneira m ais quotid iana.
V oltem os a nosso toro e in screvam os n e le nossos c írcu los de Euler.
Isso va i e x ig ir que se faça, d escu lpem -m e, um p equ en in o re to rn o que
Lição de 11 de abril de 1962
não é, por m ais que possa p arecer a a lguém que en trasse pela p rim e ira
vez em m eu sem in ário , um retorno g eo m étr ico - e le o será ta lvez no
fin a l, m as in c id en ta lm en te - que é, p rop riam en te fa lando, topo lóg ico .
N ão há necessidade algum a de que esse toro seja um toro regular, n em
um toro sobre o qual possamos tomar medidas. E uma superfície constituída
segundo certas re la ções fu n dam en ta is que serei levado a reco rdar para
vocês, m as, com o não quero parecer ir lon ge dem ais do que é o cam po
(
(
(
(
(
(
(
í
de nosso in teresse , vou -m e lim ita r às coisas que já in trodu zi e que são
m u ito sim ples. F iz vocês observarem : sobre um a su perfíc ie tal, podem os
d escrever esse tipo de c írcu lo [1], que é aqu ele que já con o te i para
vocês com o redu tíve l, aqu ele que, se e le é represen tado por um pequeno
barbante que passa no fim por uma argola, eu posso, ao puxar esse
barbante, redu z i-lo a um ponto, ou, m elh or d izen do, a zero. F iz vocês
observarem que há duas espéc ies de ou tros c írcu los ou laços, qu a lqu er
que seja sua extensão, pois p od eria tam bém , por exem plo , aqu ele ali
[2], ter essa form a [2 ’ ]. Isto quer dizer, um círcu lo que atravessa o buraco,
qu a lqu er que seja a sua form a m ais ou m en os fech ada, m ais ou m en os
c- 261 -
A Identificação
aberta. É isso o que o d e fin e : e le atravessa o buraco, passa p e lo ou tro
lado do buraco. Está aqu i rep resen tado em linh as pon tilhadas, ao passo
qu e lá está rep resen tad o em linh a cheia . É isso que s im bo liza : esse
c írcu lo não é redu tível, o que quer d izer que, se vocês o supõem rea lizado
por um barbante passando sem pre por esse pequ eno arco que nos serviria
para fechá-lo, não podem os reduzi-lo a algo de punctiform e; e le continuará
sem pre, qualquer que seja sua c ircun ferência , no centro, a c ircu n ferênc ia
daquilo que se pode cham ar de espessura do toro. Esse c írcu lo irredutível,
do pon to de vista que nos in teressava há pouco, a saber, da d e fin içã o
de um in te r io r e de um exterior, se m ostra de um lado uma res is tên c ia
particu lar, algo que, em re lação aos ou tros c írcu los, con fe re - lh e um a
d ign idade em in en te , sobre esse ou tro pon to e is que de rep en te e le va i
aparecer s ingu larm ente despojado das propriedades do p receden te ; pois,
se esse c írcu lo de que lh es fa lo, vocês o m ateria liza rem , por exem p lo ,
por um corte de tesoura, o que vocês ob terão? D e m aneira nen hu m a,
com o no ou tro caso, um p equ en o pedaço que se vai e em segu ida o
resto do toro. O toro con tin u a rá bem in te iro , in tacto sob a fo rm a de um
tubo ou de uma m anga de cam isa.
Se, por ou tro lado, vocês tom arem um ou tro tipo de c írcu lo [3], aqu ele
do qual já lhes fa le i, aqu e le que não é o que atravessa o buraco, mas
que lh e dá a volta, aqu ele se acha na m esm a s ituação que o p reced en te ,
quanto à irred u tib ilid ad e . E le se acha igu a lm en te na m esm a situação
que o p receden te , no que d iz respe ito ao fa to de que e le não basta para
d e fin ir um in terior, n em um exterior. D ito de ou tra form a : que se vocês
o seguem , esse c írcu lo , e se vocês abrem o toro com a ajuda de um a
tesoura, vocês terão no fim o quê? Ora, a m esm a coisa que no caso
p reced en te : tem a fo rm a de um toro, mas é um a fo rm a que só apresen ta
uma d iferen ça intu itiva, que é com p letam en te essen cia lm en te a m esm a,
- 2 6 2 -
Lição de 11 de abril de 1%2
do pon to de vista da estrutura. Vocês têm sem pre, depois dessa operação,
com o no p rim e iro caso, um a m anga de cam isa, s im p lesm en te é uma
m anga m ais cu rta e m ais larga. Vocês têm um cin to , se qu iserem , m as
não há d ife ren ça essen cia l en tre um c in to e um a m anga, do pon to de
v ista topo lóg ico : ch am em -n o tam bém de fa ixa , se p re ferirem .
E is-nos, pois, em presen ça de dois tipos de c írcu los que, desse pon to
de vista, aliás, fa zem um só, que não d e fin em um in ter io r e um exterior.
Faço vocês observarem in c id en tem en te que, se vocês cortam o toro
sucessivam ente seguindo um e outro [círculo], nem por isso vocês chegarão
a fa ze r aqu ilo de que se trata e que vocês ob têm , porém , im ed ia tam en te
com o ou tro tipo de c írcu lo , o p rim e iro que lhes desen h e i [1], a saber,
dois pedaços. Ao con trá rio , o toro não apenas fica in te ir in h o , mas era,
na p rim e ira ve z que eu lhes fa lava, um ap la in am en to resu ltante disso
e qu e n os p e rm ite s im b o liz a r x
even tu a lm en te , de um a m aneira
particu la rm en te côm oda, o toro
co m o um re tâ n g u lo qu e vo c ê s
podem , puxando um pouco, abrir
com o um a pe le presa pelas quatro x ’
pontas; d e fin ir as p rop riedades de corresp on dên cia dessas bordas uma
com a ou tra , de corresp on dên cia tam bém de seus vértices, os quatro
vé rtices reu n in do -se num ponto, e ter assim , de m aneira m u ito m ais
acess íve l a suas facu ldades de in tu ição ord inária , um m eio de estudar
o que se passa g eo m etr icam en te sobre o toro . Isto é, haverá um desses
tipos de c írcu lo que se rep resen ta rá por uma linh a com o essa [2 ], um
outro tipo de círcu los por linhas com o essa [3] represen tando dois pontos
opostos [x -x ’ , y-y ’], de fin idos de m aneira prévia com o sendo equ iva lentes
sobre o que se cham a de bordas da su perfíc ie desdobrada, ap lainada, o
ap la in am en to , com o tal, sendo im possíve l, já que não se trata de uma
su p erfíc ie que seja m etr ica m en te id en tific á ve l a um a su perfíc ie plana,
rep ito -o , pu ram en te m etricam en te , não topo log icam en te . A on de isso
nos leva? O fa to de que duas secções dessa espéc ie sejam possíveis,
aliás, com n ecessidade de se reco rta r uma ou ou tra sem fragm en tar de
fo rm a a lgum a a su p erfíc ie , d e ixan do-a in te ira , deixando-a com o uma
só fa ixa, se posso dizer, isso basta para d e fin ir um certo gênero de uma
superfíc ie . Todas as superfíc ies estão longe de ter gênero. Se vocês fazem ,
- 263 -
A Identificação
particu larm ente, um a tal secção sobre um a esfera, vocês sem pre terão
dois pedaços, qu a lqu er que seja o c írcu lo . E isso para nos levar a quê?
N ão façam os m ais um a só secção , m as duas secções na base ún ica do
toro. O que vem os aparecer? Vem os aparecer algo que c e rta m en te vai-
nos espantar im ed ia tam en te , é, a saber,
que, se os dois círcu los se recortam , o cam po
d ito da d i fe r e n ç a s im é tr ic a e x is te
p e rfe itam en te . Será que, por causa disso,
podem os d izer que ex iste tam bém o cam po
da in tersecção? A ch o que essa figu ra , tal
- com o está con stru ída , é su fic ien tem en te
acessível à in tu ição de vocês para que vocês
com preen dam bem , de im ed ia to , que tal
cam po não ex iste . É, a saber, que esse algo
que seria in terseçã o , mas que não o é, e
que, d igo, para o o lh o - pois, e v id en tem en te , não se pode cog ita r um só
instan te que essa in tersecção ex ista - m as que, para o o lho, e tal com o
lhes ap resen te i assim , nessa figu ra , tal com o ela está desenhada, se
acharia ta lvez em algum lugar aqu i [1J nesse cam po p e r fe ita m en te
con tinu ado de um só b loco, de um só pedaço , com esse cam po ali [2]
que poderia analogicam ente, da m aneira m ais grosseira para uma intu ição
ju s tam en te habituada a se p ren der às coisas que se passam u n icam en te
no plano, co rresp on der a esse cam po ex te rn o on de poderíam os defin ir,
em relação a dois c írcu los de E u le r que se reco rtam , o cam po de sua
negação; a saber, se aqu i tem os o c írcu lo A, e aqui o c írcu lo B, aqui
tem os A, negação de A e tem os aqui B, negação de B, e há algo a form ular,
no que diz respeito à intersecção deles nesses campos exteriores eventuais.
A l n B I
- 264 -
..,„1
iA qu i vem os, pois, ilu strado da m aneira m ais s im ples pela estru tura (
do toro , isso: que algo é possível, algo que se pode articu lar assim : dois
cam pos qu e se reco rta m , poden do, com o tais, d e fin ir sua d iferen ça
en qu an to d ife ren ça s im étrica , m as que não deixam de ser dois cam pos '
dos quais se pode d ize r qu e não podem reu n ir-se e que não podem ,
tam pouco, recobrir-se ; em outros term os, que não podem n em serv ir a
um a fu n ção de ou ...ou ..., n em serv ir a uma fu nção de m u ltip lica ção
por si mesma. L iteralm ente, eles não podem se retomar à segunda potência,
não podem re fle t ir -se um pe lo ou tro n em um no outro, e les não têm
in terseçã o , sua in tersecçã o é exc lusão de les m esm os. O cam po on d e se
esperava a in tersecção é o cam po on de se sai daqu ilo que os con cern e ,
on de se está no não-cam po.
Isso é tanto m ais in teressan te que, na
representação desses dois círculos, podemos
su b s titu ir n osso o ito in v e r t id o de qu e
falávamos há pouco. Encontramo-nos, então,
d ian te de um a fo rm a que para nós é ainda
m ais sugestiva. Porque ten tem os lem brar-
n os d a q u ilo c o m qu e eu p e n s e i
im ediatamente com parar esses círculos, esses
c írcu los que dão a vo lta no buraco do toro:
a algo, eu lhes disse, qu e tem re lação com
o objeto m eton ím ico, com o objeto do desejo
en qu an to tal. O qu e é esse o ito in vertid o ,
esse c írcu lo que se re tom a a si m esm o no
in te r io r de si m esm o? O que é, senão um
c írc u lo que, no lim ite , se red ob ra e se
recom p õe , que p e rm ite s im bo lizar - posto
que se trata de e v id ên c ia in tu itiva , e os
c ír c u lo s e u le r ia n o s n os p a re c e m
particularmente convenientes para uma certa
s im b o liz a ç ã o do l im it e - qu e p e rm ite
simbolizar esse lim ite, enquanto ele se retoma
a si m esm o, se id en tific a a si m esm o. Reduzam cada vez m ais a d istância
que separa a p rim eira argola, digam os, da segunda, e vocês têm o c írcu lo
que se ap reen de a si m esm o. Será que há, para nós, ob jetos que tenham
essa natureza, a saber, que subsistem u n icam en te nessa apreen são d e (
Lição de 11 de abril de 1962
- 265 -(
(
A Identificação
aberta. É isso o que o d e fin e : e le atravessa o buraco, passa pe lo ou tro
lado do buraco. Está aqu i rep resen tado em linh as pontilhadas, ao passo
que lá está rep resen tad o em linh a cheia . É isso que s im bo liza : esse
c írcu lo não é redu tível, o que quer d izer que, se vocês o supõem rea lizado
por um barbante passando sem pre por esse pequeno arco que nos serviria
para fechá-lo, não podem os reduzi-lo a algo de punctiform e; e le continuará
sem pre, qualquer que seja sua c ircun ferência , no centro, a c ircu n ferênc ia
daquilo que se pode cham ar de espessura do toro. Esse c írcu lo irredu tíve l,
do pon to de vista que nos in teressava há pouco, a saber, da d e fin içã o
de um in te r io r e de um exterior, se m ostra de um lado uma res is tên c ia
particu lar, algo que, em relação aos ou tros c írcu los, con fe re - lh e um a
d ign idade em in en te , sobre esse ou tro pon to e is que de rep en te e le vai
aparecer s ingu larm en te despojado das propriedades do p receden te ; pois,
se esse c írcu lo de que lhes fa lo, vocês o m ateria liza rem , por exem p lo ,
por um corte de tesoura, o que vocês ob terão? De m aneira nen hu m a,
com o no ou tro caso, um pequ en o pedaço que se vai e em segu ida o
resto do toro. O toro con tin u a rá bem in te iro , in tac to sob a fo rm a de um
tubo ou de uma m anga de cam isa.
Se, por ou tro lado, vocês tom arem um ou tro tipo de c írcu lo [3], aqu ele
do qual já lhes fa le i, a qu e le que não é o que atravessa o buraco, mas
que lh e dá a volta, aqu ele se acha na m esm a s ituação que o p reced en te ,
quanto à irred u tib ilid ad e . E le se acha igu a lm en te na m esm a s ituação
que o p receden te , no que d iz respeito ao fa to de que e le não basta para
d e fin ir um in terior, nem um exterior. D ito de ou tra form a: que se vocês
o seguem , esse c írcu lo , e se vocês abrem o toro com a ajuda de um a
tesoura, vocês terão no fim o quê? Ora, a m esm a coisa que no caso
p reced en te : tem a fo rm a de um toro, m as é um a form a que só apresen ta
uma d iferen ça intu itiva, que é com p letam en te essen cia lm en te a m esm a,
- 2 6 2 -
Lição de 11 de abril de 1962
do pon to de vista da estrutura. Vocês têm sem pre, depois dessa operação,
com o no p rim e iro caso, um a m anga de cam isa , s im p lesm en te é um a
m anga m ais cu rta e m ais larga. Vocês têm um cin to , se qu iserem , m as
não há d ife ren ça essen cia l en tre um c in to e um a m anga, do ponto de
vista topo lóg ico : ch am em -n o tam bém de fa ixa , se p re ferirem .
E is-nos, pois, em presen ça de dois tipos de c írcu los que, desse ponto
de vista, aliás, fa zem um só, que não d e fin em um in te r io r e um exterior.
Faço vocês observarem in c id en tem en te que, se vocês cortam o toro
sucessivam ente seguindo um e outro [círculo], nem por isso vocês chegarão
a fa ze r aqu ilo de que se trata e que vocês obtêm , porém , im ed ia tam en te
com o ou tro tipo de c írcu lo , o p rim e iro que lhes d esen h ei [1], a saber,
dois pedaços. A o con trá rio , o toro não apenas fica in te ir in h o , m as era,
na p r im e ira ve z que eu lhes fa lava, um ap la in am en to resu ltante disso
e qu e n os p e rm ite s im b o liz a r x
even tu a lm en te , de uma m aneira
p a rticu la rm en te côm oda, o toro
co m o um re tâ n g u lo qu e vocês
podem , puxando um pouco, abrir
com o um a pe le presa pelas quatro x ’
pontas; d e fin ir as p rop riedades de co rresp on dên cia dessas bordas uma
com a ou tra , de co rresp on dên cia tam bém de seus vértices , os quatro
v é rtic es reu n in do -se num pon to, e ter assim , de m aneira m u ito m ais
acess íve l a suas facu ldades de in tu ição ord inária , um m eio de estudar
o que se passa g eo m etr icam en te sobre o toro. Isto é, haverá um desses
tipos de c írcu lo que se rep resen tará por um a linh a com o essa [2 ], um
ou tro tipo de círcu los por linhas com o essa [3] represen tando dois pontos
opostos [x -x ’ , y-y ’], de fin idos de m aneira p révia com o sendo equ iva lentes
sobre o que se cham a de bordas da su p erfíc ie desdobrada, ap lainada, o
ap la in am en to , com o tal, sendo im possíve l, já que não se trata de uma
su p erfíc ie que seja m etricam en te id en tific á ve l a um a su perfíc ie plana,
rep ito -o , pu ram en te m etr icam en te , não topo log icam en te . A on de isso
nos leva? O fa to de que duas secções dessa espéc ie sejam possíveis,
aliás, com n ecessidade de se reco rta r uma ou ou tra sem fragm en tar de
fo rm a a lgum a a su p erfíc ie , d e ixan do-a in te ira , deixando-a com o uma
só faixa, se posso dizer, isso basta para d e fin ir um certo gênero de uma
superfíc ie . Todas as superfíc ies estão longe de ter gênero. Se vocês fazem ,
- 2 6 3 -
A Identificação
sua au tod iferen ça? Pois, de duas coisas, um a: ou eles a ap reen dem ou
não a ap reen dem ... M as há uma coisa, em todo caso, que tudo qu e se
passa nesse n íve l da apreensão im p lica e necessita , é que esse algo
exclu i toda reflexão desse objeto sobre si m esm o. Q uero dizer, suponham
que é do ob jeto a qu e se trate - com o já in d iqu e i, que era aqu ilo para
qu e aqu eles c írcu los iam servir - isso qu er d ize r que a2, o cam po assim
d e fin id o , é o m esm o cam po que esse que está ali, ou seja, não a ou - a.
Suponham , por enqu an to , não disse que estava dem onstrado, d igo que
lhes fo rn eço hoje um m odelo , um suporte in tu itivo para a lgo qu e é
p recisam en te aquilo de que precisamos, no que d iz respeito à constitu ição
do desejo. Ta lvez lh es pareça m ais acessíve l, m ais im ed ia tam en te ao
alcance de vocês fa zer disso o símbolo da au to-d iferença do desejo consigo
p róp rio , e o fa to de que é p rec isam en te no desdobram en to sobre si
m esm o que vem os ap arecer o que e le en cerra , se esgueira e foge em
d ireção ao que o en vo lve . Vocês dirão: pare, de ixe a coisa por aqui,
pois não é rea lm en te o desejo que en ten do s im bolizar pelo dup lo laço
desse o ito in terior, m as algo que con vém m u ito m ais à con ju n ção do
ob jeto a, do ob jeto do desejo , com o tal, con sigo m esm o.
Para que o desejo, e fetivam ente, seja in te ligen tem en te suportado nessa
r e fe r ê n c ia in tu it iv a à su p e r fíc ie do to ro , c o n vém fa ze r e n tra r ali,
e v id en tem en te , a d im en são da dem anda. Essa d im ensão da dem anda,
eu lhes disse, por ou tro lado, que os c írcu los en cerran do a espessura do
toro , com o tal pod iam serv ir m u ito in te lig iv e lm en te para rep resen tá-la ,
e que algo - aliás, que é em parte con tin gen te , quero dizer, ligado a
um a percepção in teiram en te exterior, visual, ela própria dem asiadam ente
m arcada pela in tu ição com um para não ser re fu táve l, vocês verão , mas
en fim - tal com o vocês são forçados a represen tar o toro, a saber, algo
com o esse anel, vocês vêem fa c ilm en te quão com odam en te o que se
- 2 6 6 -
Lição de 11 de abril de 1962
passa na sucessão desses c írcu los capazes de se segu ir de algum a form a
em h é lice , e segundo um a rep e tição que é a do fio em torno da bobina,
quão com od am en te a dem anda, em sua repetição , em sua iden tidade e
d istinção necessárias, seu d esen ro la r e seu re torn o sobre si m esm a, é
a lgo que con segue fa c ilm en te ter com o suporte a estru tura do toro.
N ão é isso que p re ten do ho je rep e tir m ais um a vez. A liás, se eu só
fizesse repeti-lo , aqui, seria in te iram en te in su fic ien te . E, ao con trário ,
a lgo para o qual gostaria de cham ar a atenção de vocês, a saber, esse
c írcu lo p riv ileg iado que é con stitu ído por isso que é não apenas um
c írcu lo que dá a volta em torno do buraco cen tra l, m as que é tam bém
um c írcu lo que o atravessa. Em outros term os, que e le é con stitu ído
p o r um a p ro p r ie d a d e to p o ló g ic a que
con fu n de , que ad ic ion a o laço constitu ído
em torno da espessura do toro com aquele
que se faria por uma volta feita, por exemplo,
em torno do buraco in terior. Essa espécie
de la ç o é, para n ós , de um in te re s s e
in te ira m en te p riv ileg iado , pois é e la que
nos perm itirá suportar, im aginar as relações
com o estru tura is da dem anda e do desejo.
Vejamos, com efeito, o que se pode produzir,
no que d iz respe ito a tais laços: observem
que pode haver alguns assim constituídos, que um outro que lhe é v iz inh o
se com p leta , retorna sobre si m esm o, sem , de fo rm a algum a, cortar o
p rim eiro . Vocês vêem , dado o que ten te i articular, desenhar, a saber, a
m an e ira com o isso se passa de ou tro lado desse ob jeto que supom os
m aciço , porqu e é assim que vocês o in tu íram tão fac ilm en te , e que
ev id en tem en te não o é, a linha do c írcu lo [1] passa aqui, a outra linha
[2] passa um pouco m ais lon ge. N ão há nenhum a espéc ie de in terseção
desses dois c írcu los. Eis duas dem andas que, im p lican do in te iram en te
o c írcu lo cen tra l com o que e le s im boliza - ou seja, o ob jeto - e em que
m edida e le está efetivam ente integrado na demanda; essas duas demandas
não com portam nenhum a espéc ie de cru zam en to, nenhum a espéc ie de
in terseçã o e m esm o nen hu m a espéc ie de d ife ren ça articu láve l en tre
elas, em bora ambas tenham o m esm o objeto in c lu ído em seu perím etro .
Ao contrário, há um outro tipo de circuito, este qüe aqui passa efetivamente
do ou tro lado do toro, m ais lon ge de se reu n ir a si m esm o no ponto de
- 2 6 7 -
A Identificação
on de partiu , com eça aqu i um a outra curva , para v ir um a segunda vez
passar aqu i e re to rn ar a seu ponto de partida. A ch o que vocês captaram
a co isa em questão; trata-se de nada m en os que de algo abso lu tam en te
equ iva len te à fam osa curva do oito in ve rtid o de que lhes fa le i, há pouco.
A qu i, as duas laçadas que rep resen tam a re iteração , a red u p licação da
dem an da e com portam então esse cam po de d ife ren ça de si m esm a, de
au tod iferen ça , que é aqu ilo que ressa ltam os há pouco,
aqui encontram os o m eio de simbolizar de uma m aneira sensível, no nível
da própria demanda, uma condição para que ela sugira, em toda a sua
am bigüidade e de uma m aneira estritam ente análoga à m aneira com o é
sugerida na reduplicação de há pouco do objeto do desejo sobre si m esm o, a
dim ensão central constituída pelo vazio do desejo. Tudo isso, só trago a
vocês corno uma espécie de proposta de exercíc io , de exercícios mentais, de
exercícios com os quais vocês têm de se fam iliarizar, se quiserem poder, no
toro, encontrar o • alor m etafórico que lhes darei, quando tiver, em cada
caso, quer se trate ' obsessivo, do histérico, do perverso, até m esm o do
esqu izofrên ico, de articular a relação entre o desejo e a demanda.
É por isso que é sob outras form as, sob a form a do toro desdobrado,
ap lainado, o que lhes m ostrei há pouco, que vou tentar m ostrar a vocês
a que correspondem os diversos casos que evoqu e i até agora, a saber, os
dois p rim eiros círcu los, por exem plo, que eram círcu los que faziam o
buraco centra l e que se recortavam constitu indo, propriam ente falando,
a m esm a figura de d iferen ça sim étrica que a dos círcu los de Euler. Eis o
qu e isso dá no toro esticado, certam ente, dessa m aneira figurada, m ais
satis fatória que a que vocês viam há pouco, porque vocês podem tocar
com o dedo o fato de que não há sim etria , d igam os, en tre os quatro
cam pos dois a dois, tal com o são d e fin idos pelo cru zam en to dos dois
- 2 6 8 -
Lição de 11 de abril de 1962
círcu los. Vocês teriam podido, há pouco, d izer a si m esm os, e certam ente
de um a m aneira que não teria sido um sinal de pouca atenção, que, ao
desenhar as coisas assim e ao dar um va lor p riv ileg iado ao que cham o,
aqui, de d iferen ça s im étrica , tudo o que faço é bastante arbitrário, já
que os dois outros campos, que fiz vocês verem que se confundem, ocupavam,
ta lvez, em relação a esses dois, um lugar s im étrico. Vocês vêem , aqui,
que ta l não se dá, a saber, que os cam pos d e fin id os p or esses dois
setores, de qu a lqu er m odo que vocês os unam - e vocês p oderiam fazê-
lo - não são, de fo rm a algum a, id en tific á ve is ao p rim e iro cam po.
A ou tra figu ra , a saber, a do o ito in vertid o , se apresenta assim . A
não-s im etr ia dos dois cam pos é ainda m ais ev iden te .
Os dois círculos que desenhei em seguida, sucessivamente, sobre o contorno
do toro com o definindo dois círculos da demanda, enquanto não se recortam,
ei-los assim simbolizados. Há um deles [A] que podemos identificar puramente
- falo dos dois círculos da demanda, tal como acabo de defini-los, uma vez que
incluíam também o buraco central - um pode facilmente definir-se, situar-se
- 269 -
A Identificação
sobre o toro esticado com o uma oblíqua religando, em diagonal, um vértice ao
m esm o ponto em que ele está realmente na margem oposta, ao vértice oposto
de sua posição, AB. A segunda laçada [A’] que eu havia desenhado há pouco, se
simbolizaria assim: com eçando num ponto qualquer aqui, temos aqui A’, aqui
C, um ponto C que é o m esm o que este ponto C ’, e terminando aqui em B’, A’
C C ’ B ’. Não há, aqui, nenhuma possibilidade de distinguir o campo que está
em A A’; ele não tem nenhum privilégio em relação a esse campo aqui [BB’].
A ’ A
C
B B’
O m esm o não se dá se é, ao contrário, o o ito in ter io r que sim bolizam os,
pois en tão e le se ap resen ta assim. E is um desses cam pos: é d e fin id o
pelas partes som breadas aqui. E le, d e fin it ivam en te , não é s im étr ico
com o que resta do ou tro cam po, por m ais que vocês se es fo rcem por
recom pô-lo. E bastante ev iden te que vocês podem recom pô-lo da seguinte
m aneira , que esse e lem en to aqui, d igam os o x, v in do para cá, esse y
v in do aqu i e este z v in do aqu i, vocês têm a fo rm a d e fin ida pela auto-
d iferen ça desenhada pe lo o ito in terior.
Isso, cu ja u tilização verem os em segu ida, pode p arecer a vocês um
pouco fastidioso, até supérfluo, no m om ento m esm o em que tento articulá-
lo para vocês. Todavia, gostaria de fa zê -los observar para que serve isso.
Vocês vêm bem : todo o acen to que ponho na d e fin ição desses cam pos é
destinado a m ostrar-lh es em que eles são u tilizáveis , esses cam pos da
d iferença simétrica e do que cham o de autodiferença, em que são utilizáveis
para um certo fim e em que eles se sustentam com o existindo em relação
a um outro campo que eles excluem . Em outros termos, se, para estabelecer
sua fu n ção d issim étrica , d ou -m e a todo esse trabalho, é porqu e há um a
razão. A razão é a segu in te : é que o toro, tal com o está estru tu rado
- 2 7 0 -
pura e s im p lesm en te com o su perfíc ie , é m u ito d if íc il s im bolizar, de um
m odo vá lido , o que ch am are i de sua d issim etria . Em outros term os,
quando vocês o vêem esticado , a saber, sob a form a desse retângulo,
será p rec iso , para recon s titu ir o toro, que vocês concebam , p rim eiro ,
que eu o dobre n ovam en te e faça um tubo, depo is que eu ju n te uma
pon ta do tubo à ou tra e faça um tubo fech ado ; é ev id en te que o que
faço num sen tido posso fa ze r tam bém no ou tro . Posto que se trata de
topologia, e não de propriedades métricas, a questão do m aior com prim ento
de um lado em relação ao ou tro não tem n en h u m a s ign ificação . Que
não é isso o que nos interessa, já que é a função rec íp roca desses c írcu los
que se trata de utilizar. Ora, justam ente nessa reciprocidade, eles parecem
p od er te r fu n ções es tritam en te equ iva len tes . Da m esm a form a, essa
poss ib ilidade está na base do que eu, em p rim e iro lugar, tinha deixado
surgir, ap arecer desde o p r in c íp io para vocês na u tilização dessa função
do toro com o de uma possibilidade de im agem sensível para seu propósito.
E que, ein certos su jeitos, certos neuróticos, por exem plo , vem os, de
a lgum a form a, de um a m an e ira sensível, a p ro jeção, se se pode exp rim ir
assim , dos p róprios c írcu los do desejo, em toda a m ed ida em que se
trata, para eles, se posso dizer, de sair desses c írcu los nas dem andas
ex ig idas do O utro. E é o que s im bo lize i, ao lh es m ostrar isso: é que, se
vocês desenham um toro, vocês podem sim p lesm en te im aginar um outro
toro que encerra , se se pode dizer, de certa m aneira o prim eiro. E preciso
- 271-
A Identificação
ve r bem que cada um dos círcu los, que são c írcu los em torno do buraco,
p odem ter, por s im p les ro lam en to , sua correspon dên cia nos círcu los
que passam através do buraco do ou tro toro ; que um toro , de certa
m aneira , é sem pre tran sform ável em todos os seus pon tos nu m toro
oposto.
O que se trata de v e r é o que or ig in a liza um a das fu nções c ircu lares,
a dos c írcu los cheios, por exem plo , em relação àqu ilo que cham am os,
em ou tro m om en to , de c írcu los vazios. Essa d ife ren ça ex is te com m uita
evidência . Poderíam os, por exem plo, sim bolizá-la, form alizá-la, ind icando
por um pequeno sinal sobre a superfície do toro desdobrado, em retângulo,
se qu iserem , a an te r io r id ad e segundo a qual se faria o en co lh im en to , e
se cham am os esse lado de a m inúscu lo e esse outro de b m inúscu lo,
anotar por exem plo a < b, ou inversam en te. Seria isso um a notação
com que n in gu ém ja m a is sonhou em to p o log ia e que te r ia a lgo de
com p letam en te artific ia l, pois não se vê por que um toro seria, de algum a
m aneira , um objeto que teria um a d im ensão tem poral. A partir desse
m om en to, é com p letam en te d ifíc il s im bolizá-lo de outra form a, ainda
que se veja bem que há, ali, algo de irredu tíve l e que constitu i, m esm o,
p ropriam en te falando, toda a v irtude exem plar do objeto tórico.
H averia uma ou tra m an eira de ten tar abordá-lo. Está bem cla ro que
é pe lo fa to de só con siderarm os o toro com o su p erfíc ie , e não tom an do
suas coordenadas senão de sua p rópria estru tura, que som os postos
d ian te desse im passe, ch e io para nós de con seqü ên c ia s já que, se,
ev iden tem en te , os c írcu los - em relação aos quais vocês m e verão tender
a fa zê -los serv ir para fixa r a dem anda, obv iam en te , em suas relações
com outros círculos que têm relação com o desejo - se eles são estritam ente
reversíve is , será isso a lgo que d esejem os ter com o m odelo? C ertam en te
não. E, ao con trário , do p riv ilég io essen cia l do buraco cen tra l qu e se
- 272 -
Lição de 11 de abril de 1962
trata; e, por conseguinte, o estatuto topológico que buscamos com o utilizável
em nosso m odelo va i fu g ir e escapar de nós. É ju s tam en te porqu e nos
fo g e e nos escapa qu e se reve la rá fecu n do para nós. E xp erim en tem os
um outro m étodo para m arcar aquilo de que os m atem áticos, os topólogos,
d ispensam perfe itam en te na defin ição, no uso que fazem dessa estru tura
do to ro em topo log ia ; e les m esm os, na teor ia gera l das su p erfíc ies ,
va lorizaram a função do toro com o e lem en to irredu tíve l de toda redução
das superfícies àquilo que se cham a de uma form a norm al. Quando digo
que é um e lem en to irredu tível, quero d izer que não se pode reduzir o toro
a outra coisa. Podem os im aginar tantas formas de superfícies tão com plexas
quanto vocês queiram , m as será sem pre necessário ter em conta a função
toro em toda planificação, se assim posso exprim ir-m e, em toda triangulação
na teoria das superfícies. O toro não basta, são necessários outros germ es,
é necessário, p rincipa lm ente, a esfera, é necessário isto a que até hoje
não fiz alusão: in trodu zir a pos:.” alidade que se cham a de cross-cap e a
possib ilidade de buracos. Quando vocês têm a esfera, o toro, o cross-cap e
o buraco, vocês podem represen tar qualquer superfíc ie que se cham a de
com pacta, isto é, uma superfíc ie que seja decom pon íve l em fragm entos.
Há outras superfícies que não são decom poníveis em fragm entos, m ais nós
as deixam os de lado.
R etorn em os ao nosso toro e à possib ilidade
de sua orien tação . Será que poderem os fazê-
la em re la ção à es fe ra id ea l, sobre a qual e le
se engancha? Essa esfera nós podem os sem pre
in trodu zi-la , a saber, que com uma su fic ien te
p o tên c ia de fô lego , qu a lqu er toro pode v ir a
se rep resen ta r com o um a s im p les a lça na
su p erfíc ie de uma esfera , que é uma parte
dele m esm o su fic ien tem en te inflada. Será que
pelo in term éd io da es fera poderem os, se posso
dizer, rem ergu lh ar n ovam en te o toro naqu ilo que, vocês sentem -no bem ,
buscam os por enqu an to , a saber, esse te rce iro term o que nos p erm ite
introduzir a dissimetria de que necessitamos entre os dois tipos de círculos?
Essa d issim etria , todavia tão ev iden te , tão in tu itivam en te sensível, tão
irred u tíve l m esm o e que é, no entanto, tal com o se m anifesta a p ropósito
com o sendo esse algo qu e observam os sem pre em todo d esen vo lv im en to
m atem á tico : a n ecessidade, para que isso com ece a andar, de esq u ecer
- 273 -
A Identificação
algum a coisa no pon to de partida. Isso vocês vão en con tra r em toda
e spéc ie de progresso fo rm a l; esse a lgo de esqu ec ido e que lite ra lm en te
se esgu eira de nós, foge de nós no form a lism o. Será que vam os poder
cap tu rá-lo , por exem plo , na re fe rên c ia de algo que se cham a de tubo
na esfera?
D e fato , o lh em bem o que se passa e o que nos d izem , que toda
superfíc ie form a lizáve l pode-nos dar, na redução, a form a norm al. D izem -
nos qu e isso con du zirá sem pre a um a esfera , com o que? C om toros
inseridos nessa aqui e que podem os va lidam en te sim bolizar assim. Passo-
lh es a teoria . A exp eriên c ia prova que é estritam en te exato. Que, a lém
disso, terem os o que se cham a de cross-cap . Esses cross-cap, abro m ão
de fa la r n e les hoje, mas será p reciso que lhes fa le a respeito, porque
e les nos prestarão grandes serviços.
Contentem o-nos em considerar o toro. Poderia vir à idéia de vocês uma
alça com o essa aqui, que seria não exterior à esfera, mas interior, com um
buraco para entrar nela, é algo de irredutível, de ineliminável, e seria necessário,
de alguma maneira, distinguir os toros exteriores e os toros interiores. Em
que é que isso nos interessa? M uito precisam ente a propósito de uma form a
m ental que é necessária a toda a nossa intuição do nosso objeto. De fato, na
p e rsp ec t iva p la tôn ica , a r is to té lica , eu le r i ana de um U m w elt e de
Toro exterior
um ln n en w elt, de uma dom inação colocada de saída na divisão do in terior
e do exterior, será que não co loca ríam os tudo o que exp erim en tam os e,
m orm ente em análise, na dimensão do que chamei, outro dia, de subterrâneo,
a saber, o co rred or que se perde na pro fu ndeza , ou seja, no m áxim o,
- 274 -
Lição de 11 de abril de 1962
quero d ize r em sua fo rm a m ais d esen vo lv ida segundo essa form a? É
ex trem am en te exem p la r fa ze r sentir, a propósito, a não in depen dên c ia
absoluta dessa form a; pois, rep ito , por m ais que se chegue a form as
reduzidas, que são as form as inscritas, vagam en te esboçadas no quadro
no desenho, para dar um suporte ao que estou d izendo, é absolutam ente
im possível sustentar, m esm o por um instante, na diferença, a originalidade
even tu a l da alça in te r io r em re la ção à alça exterior, para em pregar os
term os técn icos.
Basta, eu acho, ter um pou co de im aginação, para ver que se trata
de algo que m ateria lizam os em borracha, basta in trodu zir o dedo aqui
e enganch ar do in ter io r o an el cen tra l desse punho, tal com o e le está
assim con stitu ído , para ex tra í-lo para o ex te r io r exatam en te segundo
um a fo rm a que será essa aqui, isto é, um toro exa tam en te o m esm o,
sem nenhum a espécie de rasgadura, nem m esm o, p ropriam ente falando,
de inversão. N ão há n en h u m a inversão, o que era in terior, isto é, x, o
cam inhar assim do in ter io r do corredor, torna-se ex ter io r porque sem pre
o fo i. Se isso su rpreende vocês, posso ainda ilu strá-lo de um a m aneira
m ais s im ples, que é exa tam en te a m esm a, porque não há d iferença
algum a en tre isso e o que lhes vou m ostrar agora e que eu lhes havia
m ostrado desde o p rim e iro dia, esperando fa zê -los sen tir de que se
tratava. Suponham que seja no m eio de seu percurso, o que é exatam ente
a m esm a coisa, do ponto de vista topo lóg ico , que o toro seja tom ado na
esfera . Vocês têm , aqui, um p equ en o corredor, que cam inha de um
buraco a ou tro buraco. Aqu i, acho que lhes é su fic ien tem en te sensível
que não é d ifíc il, s im p lesm en te fa zen d o abaular um pouco o que vocês
podem agarrar pe lo corredor com o dedo, fa ze r surgir uma figura que
- 275 -
A Identificação
será m ais ou m en os essa, de a lgum a co isa qu e é aqu i um a a lça e cujos
dois buracos que se com unicam com o in ter io r estão aqu i em pontilhadas.
C hegam os, pois, a um fracasso a m ais, d igo, à im possib ilidade, por
um a re fe rên c ia a um a terce ira d im ensão, aqu i represen tada pela esfera,
de s im bo lizar esse algo que ponha o toro, se se pode dizer, em seu lugar
em relação à sua p róp ria d issim etria . O qu e vem os, um a v e z m ais,
m an ifestar-se , é algo que é in trodu zido por esse sim plíssim o s ign ifican te
qu e eu lhes trouxe no in íc io , do oito in terior, ou seja, a possib ilidade
de um cam po in ter io r com o sendo sem pre hom ogên eo ao cam po exterior.
Isso é um a ca tegoria tão essencia l de se m arcar, de im prim ir no esp írito
de vocês, que a ch e i d eve r hoje, sob o r isco de cansá-los, até de fàtigá-
los, in s is tir durante um a só de nossas aulas. Espero que vocês venham
a ve r a u tilidade disso, daqu i em d iante.
- 276 -
LIÇAO XVIII(
(
2 de m a io 1962 (
(
(
(
(
N ão é fo rçosam en te com a id é ia de poupar vocês, nem vocês, nem
n in gu ém , que pensei hoje, para esta sessão de retom ada, num m om en to
qu e é um a corrida de dois m eses que tem os pela fren te para term in ar
de tratar esse assunto d ifíc il, que pen se i fa ze r ho je um a espéc ie de'
revezam en to . Eu qu ero d izer que há m u ito tem po tinha von tade, não
apenas de dar a palavra a a lgum de vocês, m as m esm o p rec isam en te
dá-la à Sr.a Au lagn ier. H á m u ito tem po que penso nisso, já que é n o dia
seguinte de uma comunicação que ela fez numa de nossas sessões científicas.
Essa com u n icação , não sei por qu ê alguns de vocês, que não estão
aqu i, in fe lizm en te , em razão de uma espéc ie de m iop ia caracterís tica
de certas posições que, aliás, cham o de m andarinais, pois esse term o
fe z sucesso, acred itaram ver não sei que retorno à letra de Freud, quando
aos m eus ouvidos, m e pareceu que a Sr.a Au lagn ier, com um a particu lar
p e rtin ên c ia e acu idade, m anejava a d istinção lon gam en te am adurecida,
já n a qu e le m om en to , en tre a dem anda e o desejo. Seja com o for, há
a lgum a ch an ce de que se recon h eça m e lh or a si m esm o sua própria
p os ter idade do que os outros. H avia , da m esm a form a, a lguém que
estava de acordo com igo sobre esse pon to: era a própria Sr.a Aulagn ier.
Lam en to , pois. ter levado tanto tem po para dar-lhe a palavra, ta lvez o
sen tim en to , aliás, excess ivo de algo que sem pre nos pressiona e nos
fo rça a avançar.
Justam en te hoje vam os fa ze r essa esp éc ie de laço que con siste em
passar p o r aqu ilo que, no esp írito de algum de vocês, pode responder,
fru tifica r, a p ropósito do cam inho que tem os p erco rr ido ju n tos - e já é
( m- 2 7 7 -
A Identificação
grande, desde o m om en to que eu evoco - e é m u ito espec ia lm en te nesse
pon to de in terseção , n esse c ru zam en to con stitu ído no esp írito da Sr.a
A u la gn ier sobre o que eu disse recen tem en te sobre a angústia , que
oco rreu dela te r-m e o fe rec id o , há algum as sessões, de in terv ir aqu i. E,
portan to, em razão de um a oportu n idade que va le o que teria va lido
um a outra, o sen tim en to de ter a lgo a lhes com u n ica r e, exa tam en te a
ind icar, sobre a angústia, e isso na relação m ais estreita daqu ilo que
ela, com o vocês, ouviu do que eu professo este ano sobre a id en tificação ,
que ela va i trazer-lhes a lgo que e la preparou m u ito cu idadosam en te , a
f im de te rm in ar um texto . Esse texto, que e la teve a bon dade de m e
apresentar, quero d ize r que o exam in e i com ela on tem e, devo dizer,
tudo o que f iz fo i en cora já -la a apresen tá-lo . Tenho ce rte za de qu e
rep resen ta um exce len te m e d iu m e, com isso, qu ero d izer que não é
um a m éd ia daqu ilo que, c re io , os ouvidos m ais sensíveis, os m elh ores
dentre vocês podem ouvir, e a m aneira com o as coisas podem ser retomadas,
em razão dessa escuta. D ire i, pois, depois dela te r con ceb ido esse texto,
qual uso preten do dar a essa etapa que d eve con stitu ir o que e la nos
traz, que uso penso dar-lh e em seguida.
E xpos ição da Sra. A u lagn ier
A n g ú s t ia e id e n t i f ic a ç ã o
Durante as últimas jornadas provinciais, um certo núm ero de intervenções
trataram da questão de.saber se se podia defin ir diferentes tipos de angústia.
Foi assim que se perguntou se se devia dar, por exem plo, um status particular
à angústia psicótica.
D ire i, im ed ia tam en te , que sou de um a op in ião um pouco d iferen te ;
a angústia , qu er apareça no su jeito d ito n orm al, no n eu ró tico ou no
psicó tico , m e parece respon der a uma situação espec ífica e id ên tica
do eu e está m esm o aí o que m e parece ser um de seus traços característicos.
Quanto ao que se poderia cham ar de posição do su je ito fren te à a n gú stia ,
na psicose, por exem plo , pôde-se ver que, se não se tenta d e fin ir m e lh or
as re lações ex isten tes en tre a fe to e verba lização , pode-se chegar a uma
espéc ie de paradoxo que se exp rim ir ia assim : por um lado, o ps icó tico
seria a lgu ém particu la rm en te su jeito à angústia - é m esm o na resposta
em espe lh o que e le suscitaria no analista que se deveria buscar um a
das d ificu ldades m a iores da cura - por ou tro lado, fo i-n os d ito que e le
- 2 7 8 -
Lição de 2 de maio de 1962
seria incapaz de recon h ecer sua angústia, que ele a m anteria à distância,
que e le se alienaria dela. Enuncia-se, com isso, um a posição insustentável,
se não se ten ta ir um pouco m ais longe. De fato, o que sign ificaria
exatam en te recon h ecer a angústia? Ela não espera e não tem necessidade
de ser n om eada para subm ergir o eu, e não com preen do o que se poderia
qu erer dizer, ao d ize r que o su je ito é angustiado sem o saber. Podem os
nos perguntar se o p róprio da angústia não é ju stam en te o não se nom ear;
o d iagnóstico , a denom inação , só pode v ir do lado do Outro, daquele
d ian te de qu em ela aparece. E le , o su jeito, é o a fe to da angústia, e le a
v ive to ta lm en te e é exa tam en te essa im pregn ação , essa captura de seu
eu que se d isso lve, que lh e im p ed e a m ed iação da palavra.
Podem os, nesse n íve l, fa ze r um p rim e iro para le lo en tre dois estados
que, por m ais d iferentes que sejam, m e parecem representar duas posições
extremas do eu, tão opostas quanto complementares: quero falar do orgasmo.
Há, nesse segundo caso, a m esm a incom patib ilidade profunda entre a
possibilidade de vivê-lo e a de tom ar a distância necessária para reconhecê-
lo e d e fin i- lo no h ic et n u n c da situação, desencadeando-o.
D ize r que se é angustiado in d ica em si já ter pod ido tom ar uma certa
d istância em re lação ao v iv ido a fe tivo ; isso m ostra que o eu já adqu iriu
um certo con tro le e ob je tiv idade em re la ção a um a fe to do qual, a partir
desse m om en to , pode-se duvidar que m ereça ainda o nom e de angústia.
N ão prec iso lem brar, aqu i, o papel m eta fó r ico , m ed iad o r da palavra,
nem a d istância ex is ten te en tre um a v ivên c ia a fe tiva e sua tradução
verbal. A partir do m om en to em que o hom em põe em palavras seus
a fetos, e le fa z de les ju s tam en te ou tra coisa, fa z de les pe la palavra um
m eio de com u n icação , e le os fa z en trar no dom ín io da relação e da
in ten c ion a lid a d e ; transform a em com u n icáve l o que fo i v iv ido no n íve l
do corpo e que, com o tal, em ú ltim a análise, p e rm an ece com o algo da
ordem do não-verba l. Todos sabem os que d izer que se am a alguém só
tem lon gín qu as re lações com o que é, em fu n ção desse m esm o amor,
sen tido no n ív e l corpora l. D ize r a a lguém que o desejam os - lem bra-
nos o Sr. Lacan - é inc lu í-lo em nosso fantasm a fundam ental. E também,
provavelm ente, fa zer disso o testem unho, a testem unha de nosso próprio
s ign ifican te . Seja o que fo r que possam os d izer a esse respeito, tudo é
fe ito para nos m ostrar a d is tân c ia ex is ten te en tre o a feto enqu anto
em oção corpora l, in ter io r izad a , en qu an to algo que adqu ire a sua fon te
m ais p ro fu nda n aqu ilo que, por de fin ição , não pode se exp rim ir em
A Identificação
palavras, eu qu ero fa la r do fan tasm a, e a pa lavra qu e nos aparece,
assim , em toda a sua fu n ção de m etá fo ra . Se a palavra é a ch ave m ágica
e ind ispen sáve l que pode apenas nos p erm itir en tra r no m u ndo da
sim bolização, ora, penso que ju s tam en te a angústia respon de a esse
m om en to em que essa chave não abre m ais nen hu m a porta , em que o
eu tem de en fren ta r o que está por trás ou ad ian te de toda sim bolização,
em que o que aparece é o que não tem nom e, essa “ figu ra m is ter io sa ” ,
esse “ lugar de on d e surge um dese jo que não se pode m ais a p reen d e r” ,
em qu e se produz, para o su jeito , um a te lescopagem en tre fan tasm a e
rea lidade; o s im bó lico se esvai para dar lugar ao fan tasm a enqu an to
tal, o eu aí se d isso lve e é essa d isso lução que chajnam os de angústia.
E certo que o p s icó tico não espera a análise para con h ecer a angústia.
E certo tam bém que, para todo su jeito , a relação an a lítica é, nesse
domínio, um terreno privilegiado. N ão é para nos espantarmos, se adm itimos
qu e a angústia tem as re la ções m ais estreitas com a id en tifica çã o . Ora,
se na id en tific a çã o trata-se de a lgo que se passa no n ív e l do desejo,
desejo do su jeito em relação ao dese jo do O utro, torna-se e v id en te que
a fon te m a ior da angústia , em análise, va i-se en con tra r n a qu ilo que é
sua p rópria essên cia : o fa to de que o O utro é, nesse caso, a lgu ém cujo
desejo m ais fu n dam en ta l é não desejar, a lguém que, por isso m esm o,
se p e rm ite todas as p ro jeções possíveis , desve la-as tam bém em sua
subjetividade fan tasm ática e obriga o su jeito a se co loca r period icam en te
a pergunta de o que é o dese jo do analista, desejo sem pre presum ido,
jam a is de fin ido , e por isso m esm o podendo, a todo m om en to , tornar-se
esse lugar do O utro, de on de surge, para o analisado61 a angústia.
Mas, antes de tentar d e fin ir os parâm etros da situação ansiogênica,
parâm etros que só se podem desenhar a partir dos problem as próprios ã
identificação, pode-se colocar uma primeira pergunta de ordem mais descritiva,
que é esta: o que entendemos, quando falamos de angústia oral, de castração,
de m o rte? Tentar diferenciar esses diferentes termos no nível de um a espécie
de escala quantitativa é im possível: não existe angustiôm etro. N ão se é
pouco ou m uito angustiado: ou se é, ou não se é.
O ún ico cam in h o que p erm ite um a resposta, nesse n íve l, é o de nos
co loca rm os no lu gar qu e nos cabe, o d aqu e le qu e pode, e só e le , d e fin ir
a angústia do su je ito a partir do que essa angústia lh e s ina liza . Se é
verdade, com o observou o Sr. Lacan , que é m u ito d ifíc il fa la r da angústia
enqu an to sinal, no n ív e l do su jeito, p a rece-m e certo que sua aparição
- 2 8 0 -
Lição de 2 de maio de 1962 (
(
designa , assinala o O utro enqu anto fon te , enqu an to lugar de on de ela
surgiu, e ta lvez não seja inú til lem brar, a esse propósito, que não existe
a fe to que suportem os tão m al, no outro, quanto a angústia, que não há
ou tro a feto ao qual nos arrisquem os tanto a responder de form a paralela.
O sadism o, a agressiv idade podem , por exem plo , suscitar no parceiro
um a reação inversa : m asoqu ista ou passiva; a angústia só pode provocar
a fuga ou a angústia. Há, aqui, uma rec ip roc idade de resposta que não (
de ixa de levan tar um problem a. O Sr. Lacan insurgiu-se con tra essa
tentativa fe ita por muitos, que seria a procura de um conteúdo da angústia.
Isso m e lem bra o que e le h í.; d ito. a respeito de algo bem d iferen te ,
que para tirar um co e lh o de um a carto la era p rec iso tê -lo posto lá
dentro, prim eiro. Ora, pergunto-m e se a angústia não aparece, justam ente,
não som en te quando o coe lh o é tirado, m as quando e le se fo i pastar o
cap im , quando a carto la só represen ta algo que se assem elha ao toro, (
m as que en vo lve um lugar n egro cujo con teú do n om eável qu a lqu er se
evaporou , fa ce ao qual o eu não tem m ais nenhum pon to de re fe rên c ia ,
pois a p rim eira coisa que se pode d ize r da angústia é que sua aparição
é sinal do desaparecim ento m om entâneo de toda referência identificatória
possível. É som ente a partir daí que se pode responder, talvez, à pergunta
que eu levan tava quanto às d iferen tes den om in ações que podem os dar
à angústia , e não no n íve l da d e fin ição de um con teú do, o p róp rio
su jeito angustiado tendo, poderíam os dizer, perd ido seu con teú do. N ão
m e parece, em outros term os, que se possa tratar da angústia enqu an to í
tal. Para dar um exem plo , d irei que fa ze r isso m e pareceria tão fa lso
quanto querer defin ir um sintoma obsessivo, ficando no nível do m ovim ento
au tom ático que pode represen tá-lo . A angústia não nos pode ensinar
nada sobre si m esm a, se não a con siderarm os com o a con seqü ên cia , o
resu ltado de um im passe on de se en con tra o eu, sinal, para nós, de um
obstáculo surgido en tre essas duas linhas paralelas e fundam enta is cujas
relações formam o ponto capital de toda a estrutura humana: a identificação
e a castração. São as relações en tre esses dois e ixos estru turantes nos
d ife ren tes su jeitos que vou tentar esboçar para ousar uma d e fin ição do
que é a angústia, daquilo que, segundo os casos, ela nos dá o testem unho.
O Sr. Lacan , no sem in ário de 4 de abril, ao qual eu m e re firo ao
lon go desta exposição , nos disse que a castração podia ser con ceb ida
com o uma passagem transic iona l en tre o que está no su jeito, com o
suporte natural do desejo , e essa habilitação pela le i graças à qual e le
(
- 2 8 1 - (
C
A Identificação
va i se tornar o p en h or por on de e le va i se designar no lugar on d e e le
tem que se m an ifes ta r com o desejo. Essa passagem trans ic ion a l é o que
d eve p erm itir a tin g ir a equ iva lên c ia pên is -fa lo , isto é, que o que era,
enqu anto em oção corporal, deve tornar-se, ceder lugar a um sign ificante,
pois é som en te a p artir do su jeito e jam a is a pa rtir de um ob je to parcia l,
p ên is ou ou tro , que pode tom ar um sen tido qu a lqu er a palavra desejo .
“ O su je ito dem anda e o fa lo dese ja ” , d iz ia o Sr. Lacan ; o fa lo , m as
n u n ca o pênis. O pên is é só um in stru m en to a serv iço do s ign ifica n te
fa lo , e, se e le pode ser in stru m ento m u ito in d ó c il é ju s tam en te porque,
en qu an to fa lo , é o su je ito que e le designa, e, para que isso fu n c io n e , é
p rec iso que o O u tro ju s tam en te o recon h eça , o esco lha , não em fu n ção
desse “ suporte natural", mas porque e le é, enqu anto sujeito, o s ign ificante
qu e o O u tro reco n h ece , a partir de seu p róp rio lugar de s ign ifican te .
O que d iferen c ia , no p lano do gozo, o ato m asturbatório do coito ,
d ife ren ça ev iden te , m as im possíve l de exp lica r fis io log icam en te , é que
o co ito , por m ais que os dois parceiros tenham pod ido, em sua h istória ,
assum ir sua castração, fa z com que, no m om en to do orgasino, o su je ito
vá encontrar, não com o alguns d isseram um a espéc ie de fusão p rim itiva
- pois, a fina l, não vem os por que o gozo m ais p ro fundo qu e o h om em
possa exp erim en ta r d ever ia forçosam en te ser ligado a um a regressão
tam bém total - mas, ao con trário , o m om en to p riv ileg iad o em que, por
um instan te, e le a tin ge essa id en tifica ção sem pre buscada e sem pre
fu g id ia em que ele, su jeito, é recon h ec id o pe lo ou tro com o o ob jeto de
seu dese jo m ais p rofundo, m as em que, ao m esm o tem po, graças ao
gozo do outro, pode recon h ecê -lo com o aqu ele que o con stitu i en qu an to
s ign ifica n te fá lico . N esse instan te único, dem an da e desejo podem , por
um instan te fugaz, coincid ir, e é isso que dá ao eu esse desabrocham ento
id en tific a tó r io do qual o gozo tira sua fon te . O que não se deve esqu ecer
é que, se nesse instante dem anda e desejo co in cidem , o gozo traz, todavia,
em si a fon te da insa tis fação m ais p ro funda, pois, se o desejo é, antes
de m ais nada, dese jo de con tinu idade, o gozo é, por d e fin ição , a lgo de
instantâneo. É isso que faz com que, im ed iatam en te depois, se restabeleça
a d istância en tre dese jo e dem anda, e a insatisfação , que é tam bém
garan tia da p eren idade da dem anda.
M as, se há sim u lacros da angústia, há ainda m ais s im u lacros de gozo ,
pois, para que tal s ituação id en tifica tó ria , fo n te do ve rd ad e iro gozo ,
Lição de 2 de maio de 1962
seja possível, é a inda p rec iso que os dois parce iros tenham ev itado o
obstácu lo m a io r qu e os espre ita , e que é que, para um dos dois, ou
para os dois, o que se tem a ganhar ou perder tenha perm anec ido fixado
no objeto parcial, en fim , de uma relação dual onde eles, enquanto sujeitos,
não têm lugar. Pois, o que nos m ostra tudo o que está ligado à castração
é que, lon ge de exp r im ir o tem or de que lh e corte o pênis, m esm o se é
assim que o su je ito pode verba lizá -lo , trata-se do tem or de que lhe seja
d e ixado e qu e se lh e co rte todo o resto, isto é, que se tenha in teresse
por seu pên is ou por seu ob jeto parcia l, suporte e fon te do prazer, e
que se o n egu e, que se o descon h eça enqu anto su jeito. E por isso que
a angústia tem , não apenas re la ções estreitas com o gozo, m as que
um a das s ituações m ais fa c ilm en te ansiogên icas é bem aquela on de o
su jeito e o O u tro têm de se en fren ta r nesse n íve l.
Vamos, então, ten tar ve r quais são os obstáculos que o su jeito pode
encon trar, n esse plano. N ão represen tam nada m ais, senão as próprias
fon tes de toda angústia. Para tanto, terem os de nos reportar àqu ilo que
cham arem os de relações de ob jeto pré-gen ita is, nessa época, en tre todas
d e term in an tes para o destino do sujeito, em que a m ed iação en tre o
su jeito e o O utro, en tre dem an da e desejo, se fe z em torno desse ob jeto
cu jo lu gar e d e fin ição con tin u avam m uito am bíguos, e que é d ito o
ob jeto parcia l. A relação en tre o su je ito e esse ob jeto parcia l ou tra coisa
m ais não é senão a relação do su jeito com seu próprio corpo, e é a
partir dessa relação, que p e rm an ece fundam enta l para todo hum ano,
que tom a seu pon to de partida e se m olda toda a gam a daqu ilo que está
in c lu íd o no term o relação de ob jeto. Q ue nos detenham os na fase oral,
anal ou fálica, em todas se encontram as m esmas coordenadas. Se escolho
a fase oral, é s im p lesm en te porque, para o ps icótico , do qual fa larem os
daqui a pouco, ela m e parece ser o m om ento fecundo daquilo que cham ei,
em ou tra ocasião, de “ abertura da p s icose” . C om o podem os de fin i-la?
Por um a dem an da que, desde o in íc io , d izem -nos, é dem anda de outra
coisa. P or um a resposta tam bém que é não som ente, e de uma m aneira
ev iden te , resposta à ou tra coisa, m as é - e é um pon to que m e parece
im portan tíss im o - o que con stitu i o que é um grito , um apelo, ta lvez,
com o dem an da e com o desejo . Q uando a m ãe responde aos gritos da
criança, ela os recon h ece , con stitu indo-os com o dem anda, mas o que
é m ais grave é que ela os in terp re ta no plano do desejo: desejo da criança
de tê-la a li p erto , desejo de lh e tom ar algum a coisa, desejo de agred i-
- 2 8 3 -
A Identificação
la, pouco im porta . O que é certo é que, por sua resposta, o O u tro vai
dar a d im en são desejo ao grito da necessidade, e que esse dese jo de
qu e a c ria n ça é in ves tid a é sem pre, no in íc io , o resu ltado de um a
in terpretação subjetiva, função apenas do desejo m aterno, de seu próprio
fantasm a. E pela v ia do in con sc ien te do O u tro que o su jeito fa z sua
en trada no m undo do desejo. Seu p róprio desejo, e le terá, antes de
m ais nada, de con stitu í-lo com o resposta, com o aceitação ou recusa de
tom ar o lugar que o in co n sc ien te do O utro lhe designa. Parece-m e que
o prim eiro tempo do m ecanism o-chave da relação oral, que é a identificação
pro jetiva , parte da m ãe: há um a p rim eira p ro jeção, no p lano do desejo ,
que vem dela ; a c rian ça terá de se id en tific a r a li ou de com bater, negar
uma id en tifica ção que e la poderá sen tir com o d eterm in an te . E, nessa
p rim e ira fase62 da evo lu ção hum ana, está tam bém a resposta que ela
poderá dar, a propósito da descoberta do que sua dem anda esconde. A
partir desse m om ento, o gozo, que não espera a organ ização fá lica para
en tra r em jogo , tom ará esse lado reve lação qu e guardará sem pre; pois,
se a fru stração é o que s ign ifica para o su jeito a d istância ex is ten te
en tre necessidade e desejo, o gozo, pela m arch a inversa, lh e reve la ,
respon den do ao que não estava form u lado, o que está para a lém da
dem an da, isto é, o desejo.
Ora, que vemos, nisso que é a relação oral? Antes de tudo, que dem anda
e resposta se s ign ificam para os dois parce iros em torno da re lação
parcia l boca-seio. Poderem os cham ar esse n íve l de n íve l do s ign ificado ;
a resposta vai provocar, no n íve l da cavidade oral, uma a tiv idade de
absorção, fon te de p razer; um ob jeto ex tern o , o le ite , va i se tornar
substância própria, corporal. A absorção - é daí que ela tira sua im portância
e sua s ign ificação . A partir dessa p rim eira resposta, é a p rocura dessa
a tiv idade de absorção, fon te de prazer, que vai se tornar a m eta da
dem anda. Q uanto ao desejo , é em ou tro lugar que terem os de buscá-lo,
em bora seja a partir dessa m esm a resposta, dessa m esm a exp e riên c ia
de satis fação da n ecessidade, que e le vai-se constitu ir. De fato , se a
re lação boca-se io e a a tiv idade absorção-a lim en tação são o n u m erad or
da equ ação rep resen tando a relação oral, há tam bém um denom inador,
o que põe em causa a re la ção criança-m ãe, e é aí que pode se s ituar o
desejo . Se. com o penso, a a tiv idade de am am entação , em fu n ção do
in ves tim en to de que e la é o ob jeto de um a e ou tra parte, por causa do
contato e das experiências corporais no n íve l do corpo tom ado em sentido
- 284-
Lição de 2 de maio de 1962
am plo, que e lá p erm ite à criança , rep resen ta por sua própria escansão
rep e tit iva a fase fu n dam en ta l, essencia l, da fase oral, é p rec iso lem brar
que nunca tanto quanto aqui parece óbvia a verdade do provérbio que diz
“ o m odo de dar vale mais do que o que se dá” . Graças, ou por causa desse
m odo de dar, em função daquilo que isso revelará do desejo materno, a
criança vai apreender a diferença entre dom de alim entação e dom de amor.
Para le lam en te ã absorção do a lim ento , verem os então se [desprover? ],
no d en om in a do r de nossa equação , a absorção, ou m elhor, a in tro jeção
de um s ign ifica n te re la c ion a l, is to é, que p a ra le lam en te à absorção de
a lim en to haverá in tro jeção, um a relação fantasm ática on de ela e o ou tro
serão represen tados por seus desejos inconscien tes. Ora, se o nu m erador
pode fac ilm en te ser investido do sinal + , o denom inador pode, na m esm a
hora, ser in vestido do sinal É essa d iferen ça de sinal que dá ao se io
seu lu gar de s ign ifican te , pois é bem dessa d istância en tre dem anda e
desejo, a partir desse lugar de on de surge a fru stração , que en con tra
sua gên ese , que se orig ina todo s ign ifican te .
A partir dessa equação que, m u ta t is m utand is , se poderia reconstitu ir
para as d ife ren tes fases da evo lu ção do su jeito, quatro even tu a lidades
são possíveis: elas desem bocam naqu ilo que se cham a de n orm alização,
a neurose, a perversão e a psicose. Tentarei esquematizá-las, sim plificando-
as, obv iam en te , de uma m an eira um pouca carica tu ra l e ver as relações
ex isten tes, em cada caso, en tre id en tifica çã o e angústia.
A p rim e ira dessas vias é, sem dúvida, a m ais u tóp ica . E aquela em
que tem os de im aginar que a criança possa encontrar, no dom do alim ento,
o dom de am or desejado. O se io e a resposta m atern a poderão, então,
tornar-se sím bolos de outra coisa; a criança entrará no m undo sim bólico,
poderá aceitar o desfiladeiro da cadeia significante. A relação oral, enquanto
a tiv idade de absorção, poderá ser abandonada e o su jeito evo lu irá em
d ireção do que se cham a de um a solução norm ativa . Mas, para que a
criança possa assum ir essa castração, para que ela possa ren u nciar ao
p ra zer que lh e o fe re c e o seio, em fu nção desse b ilh ete , desse passe
a leatório para o futuro, é necessário que a m ãe tenha podido, ela própria,
assum ir sua p rópria castração; é p rec iso que, a pa rtir desse m om en to,
a partir dessa relação dita dual, o te rce iro term o, o pai, esteja presente,
enqu anto re fe rên c ia m aterna. S om en te nesse caso, o que ela buscará
na crian ça não será uma satis fação no n íve l da e rogen e id ad e corpora l,
que fa z de la um equ iva len te fá lico , m as um a re lação que, constitu indp-
- 2 8 5 -
cA Identificação
í
a com o m ãe, reco n h ece -a igu a lm en te com o m u lh er do pai. O dom de
a lim en to será, então, para ela, o puro sím bolo de um dom de amor, e
porque esse dom de am or não será ju stam en te o dom fá lico que o su jeito
deseja, a crian ça poderá m an ter sua relação com a dem anda. Q uan to
ao fa lo, e la terá de buscá-lo em outro lugar, e la en trará no com p lexo de
castração que, só e le , pode p erm itir - lh e id en tiflca r-se com ou tra coisa
que não um $.
A segunda even tu a lidade é que, para a própria m ãe, a castração tenha
p erm an ec id o com o algo de m al assum ido. Então, todo ob jeto capaz de
ser, para o outro, a fon te d e um p razer e o ob je tivo de uma dem an da,
corre o r isco de tornar-se, para ela, o equ iva len te fá lico que e la deseja.
M as, na m ed ida em que o se io não tem ex is tên c ia p riv ileg iada , senão
em fu n ção daqu ele para qu em e le é in d ispen sáve l, ou seja, a criança ,
vem os a con tecer essa eq u iva lên c ia crian ça -fa lo que está no cen tro da
gên ese da m a ior ia das estru turas neu róticas. O su jeito, en tão, no curso
de sua evo lução , terá sem pre de en fren tar o d ilem a do ser e do ter,
qu a lqu er que seja o ob jeto corpora l, seio, pênis, fa lo , que se torna o
suporte fá lico . Ou então, terá de se id en tific a r àqu ele que o tem , mas,
p or não ter pod ido u ltrapassar o estád io do suporte natural, por não
ter tido acesso ao s im bólico , o ter s ign ifica rá sem pre, para e le , um “ ter
castrado o O u tro ” , ou en tão e le renunciará ao ter, e le se id en tific a rá
en tão com o fa lo, en qu an to ob je to do desejo do outro, m as deverá ,
então, renunciar a ser, ele, o sujeito do desejo. Esse con flito identificatório ,
en tre ser o agen te da castração ou o su jeito que a sofre, é o que d e fin e
essa a lte rn ân c ia con tínua , essa questão sem pre p resen te, no n ív e l de
id en tific a çã o que c lin ica m en te se cham a de um a neurose.
A te rce ira even tu a lidade é a que en con tram os na perversão . Se esta
ú ltim a fo i d e fin ida com o o n ega tivo da neurose, essa oposição estru tura l
é encon trada por nós no n íve l da id en tifica ção . O perverso é aqu e le
que e lim in ou o con flito id en tifica tó r io . N o p lano que esco lh em os, o
oral, d irem os que, na perversão, o sujeito se constitu i com o se a ativ idade
de absorção não tivesse outro ob jetivo senão fazer de le o objeto, perm itindo
ao O u tro um gozo fá lico . O p erverso não tem e não é o fa lo: e le é esse
ob jeto am bíguo, que serve a um desejo que não 6 o seu; e le só pode
tirar seu gozo dessa situação estranha, em qu e a ún ica id en tific a çã o
que lh e é possível é a que o fa z id en tifica r-se não com o O utro, n emC
(
- 286 —
(
Lição de 2 de maio de 1962
com o fa lo, m as com esse ob jeto cu ja a tiv idade p rop ic ia o gozo a um
fa lo cu ja p e rten ça e le ignora, em absoluto.
Poder-se-ia d ize r que o dese jo do perverso é respon der à dem anda
fá lica . Para tom ar um exem plo banal, d ire i que o gozo do sádico precisa,
para aparecer, de um O utro para quem , fa zen d o -se ch ico te , surja o
prazer. Se fa le i de dem an da fá lica , o que é um trocad ilho , é que, para
o p erverso , o ou tro só tem ex is tên c ia en qu an to suporte quase anônim o
de um fa lo para o qual o p erverso cu m pre seus ritos sacrific ia is . A
resposta p erversa traz sem pre em si um a negação do ou tro enquanto
su jeito ; a id en tific a çã o p erversa se fa z sem pre em fu nção do objeto
fon te de gozo , para um fa lo tão poderoso quanto fan tasm ático .
H á a inda um a palavra que gostaria de dizer, sobre a p erversão em
gera l. N ão cre io que seja possível d e fin i- la , se fica rm os no p lano que
poderíam os ch am ar de “ sexu a l” , a inda que seja a isso que pareçam nos
leva r as v isões clássicas, nessa m atéria . A perversão é - e n isso parece-
m e fica r m u ito p e rto da visão freu d ian a - um a p erversão no n íve l do
gozo, pouco im porta a parte corpora l posta em jo go para obtê-lo . Se
partilho da desconfiança do Sr. Lacan sobre o que se cham a de genitalidade,
é p o rq u e é m u ito p e r ig o so fa z e r an á lise an a tôm ica . O co ito m ais
an a tom icam en te norm al pode bem ser tão n eu rótico , ou tão perverso
quanto o que se cham a de um a pu lsão p ré-gen ita l. A qu ilo que assinala
a n o rm a lid ad e , a neurose ou a perversão , está som en te no n íve l da
re la ção en tre o eu e sua id en tifica çã o , que p erm ite ou não o gozo que
vocês podem constatar. Se se quisesse reservar o d iagnóstico de perversão
só às perversões sexuais, não apenas não se ch egaria a nada, pois um
d iagnóstico pu ram en te s in tom ático nu nca quis d ize r nada, mas ainda
seríam os obrigados a recon h ecer que há m uito poucos neuróticos, então,
que escapariam a isso. E tam bém não é no n íve l de um a culpa, da qual
o perverso estaria isen to , que vocês en con trarão a solução: não existe,
p e lo m en os que eu saiba, um ser hum ano tão su fic ien tem en te fe liz
para ign ora r o que é a culpa. A ún ica m an eira de abordar a perversão
é tentar defin i-la ali onde ela está, ou seja, no n íve l de um com portam ento
relacional. O sadism o está lon ge de ser sem pre desconhecido, ou sempre
con tro lado , no obsessivo. O que e le s ign ifica no obsessivo é, sim, a
pers is tênc ia daqu ilo que se cham a de relação anal, ou seja, uma relação
on de se trata de possuir ou de ser possuído, um a relação onde o am or
que se exp erim en ta , ou do qua l se é o objeto, só pode ser significado,
- 2 8 7 -
A Identificação
para o sujeito, em fu nção dessa possessão que pode, ju s tam en te , ir até à
destru ição do objeto. O obsessivo, poderíam os dizer, é, de fato, aqu ele
que castiga bem porque am a bem ; é aqu ele para quem a surra do pai
perm an eceu com o a m arca p riv ileg iada de seu amor, e que busca sem pre
alguém a quem dá-la ou de quem recebê-la . Mas, tendo-a receb ido ou
dado, tendo-se assegurado de que o am am , é num outro tipo de relação
com o m esm o ob jeto que e le buscará o gozo, e que essa relação se faça
ora lm ente, an a lm en te ou vag ina lm ente, e la só será pervertida no sentido
com o a entendo, e que m e parece o ú n ico que possa ev itar pôr a etiqueta
pervertida sobre um grande núm ero de neuróticos ou sobre um grande
nú m ero de nossos sem elhantes.
O sadismo torna-se um a perversão, quando a surra não é m ais buscada
ou dada com o s inal de amor, m as quando é, enqu an to tal, assim ilada
pe lo su jeito à ún ica possib ilidade ex is ten te de fa ze r gozar um fa lo ; e a
visão desse gozo torn a-se o ún ico cam in h o o fe rec id o ao p erverso para
seu p róp rio gozo . T em -se fa lad o m u ito da ag ress iv idade, da qual o
ex ib ic ion ism o tira ria sua fon te . M ostra-se para agred ir o ou tro , sem
dúvida, m as o qu e não se d eve e sq u ece r é que o ex ib ic ion is ta está
con ven c id o de que essa agressão é um a fon te de gozo, para o Outro. O
obsessivo, quando v ive uma ten dên c ia exib ic ion ista , tenta, poderíam os
dizer, lograr o ou tro : e le m ostra o que pensa que o ou tro não tem e
deseja; m ostra aqu ilo que para e le tem , de fato, as relações m ais estreitas
com a agressividade. Lem brem -se do que se passou com O hom em dos
ra to s ; o gozo do pai m orto é a ú ltim a de suas inqu ietações. M ostrar ao
pai m orto o que e le , o H om em dos ratos, pensa que o pai m orto teria
desejado arrancar-lhe fan tasm aticam ente, eis aí algo que se cham a de
agressividade, e dessa agressividade o obsessivo tira o seu gozo. O pervertido,
é apenas através de um gozo estrangeiro que e le busca o seu. A perversão
é ju stam en te isso: esse cam inhar em ziguezague, esse desvio que faz
com que seu eu esteja sem pre, por m ais que e le faça, a serv iço de uma
potên cia fá lica anôn im a. Pouco lh e im porta quem é o objeto, bastar-lhe-
á que e le seja capaz de gozar, que e le possa fa ze r disso o suporte desse
fa lo d iante do qual e le se id en tificará , e som en te com o ob jeto presum ido
capaz de lhe p rop icia r o gozo. E por isso que, con tra riam en te ao que se
vê na neurose, a id en tificação perversa, com o seu tipo de re lação de
objeto, é a lço cuja u n idade, cuja estab ilidade é o que m ais surpreende.
(
Lição de 2 de maio de 1962
{
E ch egam os agora à quarta even tu a lidade, a m ais d ifíc il de se captar:
a psicose. O ps icó tico é um su jeito cuja dem anda nunca fo i sim bolizada
pelo O utro, para quem o real e o sim bólico, fantasm a e rea lidade, jam ais
puderam ser delim itados, por falta de ter podido ter acesso a essa terceira
d im ensão, ún ica a p erm itir essa d iferen c iação ind ispensável en tre esses
dois n íve is , isto é, o im agin ário . Mas aqui, m esm o tentando s im p lifica r
ao m áxim o as coisas, som os obrigados a nos situarm os no próprio com eço
da h istória do sujeito, antes da relação oral, isto é, no m om en to da
con cepção . A p rim eira am putação que sofre o ps icótico se passa antes
de seu nascimento: e le é, para sua mãe, o objeto de seu próprio metabolismo;
a partic ipação paterna é por ela negada, in ace itá ve l. E le é, d esde esse
m om en to e durante toda a gravidez, o ob jeto parcia l que vem p reen ch er
uma ausência fantasmática no nível de seu corpo. E, desde seu nascim ento,
o papel que lhe será designado, por ela, será o de ser o testem u n h o da
n egação de sua castração. A criança, con tra riam en te ao que se tem
d ito am iúde, não é o fa lo da m ãe, é o testem u nho de que o seio é o falo,
o que não é a m esm a coisa. E, para que o seio seja o fa lo , e um fa lo
m u ito poten te , é necessário que a resposta que e le traga seja p erfe ita e
total. A dem anda da criança não poderá ser recon h ec ida por nada que
não seja dem anda de a lim en to ; a d im ensão desejo, no n íve l do su jeito,
deve ser negada; e o que caracteriza a m ãe do psicótico é a p ro ib ição
total, fe ita à criança, de ser o su jeito de algum desejo. Vê-se, então, a
pa rtir desse m om en to , com o vai se constitu ir, para o p s icó tico , sua
relação particu lar com a palavra; com o, desde o p rin c ip io , lh e será
im possíve l m an ter sua relação com a dem anda. D e fato, se a resposta
só se d ir ig e a e le sem pre com o boca a alim entar, com o ob jeto parcia l,
com p reen d e-se que, para e le , toda dem anda no próprio m om en to de
sua form ulação, traz consigo a m orte do desejo. Por não ter sido simbolizado
pelo O utro, e le será levado a fa ze r co incid ir, na resposta, o s im bó lico e
o rea l. Já que, peça e le o que pedir, é a lim en to o que lh e dão, será o
a lim en to enqu an to tal que se tornará, para ele, o s ign ifican te-ch ave . O
sim bó lico , a partir desse m om en to, fará irru pção no real. N o lugar que
o dom de a lim en to en con tra seu equ iva len te s im bólico no dom de amor,
para e le todo dom de am or só poderá se s ign ifica r por uma absorção
oral. A m ar o outro, ou ser por e le am ado, se traduzirá, para e le , em
term os de ora lidade: absorver o ou tro ou ser por e le absorvido. H averá
sem pre, para ele, uma con tradição fundam ental entre dem anda e desejo,
- 2 8 9 -
A Identificação
pois, ou bem e le m antém sua dem anda e sua dem anda o destrói enquanto
su jeito de um desejo, e le tem de a lienar-se enqu an to su jeito para se
fa ze r boca, ob jeto a a lim entar, ou então buscará con stitu ir-se en qu an to
su jeito bem ou m al, e será, então, obrigado a a lien ar a parte corpora l
d e le m esm o, fon te de p ra ze r e lugar de um a resposta in com p a tíve l,
para ele, com toda tentação de autonom ia. O psicótico é sem pre obrigado
a a lien a r seu corpo en qu an to suporte de seu eu, ou a a lien a r um a
parte corpora l enqu an to suporte de um a possib ilidade de gozo. Se não
em prego aqu i o term o id en tifica ção , é porqu e ju s tam en te c re io que,
na psicose, e le não é ap licáve l. A id en tificação , na m inha óptica, im p lica
a possib ilidade de um a relação de ob jeto em que o desejo do su je ito e o
dese jo do O utro estão em situação de con flito , mas ex istem en qu an to
dois pólos constitu tivos da relação. N a psicose, é no n íve l da relação
fan tasm ática do su jeito com seu próprio corpo que seria n ecessá rio
d e fin ir o O utro e seu desejo. N ão farei isso aqu i porque nos afastaríam os
de nosso assunto, que é a angústia. C on tra riam en te ao que se poderia
crer, fo i exa tam en te dela que fa le i durante toda a m inha exp lanação,
Com o disse no princípio, som ente a partir dos parâmetros da iden tificação
p arec ia -m e possível a lcançá-la .
O ra, o que vim os? Q u er seja no su jeito d ito norm al, quer seja no
n eu ró tico ou no perverso, toda tentativa de id en tifica ção só se pode
fa ze r a partir do que e le im agin a , verdade iro ou falso, pouco im porta ,
do desejo do Outro. Q uer vocês tom em o su jeito d ito norm al, o n eu rótico
ou o p ervertido , vocês v iram que se trata sem pre de se id en tificar, em
fu n ção ou con tra aqu ilo que e le pensa ser o dese jo do O utro. E nqu anto
esse desejo puder ser im agin ado, fantasiado, o su jeito vai en con tra r
n e le as re fe rên c ias necessárias para o d e fin ir com o ob jeto do dese jo do
Outro, ou com o ob jeto que se recusa a sê-lo. Em am bos os casos, e le é
a lguém que pode se defin ir, se encontrar. M as a partir do m om en to em
que o dese jo do O utro se torna algo de m isterioso , de in d e fin íve l, o que
se revela , então, ao su jeito, é que era ju s tam en te esse desejo do O utro
que o constituiria como sujeito. O que ele encontrará, o que se desmascarará,
nesse m om en to , fa ce a esse nada, é seu fan tasm a fu ndam enta l: é que
ser o ob jeto do desejo do O utro só é uma situação suportável quando
podem os nom ear esse desejo, dar-lhe fe ições em função de nosso próprio
desejo. Mas, tornar-se o ob jeto de um desejo ao qual não podem os m ais
dar n om e é tornarm o-nos nós m esm os um ob jeto cujas ins ígn ias não
- 29O -
Lição de 2 de maio de 1962
têm m ais sen tido , já que elas são, para o O utro, in dec ifráve is . Esse
m om en to preciso, em que o eu se referencia num espelho que lhe devolve
uma im agem que não tem m ais sign ificação identificável, isso é a angústia.
C ham ando-a oral, anal ou fá lica , tudo o que fazem os é tentar d e fin ir
quais eram as insígn ias de que o eu se revestia para se fa zer reconhecer.
Se, quanto ao que aparece no espelho, som en te nós podem os fazê-lo , é
que som os os ún icos a poder ve r de que tipo são essas insígn ias que
nos acusam de não m ais reconhecer. Pois se, com o eu dizia no princípio ,
a angústia é o a feto que m ais fac ilm en te corre o risco de provocar uma
resposta recíproca, é justam ente que, a partir desse m om ento, nos tornamos
para o O u tro aqu e le cujas ins ígn ias são abso lu tam en te m isteriosas,
absolutamente inumanas. Na angústia, não é apenas o eu que está dissolvido,
é também o Outro, enquanto suporte identificatório. Nesse m esm o sentido,
vou -m e situar d izendo que o gozo e a angústia são as duas posições
extrem as em que se pode situar o eu. N a prim eira , o eu e o Outro, por
um instante, trocam suas insígnias, reconhecem -se com o dois significantes
cujo gozo com partilhado garante, durante um instante, a iden tidade dos
desejos. N a angústia, o eu e o O utro se d issolvem , são anulados numa
situação em que o desejo se perde, por falta de poder ser nom eado.
Se agora, para conclu ir, passam os à psicose, verem os que as coisas
são um pouco d iferen tes. E v id en tem en te , aqui tam bém a angústia nada
m ais é que o sinal da perda, para o eu, de toda re fe rên c ia possível. Mas
a fon te de on de nasce a angústia é aqui endógena: é o lugar de onde
pode surgir o desejo do su jeito; é seu desejo que, para o ps icótico, é a
fon te p riv ileg iad a de toda angústia.
Se é verd ad e que é o O u tro que nos constitu i, ao nos recon h ecer
com o ob jeto de desejo, que sua resposta é aqu ilo que nos faz tom ar
con sc iên c ia da distância que ex is te en tre dem anda e desejo, e que é
por essa b recha que en tram os no m undo dos sign ifican tes, ora bem ,
para o p s icó tico esse O utro é aqu ele que nu nca lhe s ign ificou outra
coisa senão um buraco, um vazio no cen tro de seu ser. A in terd ição
que lh e fo i fe ita , quanto ao desejo, fa z com que a resposta lh e tenha
fe ito ap reen der não uma d istância, mas uma an tinom ia fundam enta l
en tre dem anda e desejo, e dessa distância, que não é uma brecha, mas
um abism o, o que ve io à luz não é o s ign ifican te, mas o fantasm a, ou
seja, aquilo que provoca a telescopagem do simbólico e real que chamamos
de psicose. Para o ps icó tico - e m e descu lpo por lim itar-m e a sim ples
- 2 9 1 -
A Identificação
fó rm u las - o O u tro está in tro jetado no n íve l de seu p róp rio corpo, no
n íve l de tudo o que c ircu n da essa h iâ n c ia63 p rim eira que é tudo o que
o designa com o sujeito. A angústia está, para ele, ligada a esses m om entos
e sp ec íficos em que, a partir dessa h iância , aparece a lgum a co isa que
p od eria se cham ar de desejo ; pois, para que e le o possa assum ir, seria
p rec iso que o su je ito aceitasse se situar no ún ico lugar de on de e le
pode d ize r “ e u ” [Je], ou seja, que e le se id en tificasse a essa h iância
que, em função da in terd ição do Outro, é o ú n ico lugar em que e le é
recon h ec ido com o sujeito. Todo desejo só pode levá-lo a uma negação
de le m esm o ou a uma negação do Outro. Mas, desde que o O utro esteja
in tro jetado no nível de seu próprio corpo, que essa in tro jeção é a única
coisa que lhe perm ite v iver - eu disse, aliás, que para o psicótico a ún ica
possib ilidade de se id en tifica r com um corpo im aginário u n ificado seria
id en tificar-se com a som bra que projetaria d iante dele um corpo que
não seria o seu - toda negação do Outro seria, para ele, o equ iva len te a
uma automutilação que só faria devolvê-lo a seu próprio drama fundamental.
Se, no neu rótico , é a partir de nosso s ilên c io que podem os en con tra r
as fon tes que disparam sua angústia, no p s icó tico é a partir de nossa
fa la, de nossa presença. Tudo o que pode fa zê -lo tom ar con sc iên c ia de
que ex istim os com o d ife ren tes deles, com o sujeitos autônom os e que,
por isso m esm o, podem os reconhecê-lo , a ele , com o sujeito, torna-se
aqu ilo que pode disparar sua angústia. Enquanto ele fala, só faz repetir
um m onólogo que nos situa no nível desse Outro introjetado que o constitui.
M as, quando cabe a nós a palavra, e porque podem os, enquanto objeto,
tornar-nos o lugar em que e le tem de recon h ecer seu desejo, verem os
sua angústia disparar; pois desejar é ter de se constitu ir com o sujeito, e,
para ele , o ún ico lugar de onde ele pode fa zê -lo é aquele que o d evo lve a
seu abismo. Mas, aqui ainda, em conclusão, vocês o vêem , pode-se d izer
que a angústia aparece no m om en to em que o desejo faz do su jeito algo
que é um a falta de ser, um a fa lta de se nomear.
H á um pon to de que não tratei e que d e ixa re i de lado - lam en to
m u ito isso, pois é, para m im , um ponto fu n dam en ta l e eu gostaria de
tê-lo abordado. In fe lizm en te , teria sido necessário , para que eu pudesse
inc lu í-lo , que tivesse um dom ín io m aior do tem a que tentei tratar. Q uero
fa lar do fantasm a. E le tam bém está in t im am en te ligado à id en tifica çã o
e à angústia, a tal ponto que eu teria podido d izer que a angústia aparece
no m om en to em que o ob jeto real não pode m ais ser ap reen d ido senão
- 292 -
Lição de 2 de maio de 1962
em sua s ign ifica çã o fan tasm ática , que é a pa rtir desse m om en to , já que
toda id en tific a çã o possível do eu se d issolve, que aparece a angústia.
Mas, se é a m esm a h istória , não é o m esm o d iscurso e, por hoje, vou
parar aqu i. M as, antes de con c lu ir m eu d iscurso, gostaria de lhes trazer
um exem plo c lín ico m uito ráp ido sobre as fon tes da angústia no psicótico.
N ão lhes d ire i nada m ais da h istória , senão que se trata de um grande
esqu izo frên ico , deliran te, in ternado em d iferen tes ocasiões. As prim eiras
sessões são um rela tór io de seu delírio , d e lír io bastante clássico, é o
que e le cham a de “ o p rob lem a do h om em -rob ô ” . E depois, num a sessão
em que, com o por acaso, m en c ion ou -se o prob lem a do con tato e da
palavra, on d e e le m e exp lica qu e o que não pode suportar era “a form a
da d em an d a ” , que “ o aperto de m ão é um progresso sobre as c iv ilizações
que saúdam verb a lm en te64, on de a palavra fa lse ia as coisas, im ped e de
com preen der, on de a pa lavra é corrio um a roda que gira, on de cada um
veria um a parte da roda em m om en tos d iferen tes , e então, quando se
tenta com unicar, é fo rçosa m en te falso, há sem pre um d iá lo go ” . Nessa
m esm a sessão, no m om en to em que e le aborda o p rob lem a da fa la da
m ulher, e le m e diz, de repen te: “ O que m e preocupa é o que m e disseram
sobre os am putados, que eles sen tiriam coisas pelo m em bro que não
têm m a is ” . E, nesse m om en to , aqu ele hom em , cu jo d iscurso m antém ,
em sua fo rm a d e liran te , um a d im ensão de precisão, de um a exatidão
m atem ática , com eça a p rocu ra r suas palavras, a se em baralhar, e m e
d iz não p od er m ais segu ir seus pensam entos, e fin a lm en te p ronu n cia
esta frase, qu e acho rea lm en te im portan te , no que d iz respeito àqu ilo
que é, para o ps icótico , sua im agem do corpo: “ U m fantasm a [ fa n tô m e j,
seria um h om em sem m em bros e sem corpo que, por sua in te lig ên c ia ,
som en te perceberia sensações falsas de um corpo que e le não tem .
Isso m e p reocu pa im en sa m en te ” . “ P erceberia sensações falsas de um
corpo que e le não tem ” , essa frase vai en con tra r seu sen tido na sessão
segu in te , quando e le v irá ve r-m e para d izer que quer in terrom per as
sessões, que não é m ais suportáve l para e le , que é m alsão e perigoso, e
o que é m alsão e perigoso, o que suscita um a angústia que, durante
toda essa sessão, se fará sen tir pesadam ente, é que “ perceb i que você
qu eria sedu zir-m e e que você poderia con segu ir” . A qu ilo de que e le se
deu con ta fo i que, a partir dessas “ sensações falsas de um corpo que
e le não tem ” , poderia surgir seu desejo, e então e le teria que reconhecer,
que assum ir essa fa lta que é seu corpo, teria de o lh ar aqu ilo que, por
não ter sido sim bolizado, não é suportável ao hom em : a castração com o
tal. Sem pre naquela m esm a sessão, e le m esm o dirá, m elh or do que eu
poderia fazer, on de está, para ele, a fon te da angústia: “A g en te tem
m edo de se o lhar num espelho, porque o espelh o muda, segundo os olhos
que o olham , não se sabe exatam en te o que se va i ver ali. Se a gen te
com pra um espelho dourado é m elh or...” Tem -se a im pressão de que
aqu ilo do qual e le qu er se assegurar é que as m udanças são do espelho.
Vejam : a angústia ap arece no m om en to em que e le tem e que eu
possa torn ar-m e um ob jeto de desejo; pois, a partir desse m om en to , o
su rg im en to de seu desejo im p licar ia , para e le , a n ecessidade de assum ir
o qu e ch am ei de “ a fa lta fu n dam en ta l que o con stitu i” . A pa rtir desse
m om en to , a angústia aparece, pois sua posição de fantasm a \fantôme], de robô, não é m ais susten tável: e le c o rre o risco de não m ais p od er
n egar suas sensações falsas, de um corpo que e le não pode recon h ecer.
O que provoca sua angústia é bem o m om en to preciso em que, fa ce à
irru p ção de seu desejo, e le se pergunta qual im agem de si m esm o vai
lh e d evo lver o espelho, e essa im agem , e le sabe que corre o risco de ser
a da fa lta , do vazio, do que não tem nom e, daqu ilo que torna im possíve l
to d o r e c o n h e c im e n to r e c íp ro c o e qu e nós, e sp ec ta d o re s e a to res
in vo lu n tá rios do dram a, cham am os de angústia.
- J. L a c a n - Eu gostaria m uito, antes de ten tar apon tar o lugar
desse discurso, que algum as das pessoas que vi com m ím icas diversas,
interrogativas, de espera, m ím icas que foram precisas nesse ou naquele
m om ento do discurso da Sra. Aulagnier, queiram sim plesm ente ind icar
as sugestões, os p ensam en tos p rodu zidos nelas, nesse ou n aqu e le
p on to desse discurso, com o um sinal de que esse d iscurso fo i ouvido.
Só lam en to um a coisa: e le fo i lido. Isso m e fo rn ecerá os apoios sobre
os quais acen tu are i m ais p rec isam en te os com en tários .
- X. A u d o u a rd - O que m e su rpreendeu assoc ia tivam en te fo i, de
fa to , o exem p lo c lín ico que a Sra. nos trouxe no fim da palestra , fo i
essa frase do doen te sobre a palavra, qu e e le com para a um a roda
da qual d iversas pessoas não vêem n u nca a m esm a parte. Isso m e
pareceu esc la recer tudo o que a Sra. d isse, e abre - e não se i por
quê, aliás - toda um a am pliação dos tem as que a Sra. apresen tou .
C re io ter com p reen d id o m ais ou m en os o sen tido da palestra . N ão
A Identificação
- 2 9 4 -
Lição de 2 de maio de 1962
tenho prática com esquizofrênicos, mas, no que diz respeito aos neuróticos
e aos perversos, a angústia , um a vez que e la não pode ser ob jeto de
s im bo lização , porqu e é ju s tam en te a m arca de que a s im bolização
não pôde se fa ze r e se sim bolizar, s ign ifica rea lm en te desaparecer
nu m a esp éc ie de n ão-s im bo lização de on de parte, a cada instante, o
apelo da angústia. É, ev id en tem en te , a lgo de ex trem am en te rico,
mas que, talvez, num certo plano lógico, exigiria alguns esclarecimentos.
D e fato , com o é possível que essa exp eriên c ia fu ndam enta l, que é
de a lgum a fo rm a o n ega tivo da palavra, ven h a a se sim bolizar, e o
que é que se passa, pois, para que desse buraco cen tra l jo r re a lgo
qu e tenh am os de com p reen d er? E n fim , com o nasce a palavra? Qual
a origem do significante, nesse caso preciso? Com o se passa da angústia,
en qu an to e la não pode se dizer, para a angústia, enqu anto que ela
se d iz? H á, ta lvez, aí um m ov im en to que tem re lação com aquela
roda que gira, que teria, talvez, necessidade de ser um pouco esclarecido
e p rec isado.
- A . V e r g o t t e - F iqu e i m e pergu n tando se não haveria duas espécies
de angústia . A Sra. A u la gn ier d isse angústia -castração. O su jeito
tem m edo de que se lhe arranqu e e que seja esqu ec ido com o su jeito;
é o d esapa rec im en to do su je ito com o tal. M as m e pergunto se não
há um a angústia em que o sujeito recusa ser sujeito, se, por exem plo ,
em certos fantasm as ele quer, ao con trário , esconder o buraco ou a
falta. N o exem plo c lín ico da Sr.a Aulagnier, o su jeito recusa seu corpo,
porque o corpo lhe lem bra seu desejo e sua falta. N o exem plo da
angústia-castração, a Sra. teria dito: o su jeito tem m edo de que o
desconheçam com o sujeito. U m a angústia, portanto, tem duas direções
possíveis: ou e le recusa ser sujeito, ou há tam bém a outra angústia
on de e le tem , por exem plo, na claustrofobia, a im pressão de que ali
e le não é m ais sujeito ou, ao con trário , e le está trancafiado, está num
m undo fechado, onde o desejo não existe. E le pode estar angustiado
d iante de seu desejo e tam bém diante da ausência de desejo.
- P. A u la g n i e r - N ão a cred ite que, quando se recusa a ser su jeito, é
ju s tam en te porque se tem a im pressão de que, para o Outro, só se
pode ser su jeito pagando-lh e com sua castração. N ão cre io que a
recu sa em ser su jeito seja ser ve rd ad e ira m en te um sujeito.
- 295 -
A Identificação
- J. L a c a n - E stam os exa tam en te no coração do prob lem a. Vocês
estão vendo im ediatam ente, aqui, o ponto em que a gente se embaralha.
A ch o que esse discurso é exce len te , na m ed ida em que a m anipu lação
de algumas das noções que encontram os aqui perm itiu à Sra. Aulagn ier
va lorizar, de um je ito que não lh e teria sido poss íve l de ou tra form a,
várias d im en sões de sua exp eriên c ia .
Vou retom ar aquilo que m e pareceu im portante naquilo que ela produziu.
D igo, logo de saída, que esse d iscurso m e parece fica r na m etad e do
cam inho. É um a espéc ie de conversão, não tenham dúvida, é bem o
que ten to ob ter de vocês por m eu ensino, o que não é, m eu Deus,
a fin a l de con tas um a p reten são tão ún ica na h istória , a pon to de ser
con sid erada exorb itan te . M as, o certo é que toda um a parte do d iscurso
da Sra. Au lagn ier, e m u ito p rec isam en te a passagem em que, num a
p reocu pação com a in te lig ib ilid a d e , tanto sua quanto daqueles a quem
ela se d ir ig e , a quem e la c rê se d irigir, re to rn a a fórm u las que são
aquelas con tra as quais ten h o advertid o vocês, tenh o preparado vocês,
tenh o-os posto em guarda, e nu nca s im p lesm en te porque isso é com o
um a m an ia que eu tenha ou um a espéc ie de aversão, m as porqu e sua
c o e rên c ia com algum a co isa que se trata de abandonar rad ica lm en te
se m ostra sem pre, cada v e z que a gen te as em prega , fe ita com boas
razões. A id é ia de um a an tin om ia , por exem plo , qu a lqu er que seja, da
palavra com o afeto, ainda que seja da experiência em piricam ente verificada,
não é, todavia , a lgo sobre o qual possam os articu lar um a d ia lé tica , se é
que o que ten to fazer, d ian te de vocês, tem um valor, ou seja, p e rm itir
a vocês d esen vo lverem , tan to quanto possível, todas as con seqü ên cias
do e feito de que o hom em seja um animal condenado a habitar a linguagem .
A través disso, não poderíam os de m an eira a lgum a con sid erar o a feto
com o o que quer que seja, sem dar numa prim ariedade qualquer. N en hu m
a fe to s ign ifica tivo , n en h u m desses de que nos ocupam os, da angústia à
có lera e a todos os dem ais, não pode sequer com eça r a ser com preend ido
senão num a referência , on de a relação de x com o sign ificante é prim eira .
A n tes de m arcar d istorções, quero d izer que em relação a a lgum as
u ltrapassagens que seriam a etapa u lterior, quero, obv iam en te , m arcar
o positivo daqu ilo que já lh e perm itiu o s im p les uso desses term os, no
p rim e iro p lano dos quais estão-aqueles de que e la se serviu com ju s teza
e destreza : o desejo e a dem anda. N ão basta ter ou vido fa lar disso, se se
- 296 -
Lição de 2 de maio de 1962
serve disso de a lgum a m aneira - m as não são, de todo je ito , palavras
assim tão esotéricas, para que cada um não se ache no d ire ito de as
u tiliza r - não basta em pregar esses term os, desejo e dem anda, para
fa ze r de les um a ap licação exata. A lgum as pessoas se arriscaram nisso,
rec en tem en te , e não sei bem se o resu ltado disso fo i de algum m odo
nem brilhante - o que, afinal, não teria senão uma im portância secundária
nem m esm o tendo a m en or relação com a fu n ção que dam os a tais
term os. N ão é o caso da Sra. Au lagn ier, mas fo i o que lh e perm itiu
atingir, em alguns m om entos, uma tonalidade que m anifesta qual espécie
de conqu ista , a inda que sob a fo rm a de questões levantadas, o m anejo
dos term os nos perm ite .
Para designar a p rim eira , m ais im pressionan te abertura que e la nos
deu, vou assinalar o que e la disse do orgasm o ou, m ais exa tam en te , do
gozo am oroso. Se m e for p erm itido d irig ir-m e a ela com o Sócrates podia
d irig ir-se a a lguém [D iotim a ], lh e d ire i que ela dá aí a prova de que
sabe do que está fa lando. Q ue ela o faça, sendo m ulher, é o que parece
trad ic ion a lm en te óbvio. Estou m en os certo disso; as m u lheres, d iria
eu, são raras, senão a saber, ao m en os a poder falar, sabendo o que
dizem das coisas do amor. Sócrates dizia que certam ente podia testemunhar
isso, que e le sabia. As m u lheres são, pois, raras, m as com preendam
bem o que quero d ize r com isso: os hom ens o são a inda m ais. C om o
nos disse a Sra. Aulagnier, a propósito do que é o gozo do amor, reje itando
de um a ve z por todas aqu ela fam osa re fe rên c ia à fusão que ju s tam en te
nós, que tem os dado um sen tido com p letam en te arca ico a esse term o
de fusão, d ever ia nos p erm itir um despertar. N ão se pode, ao m esm o
tem po, ex ig ir que seja no fim de um processo que se ch egu e a um
m om en to qu a lificad o e ún ico e, ao m esm o tem po, supor que seja por
um retorno a não sei qual d iferen c iação prim itiva. Em suma, não relere i
seu texto porqu e m e fa lta tem po, mas, no con junto, não m e pareceria
inú til que esse texto - ao qual certam en te estou lon ge de dar a nota
10, quero dizer, con siderá -lo um d iscurso p e rfe ito - seja con siderado
antes com o um discurso que defin e uma escala a partir da qual poderem os
situar os progressos aos quais poderem os re fer ir-n os , a algo que fo i
tocado ou em todo caso p e rfe ita m en te captado, apanhado, agarrado,
com p reen d id o pela Sra. Aulagn ier. E v id en tem en te , não d igo que ela
dá, ali, sua ú ltim a palavra, d ire i a té m ais: em váriasocas iões , ela ind ica
os pontos em que lh e parecer ia necessá rio avançar, para com p letar o
A Identificação
que e la disse e, sem dúvida, um a grande parte da m inha satis fação vem
dos pontos que e la designa. São ju s tam en te esses que pod eria m ser
torneados» posso dizer, Esses dois pontos, e la os designou a propósito
da relação do psicótico com seu próprio corpo, por um lado - e la disse
que tinha m uitas coisas a dizer, e rios in d icou um pouqu inho delas - e,
por ou tro lado, a propósito do fantasma, cuja obscuridade na qual e la o
deixou m e pareceria su fic ien tem en te ind icativa , pelo fato de que essa
som bra é, nos grupos, um pouco geral. É um ponto.
Segu ndo ponto que m e parece m u ito im portan te , dentro do que ela
nos trouxe, é o que e la trouxe quando nos fa lou da relação perversa .
N ão, certam en te , que eu endosse em todos os aspectos o que e la disse
a esse respeito, que é de fa to de uma audácia in c r íve l. É para fe lic itá -
la a ltam en te por ter estado à altura, m esm o se é um passo a se retificar,
de tê -lo fe ito , apesar de tudo. Para não qu a lificá -lo de ou tra m an e ira ,
esse passo, d ire i qu e é a p rim e ira vez, não apenas no m eu am b ien te -
e, quanto a isso, m e fe lic ito de ter sido p reced ido aqu i - que vem em
an tec ipação algum a coisa, um a certa m aneira , um certo tom para fa la r
da relação perversa, qu e nos sugere a id é ia que é p rop riam en te o que
m e im ped iu de fa lar d isso até agora, porque não quero passar por ser
aqu e le que d iz: tudo o que se fe z até agora não vale um a fava. M as a
Sra. Aulagn ier, que não tem as m esm as razões de pudor que nós, e
aliás que o d iz em toda in ocên c ia , quero dizer, que viu perversos e se
in teressou por eles de um a fo rm a verdade iram en te analítica, com eça a
articu lar algo que, pe lo s im p les fato de poder apresentar sob essa form a
gera l, rep ito , in c r iv e lm en te audaciosa, que o perverso é aqu e le que se
torna ob jeto para o gozo de um fa lo cuja p e rten ça e le nem suspeita; e le
é o in stru m en to do gozo de um deus. Isso quer dizer, a fina l, que isso
m erece algum apon tam ento , algum a re t ifica ção de m anobra d ire tiva e,
para d izer tudo, que isso levanta a questão de rein tegrar o que cham am os
de fa lo. Q ue isso levan ta a u rgência da d e fin ição de fa lo não há dúvida,
já qu e isso certam en te tem com o e fe ito d izer-n os que se isso deve,
para nós, analistas, ter um sentido, um diagnóstico de estrutura perversa,
isso qu er d ize r que é p rec iso que com ecem os por joga r pe la ja n e la
abaixo tudo o que se escreveu , de K raft E b ing a H ave lock E llis, e tudo
o qu e se escreveu de um catá logo qua lquer p re ten sam en te c lín ico das
perversões. Em suma, há, no p lano das perversões, a n ecessidade de se
u ltrapassar essa espéc ie de d istância tom ada, sob o term o de c lín ica ,
- 2 9 8 -
Lição de 2 de maio de 1962
que na rea lida de não passa de um a m aneira de desconhecer o que há,
nessa estru tu ra, de abso lu tam en te rad ica l, de absolu tam ente aberto a
quem qu e r que tenha de dar esse passo que é ju stam en te o que ex ijo
de vocês, esse passo de con versão que nos perm ita estar, no pon to de
vista da percepção , onde saibam os o que estru tura perversa quer d izer
de absolu tam en te un iversal. Se evoqu ei os deuses não fo i por nada,
pois eu tam bém poderia ter evocado o tem a das m etam orfoses e toda a
relação m ística , algum a relação pagã com o m undo, que é aquela na
qual a d im en são p erversa tem seu valor, d ire i, c lássico. É a p rim eira
vez qu e ou ço fa la r de um certo tom que é verdade iram en te decis ivo,
que é a abertura nesse cam po, on de é ju s tam en te o m om en to em que
vou -lh es exp lica r o que é o fa lo , tem os n ecessidade disso.
A te rce ira coisa é o que ela nos disse a p ropósito de sua exp eriên c ia
com ps icó ticos . N ão p rec iso sub linhar o e fe ito que isso pode causar,
pois Audouard já deu testem u nho disso. A li, m ais um a ve z o que parece
em in en te é ju s tam en te aqu ilo por m eio do qual isso nos abre tam bém
essa estru tu ra psicó tica com o sendo algo onde devem os sen tir-nos em
casa. Se não som os capazes de p e rceb er que há um certo grau, não
arca ico, a pôr de lado em algum lugar do nascim en to , m as estru tural,
no n íve l do qual os desejos são p rop riam en te fa lan do loucos; se, para
nós, o su jeito não in c lu i em sua d e fin ição , em sua articu lação prim eira ,
a possib ilidade da estrutura psicótica, nunca serem os m ais que alienistas.
Ora, com o não sen tir v ivo, com o acon tece todo o tem po àqu eles que
vêm escu tar o que se d iz aqu i n este sem inário , com o não perceber que
tudo o que c o m ece i a articu lar este ano, a p ropósito da estru tura de
su p erfíc ie do sistem a e do en igm a que d iz respeito à m aneira com o o
su jeito pode ter acesso a seu p róp rio corpo, é que isso não vem por si
só, aqu ilo de que todos estão há m u ito tem po advertidos, já que essa
fam osa e e te rn a d istinção de desun ião ou un ião da alm a e do corpo é
sem pre, a fina l, o pon to de aporia con tra o qual todas as articu lações
filosóficas vieram chocar-se. E por que é que, para nós, analistas, justamente,
não seria possível en con trar a passagem ? Isso necessita som ente de
um a certa d iscip lina, e, em p rim eiríss im o lugar, saber com o fa zer para
fa lar do su jeito.
O que causa d ificu lda de para se fa lar do su jeito é isso que vocês
nunca m eterão na cabeça su fic ien tem en te , sob a form a brutal com o
- 2 9 9 -
vou enu n ciá-lo , é que o su jeito nada m ais é que a con seqü ên c ia de que
há s ign ifican te e que o n asc im en to do su jeito p ren de-se a isso: que e le
só pode se pensar com o exc lu ído do s ign ifican te que o d e term in a . A í
está o va lor do p equ en o c ic lo que lhes in trodu zi na ú ltim a sessão e do
qual ainda não term inam os de ouvir falar, pois, na verdade, será preciso,
de toda m aneira , que eu desdobre m ais uma vez, d iante de vocês, antes
que possam ver bem exatam en te aonde isso nos leva. Se o su jeito é só
isso: essa parte excluída de um campo inteiram ente definido pelo significante,
se só é a partir daí que tudo pode nascer, é preciso sem pre saber em que
n íve l fazem os in terv ir esse termo, sujeito. E, apesar dela, porque é a nós
A Identificação
que e la fa la e p orqu e é a ela, e porqu e há ainda algo que não está
ainda adquirido, assum ido apesar de tudo, quando ela fala dessa escolha,
por exem plo , que há em ser su je ito ou objeto, a propósito da relação
com o desejo, então, apesar dela, con tra sua vontade, a Sra. A u lagn ier
se de ixa escorregar, ao re in trod u zir no su jeito a pessoa, com toda a
d ign idade su bseqü en te que vocês sabem que lhe dam os, em nossos
tem pos escla rec idos: personologia , personalism o, person a lidade e tudo
o que se segue, aspecto que con vém , pois cada um sabe que vivem os
em m eio a isso. N u n ca se fa lou tanto da pessoa. Mas, en fim , com o
nosso trabalho n ão ié um trabalho que deva m u ito se in teressa r pe lo se
passa na praça púb lica , tem os de nos interessar, então, pe lo su jeito.
Então, ali, a Sra. Au lagn ier cham ou em seu socorro o term o “parâm etro
da angústia” . Ora, ali, ainda assim, a propósito de pessoa e da personologia,
vocês vêem um trabalho bastante con s id eráve l, que m e tom ou alguns
m eses, um trabalho de observações sobre o d iscurso de nosso am igo
D an iel Lagache. P eço-lhes que se reportem a ele, para ver a im portânc ia
que teria tido na articu lação que e la nos deu da função da angústia e
dessa espéc ie de fô le g o cortado que e la con stitu ir ia no n ív e l da palavra,
a im portân c ia que d ev ia n o rm a lm en te tom ar em sua palestra a fu nção
i (n ) , d ito de ou tro je ito , a im agem especu la r que, certa m en te , não está
- 300 -
Lição de 2 de maio de 1962
to ta lm en te ausen te de sua palestra , porque, a fina l, fo i d ian te de seu
espe lh o qu e e la acabou arrastando seu ps icó tico , e por quê? Porque
e le ve io sozinho, esse ps icó tico , até o espelh o, e fo i ali então, portanto,
que e la lh e deu, com razão, um a sessão. E, para pôr um pouco de
sorriso, inscreverei, à m argem das observações que fizeram sua adm iração
n aqu ilo que e la c itou , esses quatro vers inh os in scritos no fu n do de um
prato que tenh o em m inha casa:
A M in a seu espelho f i e l
M os tra , ai, t raços a longados
A h céus! Oh Deus! E xc la m a ,
C om o os espelhos m u d a r a m ! .65
É e fe tiva m en te o que lhe d iz o seu psicótico, m ostrando a im portânc ia
aqu i da função , não do id ea l do eu, m as do eu idea l, com o lu gar on de
vêm se fo rm a r as id en tifica ções p rop riam en te egó icas, m as tam bém
com o lugar on de a angústia se produz, a angústia que qu a lifiq u e i de
sensação do desejo do O utro. L eva r essa sensação do desejo do O u tro à
d ia lé tica do desejo p róp rio do su jeito, em face do desejo do O utro, eis
toda a d istância que há en tre o que eu tinha com eçado e o n ív e l já
m uito eficaz em que se sustentou todo o desenvolvim ento da Sra. Aulagnier.
M as, esse n íve l de a lgum a m an eira con flit ivo , com o ela nos disse,
que é de re fe rên c ia de dois desejos já no su jeito constitu ído, não é ali
que, de alguma maneira, pode-nos bastar para situar a diferença, a distinção
que há nas relações do desejo, por exem plo , no n íve l das quatro espécies
ou gêneros que e la defin iu para nós sob os term os de norm al, perverso,
neu rótico , psicótico. Q ue a palavra, de fato, faça falta em algo a propósito
da angústia, é nisso que não podemos desconhecer, com o um dos parâmetros
absolu tam en te essencia is que e la não pode designar quem fala, que ela
não pode re fe r ir a esse pon to i (a ) , o j e que, no próprio discurso, se
designa com o aquele que a tu alm en te fala, e o associa àquela im agem de
dom ín io que se encon tra vacilante, nesse m om ento.
E isso pôde ser lem brado a ela, porque anote i, no que ela quis tom ar
com o pon to de partida, a propósito do sem inário de 4 de abril. L em brem -
se da im agem vac ilan te que ten te i constru ir, d ian te de vocês, de m eu
con fron to obscuro com o louva-a-deus e disso, qu e se p rim e iro fa le i da
im agem que se re fle t ia em seu olho, era para d ize r que a angústia
- 3 0 1 -
com eça a partir desse m om en to essen c ia l em que essa im agem está
ausente. Sem dúvida, o p equ en o a que sou para o fantasm a do ou tro é
essencia l, mas on de fa lta isso - a Sra. A u la gn ier não o d escon h ece ,
porque ela o restabeleceu em outras passagens de seu discurso, a m ed iação
do im aginário, é isso que ela quer dizer, mas ainda não está su fic ien tem ente
articu lado. É o i ( a ) que fa lta e que está a li em função.
N ão vou levar isso m ais longe, porqu e vocês já p erceberam que se
trata nada m en os que da retom ada do d iscu rso do sem inário , m as é aí
que vocês devem sen tir a im portân c ia do que in trodu zim os. Trata-se
do que vai fa ze r a ligação, na econ o m ia s ign ifican te , da con stitu ição
do su jeito no lugar do desejo. E vocês d evem aqu i en trever, suportar,
res ignar-se a isso, qu e ex ig e de nós a lgum a coisa que p arece tão lon ge
de suas p reo cu p a çõ es tr iv ia is , en fim , de um a co isa qu e p od em o s
d ecen tem en te p ed ir a h onoráve is espec ia lis tas com o vocês, qu e não
vêm , a fina l, aqu i para estudar g eom etr ia e lem entar. Estejam seguros,
não se trata de g eom etr ia , já que não é de m étrica , é a lgum a coisa da
qua l os geôm etras não tiveram até agora nen h u m a espéc ie de id é ia : as
d im en sões do espaço. C h ega re i m esm o a d ize r que, o Sr. D esca rtes não
tinha nen hum a espéc ie de id é ia das d im en sões do espaço.
As d im en sões do espaço é algo, por ou tro lado, que fo i d ec id ido ,
va lo r izado por um certo n ú m ero de b rin cadeiras fe itas em torn o desse
te rm o com o a quarta ou qu in ta d im en são e ou tras coisas que têm um
sen tido absolu tam en te p rec iso em m atem á tica , m as das quais é sem pre
m açan te ou vir fa lar p e los in com p eten tes , de sorte que, quando se fa la
disso, tem -se sem pre o sen tim en to de que se está a fa ze r o que se
cham a de ficção-científica , e isso tem, apesar de tudo, m uito m á reputação.
M as, no fim das contas, vocês verão que tem os nossa palavra a d ize r a
esse respeito. C om ece i a articu lá-lo nesse sen tido de que p s iqu icam en te
eu lh es disse que só tem os acesso a duas d im en sões. Q uan to ao resto,
só há um esboço, um para-a lém . N o que d iz respe ito à exp eriên c ia , em
todo caso para uma h ipótese de pesquisa que pode nos servir para algum a
coisa, se qu iserem ad m itir que não há nada de bem es tab e lec id o a lém
- e já é su fic ien tem en te r ico e com plicado - da experiên cia da su perfíc ie .
M as isso não quer d ize r qu e não possam os encontrar, na exp e r iên c ia
da superfície sozinha, o testem unho de que ela, superfície, está m ergulhada
nu m espaço que não é de fo rm a a lgum a esse que vocês im agin am , com
sua exp eriên c ia visual da im agem especular.
A Identificação
- 302 -
Lição de 2 de maio de 1962
E, para resum ir, esse p equ en o objeto, que m ais não é senão o nó
m ais e lem en tar, não esse qu e não f iz por fa lta de ter pod ido trançar
um barbante que se fe ch a r ia sobre si m esm o, [m as] s im p lesm en te isso,
o nó m ais e lem en tar, aqu ele que se traça assim , su fic ien te para levar
em si um certo n ú m ero de questões que in trodu zo, d izen do-lh es que a
te rce ira d im en são não basta, de form a nen hum a, para dar con ta da
possib ilidade disso. N o en tan to , um nó é a lgo que está ao a lcan ce de
todo m u ndo; não está ao a lcan ce de todo m undo saber o que e le fazia ,
ao fa ze r um nó, mas, en fim , isso tom ou um va lor m eta fó r ico : os nós do
casam en to, os nós do am or, os nós sagrados ou não, por que é que se
fa la de les? São m odos com p le ta m en te sim ples, e lem en tares , de pôr ao
a lcan ce de vocês o caráter usual, se qu erem en trar nisso, que se tornou,
um a ve z usual, suporte possível de um a con versão que, se se rea liza ,
m ostrará bem e logo em segu ida que ta lvez esses term os devam ter
a lgo a ve r com essas re fe rên c ia s de estru tura de que precisam os para
d istinguir o que se passa, por exem plo, nessas escalas que a Sra. Aulagn ier
d ivisou , in do do norm al ao psicótico .
Será que, nesse pon to de ju n çã o onde, para o sujeito, se con stitu i a
im agem -n ó , a im agem fu n dam en ta l, a im agem que p erm ite a m ed iação
entre o sujeito e seu desejo, será que não podem os in trodu zir as distinções
bem s im p les e, vocês verão , rea lm en te u tilizáve is na prática, que nos
p erm item rep resen tarm o-n os de uma m an eira m ais s im ples e m enos
fon te de an tinom ia , de aporia, de em baraço, de lab ir in to fin a lm en te ,
que os que tínham os até aqu i a nossa d isposição, a saber, essa noção
sum ária, p or exem plo , de um in te r io r e de um ex te r io r que, de fato,
tem o aspecto de ser e v id en te , a partir da im agem especu lar e que não
é abso lu tam en te, fo rçosam en te , a que nos é dada pela experiên cia?
- 3 0 3 -
'
.ill
9 de m a io de 1962
LIÇAO XIX
N a ú ltim a sessão, ou vim os a Sr.a A u lagn ier fa lar-nos da angústia.
Prestei toda a hom enagem que seu discurso m erecia, fruto de um trabalho
e de uma re flexão absolu tam en te bem orien tados. Ao m esm o tem po,
fiz observar o quanto certo obstáculo, que situei no nível da com unicação,
é sem pre o m esm o, aqu ele que se levanta toda vez que tem os de fa lar
da linguagem . Seguram ente, os pontos sensíveis, os pontos que m erecem ,
den tro do que ela nos disse, ser retificados são aqueles p rec isam en te
em que, pondo o acen to no que existe, o in d iz íve l, ela faz disso o ín d ice
de um a h eterogen e id ad e daqu ilo que ju s tam en te ela visa com o o “não
poden do ser d ito ” , enqu an to aqu ilo de que se trata, no caso, quando se
p rodu z a angústia, é ju s tam en te para se ap reen der na sua ligação com
o fa to de que há o “ d iz e r ” e o “não podendo ser d ito ” . E assim que ela
não pode dar todo o seu p len o va lor à fórm u la que o desejo do hom em
é o desejo do Outro. Não é por referência a um terceiro que seria renascente,
o su jeito m ais cen tra l, o su jeito id ên tico a si m esm o, a con sc iên c ia de
si h ege lian a , que d everia operar a m ed iação en tre dois desejos que e la í
teria , de algum a m aneira , d iante de si: o seu próprio, com o um objeto,
e o desejo do Outro. E m esm o ao dar a esse desejo do Outro a prim azia ,
ela teria de situar, de defin ir seu próprio desejo numa espécie de referência, 1
de relação ou não de dependência a esse desejo do Outro. E viden tem ente, (
num certo n íve l em que podem os perm an ecer sem pre, há algo dessa
ordem , mas esse algo é p rec isam en te aqu ilo graças a que ev itam os o
qu e está no coração de nossa exp eriên c ia e o que se trata de apreender.
E é por isso que tento fo r ja r para vocês um m odelo do que se trata de (
(
c
(
c
(- 3 0 5 -
A Identificação
apreender. 0 que se trata de apreender é que o su jeitoÜC que nos interessa
é o desejo . O bv iam en te , isso só faz sen tido a partir do m om en to em que
com eçam os a articular, a situar a que distância, através de que truque,
que não é de tela in term ed iá r ia , m as de constitu ição, de determ in ação ,
podem os situar o desejo.
N ão é que a dem an da nos separe do desejo - se bastasse a fastar a
dem anda, para encon trá-lo ! - sua articu lação sign ificante m e determ ina,
m e con d ic ion a com o desejo. Esse é o lon go cam inho que já f iz vocês
percorrerem . Se o to rn e i tão lon go é porque era preciso qu e fosse assim
para que a d im ensão que isso supõe lhes faça fazer, de a lgum a m aneira ,
a exp e riên c ia m en ta l de apreendê-lo . M as esse desejo, assim levado,
retransportado numa distância, articulado assim - não além da linguagem ,
por causa da im po tên c ia dessa linguagem , m as estru turado com o desejo
por causa dessa m esm a potência - é e le agora que se tem de reen con trar
para que eu consiga fa ze r com que vocês con cebam , apreendam , e há,
na apreensão, na Begr if f , a lgum a coisa de sensível, a lgum a co isa de
um a estética transcendenta l que não deve ser aquela até aqu i conceb ida,
já que é ju s tam en te naqu ela até aqu i con ceb ida que o lugar do desejo,
até o presente, se tem esqu ivado. Mas é o que exp lica a vocês m inha
ten tativa , que espero tenha êxito, de levá-los por cam inhos que são
tam bém os da estética , na m ed ida em que e les tentam agarrar a lgum a
coisa que nunca fo i vista em todo seu relevo, em toda a sua fecu n d id ad e
no n ív e l das in tu ições , não tanto espacia is quanto topo lóg icas, pois é
prec iso que nossa in tu ição do espaço não esgote tudo o que é de uma
certa ordem , posto que tam bém aqueles m esm os que se ocupam disso
com a m aior qua lificação , os m atem áticos, tentam de todas as m aneiras,
e con seguem , extrapo la r a in tu ição.
Levo-os por esse cam inho, afinal, para d ize r as coisas com palavras
que sejam palavras de ordem ; trata-se de escapar à p reem in ên c ia da
in tu ição da esfera com o aquela que, de algum a m aneira, com anda m uito
in tim am en te , m esm o quando não pensam os nela, nossa lóg ica . Pois,
e v id en tem en te , se há uma estética que se cham a de transcenden ta l,
que nos interessa, é porque é e la que dom ina a lógica. É por isso que
àqu eles que m e d izem : “ Será que você não poderia d izer-n os rea lm en te
as coisas, fa zer-n os com preen der o que se passa com um n eu ró tico e
com um perverso, e em que é d iferen te , sem passar pelos seus pequenos
toros e outros desv ios? ", eu respon dere i que é, todavia, ind ispensável,
- 306 -
Lição de 9 de maio de 1962
absolu tam en te ind ispensáve l, e pela m esm a razão, porque é a m esm a
coisa que fa ze r lóg ica , pois a lóg ica em questão não é coisa vazia. Os
lóg icos, assim com o os gram áticos, d isputam en tre si, e essas disputas,
por m ais que, e v id en tem en te , só possam os penetrar em seu cam po ao
evocá-las com d iscrição, sob o risco de nos perderm os ali, mas toda a
con fia n ça que vocês têm por m im repousa nisso: é que vocês m e dão o
c réd ito por ter fe ito algum es fo rço para não tom ar o p rim eiro cam inho
que apareceu e por ter e lim in ad o um certo nú m ero de cam inhos.
Mas, assim m esm o, para tranqu ilizá-los, vem -m e a id é ia de fazê-los
observar que não é in d ife ren te pôr em p rim e iro plano, na lóg ica , a
fu n ção da h ipótese, por exem plo , ou a fu nção da asserção. N o teatro,
n aqu ilo que se cham a de adaptação, faz-se com que Ivan Karam ázov
diga: “ Se D eus não ex is te , en tão tudo é p e rm it id o ” . R eportem -se ao
texto. Vocês lêem - e, aliás, se m inha m em ória não falha, é A lioch a
quem d iz isso, quase que por acaso: “Já que Deus não ex iste , então
tudo é p e rm it id o ” . E n tre esses dois term os ex iste a d iferen ça do se e do
j á que, is to é, de um a lóg ica h ipo té tica a um a lóg ica assertórica. E
vocês m e dirão: “ D is tinção de lógicos, em quê ela nos in teressa?”
E la nos in teressa tanto que é para apresen tar as coisas do p rim e iro
m odo que, no ú ltim o term o, no term o kantiano, é m antida para nós a
ex is tên c ia de Deus. Já que, em suma, tudo está lá; com o, é ev iden te ,
tudo não é perm itid o , en tão, na fórm u la h ipotética , im põe-se com o
necessário que Deus exista. E eis por que sua filha é m uda67 e com o,
na a rticu lação ensinan te do livre pensam ento, m antém -se no cern e da
articu lação de todo pensam en to válido a ex is tên c ia de Deus com o um
term o sem o qual não haveria sequ er m eio de avançar algum a coisa na
qual se apreendesse a som bra de uma certeza . E vocês sabem - o que
acred itei dever lem brar-lhes um pouco sobre esse assunto - que a trajetória
de D escartes não pode passar por outros cam inhos. A con tece que não
é fo rçosam en te , ao designá-lo com o term o de ateísta, que se d e fin irá
m e lh or nosso pro jeto, que é ta lvez tentar fa ze r passar por outra coisa
as con seqü ên cias que esse fa to com porta , para nós, de experiên cia , o
fa to de que haja algo de perm itido . “ Há p erm itid o porque há in te rd ito ” ,
m e d irão vocês, bem con ten tes de en con trar a li a oposição en tre o A e
o não-A , en tre o branco e o preto. Sim , m as isso não basta, porque,
lon ge de esgotar o cam po, o p erm itido e o proib ido, o que se trata de
estruturar, de organizar, é com o é verdade que um e outro se determ inem ,
- 3 0 7 -
A Idetüificação
e m u ito estre itam en te, de ixan do , ao m esm o tem po, um cam po aberto
que, não som en te não é exc lu íd o por e les, m as os faz reu n ir-se e, nesse
m ov im en to de torção, se se pode dizer, dá sua form a, p rop riam en te
fa lando, àqu ilo que sustenta o todo, ou seja, a form a do desejo . Para
d izer a verdade: que o desejo se institu i em transgressão, cada um sente,
cada um vê bem , cada um tem a exp e riên c ia disso, o que não quer
dizer, não pode sequ er qu erer d izer que se trata, aí, apenas de uma
questão de fronteira, de lim ite traçado. E para além da fronteira ultrapassada
qu e com eça o desejo.
E v id en tem en te , isso parece freq ü en tem en te o cam inho m ais curto,
m as é um cam inho desesperado. E por um ou tro lugar que se fa z a
passagem . A inda que a fron te ira , a do pro ib ido, não s ign ifiqu e tam pouco
fa zê - lo baixar do céu e da ex is tênc ia do s ign ifican te . Q uando fa lo a
vocês da Le i, fa lo dela com o Freud, ou seja, que, se um dia ela surgiu,
sem dúvida fo i n ecessá rio que o s ign ifican te im ed ia tam en te pusesse
ali sua m arca, sua insígn ia , sua form a, m as é a inda assim de algo que
é um desejo orig ina l que o nó se pôde fo rm a r para que se fu n d em
ju n tos a Le i, com o lim ite , e o desejo, em sua form a. É isso que ten tam os
figu ra r para en trar até no deta lhe, percorrer n ovam en te esse cam in h o
que é sem pre o m esm o, m as que fech am os em torno de um nó cada
vez m ais cen tra l, do qual não p erco a esperan ça de m ostrar a vocês a
figu ra um bilica l. N ós retom am os o m esm o cam in h o e não esqu eçam os
que o que está m en os situado, para nós, em term os de re ferên c ias , que
seriam quer lega listas, qu er form alistas, qu er naturalistas, é a noção
do p equ en o a en qu an to não é o outro im agin ário que e le designa. Por
m ais qu e nos id en tifiq u em os com e le no d escon h ec im en to egó ico , é
i ( a ) . E ali tam bém en con tram os esse m esm o nó in terno , que fa z com
que o que tem o aspecto de ser tão sim ples: que o Outro nos é dado sob
um a fo rm a im aginária , não o é, porque esse O utro, é ju s tam en te de le
que se trata, quando fa lam os do objeto. D esse objeto, não se trata de
d izer absolutam ente que é sim plesm ente o objeto real, que é precisam ente
o objeto do desejo enquanto tal, sem dúvida orig inal, mas que só podem os
con sid era r com o tal a partir do m om en to em que tiverm os captado,
com preen d ido , aprend ido o que quer d izer que o sujeito, en qu an to se
con stitu i com o d epen dên c ia do s ign ifican te , com o além da dem anda,
é o desejo.
- 308 -
Lição de 9 de maio de 1962
O ra, é esse pon to do laço que a inda não está assegurado e é aí que
avançam os e e por isso que nos lem bram os do uso que tem os fe ito até
aqu i do p equ en o a. O nde fo i que o vim os? O n de é que vam os designá-
lo p rim e iro? N o fantasm a, on de, bem ev id en tem en te , há uma função
que tem algum a relação com o im agin ário . Vamos cham á-la de v a lo r
im a g in á r i o no fa n ta sm a . E la não é
apenas simplesmente projetável de uma
m aneira intu itiva na função de engodo
tal com o nos é dada na exp eriên c ia
b io lóg ica , por exem plo . E ou tra coisa
e é o q u e fa z le m b ra r a v o c ê s a
form alização do fantasm a com o sendo
constituído em sua relação pelo conjunto
$ desejo de a l $ o a ] , e a situação
dessa fórm u la no gra fo que m ostra
hom olog icam en te, por sua posição no
estág io su perio r que a fa z h om óloga ,
do i ( a ) do estág io in ferior, en qu an to
e le é o suporte do eu, m m inú scu lo
aqu i, assim com o $ desejo de a é o
suporte do desejo . O que isso qu er d izer? E que o fantasm a está ali
onde o sujeito se apreende, naqu ilo que lhes apon tei por estar em questão
no segundo estág io do grafo , sob a form a retom ada no n íve l do O utro,
no cam po do O utro, nesse pon to aqui do grafo , da questão: “ O que isso
q u e r? ” , que é igu a lm en te aqu ela que tom ará a form a : “Q ue quer e le ? ”
se a lguém soube tom ar o lugar, pro jetado pela estru tura, do lugar do
Outro, a saber, esse lugar de quem é o m estre e o garante. Isto quer
d izer que, no cam po e no percurso dessa questão, o fantasm a tem uma
função hom óloga àquela de i ( a ) , do eu ideal, eu im agin ário sobre o qual
repouso; que essa função tem um a dim ensão, sem dúvida algumas vezes
apontada e m esm o m ais de uma vez, da qual é preciso aqui que eu lhes
lem bre que e le an tecipa a fu nção do eu ideal, com o isso se represen ta
no grafo para vocês, que é por um a espéc ie de retorno que perm ite,
assim m esm o, um curto-c ircu ito em relação à condu ção in ten ciona l do
discurso considerado com o constitu in te do sujeito, neste prim eiro andar,
que aqui, antes que s ign ificado e s ign ificante, se cruzando novam ente,
e le tenha constitu ído sua frase, o sujeito im aginariam ente antecipa aquele
- 3 0 9 -
A Identificação
apreender. O que se trata de apreender é que o su jeito00 que nos interessa
é o desejo . O bv iam en te , isso só faz sen tido a partir do m om en to em que
com eçam os a articular, a situar a que d istância, através de que truque,
que não é de tela in term ed iá r ia , mas de constitu ição, de d eterm in ação ,
podem os situar o desejo.
N ão é que a dem an da nos separe do desejo - se bastasse a fastar a
dem anda, para encon trá-lo l - sua articu lação sign ificante m e determ ina,
m e con d ic ion a com o desejo. Esse é o lon go cam inho que já f iz vocês
percorrerem . Se o to rn e i tão longo é porque era preciso que fosse assim
para que a d im ensão que isso supõe lhes faça fazer, de a lgum a m aneira ,
a exp eriên c ia m en ta l de apreendê-lo . M as esse desejo, assim levado,
retransportado numa distância, articulado a s s im -n ã o além da linguagem ,
por causa da im po tên c ia dessa linguagem , m as estru turado com o desejo
por causa dessa m esm a potência - é e le agora que se tem de reen con trar
para que eu consiga fa ze r com que vocês con cebam , apreendam , e há,
na apreensão, na B egr if f , a lgum a coisa de sensível, a lgum a coisa de
um a estética transcendenta l que não deve ser aquela até aqu i conceb ida,
já que é ju s tam en te naqu ela até aqui con ceb ida que o lugar do desejo,
até o presente, se tem esqu ivado. M as é o que exp lica a vocês m inha
ten tativa , que espero tenha êxito, de levá-los por cam inhos que são
tam bém os da estética , na m ed ida em que e les tentam agarrar a lgum a
coisa que nunca fo i vista em todo seu relevo, em toda a sua fecu n d id ad e
no n íve l das in tu ições , não tanto espacia is quanto topo lóg icas, pois é
p rec iso que nossa in tu ição do espaço não esgote tudo o que é de uma
certa ordem , posto que tam bém aqueles m esm os que se ocupam disso
com a m aior qua lificação , os m atem áticos, tentam de todas as m aneiras,
e con seguem , extrapo la r a intu ição.
L evo-os por esse cam inho, afina l, para d izer as coisas com palavras
que sejam palavras de ordem ; trata-se de escapar à p reem in ên c ia da
in tu ição da esfera com o aquela que, de algum a m aneira, com anda m uito
in tim am en te , m esm o quando não pensam os nela, nossa lóg ica . Pois,
e v id en tem en te , se há uma estética que se cham a de transcenden ta l,
que nos interessa, é porque é ela que dom ina a lóg ica . É por isso que
àqu eles que m e d izem : “ Será que você não poderia d izer-n os rea lm en te
as coisas, fazer-n os com p reen d er o que se passa com um n eu ró tico e
com um perverso, e em que é d iferen te , sem passar pelos seus pequenos
toros e outros d esv io s? ” , eu respon dere i que é, todavia, ind ispensável,
- 306 -
Lição de 9 de maio de 1962
absolu tam en te ind ispensável, e pela m esm a razão, porque é a m esm a
coisa qu e fa ze r lóg ica , pois a lóg ica em questão não é coisa vazia. Os
lóg icos, assim com o os gram áticos, d isputam en tre si, e essas disputas,
por m ais que, ev id en tem en te , só possam os pen etrar em seu cam po ao
evocá-las com d iscrição, sob o risco de nos perderm os ali, mas toda a
con fia n ça que vocês têm por m im repousa nisso: é que vocês m e dão o
c réd ito por ter fe ito algum es fo rço para não tom ar o p rim eiro cam inho
que apareceu e por ter e lim in ad o um certo nú m ero de cam inhos.
Mas, assim m esm o, para tranqu ilizá-los, vem -m e a idé ia de fazê-los
observar que não é in d ife ren te pôr em p rim e iro plano, na lóg ica , a
fu n ção da h ipótese, por exem plo , ou a fu nção da asserção. N o teatro,
n aqu ilo que se cham a de adaptação, faz-se com que Ivan Karam ázov
diga: “ Se D eus não ex is te , en tão tudo é p e rm itid o ” . R eportem -se ao
texto. Vocês lêem - e, aliás, se m inha m em ória não falha, é A lioch a
quem d iz isso, quase qu e p o r acaso: “Já que Deus não existe, então
tudo é p e rm it id o ” . En tre esses dois term os ex iste a d iferen ça do se e do
j á que, isto é, de um a lóg ica h ipo té tica a um a lóg ica assertórica. E
vocês m e dirão: “ D is tinção de lógicos, em quê ela nos in teressa?”
E la nos in teressa tanto que é para apresen tar as coisas do p rim e iro
m odo que, no ú ltim o term o, no term o kantiano, é m antida para nós a
ex is tên c ia de Deus. Já que, em suma, tudo está lá; com o, é ev iden te ,
tudo não é perm itid o , en tão, na fórm u la h ipo tética , im põe-se com o
necessário que Deus exista. E eis por que sua filh a é m uda67 e com o,
na articu lação ensinan te do livre pensam ento, m antém -se no ce rn e da
articu lação de todo pensam en to válido a ex is tênc ia de Deus com o um
term o sem o qual não haveria sequer m eio de avançar a lgum a coisa na
qual se ap reen desse a som bra de uma certeza . E vocês sabem - o que
acred itei dever lem brar-lhes um pouco sobre esse assunto - que a trajetória
de D escartes não pode passar por outros cam inhos. A con tece que não
é fo rçosam en te , ao designá-lo com o term o de ateísta, que se d e fin irá
m e lh or nosso pro jeto, que é ta lvez ten tar fa ze r passar por outra coisa
as con seqü ên cias que esse fa to com porta , para nós, de experiên cia , o
fato de que haja algo de p erm itido . “ Há perm itid o porque há in te rd ito ” ,
m e d irão vocês, bem con ten tes de en con tra r ali a oposição en tre o A e
o não-A, en tre o branco e o preto. Sim , mas isso não basta, porque,
lon ge de esgotar o cam po, o p erm itido e o proib ido, o que se trata de
estruturar, de organizar, é com o é verdade que um e outro se determ inem ,
- 3 0 7 -
A Identificação
e m u ito es tre itam en te, de ixan do , ao m esm o tem po, um cam po aberto
que, não som en te não é exc lu ído por eles, m as os faz reu n ir-se e, nesse
m ov im en to de torção, se se pode dizer, dá sua form a, p rop riam en te
fa lando, àqu ilo que sustenta o todo, ou seja, a fo rm a do desejo . Para
d izer a verdade: que o desejo se institu i em transgressão, cada um sente,
cada um vê bem , cada um tem a exp e riên c ia disso, o que não quer
dizer, não pode sequ er qu erer d izer que se trata, aí, apenas de um a
questão de fronteira, de lim ite traçado. E para além da fronteira ultrapassada
que com eça o desejo.
E v id en tem en te , isso parece freq ü en tem en te o cam inho m ais curto,
m as é um cam inho desesperado. E por um ou tro lugar que se fa z a
passagem . A inda que a fron te ira , a do proib ido, não sign ifique tam pouco
fa zê - lo baixar do céu e da ex is tên c ia do s ign ifican te . Q uando fa lo a
vocês da Le i, fa lo dela com o Freud, ou seja, que, se um dia ela surgiu,
sem dúvida fo i n ecessá rio que o s ign ifican te im ed ia tam en te pusesse
ali sua m arca, sua insígn ia , sua form a, m as é a inda assim de algo que
é um desejo o r ig in a l que o nó se pôde fo rm a r para que se fu n d em
ju n tos a L e i, com o lim ite , e o desejo, em sua form a. É isso que ten tam os
figu ra r para en trar até no deta lhe, percorrer novam en te esse cam in h o
que é sem pre o m esm o, m as que fech am os em torno de um nó cada
vez m ais cen tra l, do qual não perco a esperança de m ostrar a vocês a
figu ra um bilica l. N ós retom am os o m esm o cam inho e não esqu eçam os
que o que está m enos situado, para nós, em term os de re ferên c ias , que
seriam quer lega listas, qu er form alistas, qu er naturalistas, é a noção
do p equ en o a enqu an to não é o outro im agin ário que e le designa. Por
m ais que nos id en tifiq u em os com ele no d escon h ec im en to egó ico , é
i ( a ) . E ali tam bém en con tram os esse m esm o nó in terno , que fa z com
que o que tem o aspecto de ser tão sim ples: que o Outro nos é dado sob
um a fo rm a im agin ária , não o é, porque esse Outro, é ju s tam en te de le
que se trata, quando fa lam os do objeto. D esse objeto, não se trata de
d izer absolutam ente que é sim plesm ente o objeto real, que é precisam ente
o objeto do desejo enquanto tal, sem dúvida orig inal, mas que só podem os
con sid era r com o tal a partir do m om en to em que tiverm os captado,
com preen d ido , aprend ido o que quer d izer que o sujeito, enqu an to se
con stitu i com o depen dên c ia do s ign ifican te , com o além da dem anda,
é o desejo.
- 308 -
Lição de 9 de maio de 1962
Ora, é esse pon to do laço que ainda não está assegurado e é aí que
avançam os e é por isso que nos lem bram os do uso que tem os fe ito até
aqu i do p equ en o a. O nde fo i que o vim os? O nde é que vam os designá-
lo p r im e iro? N o fantasm a, onde, bem ev id en tem en te , há uma fu nção
que tem algum a relação com o im aginário . Vamos cham á-la de v a lo r
im a g in á r i o no fa n ta sm a . E la não é
apenas simplesmente projetável de uma
m aneira intu itiva na função de engodo
tal com o nos é dada na exp e riên c ia
b io lóg ica , p or exem plo . E ou tra coisa
e é o q u e fa z le m b ra r a v o c ê s a
form alização do fantasm a com o sendo
constituído em sua relação pelo conjunto
$ desejo de a [ $ < > a ] } e a situação
dessa fórm u la no gra fo que m ostra
hom olog icam en te, por sua posição no
estág io su perio r que a fa z hom óloga ,
do i ( a ) do estág io in ferior, en qu an to
e le é o suporte do eu, m m inú scu lo
aqui, assim com o $ desejo de a é o
suporte do desejo . O que isso quer d izer? E que o fantasm a está ali
onde o sujeito se apreende, naqu ilo que lhes apon tei por estar em questão
no segundo estág io do grafo , sob a form a retom ada no n íve l do O utro,
no cam po do O utro, nesse pon to aqui do grafo , da questão: “ O que isso
q u e r? ” , que é igu a lm en te aqu ela que tom ará a form a : “ Q ue qu er e le ? ”
se a lgu ém soube tom ar o lugar, p ro jetado pela estru tura, do lugar do
Outro, a saber, esse lugar de quem é o m estre e o garante. Isto quer
d izer que, no cam po e no percurso dessa questão, o fantasm a tem uma
função hom óloga àquela de i ( a ) , do eu ideal, eu im agin ário sobre o qual
repouso; que essa função tem um a dim ensão, sem dúvida algumas vezes
apontada e m esm o m ais de uma vez, da qual é preciso aqui que eu lhes
lem bre que e le an tecipa a fu nção do eu ideal, com o isso se represen ta
no grafo para vocês, que é por uma espécie de retorno que perm ite,
assim m esm o, um curto-c ircu ito em relação à condução in tenciona l do
discurso considerado com o constitu in te do sujeito, neste prim eiro andar,
que aqui, antes que sign ificado e s ign ificante, se cruzando novam ente,
e le tenha constitu ído sua frase, o sujeito im aginariam ente antecipa aquele
- 3 0 9 -
A Identificação
que e le designa com o eu [m o i ] . É este m esm o sem dúvida que o j e do
d iscurso suporta em sua fu n ção de shifter. O j e litera l no d iscurso não é
nada m ais que o próprio sujeito que fala, m as aquele que o sujeito designa,
aqui, com o seu suporte idea l, está adiante, num futuro anterior, aqu ele
que e le im agina que terá fa lado: “E le terá fa la d o ” . N o próprio fu ndo do
fantasm a existe tam bém um “ E le o terá q u er id o ” .
N ão le va re i isso m ais lon ge . Assim , essa abertu ra e essa observação
não se re fe rem , senão à partida de nosso cam in h o no grafo, eu quis
im p lica r um a d im en são de tem pora lidade. O gra fo é fe ito para m ostrar
já esse tipo de nó que estam os, por enqu anto , buscando no n ív e l da
id en tifica ção . As duas curvas que se en trecru zam em sen tido con trá rio ,
m ostrando que s in cron ism o não é s im u ltane idade, já estão in d ican do
na ordem temporal aquilo que estamos tentando enlaçar no campo topológico.
Em sum a, o m ov im en to de sucessão, a c in é tica s ign ifican te , eis o que
suporta o grafo. Eu o lem bro , aqui, para lhes m ostrar o a lcan ce , pe lo
fa to de eu não ter fe ito absolu tam en te estado dou trinal disso, dessa
dim ensão tem poral, da qual a fenom eno log ia con tem porânea tira grandes
vantagens, porque, na verdade, creio que não há nada de mais m istificador
que fa la r do tem po a torto e a d ire ito .
M as é, m esm o assim - aqu i eu constato para in d icá -lo a vocês - aí
que terem os de retorn ar para constitu ir, não m ais uma c in é tica , m as
um a d inâm ica tem pora l, o qu e só poderem os fa ze r depois de term os
u ltrapassado - o que se trata de fa ze r agora - ou seja, a re fe rên c ia
topo lóg ica espacia lizan te da fu nção id en tifica tó r ia . Isso quer d ize r que
vocês se enganariam se se detivessem em qu a lqu er coisa que eu já
tenha form u lado, que eu tenh a acred itado d ever fo rm u la r de m an e ira
igualm ente antecipadora sobre o assunto da angústia, com o com p lem en to
que foi acrescentado pela Sr.a Aulagnier no outro dia, tanto que efetivam ente
não será restitu ído, reportado, recon d u zid o no cam po dessa fu n ção o
que já tenh o in d icado desde sem pre, posso d ize r desde o artigo sobre o
estád io do espelho, que d istingu ia a relação de angústia da re la ção da
agressiv idade, a saber, a tensão tem poral.
V oltem os a nosso fan tasm a e ao pequeno a, para captar o que está
em questão nessa im a g in ifica çã o p rópria a seu lugar no fantasm a. É
e v id en te que não o podem os iso la r sem seu co rre la tivo do $, porqu e a
em ergên c ia da função do ob jeto do desejo com o pequeno a, no fantasm a,
é co rre la tiva dessa espéc ie de fa d in g , de apagam en to do s im bó lico que
- 3 1 0 -
Lição cie 9 cie maio de 1962
é aqu ilo m esm o que articu le i na ú ltim a sessão - acho que ao respon der
à Sr.a Aulagnier, se m inha m em ória é boa - com o a exclusão determ inada
pela p rópria d epen dên c ia do su jeito do uso do s ign ifican te . É porque é
enqu anto o s ign ifican te tem de redobrar seu e fe ito , ao querer se designar
a si m esm o, que o su jeito surge com o exclusão do p róprio cam po que
e le determ ina, não sendo então nem aquele que é designado, nem aquele
que designa, não obstante, o pon to essencia l, que isso só se produz em
relação com o jo go de um ob jeto , p rim eiro com o a lternân cia de uma
presença e de um a ausência. O que quer dizer, p rim e iro fo rm a lm en te,
a con junção $ e pequeno a , é que no fantasma, sob seu aspecto puram ente
fo rm a l e rad ica lm en te , o su jeito se fa z -a, ausência de a , e som ente
isso, d ian te do pequeno a, no n íve l daqu ilo que ch am ei de id en tificação
com o traço un ário .A id en tific a çã o só é in trodu zida , só se opera pura
e s im p lesm en te nesse produto do -a p e lo a, e que não é d ifíc il ver em
que - não s im p lesm en te com o por um jogo m en ta l, m as porque som os
aí levados por a lgum a co isa que é, para nós, nosso m odo de algum a
coisa que recebe ali leg it im am en te sua fórm u la - o -a 2= 1 que daí resulta
o que nos in tro d u z ao que há de carnal, de im p licad o neste sím bolo
m atem ático de - fY . E v iden tem en te, não nos deteríam os num jogo assim,
se não tivéssem os sido trazidos a e le por m ais de um a via, de uma
m aneira con vergen te .
R etom em os, por enqu anto , nossa m archa, para ten tar designar o que
com anda para nós, no desenho da estrutura, a n ecessidade de dar conta
da fo rm a à qual o dese jo nos con du z. N ão o esqueçam os, o desejo
in con sc ien te , tal com o tem os de dar conta, acha-se na repetição da
dem anda e, a fina l, desde a o r igem daqu ilo que Freud m odu la para nós,
é e le qu e a m otiva . Vejo a lguém que m e diz: “ Ora, sim , é óbvio, não se
fala nunca d isso” , com exceção de que, para nós, o desejo não se justifica
som en te por ser tendênc ia , e le é ou tra coisa. Se vocês en ten dem , se
vocês acom panh am o que en ten d o s ign ifica r por desejo , é que nós não
- 3 1 1 -
A Identificação
nos con tentam os com a re fe rên c ia opaca a um autom atism o de repetição,
p or m ais que esse au tom atism o de rep e tição tenha sido id en tific a d o por
nós. Trata-se da busca, ao m esm o tem po necessária e con den ada, de
um a vez ún ica qu a lificada , rotu lada com o tal por esse traço unário ,
aqu ele m esm o que não pode se rep e tir senão sem pre para ser um outro.
E, desde então, n esse m ov im en to , nessa d im en são nos aparece por
que o desejo é o que suporta o m ov im en to , ce rta m en te circu lar, da
dem anda sem pre repetida , mas da qual um certo n ú m ero de rep etições
p od em ser con ceb id as - aí está o uso da topo log ia do toro - com o
com p letan do a lgum a coisa. O m ov im en to de bob ina da rep e tição da
dem anda se fech a em algum lugar, m esm o v irtu a lm en te , d e fin in d o um
ou tro c írcu lo que se a lcan ça nessa m esm a repetição e que desen ha o
quê? O objeto do desejo; isso que, para nós, é necessário fo rm u la r assim,
porqu e igu a lm en te na partida o que nós in stitu ím os com o base m esm a
de toda nossa apreensão da s ign ifica çã o ana lítica , é essen c ia lm en te
isso, que sem dúvida fa lam os de um ob jeto oral, anal, e tc ., m as que
esse objeto nos importa, esse objeto estrutura o que, para nós, é fundam ental
da relação do su jeito com o m undo nisso, que esqu ecem os sem pre, é
que esse ob jeto não p erm an ece com o ob jeto da n ecessidade. E pelo
fa to de ter s ido tom ad o no m o v im en to rep e tit iv o da d em an d a , no
au tom atism o de repetição , que e le se torna ob jeto do desejo.
E o que quis lhes m ostrar no dia em que, por exem p lo , tom an do o
seio com o sign ificante da demanda oral, eu mostrava-lhes que éjustam ente
por causa disso que, even tu a lm en te - era o que eu tinha de m ais sim ples
para fa zer com que vocês o a lcançassem - , é ju s tam en te nesse m om en to
que o seio real se torna, não ob jeto de a lim en tação , m as ob jeto eró tico ,
m ostrando-n os um a ve z m ais que a fu n ção do s ign ifican te exc lu i que o
s ign ifican te possa se s ign ifica r a si m esm o. É ju stam en te porqu e o objeto
se torna reco n h ec íve l com o s ign ifica n te de uma dem anda la ten te que
e le tom a va lor de um desejo que é de um ou tro registro. A d im en são
lib id ina l, pela qual se com eçou a en tra r na análise com o m arcando
todo desejo hum ano, não quer dizer, não pode querer d izer ou tra coisa
senão isso. O que não quer d izer que não seja n ecessário relem brá-la .
É o fa to dessa transm utação que se trata de apreender, o fa to dessa
transm utação é a fu n ção do falo, e não há m eio de d e fin i- la de outra
m aneira . A fu n ção do fa lo, cp, é isso a que ten tarem os dar seu suporte
topo lóg ico . O falo, sua verdade ira form a, que não é fo rçosam en te aquela
- 3 1 2 -
Lição de 9 de maio de 1962
de um p in to , em bora pareça m u ito , é isso que não perco a esperança
de desenhar aqui no quadro-negro. Se vocês fossem capazes, sem sucumbir
à vertig em , de con tem p la r o d ito p in to de que eu falava, vocês poderiam
ve r que, com o seu prepúcio , é de fa to a lgo m u ito engraçado. Isso ta lvez
ajude vocês a perceberem que a topologia não é essa coisa sem nenhum a
im portân c ia com o vocês d evem im aginar, e certam en te vocês terão a
oportu n idade de se darem con ta disso. D ito isso, não é à-toa que através
de sécu los de h istória da arte só haja rep resen tações verdade iram en te
tão la m en tave lm en te grosseiras daqu ilo que cham o de p into. E n fim ,
com ecem os por re lem brar isso, de toda m an eira porque não se deve ir
ráp ido dem ais : esse fa lo nu nca está tanto ali - é dali que se deve partir
- quanto quando está ausente. O que já é um bom sinal para presum ir
que é e le que é o p ivô, o pon to g ira tório da con stitu ição de todo ob jeto
com o ob jeto do desejo. Q ue e le não este ja tanto ali quanto quando está
ausente, seria r id ícu lo que eu precisasse m ostrar a vocês m ais de uma
in d icação disso, se não m e bastasse evoca r a equ iva lên c ia g i r l -p h a l lu s ,
para d ize r tudo, que a s ilhueta om n ip resen te de L o lita pode fa ze r sentir.
N ão prec iso tanto de L o lita ; há pessoas que sabem m uito bem d iscern ir
o que é s im p lesm en te o aparec im en to de um broto num ga lh in ho de
árvore. N ão é ev id en tem en te o fa lo - pois, seja com o for, o fa lo é o fa lo
- é, de todo je ito , sua presença ju s tam en te ali on de não está. Isso vai
m esm o m u ito longe. A Sra. S im on e de B eau vo ir fe z todo um liv ro para
r ec o n h ece r L o lita em B rig itte Bardot. A d istância que ex is te en tre o
desabroch ar com p leto do charm e fem in in o e o que é p rop riam en te o
m ecan ism o, a a tiv idade eró tica de Lo lita , parece-m e con stitu ir uma
h iân c iae8total, a coisa m ais fác il de se d is tingu ir no m undo. O falo,
quando foi que com eçam os aqu i a nos ocupar de le de um m odo que
seja um pouco estru tu ran te e fecu n do? Foi ev id en tem en te a p ropósito
dos prob lem as da sexu a lidade fem in in a . E a p rim eira in trodu ção da
d ife ren ça de estru tura en tre dem anda e desejo, não nos esqueçam os,
fo i a propósito dos fatos descobertos em todo seu re levo orig ina l por
Freud quando abordou esse assunto, isto é, que ele se articula da m aneira
m ais lim itada a essa fórm u la , que é porque e le tem de ser dem andado
no lugar on de não está, o fa lo , a saber, na m ãe, à m ãe, pela m ãe, para
m ãe, que por ali passa o cam inho norm al por on de e le pode v ir a ser
desejado pela mulher. Se, de fato, isso acontece, que e le possa ser constituído
com o ob jeto de desejo, a exp eriên c ia an a lítica põe o acen to sobre o
A Identificação
fa to de que é p rec iso que o p rocesso passe por um a p rim itiva dem anda,
com tudo o que ela com porta, na ocasião, de absolutam ente fantasm ático,
irrea l, con trá ria à natureza, um a dem anda estru turada com o tal, e uma
dem an da que con tin u e a ve icu la r suas m arcas a pon to de e la p a recer
in esgo táve l e que todo o acen to do que lh e d iz Freud não quer d ize r
que isso baste para que o Sr. Jones o com preen da e le próprio . Isso quer
d ize r qu e é na m ed ida em que o fa lo pode con tin u a r a p e rm an ecer
in d e fin id a m en te ob jeto de dem anda àqu ele que não pode dá-lo nesse
p lano que, ju s tam en te , se e leva toda a d ificu lda de de e le a tin g ir o que
p arecer ia m esm o - se de fa to Deus os tivesse fe ito hom em e m ulher,
com o d iz o ateu Jones, para que eles sejam um para o outro, com o o fio
é para a agu lha - o que pareceria , porém , natura l, que o fa lo fosse
p rim e iram en te ob jeto do desejo. É pela porta de entrada, e a porta de
entrada d ifíc il, a porta de entrada que torce toda a relação com ele, que
esse fa lo entra, m esm o ali onde parece ser o ob jeto m ais natural, na
função do objeto.
O esqu em a topo lóg ico qu e vou form ar para vocês e que consiste, em
relação ao que p rim e ira m en te se apresentou para vocês sob essa fo rm a
do o ito in vertido , está destinado a advertir vocês da p rob lem ática de
todo uso lim ita tivo do s ign ifican te , já que, por e le , um cam po lim itado
não pode ser id en tificad o àqu ele puro e s im p les de um círcu lo.
O cam po m arcado no in ter io r não é tão sim ples quanto isso aqui, quanto
o que m arcava um ce rto s ign ifica n te de fora . H á, em algum lugar,
necessa riam en te , pelo fato do s ign ifican te se redobrar, ser cham ado à
fu n ção de se s ign ifica r a si m esm o, um cam po p rodu zido que é de
exclusão e pe lo qual o su jeito é re je itado no cam po exterior. A n tec ip o e
p ro firo que o falo, em sua função radical, é apenas sign ificante, mas,
em bora e le possa se s ign ifica r a si m esm o, e le é in om in áve l com o tal. Se
e le está na ordem do s ign ifican te - pois é um sign ifican te e nada m ais -
ele pode ser colocado sem diferir de si mesmo. Como concebê-lo intuitivamente?
- 3 1 4 -
Lição de 9 de maio de 1962
Digam os que e le é o ún ico nom e que abole todas as outras denom inações
e que é por isso que e le é in d iz íve l. E le não é ind izíve l, já que o podem os
cham ar de fa lo, m as não se pode ao m esm o tem po d izer fa lo e continuar
a nom ear outras coisas.
U ltim a re fe rên c ia : em nossos apon tam entos, no com eço de uma de
nossas jo rn adas c ien tíficas , a lgu ém tentou articular, de um certo m odo,
a fu nção tran s feren cia l m ais rad ica l ocupada pelo analista enquanto
tal. E ce rta m en te uma abordagem que não se deve negligenciar, o fato
de que tenh a con segu ido articu la r cru am en te - e m in h a fé é que se
possa ter o sen tim en to de que é a lgo de ousado - que o analista, em
sua fu nção , tenh a o lugar do fa lo , o que isso pode qu erer d izer? E que
o fa lo , para o O utro, é p rec isam en te o que encarna, não o desejável, o
epw pevov, em bora sua função seja a do fator pelo qual, qua lquer objeto
que seja, seja introduzido na função de objeto do desejo, mas a do desejante,
do Epcúv. É enquanto o analista é a presença suporte de um desejo inteiramente
velado que e le é esse Che v u o i? encarnado.
Eu lem brava , há pouco, que se pode d izer que o fa to r (p tem va lor
fá lico con stitu tivo do próprio ob jeto do desejo; e le o suporta e o encarna,
mas é uma fu n ção de sub jetiv idade tão tem ível, prob lem ática , projetada
nu m a a lte r id ad e tão rad ica l, e é bem por isso que eu os trouxe e os
con du zi a essa encru zilhada , no ano passado, com o sendo o m ecan ism o
essen cia l de toda a questão da tran sferên cia : o que deve ser ele, esse
desejo do analista?
Por enquanto, o que se propõe a nós é encontrar um m odelo topológico,
um m odelo de estética transcendenta l que nos perm ita dar conta ao
m esm o tem po de todas as funções do falo. Será que há algo que se pareça
com isso? A lgo que, com o isso, seja o que se cham a, em topologia, de
superfíc ie fechada, noção que toma sua função, ã qual tem os o d ireito
de dar um valor homólogo, uin valor equivalente da função de signilieãncia,
porque nós podem os defin i-la pela função do corte. Já fiz referên cia a
isso m ais de um a vez. Entendam o corte fe ito com um par de tesouras
A Identificação
num balão de borracha, de m aneira a inibir, por hábitos
que se podem bem qua lificar de seculares, que em m uitos
casos uma m ultidão de problem as que se colocam não
saltam aos olhos. Q uando acred ite i d izer a vocês coisas
m uito simples a propósito do oito in terior sobre a superfície
do toro, e quando, em seguida, desen ro lei m eu toro crendo
que as coisas iam por si sós, que havia longo tem po que
eu lhes tinha exp licado que havia uma m aneira de abrir
o toro com um corte de tesoura e, quando vocês abrem o
toro através, vocês têm uma cinta aberta, o toro é reduzido
a isso; e basta, nesse m om ento, ten tar pro jetar sobre essa su perfíc ie o
retângulo, que seria m elh or cham ar de quadrilátero, ap licar ali em cim a
o que havíamos designado an teriorm ente sob essa form a do oito invertido,
para ver o que se passa e em que algo está e fetivam en te lim itado, algo
que pode ser esco lh ido, d istinguido en tre um cam po lim itado por esse
corte e, se vocês qu iserem , o que está do lado de fora. O que não é tão
ev iden te, não salta aos olhos. Todavia, essa pequena im agem que lhes
represen te i parece ter, para alguns, ao p rim eiro choque, trazido algum
problem a. E porque isso não é assim tão fácil.
N a p róxim a sessão, terei não apenas de vo lta r a isso, m as de m ostrar-
lhes algo de que não tenh o lugar para fa zer m istério antes, pois, a fina l,
se alguns querem preparar-se para isso, in d ico -lh es que fa la re i de um
ou tro m odo de su p erfíc ie , d e fin id a com o tal e pu ram en te em term os
de superfíc ie , cujo nom e já pronunciei e que nos será m uito útil. Cham a-
se, em inglês, língua em que as obras são m ais num erosas, um cross-
cap, o que quer d ize r a lgo com o bom': c ruzado . T radu ziu -se, cm francês,
em algum as ocasiões pelo term o m itra , com o que e fe t iva m en te isso
p o d e te r um a s e m e lh a n ç a g ro ss e ira . Essa fo rm a d e s u p e r f íc ie
topologicamente defin ida comporta em si certamente um atrativo puramente
especu la tivo e m en ta l que, espero, não deixará de in teressa r a vocês.
Tom arei cu idado em dar-lhes rep resen tações figuradas que tenho feitas,
numerosas, e, sobretudo, sob os ângulos que não são aqueles, obviam ente,
sob os quais e les im p licam os m atem áticos ou sob os quais vocês os
en con trarão represen tados nas obras que d izem respeito à topologia.
M inhas figu ras con servarão toda sua função orig inal, dado que não
lhes dou o m esm o uso e que não são as m esmas coisas que tenho pesquisado.
- 316 -
Lição de 9 de maio de 1962
Saibam, contudo, que o que se trata de form ar de uma m aneira sensata,
de um a m an eira sensível, está destinado a com portar com o suporte um
certo n ú m ero de re fle xõ es e outras que são esperadas na seqüência , a
saber, a de vocês, no caso; com portando um valor, se posso dizer, m utativo,
que lhes perm ita pensar as coisas da lóg ica , pelas quais com ece i, de
um a ou tra m aneira que não as que os fam osos círcu los de E u ler m antêm
para vocês am arradas.
L o n ge que esse cam po in te r io r [x] do o ito seja ob riga tor iam en te e
para tudo um cam po exc lu ído , ao m en os nu m a fo rm a topo lóg ica , fato
m ais sen s íve l e dos m ais rep resen táve is e dos m ais d ivertidos dos cross-
caps em questão, por m ais lon ge que esse cam po seja um cam po a
excluir, e le deve, ao contrário, ser mantido. Eviden tem ente, vam os abaixar
a bola. H averia uma m aneira que seria absolutam ente simples de im aginá-
lo de um m odo a ser m antido . Basta que vocês tom em algo que tenha
uma form a um pouqu inho apropriada, um c írcu lo m ole e, to rcendo-o
de um certo m odo e dobrando-o , ter uma lin gü eta cuja parte baixa
estaria em con tin u idade com o resto das bordas. N ão obstante, assim
m esm o há o segu in te: isso não passa de um artifíc io , a saber, que esta
borda é e fe t iva m en te sem pre a m esm a borda. E disso m esm o que se
trata: trata-se de saber, m u ito d iferen tem en te , se essa su perfíc ie , que
faz litíg io para nós, que chega a sim bolizar esteticam en te, in tu itivam ente,
um a outra dim ensão possível do lim ite s ign ifican te do cam po m arcado,
é rea lizáve l de uma m aneira d iferen te e de algum a form a im ed iata a
obter, por sim ples ap licação das propriedades de uma superfíc ie com a
qual vocês ainda não estão habituados. É o que verem os na próxim a vez.
LIÇÃO XX
16 de m aio 1962
Essa e lu cu bração da su p erfíc ie , ju s t if ic o sua n ecessidade, é ev id en te
que o que lhes dou é o resu ltado de um a re flexão . Vocês não esqueceram
que a noção de su p erfíc ie , em topolog ia , não é ev id en te e não é dada
com o uma in tu ição. A superfíc ie é algo que não é ev iden te. Com o abordá-
la? A partir daqu ilo que no rea l a in trodu z, ou seja, o que m ostraria
que o espaço não é essa exten são aberta e d esp rez íve l, com o pensava
Bergson . O espaço não é tão vazio quanto e le o cria , o espaço guarda
m u itos m istérios .
C o loq u em os, de saída, alguns term os. E ce rto qu e um a p rim e ira
co isa essen cia l na n oção de su p erfíc ie [su rface ] é a de face : haveria 2
fa ces ou 2 lados. Isso é e v id en te , se nós m ergu lh arm os essa su perfíc ie
no espaço . M as, para tra zer até nós aqu ilo que, para nós, pode tom ar a
n oção de su p erfíc ie , é p rec iso que saibam os o que ela nos o fe rece das
suas próprias d im en sões. Ver o que ela pode nos o ferecer, enqu an to
su p erfíc ie que d iv id e o espaço com suas p róprias d im en sões, sugere-
nos o pon to de partida que va i nos p erm itir recon stru ir o espaço de
outra m aneira d iferen te daquela cuja in tu ição acred itam os ter. Em outros
term os, p ropon h o a vocês con sid era r com o m ais e v id en te [d ev ido à
cap tu ra im agin ária ], m ais sim ples, m ais certo [porqu e ligado à ação),
m ais estru tu ra l partir da su p erfíc ie para d e fin ir o espaço - do qual
ten h o ce rte za de que estam os pouco seguros - d igam os, d e fin ir o lugar
antes qu e partir do lugar para d e fin ir a su p erfíc ie . [Vocês podem se
reportar, aliás, ao que a filo so fia pode d ize r do lugar]. O lugar do O utro
já tem seu lugar em nosso sem in ário .
- 3 1 9 -
A Identificação
Para d e fin ir a fa ce de um a su p erfíc ie , não basta d ize r que é de um
lado e de ou tro , tan to m ais porqu e isso nada tem de satis fa tório , e, se
algo nos dá a ve rtig em pascaliana são exa tam en te estas duas reg iões
cu jo p lano in fin ito d iv id ir ia todo o espaço. C om o d e fin ir essa n oção de
face? E o cam po on de pode esten der-se um a linha, um cam in h o sem
ter de en con tra r um a borda. M as há su p erfíc ies sem borda: o p lano ao
in fin ito , a es fe ra , o toro e várias ou tras que, com o su p e rfíc ie s sem
borda, se red u zem p ra ticam en te a um a só: o cross -cap ou m i t r a ou
boné cruzado , rep resen tado aqu i em baixo.
O cross-cap, nos livros eruditos, é isso [fig. 2], cortado para poder inserir-
se sobre uma outra superfície. Essas três superfícies, esfera, toro, cross-
cap, são superfícies fechadas elem entares, na com posição das quais todas
as outras superfícies fechadas podem se reduzir. Cham arei, todavia, de
cross-cap a figura 1. Seu verdadeiro nom e é o plano p ro je t ivo da teoria das
superfícies de R iem ann, cuja plano é a base. E le faz in terv ir pelo m enos a
quarta dimensão. Já a terceira dimensão, para nós, psicólogos das profundezas,
causa bastante problem a para que a considerem os com o pouco garantida.
Todavia, nessa simples figura, no cross-cap, a quarta já está necessariam ente
im plicada. O nó elementar, fe ito no outro dia com um barbante, presentifica
já a quarta dim ensão. N ão há teoria topológica válida sem que façam os
in terv ir algo que nos leve à quarta dim ensão.
- 3 2 0 -
Lição de 16 de maio de 1962
Se vocês q u erem ten tar rep rod u zir esse nó usando o toro, segu indo
as voltas e os desv ios que vocês podem fa ze r na su p erfíc ie de um toro,
vocês poderiam , após várias voltas, retorn ar a um a lin h a que se fech a
com o o nó abaixo. Vocês não o podem fa ze r sem que a lin h a corte a si
m esm a. C om o, sobre a su p erfíc ie do toro, vocês não poderão m arcar
que a lin h a passa ac im a ou abaixo, não há m e io de fa ze r esse nó sobre
o toro. Em com pen sação , e le é p e rfe ita m en te fa c tív e l sobre o cross-
cap. Se essa su p erfíc ie im p lica a presença da quarta d im en são, é um
com eço de prova de que o m ais s im ples nó im p lica a quarta d im en são.
Essa superfície, o cross-cap, vou
d iz e r c o m o v o c ê s a p o d em
im aginar. Isso não im p o rá sua
n ec e s s id a d e , p o r isso m esm o ,
trazida para nós. E la não deixa
de ter relação com o toro, ela tem
mesm o, com o toro, a relação mais
profunda. A m aneira m ais simples
de fo rn e c e r essa re la ção a vocês
é lem b ran d o -lh es com o um toro
é con stru ído quando a g en te o V J
d e c o m p õ e sob u m a fo rm a
p o liéd rica , ou seja, recon d u zin do -o a seu po lígon o fu n dam en ta l. A qu i,
esse po lígon o fu n dam en ta l é um quadrilá tero .
Se vocês dobrarem esse qu adrilá tero sobre si m esm o, terão um tubo
cujas bordas se encon tram . Vetorizam -se essas bordas, con ven c ion an d o-
se que só podem ser co lados um a ou tro os vetores que vão na m esm a
d ireção , o in íc io de um ve to r ap licando-se ao pon to em que te rm in a o
ou tro vetor. D esde então, terem os todas as coordenadas para d e fin ir a
estru tura do toro.
Se vocês fize rem uma superfíc ie cujo
polígono fundam enta l é assim defin ido
por vetores que vão, todos, no m esm o
sentido sobre o quadrilátero de base, se
vocês partirem de um po lígon o assim
defin ido [fig. 4-1], isso daria duas bordas
ou m esm o uma só; vocês obteriam o que
F ig . 3
Fig. 4-1 Fig 4-2
A Identificação
vou m ateria lizar com o a m it ra |fig. 4-2). R etornare i sobre a sua função de
sim bolização de algum a coisa e isso será m ais claro, quando esse nom e
servir de suporte.
E m corte com sua goela de maxilar, não é o que vocês estão pensando.
Isso [fig. 5] é um a linh a de p en etração graças à qual o que está antes,
abaixo é uma sem i-es fera ; aciina, a parede passa por pen etração na
parede oposta e retorna ad ian te. Por que essa fo rm a aí e não outra?
Seu polígono fundam enta l é distinto daquele do toro [fig. 6|. U m polígono
cujas bordas são m arcadas por vetores de m esm a d ireção , e d istin to
d aqu e le do toro, que parte de um pon to para ir ao pon to oposto, o que
isso dá com o su perfíc ie?
A partir de agora, sobressaem
p o n to s p ro b le m á t ic o s dessas
su p e rfíc ie s . Eu in tro d u z i para
vocês as su p erfíc ies sem borda,
a p ropós ito da face . Se não há
borda, com o d e fin ir a face? E,
se nós nos in terd ita rm os, tanto
qu an to possível, de m ergu lh ar
demasiadam ente depressa o nosso
m odelo na terce ira d im ensão, ali
on de não há bordas, estarem os
T o ro cross cap
F ig . 6
certos de que há um exterior e um interior. É o que sugere essa superfíc ie
sem borda, por exce lên c ia , que é a es fera . Vou livrá -los dessa in tu ição
indec isa : ex is te o que está den tro e ex iste o que está fora. N o en tan to ,
para as outras su perfíc ies , essa noção de ex te r io r e in te r io r desaparece.
Para o p lano in fin ito , e la não bastaria. Para o toro, a in tu ição serve
ap aren tem en te bem , porqu e há o in te r io r de um a câm ara de ar e o
- 3 2 2 -
Lição de 16 de maio de 1962
exterior. Todavia, o que se passa no cam po por on de esse espaço ex tern o
atravessa o toro , is to é, o bu raco cen tra l, a li está o n ervo topo lóg ico
daqu ilo que criou o in teresse do toro e onde a relação do in terior e do
exterior se ilustra com o algo que pode tocar-nos. O bservem que, até Freud,
a anatomia tradicional, m esm o que pouco Naturwissenschaft, com Paracelso
e Aristóteles, sem pre considerou, en tre os orifíc ios do corpo, os órgãos dos
sentidos com o autênticos orifícios. A teoria psicanalítica, enquanto estruturada
pela função da libido, tem fe ito uma escolha m uito estreita entre os orifícios
e não nos fala dos orifíc ios sensoriais com o orifíc ios, senão para reconduzi-
los ao s ign ifican te dos orifíc ios p rim eiram ente escolh idos. Quando se faz
da escoptofilia um a escoptofagia, diz-se que a iden tificação escoptofílica é
uma iden tificação oral, com o o fe z Fenichel. O priv ilég io dos orifícios orais,
anais e gen itais nos retém , porque não são verdadeiram ente orifíc ios que
dêem no in ter io r do corpo; o tubo digestivo é só uma travessia, é aberto
para o exterior. O verdadeiro in terior é o in terior m esodérm ico e os orifícios
que ali se in trodu zem existem sob a form a dos olhos ou do ouvido, dos
quais a teoria psicanalítica jam ais faz m enção com o tais, salvo na capa da
revista La Psychanalyse. É o verdadeiro alcance dado ao buraco centra l do
toro, em bora não seja um verdadeiro interior, isso já nos sugere algo da ordem
de uma passagem do interior para o exterior.
Isso dá-nos a id é ia que vem na investigação dessa su perfíc ie fechada,
o cross-cap. Suponham algo de in fin itam en te chato, que se desloca sobre
esta su perfíc ie [fig. 7], passando do exterior [1] da su perfíc ie fech ada ao
in ter io r [2], para segu ir m ais ad iante, no in ter io r [3], até chegar na linha
de penetração on de reaparecerá no exterior [4], de costas. Isso m ostra a
d ificu ldade da d e fin ição da d istinção in terior-exterior, m esm o quando
se trata de um a su perfíc ie fechada, de um a su perfíc ie sem bordas.
A Identificação
Só f iz abrir a questão para lhes m ostrar que o im portan te , nessa
figu ra , é que essa lin h a de pen etração d eve ser con sid erada nu la e não
advinda. N ão se pode m ateria liza r [esse paradoxo ] no qu adro-n egro sem
fa ze r in terv ir essa linh a de penetração, pois a in tu ição espacia l ord inária
ex ig e qu e se o m ostre, m as a especu lação não o leva em con ta. Pode-se
fa zê -la d es liza r in d e fin id am en te , essa lin h a de p en etração . N ão há nada
da ordem de um a costura. N ão há passagem possível. Por causa disso, o
p rob lem a do in te r io r e do ex te r io r é levan tado em toda a sua con fu são.
H á duas ordens de consideração quanto à superfíc ie : m étrica e topológica.
T em -se de desistir de toda con sid eração m étrica . D e fato , a pa rtir desse
quadrado [fig .8 ], eu poderia dar toda a su perfíc ie , do pon to de vista
topo lóg ico ; isso não tem sen tido algum . T op o log icam en te , a na tu reza
das re la ções estru tu ra is que con stitu em a su p erfíc ie é apresen tada em
cada pon to : a fa ce in tern a se con fu n d e com a fa ce ex terior, para cada
um de seus pon tos e de suas p rop riedades.
Para m arcar o in teresse disso, vam os evocar um a questão tam bém
nu nca levan tada , que d iz respe ito ao s ign ifica n te : um s ign ifica n te não
terá sem pre com o lu gar um a su perfíc ie? Pode p a rece r um a questão
b izarra , m as e la tem pelo m en os o in teresse , se levan tada , de sugerir
um a dim ensão. À prim eira vista, o gráfico, com o tal, ex ige um a superfície,
se é que se pode levan ta r a ob jeção de que um a pedra ergu ida, um a
co lu n a grega é um s ign ifica n te e que tem um vo lu m e; não estejam
assim tão seguros, tão seguros de poderem in trodu zir a n oção de vo lu m e
an tes de estarem bem tranqü ilos da noção de su p erfíc ie . Sobretudo se,
ao pôr as coisas à prova, a noção de vo lu m e não é ap reen s íve l de ou tra
m aneira senão a partir da noção de invó lucro . N en h u m a pedra levantada
nos interessou por outra coisa, já não d irei que apenas pelo seu invólucro,
o que seria ir a um sofism a, m as pe lo que e la en vo lve . A n tes de ser de
- 3 2 4 -
Lição de 16 de maio de 1962
volum es, a arquitetura se fe z para mobilizar, para arranjar superfícies em
torno de um vazio. Pedras levantadas servem para alinham entos ou mesas,
para fa zer algo que serve por causa do buraco que tem ao redor de si.
Pois é isso o resto do qual tem os de nos ocupar. Se, agarrando a
natureza da face, eu parti da superfíc ie com bordas, para fazê-los observar
que o c r ité r io nos fa lhava nas su p erfíc ie s sem bordas, se é possível
m ostrar a vocês um a su p erfíc ie sem borda fu n dam en ta l, se a d e fin ição
da fa ce não é forçada , já que a su p erfíc ie sem borda não é fe ita para
reso lver o p rob lem a do in te r io r e do exterior, d evem os leva r em con ta
a d is tin ção en tre su p erfíc ie sem e su p erfíc ie com : e la tem a relação
m ais estre ita com o qu e nos interessa, a saber, o buraco que está para
ser in tro d u z id o com o tal, p os itivam en te , na teoria das su perfíc ies . N ão
é um a r t ifíc io verbal. N a teoria com b in a tó ria da topo log ia gera l, toda
superfície triangulável, isto é, com ponível de pequenos pedaços triangulares
que vocês co lam uns aos outros, toro ou cross-cap, pode-se reduzir, por
m e io do po lígon o fu n dam en ta l, a um a com p os ição da es fe ra à qual
seriam acrescidos m ais ou m enos e lem en tos tóricos, e lem en tos de cross-
cap e e lem en tos puros, buracos ind ispen sáve is rep resen tados por esse
ve tor fech ad o sobre si m esm o. Será que um sign ifican te, em sua essência
m ais rad ica l, só pode ser encarado com o co r te num a su p erfíc ie , esses
dois s inais > m a io r e < m e n o r , só se im pon d o por sua estru tu ra de
co rte in sc r ito sobre a lgo on de sem pre está m arcada, não som en te a
con tin u id ad e de um p lano sobre o qual a seqü ên c ia se in screverá , m as
tam bém a d ireção ve to r ia l em que isso se reen con tra rá sem pre? Por
que o s ign ifica n te , em sua en carn ação corpora l, isto é, voca l, sem pre
se tem apresentado a nós com o de essên cia descontínua? N ão tínham os,
en tão , n ecess id a d e da su p e r fíc ie ; a d esco n tin u id a d e o con stitu i. A
in terru p çã o no sucessivo fa z parte de sua estru tura. Essa d im ensão
te m p o ra l do fu n c io n a m e n to da c a d e ia s ig n if ic a n te qu e a r t ic u le i
p r im e ira m en te para vocês com o sucessão, tem com o con seqü ên c ia que
a escansão in trodu z um e lem en to a m ais a lém da d ivisão da in terru pção
m odu la tória , e la in trodu z a pressa que eu in ser i enqu an to pressa lóg ica .
É um ve lh o trabalho, O tem po lóg ico . O passo que ten to fazê-los dar já
c om eço u a ser traçado, é aqu ele on de se en laça a d escon tin u id ad e
com o que é a essên cia do s ign ifican te , a saber, a d iferen ça . Se aqu ilo
sobre o qua l tem os fe ito girar, tem os fe ito reto rn ar in cessan tem en te
essa fu n ção do s ign ifican te , é para a tra ir a a ten ção de vocês para aqu ilo
A Identificação
que, m esm o a rep e tir o m esm o, o m esm o, ao ser rep e tid o , se in sc reve
com o d istin to . O n d e está a in terp o la ção de um a d ife ren ça? R esid irá
e la som en te no corte - é aqu i que a in trodu ção da d im en são topo lóg ica ,
para a lém da escansão tem pora l, nos in teressa - ou nesse algo de outro
que cham arem os de sim ples possib ilidade de ser d iferen te , a ex is tênc ia
da bateria d iferencia l que constitu i o s ign ificante e pela qual não podem os
con fu nd ir s incron ia com sim u ltaneidade na ra iz do fen ôm en o , s incron ia
que fa z com que, reaparecendo o m esm o, é com o d istin to do que e le
repete que o s ign ifican te reaparece, e o que pode ser con siderado com o
distinguível é a in terpolação da d iferença, na m ed ida em que não podem os
co loca r com o fu ndam en to da função s ign ifican te a id en tidade do A é A,
ou seja, que a d iferen ça está no corte, ou na possib ilidade sincrôn ica
que constitu i a d iferen ça sign ifican te. Em todo caso, o que nós repetim os
só é d iferen te por poder ser inscrito.
Não é m enos verdadeiro que a função do corte nos interessa, em prim eiro
plano, naqu ilo que pode ser escrito . E é aqui que a noção de su perfíc ie
topológ ica deve ser in trodu zida em nosso fu n c ion am en to m en ta l, porque
é só ali que tom a seu in teresse a função do corte . A inscrição, levando-
nos à m em ória , é um a ob jeção a se refutar. A m em ória que nos interessa,
a nós, analistas, deve ser d istingu ida de um a m em ória orgânica, aquela
que, à m esm a sucção do rea l responderia da m esm a m aneira para o
organism o se d e fen der dela, aquela que m antém a hom eostase, pois o
organism o não recon h ece o m esm o que se renova com o d iferen te . A
m em ória orgânica mesm o-r iza . Nossa m em ória é outra coisa: ela in tervém
em função do traço unário m arcando a vez única, e tem com o suporte a
inscrição. Entre o estím ulo e a resposta, a inscrição, o p r in t in g , deve ser
lem brado em term os de im prensa gutem berguiana. O prim eiro esboço da
teoria psicofisica, con tra o qual nos revoltam os, é sem pre atom ístico; é
sempre à im pressão de esquem as de superfíc ie que essa psico fisica toma
sua prim eira base. N ão basta d izer que é insu fic iente, antes que se tenha
encontrado outra coisa. Pois se há um grande interesse em ve r que a
prim eira teoria da vida relacional se inscreve em term os interessantes,
que traduzem som ente, sem o saber, a própria estrutura do sign ificante,
sob as formas disfarçadas dos efeitos distintos de contigüidade e de continuidade,
associacionismo, é bom m ostrar que o que era reconhecido e desconhecido
com o d im ensão s ign ificante eram os efeitos do sign ificante na estru tura
do m undo idealista, dos quais essa psico fisica nunca se livrou.
- 3 2 6 -
Lição de 16 de maio de 1962
In ve rsam en te , o qu e se in trodu ziu por Gesta lt é in su fic ien te para
dar con ta do qu e se passa no n ív e l dos fen ôm en o s vitais, em razão de
um a ign orân c ia fu n dam en ta l que se traduz pela rap idez com a qual se
liga , para alguns, ev id ên c ia s que tudo con trad iz . A p retensa boa form a
da c ircu n fe rên c ia , que o organ ism o se obstinaria em todos os p lanos -
subjetivos ou objetivos - em buscar reproduzir, é contrária a toda observação
das form as orgân icas. D ire i aos gestaltistas que um a orelha de burro se
Fig. 9
parece com uma corneta, com um arum , com um a superf íc ie de Moebius.
U m a superfíc ie de M oebius é a ilustração m ais sim ples do cross-cap: ela
se faz com uma fa ixa de papel da qual se colam as duas extrem idades após
tê-la torcido, de m aneira que o ser in fin itam en te chato que passeia por
e la pode prosseguir sem nunca ultrapassar nenhum a borda. Isso mostra a
am bigüidade da noção de face. Pois não basta d izer que é um a superfície
unilateral, de uma só face, com o certos m atem áticos form u lam . Outra
coisa é uma definição formal, não deixa de ser verdadeiro que há coalescência,
para cada ponto de duas faces, e é isso o que nos interessa. Para nós, que
não nos con tentam os em dizê-la unilátera, sob o pretexto de que as duas
faces estão presentes por toda parte, não deixa de ser verdade que podemos
manifestar, em cada ponto, o escândalo para nossa intu ição dessa relação
das duas faces. De fato, num plano, se traçam os um círcu lo que gira no
sentido dos ponteiros de um relógio, do outro lado, por transparência, a
m esm a flecha gira em sentido contrário [Fig. 9]. O ser in fin itam en te chato,
a personagenzinha sobre a superfíc ie de M oebius, se veicu la consigo um
círcu lo girando em torno dele no sentido horário, esse círculo girará sempre
no m esm o sentido, ainda que, do outro lado de seu ponto de partida, o que
se inscreverá girará no sentido horário, isto é, em sentido oposto ao que se
passaria num a faixa norm al; no plano, isso não é invertido [Fig. 10],
- 3 2 7 -
A Identificação
É por isso qu e se d e fin em essas su p erfíc ies com o n ã o -o r ien tá ve is e,
no en tan to , e las não deixam de ser orien tadas. O desejo , por não ser
a rticu láve l, n em por isso d e ixam os de d ize r que não seja articu lado.
Pois essas pequenas orelhas na fa ixa de M oebius, por m ais não orientáveis
que sejam , são m ais orien tadas que um a fa ixa norm al. Façam vocês
um a c in tu ra côn ica [F ig . l 1], re to rçam -n a : o que estava aberto em ba ixo
está aberto em c im a. M as a fa ixa de M oeb ius, dobrem -na: terá sem pre
a m esm a form a. M esm o quando vocês retornam o objeto, e le terá sem pre
a bossa côn cava à esquerda, a bossa in flada à d ire ita . U m a su p erfíc ie
não-orientável é, pois, m uito mais orientada que uma superfíc ie orientável.
A lgum a coisa vai a inda m ais lon ge e su rp reen de os m atem áticos , que
rem etem com um sorriso o le ito r à experiên cia : é que, se nessa su perfíc ie
de M oeb ius, com a ajuda de um a tesoura, vocês traçam um co r te a
igual d istância dos pontos m ais acessíve is das bordas - e la só tem um a
borda - se vocês fa zem um c írcu lo , o corte se fech a , vocês rea lizam um
círcu lo , um laço, u m a c u rv a fech a d a de Jordan . O ra, esse co rte não
Fig. 11
- 3 2 8 -
Lição de 16 de maio de 1962
apenas deixa a superfície inteira, mas transforma a superfície não-orientável
em su perfíc ie o r ien táve l, isto é, em um a fa ixa da qual, se vocês p in tarem
um dos lados, todo um lado p erm an ecerá b ranco, con tra riam en te ao
qu e se passaria a pouco na su p erfíc ie de M oeb iu s in te ira : tudo teria
sido p in tado sem que o p in ce l m udasse de face . A s im ples in terven ção
do corte m udou a estru tura on ipresen te de todos os pontos da superfíc ie ,
eu d izia . E, se lh es p eço que m e digam a d ife ren ça en tre o ob jeto de
an tes do co rte e este aqu i, não há m eio de fa zê -lo . Isso para in trodu zir
o in teresse da fu n ção de corte .
O po lígon o qu ad rilá te ro é orig in ário do toro e do bon é. Se jam ais
in tro d u z i a verd ad e ira verba liza ção dessa form a , o , p u n çã o , dese jo
que une o $ ao a n o $ < > a , esse pequ eno qu adrilá tero d eve ser lido : o
sujeito, enquanto m arcado pelo sign ificante é, propriam ente, no fantasma,
co r te de a. N a p róx im a sessão, vocês verão com o isso nos dará um
suporte que fu n c io n a para articu lar a questão, com o o que podem os
defin ir, iso la r a pa rtir da dem an da com o cam po do desejo , em seu lado
in apreen s íve l, pode, por a lgum a torção, se liga r com o que, tom ado por
um ou tro lado, se d e fin e com o cam po do ob jeto a , com o o desejo pode
igua lar-se a a? É o que in trodu zi e que lhes dará um m od e lo útil até na
p rá tica de vocês.
■
.
V i ;
)
LIÇÃO XXI
23 de m a io de 1962
Porque um sign ifican te é apreensão da m enor coisa, pode e le apreender
a m en o r co isa? E is a questão, um a questão da qual ta lvez não seja
demais d izer que ainda não se colocou, devido à form a tomada classicamente
pela lógica. De fato, o princíp io da predicação, que é a proposição universal,
não im plica senão uma coisa, é que o que se apreende são seres nulificáveis:
d ic tum de om n i et nullo . Aqueles para quem esses term os não são fam iliares
e que, con seq ü en tem en te , não com p reen d em m u ito bem , reco rdo o
que é que ven h o lh es exp lican d o já várias vezes , isto é, de tom ar o
suporte do c írcu lo de E u le r tanto m ais leg it im a m en te quanto o que se
tratava de substitu ir é ou tra coisa; o c írcu lo de Euler, com o todo c írcu lo ,
por assim dizer, in gên u o , c írcu lo a propósito do qual não se co lo ca a
questão de saber se e le ce rn e um pedaço, um fragm en to ... o p róprio do
círculo... destaca ele um fragm ento dessa superfície hipotética im plicada?...
É que e le pode red u z ir-se p rogress ivam en te a nada. A possib ilidade do
un iversa l é a nu lidade.
Todos os professores são le trados, eu lhes disse um d ia - esco lh i esse
exem plo para não recair sempre nos mesmos problemas - todos os professores
são letrados; m u ito bem , se por acaso, em algum lugar, algum professor
não m erece ser qualificado de letrado, não seja por isso, terem os professores
nulos. O bservem que isso não é equ iva len te a d izer que não há professor.
A prova é que, os professores nulos, bem! nós os temos quando eventualmente.
Q uando d igo ter, tom em esse te r no sentido forte , no sentido de que se
trata. Essa não é, com o tal, um a palavra escorregadia , destinada a deixar
escapa r o sabon ete . Q u an do d igo nós os tem os , isso s ig n if ic a que
- 3 3 1 -
A Identificação
estam os habituados a tê-los, da m esm a m an e ira que tem os m on tes de
coisas assim : nós tem os a R epú blica ... C om o d iz ia um cam pon ês com
qu em eu con versava não fa z m u ito tem po : “ este ano nós tivem os o
gran izo , e logo depois, os esco te iro s ". Q u a lqu er que seja a p reca r ieda de
da d e fin ib ilid a d e , para o cam ponês, desses m eteoros , o verbo ter , aqu i,
tem bem o seu sentido.
N ós tem os, por exem plo, tam bém os psicanalistas, e isso é ev iden tem ente
m u ito m ais com p licado , porque os psicanalistas com eça m a nos fa ze r
en tra r na ordem da d e fin içã o ex is ten c ia l. E n tra -se n e la p e la v ia da
con d ição . D iz-se , p or exem p lo : “não há... n in gu ém p od erá se d ize r
psicanalista , se não tiv e r sido p s ican a lisado” . B em , há um gran de perigo
em c re r que essa d ec la ração seja h o m o gên ea com o qu e evocam os
an te r io rm en te , no sen tido em que, para nos serv irm os dos c írcu los de
Euler, h averia o c írcu lo dos psicanalisados, m as, com o todos sabem , os
ps icanalistas, d even do ser psicanalisados, o c írcu lo dos psicanalistas
poderia , pois, ser traçado in c lu íd o no c írcu lo dos psicana lisados. N ão
p rec iso d ize r que, se nossa exp e riên c ia com os psicana listas nos traz
tantas d ificu ldades , é que, p rovave lm en te , as coisas não são assim tão
s im ples, tendo em vista que a fina l, se isso não está e v id en te no n íve l
do professor, qu e o p róp rio fa to de fu n c io n a r com o p ro fesso r possa
asp irar ao seio do professor, à m aneira de um sifão, a lgum a coisa que o
esvazie de todo con tato com os e fe itos da letra, é, ao con trário , rea lm ente
e v id en te para o ps icana lista qu e tudo está aí. N ão basta d evo lv e r a
pergunta: “ o que é ser ps ican a lisado? ” , pois, bem en ten d id o , o que se
c rê fa ze r ali, e com certe za n a tu ra lm en te , seria apenas desv ia r a pessoa
de co lo ca r no p rim e iro p lano a questão do qu e é ser ps icanalisado.
- 3 3 2 -
Lição de 23 de maio de 1962
M as, no que se r e fe re ao psicanalista, não é aqu ilo que se trata de
apreender, se qu erem os com p reen d er a con cep ção do psicanalista, é
saber o que é que isso faz, ao psicanalista, ser psicanalisado, isso enquanto
psicana lista , e não da parte dos psicana lisados. N ão se i se m e faço
en ten der, m as quero recon du zi-lo s ao bê-á-bá, ao e lem entar.
Se, a in da assim , para en ten d er o m ais v e lh o exem p lo da lóg ica , o
p r im e iro passo que se dá para lançar Sócrates no buraco, a saber: “ todos
os h om en s são m orta is ...", p e lo tem po que nos en ch em os ou vidos com
essa fórm u la ... eu sei que vocês tiveram tem po de se endu recer, mas,
para todo ser um pouco fresco, o p róprio fato da prom oção desse exem plo
n o âm ago da lóg ica não pode deixar de ser fon te de a lgum m al-estar, de
a lgum sen tim en to de escroqu eria . Pois em qu e nos in teressa um a tal
fórm u la , se é o h om em que se trata de ap reen der? A m en os que se
trate - e é ju stam en te o que os círcu los con cên tricos da inclusão eu leriana
escam ote iam - não de saber que há um c írcu lo dos m orta is e no in te r io r
o c írcu lo do h om em , o qu e estritam en te não tem nen h u m in teresse ,
m as de saber o que é que isso lhe faz, a e le , h om em , ser m orta l, sacar
o turb ilhão que se p roduz em algum lugar no cen tro da noção de hom em ,
pe lo fa to da sua con ju n ção com o p red icado “m o rta l” , e qu e é bem por
isso qu e nós co rrem os atrás de qu a lqu er coisa. Q u an do fa lam os do
h om em , é ju s tam en te nesse turb ilhão, nesse bu raco que se p rodu z ali
no m eio , em algum lugar, que nós tocam os.
R ecen tem en te , eu abria um exc e len te liv ro de um au tor am erican o ,
do qual pode-se d ize r qu e a obra au m en ta o pa tr im ôn io do p en sam en to
e da elucidação lógica. N ão lhes d irei seu nom e, porque vocês vão procurar
quem é. E por que eu não o faço? Porque eu tive a surpresa de encontrar,
nas páginas nas quais e le trabalha tão bem , ce rto sen tido tão v ivo da
a tu a lidade do progresso da lóg ica , on de ju s ta m en te o m eu o ito in te r io r
in tervém . E le absolutam ente não faz dele o m esm o uso que eu, entretan to
m e lem b re i que alguns m andarins, en tre m eus ou vin tes, v ie ram m e
dizer, um dia, que fo i a li que eu o pesqu ei. Sobre a o r ig in a lid ad e da
passagem do Sr. Jakobson, con sidero, de fato , a m ais fo r te re fe rên c ia .
E p rec iso d ize r que, nesse caso - c re io ter com eça d o a d esen vo lver a
m etá fora e a m eton ím ia em nossa teoria , em algum lugar no d iscurso
de R om a qu e fo i pu b licado - fo i fa lan do com Jakobson que e le m e
disse: “ Certam ente, essa história da m etáfora e da m etoním ia, nós torcemos
aqu ilo ju n tos , lem bra-se, em 14 de ju lh o de 1950” . Q u an to ao lóg ico
A Identificação
em questão, há m u ito tem po que e le está m orto , e seu pequ en o o ito
in te r io r p reced e in con tes ta ve lm en te sua p rom oção aqu i. M as, quando
e le aden tra no seu exam e do un iversa l a firm ativo , e le usa um exem p lo
que tem o m érito de não dispersar. E le d iz: “Todos os santos são hom ens,
todos os hom en s são apaixonados, logo todos os santos são apa ixonados” .
E le reú ne isso nu m tal exem plo , pois vocês d evem sen tir bem qu e o
p rob lem a é saber on de está essa pa ixão p red icativa , a m ais ex te r io r
desse s ilog ism o un iversa l, de saber qual espéc ie de paixão ch ega ao
coração para fa ze r a santidade.
Tudo isso, o pensei nesta m anhã, quero d izer a vocês dessa m aneira ,
para fazê-los sen tir do que se trata, no que con cern e ao que ch am ei de
um certo m ovim en to de turbilhão. O que é que tentam os c in g ir com
nosso aparelho concernente às superfícies, as superfícies que aqui entendemos
lhes dar um uso que, para tranqü ilizar m eus ou vin tes inqu ietos, é ta lvez,
das m inhas excursões, pouco clássica, m as é, a inda assim, algo que não
é ou tra coisa senão renovar, re in terrogar a função kantiana do esquem a.
Penso que o radical ilogism o, na experiência, da pertinência, da inclusão,
a re lação da exten são com a com preensão , nos c írcu los de Euler, toda
essa d ireção on de está en redada com o tem po a lóg ica , será que nesse
equ ívoco m esm o ela não é o lem brete do que foi, em seu in ício, esquecido?
O que fo i, em seu in íc io , e squ ec ido é o ob jeto em questão, fosse e le o
m ais puro, é, fo i e será, o que qu er que se faça, o ob jeto do desejo , e
que se se trata de c in g i- lo para apanhá-lo lo g icam en te , isto é, com a
lingu agem , é qu e antes se trata de ap reen dê-lo com o ob jeto de nosso
desejo , tendo-o ap reen d ido , guardá-lo, o que s ign ifica cercá -lo , e que
esse retorno da inclusão ao prim eiro plano da form alização lógica encontra
sua ra iz nessa n ecess id ad e de possuí-lo, on de se fu nda nossa relação
com o ob jeto do desejo enqu an to tal. O B e g r i f f evoca a apreensão, porque
é correndo atrás da apreensão de um objeto de nosso desejo que forjam os
o B egrif f . E cada um sabe que tudo o que qu erem os possu ir qu e seja
objeto de desejo, o que querem os possuir pelo desejo e não pela satisfação
de um a n ecessidade, nos escapa e se esqu iva. Q u em não o evoca no
serm ão m ora lista ! “ N ão possu ím os nada, en fim , é p rec iso abandonar
tudo isso ” , d iz o cé leb re cardeal, com o é tristeI “não possu ím os nada,
d iz o serm ão m ora lista , porque ex is te a m o r te ” . O u tra escam oteação , o
que nos p rom ove aqu i, no n íve l do fa to da m orte rea l, não é o qu e está
em questão. N ão fo i em vão que, du rante um lon go ano, os f iz passear
- 3 3 4 -
Lição de 23 de maio de 1962
n esse espaço que m eus ou vin tes qu a lifica ram de en tre-duas-m ortes. A
supressão da m orte rea l não reso lveria nada, nesse assunto do se esquivar
do ob jeto do desejo , p orqu e se trata de outra m orte , aqu ela que faz com
que, m esm o que não fôssem os m orta is , se tivéssem os a prom essa da
v ida e te rn a , a questão fic a sem pre aberta se essa vida eterna, isto é,
aquela da qual estaria afastada toda promessa do fim , não fosse concebível
com o um a fo rm a de m orre r e te rn am en te . E la o é, certam en te , pois
que é nossa con d ição co tid ian a , e d evem os le va r isso em con ta em
nossa lóg ica de analistas, porque é assim, se a psicanálise tem um sentido,
e se Freud não fo i um lou co , pois é isso que d esigna esse pon to d ito do
in s tin to de m orte . Já o fis io log is ta m ais gen ia l de todos os que têm o
sentido desse viés da abordagem biológica, B ichat, diz: “A vida é o conjunto
das forças que res istem à m o r te ” .
Se algo de nossa exp e riên c ia pode se refle tir, pode um dia tom ar
sen tido ancorado sobre esse p lano tão d ifíc il, é essa precessão, produzida
por Freud, dessa fo rm a de tu rb ilhão da m orte , sobre cu jos flancos a
v ida se agarra para não passar. Pois a ún ica coisa a acrescentar, para
d evo lver a quem qu er que seja essa fu nção igu a lm en te clara, é que
basta não con fu n d ir a m orte com o inan im ado, quando na natureza
in an im ad a basta que, nos abaixando, nós apan hem os o rastro do que é
apenas um a fo rm a m orta , o fóss il, para que com p reen d am os que a
p resen ça do m orto na na tu reza é outra coisa que não o inan im ado.
Será que é seguro qu e está ali, con ch as e de jetos, um a fu n ção da vida?
Seria reso lver o p rob lem a um pouco fa c ilm en te , quando se trata de
saber porqu e a v ida se re to rce dessa form a.
N o m om en to de retom ar a questão do s ign ifican te, já abordada pela
via do rastro, m e veio a idéia irônica, saindo de súbito dos diálogos platônicos,
de pensar que essa im pressão um tanto quanto escandalosa, que Platão
destaca pensando na m arca deixada na areia do estád io pelos cús nús
dos amados, expressões para as quais, sem dúvida, se precipitava a adoração
dos am antes e cuja decên cia consistia em apagá-la, eles teriam fe ito
m elhor deixando-a no lugar. Se os amantes tivessem sido m enos obnubilados
pelo ob jeto de seu desejo, e les teriam sido capazes de tirar partido dele e
de ve r aí o esboço dessa curiosa linh a que lhes proponho hoje. Tal é a
im agem da cegu e ira que carrega consigo v ivo dem ais todo desejo.
Partam os, pois, n ovam en te de nossa linha, que é p rec iso tom ar sob a
fo rm a em que e la nos é dada, fech ad a e n u lificáve l, a linha do zero
- 3 3 5 -
A Identificação
orig ina l da h istó ria e fe t iva da lóg ica . Se ap ren dem os, regressan do desde
já , qu e n en h u m [nu l] é a ra iz de todos, ao m en os a e x p e r iên c ia não
terá sido fe ita em vão. Essa linha, para nós, a cham am os o cor te , um a
linha, é nosso pon to de partida, que nos é p rec iso con s id era r a p rio ri
com o fech ada . Está aí a essên cia de sua n a tu reza s ign ifica n te , nada
poderá jam a is nos provar, po is que é da n a tu reza de cada um a dessas
voltas se fu n dar com o d ife ren te , nada na ex p e r iên c ia pode nos p e rm itir
fundá-la com o sendo a m esm a linha. E ju s tam en te isso que nos p erm ite
apreender o real, é nisso que seu retorno, sendo estruturalm ente d iferente,
sem pre um a outra vez, se se assem elha, então há sugestão, probab ilidade
que a sem elh an ça ven h a do rea l. N en h u m ou tro m e io de in trodu zir, de
um m odo correto , a fu n ção do sem elhan te. M as é apenas um a in d icação
que lhes dou, que p rec isa ser m ais e laborada. Pa rece-m e que já o rep e ti
m uitas vezes se, quando m ais não fosse, para não te r que vo lta r a ela,
m esm o assim a relem brando, os devo lvo a essa obra de um gên io p recoce
e, com o todos os gên ios p recoces , m u ito p recocem en te desaparecido ,
Jean N ico d , A g e o m e t r ia do m u n d o sensível, on de a passagem que d iz
respeito à lin h a ax iom ática , no cen tro da obra - ta lvez a lguns de vocês,
a u ten ticam en te in teressados em nosso progresso, possam se reporta r a
e la - m ostra bem de que m an e ira a escam oteação da fu n ção do c írcu lo
s ign ifican te , nessa análise da exp e r iên c ia sensível, é q u im érica e leva
o autor, apesar do incontestável interesse do que ele promove, ao paralogismo
que vocês não d e ixarão de en con tra r aí. N ós tom am os no in íc io essa
linha fechada, na qual a existência da função das superfícies topologicamente
defin idas serviu p rim eiro para inverter, para vocês, a ev idência enganadora
de que o in te r io r da lin h a fosse algo de u n ívoco , pois é su fic ien te que a
tal linha se desenhe sobre uma superfíc ie de fin ida de um a certa m aneira,
o toro, por exem plo , para que seja aparente que, por m ais que perm aneça
em sua fu n ção de corte , e la não poderia , de m odo algum , p reen ch er aí
a m esm a função que sobre a su p erfíc ie que vocês m e perm itirão cham ar
aqu i de fu ndam en ta l, aqu ela da esfera , a saber, de d e fin ir um fra gm en to
n u lificá ve l, p or exem plo . Para os que estão aqu i pe la p rim e ira vez, isso
quer d izer um a lin h a fech ada , aqu i desen hada (a ) , ou a in da esta aqu i
(b ), que não poderia de m odo algum se redu zir a zero , é, a saber, que a
função do corte que elas in trodu zem na su p erfíc ie é a lgo que, a cada
vez, cria prob lem a. Penso que o que está em questão, no qu e con ce rn e
ao s ign ifican te , é essa ligação rec íp roca que fa z com que, se, p or um
- 3 3 6 -
Lição de 23 de maio de 1962
lado, com o lhes fiz ver na ú ltim a vez, a propósito da superfíc ie de M oeb ius
- essa linda ore lh in h a con tornada, de que lhes de i alguns exem plares -
o corte m ed ian o, no que d iz respeito a seu cam po, a transform a em um a
su perfíc ie d iferen te , que não é m ais essa su perfíc ie de M oeb ius; se se
pode dizer, que a su perfíc ie de M oebius - nisso faço m ais de um a reserva
- que talvez ela não tenha senão uma face, certam ente aquela que resultava
do corte tinha duas faces.
O qu e está em causa, para nós, pegando o v iés de in terroga r os e fe ito s
do desejo pe lo acesso do s ign ifican te , é de nos darm os con ta de com o o
cam po do co rte , a h iâ n c ia69 do corte , é se o rgan izan do em su p erfíc ie
que e la faz su rg ir para nós as d iferen tes form as on de p od em se o rden ar
os tem pos de nossa exp e r iên c ia do desejo. Q uando lhes d igo que é a
partir do corte que se organ izam as form as da su p erfíc ie em questão,
para nós, em nossa experiên cia , de serm os capazes de fa ze r v ir ao m undo
o e fe ito do s ign ifica n te , eu o ilustro, não é a p rim e ira v e z qu e o ilustro .
E is a es fera , e is aqu i nosso corte cen tra l tom ado pe lo v iés in verso do
c ír c u lo d e E u le r. O q u e n os in te re s sa n ã o é o p e d a ço qu e e s tá
n ecessa riam en te des locado pela linh a fech ad a sobre a es fe ra , é o co r te
assim p rodu zido e, se qu iserem , desde já o buraco. Está c la ro qu e tudo
- 3 3 7 -
A Identificação
deve ser dado do que en con tra rem os no fim , em
ou tros term os, que um buraco já tem ali todo seu
sentido, sen tido tornado particu larm ente ev iden te
p e lo fa to de nosso recu rso à es fera . U m buraco
fa z aqu i se com u n ica r um com o ou tro , o in te r io r
c o m o exterior. Só há um pequ en o azar, é que,
um a ve z fe ito o buraco, não há m ais n em in te r io r
n em ex terior, com o é b em ev id en te aqui, é que
essa e s fe ra esbu racada se rev ira com a m a io r
facilidade. Trata-se da criatura universal, primordial,
a do e tern o oleiro. N ão há nada m ais fácil de revirar
do que um pote , is to é, um a calota.
O buraco, portan to, não teria gran de sen tido
para nós, se não houvesse outra coisa para sustentar
essa in tu ição fu n dam en ta l - penso que, ho je, isso
lh es é fa m ilia r - isto é, que a um buraco, a um
corte , a con tecem avatares, e o p rim e iro possível é que dois pon tos da
borda se ju n tem . U m a das prim eiras possib ilidades, para o buraco, é
to rn ar-se dois buracos.
Alguns m e disseram: “porque você não refere suas imagens à em briologia?”
A c red item que elas jam a is estão m u ito lon ge dela. E o que exp lico a
vocês, mas isso não passaria de um álibi, porque referir-m e aqui à embriologia
é con fia r no poder m isterioso da vida, da qua l não se sabe m u ito bem ,
é c laro , porqu e ela acred ita não d ever se in tro d u zir no m u ndo senão
p e lo v iés, o in term ed iá r io desse g lóbu lo, dessa es fera que se m u ltip lica ,
se d ep rim e, se invagina , se en go le a si m esm a, depo is s in gu larm en te ,
ao m en os até o n íve l do batráqu io , o b lastóporo [b las topore ] , a saber,
essa coisa que não é um buraco na esfera , m as um pedaço da es fera
que se reco lh eu den tro do outro. H á m u itos m éd icos , aqu i, que fize ra m
um pouco de em brio log ia e lem en ta r para se lem brar dessa coisa que
com eça a se d iv id ir em dois, para estim u lar esse órgão curioso que se
cham a de canal n eu ren térico , com p letam en te in ju stificáve l para algum a
função, essa com unicação do in terior do tubo neural com o tubo d igestivo
sendo mais para se considerar com o uma singularidade barroca da evolução,
aliás, pron tam ente reabsorvida; na evo lução posterior, não se fa la m ais
disso. Mas, ta lvez as coisas tom assem uma nova d ireção, sendo tom adas
com o um metabolismo, uma m etam orfose guiada por elem entos de estrutura
- 3 3 8 -
Lição de 23 de maio de 1962
cuja p resença e h om ogen eidade com o plano [no qual nós nos deslocam os
na sustentação do s ign ifican te ] sejam o term o de um isolam ento de certo
m odo pré-v ita l do rastro [ t race ] de algo que poderia ta lvez nos levar a
form alizações que, m esm o no plano da organização da experiência biológica,
poderiam reve la r-se fecundas.
D e q u a lq u e r fo rm a , esses do is bu racos
isolados na su perfíc ie da esfera, são eles que,
un idos um ao ou tro , estirados, pro longados
e depo is con juntos, nos deram o toro. Isso
não é novo, s im plesm en te, eu queria articular
bem para vocês o resu ltado. O resu ltado, em
p rim e iro lugar, é que, se há um a coisa que,
para nós, sustenta a in tu ição do toro, é um
m acarrão que se une, que m orde o próprio
rabo; é o que há de m ais exem p la r na função
do buraco, há um no m e io do m acarrão e há
uma corrente de ar, o que faz com que, passando
através do arco que e le form a... há um buraco
qu e fa z com u n ica r o in te r io r com o interior,
e depo is há um outro, m ais fo rm idáve l ainda,
que coloca um buraco no coração da superfície,
que é ali buraco, estando em p len o exterior. A im agem da perfu ração
está in trodu zida , pois o que cham am os de buraco é isso, é esse co rred or
que se a fundaria num a espessura [a], im agem fu ndam enta l que, quanto
à geom etria do m undo sensível, não fo i jam ais su fic ien tem en te distinguida,
e depo is o ou tro bu raco [b], que é o buraco cen tra l da su p erfíc ie , isto é,
o buraco que cham arei de buraco corren te de ar. O que pretendo avançar,
para colocar nossos problemas, é que esse buraco corren te de ar irredutível,
se nós o c in g irm os com um corte , é p rop riam en te aí que se situa, nos
e fe itos da função s ign ificante, a, o objeto enquanto
tal. Isso qu er d ize r que o ob jeto é extrav iado, pois
não poderia de je ito nen h u m existir ali senão o
contorno do objeto, em todos os sentidos que possamos
dar à palavra con torno . Abre-se, ainda, um a outra
possibilidade, que para nós vivifica, suscita interesse
na com paração estru tu ran te e estru tural dessas
su perfíc ies , é que o co rte pode, em superfíc ie ,
- 3 3 9 -
A Identificação
articu lar-se de outra m aneira. Sobre o buraco
aqu i d e sen h a d o na s u p e r f íc ie da e s fe ra ,
podem os enunciar, formular, alm ejar que cada
pon to seja un ido a seu ponto antipód ico, que,
sem nen h u m a d ivisão da h iância70, a h iância
se organ iza em su perfíc ie dessa m aneira que
a e sca m o te ia com p le ta m en te sem o m e io
[m ed iu m ] desta divisão interm ediária. Eu lhes
m ostre i, na ú ltim a vez, e m ostra re i de novo;
isso nos dá a su p erfíc ie qu a lificada de boné
ou de cross -cap, is to é, a lgum a co isa da qual
con vém não e sq u ecerem que a im agem que
lhes d e i não é m ais que um a im agem , por
assim dizer, torcida, uma vez que o que parece
a todos que, pe la p rim eira vez, têm de re fle tir
sobre e la, o que lh e fa z obstácu lo é a questão
dessa fam osa linh a de aparen te pen etração
da s u p e r f íc ie a través de la m esm a, qu e é
necessária para representá-la em nosso espaço.
Isto que in d ico aqu i, de m an eira trem ida , é
fe ito para in d ica r que é p rec iso con siderá -la
com o vacilante, não fixada. Em outras palavras,
não precisam os jam ais levar em conta tudo o
que passeia aqu i de um lado, no ex ter io r da
superfíc ie , que não poderia passar ao exterior
da su perfíc ie ..., que não poderia passar ao
e x te r io r do que está do ou tro lado, um a vez
que não há en con tro rea l das faces, mas, ao
con trá rio , não poderia passar senão do ou tro
lado, no in terior, pois, da ou tra face, eu digo
a outra, em relação ao observador aqui colocado
[flech a grande].
P o rta n to , r ep re se n ta r as co isas assim ,
considerando essa form a de superfíc ie , deve-
se apenas a uma certa incapacidade das formas
intu itivas do espaço com três d im ensões, para
-
- 3 4 0 -
Lição de 23 de maio de 1962
perm itir o suporte de uma im agem que rea lm ente dê conta da continuidade
obtida, sob o n om e dessa nova su p erfíc ie d ita cross-cap, o b on é em
questão . Em ou tras palavras, o que esta su p erfíc ie sustenta? N ós o
ch am arem os - pois que estão aí as teses que ad ian to p rim e iro , e nos
p erm itirem os em segu ida dar seu sen tido ao uso que lhes p rop ore i fa ze r
dessas d iversas form as - cham arem os essa su p erfíc ie , não o buraco,
pois, com o vêem , existe ao m enos um que ela escam oteia, que desaparece
c om p le ta m en te em sua form a , m as o lu g a r do buraco . Essa su p erfíc ie ,
assim estru turada, é pa rticu la rm en te p rop ícia a fa ze r funcionar, d ian te
de nós, esse e lem en to , o m ais in a p reen s íve l, que se cham a de desejo
en qu an to tal, em ou tras palavras, a fa lta . A co n tece , todavia , que para
essa su p erfíc ie que p reen ch e a h iân c ia71, apesar da aparênc ia que torna
todos esses pon tos que cham arem os, se qu iserem , de antipódicos, pontos
equivalentes, eles não podem, contudo, funcionar nessa equivalência antipódica,
a m enos que existam dois pontos privilegiados. Estes estão aqui representados
por esse pequeno círcu lo [a], sobre o qual já m e in terrogou a perspicácia
de um dos m eus ouvintes: “O que você quer, de fato, representar assim,
com esse pequeno c írcu lo? ” . Certam ente, não é algo equ ivalente ao buraco
cen tra l do toro, uma vez que, em qualquer n íve l que vocês se colocassem
desse ponto privileg iado, tudo o que passa de um lado para o outro da
figura, aqui passará por essa falsa decussação (b ), esse quiasma ou cruzamento
que fa z a sua estrutura. Contudo, o que é assim ind icado, por essa form a
assim circulada, não é outra coisa senão a possibilidade por baixo, se podemos
exprim i-lo assim, desse ponto passar de uma superfíc ie ex terior à outra. É
tam bém a necessidade de ind icar que um círcu lo não p riv ileg iado sobre
essa superfície, um círcu lo redutível, se vocês o fazem deslizar, se vocês o
extraem de sua ap a rên c ia de sem i-o cu lta ção , para a lém do lim ite
A Identificação
aparentem ente aqui de recruzam ento e de penetração,
para levá -lo a esten der-se , a se d esen vo lver assim
em d ireção à m etade in fe r io r da figu ra e, portan to,
a se iso lar aqu i em um a fo rm a no ex te r io r da figura,
deverá sem pre aqu i con tornar algum a coisa que não
lh e p erm ite , de m an e ira a lgum a, transform ar-se no
que seria sua ou tra form a , a fo rm a p riv ileg iada de
um c írcu lo , na m ed id a em que faz a volta do pon to
p riv ileg iad o e que e le d eve ser rep resen tado assim
sobre a su p erfíc ie em questão. Esta aqui, de fato, não poderia , de je ito
algum , ser-lh e equ iva len te , pois essa form a é a lgo que passa em torno
do ponto privilegiado, do ponto estrutural, cm torno do qual está sustentada
toda a estru tura da su p erfíc ie assim d e fin ida . Esse pon to dup lo e pon to
simples ao m esm o tempo, em torno do qual se sustenta a própria possibilidade
da estru tura en trecru zad a do boné ou do cross-cap, é por esse pon to
que s im bo lizam os o que pode in trodu zir um ob jeto a qualquer, no lugar
do buraco. Esse pon to p riv ileg iad o , nós con h ecem os suas fu n çõ es e sua
natureza, é o falo, na m ed ida em que é por e le , en qu an to operador,
que um ob jeto a p ode ser posto no lugar m esm o on de nós, em um a
ou tra estru tura [a saber, o toro ], não ap reen dem os senão seu con torn o .
E is aí o va lo r exem p la r da estru tura do cross-cap, que ten to a rticu la r
d ian te de vocês, o lugar do buraco, é no p rin c íp io esse pon to de uma
estru tura especia l, enqu an to se trata de d istingu i-lo das outras form as de
pontos, esse aqui, por exem plo , d e fin ido pelo reco rte de um corte sobre
e le m esm o, p rim eira form a possível de se dar ao
nosso oito in terior. Cortam os algum a coisa num
papel, por exem plo , e um ponto será d e fin ido pelo
fato do corte repassar sobre o lugar já cortado. Sabemos
bem que isso não é absolu tam ente necessário para
que o corte tenha, sobre a su perfíc ie , um a ação
com p letam en te d e fin ív e l e n e la in trodu za essa
m udança, cujo suporte devem os tom ar para im ajar
certos e fe itos do s ign ificante.
Se pegarm os um toro e o cortarm os assim , isso
fa z essa fo rm a aqu i desenhada. Passando ao ou tro lado do toro , vocês
vêem que, em nen h u m m om en to , esse co rte se ju n ta de n ovo a e le
m esm o. Façam a exp e r iên c ia sobre a lgum a ve lh a câm ara de ar, vocês
- 3 4 2 -
Lição de 23 de maio de 1962
verão o que isto va i dar; dará um a su p erfíc ie con tínua , organ izada de
ta l m odo que e la se vo lta duas vezes sobre si m esm a, antes de se juntar.
Se e le tivesse se voltado apenas uma vez, seria um a superfíc ie de Moebius.
C om o e la se vo lta duas vezes, is to p rodu z um a su p erfíc ie de duas faces,
qu e não é id ên tica àqu ela que lhes m ostrei ou tro dia, após a secção da
su p erfíc ie de M oeb ius,
pois aquela a li se volta duas vezes e uma outra ve z ainda d iferen tem en te ,
para fo rm a r o que cham am os de um anel de Jordan. M as, o in teresse é
de ver o que é exa tam en te esse pon to p riv ileg iad o , na m ed ida em que,
com o tal, e le in tervém , e le espec ifica o fra gm en to de su p erfíc ie sobre o
qual p e rm an ece irred u tiv e lm en te , dando-lhe o acen to particu lar que
lh e p erm ite , para nós, ao m esm o tem po design ar a fu n ção segundo a
qua l um ob jeto está a li d esde sem pre, an tes m esm o da in trodu ção dos
reflexos , das aparências que de le tem os sob a form a de im agens, o objeto
do desejo . Esse ob jeto , e le não é para ser tom ado senão nos efe itos ,
para nós, da fu n ção do s ign ifica n te , e, no en tan to , não se reen con tra
n e le a não ser seu destino de sem pre. C om o ob jeto , é o ú n ico ob jeto
abso lu tam en te au tônom o, p rim ord ia l em re la çã o ao su jeito , decis ivo
em re la ção a e le , a pon to de que m in h a re la çã o com esse ob jeto seja,
de certo m odo, para inverter, a pon to de, se, n o fantasm a, o su jeito, por
um a m iragem em todos os pon tos para le la àqu ela da im agin ação do
estád io do espe lh o , a inda que de um a ou tra ordem , se im agina, pelo
e fe ito daqu ilo que o constitu i com o sujeito, isto é, o e fe ito do sign ificante,
suportar o ob jeto que vem por e le cobrir a fa lta , o buraco do O utro, e é
isto o fantasm a. In versam en te pode-se d izer que todo o corte do sujeito,
aqu ilo que, no m undo, o con stitu i com o separado, com o re je itado , lhe
é im posto por um a de term in ação não m ais subjetiva, indo do su jeito
- 3 4 3 -
A Identificação
para o ob jeto , m as ob jetiva , do ob jeto para o su jeito , lh e é im posto pe lo
ob jeto a, mas, na m ed id a em que, no coração deste ob jeto a, ex is te esse
pon to cen tra l, esse pon to tu rb ilhão por on de o ob jeto sai de um além
do nó im agin ário , id ea lis ta , su je ito -ob jeto que produ ziu , até aqu i, desde
sem pre, o im passe do pen sam en to , esse pon to cen tra l que, desse a lém ,
p rom ove o ob jeto com o ob jeto do desejo . É o que persegu irem os , na
p róx im a vez.
- 3 4 4 -
((c
LIÇÃO XXIIc
30 de m a io de 1962
(
c c c(
cO ensino ao qual lhes con du zo é com andado pelos cam inhos de nossa
experiência . Pode parecer excessivo, senão enfadonho, que esses cam inhos
suscitem em m eu en s in o uma fo rm a de desvios, d igam os, inu sitados
que, por isso, podem parecer, fa lan do p rop riam en te , exorb itan tes . Eu
os poupo de les o quanto posso. Posso d ize r que, por exem plos en laçados
o m ais p róx im o poss íve l em nossa exp eriên c ia , d esen h o um a esp éc ie
de redução, se se pode dizer, desses cam inhos necessários. Vocês não
devem , no en tan to , se espantar de que este jam im p licados em nossa
exp licação cam pos, dom ín ios tais com o aqu ele , p or exem plo , es te ano, (
da topo log ia se, de fato , os cam inhos que tem os a p e rco rrer são aqu eles
que colocam em causa um a ordem tão fundam enta l quanto a constitu ição
m ais rad ica l do su je ito com o tal, d izen do respeito , p or isso, a tudo o
que se poderia cham ar de um a espéc ie de rev isão da c iên c ia .
Por exem plo , essa nossa suposição rad ica l, que co lo ca o su je ito em
sua con stitu ição , na depen dên c ia , num a posição segunda em re la ção
ao s ign ifican te , qu e fa z do próprio su je ito um e fe ito do s ign ifica n te ;
isso não pode d e ixa r de se destacar de nossa exp eriên c ia , tão encarnada
qu a n to e la es te ja nos d om ín io s a p a ren tem en te m a is ab stra tos do
pensam en to . E acred ito não estar fo rçan do nada ao d ize r que o que
elaboram os aqu i p od eria in teressar no m ais a lto pon to ao m atem á tico .
Por exem plo , com o se constatava recen tem en te , o lhando m ais de perto ,
cre io , em um a teoria que, para o m atem ático , ao m en os por um tem po,
causou m u ito p rob lem a, um a teoria com o aqu ela do transfin ito , cu jos
im passes c e rta m en te an teced em em m u ito nossa va lo r ização da fu n ção
c
c
(
c
c( (
c- 3 4 5 -
A Identificação
do traço unário , na m ed ida em que essa teoria do transfin ito , o que a
fu n da é um retorno, é um apanhado da o r igem da con tagem de antes
do nú m ero, quero dizer, do que an teced e toda con tagem e a en vo lve , e
a suporta, a saber, a co rresp on dên cia b i-u n ívoca , o traço por traço.
C ertam en te , aqu eles desvios, isso pode ser para m im um a m an e ira de
c on firm a r a am p litu de, [o in fin ito ] e a fe cu n d id ad e daqu ilo que nos é
abso lu tam en te necessá rio construir, quanto a nós, a partir de nossa
exp eriên c ia . Eu lhes poupo disso.
Se é verdade que as coisas são assim, que a exp e r iên c ia an a lítica é
aqu ela que nos leva através dos e fe itos encarnados daqu ilo qu e é -
c e rta m en te , desde sem pre, m as cu jo fa to de que nós nos apercebem os
apenas é a co isa nova - , os e fe itos encarnados pelo fa to da p rim azia do
s ign ifica n te sobre o sujeito, não é possível que todo tipo de ten tativa de
redução das dim ensões de nossa experiência ao ponto de vista já constituído
do que se cham a a c iên c ia p s ico lóg ica - nesse sen tido de que n in gu ém
pode negar, não pode não reconhecer que ela fo i constituída sobre premissas
que n eg ligen c ia vam , e por isso m esm o, porqu e e la estava e lid ida , essa
articu lação fu n dam en ta l sobre a qual co lo cam os o acen to , este ano
apenas de m an eira a inda m ais exp líc ita , m ais acirrada, m ais articu lada
- não é possível, digo, que toda redu ção ao pon to de vista da c iên c ia
ps ico lóg ica , tal com o e la já se constitu iu , con servan do com o h ipó tese
um certo nú m ero de pontos de opacidade, de pon tos e lid idos , de pontos
de irrea lidade maior, chegue forçosam en te a form u lações ob je tivam en te
m entirosas, não digo enganosas, d igo m entirosas, falsas, que determ inam
algum a co isa que se m an ifesta sem pre na com u n icação do que se pode
cham ar de um a m en tira encarnada. O s ign ifica n te d e te rm in a o sujeito,
eu lhes digo, na m ed ida em que n ecessa riam en te é isso o que quer
d izer a exp eriên c ia psicanalítica . Mas, sigam os as con seqü ên cias dessas
prem issas necessárias. O s ign ifican te d e term in a o sujeito, o su jeito tom a
d e le um a estru tura; é aqu ela qu e já ten te i d em on strar-lh es no grafo.
Este ano, a p ropósito da id en tifica ção , isto é, desse algo que foca liza
sobre a p rópria estru tura do su jeito nossa experiên cia , ten to fazê-los
seguir m ais in tim am en te essa ligação do s ign ifican te com a estrutura
subjetiva. Isto ao qual os levo, sob essas fórm u las topológicas, das quais
vocês já sentiram que elas não são pura e s im p lesm en te essa re ferên c ia
in tu itiva à qual nos habituou a prática da geom etria , é a con siderar que
essas superfíc ies são estruturas, e tive que lhes d izer que elas estão todas
- 3 4 6 -
Lição de 30 de maio de 1962
estru turalm ente presentes em cada um de seus pontos, se é que devem os
em pregar essa palavra ponto sem reservar o que vou trazer-lhes hoje aqui.
Eu os le v e i, por m inhas a firm ações p receden tes , a isso que se trata
agora de con stru ir em sua un idade, que o s ign ifica n te é corte , e o
su jeito e sua estrutura, trata-se de fazê-lo d epen der disto. Isso é possível,
p e lo que lhes p eço ad m itir e segu ir-m e ao m en os por um tem po, que o
sujeito tem a estrutura da superfície, pelo m enos topologicam ente definida.
Trata-se, pois, de apreender, e isso não é d ifíc il, com o o co rte en gen d ra
a su p erfíc ie . É isso que co m ece i a ex em p lifica r para vocês, no dia em
que en v ian do-lh es , com o tantos outros vo lan tes em não sei qual jogo ,
m inhas superfícies de M oebius, também lhes m ostrei que essas superfícies,
se vocês as cortarem de um a determ inada m aneira , to rn am -se outras
su perfíc ies , qu ero dizer, topo log icam en te d e fin id as e m a te r ia lm en te
ap reen síve is com o m udadas, pois estas não são m ais as su perfíc ies de
M oeb ius, pe lo s im p les fa to desse corte m ed ian o que vocês pra ticaram ,
m as um a fa ixa um pou co to rc ida sobre ela m esm a, m as exa tam en te
um a faixa, isso que cham am os de fa ixa, tal com o esse c in to que tenho
na c in tu ra. Isso para lhes dar a id é ia da possib ilidade da con cepção
desse en gen d ram en to , por a lgum m otivo in ve rtid o em relação a uma
p rim e ira ev idên c ia . E a su perfíc ie , pensarão vocês, que p e rm ite o corte ,
e eu lhes digo, é o corte que nós podemos conceber, para tomar a perspectiva
topo lóg ica , com o en gen d ra n d o a su perfíc ie . E isso é m u ito im portan te ,
pois, a fina l, é a li ta lvez que irem os poder ap reen der o pon to de entrada,
de in serção do s ign ifica n te no real, constatar na praxis hum ana que é
porqu e o real nos apresenta, se posso dizer, su perfíc ies naturais, que o
s ign ifican te pode en tra r nele.
C ertam en te a g en te pode se d ivertir fa zen d o essa gên ese com ações
con cretas, com o se cham a, a fim de lem brar que o hom em corta, e que
D eus sabe que nossa ex p e r iên c ia é bem aqu ela em que se va lo r izou a
im portân c ia dessa possib ilidade de cortar com um a tesoura. U m a das
im agens fundam entais das prim eiras metáforas analíticas, os dois dedinhos
que saltam sob a batida das tesouras, serve, certam en te, para nos inc ita r
a não n eg ligen c ia r o que há de con creto , de p rático , o fa to de que o
h om em é um an im a l que se pro longa com instru m entos e a tesoura
está no p rim eiro plano. A gen te poderia se d ivertir refazendo uma história
natura l; o que é que acon tece com aqueles an im ais que possuem o par
de tesouras em estado natura l? N ão é para isto que os conduzo, e por
- 347 -
A Identificação
isso m esm o; aqu ilo a quê nos leva a fórm u la, o hom em co r ta , é bem m ais
nesses ecos sem ânticos que ele se corta , com o se d iz, que ele tenta co r ta r
cam inho72. T lido isto deve, aliás, se juntar em tom o da fórm ula fundamental:
vão te co r tá - lo ! E fe ito de s ign ifican te, o corte fo i p rim e iro para nós, na
análise fon em ática da linguagem , essa linha tem poral, m ais p recisam ente
sucessiva dos s ign ifican tes que os habituei a cham ar até agora de cadeia
s ign if ica n te . Mas, o que vai acontecer, se agora lhes in c ito a considerar
a própria linh a com o corte orig inal?
Essas in terru pções, essas in d iv idu a lizações, esses segm en tos da linha
que se cham avam , se qu iserem , então fon em as, qu e adm itiam , pois,
serem separados do que p recede e do que segue, fa ze r um a cade ia ao
m en os p on tu a lm en te in terrom p ida , essa g eo m etr ia do m u n do sensível,
à qual, na ú ltim a vez, os in c ite i a se re fe r irem com a le itu ra de Jean
N ico d e a obra assim in titu lada , vocês verão , em um cap ítu lo cen tra l,
a im portân c ia que tem essa análise da linh a en qu an to pode ser, posso
dizer, d e fin id a por suas p rop riedades in trín secas , e que com od idade
lh e teria dado a co lo ca çã o em p rim e iro p lano rad ica l da fu n ção do
corte , para a e laboração teór ica que e le d eve arqu ite ta r com a m aior
d ificu ld a d e e com con trad ições que não são ou tras senão a n eg lig ên c ia
dessa função radical. Se a própria linha é corte, cada um de seus elem entos
será, portan to, secção de corte , e é isso, em suma, que in trodu z esse
e lem en to vivo, se posso dizer, do sign ificante, que cham ei de o ito interior,
a saber, p recisam en te o laço. A linha se recorta . Qual
é o in teresse dessa observação? O corte levado sobre
o rea l aí m anifesta, no real, o que é sua característica
e sua função, e o que ele in troduz em nossa dialética,
con tra riam en te ao uso que dele se faz, que o rea l é
o d iverso, o real, desde sem pre, eu m e servi dessa
função orig inal, para d izer-lhes que o rea l é o que
retorna sem pre ao m esm o lugar.
O que isso quer dizer, senão que a secção de corte, em outras palavras,
o s ign ifica n te sendo aqu ilo que nós d issem os, sem pre d ife ren te d e le
m esm o - A *■ A, A não é id ên tico a A - nen hu m m eio de fa ze r ap arecer
o m esm o, senão do lado do real. D ito de ou tra m an eira , o co rte , se
posso assim m e exprim ir, no n íve l de um puro su je ito de co rte , o corte
não pode saber que e le se fech ou , que e le só repassa por e le m esm o
porque o rea l, en qu an to d istin to do s ign ifican te , é o m esm o. Em outras
- 348 -
Lição de 30 de maio de 1962
palavras, só o rea l o fe ch a 73. U m a curva fech ada é o rea l reve lado, mas,
com o vêem , m ais rad ica lm en te , é p rec iso que o corte se recorte . Se
nada já não o in terrom p e , im ed ia tam en te após o traço, o s ign ifican te
tom a essa form a, que é, p ropriam ente falando, o corte. O corte é um
traço que se recorta. É som ente depois que ele se fecha sobre o fundam ento
que, se cortando, e le encontrou o real, o qual só perm ite conotar com o o
m esm o, respectivam en te aquilo que se encon tra sob o prim eiro, depois o
segundo laço. Encontram os, ali, o nó que nos dá um recurso a respeito do
que constitu ía a incerteza, a hesitação de toda a construção identificatória
- vocês o perceberão m uito bem na articulação de Jean N icod - ele consiste
no seguinte, é preciso esperar o m esm o para que o s ign ificante consista,
com o sempre se acreditou, sem se deter suficientem ente no fato fundamental
de que o significante, para engendrar a diferença que ele significa originalmente,
a saber, o m om ento, aquele m om ento que, asseguro-lhes, não poderia se
repetir, m as que sem pre obriga o su jeito a en con trá -lo , aqu ele m om en to
ex ig e , portan to , para a lcan ça r sua fo rm a s ign ifica n te , que ao m en os
um a ve z o s ign ifica n te se rep ita , e essa rep e tiçã o não é ou tra senão a
fo rm a m ais rad ica l da e x p e r iên c ia da d em an da . O qu e é, en carn ado ,
o s ign ifican te, são todas as vezes que a dem anda se repete. Se justam en te
não fosse em vão que a d em an da se rep e te , não h a ver ia s ign ifica n te ,
p orqu e [não h aver ia ] nen h u m a dem anda. Se, o que a dem an da en cerra
em seu la ço vocês o tivessem , n en h u m a n ecess id a d e de d em an da.
N en h u m a n ecess id ad e de dem an da, se a n ecess id a d e está satis fe ita .
U m h u m oris ta exc lam ava , um dia: “ V iva a P o lôn ia , sen h ores , p orqu e,
se não houvesse Po lôn ia , não haveria P o lo n ê s !” . A dem an da é a Po lôn ia
do s ign ifica n te . E is p orqu e eu seria bastan te levad o , ho je , parod ian do
esse ac iden te da teoria dos espaços abstratos, que faz com que um desses
espaços - e agora existem cada vez m ais num erosos, nos quais não cre io
precisar in teressá-los - cham a-se de espaço polonês, cham em os hoje o
s ign ifican te de s ign ifican te polonês, isso ev itará cham á-lo o laço [le lacs ],
o que m e pareceria um perigoso encora jam en to ao uso que um de m eus
entusiastas, recen tem en te , acred itou dever fa zer do term o lacan ism o!
Espero que, ao m enos enquanto eu viver, esse term o, m an ifestam en te
tentador, após m inha segunda m orte, m e seja poupado! Portanto, isso
que m eu s ign ifican te polonês está destinado a ilustrar, é a relação do
sign ificante consigo m esm o, isto é, a nos conduzir à relação do sign ificante
com o sujeito, se é que o sujeito pode ser con ceb ido com o seu e fe ito .
- 349 -
A Identificação
Já observe i que, ap a ren tem en te , só há s ign ifican te , toda su p erfíc ie
onde e le se in sc reve sen do-lh e suposta. M as isso é, de a lgum m odo,
figu rado por todo o s istem a das Belas Artes, que esc la rece algo que os
leva a in terroga r a arqu itetu ra , por exem plo , sob esse v iés que lhes faz
aparecer o porquê de la ser tão ir red u tiv e lm en te en gan adora7'1 [ t r o m p e -
d ’o e i l ] , perspectiva . E não é por nada que acen tu ei, num ano em que
as preocupações m e parecem bem distantes de preocupações propriam ente
estéticas, sobre a an am orfose , qu er dizer, para aqu eles que não estavam
lá antes, o uso da fuga de um a su p erfíc ie para fa ze r apa rece r uma
im agem que, ce rta m en te , es ten d ida é ir re co n h ec íve l, m as que, de um
certo pon to de vista, se recom põe e se im põe. Essa singular am bigü idade
de um a arte sobre o que aparece, por sua natureza, p od er se liga r aos
p lenos e aos vo lum es, a não sei qual com p letu d e que, de fato , reve la -se
sem pre essen c ia lm en te subm etida ao jo g o dos p lanos e das su perfíc ies ,
é algo tão im portan te, in teressante, quanto ver tam bém isso que dela
está ausente, a saber, todo tipo de coisas que o uso con creto da extensão
nos o ferece , por exem plo , os nós, de fato con cretam en te im agináveis de
rea lizar num a arqu itetura de subterrâneos, com o ta lvez a evo lu ção dos
tem pos nos dará a conhecer. M as é claro que jam ais nenhum a arquitetura
sonhou em se com por em torno de um arranjo dos e lem en tos, das peças
e com un icações, até das cores, com o algum a coisa que, no in te r io r de si
m esm a, faria nós. E, no entanto, porque não? É exa tam en te porque
nossa observação de que “não ex iste s ign ifican te senão sendo-lhe suposta
uma su p erfíc ie ” , se reverte em nossa síntese, que vai buscar seu nó, o
m ais rad ica l disso que o corte, de fato, com anda, engendra a su perfíc ie ,
que é e le que lhe dá, com suas variedades, sua razão con stitu in te. É
bem assim que podem os apreender, hom ologar essa p rim eira relação da
dem anda com a constituição do sujeito, na m edida em que essas repetições,
esses retornos na form a do toro, esses laços que se ren ovam fa zen d o o
que, para nós, no espaço im aginado do toro, apresenta-se com o seu contorno.
Esse retorno à sua origem nos p erm ite estruturar, exem p lifica r de form a
m aior um certo tipo de re lações do sign ifican te com o su jeito que nos
perm ite situar em sua oposição a função D da dem anda e aqu ela de a, do
objeto a, o ob jeto do desejo, D, a escansão da dem anda.
Vocês puderam observar que, no grafo, vocês têm os sím bolos seguintes:
s (A ), A, no estág io su perio r S (A ) , $ < > D [$ barrado corte de D ], nos
dois estágios in term ed iá r ios , i (a ) , m , e do ou tro lado $ < > a [$ barrado
Lição de 30 de maio de 1%2
corte de a ], o fantasm a, e d. Em nen hu m a parte vocês v êem ligados D e
a. O que isso traduz? O que é que isso re fle te ? O que isso suporta? Isso
suporta prim eiro o seguinte, é que o que vocês encontram em compensação,
é $ < > D , e que esses e lem en tos do tesouro s ign ifica n te no estág io da
en u n ciação , eu lhes ensino a recon h ecê-los , é o que se cham a de T r ieb ,
a pulsão. É assim que fo rm a lizo , para vocês, a p rim e ira m od ifica çã o do
rea l em su je ito sob o e fe ito da dem anda, é a pulsão. E se, na pulsão,
não houvesse já esse e fe ito da dem anda, esse e fe ito de s ign ifican te ,
esta não poderia articular-se em um esquema tão m anifestamente gramatical.
Faço expressam ente alusão ao que aqui, suponho, todo m undo habituado
[experL] às m inhas análises an terio res; quanto aos outros, eu os rem eto
ao artigo T r ic b e un d T r ichsch icksa le , que es tran h am en te traduziram
aqui por “ avatares das pu lsões” , sem dúvida por uma espécie de referên cia
confusa aos e fe itos que a leitura de tal texto produziu na prim eira obtusão
da re ferên c ia psicológica. A aplicação do sign ificante, que hoje cham am os,
para nos d ivertirm os, de s ign ifican te polonês, à su perfíc ie do toro, vocês
a vêem aqu i, é a fo rm a m ais s im ples do que pode se p rod u zir de um a
m an e ira in fin ita m en te en riqu ec ida por um a seqü ên c ia de con tornos
en ro lados, a bobina p rop riam en te dita, aqu ela do d ínam o, na m ed ida
em que, no curso dessa rep etição , o c ircu ito é fe ito em torn o do buraco
cen tra l.
M as, sob a form a em que vocês vêm aqu i desenhada, a m ais sim ples,
esse c ircu ito é fe ito igu a lm en te - o sublinho, esse corte é o corte sim ples
- de tal m an eira que aqu ilo não se recorta . Para figu ra r as coisas, no
espaço rea l, aqu ele que vocês podem visualizar, vocês a vêm até aqui,
nessa su p erfíc ie apresen tada a vocês, essa fa ce do lado de vocês do
toro; ela desaparece, em seguida, sob a ou tra face, por isso que ela está
pon tilhada, para retornar deste lado aqui. U m tal corte não apreende,
A Identificação
por assim dizer, absolu tam en te nada. P ra tiqu em -no sobre um a câm ara
de ar, vocês verão, no fim , a câmara aberta de uma certa maneira, transformada
em um a su perfíc ie duas vezes torc ida sobre ela m esm a, m as não cortada
em dois. E la torna, se posso dizer, apreensível um a m aneira s ign ifican te
e preconceitual, mas que não deixa de caracterizar uma espécie de apreensão
à sua m aneira do rad ica l da fuga, por assim dizer, a ausência de qua lquer
acesso à a p reen sã o , n o qu e c o n c e rn e ao seu o b je to n o n ív e l da
dem anda. Pois, se d e fin irm os a dem anda por isto, que e la se rep e te e
qu e e la não se rep e te senão em fu n ção do vazio in te r io r que e la cerca
- esse vazio que a sustenta e a con stitu i, esse vazio que não com porta ,
lh es assinalo de passagem , nen h u m jo g o de qu a lqu er m odo é tico , nem
rid icu lam ente pessim ista, com o se existisse um pior excedendo o ord inário
do su jeito, é s im p lesm en te um a n ecessidade de lóg ica abecedária , se
posso d izer - toda satis fação ap reen síve l, qu er a s ituem sobre a ve rten te
do su jeito ou sobre a ve rten te do ob jeto, fa z fa lta em re la ção à dem anda.
S im p lesm en te , para qu e a dem an da seja dem anda, a saber, qu e e la se
rep ita com o s ign ifican te , é p rec iso que e la seja decepc ion ada . Se não o
fosse, não ex is tir ia suporte para a dem anda.
- 3 5 2 -
Lição de 30 de maio de 1962
M as, esse va z io é d ife ren te daqu ilo do que está em questão, no que
con ce rn e ao a, o ob jeto do desejo. O advento con stitu ído pela repetição ,
o advento m eton ím ico , o que desliza, é evocado pelo próprio deslizam ento
da rep etição da d em an da; a, o ob jeto do desejo, não poderia de m odo
a lgum ser evocado nesse vazio , cercado aqu i pe lo laço da dem anda.
E le deve ser situado no buraco que cham arem os de nada fu n d a m en ta l ,
para d istingui-lo do vazio da dem anda, o nada onde é cham ado ao advento
o ob jeto do desejo . O qu e qu erem os form alizar, com os e lem en tos que
lh es trago, é o que p e rm ite situar no fan tasm a a relação do su jeito
com o $, do su je ito in fo rm ad o pela dem anda, com esse a, enqu an to
que, nesse n ív e l da estru tu ra s ign ifican te que lhes dem onstro no toro,
na m ed id a em que o corte a criou nessa form a , essa re lação é um a
relação oposta, o vaz io qu e sustenta a dem anda não é o nada do ob jeto
que e la c in ge com o ob je to do desejo , é isso o que está d estin ado a
ilu strar para vocês essa re fe rên c ia ao toro.
Se fosse apenas isso que vocês pudessem
tirar daí, seria muito esforço para um resultado
pequeno, mas, com o verão, há muitas outras
coisas a extra ir daí. C om e fe ito , para andar
rápido e sem, certam ente, fazê-los traspassar
os d iferen tes passos da dedução topológica,
que lhes m ostram a n ecessidade in terna
que com anda a con stru ção que agora vou
lhes dar, vou m ostrar-lhes que o toro perm ite
um a coisa que certam en te vocês poderão ver, que o cross-cap não perm ite.
Penso que as pessoas m en os levadas à im agin ação vêem , através dos
enrolam entos topológicos, do que se trata (Lacan desenha a figura ac im a),
ao m en os m eta fo r ica m en te . O term o cadeia, que im p lica con catenação ,
já está su fic ien tem en te in trodu zid o na linguagem , para que parem os
aí. O toro, por sua estru tura topológica, im plica o que poderem os cham ar
de um com p lem en ta r, um ou tro toro que pode v ir se con ca ten ar com
ele. Suponhamo-los com o de fato conformes com o que lhes rogo conceitualízar
no uso dessas su perfíc ies , a saber, que elas não são m étricas, que elas
não são rígidas, d igam os que elas são de borracha. Se tom arem um
desses anéis, com os quais se jo g a no jo go desse nom e, vocês poderão
constatar que, se o em punharem de m aneira firm e e fixa por seu contorno,
e se fize rem girar sobre e le m esm o o corpo que ficou livre, vocês obterão,
- 3 5 3 -
A Identificação
muito facilmente, e da mesma maneira que se vocês se servissem de um junco
encurvado, torcendo-o assim sobre ele mesmo, vocês o farão voltar à sua posição
primeira, sem que a torção esteja de qualquer maneira inscrita em sua substância.
Simplesmente, ele terá voltado a seu ponto primitivo. Vocês podem imaginar
que, por uma torção, que seria essa aqui, um desses toros sobre o outro, nós
procederíamos ao que se pode chamar de decalque do que quer que seja que
estaria já inscrito sobre o primeiro, que nós chamaremos o 1, e colocamos que
o que está em questão seja, o que lhes rogo referir simplesmente ao primeiro
toro, essa curva, na medida em que não somente ela engloba a espessura do
toro e que, não somente ela engloba o espaço do buraco, mas ela o atravessa, o
que é a condição que pode permitir-lhe englobar ao m esm o tempo os dois
vazios e nadas, e o que está aqui na espessura do toro, e o que está aqui no
centro do nó.
Dem onstra-se - mas eu os dispenso da demonstração, que seria longa e
dem andaria esforço - que, assim procedendo, o que virá sobre o segundo
toro será uma curva sobreponível à prim eira, se se sobrepõem os dois toros.
O que isso quer dizer? Prim eiro, que elas poderiam não ser sobreponíveis.
Eis aqui duas curvas, elas parecem ser fe itas da m esm a m aneira , elas
são, no entanto, irredu tive lm en te não-sobreponíveis. Isso im p lica que o
toro, apesar de sua aparência simétrica, comporta possibilidades de evidenciar,
pe lo corte , um desses e fe itos de torção que p erm item o que cham arei de
d issim etria rad ica l, aquela cuja presença na natureza - vocês sabem,
que é um prob lem a para toda fo rm a lização - aquela que fa z com que os
caracóis tenham , em p rincíp io , um sentido de rotação, que fa z daqueles
que têm o sen tido con trário uma enorm e exceção. M u itos fen ôm en os
são dessa ordem , até e in clusive os fenôm enos qu ím icos, que se traduzem
nos ditos efeitos de polarização. Existem , pois, estruturalm ente, superfícies
cuja d issim etria é e le tiva e que com portam a im portânc ia do sen tido de
- 3 5 4 -
Lição de 30 de maio de 1962
rotação dextróg iro ou levógiro . Vocês verão, m ais tarde, a im portância do
que isso s ign ifica . Saibam apenas que o fen ôm en o , por assim dizer, de
transporte por deca lqu e do que se produziu com pondo, englobando o
anel da demanda com o anel do objeto central, essa relação sobre a superfície
do ou tro toro, a qual vocês percebem que vai nos p erm itir s im bolizar a
relação do sujeito com o grande Outro, dará duas linhas que, rela tivam ente
à estrutura do toro, são sobreponíveis. Peço-lhes perdão por fazê-los seguir
um cam in h o que pode parecer árido, é ind ispensável que eu lhes faça
sentir os seus passos para m ostrar-lhes o que podem os dedu zir dele.
90°
Q ual a razão disso? Ela se vê m u ito bem no n íve l dos po lígon os d itos
fu ndam en ta is. Esse p o lígon o, estando assim descrito , vocês supõem na
fren te o seu d eca lqu e , que se in screve assim . A linh a em questão, sobre
o po lígono pro jeta-se aqui, com o uma oblíqua, e se prolongará, do ou tro
lado, sobre o deca lque, invertida. Mas vocês devem se dar con ta de que,
fazen do bascular em 90° esse polígono fundam enta l, vocês rep rodu zirão
exatam en te, in c lu s ive a d ireção das flechas, a figu ra desse aqu i e que a
linha oblíqua estará no mesmo sentido, essa báscula representando exatamente
a com posição com p lem en ta r de um dos toros com o outro.
90°
D decalque báscula
- 3 5 5 -
A Identificação
Façam , agora, sobre o toro, não m ais essa lin h a s im ples, m as a curva
rep e tid a cu ja fu n ção lhes en s in e i ainda agora. É o m esm o? D ispenso-
lh es de h esitações, após deca lqu e e báscula; o que vocês terão, aqu i, se
s im bo liza da segu in te m aneira . O que isso quer d izer? Isso quer dizer,
em nossa transposição sign ificada, em nossa experiên cia , que a dem anda
do su jeito, enqu an to que aqu i duas vezes e la se repete , in ve rte suas
relações D e a, dem anda e ob jeto no n íve l do Outro, que a dem anda do
su jeito correspon de ao objeto a do Outro, que o ob jeto a do su jeito torna-
se a dem anda do Outro. Essa relação de inversão é essen cia lm en te a
fo rm a m ais rad ica l que podem os dar ao que se passa no n eu rótico ; o que
o n eu ró tico visa, com o objeto, é a dem anda do O utro; o que o neu rótico
dem anda, quando e le dem anda apreen der a, o inapreens ível ob jeto de
seu desejo, é a, o ob jeto do Outro.
O acen to é co lo ca do d ife ren tem en te , c on fo rm e as duas verten tes da
n eurose. Para o obsessivo, o acen to é posto sobre a dem an da do O utro,
tom ado com o ob jeto de seu desejo. Para a h is térica , o acen to é posto
sobre o ob jeto do O utro, tom ado com o suporte de sua dem anda. O que
isso im p lica , terem os que en trar aí no deta lhe , na m ed ida em que o
qu e está em causa, para nós, não é ou tra coisa, aqu i, senão o acesso à
na tu reza desse a. A na tu reza de a, nós só a ap reen derem os quando
tiverm os e lu c id ad o estru tu ra lm en te , pela m esm a via, a re lação de $
com a, ou seja, o suporte topo lóg ico que podem os dar ao fantasm a.
D igam os, para com eça r a c larear o cam inho, que a, o ob jeto do fantasm a,
a, o ob jeto do desejo , não tem im agem e que o im passe do fan tasm a do
n eu ró tico é que, em sua busca de a, o ob jeto do desejo , e le en con tra i
de a, de tal m an e ira que ela é a origem de on de parte toda a d ia lé tica
à qual, desde o in íc io de m eu ensino, os in trodu zo, a saber, que a im agem
especular, a com preen são da im agem especu lar con sis te n isto, do que
estou espantado que n in gu ém tenha sonhado em g losar a fu n ção que
lh e dou, a im agem especu lar é um erro. E la não é s im p lesm en te uma
ilusão, um logro da G estalt ca tivan te cu jo acen to a agress iv idade tem
m arcado, e la é bas icam en te um erro, na m ed ida em que o su je ito nela
se des-conhece75, se p erm item a expressão, na m ed ida em que a origem
do Eu [m o i ] e seu desconhecim en to fundam enta l acham -se aqui reunidos
na ortogra fia . E, na m ed ida em que o su jeito se engana, e le acred ita
ter d ian te d e le sua im agem . Se e le soubesse se ver, se e le soubesse, o
qu e é a s im p les verdade, que só ex is tem as re lações m ais defo rm adas,
- 3 5 6 -
Lição de 30 de maio de 1962
de a lgum a m an e ira id en tific á ve is , en tre seu lado d ire ito e seu lado
esqu erdo , e le n em sonharia em iden tifica r-se com a im agem do espelho.
Q uan do, graças aos e fe itos da bom ba atôm ica , tiverm os su jeitos com
um a ore lh a d ire ita gran de com o a de um e le fa n te e, no lugar da orelha
esquerda, um a orelha de asno, ta lvez as relações com a im agem especular
ven h am a ser m e lh or au ten ticadas! D e fa to , m u itas ou tras con d ições
m ais acessíve is e tam bém m ais in teressan tes estarão ao nosso a lcance.
Su ponh am os um ou tro an im al, o grou, com um o lh o de cada lado do
crân io. Pa rece um exagero saber com o é que podem se com por os planos
de visão dos dois o lhos, em um an im al com os o lhos assim dispostos.
N ão se vê porque aquilo abre mais dificuldades que para nós. Sim plesm ente,
para que o grou tenha um a visão de suas im agen s, é p rec iso co loca r
n e le dois espelhos, e e le não co rrerá o risco de con fu n d ir sua im agem
esqu erda com sua im agem d ire ita .
Essa função da im agem especular, enquanto se refere ao desconhecim ento
do que ch am ei, há pouco, de d issim etria m ais rad ica l, é aqu ela m esm a
que exp lica a fu n ção do Eu [moiJ no n eu ró tico . N ão é porque tem um
Eu [m o i ] m ais ou m en os to rc ido que o n eu ró tico está su b jetivam en te
na posição c rít ica que é a sua. E le está nessa posição crít ica devido a
um a im possib ilid ade estru tu ran te rad ica l de id en tific a r sua dem anda
com o ob jeto do desejo do O utro, ou de id en tific a r seu ob jeto com a
demanda do Outro, form a propriam ente enganadora do efeito do significante
sobre o su jeito, a inda qu e a saída daí seja possível, p rec isam en te desde
que, na p róxim a vez, eu lhes m ostrare i com o, em um a ou tra re ferên c ia
do corte , o su jeito, enqu an to estru turado pe lo s ign ifican te , pode tornar-
se o próprio corte a. M as é ju stam en te a isso que o fantasm a do neurótico
não acede , porqu e e le p rocura as vias disso e os seus cam inhos por
um a passagem errôn ea . N ão é que o n eu ró tico não saiba m u ito bem
distinguir, com o todo su jeito d igno desse n om e, i (a ) de a, porque eles
não têm abso lu tam en te o m esm o valor, m as o que o n eu ró tico procura,
e não sem fu n dam en to , é ch egar a a por i (a ) . A via na qual o n eu ró tico
se obstina, e isso é sensível na análise de seu fantasm a, é chegar a a
d estru in do i ( a) , ou fixan do-o. Eu disse p rim e iro destru indo, por que é
o m ais exem plar. E o m ais exem plar, é o fan tasm a do obsessivo, na
m ed ida em que e le tom a a fo rm a do fantasm a sád ico e que e le não o é.
O fantasm a sádico, com o os com entadores fenom enologistas não deixam
um in stan te de acentuar, com todo o excesso de trasbordam ento que
- 3 5 7 -
A Identificação
lhes p e rm ite fixar-se para sem pre no r id ícu lo , o fan tasm a sád ico, é
supostam ente a destru ição do O utro. E com o os fen om en o log is ta s não
são, digam os - b e m fe ito para eles! - autênticos sádicos, mas sim plesm ente
têm o acesso o m ais com u m às perspectivas da neurose, e les encon tram ,
de fato, todas as aparências para sustentar um a tal exp licação . Basta
tom ar um texto sadista [sad is te ], ou sad iano [sad ien ], para qu e isso
seja refu tado. N ão apenas o ob jeto do fantasm a sád ico não é destru ído ,
com o e le é lite ra lm en te res isten te a toda prova, com o já o su b lin h ei
m uitas vezes. O que é do fantasm a propriam en te sadiano, com preendam
que não preten do en trar n isso agora, com o p rovave lm en te p od ere i fazê-
lo na p róx im a vez. O que quero apenas pontuar, aqu i, é que o que se
poderia cham ar de im po tên c ia do fantasm a sádico no n eu ró tico repousa
in te ira m en te sobre o segu in te : é que, de fato, ex is te m esm o in tu ito
destru tivo no fan tasm a do obsessivo, m as essa p erspectiva destru tiva ,
com o acabei de analisar, tem o sen tido, não da d estru ição do outro,
ob jeto do desejo, m as da destru ição da im agem do outro, no sen tido
em que a situo para vocês, a saber, que ju s tam en te e la não é a im agem
do ou tro porque o outro, a, ob jeto do desejo, com o lh es m ostrare i da
próxim a vez, não tem im agem especular. Está aí um a proposição, adm ito,
que abusa um pouco... Eu a cre io não apenas in te iram en te dem onstrável,
mas essen cia l para com p reen d er o que se passa n aqu ilo que cham arei
de equ ívoco da função do fantasm a no neurótico . Pois, quer e le a destrua
ou não, de um a m an e ira s im bó lica ou im agin ária , essa im agem i (a ) ,
não é isso, entretanto, que o fará jam ais autenticar, por um corte subjetivo,
o ob jeto de seu desejo , pe la boa razão de que o que e le visa, seja para
destruir, seja para suportar, i (a ) , não tem relação, pela s im p les razão
da d issim etria fu n dam en ta l de i, o suporte, com a, que não a to lera .
E ao que o n eu ró tico , aliás, chega e fe t iva m en te , é à d estru ição do
desejo do O utro. E é m esm o por isso qu e e le está ir rem ed ia ve lm en te
equ ivocado na rea lização do seu. M as, o que o exp lica é isso, a saber,
que o que fa z o n eu ró tico , por assim dizer, s im bo liza r a lgum a coisa
nessa via que é a sua, visar no fantasm a a im agem especular, é exp licado
pelo que aqu i m a te r ia lizo para vocês, a d issim etria surgida na relação
da dem anda e do ob jeto no su jeito, em relação à dem an da e ao ob jeto
no n íve l do O utro, essa d iss im etria que só aparece a partir do m om en to
em que existe, p ropriam en te falando, dem anda, quer d izer já duas voltas,
se posso assim m e exprim ir, do s ign ifican te , e parece ex p r im ir uma
- 3 5 8 -
Lição de 30 de maio de 1962
d issim etria da m esm a n a tu reza daquela que é suportada pela im agem
especu lar; e las têm uma natu reza que, com o vêem , é su fic ien tem en te
ilu strada to po log icam en te , pois que, aqu i, a d issim etria que seria a
que cham aríam os de especu lar seria isso . [G ra fo a segu ir ]
E dessa con fu são por on de duas d issim etrias d iferen tes acon tecem
servir, para o su jeito, de suporte ao que é a perspectiva essen cia l do
su je ito em seu ser, a saber, o corte de a, o verdade iro ob jeto do desejo
on de se rea liza o próprio sujeito, é nessa perspectiva equ ivocada, captada
por um e lem en to estrutural que depende do e fe ito do próprio sign ificante
sobre o su jeito, que reside não apenas o segredo dos e fe itos da neurose,
a saber, a re lação dita do narcisism o, a re lação inscrita na fu n ção do
Eu [m o i ] , não é o verdadeiro suporte da neurose, mas, para que o su jeito
rea lize sua fa lsa analogia, o im portan te - a inda que já a aproxim ação,
a d escoberta desse nó in tern o seja cap ita l para nos o r ien ta r nos e fe itos
neuróticos - é que é também a única referência que nos perm ite diferenciar
r a d ic a lm e n te a e s tru tu ra do n e u r ó t ic o das e s tru tu ra s v iz in h a s ,
n o m ea d a m en te daqu ela que cham am os de p e rve rsa e daqu ela que
cham am os de p s icó t ica .
- 3 5 9 -
■ í’:. '
.
■
il
i ■
-,
■
LIÇÃO XXIII
06 de ju n h o de 1962
B* A ’H 11
A B ’C on tin u arem os ho je a e laborar a fu nção do que se pode cham ar de
s ign ifica n te do corte , ou a inda de o i to i n t e r i o r , ou ainda de laço, ou
ainda o que eu ch am ei, na ú ltim a vez, o s ig n i f ica n te polonês. G ostaria
de poder dar-lhe um nom e ainda menos significativo, para tentar aproxim ar
o que e le tem de pu ram en te s ign ifican te. Tem os avançado nesse terreno
tal com o e le se apresen ta, is to é, dentro de um a n otáve l am bigü idade,
pois que, pura linha, nada in d ica que e le se reco rte , com o a fo rm a em
que o desen h e i ali, vocês se lem bram , m as ao m esm o tem po deixa aberta
a possib ilidade desse reco rte . R esum indo, esse s ign ifican te não preju lga
em nada a respe ito do espaço on de e le se situa. En tretan to, para de le
fa ze r a lgum a coisa, nós co locam os que é em torno desse s ign ifican te
do corte que se organ iza o que cham am os de su perfíc ie , no sen tido em
que nós a en ten dem os aqui. Da ú ltim a vez, lem brava a vocês - pois
não é a p rim e ira v e z que eu o apresentava - com o se pode con stru ir a
su p erfíc ie do toro ao redor, e ao redor som en te, de um corte , de um
corte ordenado, m an ipu lado dessa m aneira qu adrilá tera que a fórm u la
expressa pela sucessão de um A, de um B, depo is de um A 'e de B’ ,
nossas testem unhas, respectivam en te, posto que podem ser referidos,
ligados aos p receden tes, em uma disposição que podem os qualificar, em
geral, por dois term os: o r ien ta da por um lado, cruzada por ou tro lado.
- 361-
ç .
cEu lhes m ostrei a relação, a relação por assim d izer exem plar à prim eira
vista, m eta fó r ica , e cu ja questão ju s tam en te é saber se essa m etá fora
ultrapassa, por assim dizer, o puro plano da m etáfora, a relação m etafórica,
digo, que pode tom ar da relação do su jeito com o O utro, com a con d ição
de que, exp loran do a estru tura do toro, nós p ercebem os que podem os
c o lo c a r d o is to ro s , e n c a d e a d o s um ao ou tro , em um m o d o de
co rresp on dên cia tal que, em tal c írcu lo p r iv ileg iad o sobre um dos dois,
qu e fizem o s corresponder, por razões analógicas, à fu n ção da dem anda,
a saber, essa espéc ie de c írcu lo g ira tório na fo rm a fam ilia r da bobina
qu e nos parece particu la rm en te p rop íc ia para s im bo lizar a repetição
da dem an da, na m ed id a em que ela arrasta essa espéc ie de necessidade
de se enlaçar, se é exclu ído que ela se recorta, após num erosas repetições,
tão m u ltip licadas quanto podem os supô-la ad l ib i tu m , por te r fe ito esse
en laçam en to , por ter desen hado a volta , o con to rn o de um ou tro vazio
que não o que e la cerca, aqu ele que d is tingu im os p rim e iro , d e fin in d o -
lh e esse lugar do nada, cu jo c ircu ito d esen hado por e le m esm o nos
serve para sim bolizar, sob a fo rm a do ou tro c írcu lo topo log icam en te
d e fin ido na estrutura do toro, o objeto do desejo. Para os que não estavam
ali - eu sei que há alguns, nessa assem bléia - ilu stro o que acabo de
|( ' í
A Identificação
IO , k '
' (
cjc, ■
d izer por essa form a m uito simples, repetin do que esse laço da bobinagem
da dem anda, que se en con tra em torno do vazio con stitu tivo do toro,
a con tece desen har o que nos serve para s im bo lizar o c írcu lo do ob jeto
do desejo , a saber, todos os círcu los que fa zem a vo lta do buraco cen tra l
do anel. I lá , pois, duas espéc ies de c írcu los p r iv ileg iad os sobre um
toro: aqu eles que se desenham em torno do buraco cen tra l, e aqu eles
qu e o atravessam . U m c írcu lo pode acu m u lar as duas p rop riedades. É
exa tam en te o que a con tece com esse c írcu lo assim desen hado , eu o
faço em pontilhado, quando e le passa para o outro lado. Sobre a superfíc ie
- 362 -(
Lição de 6 de junho de 1962
qu adrilá tera do po lígon o fundam en ta l que
serve para m ostrar, de m a n e ira c la ra e
unívoca, a estrutura do toro, sim bolizo aqui,
para em pregar as m esm as cores, daqui até
ali, um c írcu lo d ito c í r c u lo da demanda,
daqu i até ali, um c írcu lo d ito c í r c u lo a,
s im bo lizan do o ob jeto do desejo . E é esse
c írcu lo aqu i, que vocês v êem na p rim eira
figu ra, aqu i em am arelo , rep resen tando o
c írcu lo ob líqu o que poderia , a rigor, nos
servir para simbolizar, com o corte do sujeito,
o p ró p r io d e s e jo . O v a lo r e x p re s s iv o ,
s im b ó lic o , do to ro , no m o m en to , é
p rec isam en te nos fa ze r ve r a d ificu ldade,
na m ed id a em que se trata da su perfíc ie
do toro e não de outra, para ordenar esse c írcu lo aqui, am arelo, do desejo,
com o c írcu lo , azul, do ob jeto do desejo. A relação deles é tanto m en os
un ívoca quanto o ob jeto não está aqui fixado, determ inado por nada
além do lugar de um nada que, por assim dizer, prefigura seu lugar eventual,
mas de form a algum a perm ite situá-lo.
Tal é o va lor exem pla r do toro.
Vocês ou viram , na ú ltim a vez, que
esse va lo r exem p la r se com p leta com
o seguinte, que, supondo-o encadeado,
con ca ten ado com um ou tro toro que
sim bo liza r ia o O u tro , vem os que este,
eu lhes disse, se dem onstra - eu deixei
a vocês o cu idado de en con tra r vocês
m esm os essa dem onstração , para não
atrasá-los - vem os segu ram en te que,
d eca lcan do assim o c írcu lo do desejo
pro jetado sobre o p r im e iro toro, sobre
o toro que se encaixa nele, simbolizando
o lu gar do O u tro , en con tram o s um
c írcu lo o r ien ta do da m esm a m aneira .
Lem brem -se, vocês vêem representado
d iante dessa figu ra , que fa re i de novo,
D
/ / d a
- 363 -
A Identificação
se a coisa não lhes p a rece r cansativa dem ais, o d eca lqu e, que é uma
im agem s im étr ica . Terem os, então, um a lin h a ob líqua, or ien tada do
sul ao n orte , qu e poderem os d izer in vertida , especu lar, p rop riam en te
falando. Mas a báscula em 90°, corresponden te ao encaixam en to em 90°
dos dois toros, restitu irá a m esm a obliqü idade. Em outras palavras, após
haver tom ado efetivam en te - são as experiências m ais fáce is de realizar,
que têm todo o valor de uma experiên cia - esses dois toros, e de ter fe ito
e fetivam en te, pelo m étodo de rotação de um toro no in terior do outro,
com o lhes designei na última vez, esse decalque, tendo levantado, se podemos
dizer, o traçado desses dois círculos, arbitrariam ente desenhados sobre um
e determ inados desde então sobre o outro, vocês poderão ver, com parando-
os em seguida, que eles são exatam en te, no c írcu lo que os secciona,
superponíveis um ao outro. No que, portanto, essa imagem mostra-se apropriada
para represen tar a fórm u la que o desejo do su je i lo é o desejo do O u tro .
' Da
E ntre tan to , eu lhes disse, se supom os, não esses c írcu los s im p les
desen hados nesta p ropriedade, nessa d e fin içã o topo lóg ica particu lar,
de ao m esm o tem po c ircu n dar o buraco e atravessá-lo, m as de fa zê -lo
fa ze r duas vezes a travessia do buraco, e um a vez apenas seu con torn o ,
- 3 6 4 -
Lição de 6 de junho de 1962
qu er d izer, sobre o po lígon o fu ndam enta l, de se apresen tar assim, esses
dois pon tos aqu i, x, x ’ sendo equ iva len tes, tem os, então, algo que, sobre
o decalque, ao n ível do Outro, apresenta-se segundo a fórm ula seguinte.Se
vocês qu iserem , d igam os que a rea lização por duas vezes da volta que
corresp on de à fu n ção do ob jeto e à tran s fe rên cia , sobre o d eca lqu e
sobre o ou tro toro , em duas vezes, da dem an da segundo fórm u la de
e q u iva lên c ia que é, para nós, nesta ocasião p rec iosa , é s im bo lizar isto
que, em um a certa fo rm a de estru tura subjetiva, a dem anda do su jeito
con sis te no ob jeto do O utro, o ob jeto do su je ito con siste na dem anda do
O u tro . R eco rte , en tão, a superposição dos dois term os, após a báscula,
não é m ais possível. Após a báscula de 90°, o corte é este aqui, o qual
não se superpõe à forma precedente. Reconhecem os aí uma correspondência
que já nos é fam ilia r, visto que o que podem os exp r im ir da relação do
n eu ró tico com o O utro, na m ed ida em que e le con d ic iona , ao ú ltim o
te rm o , sua e s tru tu ra , é p re c is a m en te essa e q u iv a lê n c ia c ru zad a
da dem anda do sujeito ao objeto do Outro, do objeto do sujeito à demanda
do O utro. Sen tim os, ali, um a espéc ie de im passe, ou pelo m en os de
- 3 6 5 -
A Identificação
am bigü idade, a rea lização da id en tid ad e dos dois desejos. Esse aqu i
está tão abreviado quanto possível, com o fórm u la , e ce rta m en te supõe
já um a fa m ilia rid ad e adqu irida com essas re ferên c ias , as quais supõem
todo nosso d iscurso anterior.
A questão, portanto, perm anecendo aberta, sendo aquela que abordaremos
hoje de um a estru tura que nos perm ita fo rm a liza r de m odo exem plar,
r ico de recursos, de sugestões, que nos dá um suporte daqu ilo para o
qual aponta nossa pesquisa, p recisam en te, a saber, a função do fantasm a;
é para esse fim qu e pode nos serv ir a estru tura particu la r d ita do cross-
cap ou do p la n o p ro je t iv o , v isto que já lh es d e i tam bém um a in d icação
su fic ien te para que esse ob jeto lh es seja, senão fam iliar, ao m en os que
vocês já tenham tentado aprofundar o que ele representa com o propriedades
exem plares. Eu m e descu lpo , então, por entrar, a partir de agora, em
um a exp licação que, por um instan te, vai fic a r m u ito es tre ita m en te
ligada a esse objeto de um a geom etria particular, d ita topológica, geom etria
não m étrica , m as topo lóg ica , da qual já os f iz notar, tanto quanto pude
na passagem , qual id é ia vocês devem fa zer dela, c o m o risco de qu e ,
após terem se dado o trabalho de m e seguir, nisso q u e vou exp licar-lhes
açora, em sesMida vocês serão recom pensados p e lo q u e nos p e rm it ir á
Lição de 6 de junho de 1962
suportar, com o fórm u la con cern en te à organ ização subjetiva, que é a
que nos interessa, pelo que nos perm itirá exem p lifica r com o sendo a
estru tura au tên tica do desejo naqu ilo que se poderia cham ar de sua
função cen tra l organ izante.
D e certo , não d e ixo de fica r relu tan te, agora, m ais um a vez, de levá-
los por te rren os que podem não deixar de fa tigá-los . E is porque vou
re fe r ir-m e, por um instante, a dois term os que se acham m uito p róxim os
em m inha experiência , e que vão m e dar a oportunidade, antes a prim eira
re fe rên c ia , de an u nciar-lhes a pub licação im in en te da tradução fe ita
por a lgu ém em in en te , que ho je nos dá a honra de sua visita , M . de
W aelh en s. M . de W aelh ens acaba de fa ze r a tradução, que m u ito nos
deve espantar que não tenh a sido rea lizada antes, de O Ser e o Tempo,
Se in un d Z e i t , ao m en os leva r à con clu são a p rim e ira parte do vo lu m e
pub licado, que vocês sabem que não é senão a p rim e ira parte de um
pro jeto, cu ja segunda parte jam a is fo i pub licada. Então, nessa p rim e ira
parte há duas seções e a p rim eira seção já está traduzida por M . de
W aelh en s, que m e deu a gran de honra, o favor de com u n icá -la a m im ,
o que m e p erm itiu tom ar con h ec im en to dessa parte, apenas a m etade
ainda e, d evo dizer, com in fin ito prazer, um prazer que va i m e p erm itir
o fe re c e r -m e a um segundo, é d izer en fim , n este lugar, o que trago no
coração há m u ito tem po e que sem pre e v ite i p ro fessar em púb lico,
porque, na verdade, dada a reputação dessa obra, que não acred ito que
m u itos aqu i a tenham lido, isso tom aria o ar de um a p rovocação. É o
segu in te : é que há poucos textos m ais c laros, en fim , de um a c la reza e
s im p lic idade concretas e diretas, não sei que qu a lificações devo in ven tar
para acrescen ta r um a d im ensão su p lem en tar à ev idên c ia , do que os
textos de H e id egger. N ão é porque o que o S en h or Sartre fe z d e les seja
e fe t iva m en te m u ito d ifíc il de ler que isso re tira nada do fa to de que
esse tex to de H e idegger, eu não d igo todos os ou tros, é um texto que
tra z em si essa e s p é c ie de su p erab u n d ân c ia de c la re za qu e to rn a
v e rd a d e ira m e n te a cess ív e l, sem n en h u m a d ificu ld a d e , a q u a lq u e r
in te lig ên c ia não in tox icada por um ensino filo só fic o p rév io . Posso d izê-
lo a vocês agora, porque logo vocês terão oportu n idade de se dar con ta,
graças à tradução de M . de W aelhens, vocês verão até que pon to é
assim . A segunda observação que vocês poderão constatar ao m esm o
tem po, é qu e foram veicu ladas asserções, em fo lh etin s b izarros, por
parte de um a fa ladeira de profissão, que m eu ensino é neo-heideggeriano.
- 3 6 7 -
A Identificação
Isso fo i d ito com m ás in ten ções . A pessoa p rovave lm en te co lo co u “n e o ”
por um a certa p ru dên cia , com o e la não sabia n em o que qu eria d izer
h e id eggerian o , n em tam pouco o que qu eria d ize r m eu ensino , aqu ilo a
protegia de ce rto n ú m ero de refu tações, que esse en s in o m eu nada
tem , na verdade, de neo, n em de h e id eggerian o , apesar da excessiva
reverên c ia que tenh o pe lo ensino de H e idegger.
A terce ira observação está ligada a uma segunda re ferên c ia , a saber,
que algum a coisa vai aparecer, vocês se regalarão, em breve, que é ao
m enos tão im portan te - en fim , a im portância , cm dom ín ios d iferen tes,
não se m ede com um cen tím etro - o que é m uito im portan te tam bém ,
digamos, é o vo lu m e - m e d isseram que ainda não está em livrarias - de
Claude Lévi-Strauss, cham ado O Pensamento Selvagem. Vocês estão dizendo
que fo i publicado? Espero que já tenham com eçado a se d istra ir!
Graças aos cu idados que m e im põe nosso sem inário , não pude avançar
m uito, m as eu li as páginas inaugu rais m agistrais, por on de C. L év i-
Strauss entra na interpretação do que e le cham a de pensam ento selvagem ,
que é p rec iso en ten d e r com o, penso, sua en trev ista no Le F ig a ro já
lhes ensinou, não com o o pensam ento dos selvagens, mas com o, podem os
dizer, o estado se lvagem do pensam en to , o pen sam en to , d igam os, o
pensam en to en qu an to e le fu n c ion a bem , e fica zm en te , com todos as
caracterís ticas do pen sam en to , antes de tom ar a form a do pen sam en to
cien tífico , do pensam ento c ien tífico m oderno, com seu estatuto. E C laude
Lévi-S trau ss nos m ostra que é m esm o im poss íve l co lo ca r a li um corte
tão rad ica l, pois o p en sam en to que a inda não con qu istou seu estatu to
c ien tífico já está, de fato, apropriado a carregar certos e fe itos c ien tíficos .
Tal é, pelo menos, seu intuito aparente em seu início, e toma, singularmente,
com o exem plo, para ilustrar o que e le quer d izer do pensam ento selvagem ,
algo onde, sem dúvida, e le en ten de reu n ir isso de com um que haveria
com o pensam ento, d igam os tal com o e le o sublinha, tal com o e le trouxe
fru tos fu ndam enta is, a partir do p róp rio m om en to em que não se pode
absolu tam en te qu a lifica r de a-h istórico , d ian te do que e le a firm ava , o
pensam en to a partir da era n eo lít ica que ainda dá, d iz e le , todos os
seus fu n dam en tos à nossa posição no m undo. Para ilu strá-lo , d igam os
assim , a inda fu n c ion an do ao nosso a lcan ce , e le não en con tra ou tra
coisa e nada de m elh or senão exem p lificá -lo sob um a form a, sem dúvida,
não única, m as p riv ileg iada por sua dem onstração, sob a fo rm a do que
ele cham a de bricolagem . Essa passagem tem todo o brilho que conhecem os,
- 3 6 8 -
Lição de 6 de junho de 1962
a o r ig in a lid ad e p róp ria dessa espéc ie de abrupto, de n ov idade, de coisa
que bascu la e re v e r te as p erspectivas receb idas de form a banal, e é um
trech o que ce rta m en te é m u ito sugestivo. M as e le ju stam en te pareceu-
m e particu la rm en te sugestivo , após a re le itu ra que eu acabava de fazer,
graças a M . de W aelh en s, dos tem as he id eggerian os , p rec isam en te na
m ed id a em que e le tom a com o exem plo , em sua busca do estatuto, se
podem os dizer, do con hecim ento, na m edida em que e le pode estabelecer-
se nu m a abordagem que, para estabelecê-la , p re ten de cam inhar a partir
da in terrogação con ce rn en te ao que ele cham a o s er -a í [1’ê tre - là ] , quer
d izer, a fo rm a m ais ve lada , ao m esm o tem po, e a m ais im ed ia ta de um
certo tipo de en te [d ’é ta n t ] , o fa to de ser que é aqu ele pa rticu la r ao ser
hu m ano. N ão se pode d e ixa r de fic a r surpreso, a inda que a observação
revo lta r ia p ro vave lm en te tan to um quanto ou tro desses autores, pela
surpreendente identidade do terreno sobre o qual um e outro se aproximam.
Q u ero d ize r que o que H e id egg er encon tra p rim eiro , nessa busca, é
um a certa re lação do ser-a í com um sendo que é d e fin ido com o u tens í l io ,
com o fe rram en ta , com o essa coisa qua lquer que se tem ao a lcan ce da
m ão, Vorhanden , para em pregar o term o de que e le se serve, com o
Z u h a n d en h e it , para o que está à m ão. Tal é a p rim e ira form a de laço,
não com o m undo, m as com o ente, que H e id egg er d e lin e ia para nós. E
é som en te a partir daí, a saber, por assim dizer, d en tro das im p licações ,
da poss ib ilidade de um a sem elh an te relação, qu e e le vai, d iz e le , dar
seu estatu to p róp rio ao que fa z o p rim eiro gran de p ivô de sua análise,
a fu nção do ser em sua relação com o tem po, a saber, a W e lt l ich k e i t
que M . de W ea lh ens traduziu por a m u n d a n id a d e [m on d an é ité ] , a saber,
a con stitu ição do m u n do de certo m odo p rév ia , p rév ia nesse n ív e l do
ser-a í que não se destacou a inda no in te r io r do en te , essas espéc ies de
en te que podem os con sid era r com o pura e s im p lesm en te substitu ídas
por e les m esm os. O m undo é outra coisa que o con junto, o englobam ento
de todos esses seres que ex istem , que subsistem por si m esm os, com
que tem os a v e r n o n ív e l dessa con cepção do m u ndo que nos parece
tão im ed ia tam en te natura l, e por isso m esm o, porqu e é aqu ela que nós
chamamos de natureza. A anterioridade da constituição dessa mundanidade,
em re lação ao m om en to em qu e podem os con siderá -la com o natureza,
tal é o in terva lo que, p or sua análise, H e id egg er preserva.
Essa relação prim itiva de utensilidade, prefigurando o Umwelt anterior
ainda ao seu redor que só se constitu i, em relação a ele, secundariam ente,
- 3 6 9 -
A Identificação
está aí o p ro ced im en to de H e id egg er e é exa tam en te o m esm o - não
creio d izer aí nada que possa ser tomado com o uma crítica que, certam ente,
a fina l, qu an to con h eço do pensam en to e dos d izeres de C laude Lév i-
Strauss, nos pareceria m esm o o p roced im en to m ais oposto ao seu, tendo
em vista que o que e le dá, com o estatuto, à pesqu isa de e tn ogra fia , só
se p roduzir ia num a posição de aversão em relação à pesquisa m etafísica ,
ou até u ltra -m eta fís ica de H e id egg er - no en tan to , é bem a m esm a que
en con tram os nesse p rim e iro passo pelo qual C laude Lév i-S trau ss tenta
nos in tro d u zir ao pensam en to se lvagem , sob a fo rm a dessa b rico lagem ,
que não é ou tra coisa senão a m esm a análise, s im p lesm en te em term os
d iferen tes , um a ilu m in ação apenas m od ificada , um a perspectiva , sem
dúvida, d istin ta dessa m esm a relação à u ten s ilid ade com o sendo o que
um e ou tro con sid eram com o anterior, com o p rim ord ia l em re la ção a
essa esp éc ie de acesso estru turado que é o nosso, em re la ção ao cam po
da in ves tigação c ien tífic a , na m ed ida em que e le p e rm ite d is tingu i-lo
com o fu ndado sobre um a articu lação da ob jetiv idade que seja de algum a
m aneira autônom a, in depen den tem en te do que é, p ropriam ente falando,
nossa ex is tênc ia , e que não guardam os m ais com ele , senão essa relação
dita su je ito-ob jeto , que é o pon to on de se resum e, a tu a lm en te , tudo o
que podem os articu lar da ep istem ologia .
M uito bem , digamos, para lixá-lo uma vez, aquilo que nossa em preitada,
na m ed ida em que está fundada sobre a ex p e r iên c ia an a lítica , tem de
d istin to em relação tanto a um a quanto à ou tra dessas in vestigações ,
cujo caráter paralelo acabo de mostrar-lhes: é que nós tam bém procuramos
aqui esse estatuto, por assim dizer, an terior ao acesso clássico do estatuto
do ob jeto, in te ira m en te con cen trado na oposição do su je ito-ob jeto . E
nós o procuram os em que? N esse algo que, qua lquer que seja seu caráter
eviden te de aproximação, de atração no pensam ento, tanto no de H eidegger
quanto no de C laude Lévi-S trauss, é, no entanto, d istin to d e le , tendo
em vista que n em um , n em outro n o m e ia com o tal esse ob jeto com o
ob jeto do desejo. O estatu to p rim ord ia l do ob jeto para, d igam os, em
todo caso, um p en sam en to analítico , não pode ser e não poderia ser
ou tra co isa senão o ob jeto do desejo . Todas as con fu sões em que até
agora a teoria an a lítica se em baraçou são con seqü ên cias do segu in te :
de uma tentativa, de m ais de um a tentativa, de todos os m odelos possíveis
de ten ta tiva para redu z ir o que se im põe a nós, a saber, essa busca do
estatu to do ob jeto do desejo , para red u z i- lo a re fe rên c ia s já con h ec idas,
- 3 7 0 -
Lição de 6 de junho de 1962
das quais a m ais s im p les e a m ais com um é aqu ela do estatu to do ob jeto
da ciência , enqu an to um a ep istem ologia filoso fan te a organ iza den tro
da oposição ú ltim a e rad ica l su jeito-objeto, enquanto uma in terp retação
m ais ou m en os in fle c tid a pelas nuanças da pesquisa fen om en o lóg ica
pode, a rigor, fa lar disso com o do objeto do desejo. Esse estatuto do ob jeto
do desejo com o tal perm an ece sem pre elid ido , em todas as suas form as
até aqui articu ladas da teoria analítica, e o que nós procuram os, aqui, é
p rec isam en te dar-lhe seu estatuto próprio. E nesta linh a que se situa o
propósito que persigo d iante de vocês, neste instante.
E is aqu i, portan to, as figu ras nas quais hoje vou ten tar fa ze r- lh es
observar o que nos interessa, nessa estrutura de superfície cujas propriedades
p riv ileg iadas são fe itas para nos reter com o suporte estru tu ran te dessa
relação do su je ito com o ob jeto do desejo, na m ed id a em que e le se
situa com o suportando tudo o que podem os articular, em qu a lqu er n íve l
que seja da experiên cia analítica, em outras palavras, com o essa estrutura
que cham am os de fantasm a fundam ental. Para os que não estavam no
sem inário anterior, recordo essa forma, aqui desenhada em branco, é aquela
que cham am os de cross-cap ou, para ser m ais preciso, visto que, eu lhes
disse, resta um a certa am bigüidade sobre o uso desse term o cross-cap, o
p lano pro je t ivo . Com o seu desenho, aqui, em g iz branco não basta, para
aqueles que ainda não o apreenderam , para fazer-lhes representar o que
é isso, vou tentar fa zer com que o im aginem descrevendo-o com o se essa
superfíc ie estivesse aí constitu ída numa bexiga. Para ser ainda m ais claro,
vou partir da base. Suponham que vocês tenham dois arcos, com o aqueles
de uma arm adilha para lobo. E isso que vai nos servir para represen tar o
corte. Se nós orientamos os dois círculos da armadilha para lobos no m esm o
- 371 -
A Identificação
sen tido , isso s ign ifica que vam os s im p lesm en te to rn ar a fech á -los um
sobre o ou tro . Se vocês têm [um corte que é fe ito assim e que vocês
esticam , de um ao outro] um a bexiga, se vocês p rec isam en te soprarem
dentro e se tornarem a fech ar a arm adilha para lobos, está ao a lcance
das im agin ações m ais e lem entares, ver que vocês vão fa ze r um a esfera.
Se o sopro não lhes parece su fic ien te , vocês en ch em de água até que
obtenham essa form a aqui, fechem de novo os dois semicírculos da armadilha
para lobos, e vocês têm uma esfera m eio cheia , ou m eio vazia.
Já lh e s e x p l iq u e i c o m o , em v e z
daquilo, pode-se fazer um toro. U m toro
é o segu in te: vocês põem os dois cantos
desse len ço ju n tos no ar, assim, e os
outros dois por baixo assim, e isso basta
para fa zer um toro. O essencia l do toro
está aí, um a ve z que vocês têm aqu i o
bu raco cen tra l, e aqu i o vaz io c ircu la r
em to rn o do qua l g ira o c ircu ito da
d em a n d a . E isso q u e o p o líg o n o
fu n dam en ta l do to ro já ilustrou . U m toro não é abso lu tam en te com o
um a esfera . N a tu ra lm en te , um cross-cap não é abso lu tam en te com o
uma esfera, tampouco. O cross-cap, vocês o têm aqui. Vocês devem im aginá-
lo com o sendo, por essa m etade in ferior, rea lizado com o a m etade daquilo
v j
- 3 7 2 -
Lição de 6 de junho de 1962
qu e f iz e ra m há p ou co com a b ex iga , qu an do a
encheram de água ou com seu sopro. N a parte superior,
o que aqui é anterior virá atravessar o que é contínuo,
o que é posterior. As duas faces se cru zam um a
com a ou tra , dando a aparênc ia de se p en etrarem ,
uma vez que as convenções concernentes às superfícies
são livres , pois não esqu eçam que as con sideram os
apenas com o su perfíc ies , que podem os d izer que,
sem dúvida, as p rop riedades do espaço, tal com o o
im a g in a m o s , nos fo r ç a m , na rep re s e n ta ç ã o , a
rep resen tá -los com o se penetrando, mas basta que
não levem os em con ta essa linha de in tersecção ,
em algum dos m om entos do nosso tratam ento dessa
su p erfíc ie , para que tudo se passe com o se nós a
desconsiderássem os. Isso não é um a aresta, não
passa de uma coisa que somos forçados a representar,
porque qu erem os representar, aqu i, essa su p erfíc ie
com o um a lin h a de pen etração . M as essa linha,
por assim dizer, na con stitu ição da su perfíc ie , não
tem nen h u m priv ilég io .
Vocês m e d irão: “ O que s ign ifica o que o senhor está d izen d o ? ” .
- X , [na sala]: Será que isso qu er d izer que o sen h or adm ite , com a
es té tica tran scen den ta l de Kant, a con stitu ição fu n dam en ta l do espaço
em três d im en sões, já que o senhor nos d iz que, para rep resen tar aqui
as coisas, o senhor é fo rçado a subm eter-se a a lgum a coisa que, na
rep resen tação , é de certo m odo in côm oda?
- L a c a n : E claro, de certa m aneira , sim. Todos aqu eles que articu lam
o que con ce rn e a topo log ia das su perfíc ies com o tais partem - é o bê-
á-bá da questão - dessa distinção do que se pode cham ar de propriedades
in trín secas da su p erfíc ie e de p rop riedades extrínsecas. E les nos dirão
que tudo o que vão articular, determinar, no que concerne ao funcionam ento
das su perfíc ies assim defin idas, deve d istingu ir-se do que se passa, com o
o d izem lite ra lm en te , quando se m ergu lh ar a d ita su p erfíc ie no espaço,
n om ead am en te , no p resen te caso, de três d im en sões. É essa distinção
fu n d am en ta l que é tam bém aqu ela que v ivo lem brando, para d izer-
lhes que não d evem os con sid era r o anel, o toro, com o um sólido e que,
quando fa lo do vazio que é cen tra l, do con torn o do anel, assim com o do
- 3 7 3 -
A Identificação
buraco que lh e é, por assim d izer, axia l, são term os qu e con vém tom ar
no in te r io r disso, que não tem os que fa zê -los funcionar, na m ed ida em
que visam os pura e s im p lesm en te à superfíc ie . A inda assim, é na m ed ida
em que, com o d izem os topo log istas, nós m ergu lham os em um espaço
que podem os d e ixar no estado de x, que acon tece o que com o n ú m ero
de d im en sões que o estru tu ram ? N ão som os forçados a p re ju lga r que
podem os va lo r iza r essa ou aqu ela das p rop riedades in trín secas de que
se trata nu m a su p erfíc ie . E a p rova é ju s tam en te o segu in te : é que o
toro, nós não te rem os d ificu ld a d e a lgum a em rep resen tá -lo no espaço
de três d im en sões, que nos é in tu itivam en te fam iliar, en qu an to que,
para essa aqu i nós terem os, m esm o assim , um certo so fr im en to , pois
terem os aí que acrescen ta r a pequ en a nota, com todo tipo de reservas,
a respe ito do que terem os que ler, quando ten tarm os represen tar, nesse
espaço, essa su p erfíc ie . É o que nos p e rm itirá co lo ca r ju s ta m en te a
questão da estru tura de um espaço , enqu an to e le adm ita ou não adm ita
nossas su perfíc ies , tais com o as con stitu ím os p rev iam en te .
Feitas essas reservas, rogo-lh es agora que prossigam e con s id erem o
que tenh o a lhes ensinar sobre essa su perfíc ie , p rec isam en te na m ed ida
em que é a p ropós ito de sua rep resen tação no espaço que vou ten tar
avaliar para vocês alguns de seus caracteres, que nem por isso são m enos
in trín secos . Pois, se desde já e lim in e i o va lo r que podem os dar a essa
linha, lin h a de pen etração , cu jo deta lh e vocês vêem aqu i ilu strado, é
assim que podem os rep resen tá -la , vocês vêem que apenas
pela m an e ira que já a d esen h e i no quadro, ex is te aqu i
a lgum a coisa que nos co lo ca um a questão. O va lo r desse
pon to que está aqu i é um va lo r que podem os, por assim
dizer, apagar, com o o va lo r desta linh a? Seria esse ponto,
e le tam bém , algo que se p ren de apenas à n ecessidade da
rep resen tação no espaço de três d im en sões? Eu lh es d igo logo, para
esclarecer um pouco antecipadam ente m inha proposta: esse ponto, quanto
à sua função, não é elim inável, ao m enos em um certo nível da especulação
sobre a su p erfíc ie , um n íve l que não é d e fin id o som en te pela ex is tên c ia
do espaço de três d im en sões.
Com e fe ito , o que sign ifica rad ica lm en te a construção dessa superfíc ie
dita do cross-cap, en qu an to que e la se organ iza a partir do co rte que já
rep resen te i, há pouco, com o um a arm adilh a para lobos que torna a se
fech ar? N ada m ais s im p les do que ve r que é p reciso que essa arm adilh a
- V 7 4 -
Lição de 6 de junho de 1962
seja b ipartida , quando se trata da esfera ,
um a ve z que é bem p rec iso que e la se
dobre de novo em algum lugar, que suas
duas m etades estejam orientadas no m esm o
sen tido : o t e rm in u s a quo se d istingu irá,
portanto, do te rm inu s ad quem, na m ed ida
em que e les devem se recobrir em todo o
seu com prim ento. Podemos dizer que, aqui,
tem os a m an eira na qual funcionam , um a
em re la çã o à outra , as duas m etades da
borda que se trata de juntar, para constitu ir
um p la n o p ro je t iv o . A q u i, e la s e s tã o
orien tadas em sen tido con trá rio , o que
sign ifica que um ponto situado nesse lugar,
pon to a, por exem plo , corresponderá, será
id ên tico , equ iva len te , a um ponto situado
A ’
B
F ig . 1
nesse lugar a ’, d iam etra lm en te oposto, qu e um ou tro pon to b, situado
aqui, por exem plo, se referirá a um outro ponto b ’, situado diam etralm ente.
Será qu e isso não nos in c ita a pensar que, sendo dada essa relação
an tipód ica dos pontos, sobre esse circu ito orien tado de m aneira contínua
sem pre no m esm o sentido, nenhum ponto terá p riv ilég io e que, qualquer
que seja nossa d ificu lda de de in tu ir o que está em questão, é p rec iso
s im p lesm en te pensar essa relação c ircu la r an tipód ica com o um a espécie
de en trec ru zam en to irrad iado , por assim dizer, con cen tra n d o a troca
de um pon to ao ponto oposto da borda ún ica desse furo, e concen trando-
o, p or assim dizer, em torno de um vasto en trec ru zam en to cen tra l que
escapa ao nosso pensam ento e que não nos perm ite, portanto, de nenhum a
m an eira , dar-lhe rep resen tação satis fatória . E n tretan to , o qu e ju s tifica
que as co isas sejam assim represen tadas, é que ex is te a lgo que con vém
não esqu ecer: é que não se trata de figu ras m étricas, a saber, que não
é a d istância de a a A, e de a ’ a A ’ que regu la a corresp on dên cia pon to
a pon to que nos p e rm ite con stru ir a su p erfíc ie , organ izan do assim o
corte, m as é un icam ente a posição relativa dos pontos, em outras palavras,
em um con ju n to de três pontos que se situam sobre a m etade - adm itam
o uso do termo metade, de que m e sirvo neste mom ento, que já é representado
pela re fe rên c ia ana lóg ica que fiz, aqu i, das duas m etades da borda - é
na m ed ida em que, sobre essa borda, sobre esta linha, assim com o sobre
A Identificação
qu a lqu er linha, um pon to pode ser d e fin id o com o estando en tre dois
outros, que um ponto c, por exem plo, vai poder encontrar seu correspondente
no pon to c’ do ou tro lado, (figura 1) .Mas, se não tem os pon to d e or igem , pon to a p x tjv - tt )v a p x r iv o t i
PCOu XaÀü) ufttv [São João V I I I - 25 ], com o se d iz no E vange lho , o que
sé prestou a tais d ificu ldades de tradução que um pensador de F ranche-
C om té acred itou dever d ize r-m e : “ E bem ali
que recon h ecem os o senhorl A ún ica passagem
do Evangelho sobre a qual n inguém pôde chegar
a um acordo , é e la que o sen h or tom ou com o
ep íg ra fe para um a parte de seu re la tó r io de
R om a” , ap^nv, portanto o com eço, se não existe,
em algum lugar, esses pon tos de com eço , é
im possível defin ir um ponto com o estando entre
dois outros, pois c e c ' estão igu a lm en te en tre
esses dois ou tros, a e B, se não ex is te A A ’ para
m arcar, de m odo u n ívoco , o que se passa em
cada segm en to . É, pois, por ou tras razões que
a possibilidade de represen tá-los no espaço, que
é preciso que nós definam os um ponto de origem
n essa tro ca e n tre c ru z a d a , qu e c o n s t itu i a
su perfíc ie do p lano p ro je tivo , en tre um a borda
que é preciso, apesar dela girar sem pre no m esm o
sentido, que a d iv idam os em dois. Isso pode
parecer en fadonho, m as vocês verão que aqu ilo
vai ganhar um interesse cada vez maior. Anuncio-
lhes, agora, o que pretendo dizer, pretendo d izer
que esse ponto a p x fiv , origem , tem uma estrutura rea lm en te privilegiada,
que é ela, sua presença, que assegura ao laço in terior de nosso sign ificante
polonês um estatu to que é, de fato , espec ia l. C om e fe ito , para não fazê-
los esperar mais, aplico esse significante, dito o ito in terior,
sobre a su p erfíc ie do cross-cap. Verem os, depois, o que
isso quer dizer. O bservem , assim m esm o, que ap licá-lo
dessa m aneira s ign ifica que essa linh a que desenha
nosso s ign ifican te o ito in te r io r vem fa ze r aqu i duas
vezes a volta desse pon to p riv ileg iado . A li, façam um
esforço de im aginação. Quero m uito ilustrá-lo para vocês
- 3 7 6 -
Lição de 6 de junho de 1962
através de a lgum a coisa. Vejam em quê
aqu ilo p od e ajudar. Vocês têm aqu i, se
qu iserem , a in ch ação da m etad e in fe r io r
(a ) , a in ch ação da p inça esqu erda da pata
da lagosta (b ), a in ch ação da p inça d ireita
(c ) . Aqu i, aqu ela en tra de novo na outra,
passa para o ou tro lado (d ). O que isso
s ign ifica? Isso s ign ifica que vocês têm , em
sum a, um plano que se en ro la assim sobre
e le , depois que num m om en to se atravessa
a si m esm o, de m odo que isso faz com o
duas espéc ies de abas ou de asas bambas
aqu i superpostas, que se acham , em suma,
pe lo corte , iso ladas da in ch ação in ferior,
e no nível superior essas duas asas se cruzam
uma com a outra. N ão é m uito inconcebível.
Se vocês estivessem interessados nesse objeto
a tanto tem po quanto eu, eviden tem ente isso
lhes pareceria pouco surpreendente, pois na
verdade, o privilégio desse duplo corte é muito
interessante. É m uito interessante no sentido
em que, no que se re fe re ao toro, já lhes
m ostrei, se vocês fazem um corte [a], isto o
transform a em um a fa ixa . Se fa zem um
segundo [b], que atravessa o prim eiro , isto
não o fragm enta, entretanto. É isso que lhes
perm ite desenrolá-lo com o um belo quadrado.
Se vocês fa zem dois cortes , que não se
recruzam , sobre um toro, tentem im aginar
isso, vocês o põem , forçosam ente, em dois
pedaços.
Aqu i, sobre o cross -cap, com um corte
que é um corte s im p les, com o aqu ele que
se pode desen har assim , vocês abrem essa
superfíc ie . D ivirtam -se fazendo o desenho,
será um ótim o e x e rc íc io in te lec tu a l saber
- 377 -
(
A Identificação
o que se passa nesse m om en to . Vocês abrem a su p erfíc ie , vocês não a
cortam em dois, vocês não fa zem dela dois pedaços. Se vocês fize rem ,
não im porta qual, ou tro corte , que se c ru ze ou que não se cru ze , vocês
a d iv idem . O que é paradoxa l e in teressan te , é que, em sum a, não se
trata, aqui, senão de um só corte sempre, e que, apesar disso, sim plesm ente
fa zen d o -o dar duas vezes a volta do pon to p riv ileg iad o , vocês d iv id em a
su p erfíc ie . Sobre um toro, não é absolu tam en te a m esm a coisa. Sobre
um toro, se f iz e re m tantas vezes quantas qu iserem a volta do buraco
cen tra l, vocês não ob terão jam ais senão um a lon gam en to de algum tipo
de fa ixa , m as não a d iv id irão . Isso, para fa zê -los n o ta r que a li tocam os,
sem dúvida, um a coisa in teressan te quanto à fu n ção dessa su perfíc ie .
E xiste , aliás, um a coisa que não é m en os in teressan te , é que essa
dupla volta, com esse resu ltado, é a lgo que vocês não podem rep e tir
um a ú n ica v e z a m ais. Se f iz e rem um a trip la volta , serão levados a
desenhar, sobre a superfície, alguma coisa que se repetirá indefin idam ente,
à m an e ira dos laços anéis que vocês operam sobre o toro , quando se
en trega m à operação de bob inagem , de que lhes
fa le i no in íc io , só que, aqu i, a linh a não se reu n irá
jamais, não m orderá jam ais o rabo. O valor privilegiado
dessa dupla volta está, portanto, bastante assegurado
por essas duas p ropriedades.
Consideremos, agora, a superfície que isola essa dupla
volta sobre o plano projetivo. Vou fazer-lhes observar
nela certas propriedades. Para começar, é o que podemos
chamar de superfície - chamaremos assim, pela rapidez,
entre nós, se posso dizer, uma vez que vou recordar o
- 3 7 8 -
Lição de 6 de junho de 1962
que isso quer d izer - é uma superfície canhota, com o um corpo canhoto^
com o o que quer que seja que possamos defin ir assim no espaço. Eu não o
em prego para opor à direita, o em prego para defin ir isso que vocês bem
devem conhecer, é que, se vocês querem defin ir o enrolam ento de um
caracol que, com o sabem, é privilegiado, dextrógiro ou levógiro, pouco importa,
isso depende de com o vocês definem um ou outro; essa espiral, vocês a
descobrem a mesm a, quer olhem o caracol do lado de sua ponta, ou quer o
virem para olhá-lo do lado do lugar onde e le esboça um oco. Em outras
palavras, 6 que virando aqui o cross-cap para vê-lo do outro lado, se definirmos
aqui a rotação da esquerda para a direita, distanciando-nos do ponto central,
vocês vêem que e le gira sempre no m esm o sentido do outro lado. Essa é a
p ro p ried a d e de todos os corpos que são d iss im étr ico s . É bem ,
A Identificação
portanto, de uma dissimetria que se trata, fundamental na forma dessa superfície.
A prova é que vocês têm abaixo alguma coisa que é a im agem dessa superfície
assim defin ida sobre nosso duplo laço, no espelho. Ei-la.
N ós devem os nos resguardar de que, com o em todo corpo dissimétrico, a
im agem no espelho não lhe seja sobreponível, assim com o nossa im agem
no espelho, a nós, que não som os s im étr icos , apesar de acred ita rm os
nisso, não se sobrepõe absolu tam en te a nosso p róp rio apoio. Se tem os
um sinal na fa ce d ire ita , esse sinal estará na fa ce esquerda da im agem
no espelho. E ntretan to, a p rop riedade dessa su p erfíc ie é tal que, com o
vocês vêem , basta fa ze r levan ta r um p ou qu in h o esse laço a li [a], e é
le g ít im o fa zê - lo passar por c im a do outro, dado que os dois p lanos não
se a tra v e s sa m r e a lm e n te , pa ra q u e v o c ê s te n h a m u m a im a g e m
abso lu tam en te id ên tica [b] e, portan to, sobreposta à p rim e ira , àquela
da qual partimos. Vocês vejam o que acontece: levantem aquilo lentam ente,
progressivam ente até aqui, e vejam o que vai acontecer, a saber, a ocultação
dessa pequena parte em pontilhado situada aqui, é a rea lização idên tica
do que está na im agem primitiva. Isso nos serve para ilustrar essa propriedade
que lhes disse ser aquela de a enqu anto ob jeto do desejo, de ser essa
coisa que é ao m esm o tem po orien táve l e certam en te m u ito orientada ,
m as qu e não é, se assim posso dizer, especu larizáve l. N esse n íve l radical,
qu e con stitu i o su jeito em sua depen dên c ia em relação ao ob jeto do
desejo, a fu nção i (a ) , função especular, perde sua in flu ên cia , se se pode
dizer. E tudo isso é com andado pelo quê? Por essa coisa que é, justam ente,
esse ponto [ponto central], na m edida em que ele pertence a essa superfície.
Para esclarecer logo o que quero dizer, d irei a vocês que é articulando a
função desse ponto que poderem os encontrar toda espécie de fórm ulas
fe lizes que nos perm item conceber a função do falo no centro da constituição
- 3 8 0 -
Lição de 6 de junho de 1962
do objeto do desejo. É por isso que vale a pena continuarm os a nos interessar
pela estrutura desse ponto. Esse ponto, na m edida em que é e le que é a
ch ave da estru tura dessa su p erfíc ie assim d e fin ida , reco rtada por nosso
corte no p lano p ro je tivo , esse ponto, é p reciso que eu pare um instan te
para m ostrar a vocês qua l é a sua verd ad e ira função. É o que lhes
dem andará , com certeza , um pou co ainda de pac iênc ia .
Q ual é a fu n ção desse pon to? O que, ali, nesse m om en to em que
param os, é m an ifesto , é que e le está em um a das duas partes pelas
quais, através do duplo corte , o p lano p ro je tivo é d iv id ido . E le p erten ce
a essa parte qu e se destaca, e le não p e rten ce à parte que sobra.
C om o parece qu e vocês foram capazes, a inda agora - ao m enos, é o
que devo in d u z ir do fa to de que não se levan tou nen hu m m urm ú rio de
p rotesto - , de con ceber com o essa figura pode passar àquela, por sim ples
d es locam en to le g ít im o do n íve l do corte , vocês irão, penso, ser capazes
tam bém de fa ze r o es fo rço m en ta l de v e r o que acon tece se, por um
lado, fazem os atravessar o horizonte do beco sem saída in ferior da superfície
com esse corte (a ) , (f igu ra 3 ) fa zen d o -o passar, portan to, ao ou tro lado,
com o in d ica m in h a fle ch a am arela , e se fa zem os atravessar na parte
su perio r do an el igu a lm en te o h o rizon te do que está no alto do cross-
cap (b ), isso nos con du z, sem d ificu ldade, à figu ra segu in te.
A passagem para a ú ltim a (c ) é um pouco m ais d ifíc il de conceber,
não quanto ao laço in ferior, com o vocês vêem , mas pelo laço anel superior,
- 3 8 1 -
A Identificação
um a vez que vocês podem , ta lvez, te r um instan te de h es itação sobre o
que se passa, no m om en to do a travessam en to do que aqu i se ap resen ta
com o a ex trem id ad e da lin h a de p en etração . Se vocês re fle tirem um
pouco sobre isso, verão que, se é do ou tro lado que o co rte é levado a
transpor essa lin h a de pen etração , e v id en tem en te e la se ap resen tará
assim (c ) , is to é, com o e la está do ou tro lado, e la será pon tilh ada desse
Fig.3
lado e ela será cheia, já que, segundo nossa convenção, o que é pontilhado
é visto por transparência . Nada, na estru tura da su perfíc ie , nos p erm ite
d istingu ir o va lor desses cortes , portan to daqu eles aos quais ch egam os
aqui, mas, para o olho, e les se apresen tam com o en tran do todos dois
do m esm o lado da lin h a de penetração . Será que é m u ito s im p les para
o o lho? C ertam en te que não. Pois essa d ife ren ça que ex is te en tre o
corte en trar dos dois lados d ife ren tes ou en trar pe lo m esm o lado é algo
que deve, ainda assim , assinalar-se no resultado, sobre a figu ra. E aliás,
isso é rea lm en te sensível.
Se vocês re fle tirem sobre o que é, o que doravante está reco rtado
sobre essa superfície, vocês reconhecerão facilm en te. P rim eiro , é a m esm a
coisa que o nosso s ign ifícan te. A lém da m aneira com o isso recorta uma
superfície, a qual vocês percebem m u ito bem , basta o lh arem a figu ra ,
Lição de 6 de junho de 1962
qu e é um a fa ixa, um a fa ixa qu e tem apenas um a borda. Já lhes m ostrei
o que é: é um a su p erfíc ie de M oeb ius (a ) . O ra, as p rop riedades de uma
superfície de Moebius são propriedades com pletam ente d iferentes daquelas
dessa pequ ena su p erfíc ie g ira tória (b ), cujas p rop riedades lhes m ostrei
há pouco , rev irando-a , o lhando-a, transform ando-a e fin a lm en te lhes
d izen do , fin a lm en te , que é aquela qu e nos interessa .
Essa p equ en a prestid ig itação tem , ev id en tem en te , um a razão que
não é d ifíc il descobrir. Seu in teresse é s im p lesm en te m ostrar-lh es que
esse corte d iv ide a su p erfíc ie sem pre em duas partes, das quais um a
con serva o pon to do qual se trata em seu in terior, e a ou tra não o tem
m ais. Essa ou tra parte, que está p resen te tanto ali quanto na figu ra
term inal, é uma superfíc ie de Moebius. O duplo corte d ivide sem pre a
superfíc ie cham ada cross-cap em duas: isto pe lo que nos interessam os e
com o que vou fazer para vocês o suporte da exp licação da relação de $
com a, no fantasma, e, do outro lado, uma superfíc ie de Moebius. Qual é
a prim eira coisa que lhes fiz tocar de perto, quando lhes presen tee i com
essa pequena co leção de c inco ou seis superfícies de Moebius que jogu e i
pela platéia? É que a superfíc ie de Moebius, no sentido em que a entendia
há pouco, é irredu tive lm en te canhota. Q ualquer m od ificação que vocês a
façam sofrer, não poderão superpor a ela sua im agem no espelho.
Eis, pois, a fu n ção desse corte e o que e le m ostra de exem plar. E le é
tal que, d iv id in do um a certa su perfíc ie de form a p riv ileg iada , su perfíc ie
cu ja n a tu reza e fu n ção nos são com p le tam en te en igm áticas , já que
m al podem os situá-la no espaço, e le fa z aparecer fu n ções priv ileg iadas
d e um la d o , qu e são a q u e la s qu e c h a m e i há p o u co , p o r s e rem
especu larizáveis, isto é, por con terem em si sua irredu tib ilidade à im agem
especu lar e, por ou tro lado, um a superfíc ie que, ainda que apresentando
- 3 8 3 -
A Identificação
todos os privilégios de uma superfície, ela, orientada, não é especularizada.
Pois observem bem que, essa su p erfíc ie , não se pode dizer, c om o sobre
a su p erfíc ie de M oeb ius , que um ser in fin ita m en te p lano passeando se
reen co n tra rá de rep en te sobre essa su p erfíc ie em seu p róp rio avesso.
Cada fa ce está bem separada da outra, nessa aqu i. Essa propriedade,
certa m en te , é a lgo que d e ixa aberto um en igm a , pois não é tão sim ples.
É tão m en os s im p les quanto a su p erfíc ie total, é bem ev id en te , não é
recon stitu íve l, e recon stitu íve l im ed ia tam en te , senão a partir dessas
aqu i. E bem preciso, portan to, que as p rop riedades m ais fu n dam en ta is
da superfíc ie sejam conservadas em algum lugar, apesar de sua aparência
m ais rac ion a l do que a da outra , nessa su p erfíc ie . Está c laro que elas
são con servadas no n íve l do ponto. Se a passagem que, na figu ra total,
torna possível a um v ia jan te in fin ita m en te p lano reen con tra r-se por
um cam in h o m u ito b reve, em um pon to que é seu próprio avesso, eu
digo, sobre a su p erfíc ie total, se isso não é m ais possível, no n íve l da
su perfíc ie cen tra l fragm en tada, d iv id ida pelo s ign ifican te do duplo laço,
é que, m u ito p rec isam en te , a lgum a coisa daquela é con servada no n íve l
do ponto. Sa lvo que, ju s tam en te , para que esse pon to fu n c io n e com o
esse ponto, e le tem esse p r iv ilég io de ser, ju s tam en te , in tran spon íve l,
salvo fazen do desaparecer, por assim dizer, toda a estrutura da superfíc ie .
Vocês vêem , n em pude a inda dar seu p len o d esen vo lv im en to ao que
acabo de d ize r sobre esse pon to. Se vocês re fle tirem , poderão , daqui
até a p róx im a vez, en con trá -lo vocês m esm os. A hora está avan çada e
p reciso de ixá-los. D escu lpe-m e pela a r id ez do que fu i levado a p rodu zir
hoje, d ian te de vocês, d ev ido à p rópria com p lex id ad e, ainda que seja
apenas um a com p lex id ad e ex trao rd in a riam en te pu n tifo rm e, é o caso
de dizer. E aí qu e retom are i, na p róx im a vez. R etorno , portan to, ao
que disse no com eço , o fa to de que eu só tenha pod ido ch egar até esse
ponto de m inha exposição fará com que o sem in ário da p róxim a quarta-
fe ira seja m antido com a in ten ção de não deixar espaço dem ais, in terva lo
demais entre esses dois sem inários, pois esse espaço poderia ser prejudicial
à seqü ência de nossa exp licação.
- 3 8 4 -
LIÇÃO XXIV
13 de ju n h o de 1962
Aqu i estão três figuras.
A figu ra 1 respon de ao co rte sim ples, na m ed id a em que o p lano
p ro je tivo não to lera r ia m ais de um , sem ser d iv id ido . A qu e le ali não
d iv ide, e le abre. E in teressan te m ostrar essa abertura sob essa form a,
porque e la nos p e rm ite visualizar, m ateria liza r a fu n ção do ponto. A
figu ra 2 nos a judará a com p reen d er a outra. T rata-se de saber o que
acontece, quando o corte aqui designado abriu a superfície. Bem entendido,
trata-se a í de um a descrição da su perfíc ie ligada ao que se cham a de
suas relações extrínsecas, a saber, a superfíc ie enqu anto tentam os inseri-
la no espaço de três d im en sões. M as eu lhes d isse que essa d istinção
das propriedades intrínsecas da superfície e de suas propriedades extrínsecas
não era tão rad ica l quanto se ins iste , às vezes, num a preocu pação de
fo rm a lism o, pois é ju s tam en te a propósito da sua im ersão no espaço,
com o se d iz, que algum as das p ropriedades in trín secas da su perfíc ie
aparecem em todas as suas conseqü ências. Apenas assinalo o problem a.
Tudo o que vou d izer-lh es , de fato, sobre o p lano pro jetivo , o lugar
/
priv ileg iado que n e le ocupa o ponto, aqu ilo que cham arem os de o ponto ,
aqu i figu rad o no cross -cap, aqu i (fig . 1-1 ), pon to te rm in a l da lin h a de
pseu do-pen etra ção da su p erfíc ie sobre e la m esm a, esse ponto, vocês
vêem sua fu n ção nesta fo rm a aberta (fig . 2 ) do m esm o ob jeto descrito
na figu ra 1. Se vocês o abrirem segundo o corte , o que verão aparecer
é um fu n do (f ig .2 a ) que está em baixo, aqu ele da sem i-es fera . N o alto,
está o p lano dessa parede an terio r (fig . 2 -b ), en qu an to e la con tin u a na
parede p os ter io r ( f ig . 2 -c ), depo is de ter p en etrado o p lano que lh e é,
p or assim dizer, s im étr ico na com posição desse objeto.
Por qu e vocês o vêem assim desnudado, até o a lto? Porque, um a vez
fe ito o corte , com o esses dois planos, que se cru zam deste m odo (fig .
1, traçados ) no n ív e l da linha de p enetração , não se cru zam rea lm en te,
não se trata de um a rea l penetração, mas de um a pen etração que só é
n ecessitada pela p ro jeção no espaço da su p erfíc ie em questão. Podem os
rem on ta r se qu iserm os, um a vez que o co rte d isso lveu a con tin u idade
da su p erfíc ie , rem on ta r um desses p lanos através do outro, tanto m ais
que não apenas não é im portan te saber em qual n íve l e les se atravessam ,
quais pon tos correspon dem na travessia, mas, ao con trá rio , con vém
exp ressam en te não con sid era r essa co in c id ên c ia dos n íve is dos pontos,
na m ed id a em que a p en etração poderia torná-los, em certos m om en tos
do ra c ioc ín io , superpostos. C on vém , ao con trá rio , m arcar que e les não
o são. O p lano an terio r da fig. 1 (A ), e que passa do outro lado, encontrou-
se rebaixado até o pon to que cham am os, desde en tão, s im p lesm en te
de o p on to , en qu an to que, no alto, vem os p rodu zir-se o segu in te : um a
lin h a que chega ao alto do ob jeto e que, por trás, passa do ou tro lado.
Q uando p ra ticam os, nessa figu ra , um a travessia, ob tem os algo que se
apresen ta com o um oco aberto para a fren te . O traço pon tilh ado va i
passar por trás dessa espéc ie de ore lha e en con tra um a saída do ou tro
lado, a saber, o corte en tre essa borda aqu i e aqu ilo que, do ou tro lado,
é s im étr ico a essa espéc ie de cesto, m as por trás. É prec iso con sid era r
que atrás ex is te um a saída.
Eis a figu ra 3, que é um a figu ra in term ed iá r ia . Aqu i, vocês vêem
ainda o en trec ru zam en to na parte superio r do p lano an terior, que se
torna p os te r io r para vo lta r em segu ida. E vocês p od em re fa ze r isso
in d e fin id a m en te , já os f iz observar. É m esm o o que se p rodu ziu no
n íve l ex trem o . E a m esm a coisa que aqu ela borda que vocês encon tram
A Identificação
- 3 8 6 -
Lição de 13 de junho de 1962
descrita na figura 1. Essa parte que ind ico
na figu ra 1, vam os cham á-la de A. É isso o
que se m an tém nesse lugar, na figura 2.
A con tinu idade dessa borda (fig . 4 ) se faz
com aqu ilo que, atrás da superfíc ie de certo
m odo oblíqua, assim desprendida, se redobra
por trás, um a ve z que vocês com eçaram a
a frou xar o todo, de m an e ira que, se fossem
co locadas de novo, isso se reu n iria com o
na figu ra 3. E is porqu e a in d iq u e i em azul,
no m eu desen ho [traço com setas]. O azu l
é, em sum a, tudo o que perpetua o corte
m esm o. O que resu lta d isto? É que vocês
têm um oco, um bolso, no qual vocês podem
in tro d u zir a lgum a coisa. Se vocês passam
a m ão, essa aqu i passa atrás dessa orelha
que está em con tin u id ad e pela fren te com
a su p erfíc ie . O que vocês encon tram por
trás é uma su p erfíc ie que correspon de ao
fu n d o do cesto , m as separado do que fica
sobre a d ire ita , a saber, essa su p erfíc ie que vem para a fren te , ali, e
que se redobra para trás, na figura 2. Seguindo um cam inho com o aquele,
vocês têm um a seta che ia , depo is em pon tilhado, porqu e e la passa por
trás da ore lha que corresp on de a A. E la sai aqu i, porqu e é a parte do
co rte que está atrás. É a parte que posso designar por B. A ore lha , que
é desenhada aqu i pe los lim ites desse pon tilhado na figu ra 2, p od eria
achar-se do ou tro lado. Essa possib ilidade de duas ore lhas é o que vocês
encontrarão, no m om ento em que tiverem
rea lizado o duplo corte e que vocês isolam
no cross -cap a lgo que se fab rica aqui. O
que vocês vêem , nesse pedaço central assim
isolado da figu ra 5 é, em suma, um plano
tal que vocês apagam agora o resto do
ob jeto , de m an e ira que vocês não terão
m ais que co lo ca r pon tilhados aqui, nem
m esm o de travessia. Resta apenas o pedaço
central.
- 3 8 7 -
A Identificação
O que vocês têm , agora? Vocês m esm os podem im aginá-lo fa c ilm en te .
Vocês têm um a espéc ie de p lano que, entortando, vem , num m om en to ,
se recorta r e le m esm o segundo uma linha que passa, então, por trás.
Vocês têm , portanto, aqui tam bém , duas orelhas, um a lam inazinha para
fren te , um a lam inazinha para trás. E o plano se atravessa, e le m esm o,
segundo um a linha estritam ente lim itada por um ponto. Poderia acon tecer
que esse pon to fosse co locado na extrem idade da orelha posterior; isso
seria, para o plano, um a m aneira de se recorta r e le m esm o, que seria
igu a lm en te in teressante, por certos aspectos, já que é o que eu rea lize i
na figura 6, há pouco, para lhes mostrar a m aneira com o convém considerar
a estru tura desse ponto.
Sei pessoa lm en te que vocês já se inqu ietaram com a fu nção desse
ponto, um a ve z que vocês, um dia, m e colocaram , em particular, a questão
de saber por que eu e os autores sem pre o represen tam os dessa form a,
indicando no centro uma espécie de buraquinho. E certo que esse buraquinho
dá o que pensar. E é ju stam en te sobre e le que vam os insistir, pois e le
reve la a estru tura rea lm en te particu lar desse ponto que não é um ponto
com o os outros. E sobre o que, agora, serei levado a m e explicar.
Sua fo rm a um pou co ob líqua, torcida, é engraçada , pois a analog ia
com a h é lic e , a an ti-h é lic e , é gritan te , e m esm o o lóbu lo da fo rm a
desse p lano pro je tivo cortado, se considerarm os que se pode reen con trar
essa form a que, rad ica lm en te é atraída pela form a da fa ixa de M oeb ius,
nós a en con tram os bem m ais s im p lificada , n isto que eu ch am ei um dia
o á r u m 76, ou ainda a ore lha de asno. Isto é apenas para cham ar a atenção
de vocês sobre o fato eviden te de que a natureza parece, de certa m aneira,
aspirada por essas estruturas, e nos órgãos particu larm ente sign ificativos,
aqu eles dos o r ifíc io s do corpo que são, de certo m odo, de ixados de lado,
d istin tos da d ia lé tica ana lítica . A esses o r ifíc io s do corpo, quando eles
m ostram algum tipo de sem elhança, poderia se fa ze r um a espéc ie de
- 3 8 8 -
Lição de 13 de junho de 1962
con sid eração , de con exão com a Natu rw issenschaft desse ponto, o qual
d eve m esm o p ro ced e r desta, ne la se refletir, se e le tem e fe tiva m en te
a lgum valor. A an a log ia g ritan te de vários desses desenhos que f iz com
as figu ras encon tradas em cada página dos livros de em brio log ia m erece
tam bém aten ção . Q uando vocês con s id era rem o que acon tece, apenas
u ltrapassando o estág io da p laca germ in ativa , n o ovo das serpen tes ou
dos peixes, na m ed id a em que é o que m ais se aproxim a, num exam e
que não é abso lu tam en te com p le to , no estado atual da c iên c ia , do
d esen vo lv im en to do ovo hum ano, vocês en con tram algo chocan te , é o
ap arec im en to , nessa p laca germ in ativa , em dado m om en to , do que se
cham a de lin h a p rim itiva , que term in a igu a lm en te por um ponto, o nó
de H en sen , que é um pon to m u ito s ign ifica tivo e v e rd ad e ira m en te
p rob lem á tico em sua form ação , v isto que está ligado por um a espéc ie
de co rre lação com a fo rm a çã o do tubo neural; e le vem , de algum m odo,
a seu en con tro por um processo de dobra da ec tod erm e . É, com o vocês
sabem , algo que dá bem a idé ia da form ação de um toro, um a vez que,
num certo estágio, esse tubo neura l fica aberto com o um a trom beta dos
dois lados. Por ou tro lado, a fo rm ação do cana l cordal [ch o rd a l ] que se
p rodu z ao n ív e l desse nó de H ensen , com um a m an e ira de se propagar
lateralmente, dá a idéia de que ali se produz um processo de entrecruzamento,
cu jo aspecto m or fo ló g ico não pode deixar de lem brar a estru tura do
p lano p ro je tivo , sobretudo se im agin am os que o p rocesso que se rea liza
desse pon to, cham ado nó de H en sen é, de certo m odo, um processo
regress ivo . À m ed ida que o d esen vo lv im en to avança, é num a linha,
nu m recu o poster io r do nó de H en sen , que se com p leta essa fu nção da
lin h a p rim itiva , e que aqu i se p rodu z essa abertura para a fren te , em
d ireção ao en tob lasto [en tob laste ], deste cana l que, nos sauropsídios,
se ap resen ta com o o h om ó logo , sem ser em nada id en tific á v e l ao canal
n eu ro -en té r ico que se en con tra nos batráqu ios, a saber, o que põe em
com u n icação a parte term in a l do tubo d igestivo e a parte term ina l do
tubo neural. E n fim , esse pon to tão altam ente s ign ifica tivo para con jugar
o o r if íc io c loaca l, esse o r if íc io tão im portan te na teoria analítica , com
algo que a con tece ser, d ian te da parte m ais in fe r io r da form ação caudal,
aqu ilo que espec ifica o vertebrado e o pré-vertebrado m ais rigorosam ente
do que qu a lqu er ou tra ca racterís tica , a saber, a ex is tên c ia da corda-
dorsal cu jo pon to de partida é esta linha p rim itiva e o nó de H ensen .
E x is te ali, c e rta m en te , toda um a série de d ireções de pesquisas que,
A Identificação
acred ito , m erecer ia m a a tenção. Em todo caso, se não in s is ti n isto , é
que ce rta m en te não é nesse sen tido que desejo m e engajar. Se fa lo
disso, agora, é ao m esm o tem po para despertar em vocês um pou co
m ais de in teresse por essas estru turas tão cativan tes por si m esm as, e
tam bém para au ten ticar um a observação que m e fo i fe ita , de que a
em brio log ia teria o que d ize r aqu i, ao m en os a títu lo ilu stra tivo .
Isso nos p erm itirá ir m ais lon ge , e im ed ia tam en te , sobre a fu n ção
desse ponto. U m a d iscussão m u ito cerrada, no p lano do fo rm a lism o
dessas con stru ções topo lóg icas, apenas se e te rn iza r ia e ta lvez pudesse
fatigá-los. Se a linh a que traço aqu i, sob a form a de um a esp éc ie de
en trecru zam en to de fibras, é algo cu ja fu n ção vocês já co n h ecem no
cross-cap, o que p reten do in d icar-lh e é o pon to que a term ina, é claro
que é um ponto m atem ático, um ponto abstrato. N ão podem os, pois,
dar-lhe nenhum a dim ensão. Entretan to, não podem os pensá-lo senão
com o um corte ao qual temos que atribuir propriedades paradoxais, sobretudo
pelo fato de não poderm os con cebê-lo com o pun tifo rm e. Por ou tro lado,
ele é irredutível. Em outras palavras, para a própria.concepção da superfície,
não podem os con sid erá -lo com o preench ido . E um pon to-buraco, se
Lição de 13 de junho de 1962
assim podem os dizer. A lém disso, se o con siderarm os com o um pon to-
buraco, is to é, fe ito do a jun tam ento de duas bordas, e le seria de ce rto
m odo in secáve l no sen tido de que a atravessa, e pode-se, com e fe ito ,
ilu strá -lo por esse tipo de corte ú n ico (a ) que se pode fa ze r no cross-
cap. H á os que são fe itos n o rm a lm en te para exp lica r o fu n c ion am en to
da su p erfíc ie , nos liv ros técn icos que se ded icam a isso. Se há um corte
(b ) que passa por esse pon to, com o devem os con cebê-lo? Será que e le
é, de algum m odo, o hom ólogo, e un icam ente o hom ólogo, do que acontece
quando vocês fa zem passar um a dessas linhas m ais acim a, atravessando
a lin h a estru tu ra l de fa lsa penetração? Isto é, ex iste , de a lgum a form a,
a lgo que podem os cham ar de pon to-buraco, de tal m an eira que o corte ,
m esm o que e le daí se reaproxim e, até se con fu nd ir com o ponto, con torne
esse buraco?
É, de fato, o que é p rec iso m esm o conceber, pois, quando traçam os
um tal co rte , eis ao que chegam os. Tom em , se qu iserem , a figu ra 1,
tran sform em -n a na figu ra 3, e con sid erem o que está em questão en tre
as duas ore lhas que ficam ali, no n íve l de A, e de B, que está por trás;
é algo que pode ainda afastar-se indefin idam ente, ao ponto que o conjunto
tom e esse aspecto, figura 6. Essas duas partes da figura estão representando
as dobras, an terio r e posterior, que desenhei na figu ra 5. Aqui, no centro,
essa su p erfíc ie que d esen h ei na figu ra 5 aparece aqu i tam bém na figu ra
6. E la está ali, com e fe ito , atrás. Resta que nesse pon to algum a coisa
deve ser m antida, que é, de certo m odo, o pon to de partida da fabricação
m en ta l da su p erfíc ie , a saber, em relação a esse corte , que é aqu ele em
torn o do qual e la se con stró i rea lm en te. Pois essa su p erfíc ie que vocês
querem mostrar, convém concebê-la com o um a certa m aneira de organizar
- 3 9 1 -
A Identificação
um buraco. Esse buraco, cujas bordas estão aqu i figu radas, é o pon to
de partida, o pon to de on de con vém partir para que possam se fazer, de
um a m an e ira que con strua e fe t iva m en te a su p erfíc ie em questão , os
a jun tam entos borda a borda que estão aqu i desenhados, a saber, que
aqu ela borda, após, ce rta m en te , todas as m od ifica çõ es n ecessárias à
sua descida através da ou tra su p erfíc ie , e essa borda aqu i, ven h am se
ju n ta r com aqu ela que trouxem os nessa parte da figu ra 6, a com a ’ . A
ou tra borda, ao con trá rio , d eve v ir se ju n ta r c on fo rm e o sen tido gera l
da seta verde , com essa borda ali, d com d ’ . É um a ju n tam en to que só
é con ceb íve l a partir de um defla grador de a lgum a coisa que se s ign ifica
com o o recobrim en to , por m ais pon tua l que seja, dessa su p erfíc ie por
e la m esm a num ponto, qu er dizer, de a lgum a coisa que está aqu i, num
p equ en o pon to no qual e la é fen d id a , e no qual e la vem a se reco b r ir a
si m esm a. E em torn o disso que o processo de con stru ção se opera.
Se vocês não têm isso, se con sid eram que o corte b que f ize ra m aqu i
atravessa o pon to-buraco, não con tornan do-o , com o os ou tros cortes ,
com um a volta , m as, ao con trá rio , v in d o co rtá -lo aqu i, da m a n e ira
com o, num toro, podem os con s id era r que um corte se p rodu z assim ,
no que se transform a essa figura? Ela tom a um outro aspecto, to ta lm en te
d iferen te . E is o que e la se torna. E la se torna pura e s im p lesm en te a
forma mais simplificada do redobramento para frente e para trás da superfície
da figura 6, isto é, que o que vocês viram , figu ra 6, se organ izar segundo
uma form a que vem entrecruzar-se borda a borda segundo quatro segmentos,
o segm ento a v indo sobre o segm en to a ’ , é um segm ento
que levaria o n° 1 em relação a um ou tro que levaria o
n°3, em relação à continuidade do corte assim desenhado,
depois um segm ento n “ 2, com o segm ento n°4.
Aqu i, últim a figura, vocês têm apenas dois segm entos.
É p rec iso con ceb ê-los com o se ju n tan d o um ao ou tro
dobra posterior
- 3 9 2 -
Lição de 13 de junho de 1962
por uma com pleta inversão de um em relação ao outro. É muito d ificilm ente
v isu a lizáve l, m as o fa to de que o que está de um lado em um sen tido
deva se ju n ta r ao que, do ou tro lado, está no sen tido oposto, m ostra-nos
aqu i a estru tura pura, a inda que não visua lizáve l, da fa ixa de M oeb ius.
A d ife ren ça do que se produz, quando vocês pra ticam esse corte sim ples
sobre o p lano pro jetivo com o próprio plano pro jetivo, é que vocês perdem
um dos e lem en tos de sua estru tura, vocês não fa zem senão um a pura e
sim p les fa ixa de M oeb ius, salvo que vocês não vêem em n en h u m a parte
aparecer o qu e é essen cia l na estru tura da fa ixa de M oebius, um a borda.
O ra essa borda é rea lm en te essen cia l na fa ixa de M oeb ius. C om e fe ito ,
na teoria das su p erfíc ies , para determ in ar p rop riedades tais com o o
gên ero , o n ú m ero de con exões , a característica , tudo o que con stitu i o
in teresse dessa topo log ia , vocês d evem levar em con ta que a fa ixa de
M oeb iu s tem um a borda e apenas uma, que e la é con stru ída sobre um
buraco. N ão é p e lo p ra ze r do paradoxo que d igo que as su perfíc ies são
organ izações do buraco. Aqu i, pois, trata-se de um a fa ixa de M oeb ius,
isso significa que, ainda que em parte alguma não exista lugar de representá-
lo, é necessário qu e o bu raco p erm aneça . Para que seja um a fa ixa de
M oeb ius, vocês co lo ca rão en tão ali um buraco. Por m en or que seja, tão
p u n c tifo rm e quanto seja, e le p reen ch erá topo log icam en te exa tam en te
as m esm as fu nções que aquelas da borda com pleta nessa coisa que vocês
podem desen har quando desen ham uma fa ixa de M oeb ius, quer dizer,
m ais ou m en os um a co isa com o isso.
C om o os f iz observar, um a fa ixa de M oeb ius é tão s im p les assim.
U m a fa ixa de M oeb iu s tem apenas uma borda. Se vocês segu irem sua
borda, terão fe ito a vo lta de tudo o que é borda nessa fa ixa , e de fato,
não passa de um buraco, um a coisa que pode aparecer com o puram ente
circu lar. Su b linhando os dois lados, in verten do um em relação ao outro,
- 3 9 3 -
A Identificação
se ju n tan do , p erm an ecerá o fa to de que seria necessá rio , para que se
tratasse m esm o de um a fa ixa de M oeb ius, que con servássem os sob uma
fo rm a tão red u z ida quanto possível a ex is tên c ia de um buraco. É bem
e fe t iva m en te o que nos in d ica o ca rá ter ir red u tív e l da fu n ção desse
pon to. E, se ten tarm os articu lá-lo , m ostrar sua fu nção , som os levados,
d esen h an do-o com o pon to -o rigem da organ ização da su p erfíc ie sobre o
plano projetivo, a encontrar nele propriedades que não são com pletam ente
aquelas da borda da su p erfíc ie de M oeb ius, m as que são, a inda assim,
a lgum a co isa que tanto é um buraco que, se se qu iser su prim i-lo por
essa operação de secção , pe lo corte passando por esse pon to, é, em
todo caso, um buraco que se faz aparecer da m aneira m ais incon testáve l.
O que é que isso quer dizer, a inda? Para que essa su p erfíc ie fu n c ion e
com suas p rop riedades com pletas, e p a rticu la rm en te a de ser un ilátera ,
com o a fa ixa de M oeb iu s - a saber, que um su jeito in fin ita m en te plano,
passeando, pode, partindo de um ponto qualquer, exterior de sua superfície,
re to rn a r por um cam in h o ex trem a m en te curto, e
sem ter de passar por nen h u m a borda, ao pon to
avesso da su p erfíc ie de on de e le partiu - para que
isso possa acon tecer, é p reciso que, na con strução
do aparelho que cham am os de plano p ro je tiv o exista,
em a lgu m a parte , tão red u z id o qu an to vocês o
s u p o n h a m , essa e s p é c ie de fu n d o qu e es tá
rep resen tad o aqu i, esse fu ndo do apare lho (b ), a
parte que não está estruturada pelo entrecruzam ento.
D eve restar dela um pedacin ho , por m en or que
seja, sem o quê a su p erfíc ie torna-se ou tra coisa e
nom eadam ente não representa mais essa propriedade
de fu n c ion ar com o un ilátera .
U m a ou tra m an e ira de va lo r iza r a fu n ção desse pon to: o cross -ca p
não pode se desenhar pura e s im p lesm en te com o algo que seria d iv id ido
em dois por um a linh a on de se en trecru zariam as duas su p erfíc ies (a ).
E preciso que reste, aqu i (b ), a lgum a co isa que, para a lém do ponto, o
c ircu n de; algo com o um a c ircu n ferên c ia , por redu z ida qu e seja, um a
su p erfíc ie , que p erm ita fa ze r com u n ica r os dois lóbu los superiores,
por assim dizer, da su p erfíc ie assim estru turada. É isso que nos m ostra
a fu n ção paradoxa l e organ izadora do ponto. M as o que isso nos p erm ite
- 3 9 4 -
Lição de 13 de junho de 1962
articu la r agora é que esse pon to é fe ito da co lagem das duas bordas de
um corte, corte que não poderia, de outro modo, ser ele m esm o reatravessado,
ser secc ionável, corte que vocês vêem aqui, da m aneira que eu o im agin e i
para vocês, com o dedu zido da estru tura da su perfíc ie , e que é tal que
se pode d ize r que, se d e fin íssem os arb itra riam en te a lgum a coisa com o
in te r io r e com o exterior, co locando, por exem plo , em azu l no d esen h o
o que é in te r io r e em ve rm e lh o o que é exterior, de um a das bordas
desse pon to a ou tra se ap resen taria assim , v isto que e la é fe ita de um
corte , tão m ín im o quanto possam supô-lo, da su p erfíc ie que vem se
superpor à outra . N esse corte p riv ileg iado , o que se n ive la rá sem se
rejuntar será um ex te r io r com um interior, um in ter io r com um exterior.
Tais são as propriedades que lhes apresento; poder-se-ia exp rim ir isso de
uma form a m ais sábia, m ais form alista, m ais d ia lética ... de um a fo rm a
que m e parece não apenas su fic ien te, mas necessária para poder, em
seguida, im agin ar a função que pretendo dar-lhe para nosso uso.
F iz vocês observarem que o duplo corte é a p rim eira fo rm a de corte
que in trodu z, na su perfíc ie defin ida com o cross-cap do p lano pro jetivo,
o p rim eiro corte, o corte m ín im o que obtém a divisão dessa su perfíc ie .
Já lhes ind iqu ei, na ú ltim a vez, a quê chegaria essa d ivisão e o que ela
sign ificava. M ostrei-o a vocês em figuras m u ito precisas, que vocês todos,
espero, anotaram , e que consistia em provar-lhes que essa d ivisão tem
ju stam en te com o resu ltado d iv id ir a superfíc ie em :
1. - um a su p erfíc ie de M oeb ius, isto é, um a su p erfíc ie u n ilá tera do
tipo da figu ra que aqu i está (1 ). Esta aqu i con serva n e la m esm a, por
assim dizer, um a parte apenas das p ropriedades da su perfíc ie cham ada
cross-cap e, justam ente, essa parte particularmente interessante e expressiva
- 3 9 5 -
A Identificação
que con siste na p rop riedade un ilá tera , e n aqu ela que desde sem pre
va lo r ize i, quando f iz c ircu la r en tre vocês pequ en as fitas de M oeb iu s de
m in h a fabricação , a saber, que se trata de um a su p erfíc ie torcida, que
e la é - d irem os em nossa lingu agem - especu la r izáve l, que sua im agem
no espe lh o não poderia ser-lh e superposta , que e la é estru tu rada por
um a d issim etria rad ica l. E todo o in teresse dessa estru tura que lhes
dem on stro é que
2. - a parte cen tra l ao con trário (2 ), o que cham am os de peça cen tra l,
iso lada pelo duplo corte , sendo m an ifes tam en te aqu ela que traz consigo
a verdadeira estrutura de todo o aparelho cham ado de cross-cap, basta
olhar para ela, eu diria, para vê-lo, basta im aginar que, de uma m aneira
qualquer, rejuntam -se aqui as bordas nos pontos de correspondência que
elas apresentam visualm ente, para que seja im ed iatam en te reconstitu ída
a form a geral desse p lano projetivo ou cross-cap. Mas, com esse corte, o
que aparece é um a superfíc ie que tem esse aspecto que vocês podem , eu
acho, agora considerar com o algo que, para vocês, chega a uma fam iliaridade
su fic ien te para que vocês a projetem no espaço, essa superfíc ie que se
atravessa, ela m esm a, segundo uma certa linha que pára em um ponto.
E essa linha, e é sobretudo esse ponto, que dão à fo rm a em dupla
vo lta desse c o r te a sua s ign ifica çã o p r iv ile g ia d a do p on to de v ista
esquem ático , porque é naquele que vam os confiar, para dar um esquem a
de rep resen tação esqu em ática do que é a re lação $ co r te de a, o que
não ch egam os a p e rceb er no n íve l da estru tu ra do toro, a saber, de a lgo
que nos p e rm ite articu la r esqu em aticam en te a estru tura do desejo , a
estru tura do desejo, na m ed ida em que, fo rm a lm en te , já a in screvem os
nessa coisa da qual d izem os que nos p erm ite con ceb er a estru tura do
fantasm a, $ 0 a.
N ão esgotarem os, hoje, o assunto, m as ten tarem os in trodu zir, ho je,
para vocês que essa figu ra , em sua fu nção esqu em ática , 6 bastan te
ex em p la r para nos p e rm it ir en con tra r a re la çã o de $ co r te de a, a
fo rm a liza ção do fan tasm a em sua relação com algo que se in sc reve no
que é o resto da su p erfíc ie d ita p la n o p ro je t iv o ou cross -ca p , quando a
p eça cen tra l está, ali, de a lgum a m an eira en u cleada . T rata-se de uma
estrutura especu larizável, rad ica lm ente d issim étrica, que vai nos perm itir
lo ca liza r o cam po dessa d issim etria do su jeito em re lação ao O utro,
esp ec ia lm en te no que con cern e à fu n ção essen cia l qu e aí d esem pen h a
a im agem especular. E is, de fato, do que se trata; a verd ad e ira fu n ção
- 3 9 6 -
(
(im ag in ária , se se pode dizer, na m ed ida em que e la in tervém no n íve l
do desejo , é um a re lação p riv ileg iada com a, ob jeto do desejo, term os
do fantasm a. Eu d igo term os, pois ex is tem dois, $ e a, ligados pela
fu n ção do corte . A fu nção do ob jeto do fantasm a, enqu anto term o da
função do desejo, essa função está oculta. O que ex iste de m ais e fic ien te ,
de m ais e fica z na re la ção com o objeto, tal com o a en ten dem os no
vocabulário atualmente aceito da psicanálise, está m arcado por um velamento
m áxim o. Pode-se d ize r que a estru tura lib id in a l, enqu an to m arcada
pela fu nção n arc ís ica , é o que, para nós, recob re e m ascara a relação
com o objeto. E na m edida em que a relação narcísica, narcísica secundária,
a re la ção com a im agem do corpo com o tal, está ligada por algo de
estrutural dessa relação com o objeto que é aquele do fantasma fundamental,
que ela ganha todo seu peso. M as esse a lgo de estru tura l, de que falo,
é um a re la ção de com p lem en ta r; é na m ed id a em que a re lação do
su jeito, m arcado pelo traço unário, en con tra um certo apoio que é de
engodo, que é de erro, na im agem do corpo com o constitutiva da identificação
especu lar, que ela tem sua relação in d ire ta com o que se ocu lta atrás
dela, a saber, a relação com o objeto, a relação com o fantasma fundamental. (
Há, pois, dois im aginários, o verdadeiro e o falso, e o fa lso não se sustenta
senão nessa espéc ie de subsistência à qual ficam presas todas as m iragens
do d es-co n h ecer77 [m é -c o n n a itre ]. Já in trodu zi esse jo g o de palavras,
des-conhecim ento [mé-connaissance]-, o sujeito se des-conhece [mé-connaü\
na re la çã o do espe lh o . Essa re lação do espelh o, para ser com preen d ida
com o tal, d eve estar situada sobre a base dessa re la ção com o O utro \
que é fu n d am en to do su jeito, enqu an to nosso su je ito é o su jeito do
d iscurso, o su je ito da linguagem . E situando o que é $ co r te de a em
rela ção à d e fic iên c ia fu n dam en ta l do O utro, com o lugar da palavra,
em re la ção ao que é a ún ica resposta de fin itiva no n íve l da enunciação,
o s ign ifica n te de A, do testem u nho un iversa l, na m ed ida em que e le
fa lta e qu e nu m dado m om en to e le tem apenas um a fu nção de falso
testem u nho, é s ituando a fu nção de a, nesse pon to de d esfa lec im en to ,
m ostrando o suporte que encon tra o sujeito nesse a, que é a que visamos,
na an álise, com o ob jeto , que não tem nada em com u m com o ob jeto do
id ea lism o clássico, que não tem nada em com um com o objeto do sujeito
h ege lian o ; é a rticu lan do da m an eira m ais p rec isa esse a no ponto de
ca rên c ia do O u tro , que é tam bém o pon to on de o su jeito recebe desse
O utro, com o lugar da palavra, sua m arca m aior, a do traço unário, a
(
-3 9 7 -
(
Lição de 13 de junho de 1962
c
que d istingue nosso su jeito do su je ito da transparência co n h eced o ra do
pensam ento clássico, com o um sujeito in te iram en te atado ao sign ificante,
na m ed ida em que esse s ign ifican te é o pon to de báscula de sua reje ição ,
dele, su jeito, fora de toda a rea lização s ign ifican te , 6 m ostrando, a partir
da fórm u la $ 0 a com o estru tu ra do fantasm a, a re la ção desse ob jeto a
com a carên cia do Outro, que vem os com o, em um m om en to , tudo recua,
tudo se apaga na fu nção s ign ifican te , d ian te da ascensão, da irru pção
desse ob jeto.
Está aí aqu ilo em d ireção ao qual podem os avançar, a inda que seja a
zona m ais ve lada , a m ais d if íc il de articu la r de nossa exp eriên c ia . Pois,
ju s tam en te , tem os o con tro le nisso, que por essas vias que são as de
nossa exp eriên c ia , vias que p ercorrem os , m ais h ab itu a lm en te as do
n eu ró tico , tem os um a estru tu ra que não se trata ab so lu tam en te de
co lo ca r assim nas costas de bodes exp ia tórios . N esse n íve l, o n eu ró tico ,
assim com o o perverso , e com o o p róp rio p s icó tico , são apenas faces da
estru tura norm al. F reqü en tem en te m e d izem , após essas con ferên c ia s :
quando você fa la do n eu ró tico e de seu ob jeto, que é a dem an da do
Outro, a m en os que sua dem an da não seja o ob jeto do O utro, por que
você não nos fala do desejo n orm all Mas, ju s tam en te , fa lo disso o tem po
todo. O n eu ró tico é o norm al, na m ed ida em que, para e le , o O utro,
com O m aiúscu lo, tem toda a im portân c ia . O perverso é o norm al, na
m ed ida em que para e le o fa lo , o gran de <3>, que vam os id e n tif ic a r com
esse ponto que dá à peça cen tra l do plano pro jetivo toda sua consistência ,
o fa lo tem toda a im portân c ia . Para o ps icótico , o corpo p róprio , que se
deve d is tingu ir em seu lugar, nessa estru tu ração do desejo, o corpo
próp rio tem toda a im portân c ia . E estão aqu i apenas faces on de algo se
m an ifesta , por esse e lem en to de paradoxo que é aqu ele que vou ten tar
a rticu lar d ian te de vocês , no n ív e l do desejo.
Já, na ú ltim a vez, lh es d e i um aperitivo , m ostrando o que pode h aver
de d istin to na fu n ção en qu an to em erg in d o do fantasm a, is to é, de algo
que o sujeito fom enta, tenta p roduzir no ponto cego, no lugar m ascarado,
que é aqu e le cu jo esqu em a nos é dado por essa peça cen tra l.
Já lhes ind iqu ei, a propósito do neurótico, e p recisam en te do obsessivo,
com o pode se co n ceb er que a busca do ob jeto seja o verd ad e iro alvo,
no fantasma obsessivo, dessa tentativa sempre renovada e sempre im potente
dessa destru ição da im agem especu lar, na m ed ida em que é e la que o
obsessivo visa, que e le sen te com o obstácu lo à rea lização do fantasm a
A Identificação
- 3 9 8 -
Lição de 13 de junho de 1962
fu n dam en ta l. Eu lhes m ostre i que isso esc la rece m u ito bem 0 que se
passa no n ív e l do fantasm a, não sádico, m as sadiano, quer dizer, aqu ele
que tive ocasião de esm iu çar peran te vocês, para vocês, com vocês, no
Sem inário sobre a É tica , na m edida em que, realização de uma experiência
in ter io r que não se pode reduzir in teiram en te às con tingências do quadro
cogn osc íve l de um es fo rço de pensam en to con ce rn en te à re la ção do
su jeito com a natureza, é no u ltra je à na tu reza que Sade tenta d e fin ir
a essên cia do desejo hum ano.
E aí está exa tam en te pe lo quê, já hoje, eu poderia in trodu zir para
vocês a d ialética em.questão. Se, em algum lugar, podem os ainda conservar
a noção de con h ec im en to , é ce rta m en te fora do cam po hum ano. N ada
nos im p ed e de pensar, nós, positivistas, m arxistas, todos que qu iserem ,
que a n a tu reza se con h ece . E la tem segu ram en te suas p re ferên cia s,
e la não pega qu a lqu er m ateria l. É exa tam en te isso que nos deixa , há
algum tem po, 0 cam po, para encon trar m ontes de outros, e de adm iráveis
esqu is itos que e la havia ad m irave lm en te de ixado de lado! D e qu a lqu er
m an e ira que e la se con heça , não vem os aí n en h u m obstáculo. É bem
certo qu e todo o d esen vo lv im en to da c iên c ia , em todos os seus ram os,
se faz, para nós, de uma m an eira que torna cada vez m ais c lara a noção
de con h ec im en to . A co-n atu ra lidade com qu a lqu er m e io que seja no
cam po natura l, é 0 que há de m ais estranho, de sem pre m ais estranho,
ao d esen vo lv im en to dessa c iênc ia . N ão será ju s tam en te isso que torna
tão atual que nós nos ad ian tem os na estru tu ra do desejo , tal com o
nossa exp e r iên c ia ju s tam en te , e fe t iva m en te , nos fa z sen tir todos os
dias? O n ú cleo do desejo in con sc ien te e sua relação de o r ien tação , de
m agn etização , por assim dizer, é abso lu tam en te cen tra l em relação a
todos os paradoxos do desconhecim en to hum ano. E será que seu prim eiro
fu n d a m e n to n ão está em qu e 0 d e s e jo h u m a n o é u m a fu n ç ã o
[fu n d am en ta lm en te ] acósm ica? E por isso que, quando ten to fom en ta r
para vocês essas im agens plásticas, pode parecer-lhes ver uma reatualização
de ve lhas técn icas im agin árias que são as que eu lhes en s in e i a le r sob
a fo rm a da esfera em Platão. Vocês p oderiam se d izer isto, esse p equ en o
pon to duplo, essa punção nos m ostra que a li é 0 cam po on de se cerca
0 que é a verd ad e ira m ola da relação en tre 0 poss ível e o rea l. O que fe z
todo o charm e, toda a sedução lon gam ente persegu ida da lóg ica clássica,
o verd ad e iro pon to de in teresse da lóg ica fo rm a l, digo, a de A ris tó te les ,
é 0 que e la supõe e o que e la exc lu i e que é rea lm en te seu pon to-p ivô ,
- 3 9 9 -
A Identificação
a saber, o pon to do im possíve l en qu an to aqu e le do desejo . V oltare i a
isso. Portan to, vocês poderiam d ize r que tudo o qu e estou exp lican d o é
a seqü ên c ia do d iscu rso p receden te .
E, de ixem -m e em pregar essa fórm u la, são truques do théo, pois a fina l,
c o n vém d a r-lh e um n om e , a esse D eus de qu e fa lam os um p ou co
rom an ticam en te dem ais , p ro fe r in d o um be lo go lpe ao d ize r qu e D eus
está m orto. H á deuses e deuses. Já lhes disse que há os que são, de
fato, reais. Faríam os m al em d esco n h ecer-lh e a rea lidade. O deus que
está em causa, e cu jo problem a não podem os eludir, pois, é um prob lem a
que é da nossa con ta, um p rob lem a no qual tem os que tom ar partido,
aqu ele, para a d istinção dos term os, fazendo eco a Beckett, que um dia
o cham ou de G odot, porque não cham á-lo por seu verdadeiro n om e, o
Ser Suprem o? Se bem m e lem bro, a nam orada de R obesp ierre tinha
esse n om e com o n om e p róprio : cre io que ela se cham ava C a th erin e
T h éo t. É bem certo que toda um a parte da e lu cidação an alítica e, em
suma, toda a h istória do pai em Freud, é nossa con tribu ição essencia l à
função de Th éo num certo cam po, precisam ente esse cam po que encontra
seus lim ites na borda do duplo corte, na m edida em que é e le que determ ina
os caracteres estruturantes, o nú cleo fundam enta l do fantasm a na teoria,
assim com o na prática.
Se a lgum a coisa pode se articu la r que exam in e os prós e con tras dos
dom ín ios de T h éo , que se ve rificam não serem tão to ta lm en te reduzidos,
nem redu tíve is , já que deles nos ocupam os tanto, a não ser isso, qu e há
algum tem po nós perdem os, se posso dizer, a alm a, o sum o e o essencia l.
N ão se sabe m ais o que dizer. Esse pai parece se d es fa zer num a nu vem
densa, cada vez mais longínqua e, ao m esm o tem po, deixar singu larm ente
em suspenso o a lcan ce de nossa prática . Q ue exista aí, de fato, algum
corre la tivo h istó rico , não é de todo supérfluo que nós o evoqu em os,
quando se trata de d e fin ir aqu ilo com o que tem os a ver, em nosso
dom ín io ; c re io que é hora. É hora porque, sob m il form as con cretizadas ,
articuladas, clín icas e práticas, já um certo setor se m anifesta na evolução
de nossa prática , que é d istin ta da re lação com o O utro, A m aiúscu lo ,
com o fu n d am en ta l, com o es tru tu ran te de toda a e x p e r iên c ia cu jos
fu ndam en tos en con tram os no in con sc ien te .
M as, seu ou tro p ó lo tem todo o va lo r que há p ou co ch a m e i_d e
com plem entar, aqu e le sem o qual vagam os, quero dizer, aqu e le sem o
qual voltam os, com o um recuo, um a abd icação a a lgo que 1’o i a é tica da
- 4 0 0-
Lição de 13 de junho de 1962
era teo lóg ica , cujas origen s os f iz sentir, ce rta m en te respeitando todo
seu p reço, todo seu valor, nessa frescu ra orig ina l que lhes conservou os
d iá logos de P latão. O que vem os, depois de P latão, se não é a p rom oção
do que agora se perpetua, sob a fo rm a poe iren ta dessa d istinção, a qual
é rea lm en te um escândalo que se possa ainda en con trá -la sob a pena
de um analista, do eu-sujeito [m o i-s u je t ] e do eu-objeto \m oi-objet] \ Falem-
m e do cava le iro e do cava lo , do d iá logo da a lm a e do desejo . Mas,
ju s tam en te , se trata dessa alm a e desse desejo, esse re torn o do desejo à
alma, no m om en to em que, precisam ente, não se tratava senão do desejo,
en fim , tudo o que lhes m ostre i no ano passado, na transferên cia .
Trata-se de ver essa c la reza m ais essencia l que podem os trazer a
isso. E que o dese jo não está de um lado. Se e le parece ser esse não-
m an ejáve l, que P latão descreve de m an eira tão patética , tão com oven te
e que a a lm a superio r está destinada a dominar, a cativar, certam en te é
que ex iste um a relação, m as a relação é in terna , e d iv id i-la é ju stam ente
se deixar ir por um logro, por um engodo que se deve a que essa im agem
da alma, que não é outra senão a im agem central do narcisismo secundário,
tal com o a d e fin i ainda agora e sobre a qual retornarei, não funciona
senão com o via de acesso, via de acesso enganadora, m as via de acesso,
orientada, com o tal, ao desejo. É certo que Platão não o ignorava. E o
que torna sua empreitada mais estranhamente perversa é que ele a mascara.
Pois lhes fa lare i do fa lo em sua dupla função, a que nos perm ite vê-lo
com o o ponto com um de eversão [évers ion ], se posso dizer, de evergência,
se posso usar essa palavra com o construída no avesso daquela de convergência,
se, esse fa lo, penso poder articu lar para vocês, por um lado, sua função
no n ível do $ do fantasm a e no n ível do a, que para o desejo ele autentifica.
clck!:ci( c f X
I 'C
<
- 401-
A Identificação
A partir de hoje, lhes in d ica re i o paren tesco dos paradoxos com essa
im agem m esm a que o esquem a da figu ra [7] lhes dá, um a ve z que,
aqui, nada senão esse pon to assegura a essa su p erfíc ie assim reco rtada
seu caráter de superfíc ie unilátera, mas assegura-o in teiram en te, fazendo
ve rd ad e ira m en te de $ corte de a - m as não andem os ráp ido dem ais, a,
e le ce rta m en te é o corte de S. A espéc ie de rea lidade a_que visam os,
nessa ob jeta lidade, ou nesta ob jetiv idade, que som os os ún icos a defin ir,
é verd ad e iram en te , para nós, o que u n ifica o su jeito.
E o qu e é que vim os no d iá logo de Sócrates com A lceb íades? E o que
é a com p ara çã o desse h om em , le va d o ao p in ácu lo da h o m en agem
apaixonada, com um a ca ixa? Essa ca ixa m aravilhosa , com o sem pre
existiu em todo lugar on de o hom em pôde con stru ir para si objetos,
figuras do que é, para ele, o objeto central, aquele do fantasma fundam ental.
E la con tém o quê? d iz A lceb íades a Sócrates., O ayctA.ua.
C om eçam os a en trever o que esse ayaX u a é, algo que não d eve ter
uma fina relação com esse ponto central que dá^seu acento, sua d ign idade
ao ob jeto a. M as as coisas, de fato , devem sér in vertidas, no n ív e l do
objeto. Esse falo, se e le é tão paradoxa lm en te constitu ído, que é sem pre
preciso prestar m u ita a ten ção ao que é a fu nção en vo lven te e a função
en vo lv ida , c re io que é m ais no coração do aya\\ia que A lceb íades busca
isto ao qual a li e le fa z apelo, nesse m om en to em que o B a nqu ete se
con clu i, nesse algo que som os os ún icos capazes de ler, a inda que seja
ev id en te , visto que o que e le busca, is to d ian te do qual e le se prosterna,
isto a que e le fazia esse apelo im pru den te , é o que? S ócrates com o
desejan te, cuja con fissão e le quer. N o coração do ayaX\ia, o que e le
busca no ob jeto se m an ifesta com o sendo o puro eptnv, pois o que e le
quer não é nos d ize r que Sócrates é am ável, é nos d izer que o que e le
m ais desejou no m undo é ver Sócrates desejante. Essa im plicação subjetiva
m ais rad ica l, no coração do p róp rio ob jeto do desejo - on de penso que,
m esm o assim, vocês se recon h ecem um pouco, s im p lesm en te porque
vocês podem fa zê -lo en trar na ve lha gaveta do desejo do h om em e do
desejo do O utro - é a lgo qu e irem os poder apon tar m ais p rec isam en te .
Vem os que o que o organ iza é a fu nção pontual, cen tra l do fa lo. E aí,
tem os nosso velho fe iticeiro , putrefato ou não, mas fe iticeiro , certam ente,
aqu ele que sabe algo sobre o desejo , que atira nosso A lceb íades sobre
as rosas, d izen do-lh e o que? Para se ocupar de sua alm a, de seu Eu
- 402 -
Lição de 13 de junho de 1962
[m o i] , para tornar-se o que e le não é, um n eu ró tico para os sécu los
fu turos, um filh o de T h éo .
E porque? O que s ign ifica essa devo lu ção de Sócrates, para um ser
tão a d m irá v e l c om o A lc eb ía d es? N o qu e c o n c e rn e ao aYOtÀjia, é
m an ifes tam en te e le quem o é, com o acred ito ter m an ifestado d iante
de vocês, é pura e m anifestam ente que, o falo, Alcebíades o é. Simplesmente,
n in gu ém pode saber de quem ele é o falo. Para ser o fa lo , naquela
s ituação, é p rec iso ter um certo estofo. Isso não lh e faltava, certam en te,
e os en can tos de Sócrates ficam sem in flu ên c ia sobre A lceb íades , sem
dúvida algum a. E le passa, nos sécu los que segu iram da é tica teo lóg ica ,
para essa form a en igm ática e fechada, mas que O B anquete, no entanto,
nos ind ica no ponto de partida, e com todos os com plem entos necessários,
a saber, que A lceb íades, m an ifestando seu apelo de desejante no coração
do ob jeto p riv ileg iado , não faz ali ou tra coisa senão aparecer num a
posição de sedução desen freada em relação àquele que cham ei de babaca
fu n d a m e n ta l, que, para cúm ulo da iron ia , P latão con otou pelo n om e
próprio do p róprio Bem , Agatão. O B em Su prem o não tem ou tro nom e,
em sua d ia lé tica . N ão há, aí, a lgum a coisa que m ostra su fic ien tem en te
que não há nada de novo em nossa busca? E le retorn a ao in íc io para,
dessa vez, c om p reen d er tudo o que se passou desde então.
- 4 0 3 -
,
■
LIÇÃO XXV
20 de ju n h o de 1962
A prox im a-se o tem po do té rm in o deste ano. M eu d iscurso sobre a
identificação não terá podido, bem entendido, esgotar seu campo. Tampouco
pude exp erim en ta r qu a lqu er sen tim en to de te r fa lhado com vocês. Esse
cam po, de fato, a lguém no in íc io se in qu ie tava um pouco, não sem
razão, que eu tivesse esco lh ido um a tem ática que lh e parec ia p erm itir
ser in stru m en to , m esm o para nós, do tud o está em tud o . T en te i, ao
con trá rio , m ostrar-lh es o que n e le se prende de r igo r estru tura l. Eu o
fiz , partin do do segundo m odo de id en tifica ção d is tin gu ido por Freud,
aquele que acredito, sem falsa m odéstia, ter tornado doravante im pensável,
a não ser sob o m odo da fu n ção do traço unário.
O cam po em que estou , desde que in trodu zi o s ign ifica n te do oito
in terior, é o do te rce iro m odo de id en tificação , essa id en tifica çã o na
qual o su jeito se con stitu i com o desejo, e na qual todo nosso d iscurso
a n te r io r ev itava d escon h ecer que o cam po do dese jo não é con ceb íve l
para o h om em senão a partir da fu n ção do O utro. O desejo do hom em
se situa no lugar do O utro, e aí se con stitu i p rec isam en te com o esse
m o d o de id e n t i f ic a ç ã o o r ig in a l qu e F reu d n os e n s in a a sep a ra r
em p ir ica m en te - o que não s ign ifica que seu pensam en to, neste ponto,
seja em p ír ico - sob a fo rm a do que nos é dado em nossa exp eriên c ia
clínica, especialm ente a propósito dessa forma tão m anifesta da constituição
do desejo, que é a da h istérica. C onten tar-se em d izer: “há a iden tificação
id ea l e depo is há a id en tifica çã o do desejo ao d ese jo ” , isso pode servir
c e rta m en te para um p rim e iro d esem baraçam en to do negócio , vocês
d evem perceber. O texto de Freud não deixa as coisas aí, e não deixa as
- 4 0 5 -
A Identificação
coisas aí na m ed ida em que, já d en tro das obras m a iores de sua te rce ira
tópica, e le nos m ostra a re la ção do ob jeto, que só pode ser aqu i o ob jeto
do desejo, com a con stitu ição do p róp rio id ea l; e le o m ostra no p lano
da id en tific a çã o co le tiva , do que é, em sum a, um a espéc ie de pon to de
con vergên c ia da exp eriên c ia , pe lo quê a u n aridade do traço, se posso
dizer, m eu traço unário, é isso que eu gostaria de dizer, re fle te -se na
un icidade do m odelo tom ado com o aqu ele que fu n c ion a na con stitu ição
dessa ordem de rea lidade co le tiva que é a massa, se se pode dizer, com
um a cabeça , o lid e r . Esse prob lem a, por loca l que seja, é, sem dúvida,
aqu ele que o ferec ia a Freud o m elh or terreno para e le m esm o apreender,
no pon to em que e le e laborava as coisas ao n íve l da te rce ira tópica,
a lgum a coisa que, para e le , não de um a m an e ira estru tura l, m as de
certo m odo ligada a um a espéc ie de pon to de con vergên c ia con creto ,
reun ia as três form as da id en tifica ção , pois que igu a lm en te , a p rim e ira
form a, aqu ela que p e rm an ecerá em sum a na borda, no té rm in o de
nosso desen vo lv im en to deste ano, aquela que se ordena com o a prim eira ,
a m ais m isteriosa tam bém , ainda que a p rim e ira aparen tem en te trazida
à lu z da d ia lé tica an a lítica , a id en tific a çã o com o pai, está ali, nesse
m od e lo da id en tific a çã o com o líd e r da m u ltidão, e está ali, de a lgum a
form a, im p licad a sem estar de m odo algum im plicada , sem estar de
m odo algum in c lu íd a na d im en são total, na sua d im en são in teira .
A id en tific a çã o com o pai fa z entrar, com e fe ito , em questão, a lgum a
coisa de que se pode d ize r que, ligado à trad ição de um a aven tu ra
propriamente histórica, ao ponto que nós podemos provavelm ente identificá-
la à própria h istória , isso abre um cam po que nem sonham os, este ano,
inclu ir em nosso interesse, por falta de dever estar nisto verdadeiram en te
absorvido por com p leto . Tom ar p r im e iro por ob jeto a p rim e ira form a
de id en tific a çã o teria sido engajar, por com p leto , nosso d iscurso sobre
a id en tifica ção nos prob lem as de Totem e Tabu, a obra an im adora para
Freud, que bem podem os d ize r ser, para e le , o que se pode cham ar de
die Sache selbst, a p róp ria coisa, e da qual se pode tam bém d ize r que
ela p erm an ecerá , no sen tido h ege liano , isto é, na m ed id a em que, para
H ege l, d ie Sache selbst, a obra, é, em sum a, tudo o que ju s tifica , tudo
em que m erece substitu ir esse su je ito que não fo i, que não viveu , que
não sofreu , que im porta , só essa ex te r io r iza çã o essen cia l com um a via
para e le traçada de um a obra, está ai, de fato, o que se o lha e que ela
quer p erm an ecer sozinha, fen ôm en o em m ov im en to da con sc iên c ia . E,
- 4 0 6 -
Lição de 20 de junho de 1962
sob esse ângu lo, pode-se dizer, de fato, que tem os razão, que estaríam os
errados, sobretudo por não id en tific a r o legado de Freud, se fosse à sua
obra que e le devesse lim itar-se , ao Totem e Tabu.
Pois o d iscurso sobre a id en tificação , que percorr i este ano, pe lo que
e le con stitu i com o apare lho opera tór io - c re io que vocês d evem estar
no pon to de com eça r a co lo cá -lo em uso - vocês podem , ainda, antes
de sua provação, ap rec ia r a sua im portân c ia , que não poderia deixar
de ser ex trem a m en te decis iva , em tudo o que é cham ado na a tualidade
de uma fo rm u lação u rgen te, em p rim eiro lugar, o fantasm a. Eu insistia
em m arcar que estava ali a etapa prévia essencial, exig indo absolutam ente
um a an teced ên c ia p rop riam en te d idática , para que possa se articu lar
con ven ien tem en te a falha, a falta, a perda em que estam os para poderm os
nos referir, com a m ín im a con ven iên c ia , ao que está em causa a respeito
da fu nção paterna.
Faço alusão m u ito p rec isam en te àqu ilo que podem os qu a lifica r com o
a a lm a do ano de 1962, aqu ela onde pub licaram dois livros de C laude
Lévi-S trauss: O To tem ism o e O Pensam ento Selvagem . A c red ito qu e não
hou ve um ú n ico analista que tenha tom ado con h ec im en to disso, sem
se sen tir ao m esm o tem po, para aqu eles que seguem o ensino daqui,
forta lecido, seguro e sem encontrar ali o com plem ento... Pois, certam ente,
e le tem o ensejo de estender-se em cam pos que só posso trazer aqu i
por alusão, para m ostrar-lhes o caráter radical da constitu ição sign ificante
em tudo o que é, digamos, da cultura, ainda que, de certo , e le o sublinha,
não é m arcar ali um dom ín io cuja fron teira seja absoluta. Mas, ao m esm o
tempo, no interior de suas tão pertinentes exaustões do m odo classiíicatório,
do qual se pode d ize r que o pensam en to se lvagem é m en os in stru m en to
do que, de certa form a, o p róprio e fe ito , a fu n ção do to tem parece
in te ira m en te redu zida a essas oposições s ign ifican tes . Ora, é c laro que
isso não poderia se reso lver senão de um a m an eira im pen etráve l, se
nós, analistas, não fôssem os capazes de in tro d u zir aqu i a lgum a coisa
que seja do m esm o n íve l que esse d iscurso, a saber, com o esse d iscurso,
um a lóg ica . E essa lóg ica do desejo , essa lóg ica do ob jeto de dese jo cu jo
instrum ento lhes de i esse ano, designando o aparelho pelo qual podem os
a p reen der a lgum a coisa que, para ser válida, só pode ter sido desde
sem pre a verdadeira an im ação da lógica, quero d izer ali onde, na h istória
de seu progresso, e la se fe z sen tir com o algo que abria ao pensam en to .
- 4 0 7 -
A Identificação
N ão é m en os verdade que esse m ecan ism o secreto pode ter ficad o
m ascarado, qu e lóg ica e le não in teressou , não im p licou o m ov im en to
desse m undo, o que já é algum a coisa; é cham ado m u n d o do pen sa m en to ,
n u m a certa d ireção que, por m ais cen tr ífu ga que seja, não era, a inda
assim , m en os d eterm in ad a por algo que se re fe r ia a um certo tipo de
ob jeto que é aqu ele pe lo qual nos in teressam os, no m om en to . O que
d e fin i, na ú ltim a vez, com o o ponto, o pon to <t> nu m a certa m an eira
nova de d e lim ita r o c írcu lo de con otação do ob jeto , é o que nos co lo ca
no lim ia r de ter, an tes de de ixá-los este ano, que co lo ca r a fu nção desse
p on to <t>, am bíguo, já lh es disse, não som en te na m ed iação , m as na
con stitu ição , um a à ou tra in eren tes - não apenas com o o avesso va le ria
o d ire ito , m as com o um avesso, eu lhes disse, que seria a m esm a coisa
que o d ire ito - do $ e do pon to a no fantasm a, no reco n h ec im en to do
que é o ob jeto do desejo hum ano, a partir do desejo, no reco n h ec im en to
do porquê, no desejo , o su je ito não é m ais que o corte desse ob jeto, e
com o a h istória ind iv idua l, esse su jeito que discursa onde esse in d iv ídu o
está apenas con tido, é orien tada , po la rizada por esse pon to secreto , e
ta lvez, em ú ltim a instânc ia jam a is acessíve l, se é que se deva ad m itir
c o m Freud, p o r um tem po , ao m en os , na ir re d u tib ilid a d e de um a
U rv e rd rã n g u n g , a ex is tên c ia desse um bigo do desejo , no sonho, sobre
o qual e le fala, na T ra u m d e u tu n g . É disso que não podem os om itir a
fu n ção em toda ap rec iação dos term os nos quais decom pom os as faces
desse fen ôm en o nuclear.
E is porque, antes de retom ar a c lín ica , sem pre m u ito fá c il para nos
reco loca r nas trilhas de verdades, a cu jo estado ve lado nos acom odam os
m u ito bem , a saber, o que é o ob jeto do desejo para o n eu ró tico , ou
ainda para o perverso, ou ainda para o ps icótico? N ão é isso, essa co leção
de am ostras, essa d ivers idade das cores que jam a is serv irá senão para
nos fa ze r perder cartas que são in teressan tes ...“ Torna-te o que tu é s ” ,
d iz a fórm u la da trad ição clássica . É poss íve l...vo to p iedoso. O qu e é
assegurado é que tu te tornas o que tu descon h eces . A m an eira com o o
su jeito d escon h ece os term os, os e lem en tos e as fu n ções en tre as quais
se jo ga a sorte do desejo, e xa ta m en tf r a m ed id a em que, em algum
lugar, lhe aparece, sob um a fo rm a desvelada, um de seus term os, é
aqu ilo pelo que cada um daqueles que tem os nom eado neurótico, perverso
e p s icó tico , é norm al. O p s icó tico é norm al em sua psicose, e a lém do
m ais, porque o ps icó tico , em seu desejo , se depara com o corpo. O
- 4 0 8-
Lição de 20 de junho de l lJb2
perverso é norm al em sua perversão, porque ele se depara em sua variedade
com o fa lo , e o n eu ró tico , porqu e se depara com o Outro, o grande
O utro com o tal. E n isso que eles são norm ais, porque são os três term os
n orm ais da con stitu ição do desejo . Esses três term os, é claro, estão
sem pre presentes. N o m om en to , não se trata de que eles estejam em
qu a lqu er um desses su jeitos, mas aqui, na teoria . É por isso que não
posso avançar em linha reta; é que, a cada passo, m e vem a necessidade
de re fa ze r com vocês um balanço , não tanto num a tal preocu pação de
que vocês m e com preen dessem ...
“ Será que você está assim tão preocu pado em ser co m p reen d id o? ” ,
m e d izem , de v e z em quando, são am ab ilidades que escu to em m inhas
análises. E viden tem ente, sim. Mas o que faz a d ificu ldade é a necessidade
de fa zê -los ver que, nesse d iscurso, vocês estão inc lu ídos. E a partir
daí que e le pode ser enganador, porque vocês estão ne le in c lu ídos, de
qu a lqu er m an eira . E o e rro pode v ir u n ica m en te da m an e ira com o
vocês con cebem que estão nele inclu ídos. F iquei m uito espantado, on tem
de m anhã, na hora em que a g reve da e le tr ic id a d e a inda não tinha
com eçado , ao le r o trabalho de um de m eus alunos sobre o fantasm a.
M eu Deus, nada m al. E c la ro que ainda não é a co lo cação em ação dos
aparelhos de que fa le i, m as en fim , o sim ples co te jam en to das passagens
de Freud, nas quais e le fa la do fantasm a de m an eira absolu tam en te
gen ia l... Q uando se pergun ta qual pertin ên c ia , na ausência de tudo o
que se pode dizer, essas aberturas con d ic ion aram depois; de on de a
p rim e ira fo rm u lação pode ter en con trado essa p ertin ên c ia para ficar,
de algum m odo, agora, m arcada pela punção m esm a que é aquela que
ten to iso la r das coisas? Essa pulsão que se fa z sen tir do in te r io r do
corpo, esses esquem as in te iram en te estru turados por essas prevalências
topológicas, é apenas nisso que está o acento. Com o defin ir o que funciona
da chegada do ex te r io r e da chegada do in ter io r? Q u e in c r ív e l vocação
de achatam ento fo i necessária, nisso que podem os cham ar de m entalidade
da com unidade analítica, para acreditar que é a referên cia ao que chamam
de instânc ia b io lóg ica ! N ão que eu esteja d izen do que um corpo, uin
corpo v ivo - não estou b rin can do - não seja uma rea lidade b io lógica ,
s im p lesm en te fa zê - lo fu n c io n a r den tro da topo log ia freud iana com o
topo log ia , e ve r aí não sei qual b io log ism o que seria rad ica l, inaugural,
co -ex ten s ivo da fu n ção da pulsão, é isso que fa z ali toda a extensão,
toda a abertura do que se cham a de con tra-senso, um con tra-senso
(
iÇíck(
kt
jtk!(r
íc■
jtG
- 4 0 9 -
A Identificação
absolu tam en te m an ifes to nos fatos, a saber, que, com o não é p reciso
ressaltar, até nova ordem , quer dizer, a revisão que esperam os na biologia,
não houve traço de um a descoberta b io lóg ica , nem fis io lóg ica , nem
m esm o estesiológica, que tenha sido feita pela via da análise -es tes io lóg ica ,
isto qu er d ize r um a descoberta sensoria l, a lgum a coisa que se tivesse
pod ido en con tra r de novo na m an eira de sen tir as coisas. O que faz
con tra -sen so é m u ito c laro de defin ir, é que a relação da pulsão com o
corpo está em toda parte m arcada em Freud, topo log icam en te . Isto
não tem sequ er o va lor de retorno, a id é ia de um a d ireção , do que uma
descoberta de um a pesquisa b io lógica .
E b em certo que esse o que é u m co rp o? , vocês sabem , não é nem
m esm o uma idéia esboçada no consenso do m undo filosofante, no m om ento
em que Freud esboça sua p rim e ira tóp ica . Toda a noção do D ase in é
pos ter io r e con stru ída para nos dar, se posso dizer, a id é ia p rim itiva
que se pode ter do que é um corpo, com o de um ali, con stitu in te de
certas d im en sões de presença, e não quero re fa ze r H e id egger, porque,
se lh es fa lo disso, é que logo vocês vão ter esse texto que eu lhes disse
que é fác il, acred item . Em todo caso, a fa c ilid ad e com qu e o lem os
agora prova bem que o que e le lançou na corren te está p e rfe ita m en te
em circulação. Essas dim ensões de presença, seja com o for que as cham em
de o M its e in , esse estar-a li e tudo o que vocês qu iserem , In -d e r-W e lt-
s e in , todas as m u ndan idades tão d iferen tes e tão d istintas, pois trata-
se ju s tam en te de d istingu i-las do espaço la tu m , lon gu m e p ro fu n d u m , o
qual não tem d ificu ldade de nos m ostrar que não está ali senão a abstração
do objeto, e porque tam bém isso se p ropõe com o tal nesse D escartes
que co loqu e i, este ano, no in íc io de nossa exposição , a abstração do
ob jeto com o subsistente, isto é, já ordenado em um m undo que não é
s im p lesm en te um m undo de coerên c ia , de consistência , m as en u cleado
do objeto do desejo com o tal. Sim , tudo isso fa z em H e id egger adm iráveis
irrupções em nosso m undo m ental. D eixem -m e d izer-lhes que, se existem
pessoas qu e não d evem estar satis fe itas em nen h u m grau com isso, são
os psicanalistas, sou eu. Essa re fe rên c ia , sem dúvida sugestiva, ao que
cham arei - não vejam nisso qu a lqu er ten tativa de reba ixar o que se
trata - um a p ra x is a r t is a n a le , fu n dam en to do ob je to -u tens ílio , com o
descobrindo certam en te no m ais a lto grau essas prim eiras d im en sões
da presença tão sutilmente destacadas que são a proxim idade, o afastamento,
com o con stitu indo os p rim eiros lin eam en tos deste m undo, H e id egg er
- 4 1 0 -
Lição de 20 de junho de 1962
o deve bastante, e le m esm o m e disse, ao fa to de que seu pai fo i tanoeiro.
Tudo isso nos reve la algo com o quê a p resença tem em in en tem en te a
ver, e ao quê nos agarraríam os bem m ais apa ixonadam en te, co locan do
a questão de saber o que tem de com um todo instrum ento , a co lh er
prim itiva, a prim eira m aneira de tirar, de retirar algum a coisa da corren te
das coisas, o que ela tem a ve r com o in stru m en to do s ign ifican te?
Mas, a fina l de contas, não está tudo, para nós, descen trado desde o
in íc io? Se isso tem um sentido, o que Freud traz, a saber, que no coração
da con stitu ição de todo ob jeto ex iste a lib ido, se isso tem um sentido,
isso s ign ifica que a lib ido não seja s im p lesm en te o ex ced en te de nossa
presença práxica [p ra x iq u e ] no m undo, o que é desde sem pre a tem ática,
e o qu e H e id eg g e r res tabe lece , pois, se a Sorge é a p reocu pação , a
ocupação, é isso que ca rac teriza essa presença do hom em no m undo,
isso sign ifica que, quando a preocupação se relaxa um pouco, com eçam os
a trepar, o que, com o sabem, é o ensino de alguém que escolh i, rea lm ente,
sem qu a lqu er escrúpu lo , e com um esp írito de po lêm ica , pois é um
am igo, senhor Alexander. O senhor A lexander tem , aliás, seu lugar m u ito
h on oráve l nesse con certo , s im p lesm en te um pou co caco fôn ico , que se
pode cham ar de discussão teórica na soc iedade psicanalítica am ericana.
E le tem seu lugar de p leno d ireito , porque parece e v id en te que seria
um pouco fo rte que não se pudesse perm itir, em um a soc iedade tão
im portan te e o fic ia lm en te constitu ída com o essa Associação am ericana,
re je ita r o que co in c id e rea lm en te tão bem com os ideais, com a prática
de um a área, que se cham a de cu ltural, d eterm inada . Mas, en fim , está
c la ro que m esm o ao esboçar uma teoria do fu n c ion am en to lib id in a l
com o sendo con stitu ído com a parte ex ced en te de um a certa energ ia ,
quer a ca rac terizem os de en erg ia de sob rev ivên c ia ou qu a lqu er outra,
é absolutam ente negar todo o valor, não s im plesm ente n oético [n o é tiq u e ],
m as a razão de ser de nossa fu nção de terapeu tas, tal com o d e fin im o s
seus term os e sua m eta. Q ue, no geral, nos acom odem os na p rá tica
m u ito bem , nos ocu pem os m u ito bem de reco n d u zir as pessoas à suas
ocupações, certam en te , apenas o que há de certo , é que m esm o quando
designam os esse resu ltado sob a form a de sucesso terapêu tico , sabem os
ao m en os o segu in te , das duas uma: - ou que o fizem o s fo ra de toda
espéc ie de via p rop riam en te analítica , e então, aqu ilo que c lau d icava
no coração do n egóc io , pois é disso que se trata, con tinu a a c lau d ica r
- ou en tão que, se nós ch egam os lá, é ju s tam en te em toda a m ed ida ,
- 4 1 1 -
A Identificação
apenas o bê-á-bá do que se nos ensina, es tivem os alhures, na d ireção
do que c laud icava , do que tocava, no centro, o nó lib id ina l. É por isso
que todo resu ltado sancionãvel, no sen tido da adaptação - perdão, estou
fa zen d o um p equ en o desvio por essas bana lidades, m as há bana lidades
qu e é p rec iso sem pre recordar, sobretudo porque, a fina l, recordadas de
um a certa m aneira , as bana lidades podem , às vezes, passar por pouco
bana is - todo sucesso terapêu tico , is to é reco n d u zir as pessoas ao bem -
estar da sua Sorge, de suas p equ enas ocupações, é sem pre, para nós,
m ais ou m en os - no fu n do o sabem os, é por isso que não tem os que
nos gabar disso - um quebra galho, um álib i, um desvio de fundos, se
posso m e exp r im ir assim . D e fato, o que é a inda bem m ais grave, é que
nós nos in terd itam os de fa ze r m elhor, sabendo que essa ação, que é a
nossa, da qual vez por outra podem os nos gabar com o de um êxito , é
fe ita por vias que não con cernem o resultado. Graças a essas vias trazem os
- num lugar com plem entar que elas não concernem , senão por ressonância
- retoques, é o m áxim o do que se pode dizer.
Q uando é que nos a con tece reco loca r um su jeito em seu desejo? É
um a questão que co loco àqu eles aqu i que têm algum a exp eriên c ia com o
analistas, ev id en tem en te , não aos ou tros. Será con ceb ív e l que um a
análise tenha com o resu ltado fa ze r um su jeito en trar em desejo , com o
se diz, en trar em transe, no cio, na relig ião? É por isso que m e p erm ito
co lo ca r a questão em um pon to loca l, o ún ico, a fina l de con tas, que
seja decisivo, porque não som os apóstolos, é, se essa questão não m erece
ser preservada quando se trata de analistas, pois para os outros, o problem a
co lo ca do é: o que é o desejo , para que e le possa subsistir, p ers is tir
nessa posição paradoxal? Pois, en fim , está bem claro que de m odo algum
não em ito , com isso, senão o voto de que o e fe ito da análise vá en con trar
aqu ele rea lizado desde sem pre pelas sessões m ísticas, cujas operações
fam osas, sem dúvida enganadoras, freq ü en tem en te duvidosas, em todo
caso, na m a io r p a rte do tem po , não são aqu ilo em que lh es p eço
esp ec ia lm en te qu e se in teressem , a inda que não seja para situá-los
com o ocupan do esse lugar g lobal de con du zir o su je ito num cam po
que não é ou tra coisa senão o cam po de seu desejo.
E, para resum ir, passando m eu ú ltim o fim de sem ana por um a série
de saltos, ten tando ver o sen tido de algum as palavras da técn ica m ística
m uçu lm ana, eu tinha aberto rssas coisas que eu praticava num a certa
época, com o todo m undo. Q i m não deu um a olhada nesses in d igestos
- 4 1 2 -
Lição de 20 de junho de 1962
e en fadonhos livrinhos de h indu ísm o, de filoso fia , de não sei qual ascese,
que nos são dados num a term inologia poeirenta e em geral incompreendida,
digo, tão m e lh o r com p reen d id a quanto m ais bu rro fo r o transcritor! E
p or isso que são os trabalhos in g leses que são os m elh ores. Sobretudo
não le iam os trabalhos a lem ães, por favor, e les são tão in te ligen tes ,
que aqu ilo se transform a im ed ia ta m en te em Schopenhauer.
E depo is ex is te R en é G u énon , de quem fa lo porqu e é um curioso
lugar geom étrico . Vejo, no nú m ero de sorrisos, a proporção de pecadores!
Juro que, em dado m om en to , no in íc io deste sécu lo do qual faço parte
- não sei se con tinua , m as ve jo que esse n om e não é d escon h ec ido ,
p ortan to deve con tin u a r - toda a d ip lom acia fran cesa en con trava em
R en é Guénon, esse im becil, seu m estre pensante. Vocês vêem o resultado!
É im possíve l abrir um a de suas obras, sem achar ali nada a fazer, pois
o que e le sem pre diz, é que e le deve se calar. Isso tem um charm e
p ro vave lm en te in ex tin gu íve l, pois o resu ltado é que, graças a isso, todo
tipo de pessoas, que p rovave lm en te não tinham m u ito que fa ze r - com o
d iz ia B riand: “ Vocês bem sabem que não tem os po lítica exterior, pois o
d ip lom ata deve estar num a a tm osfera um pouco ir re sp irá ve l” - pois
bem , aqu ilo os ajudou a fica r em sua concha.
E n fim , tudo isto não é para d ir ig i-los ao h in du ísm o, mas, apesar de
tudo, um a v e z qu e m e en con tro , não posso d ize r re len do , porque jam a is
os li, os textos h indus, e, com o lhes disse, é sem pre m u ito enganador
desde o in íc io , m as acabo de rever, transcritas, cotejadas, coisas bem
m a is a c e s s ív e is da té c n ic a m ís t ic a m u ç u lm a n a , p o r a lg u ém
m aravilhosam ente inteligente, ainda que apresentando todas as aparências
da lou cu ra , que se cham a Sr. L ou is M assignon - eu d igo as aparências
- e se re fe r in d o ao bud i [b o u d d h i], a p ropós ito da e lu c idação desses
term os, o pon to que e le ressalta da fu nção term o - quero dizer, que é o
p en ú ltim o lim ia r a u ltrapassar que dá ao bud i com o o ob jeto, porque é
o que isto quer dizer, que, b em en ten d ido , não está escr ito em lugar
nenhum , salvo no texto de M assignon, onde e le encon tra sua equ ivalência
com o M an sü r da m ística x iita - a fu nção do ob je to com o sendo o
pon to g iran te , ind ispensáve l, dessa con cen tração , para ch egar a term os
m eta fó r ico s da rea lização sub jetiva de que se trata, que não é, a fina l,
senão o acesso a esse cam po do desejo que podem os cham ar de desejante
e nada m ais. E qual é e le , esse dese jan te? E ce rto que aqu eles que são
os o fic ian tes do dom ín io já bem con stitu ído, que cham ei, na últim a
A Identificação
( )
(
( >
( ,
(
( )
( ;
() o <■ (
( :
vez, de aqu e le de T h éo , de on de n a tu ra lm en te a suspeita, a exclusão ,
o odor de en x o fre de que está cercada , em todas as re lig iões , a ascese
m ística . O que qu er que seja a re la çã o articu lada , nessa fase, na fase
que se pode cham ar de acabam ento da invo lução, da assunção do su jeito
em um ob jeto - esco lh ido , aliás, por técn icas m ísticas com um a ordem
m u ito arb itrária , isso pode ser um a m ulher, isso pode ser um a ro lh a de
garra fa - m e p arec ia co in c id ir p e rfe ita m en te com a fó rm u la $ 0 a, tal
com o a fo rm u lo com o dado, com o a form a lização m ais sim ples que nos
seja p erm itido atingir no con tato com as d iversas form as da c lín ica , isto
é, porque é necessário presum ir da estrutura desse ponto
central, tal como nós podemos construí-la necessariamente
para dar con ta das am bigü idades de seus e feitos .
O trabalho ao qual eu fa z ia alusão, há pouco , que
li on tem de m anhã, se d ed icava a re tom ar - é p rec iso
que as coisas sejam d igeridas - um cap ítu lo que eu
tratara há m u ito tem po, a saber, a estru tura do H om em
dos lobos, à luz especia lm ente da estrutura do fantasma.
A coisa está, de fato , bem apanhada nesse trabalho.
Todavia, em relação às p rim eiras form u lações, aquelas
que fiz antes de lhes ter trazido os aparelhos recen tes,
m ostra pou co p roveito , m as e la m e designa em que
ponto, afinal, vocês seguem o que posso, aqui, m ostrar-
lh es c om o lu ga r a u ltrapassar. R e to m e m o s , po is,
s im p lesm en te para apon tá-lo , não é um a crít ica , esse
trabalho. H averia m uitas outras a fa ze r e seria p reciso
que vocês con h ecessem o qu e e le d eve d ifund ir, o
que eu acharia desejável. A d e fin ição lóg ica do objeto,
que m e perm ito cham ar de lacan iano, neste m om en to
- pois não é a m esm a coisa que fa la r de lacan ism o
execrado , do ob jeto do desejo - sua fu nção lóg ica com
esse ob jeto não se p ren de, é o que designa a n ov idade
do p equ en o c írcu lo com o qua l os ensino a estre itá -
lo, d izen do-lh es que e le é essen c ia lm en te con stitu ído
pela p resença desse pon to qu e está ali, seja den tro
de seu cam po cen tra l, seja no lim ite desse cam po, até
m esm o aqui, pois esses três casos são os m esm os, com o
redução ú ltim a do cam po, sua fu n ção lóg ica não se
1 1
P O/ ,
- 4 1 4 -
Lição de 20 dejunhó de 1962
deve n em à sua exten são, n em à sua com preen são , pois sua extensão,
se pode designar a lgum a co isa com esse term o, se m an tém na fu nção
estru tu ran te do pon to. Q uan to m ais esse cam po é pu n ctifo rm e, m ais
e fe ito s há, e esses e fe itos são, por assim dizer, de inversão. À lu z desse
p rin c íp io , não há prob lem a, no que con cern e ao que Freud nos fo rn eceu
com o rep rodu ção do fan tasm a do H om em dos lobos. Vocês con h ecem
essa árvore, essa gran de árvore, e os lobos que não são absolu tam en te
lobos, em p o le irad os nessa árvore, em n ú m ero de c in co , en qu an to que
alh ures se fa la de sete ... Se p recisássem os de um a im agem exem p la r
do que é o pequ en o a aqui, no lim ite do cam po, quando sua rad ica lidade
fá lica se m an ifesta por um a espéc ie de s ingu laridade com o acessíve l,
a li on de som en te e la pode nos aparecer, isto é, quando ela se aproxim a,
ou quando e la pode se ap rox im ar do cam po ex tern o , do cam po do que
pode se refle tir , do cam po daqu ilo dentro do qual uma s im etria pode
p erm itir o e rro especular, nós a tem os ali. Pois está claro, que ao m esm o
tem po em que aqu ilo não é, certam en te, a im agem especu lar do H om em
dos lobos , qu e está a li d ian te de le, e que, no en tan to , - a liás, já o
m arcam os há m u ito tem po, para que isso não seja um a n ov idade , -
para o autor do trabalho de que fa lo, é a p rópria im agem desse m om en to
que v ive o su je ito com o cen a prim itiva . Q u ero d ize r que é a p rópria
estru tura do su jeito , d ian te dessa cena. Q u ero d ize r que, d ian te dessa
cena, o sujeito se torna lobo olhando, e se torna c inco lobos olhando. O
que se abre, subitam ente, para ele nessa no ite de Natal é o retorno do que
ele é, essencia lm ente, no fantasma fundam enta l. Sem dúvida, a própria
cena em questão é velada - voltarem os daqui a pouco sobre esse véu
daquilo que ele vê só em erge esse V em asas de borboleta, das pernas
abertas de sua m ãe, ou o V rom ano da hora do relógio , essas c inco horas
do verão quente no qual parece ter-se dado o encontro. Mas o im portante
é que o que e le vê, em seu fantasma, é $ barrado, e le m esm o, na m edida
em que e le é corte do pequeno a. Os pequenos a, são os lobos.
E, se passo por isso, ho je, é porque, ao lado de um d iscu rso d ifíc il,
abstrato, e que m e desespero de poder levar, nos lim ites em que estam os,
aos seus ú ltim os deta lhes, esse ob jeto do desejo ilustra-se aqu i de um a
m an eira qu e m e p erm ite a ced er im ed ia tam en te a e lem en tos con cre tos
de estru tura que eu teria m aneiras m ais d idáticas de lhes expor. M as
não tenh o tem po e passo ad ian te. Esse ob jeto não especu lar, que é o
objeto do desejo, esse objeto que pode se encon trar nessa zona fron te iriça ,
- 4 1 5 -
A Identificação
em fu n ção de im agen s do su jeito , d igam os, para andar ráp ido , a inda
que aí eu corra riscos de con fu são, no espe lh o que con stitu i o gran de
Outro, digam os, no espaço desenvo lvido pelo grande Outro, pois é preciso
re t ira r esse espe lh o para fa ze r d e le , en tão, essa espéc ie de espe lh o que
cham am os, sem dúvida, não por acaso, de fe it ic e ira , quero dizer, esses
espe lh os com um a certa con cavidade, que com portam em seu in te r io r
um ce rto n ú m ero de ou tros, c on cên trico s , nos quais vocês vêem sua
p róp ria im agem re fle t id a tantas vezes quantas h ou ver desses espe lh os
den tro do grande. E que está bem ali o que se passa; vocês têm p resen te,
no fantasm a, o que não é ta lvez d e fin ív e l, acessíve l, senão pelas vias
de nossa exp eriên c ia , ou ta lvez, não sei nada disso, e m e p reocu po um
pou co com isso ainda assim , pe las vias das exp eriên c ia s a que f iz alusão
ainda agora, o que é da natureza do objeto do desejo - e isso é interessante,
porqu e é uma re fe rên c ia lóg ica - o ob jeto con otado , m arcado pelos
c írcu los de Euler, é o ob jeto dessa fu n ção que se cham a de classe. Eu
lhes m ostrarei sua relação estreita , estru tural, com a função de privação,
qu ero d ize r o p r im e iro desses três term os qu e a rticu le i com o p r iv a ç ã o -
fru s tra ç ã o -ca s tra çã o .
Apenas, o que ve la com p le tam en te a verdade ira fu n ção da p rivação ...
a inda que se possa abordá-la, é daí que parti, para fa ze r para vocês o
esquem a das proposições un iversa is e particu lares; lem brem -se, quando
lhes disse “ todo pro fessor é le tra d o ” , isso não sign ifica que ex iste apenas
um professor. A coisa é sem pre ve ríd ica , con tudo. O m oto r da p rivação ,
da privação com o traço unário , com o con stitu in te da fu n ção da classe,
está a li su fic ien tem en te in d icado. M as tal é a fu n ção da razão d ia lé tica ,
não desagrada ao senhor Lév i-S trau ss , que crê que e la não passa de
um caso particu lar da razão an a lítica , é que ju s tam en te e la não p erm ite
ap reen der suas fases se lvagens senão a partir de suas fases e laboradas.
O ra, isso não é para di/.er que u lóg ica das classes seja o estado selvagem
da lóg ica do ob jeto do desejo. Se se pode es tab e lecer uma lóg ica das
classes - vou ped ir-lh es para d ed ica r nosso p róx im o en con tro a esse
ob jeto - é porque ex istia o acesso que a gen te se recusava a um a lóg ica
do ob jeto do desejo ; em ou tras palavras, é à lu z da ca s tra çã o que se
pode com p reen d er a fe cu n d id a d e do tem a p riva tivo . O que eu quis
in d ica r-lh es apenas, ho je, é essa fu n ção que, há m u ito tem po, eu havia
m arcado para m ostrá-la a vocês com o exem p la r das in c id ên c ia s m ais
decis ivas do s ign ifican te , até m esm o as m ais cru éis na vida hum ana,
— 416 —
Lição de 20 de junho de 1962
quando lhes d iz ia que, o c iú m e, o c iúm e sexual ex ige que o su jeito
saiba contar. As leoas da p equ en a tropa leon in a que eu retratava para
vocês, em não sei qual zoo lóg ico , não eram m an ifes tam en te cium entas
um a da ou tra , porqu e elas não sabiam contar. Tocam os, aí, em algum a
coisa, é que é bastante provável que o objeto, tal com o e le está constitu ído
no n ív e l do desejo, qu er dizer, o ob jeto em fu n ção não de privação, mas
de castração, só esse ob jeto rea lm en te pode ser n u m érico . N ão estou
certo de que isso baste para a firm ar que e le é con táve l, mas, quando
digo que e le é n u m érico quero d ize r que e le porta o n ú m ero consigo
com o um a qua lidade.
Pode-se não estar certo de qual; ali, e les são c in co no esqu em a e
sete no texto, m as que im porta , e les não são ce rta m en te d oze ! Q uando
m e aven tu ro em in d icações sem elhan tes, o que é que o p erm ite? Aqu i
eu não corro riscos, com o em um a in terp reta ção arriscada, espero a
resposta. Q u ero d ize r que, in d ican do-lh es essa corre lação , p roponho
que vocês se apercebam de tudo quanto poderiam d e ixar passar de sua
con firm ação ou de sua in firm a çã o even tu a l no que se apresenta, no
que se p ropõe a vocês. C laro , vocês podem con fia r em m im , fo rc e i um
p ou qu in h o m ais o estatu to dessa relação da ca tegoria do ob jeto , do
ob jeto do desejo , com a nu m eração. Mas, o que fa z com que eu esteja
aqu i num cam in h o fác il, é que posso m e dar um tem po, m e con ten ta r
em d izer a vocês que irem os rever isso em seguida, sem que, no entanto,
fique m enos legítim o indicar-lhes ali um ponto de referência cuja retom ada
por vocês pode esc la rece r certos fatos. Em todo caso, na pena de Freud,
o que vem os, nesse n íve l, é um a im agem ; a lib ido do su jeito - nos d iz
e le - saiu estourada da exp eriên c ia , z e rs p lit te r t [despedaçada ], z ers tö rt
[destru ída ]. M eu caro am igo L ec la ire não lê o a lem ão, e le não co locou
en tre parên teses o term o a lem ão, e eu não tive tem po de ir verificá -lo .
E a mesma coisa que o termo splitLin<i, refendido. O objeto aqui manifestado
no fantasm a carrega a m arca disso que cham am os, em m uitas ocasiões,
de refendas do su je ito .
O que encon tram os é certam en te, aqui, no próprio espaço, topológico,
que d e fin e o ob jeto do desejo , é p rovável que esse n ú m ero in e ren te não
seja senão a m arca da tem poralidade inaugural que constitu i esse cam po.
O que ca rac teriza o dup lo laço é a repetição , d igam os, rad ica l; ex iste
em sua estru tura o fato de duas vezes a volta, e é o nó assim constitu ído,
nessas duas vezes a volta, é, ao m esm o tempo, esse e lem ento do tem poral,
- 4 1 7 -
A Identificação
tem pora l v isto que, em sum a, p e rm an ece aberta a questão da m an eira
com o o tem po desen vo lv ido , que fa z parte do uso corren te , on de nosso
discurso aí se in sere , m as é tam bém esse term o essencia l p e lo qual a
lóg ica aqu i con stitu ída se d iferen c ia de um a m an eira de fa to verdade ira
da lóg ica fo rm a l, tal com o e la subsistiu in tacta em seu prestíg io, até
Kant. E o p rob lem a está ai, de on de vinha esse prestíg io, estando dado
seu caráter absolu tam en te m orto, aparen tem en te, para nós? O prestíg io
dessa lóg ica estava in te iram en te n isso a que nós m esm os a reduzim os,
a saber, o uso das letras.' Os pequenos a e os pequenos b do su jeito e do
pred icado e de sua inc lusão rec íp roca , está tudo ali. Isso n u nca trouxe
nada a n in gu ém , isso jam a is fe z o pensam en to fa ze r o m en or progresso,
isso perm aneceu fascinante durante séculos, com o um dos raros exem plos
que nos era dado da p o tên c ia do pensam en to. Por que? E le não serve
para nada, mas poderia servir para algum a coisa. Bastaria, o que fazem os,
n e le res ta be lecer o segu in te , isso que é, para e le , o d escon h ec im en to
con stitu in te : A = A é a í p rin c íp io de id en tidade, eis o seu prin c íp io .
N ão d irem os A, o s ign ifican te , senão para d izer que não é o m esm o
A m aiúscu lo. O s ign ifican te , por essência , é d ife ren te de le m esm o, quer
d izer que nada do su jeito poderia aí se id en tificar, sem se exc lu ir de le.
Verdade m u ito s im ples, quase ev iden te , que basta por si só para abrir a
possib ilidade lóg ica da con stitu ição do ob jeto no lugar desse s p lit t in g ,
no próp rio dessa d ife ren ça do s ign ifica n te com e le m esm o, em seu
e fe ito subjetivo. C om o esse ob jeto con stitu in te do m undo hum ano...
pois trata-se de m ostrar-lh es que, lon ge de ter a m en or aversão por
esse fa to de ev id ên c ia ps ico lóg ica , o ser hum ano é suscetíve l de tomar,
com o se d iz, seus desejos por rea lidades, é aí que d evem os segu i-lo ,
pois, com o e le tem razão, de saída, não é em n en h u m ou tro lu gar senão
no su lco aberto por seu desejo que e le pode con stitu ir um a rea lidade
qualquer, que ca i ou não no cam po da lóg ica . É daí qu e re tom are i na
p róxim a vez.
LIÇÃO XXVI
27 de ju n h o de 196 2
H oje , n o quadro do ensino teór ico que terem os con segu ido p erco rrer
ju n tos , este ano, in d ico -lh es que é preciso esco lh er m eu eixo, por assim
dizer, e que c o lo ca re i o acen to sobre a fó rm u la suporte da te rce ira
esp éc ie de id en tific a çã o qu e destaqu ei para vocês há m u ito tem po,
desde o tem po do gra fo , sob a fo rm a de S b a rra d o , que vocês sabem ler,
agora, com o co rte do pequeno a. N ão sobre o que aí está im p líc ito , o
que é nodal, a saber, o (p, o pon to graças ao qual a eversão pode se fa ze r
de um no outro, graças ao qual os dois term os se apresentam com o
id ên ticos , à m an e ira do avesso e do d ire ito , m as não de qu a lqu er avesso
e de qu a lqu er d ire ito , sem o qual eu não teria tido n ecess id ad e de
m ostrar-lhes, em seu lugar, o que e le é, quando represen ta o duplo
co rte sobre essa su p erfíc ie particu lar, cuja topo log ia ten te i m ostrar-
lhes no cross-cap . Esse ponto, aqu i designado, é o pon to (p, graças ao
qual o c írcu lo desen hado por esse corte pode ser, para nós, o esquem a
m en ta l de uma id en tificação original. Esse ponto - cre io já ter acentuado
bastan te sua função estru tural, em m eus ú ltim os discursos - pode, até
certo pon to, con te r para nós p ropriedades bastante satisfatórias; esse
fa lo, aí está e le com essa fu n ção m ágica que é bem aqu ela qu e todo
nosso d iscurso o im p lica há m u ito tem po. Seria um pouco fá c il dem ais
en con tra r ali nosso pon to de queda.
E por isso que ho je quero acen tu ar esse ponto, isto é, sobre a fu n ção
de a, o pequ en o a, na m ed ida em que e le é, ao m esm o tem po, fa lan do
p rop riam en te , o que pode nos p erm itir con ceb er a função do ob jeto na
- 4 1 9 -
A Identificação
teoria ana lítica , a saber, esse ob jeto que, na d inâm ica psíqu ica, é o que
estru tura, para nós, todo o p rocesso progress ivo -regress ivo , isso com o
qual tem os a ve r nas relações do su je ito com sua rea lidade psíqu ica,
m as que é tam bém nosso ob jeto, o ob jeto da c iên c ia analítica . E o que
qu ero botar à fren te , nisso que vou d ize r de le hoje, é que, se qu erem os
qu a lifica r esse ob jeto den tro de um a perspectiva p rop riam en te lóg ica ,
e acentuo, log ic izan te , não tem os nada de m elh or para d izer de le, senão
o seguinte: que ele é o objeto da castração. Entendo por isso, eu especifico,
em relação às outras funções até aqui defin idas do objeto, pois, se podem os
d ize r que o ob jeto no m undo, na m ed ida em que e le ali se d iscern e , é
o ob jeto de um a privação, pode-se d ize r igu a lm en te que o ob jeto é o
ob jeto da fru stração . E vou ten tar m ostrar-lh es ju s tam en te em quê esse
ob jeto, qu e é o nosso, se d istingue disso.
Está bem claro que, se esse ob jeto é um ob jeto da lóg ica , e le não
p od eria ter estado até aqu i com p letam en te ausente, in d is ce rn íve l em
todas as tentativas fe itas para articular, com o tal, isso que cham am os
de lóg ica . A lóg ica não existiu o tem po todo da m esm a form a, aqu ela
que nos satis fez p e rfe itam en te , nos supriu a té Kant, que n e la a inda se
d e le itou . Essa lóg ica fo rm a l, nascida um dia sob a pena de A ris tó te les ,
exerceu essa cativação, essa fascinação, até que se dedicassem , no sécu lo
passado, ao que pod ia ser aí retom ado em deta lhe . P ercebeu -se , por
exem p lo , qu e fa ltavam a li m u itas coisas, do lado da qu a n tifica ção .
C ertam en te , não é o que a ela acrescen ta ram que é in teressan te, mas
é aqu ilo pe lo qual ela nos detinha, e m uitas coisas qu e acred ita ram
dever acrescentar a ela não procedem senão de um sentido singu larm ente
estéril. D e fato, é sobre a re flexão que a análise nos im põe, a respeito
desses poderes tão lon gam en te ins is ten tes da lóg ica a ris to té lica , que
pode se apresentar, para nós, o in teresse da lóg ica . O o lh ar daqu ele
que despoja de todos os seus deta lhes tão fasc inan tes a lóg ica fo rm a l
a r is to té lica d eve , rep ito -o , abstrair-se do qu e ela trouxe de d ecis ivo , de
corte no m undo m en ta l, para com p reen d e r ve rd ad e ira m en te o que a
p recedeu ; por exem plo , a possib ilidade de toda a d ia lé tica p la tôn ica ,
que se lê sem pre com o se a lóg ica form a l já estivesse ali, o que a fa lse ia
com p letam en te , para nossa le itu ra. M as deixem os.
O ob jeto a ris to té lico , pois, é bem assim que é p rec iso cham á-lo , tem
ju s tam en te , se posso dizer, por p ropriedade, poder ter p rop riedades
que lhe perten cem propriam ente, seus atributos. E são estes que de fin em
M H- 4 2 0 -
Lição de 27 de junho de 1962
as classes. O ra, isso é um a con stru ção que não d eve senão con fu n d ir o
que cham arei, na fa lta de co isa m elhor, de categorias do ser e do ter.
Isso m erecer ia lon gos d esen vo lv im en tos e, para fazê-los ultrapassar,
sou obrigado a reco rre r a um exem p lo que m e serv irá de suporte. Esta
função decisiva do atributo, já m ostrei a vocês no quadrante, é a introdução
do traço un ário que d is tingu e a parte fásica , na qual será d ito, por
exem plo , que tod o tra ço é v e r t ica l, o que não im p lica , em si, a existência
de nen h u m traço, da parte léx ica , em que pode h aver traços vertica is ,
m as pode não haver. D ize r que todo traço é v e rtica l d eve ser a estru tura
or ig in a l, a fu n ção de u n iversa lidade, de u n iversa lização p rópria a uma
lóg ica fundada sobre o traço da privação , na ç, é o todo. E le evoca não
se i qual eco do deus Pan. Está aí um a das coa lescên c ias m enta is, que
lhes p eço para fa ze r o es fo rço de r iscar de seus papéis. O n om e do
deus Pan não tem abso lu tam en te nada a ve r com o todo, e os e fe itos
pân icos aos quais e le se joga de no ite , ju n to a espíritos sim ples do cam po,
não têm nada a ve r com algum a efusão m ística ou não. O rapto a lcoó lico
cham ado, pelos velhos autores, p a n o fób ico , está bem nom eado no sentido
em que, a e le tam bém , algum a coisa o persegu e, o perturba, e que e le
passa pela jan ela . N ão há nada a acrescen tar ali, é um erro dos espíritos
excess ivam en te helen istas co loca r aí esse retoqu e sobre o qual um de
m eus m estres antigos, portanto bem -am ado meu, nos trazia esta retificação,
deve-se d izer o rapto pantofób ico. Absolu tam en te, n a ç é rea lm en te o
todo e, se aqu ilo se re fere a a lgum a coisa é à n a o a a G a i, à possessão. E
ta lvez eu venha a reconsiderar se aproxim o esse n a ç do pos de possidere
e de possum , m as não hesito em fazê-lo . A possessão ou não do traço
unário, do traço característico , eis em torno do que gira a instauração
de uma nova lógica classificatória exp lícita das fontes do objeto aristotélico.
Esse term o c la s s if ic a tó r ia , eu o em prego in ten c ion a lm en te , pois é
graças a Claude Lévi-Strauss que vocês têm doravante o corpus, a articulação
dogm ática da fu n ção c lass ifica tór ia no que e le m esm o cham a, d e ixo a
e le a responsabilidade hum orística, de estado selvagem , bem mais próxim o
da d ia lé tica p la tôn ica do que da aristo té lica , a d iv isão progressiva do
m undo em um a série de m etades, duplas de term os an tipód icos que
e le en cerra em tipos. Portan to, sobre esse assunto, le iam O pensam ento
S elva gem , e verão que o essen cia l se p ren de ao segu in te: tudo o que
não é ou riço , m as o que vocês qu iserem , m usaranho ou m arm ota, é
ou tra coisa. O que ca rac teriza a estru tura do ob jeto a r is to té lico é que o
- 4 2 1 -
A Identificação
que não é ou riço é não-ou riço . É por isso que d igo que é a lóg ica do
objeto da privação. Isso pode levar-nos bem m ais longe, até esta espéc ie
de elisão pela qual se co loca o problem a, sem pre agudo nessa lógica, da
função verdade ira do te rce iro exc lu ído, do qual vocês sabem que ela
causa problema até no coração da lógica mais elaborada, da lógica matemática.
M as tem os que nos h aver com um in íc io , um n ú cleo m ais s im ples,
que quero colocar em imagens para vocês,
com o eu disse, por um exem p lo . E não
ire i procurá-lo longe, mas num provérbio
que apresenta, na língua francesa, uma
particu la r idade que, no en tan to , não
sa lta aos o lh o s , ao m en o s dos
fran có fon os . O p rovérb io é o segu in te :
“Tudo o que b rilh a não é ou ro ” .78 N a
co loqu ia lid a de alem ã, por exem plo , não
c re ia m qu e p od em se c o n ten ta r em
transcrevê-lo cruamente: “Alies was glãnzt
ist kein G o ld ” . N ão seria um a boa tradução. Vejo Srta. U b ers fe ld opinar,
m e aprovando com a cabeça ... E la m e aprova nisto: “ N ich t a lies was
gliinzt ist G old” , isso pode satisfazer mais, quanto ao sentido, aparentem ente,
co lo ca n d o a ên fase no “ a lie s ” , graças a um a an tec ipação do “n ic h t” ,
que não é tam pouco habitual, que fo rça o gên io da língua e que, se
re fle t irem , não a lcan ça o sen tido , pois não é dessa d istinção que se
trata. Eu poderia em pregar os c írcu los de Euler, os m esm os de que nos
servim os, ou tro dia, a respeito da relação do sujeito em um caso qualquer:
todos os hom ens são m entirosos. É isso s im plesm ente o que isto sign ifica?
E que, para re fa zê - lo aqu i, um a parte do
que b rilh a está d en tro do c írcu lo do ouro,
e uma outra parte não está. Está aí o sentido?
N ão pensem que eu seja o p r im e iro en tre
os lóg icos a ter se d e tid o nessa estru tura.
E, na verdade, m ais de um au tor qu e se
ocupou da negação se deteve, de fato, nesse
prob lem a, não tanto do pon to de vista da
lóg ica form a l que, vocês vêem , quase não
se detém nisto, senão por d escon h ecê-lo ,
mas do pon to de vista da form a gram atical,
- 4 2 2 -
Lição de 27 de junho de 1*762
in sistindo em que tudo se ordena de tal m aneira , que seja ju stam ente
posta em questão a ou ridade, se posso d izer assim, a qualidade de ouro
disso que brilha, o au tên tico do ou ro indo, pois, no sentido de negar a
ele , o au tên tico do ouro, indo no sentido de um questionam ento radical.
O ouro é aqu i s im bólico do que faz brilhar e, se posso d izer para m e
fa ze r entender, eu acentuo, o que dá ao ob jeto a cor fasc inatória do
desejo. O que é im portante numa tal fórmula, se posso dizer assim, perdoem -
m e o jo go de palavras, é o ponto d ’ou ra g em 79 [d ’orage] em torno de que
g ira a questão de saber o que faz brilhar, e para d izer a palavra, a questão
do que há de verdade nesse brilho. E, a partir daí, certam en te, nen hu m
ouro será bastante verdade iro para assegurar esse ponto em torno do
qual subsiste a função do desejo.
Tal é a característica rad ica l dessa espéc ie de ob jeto que cham o de
pequeno a. É o ob jeto posto em questão, enqu anto se pode d izer que é o
que nos interessa, a nós, analistas, com o o que in teressa ao ou vin te de
todo ensino. N ão é por nada que v i surgir a nostalg ia na boca de um ou
outro, que queria d izer: “ Porque e le não d iz ” , com o se exprim iu alguém ,
“ a verdade sobre a verd ad e? ” . E rea lm en te um a grande honra que se
pode prestar a um discurso que se m antém sem an alm en te nessa posição
insensata dc estar ali por trás de uma m esa d iante de vocês, articu lando
essa espéc ie de exposição que ju stam en te con ten tam -se m u ito bem , em
geral, que ela e lida sem pre uma tal questão. Se não se tratasse do ob jeto
analítico, a saber, do ob jeto do desejo, jam ais um a tal questão teria pod ido
nem sonhar em surgir, salvo da boca de um bronco que im aginasse que,
um a vez que se vem para a U n ivers idade, é para saber a verdade sobre a
verdade. Ora, é disso que se trata, na análise. Poder-se-ia d izer que é o
que estam os em baraçados em fazer, freqü en tem en te contra nossa vontade,
brilhar a m iragem no espírito daqueles aos quais nos dirigimos. Encontramo-
nos, eu o disse bem , em baraçados com o o p e ixe e a m açã do p rovérb io ,
e, no entanto, é bem ela que está ali, é com ela que tem os a ver, é sobre
- 4 2 3 -
A Identificação
ela, na m ed id a em que e la está no coração da estru tura, é sobre e la
que porta o que nós cham am os de ca s tra çã o . É ju s tam en te na m ed ida
em que há um a estru tura subjetiva que g ira em torno de um tipo de
corte , aqu ele que rep resen te i assim , que há no coração da id en tifica çã o
fan tasm ática esse ob jeto organ izador, esse ob jeto indutor. E não poderia
ser de ou tro m odo, de todo o m u ndo da angústia com o qual tem os que
nos haver, que é o ob jeto com o d e fin id o ob je to da ca s tra çã o .
Aqu i, quero lem brar-lhes de qual su perfíc ie fo i tom ada em prestada
essa parte que ch am ei para vocês, na ú ltim a vez, de enucleada, que dá a
própria im agem do círcu lo, segundo o qual esse ob jeto pode se defin ir.
Q uero figu rar para vocês qual é a p ropriedade desse c írcu lo de dupla
volta. A u m entem progressivam ente os dois lobos desse corte, de m odo
que e les passem , todos os dois, se posso dizer, por trás da su perfíc ie
Lição de 27 de junho de 1962
anterior. Isto não é nada novo, é a m an eira que já lh es dem onstrei
para d eslocar esse corte . Basta, de fato , deslocá-lo , e faz-se aparecer
m u ito fa c ilm en te que a parte com p lem en ta r da su p erfíc ie , em re lação
ao que está iso lado em torno do que se pode cham ar de duas folhas
cen tra is , ou as duas pétalas, para fazê-las se ap rox im arem de m etá fora
inaugural da capa do livro de C laude Lév i Strauss, dessa própria im agem ,
o que resta, é um a su p erfíc ie de M oeb ius aparen te. É a m esm a figu ra
que vocês encon tram ali. O que se acha, com e fe ito , en tre as duas bordas
assim deslocadas dos dois laços do corte, no m om en to em que suas duas
bordas se aproxim am , é um a superfíc ie de M oebius. Mas, o que quero
m ostrar-lhes, aqu i, é que, para que esse duplo corte se ju n te , se
fech e sobre e le m esm o, o que parece im plicado em sua própria estrutura,
vocês d evem es ten d er pouco a pouco o laço in tern o do o ito in terior. É
exa tam en te aqu ilo qu e vocês esperam dele, é que e le se satisfaça por
seu próp rio reco b r im en to por e le m esm o, que e le en tre na norm a, que
se saiba com o que se tem a ver, o que está fora e o que está den tro , o
que lhes m ostra esse estado da figura, pois vocês vêem bem com o é
p rec iso vê-la . Esse lobo (a ) se pro longou do ou tro lado, e le a lcan çou a
ou tra fa ce (b ); e le nos m ostra, v is ive lm en te , qu e o laço ex te rn o vai,
nessa su perfíc ie , reu n ir-se ao laço in tern o (c ) com a con d ição de passar
pe lo exterior. A su p erfíc ie d ita p la n o p ro je t iv o se com p leta , se fech a , se
con clu i. O ob je to d e fin id o com o nosso ob jeto , o ob jeto fo rm a dor do
m undo do desejo, não alcança sua intim idade senão por uma via centrífuga.
A Identificação
O que d izer? O que encon tram os, ali?
Eu retom o de m ais acim a. A fu n ção desse ob jeto está ligada à relação
[ra p p o r t ] p or on de o su jeito se con stitu i na re la ção [r e la t io n ] com o
lugar do O utro, A m aiúscu lo, que é o lugar on de se o rden a a rea lidade
do s ign ifican te . É no pon to onde toda s ign ificân c ia fa lha , se abole, no
ponto nodal d ito o desejo do O u tro , no pon to d ito fá l ic o , na m ed ida em
que e le s ign ifica a abolição, com o tal, de toda s ign ificância , que o ob jeto
pequeno a, ob jeto da castração, vem tom ar seu lugar. Existe, pois, uma
relação com o s ign ifican te , e é por isso que, ainda aqu i, devo lem brar-
lhes a d e fin ição da qual parti este ano, con cern en te ao s ign ifican te . O
s ign ifica n te não é o signo, e a am b igü idade do atributo a r is to té lico é,
ju s tam en te , de querer na tu ra lizá-lo , ou fa zer d e le o signo natural: “ todo
gato tr ico lo r é fê m e a ” . O s ign ifican te , eu lhes disse, con tra riam en te ao
signo, que represen ta algum a coisa para alguém , é o que rep resen ta o
su jeito para um outro s ign ifican te . E não há exem p lo m elh or do que o
selo. O que é um selo? N o dia segu in te ao que lhes de i essa fórm u la , o
acaso fe z com que um an tiqu ário de m eus am igos pusesse em m inhas
m ãos um p equ en o selo eg íp c io que, de um a m an eira não habitual, m ais
tam pouco rara, tinha a fo rm a de uma sola tendo, na parte de cim a, os
dedos do pé e os ossos desenhados. O selo, com o vocês com preen deram ,
eu en con tre i nos textos, é bem isso, um vestígio , por assim dizer. E é
verdade que a natureza os tem em abundância, mas isso não pode se
tornar um sign ificante a não ser que, esse rastro, com um par de tesouras,
vocês o con torn em e o reco rtem . Se vocês ex tra írem o rastro, depois,
isso p o d e to rn a r-s e um se lo . P en so q u e o e x e m p lo já e s c la re c e
s u fic ie n te m e n te , um se lo rep resen ta o su je ito , o r e m e te n te , não
fo rçosam en te para o destinatário . U m a carta pode sem pre p erm an ecer
selada, mas o selo está ali para a carta, e le é um s ign ifican te .
Bem , o ob jeto pequeno a, o ob jeto da castração, partic ipa da natu reza
assim exem p lificada desse s ign ifican te . E um ob jeto estru tu rado assim .
D e fato, vocês percebem que, ao té rm in o de tudo o que os sécu los
puderam sonhar da função do con h ec im en to , só nos resta isso em mãos.
N a natureza, ex is te a coisa, se posso d izer assim, que se apresen ta com
um a borda . T u d o o qu e aí p o d e m o s con q u is ta r , qu e s im u la um
con h ec im en to , nunca é m ais do que destacar essa borda, e não dela se
servir, m as esquecê-la para ver o resto que, coisa curiosa, dessa extração
acha-se com pletam en te transform ado, exatam en te com o vocês im aginam
- 4 2 6 -
Lição de 27 de junho de 1962
o cross-cap, a saber, não esqueçam,
o que vem a ser esse c ro ss -ca p ?
E um a esfera . Já lhes disse, ela
é necessária, não se pode esquecer
do fu n do dessa es fera . É uma
esfera com um fu ro, que vocês
organizam de uma certa maneira,
e vocês podem muito bem imaginar
que é e s tica n d o um a de suas
bordas que vocês fazem aparecer,
mais ou menos, segurando-a, essa
alguma coisa que virá tapar o furo,
na con d ição de fa ze r com que
cada um desses pontos se una
ao p o n to o p o s to , qu e c r ia
d if ic u ld a d e s in tu it iv a s
naturalmente consideráveis, e até
que nos obrigaram a toda a
construção que detalhei diante de
vocês, sob a form a do cross-cap
representado no espaço. E daí? Qual
a im portância? E que, para essa
operação que se produz ao nível
do fu ro, o resto da es fera é
transform ado em su perfíc ie de
Moebius.
Por enu c leação do ob jeto da
castração, o m u ndo in te iro se
ordena de uma certa m aneira que
nos dá, se posso dizer, a ilusão
de ser um m undo. E d ire i até
que, de um a certa m aneira , para fa zer in term ed iá r io en tre esse ob jeto
aris to té lico , no qual essa rea lidade está de a lgum a m aneira m ascarada,
e nosso ob jeto, que tento aqu i p rom over para vocês, in tro d u z ire i no
m eio esse ob jeto que nos insp ira , a cada vez, a m aior descon fiança , em
razão dos preju ízos herdados de uma educação ep istem ológ ica , mas que
é o que esco lhem os, é c laro que é nossa gran de ten tação... Nós, na
etc
- 4 2 7 -
A Identificação
análise, se não tivéssem os tido a ex is tên c ia de Jung, para exo rc izá -lo ,
ta lvez não tivéssem os p erceb ido , em qual pon to o acred itam os sem pre.
E o ob jeto da N a tu rw issen sch a ft, esse ob jeto goe th ean o , se posso dizer,
o ob jeto que, na natureza, lê sem cessar, com o um livro aberto, todas as
figuras, com uma in tenção que seria bem preciso cham ar de quase divina,
se o term o de Deus não tivesse sido, por um outro lado, tão bem preservado.
Esta, d igam os, d em on ía ca , m ais que d iv in a in tu ição goethean a, que
lh e fa z le r tan to no crân io en con trado no L ido a fo rm a de W erth er
com p letam en te im aginária, ou fo ija r a teoria das cores, resum indo, deixa
para nós os rastros de uma ativ idade da qual o m ín im o que se pode
d ize r é que e la é cosm ogên ea , geradora dessas m ais ve lhas ilu sões da
an a log ia m icro -m acrocósm ica , e, no en tan to , ca tivan te ainda, em um
espírito tão próxim o de nós. A quê isso d iz respeito? A quê o drama pessoal
de G oeth e deve a fascinação excepcion a l que e le exe rce sobre nós, senão
ao a floram en to nele, com o central, do dram a do desejo? “W arum G oethe
lie2 F tíederike?” , escreveu, vocês sabem, um dos sobreviventes da prim eira
geração, em um artigo, Theodor Reik. A especificidade e o caráter fascinante
da person a lidade de G oethe é que lem os, nele, to ta lm en te presen te, a
id en tificação do ob jeto do desejo àqu ilo ao quê é preciso renunciar, para
que nos seja entregue oferecido o m undo com o m undo. Já recordei bastante
a estru tura desse caso, m ostrando a analogia com aquela desen vo lv ida
por Freud, na h istória do H om em dos Ratos, em O M ito In d iv id u a l do
N eu ró tico , ou melhor, fizeram publicar sem qualquer consen tim ento meu,
já que esse texto, eu não o rev ise i nem corrig i, o que o torna quase
ileg íve l. En tretan to, e le está ro lando por aí, e pode-se encon trar n e le
suas linhas principais.
Essa relação com plem entar de a, o objeto de uma castração constitutiva,
on de se situa nosso ob jeto com o tal, com esse resto, e on de nós podem os
le r tudo, e e spec ia lm en te nossa figu ra i (a ) , é o que ten te i ilu strar no
auge de m eu discurso deste ano. N a ilusão especular, no desconhecim en to
fu n dam en ta l ao qual estam os sem pre a fe itos, $ tom a fu n ção de im agem
especular, sob a form a de i (a ) , enqu an to que e le não tem , se posso
dizer, com ela qua lquer relação sem elhante. E le não poderia , de m aneira
a lgum a, le r a li sua im agem , pe la s im p les razão de que, se e le é a lgum a
co isa , esse S b a rra d o , não é o com p lem en to do pequ en o i , fa to r do
p equ en o a; isso poderia ser m u ito bem a causa, d irem os, - e em p rego
esse term o in ten c ion a lm en te , pois ju s tam en te há algum tem po, desde
- 4 2 8 -
Lição de 27 de junho de 1962
qu e as ca tegorias da lóg ica vac ilam um pou co - a causa, boa ou má,
não tem , em todo caso, sido ob jeto de boas propostas, e p re fere-se evitar
fa lar dela. E, com e fe ito , só nós podem os en con trar-n os aí, nessa função
da qual, em sum a, não se pode ap rox im ar a an tiga som bra, após todo o
progresso m en ta l p ercorrido , senão vendo ali, de algum m odo, o idên tico
de tudo o que se m an ifesta com o e fe itos , m as quando e les ainda estão
velados. E, é claro, isso nada tem de satisfatório, salvo, talvez, se justam ente
não fosse por estar no lugar de a lgum a coisa, de corta r todos os efe itos ,
que a causa sustenta seu dram a. Se existe, a lém disso, igu a lm en te ,
um a causa que seja d ign a de que nós a e la nos d ed iqu em os, ao m enos
por nossa a tenção, não é sem pre e de an tem ão um a causa perd ida.
Podem os, pois, articular que, se existe alguma coisa que devem os enfatizar,
lon ge de e lid i- la , é que a fu nção do ob jeto p a rc ia l não poderia , de
m odo algum , ser redu z ida por nós, se o que cham am os de ob jeto parcia l
é o que designa o pon to de reca lcam en to d eco rren te de sua perda. E é
a partir daí, que se en ra íza a ilusão da cosm ic idade do m undo. Esse
pon to acósm ico do desejo, enqu anto designado pelo ob jeto da castração,
é o que devem os preservar com o o ponto pivô, o cen tro de toda elaboração
do que tem os a acu m u lar com o fatos co n cern en tes à con stitu ição do
m u ndo com o objetai.
M as, esse ob jeto pequeno a, que vem os surgir no pon to de fa lha do
Outro, no pon to de perda do s ign ifican te , porqu e essa perda é a perda
desse p róp rio ob jeto , do m em bro jam a is reen con trad o de H orus [de
fato O síris] desm em brado, esse objeto, com o não lh e dar o que cham arei,
parod ian do de sua p ro p ried a d e re fle x iv a - se posso d ize r - v isto que
e le a funda, que é d e le que e la parte, e que é na m ed ida em que o
su jeito é, antes e u n icam en te , essen c ia lm en te co rte desse objeto, que
algum a coisa pode nascer, que é esse in terva lo en tre couro e carne,
en tre W a h rn eh m u n g e Bew usstsein , en tre p e rcep çã o e con sc iên c ia , que
está a Selbstbewusstsein. E aqui que vale d izer seu lugar, em uma ontologia
fu ndada sobre nossa exp eriên c ia . Vocês verão que e la vai ao encon tro ,
aqu i, de um a fórm u la lon gam en te com en tada por H e iddeger, em sua
or igem p ré-socrática .
A relação desse objeto com a im agem do m undo que o ordena, constitui
o que P latão cham ou , fa lan do p rop riam en te , de d íade, com a con d ição
de nos aperceberm os de que, nessa díade, o sujeito S barrado e o pequeno
a estão do m esm o lado. to can o e iv a i kcu v o e iv , essa fórm u la , que por
- 4 2 9 -
A Identificação
m uito tem po serv iu para con fu nd ir, o que não é sustentável, o ser e o
con h ec im en to , s ign ifica nada m ais que isso. Em re la ção ao corre la to
de pequ en o a, ao que resta quando o ob jeto con stitu tivo do fan tasm a se
separou, ser e p en sam en to estão do m esm o lado, ao lado desse pequeno
a. Pequeno a é o ser, na m ed id a em que e le é essen c ia lm en te fa ltan te
no texto do m undo, e é por isso que, em torno do pequ en o a p ode se
d eslizar tudo o que se cham a de re to rn o do reca lca d o , is to é, que aí
deixa transparecer e se tra i a verd ad e ira verdade que nos in teressa , e
que é sem pre o ob jeto do desejo , en qu an to que toda hu m an idade, todo
hu m an ism o é con stru ído para nos fa zê -la faltar. Sabem os, por nossa
exp eriên c ia , que não há nada que pese no m undo verd ad e iram en te ,
senão o que faz alusão a esse ob jeto do qual o Outro, A m aiúscu lo ,
tom a o lugar para dar-lhe um sentido. Toda m etá fora , in c lu s ive a do
sintoma, procura fazer sair esse objeto na sign ificação, m as toda pululação
dos sen tidos que e la pode engendrar, não ch ega a saciar o que está em
questão, nesse buraco de um a perda cen tra l.
E is o que regu la as re la ções do su jeito com o O utro, A m aiúscu lo , o
que regula secre tam en te , m as de um a m an e ira que é ce rto que e la não
é m en os e fica z do que essa relação do pequeno a na re flexã o im agin ária ,
que a cobre e a ultrapassa. Em ou tros term os, que, no cam in h o , o
ú n ico que nos seja o fe rec id o para en con tra r a in c id ên c ia desse pequ en o
a, en con tram os p rim e iro a m arca da ocu ltação do O utro, sob o m esm o
desejo. Tal é, com e fe ito , a v ia ; a pode ser abordado por essa v ia qu e é
a do Outro, com A m aiúsculo, desejo no sujeito desfa lecente, no fantasma,
o S b a rra d o . E por isso que lhes en s in e i que o tem or do desejo é v iv ido
com o equ iva len te à angústia , que a angústia é o tem or do que o O utro
deseja em si do sujeito, esse em si fundado ju stam en te sobre a ignorân cia
do que 6 desejado, no n íve l do O utro. É do lado do O utro que o pequeno
a aparece, não tanto com o falta, m as com o a ser. É por isso que chegam os,
aqu i, a co lo ca r a questão de sua re lação com a Coisa, não Sache, m as
o que eu ch am e de das D in g . Vocês sabem que, con du zin do-os nesse
lim ite , não f iz nada além de in d ica r-lh es que aqui, a p erspectiva se
in verten do , esse pequ en o i do pequ en o a que en vo lve o acesso ao ob jeto
da castração, é aqu i a p róp ria im agem que faz obstácu lo no espelh o,
ou m elhor, que, à m an e ira do que se passa nesses espelh os obscuros, é
p rec iso sem pre pensar nessa obscuridade, a cada v e z que, nos au tores
antigos, vocês vêm in te rv ir a re fe rên c ia ao espelho, a lgum a coisa pode
Lição de 27 de junho de 1962
ap arecer para a lém da im agem que dá o espe lh o claro. A im agem do
espe lh o c laro, é a e la que se p ren de essa barre ira que ch am ei, em seu
tem po, a da be leza . E que tam bém a reve lação do pequeno a, para a lém
dessa im agem , m esm o em sua form a m ais h o rríve l, guardará sem pre o
re fle x o disso.
É aqui que eu gostaria de participar-lhes a m inha felicidade, ao encontrar
esses pensam en tos na pena de a lguém que con sid ero s im p lesm en te
com o o poeta de nossas Letras, que fo i in co n tes ta ve lm en te m ais lon ge
que qua lquer um , presente ou passado, na via da rea lização do fantasm a,
eu n o m ee i M au rice B lanchot, cu jo L A rrê t de M o r t [A Sentença de M o r te ]
há m u ito tem po fo i, para m im , a con firm ação segura do que eu disse o
ano todo, no sem in ário sobre A É tica , a respe ito da segunda m orte . Eu
não havia lid o a segunda versão de sua p rim eira obra, Thom as V O bscu r.
Eu acho que, um vo lu m e tão pequeno , nen h u m de vocês deixará de
prová-lo, depois do que vou ler dele para vocês. A lgum a coisa se encon tra
n e le que en carn a a im agem desse ob jeto pequ en o a, a p ropós ito do
qual fa le i do horror, é o term o que Freud em prega , quando se trata do
H om em dos Ratos. Aqu i, é do rato que se trata. G eorge B ata ille escreveu
um lon go ensaio, que gira em torno do fan tasm a cen tra l bem con h ec ido
de M aree i Proust, o qual tam bém d izia respe ito a um rato, H is tó r ia de
ra tos . M as será que é p rec iso d izer que, se A p o io criva o ex é rc ito grego
com as flech as da peste, é porque, com o bem notou o Sen hor G régoire ,
se E scu láp io , com o lhes en s in e i há tem pos, é uma tou peira - não fa z
tanto tem po que en con tre i o p lano do lab ir in to em um a sepu ltu ra p ré-
h istó rica , m ais uma, que v is ite i rec en tem en te - se, portan to, Escu láp io
é um a toupeira , A p o io é um rato.
A qu i está. Eu an tecipo , ou, m ais exa tam en te , pego um pouco antes
Th om as V O bscur, não é por acaso qu e e le se cham a assim : “ E em seu
quarto [...], aqu eles que en travam v iam seu liv ro sem pre aberto nas
m esm as páginas, pensavam que e le fin g ia ler. E le lia. E le lia, com um a
m in ú cia e um a a ten ção insuperáveis . E le estava p róx im o de cada signo,
na situação onde se encontra o m acho, quando o louva-a-deus vai devorá-
lo. U m e ou tro se olhavam . As palavras, saídas de um livro, ganhavam
aí um a p o tên c ia m orta l, exerc iam sobre o o lh ar que as tocava um a
atração doce e p lácida. Cada um a delas, com o um o lh o sem i-fech ado ,
d e ixava en trar o o lh ar m u ito v ivo que, em ou tras circunstâncias, e le
não teria so frido . Th om as penetrava por esses co rred ores dos quais se
- 4 3 1 -
A Identificação
aproxim ava sem defesa, até o instan te em que fo i d escoberto pe lo ín tim o
da palavra. N ão era ainda assustador, era, ao con trá rio , um m om en to
quase agradável, que e le teria qu erido prolongar. O le ito r con sid erava
a leg rem en te essa pequ en a cen te lh a de v ida que e le não duvidava ter
despertado. E le se via com prazer, nesse o lh o que o via. Seu p róp rio
p ra zer torna-se grande. E le torna-se tão grande, tão im placável, que e le
o experim enta com uma espécie de pavor e que, tendo-se erguido, m om ento
insuportável, sem receber de seu in ter locu tor um sinal cú m plice , e le
percebe toda a estranheza que havia em ser observado por uma palavra,
com o por um ser vivo, e não apenas por uma palavra, m as por todas a
palavras que se encon travam nessa palavra, por todas aquelas que o
acompanhavam e que, por sua vez, continham nelas mesmas outras palavras,
com o um séqu ito de anjos abrindo-se ao in fin ito até o o lh o do absolu to .”
Concedo-lhes essas passagens que vão desse “enquanto que, empoleiradas
sobre seus om bros, a palavra ele e a palavra eu [Je] com eça va m sua
ca rn ific in a ” , até à con fron tação que eu visava, evocando essa passagem :
“ Suas m ãos tentaram tocar um corpo im pa lpável e irreal. Era um es fo rço
tão terríve l, que essa coisa que se d istanciava d e le e, d is tanc ian do-se ,
tentava atraí-lo, pareceu-lhe a m esm a que in d iz ive lm en te se aproxim ava.
E le caiu no chão. E le tinha o sen tim en to de estar coberto de im pu rezas.
Cada parte de seu corpo exp erim en ta va um a agon ia. Sua cabeça era
forçada a tocar o mal, seus pulm ões a respirá-lo. E le estava ali no assoalho,
torcendo-se, depo is en tran do n e le m esm o, depo is saindo. E le arrastava-
se pesadam ente, pouco d iferen te da serpente que e le teria querido tornar-
se, para acred ita r no ven en o que sentia em sua boca [...]. Foi nesse
estado que e le sen tiu -se m ord ido ou sacudido, não pod ia sabê-lo, pe lo
que lhe parecia ser um a palavra, m as que assem elhava-se m ais a um
rato g igan tesco , de olhos p en etran tes , de den tes puros, e que era um a
besta toda-poderosa. Vendo-a a a lgum as polegadas de seu rosto, e le
não pôde escapar ao desejo de devorá -la , de trazê-la para a in t im id a d e
m ais p ro funda con sigo m esm o. E le se atirou sobre e la e, en te rra n d o as
unhas nas entranhas, procu rava torná-la sua. O fim da n o ite ve io . A
luz que b rilhava através das persianas se apagou. M as a lu ta com a
besta m ed on h a , que se reve la ra a fin a l de um a d ign id a d e , de um a
m a gn ificên c ia in com paráve is , durou um tem po que não se pode m edir.
Essa luta era h o rr íve l para o ser d e itado no chão que rangia os den tes,
arranhava-se o rosto, a rrancava-se os olhos para d e ixar en tra r a besta,
- 4 3 2 -
Lição de 27 de junho de 1962
e que teria se assem elhado a um dem ente, se não tivesse se assem elhado
a um hom em . Ela era quase bela, para essa espéc ie de anjo negro ,
coberto de pê los ruivos, cu jos olhos faiscavam . Ora um acred itava haver
tr iu n fado e v ia descer n e le , com uma náusea in co erc ív e l, a palavra
in ocên c ia , que o sujava. Ora o ou tro o devorava, por sua vez, arrastando-
o pelo buraco de on de viera , depo is o reje itava com o um corpo duro e
vazio . A cada vez, Th om as era im pe lid o até o fundo de seu ser pelas
próprias palavras que o haviam freqüen tado, e que e le persegu ia com o
seu pesadelo, e com o a exp licação de seu pesadelo. E le se reconhecia
sem pre m ais vazio e m ais pesado, e le não se m exia, senão com uma
fad iga in fin ita . Seu corpo, depois de tanta luta, torna-se in te iram en te
opaco e, aos que o olhavam , e le dava a im pressão repousante do sono,
a inda que e le não houvesse cessado de estar desperto ." Vocês lerão a
seqüência. E o cam inho do que M aurice B lanchot descobre, para nós,
não pára aí.
Se tom ei o cuidado de lhes ind icar essa passagem, é porque, no m om ento
de d e ixá -los , este ano, qu ero d ize r-lh es que fre q ü en tem en te ten h o
con sc iên c ia de não fa ze r ou tra coisa aqui, senão perm itir-lh es serem
levados com igo ao ponto onde, à nossa volta, m ú ltip los , já conseguem
os m elh ores. O utros puderam notar o para le lism o que há en tre tal ou
qual das pesquisas que prosseguem no m om en to , e aquelas que ju n tos
elaboram os. Vale a pena, eu lem brar que, por outros cam inhos, as obras,
e depo is as re flexões sobre as obras fe itas por e le m esm o, de um P ierre
Klossowski, con vergem com o cam inho da pesquisa do fantasm a, tal
com o o e laboram os este ano.
Pequeno i de pequeno a, sua d iferença , sua com p lem en ta rid ad e e a
m áscara que um constitu i para o outro, eis o pon to aonde eu lhes terei
condu zido este ano. Pequeno i de pequeno a, sua im agem não é, portanto
sua im agem , ela não o represen ta , esse ob jeto da castração; e la nãc é,
de m aneira a lgum a, esse rep resen tan te da pulsão sobre o qual in c id e ,
e le tivam en te , o reca lqu e, e, por um a dupla razão, é que ela não é, essa
im agem , n em a V ors te llu n g , pois que ela é, ela p rópria , um objeto, uma
im agem real - reportem -se ao que escrevi sobre esse assunto, em m inhas
N ota s sobre o R e la tó r io de D a n ie l Lagache - um ob jeto que não é o
m esm o que pequeno a, que não é tam pouco seu represen tante. O desejo,
não esqueçam , onde se situa e le no gra fo? E le visa S ba rra d o co rte de
a, o fantasm a, sob um m odo análogo àqu ele do m m in ú s cu lo , on de o Eu
- 4 3 3 -
A Identificação
\moi] se re fe re à im agem especular. O que isso qu er d izer? Senão que
existe uma relação desse fantasm a com o próprio desejante. Mas podem os
fa ze r desse d ese jan te pura e s im p lesm en te o agen te do desejo? N ão
esqu eçam os que, no segundo estág io do gra fo , d m in ú s cu lo , o desejo , é
um quem que respon de a um a questão, que não visa a um quem , m as a
um che v u o i? Para a questão che v u o i l , o dese jan te é a resposta , a
resposta que não designa o quem de quem q u e r l, m as a resposta do
ob jeto. O que eu quero, no fantasm a, d e te rm in a o ob jeto de on de o
d ese jan te que e le con tém deve con fessar-se com o desejan te . P rocu rem -
no sem pre, esse desejan te, no seio de qu a lqu er qu e seja o desejo , e não
vou ob jetar a perversão n ecró fila , pois ju s tam en te está ali o exem plo
on d e se prova que, desse lado da segunda m orte , a m orte fís ica deixa
a inda a desejar, e que o corpo deixa-se ali p e rceb er com o in te ira m en te
tom ado num a função de sign ificante, separado dele m esm o e testem unho
do que op r im e o n ecró filo , um a in a p reen s íve l verdade.
Essa relação do ob jeto com o sign ifican te, antes de deixá-los, vo ltem os
a e la no pon to onde essas re flexões se assentam , isto é, no que o p róprio
Freud m arcou da id en tifica çã o do desejo , na h is té r ica en tre parên teses,
com o desejo do Outro.
A h is té r ica nos m ostra, de fato, qual é a d istância desse ob jeto ao
s ign ifica n te , essa d istância que d e fin i p e la ca rên c ia do s ign ifican te ,
m as im p lican d o sua relação com o s ign ifica n te , com e fe ito , a qu ê se
id en tif ic a a h is tér ica quando, nos d iz Freud, é n o dese jo do O utro que
ela se o rien ta , e que a co locou com o caçadora. E é sobre o qual os
a fetos - nos d iz e le - as em oções, con sideradas aqu i sob sua pena com o
em bru lhadas, se posso d ize r assim, no s ign ifica n te e retom adas com o
tais, é a esse propósito que e le nos d iz que todas as em oções ra tificadas,
as form as, por assim dizer, con ven c ion a is da em oção, não são ou tra
co isa senão in sc r içõ es on togên icas do que e le com para , do que e le
revela com o expressam en te equ iva len te a acessos h is téricos , o que é
reca ir na re lação com o s ign ifican te . As em oções são, de a lgum m odo,
caducas do com portam en to , partes caídas retom adas com o s ign ifican te .
E o que é o m ais sensível, tudo o que podem os ver delas, en con tra -se
nas form as antigas da luta. Q ue aqu eles que viram o f ilm e R a sh om on
se lem brem desses estranhos in term éd io s que, de repen te, suspendem
os com baten tes, qu e vão cada um , separadam ente , dar três vo ltin has
sobre si m esm os, fazer, em não sei que pon to d escon h ec id o do espaço,
Lição de 27 de junho de 1962
uma paradoxal reverên c ia . Isso faz parte da luta, tanto quanto na parada
sexual, FVeud nos ensina a reconhecer essa espécie de paradoxo interruptivo
de in com preen s íve l escansão.
As emoções, se alguma coisa disso nos é mostrado na histérica, é justamente
quando ela está ao encalço do desejo, é esse caráter claram ente arremedado,
com o se diz, fora de hora, pe lo qual se enganam e de on de se tira a
impressão de falsidade. O que isso quer dizer, senão que a histérica certamente
não pode fa zer outra coisa, senão buscar o desejo do O utro ali on de e le
está, on de e le deixa seu rastro no Outro, na utopia, para não d izer na
atopia, no desam paro até m esm o na ficção, resum indo, que é pela via da
m anifestação, com o se pode aí esperar, que se m ostram todos os aspectos
s intom áticos. E, se esses sintom as encon tram essa via sulcada, é em
ligação com essa relação, que Freud designa, com o desejo do Outro.
Eu tinha ou tra coisa a lhes indicar, a respeito da frustração. É claro,
o que eu lhes trouxe, este ano, sobre a re lação com o corpo, o que está
apenas esboçado na m an eira com o en ten d i, em um corpo m atem á tico ,
lhes dar o esboço de todo tipo de paradoxos con cern en tes à id é ia que
podem os fa ze r para nós do corpo, en con tra suas ap licações ce rta m en te
bem fe itas para m od ifica r p ro fu n dam en te a id é ia que podem os ter da
fru stração , com o de um a carên c ia con ce rn en te a um a g ra tifica ção ,
re fe r in d o -se ao que seria um a suposta to ta lidade prim itiva , tal com o
querer-se-ia vê-la designada nas relações da m ãe e da criança. É estranho
que o pensam en to an a lítico nunca tenha en con trado , nesse cam inho ,
salvo, com o sem pre, nos can tos das observações de Freud, e aqu i o
designo, no H om em dos Lobos, a palavra S ch le ie r, esse véu com o qual
a crian ça nasce coberta , e que se arrasta na litera tu ra an a lítica , sem
que se tenha jam a is sonhado que estava ali o esboço de um a v ia m u ito
fe cu n d a , os es tigm as . Se ex is te a lgo que p e rm ite con ceb er, c om o
com portam en to , uma totalidade de não sei qual narcis ism o prim ário - e
aqu i só posso lam en tar a ausência de quem m e co locou a questão - é
certam en te a re ferên c ia do sujeito, não tanto ao corpo da m ãe parasitada,
mas a esses invó lucros perdidos, onde se lê tão bem essa con tin u idade
do in ter io r com o exterior, que é aquela à qual m eu m odelo deste ano
lhes introduziu , e sobre o qual retornaremos. S im plesm ente quero ind icar-
lhes, porque o reen con trarem os daqui por d iante, que, se há algum a
coisa on de deve se acen tu ar a relação com o corpo, com a incorporação ,
- 4 3 5 -
A Identificação
com o E in v e r le ib u n g , é do lado do pai, de ixado in te iram en te de lado,
que é preciso olhar.
Eu o d e ix e i in te iram en te de lado, porqu e teria sido prec iso que os
in trodu zisse - m as quando o fa re i? - em toda um a trad ição que se
pode cham ar de m ística e que certam en te, por sua presença na trad ição
sem ítica , dom ina toda a aventu ra pessoal de Freud. Mas, se há uma
co isa que se dem an da à m ãe, não lhes parece ch oca n te que seja a
ún ica coisa que ela não tem , a saber, o fa lo? Toda a d ia lé tica destes
ú ltim os anos, até e in c lu s ive a d ia lé tica k le in iana, que en tretan to, m ais
se aproxim a disto, fica fa lseada, porqu e a ên fase não é co locada sobre
essa d ivergên c ia essencia l.
E tam bém porque é im possíve l corrig i-la , im possíve l tam bém nada
c o m p re e n d e r do qu e c o n s t itu i o im p a sse da r e la çã o a n a lít ic a , e
e spec ia lm en te na transm issão da verdade an a lítica tal com o ela se faz,
a análise d idática , é que é im possíve l in trodu zir aí a re lação com o pai,
que não se é o pai de seu analisado. Já fa le i disso o bastante, e f iz
bastan te para que n in gu ém ouse m ais, ao m en os na m inha v iz inh ança ,
se arriscar a d izer que se pode ser aí a m ãe. N o entanto, é disso que se
trata. A fu n ção da análise, tal com o se insere ali on de Freud deixou
aberta sua seqüência , o rastro h iante, situa-se ali on de sua pena caiu,
a p ropósito do artigo sobre 0 s p lit t in g do Eu, no pon to de am bigü idade
a que isso leva, o ob jeto da castração é esse term o bastan te am bíguo
para que, no próprio m om en to em que o su jeito d ed icou -se a reca lcá-
lo, e le o instaure m ais firm e que nunca, num Outro.
Tanto quanto não terem os recon h ec id o que esse ob jeto da castração
é o p róp rio ob jeto pe lo qual nos s ituam os no cam po da c iên c ia , quero
d ize r que e le é o ob jeto de nossa c iên c ia , com o o nú m ero ou a gran deza
podem ser o ob jeto da m atem ática , a d ia lé tica da análise, não apenas
sua d ia lética , m as sua prática, sua con tribu ição m esm a, e até a estrutura
de sua com u n idade, fica rão em suspenso. N o p róx im o ano, tratarei
para vocês, com o prossegu im ento, es tritam en te do pon to on de os d e ixe i
hoje, a angústia.
- 4 3 6 -
N otas
1 R e fe rên c ia ao esqu em a de ilh a do fa lo que em erge dos ondas [f lo ts ]
lib id ina is , graças à e lisão especu lar, en focado no S em in ário X V III,
na lição de 21 de ju n h o de 1961.
2 N o or ig in a l: ] ’a i eu beau fa ire , je ne -pouvais fa ir e du beau - vem os
repetir-se essa alusão ao belo [beau ], que p erm ite a Lacan
ap roxim ar-se da re fe rên c ia sobre a beleza , m as que se perde na
tradução.
3 N o orig ina l: Je m e vous fa is pas la p a r tie trop be lle : ‘não fa c ilito o
jo g o para v o c ê s ’ , p e rm ite a Lacan b rin car m ais um a ve z com a
b e leza .
4 D en tro desse parágrafo, há, pois, um a repetição de beau, belle, em bellir,
beauté, em termos que com põem , em cada sintagma, um valor semântico
d iferen te .
5 R e fe re -se à du p licação , no fran cês co rren te de: m o i-m ê m e , to i-
m êm e, lu i-m ê m e ,.. .e tc.
6 N o orig ina l: analysés.
7 M ets les p ieds dans le p lâ t, que, tex tu a lm en te , qu er d ize r ‘botar os
pés no p ra to ’ , é um a expressão francesa que s ign ifica ‘abordar uma
questão delicada com uma franqueza brutal’ ; ou ‘com eter uma tremenda
gafe, um engano g rosse iro ’ .
8 R e n n o m é e : ren om e, fam a, reputação.
9 F le u r au fu s i l - lite ra lm en te ‘a flo r no fu s il’ ; s ign ifica ‘com
entu siasm o e a le g r ia ’ .
1(1 M arrow , lite ra lm en te , castanha; tem tam bém o sen tido de ‘coisa
c landestina , ile g a l’ .
- 437-
A Identificação
11 Stade du m ir ro ir : op tam os tradu zir por ‘estád io do e sp e lh o ’ um a vez
que stade a lém do sen tido de ‘ fa s e ’ , ‘p e r ío d o ’ , ‘ cada um a das etapas distin tas de um a evo lu çã o ” , s ign ifica tam bém ‘es tád io ’ , ‘ r e c in to ou te rren o apropriado para as p rá tica de esportes e, na G réc ia antiga , para a d ispu ta de corridas e c o m p et içõ es ’ ; donde, pode-se d edu zir
tratar-se tam bém de um cam po de força .
12 O u tre c u id e r : verbo do fran cês an tigo com posto de o u tre , do la tim
u ltra, que m arca a id é ia de excesso , u ltrapassagem , ir a lém ; e de
cu id e r, pensar. L ite ra lm en te poderia s ign ifica r pensar dem ais , m as o
verbo expressava a id é ia de arrogância , p re ten ção , e o substantivo
o u tre cu id a n ce con tinu a sendo usado nesse sentido.
1:1 N o orig inal, pensâtre: n eo log ism o p roven ien te de pense + être, Ipensar
+ ser] que con sideram os p ertin en te co loca r com o equ iva len te penser.
14 O verbo s’e m p e tre r tem o sen tido de estorvar-se, em baraçar-se. H á
aqu i um jo g o de palavras on de pen sê tre r dá o anagram a de
s’em p être r, que tradu zido perde o sentido.
15 F a ire l ’éco le b u is s o n n iè re : vadiar, passear ao in vés de ir à aula, ou
seja, gazear, fa lta r à sua ocupação.
16 N o o r ig in a l, fem m e du m o n d e : tem m ais o sen tido de m u lh er da
soc iedade, ou esnobe, do que de prostituta.
17 R e fe rên c ia à locu ção fra n cesa “ vo ilà pourquoi vo tre f i l le est m u e tte ” ,
de M o liè re , em Le m éd ecin m a lg ré lu i, onde o fa lso m éd ico depo is de
um discurso que não tem nada a ver, com o qual e le ten ta em bru lh a r
o assunto m ais do que esclarecer, conclu i fina lm ente “ Et voila pourquoi
votre fille est m uette ! A locução é retom ada várias vezes no S em in á rio
X I, sendo um a expressão que serve para ca rac te riza r as exp lica ções
pretensiosas e obscuras que não exp licam absolu tam en te nada.
18 N o orig ina l: “m ange tes p ieds à la sa in te M é h e h o u ld ".
19 Aqu i Lacan fa z um jo go de palavras: no or ig in a l ‘pas de t ra c e ’ e ‘tra ce
d ’un pas' que têm o sen tido, con secu tivam en te , de ‘n en h u m ra s tro ’e
‘rastro de um passo ’ .
20 Entre co lch etes no orig ina l.
21 O esqu em a da árvore, no C u rso de L in g ü ís t ic a G era l, com o se soube
depois, é obra dos ed itores, não se en con tran d o nos m anu scritos de
Saussure nada sem elh an te .
22 N o or ig in a l e in z ig e r Z u g - que s ign ifica ‘ traço ú n ico ’ , em a lem ão.
- 4 3 8 -
23 F a ire des b a to n s : expressão em pregada an tigam en te pe los p ro fessores
prim ários, na fase de p ré-a lfabetização , para en s in ar aos alunos a
ca lig ra fia , seja, ‘ fa ze r traços vertica is no ca d e rn o ’ .
24 C f. n o ta 17, acim a.
25 O descobrim en to , em 1860, de uma gru ta de ossos p ré-h istór icos em
Au rignac (cap ita l do can tão da H au te-G aron n e, F rança) deu o nom e
de A u rign ac ian a a um a cu ltu ra p a leo lít ic a superior, que havia se
es ten d id o en tre 30.000 e 25.000 anos a.C . Essa cu ltu ra, m arcada
pela p resença do hom o sapiens, está ca rac terizada pelo em prego de
fe rram en tas de pedra m u ito aperfe içoadas e pe la p rim e ira aparição
no O c id en te da arte figu rativa (p in tu ra parieta l e escu ltu ra ). [N o ta
da versão em espanhol da In tern et!
26 G eorges C u v ier (1769 -1832 ), naturalista francês, c riador da anatom ia
com parada e da pa leon to log ia , autor, en tre outras obras, da D escriçã o
e le m e n ta r da h is tó r ia n a tu ra l dos a n im a is . [id em ]
27 M em bros de um a tribo su l-a fr ican a .[id em ]
28 N o orig inal: ‘les coups... q u ’i l t i r a ’. A expressão ‘t ir e r un c o u p ’ s ign ifica
ter um orgasm o (n o h o m em ), ou, a inda, na gíria , ‘um a trepada ’ . A
m etá fora é a da arm a de fogo, sím bolo transparente do erotism o fá lico.
29 C om o n eo log ism o “e ffa çon s " L acan con den sa a questão da form a
( fa ç o n ) do s ign ifican te e o seu va lor de apagam en to ( e ffa cem en t ) da
coisa. [Lacan retom a esse neo log ism o no S e m in á r io XV I, De U m O u tro
ao o u tro ( liç ã o de 14/05/69) e duas vezes em R a d io fo n ia - em Autres
E c r its p .427 e p .434 Seu il.]
30 D éfrichem ent’: 1. arroteamento, cultivo de terreno; 2. em sentido figurado:
esc la rec im en to in ic ia l.
31 M im ic ry : do inglês, significa m im etism o; arrem edo; p ro te c tin g m im ic ry :
m im etism o anim al, cf. N ovo M ichae lis , Ed. M elhoram entos, São Paulo,
1966. Tem o sen tido a inda de ‘arte de im ita r ’ , tam bém ‘sem elh an ça
natu ra l de um organ ism o com outro, ou com ob jetos natura is no
m e io dos quais se v ive, que assegura p roteção, escon derijo , ou ou tra
va n ta gem ’ . Cf. W eb s te r 's Seventh N ew C o lleg ia te D ic t io n a ry G&C
M err iam Com pany, M assachusetts, U .S .A . 1963.
32 C on n a issa n ce : con h ec im en to ; a lude a inda a um jo g o de palavras ao
escand ir-se a p rim e ira sílaba, co -n a is s a n ce , co-n ascim en to .
- 4 3 9 -
A Identificação
33 As negações, em francês, na origem , tinham seu objeto: passo, pessoa,
nada, pon to, m iga lha e gota.
34 T ra c e : rastro, vestíg io , pegada.
35 J ’sais pas : fo rm a co loqu ia l do fran cês j e ne sais pas que e lid e o ne;
en qu an to a e lisão do pas em j e ne sais é lite rá ria e m aneirista .
36 N o or ig in a l: M a r iv a u x , s in on r iv a u x .
37 N o or ig in a l béance:
38 Tra ta-se da con fe rên c ia fe ita por L acan para a E volução psiqu iá trica ,
em 23 ja n e iro de 1962, e in titu lada D o que eu en s in o , reproduzida
em anexo na versão francesa deste sem inário .
39 N o orig ina l tem os a n n a lis te , com dois n: o que rem ete a
a n n a ly s le , au tor de anais, h istoriador. Cf. D ic ion ário R obert.
40 Pas de sens: s ign ifica tanto ‘passo de s en tid o ’ com o ‘ausência de
s en tid o ’ c f S e m in á r io V, J. Lacan .
41 N o orig ina l, p i r : que tem h om o fon ia com p ie r re = pedra.
42 D es id e riu m , do latim : desejo , saudade, pesar, ob jeto de ternura,
carinho, n ecessidade fís ica , precisão.
43 R egre t: pesar, desgosto, rem orso, queixa , lam ento.
44N o or ig in a l d econ n og ra ph e : sugere n eo log ism o criado a partir de
d écon n er, que s ign ifica d ize r besteiras, don de d econ n og raph e
p od eria ser traduzido por beste iróg ra fo .
45 A frase a lude a um trocad ilho que se p erde na tradução: a ffre u x
d ou te de l 'h e rm a p h ro d ite .
46 Se p o u r r a i t - i l q u ’i l n ’y a it m a m m e? : trata-se aqu i do ne exp le tivo ,
não im p lican d o num a negação.
47 J. Lacan , De ce que j 'ense ign e . N o ta do transcritor.
48 C ’est le lacs: é o laço. Vale sa lien ta r que a expressão tom b e r dans le
la c s ign ifica fracassar, não ter saída.
49 B a raca : palavra de or igem árabe que s ign ifica “ b ên çã o ” . N o
fran cês do M arrocos, “ chan ce, op o rtu n id ad e ” . N .T.
50 E ffa çon s: ve r nota 29, acim a.
51 Pas possible: passo possível, tam bém não possível. Ver nota 19 acim a.
52 C f. nota 37 acim a.
53 N o n -lie u : é um a expressão ju r íd ic a para fa la r de um processo
en cerrado e c lass ificado com o não d ec id íve l.
54 Em português, ‘m itra ’ .
55 acpctvipiç: em português afân ise.
- 440-
56 N o orig in a l n ’ê tr e : ‘não s e r ’ , que tem h om o fon ia com n a ître
‘n ascer ’ .
57 N o orig ina l ra p p o rt : Tem o sen tido de 1. ligação en tre vários
ob jetos d istintos, relação; 2. narração, re la tório , exposição ; 3.
q u oc ien te de duas gran dezas da m esm a espéc ie , razão.
58 P en ia , do grego: s ign ifica ‘pobreza, in d ig ên c ia ’ .
59 Lacan serve-se do lou va-a-deus porque a fêm ea deste in seto tem o
hábito de devora r o m acho após o acasalam ento. Em francês o
in seto é cham ado m a n te re lig ieu se , e ex iste tam bém a expressão
une m a n te re lig ieu s e para re fe r ir-se a um a m u lh er cru el para com
os hom ens. A fêm ea do louva-a-deus é m u ito m aior que o m acho.
60 Ver nota 49 acim a.
61 N o or ig in a l analysé: analisado.
62 Stade: estád io; m esm a palavra u tilizada para stade du m ir o ir -
estád io do espelho. Ver nota 11 acim a.
63 Cf. nota 37 acim a.
64 N o or ig in a l ‘ sa lutantes ve rb a les ’ : alude a um neo log ism o a partir de
salut, que tanto quer d izer saudação, hom en agem , com o salvado,
que escapa à m orte ou ao perigo .
65 N o original: “A M in a son m iro ir fidè le ; Montre, hélas, des tra its allongés.
Ah ciel, oh D ieu , s’écrit-e lle ; Com me les m iro irs sont changés!”
66 Vale lem brar que su je t, em francês, tanto pode ser u tilizado no
sen tido de ‘su je ito ’ com o de ‘assunto’ . N R
67 Cf. nota 17 acim a.
68 Cf. nota 37 acim a.
(iu C f. nota 37 acim a.
70 Idem .
71 Idem
72 Essayer d ’y couper = essayer d ’év ite r le pire, la castra tion : tentar
evitar o pior, a castração; tu n ’y couperas pa s= n ã o vai conseguir evitar.
73 B rincadeira de Lacan: La fe rm e ! Insulto que quer d izer fe rm e ta gueu le!
- ‘ cala a b o c a l ’ As vezes Lacan usa l ’o u v r ir para d izer ‘fa la r ’ . Aqu i
e le quer d izer ‘apenas o rea l se ca la ’ - seul le re e l se ta it .
74 T ro m p e - l ’o e il : 1.p intura decora tiva que visa cria r a ilusão de ob jetos
rea is em re levo , pe la perspectiva . 2. aparência enganosa, co isa que
causa ilusão.
- 4 4 1 -
A Identificação
75 N o or ig in a l m e-connais\ partindo de m écon n a is [d escon h ece ] tem os,
secionan do a sílaba, o sen tido de ‘m e c o n h e ç o ’ , cu jo jo g o de palavras
se perde na tradução. Tem os, então, sucessivam en te: m é co n n a itre ,
m e -co n n a itre - ‘d escon h ecer ’ , ‘m e co n h ece r ’ ; m é co n n a it, m e -co n n a it
- ‘d e sco n h ece ’ , ‘m e con h ece '.
76 T ip o de flo res m u ito bon itas, g igantes, e com uma form a
topo log icam en te m u ito in teressante.
77 C f. nota 75 acim a.
7R Em português d iz-se “n em tudo o que relu z 6 ou ro ” . M an tivem os,
con tudo, a tradução textual do francês a fim de ressaltar a
con trapos ição em questão en tre a língua francesa e a língua
a lem ã.
7n No original d ’oragc. Ein francês, or: ouro; ar a ge : tem pestade; em sentido
figu rado, ‘d eso rd em ’ , ‘ím pe to de ra iva ’ .
- 4 4 2 -
COM ISSÃO EDITORIAL - 2003/2004
JerzuíTomaz
Josi lene X avier
Leticia R Fonsêca
Marcilene Dória
M a Emilia Lapa
M * de Fátima Belo
M a Lúcia Santos
Mônica Vieira
- 4 4 3 -