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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL JOSIANE THETHÊ ANDRADE O TABULEIRO DAS VENDAS: COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROÇAS SANTO ANTONIO DE JESUS - BA SETEMBRO - 2010

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS CAMPUS V

    PROGRAMA DE PS-GRADUO EM HISTRIA REGIONAL E LOCAL

    JOSIANE THETH ANDRADE

    O TABULEIRO DAS VENDAS:

    COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS

    ROAS

    SANTO ANTONIO DE JESUS - BA

    SETEMBRO - 2010

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  • JOSIANE THETH ANDRADE

    O TABULEIRO DAS VENDAS:

    COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROAS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia/UNEB, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre.

    ORIENTADORA: PROF DR CARMLIA APARECIDA SILVA MIRANDA

    SANTO ANTONIO DE JESUS - BA

    SETEMBRO 2010

  • P553 Andrade, Josiane Theth.

    O Tabuleiro das vendas: cotidiano de um povoado marcado

    pelas lojas das roas. / Josiane Theth Andrade - 2010.

    126 f.: il Orientador: Prof. Dra. Carmlia Aparecida da Silva Miranda. Dissertao (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa

    de Ps-Graduao em Histria Regional e Local, 2010.

    1. Histria Oral. 2. Tradio Oral. 3. Vendas. 4. Mutupe - Bahia I. Miranda, Carmlia Aparecida da Silva. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Ps-Graduao em Histria Regional e Local.

    CDD: 907.2

    Elaborao: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecria: Juliana Braga CRB-5/1396.

  • TERMO DE APROVAO

    O TABULEIRO DAS VENDAS:

    COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROAS

    JOSIANE THETH ANDRADE

    Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof Dr. Carmlia Aparecida Silva Miranda (Orientadora) Universidade do Estado da Bahia - UNEB _______________________________________________ Prof. Dr. Gilmrio Moreira Brito Universidade do Estado da Bahia - UNEB _______________________________________________ Prof. Dr. Lina Maria Brando de Aras Universidade Federal da Bahia - UFBA _______________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira (Suplente) Universidade do Estado da Bahia - UNEB _______________________________________________ Prof. Dr. Vilma Maria do Nascimento (Suplente) Universidade Catlica do Salvador - UCSAL

    SANTO ANTONIO DE JESUS - BA

    SETEMBRO - 2010

  • memria do meu pai Juvenal Santos Andrade, vendeiro no Tabuleiro por mais de 30 anos, fazendo deste ofcio sua vida e da venda o lugar derradeiro de sua existncia.

  • AGRADECIMENTOS

    Escrever sobre o Tabuleiro significou mais do que relatar a histria de um

    lugar, pois me proporcionou descortinar o cotidiano do homem do campo em suas

    mltiplas facetas. Mas para tornar possvel uma histria do povoado e de suas

    vendas foi necessrio a colaborao de inmeras pessoas que, com boa vontade e

    solicitude, tornaram esta pesquisa uma realidade, e s quais gostaria de aqui deixar

    meus agradecimentos.

    Inicialmente, a minha orientadora, professora Carmlia Aparecida Silva

    Miranda, por ter me acolhido como orientanda em um momento difcil e, tambm, por

    sua pacincia em me ouvir e ler meus escritos sempre com desvelo e criteriosidade.

    A dois outros professores que ajudaram a dar forma pesquisa ainda na

    graduao e na ps-graduao. Primeiro, ao professor Rogrio de Souza que, na

    graduao, com suas indicaes e conselhos contribuiu de sobremaneira para a

    concretizao desse trabalho, fazendo com que ele deixasse de ser um sonho.

    Segundo, professora Edinlia Maria Souza Oliveira que, durante o curso de

    especializao, abriu novos horizontes para a pesquisa propondo outras abordagens

    para o tema.

    Aos professores Gilmrio Moreira e Lina Maria Brando de Aras que,

    durante a qualificao do meu trabalho, me indicaram possibilidades e fizeram

    sugestes prestimosas para o crescimento qualitativo desta pesquisa.

    Aos professores e professoras do Programa de Ps-Graduao em

    Histria Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia, Campus V, em

    especial ao professor Charles DAlmeida Santana, a quem devo o incentivo para

    enveredar pelo estudo do cotidiano do homem do campo.

    queles que tecem/teceram a histria que aqui narro: Pedro Dudu (Pedro

    Andrade); Jos Gajilo (Jos Gonalves); Carmerino Theth (in memoriam); Neide

    (Aurineide Theth); Caboclinha (Laura de Jesus Andrade - in memoriam); Antonio

    Corao (Antonio de Jesus); Maninho (Manoel Amado); Dona Pomba (Maria Nunes

    dos Santos); Hlio Nunes dos Santos; Madalena P. de Andrade e Domingos S. de

    Andrade. Todas essas pessoas que, com boa vontade, ao me emprestarem suas

    lembranas, deram vida e pulsao ao trabalho.

  • A minha famlia que direta ou indiretamente contribuiu para minha

    formao. Em especial, a minha querida me, Aurineide Theth, e a minha irm,

    Joseneide Theth, que me incentivaram e no me deixaram desanimar.

    A Hildete Leal, pela reviso criteriosa do texto e a indicao de caminhos

    para torn-lo leve e prazeroso leitura.

    Aos meus amigos e colegas de profisso, Derneval Ferreira, Luciene

    Rocha e Leninha, pelas leituras e sugestes que enriqueceram o texto, alm do

    apoio em momentos difceis na escrita da dissertao.

    A Simone Figueiredo e Fabiane da Silva, pela ajuda e troca de

    experincias durante o mestrado, com sugestes de textos e ideias que contriburam

    no desenvolvimento da dissertao.

    Aos meus amigos e colegas de mestrado: Margarete Nunes, Cristiane

    Lima, Caroline Lima, Lielva, Rejane, Rosngela, Daiane, Taiane, Regina,

    Wanderson, Kleberson, Fatinha, Leila Carol, Soane Cristino, Camila, Oscar, entre

    outros que no cito.

    A minhas amigas, Aline Miranda e Anna Carolina Reis Costa de Lima,

    pelas leituras de alguns dos meus textos e pelas crticas sempre bem vindas.

    A Catia Matias pela ajuda no abstratc e por sua solicitude em ajudar-me.

    E, por fim, mas no menos importante, toda minha gratido a Deus que

    me deu fora nas horas difceis, no s durante a pesquisa, mas ao longo de minha

    vida.

    Muito obrigada.

  • preciso dizer ento como habitamos nosso espao vital de acordo com todas as dialticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num "canto do mundo.

    Bachelard. A potica dos espaos, p. 26.

  • RESUMO

    Este trabalho apresenta um estudo sobre as relaes econmicas, sociais e culturais desenvolvidas pela populao local e fregueses no espao das vendas (estabelecimentos comerciais) do povoado do Tabuleiro, que est localizado no municpio de Mutupe - BA. Nos anos de 1960 a 2000 as vendas exerceram uma grande influncia sobre a vida cotidiana dos indivduos que conviviam nessas espacialidades, sobrepondo suas funes essencialmente comerciais para assumir mltiplos papis, dentre eles, destaca-se a funo sociabilizadora das vendas que se tornaram um verdadeiro observatrio popular. Contudo, essas casas comercias e, consequentemente, o povoado sofreram, ao longo do tempo, uma srie de mudanas que acabaram resultando na decadncia das vendas e influram na dinmica cotidiana do Tabuleiro ao gerar rupturas e permanncias em costumes e tradies, como por exemplo as que ocorreram nos festejos do brinquedo de roda e da burrinha. No bojo dessas transformaes vivenciadas no povoado podem ser citadas: a introduo de elementos da modernizao; as migraes; as reformas infraestruturais; a ressignificao de antigas tradies, entre outras. Para a realizao da pesquisa foram utilizadas, sobretudo, narrativas de moradores locais, que, por meio das memrias expressas pela oralidade, abriram perspectivas variadas no s para reconstruir uma histria do povoado e de suas vendas, como tambm para refletir sobre o processo de ressignificao da memria em diferentes situaes e temporalidades.

    Palavras-chave: vendas; cotidiano; memria; cultura; sociabilidade; modernizao.

  • ABSTRACT

    This work presents a study about the economic, social and cultural relations, developed by the local population and customers in the vendas of the village of Tabuleiro, located in the municipality of Mutupe, State of Bahia. From 1960 to 2000, the vendas had a great influence on daily life of the people who lived in Tabuleiro, leaving of being just a commercial establishment to assume many functions, among them, become a true popular observatory. However, these commercial establishments and, consequently, the village had suffered, throughout the time, a lot of changes that had in result the decay of the sellings

    and these facts influenced in

    the Tabulieros daily dynamics, transforming, for example, the customs and traditions of that place, occurring into celebrations like: the brinquedo de roda and burrinha. Among the changes experienced by people who lived in the village can be mentioned: the introduction of modernization elements; the migrations; the infrastructural reforms; the changes in the old traditions, and others. For the realization of this research had been used, principally, narratives of local inhabitants, that through of memories expressed by the orality, had opened varied perspectives not only to reconstruct a history of the Tabuleiro and its vendas, as well as to reflect on the process of memory construction in different situations and temporalities.

    Key words: vendas; quotidian; memory; culture; sociability; modernization.

  • LISTA DE FOTOGRAFIAS, FIGURAS E TABELAS

    FOTOGRAFIA 01: Venda Santa Ana................................................................ 35

    FOTOGRAFIA 02: Cantoria na venda do Sr. Jos Gonalves....................... 56

    FOTOGRAFIA 03: Crianas na Venda............................................................. 66

    FOTOGRAFIA 04: O festejo da burrinha na cidade de Mutupe...................... 84

    FOTOGRAFIA 05: Viso panormica do povoado do Tabuleiro...................... 104

    FOTOGRAFIA 06: O vendeiro Juvenal Santos e sua esposa.......................... 110

    FIGURA 01: Vale do peso de cacau assinado pelo vendeiro

    Juvenal S. Andrade.......................................................................................... 47

    FIGURA 02: Carta com pedido de noivado Dona Maria Nunes..................... 81

    TABELA 01: Evoluo da utilizao das terras na regio do

    Vale do Jiquiri 1970-1980........................................................................... 95

    TABELA 02: Participao das reas de lavoura na rea total dos

    estabelecimentos por municpios do Vale do Jiquiri 1975 1980................. 95

  • ABREVIATURAS

    COBER Companhia Baiana de Eletrificao Rural

    SEBRAE - Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas da Bahia

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    SEI - Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia

  • SUMRIO

    INTRODUO.....................................................................................

    14

    CAPTULO I - O COTIDIANO DAS VENDAS...................................... 32

    1.1 As lojas das roas..........................................................................

    32

    1.2 A venda e suas mltiplas funes..................................................

    41

    1.3 Vendeiros e fregueses - uma relao marcada pela tica rural.....

    46

    1.4 Lugares de prosa...........................................................................

    50

    1.5 Venda: um espao praticado e ressignificado...............................

    58

    CAPTULO II - VIVER NA ROA........................................................ 68

    2.1 O povoado do Tabuleiro ................................................................

    68

    2.2 Quando os faces e enxadas do lugar diverso.......................

    75

    CAPTULO III - O TEMPO E O VENTO: PERMANNCIAS E MUDANAS NA VIDA COTIDIANA DO TABULEIRO........................

    91

    3.1 Ressonncias, repercusses sentimentais e recordaes do passado................................................................................................

    91

    3.2 A decadncia das vendas .............................................................

    102

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................

    1115 FONTES .............................................................................................

    119

    REFERNCIAS ..................................................................................

    1122

  • 14

    INTRODUO

    O povoado do Tabuleiro1, localizado no municpio de Mutupe, estado da

    Bahia, o objeto de estudo desta pesquisa que, mais do que preocupada em

    reconstituir sua origem e formao, busca analisar como uma comunidade rural,

    distante cerca de 4 km da sede do municpio, esteve intrinsecamente ligada s suas

    vendas, participando da dinmica scioeconmica e cultural do local.

    A palavra vendas designa as casas comerciais das zonas rural e urbana

    de muitas localidades do Brasil. As vendas ainda constituem espaos tradicionais de

    bairros de inmeras cidades. Na Bahia, elas so comumente chamadas de bodegas,

    bibocas, mercearias, armazns, etc. Devido organizao espacial e variedade de

    funes, a maior parte delas negocia com secos e molhados e complementa seus

    estoques e encargos a partir das necessidades dos lugares em que se instalam. Na

    essncia, elas carregam o princpio de fornecer de tudo um pouco populao.

    O Tabuleiro um povoado formado por pequenos agricultores e

    trabalhadores rurais, que vivem em torno da policultura da mandioca, feijo, milho,

    coco, banana, guaran, cravo, entre outros. Todavia, o cultivo do cacau e a criao

    de gado, a partir dos anos de 1960, ganharam fora, constituindo-se, atualmente, os

    grandes responsveis pelo sustento econmico da populao local.

    No que diz respeito estrutura fsica, esse povoado, outrora denominado

    Riacho do Mutum 2, , atualmente, formado por um arraial onde se encontram

    algumas dezenas de casas residenciais, uma escola fundada em 1948 e uma venda

    em funcionamento, alm de propriedades rurais. Ao longo do tempo o povoado

    sofreu algumas mudanas, como o esvaziamento populacional do lugar fruto de

    migraes, mudanas na produo agrcola, entre outras. O que destoa do passado

    quando as vendas se multiplicavam ao longo da antiga estrada vicinal que corta o

    Tabuleiro, que nos dias de sbado era tomada por tropas de mulas carregadas de

    mercadorias, animais de passeio e trabalhadores rurais do local e de povoados

    vizinhos que se dirigiam s vendas para fazer feira, negociar os produtos da roa,

    1 O povoado faz parte do municpio de Mutupe. O municpio localizado na sub-regio do Vale do

    Jiquiri, na zona fisiogrfica do Recncavo Sul, tendo uma extenso territorial de 358 Km, com populao de 20.462 habitantes. Cf: Diagnstico dos Municpios Vale do Jiquiri. SEBRAE, maro de 1995. 2 A partir da observao de algumas escrituras de terra dos moradores do povoado, na segunda

    metade do sculo XX, o local onde est situado o povoado do Tabuleiro era denominado Riacho do Mutum. Cf: Comarca de Mutupe. Escritura de terra do Sr. Jos Gonalves, livro n 24, fls. 112-114.

  • 15

    permutar animais e jogar conversa fora, quase sempre acompanhados de um copo

    de cachaa e um cigarro de fumo picado envolvido em fina palha de milho ou papel

    de seda.

    No Tabuleiro, as vendas assumiam mltiplos papis, alm de fornecer

    mercadorias variadas ao consumo dos fregueses, grande parte agregava as funes

    de armazm, aougue e casa de jogos. Ao que parece, a sua essncia mltipla se

    constitui, ao longo do tempo, conforme as necessidades de consumo e lazer da

    localidade, somando-se a outros fatores como a distncia dos centros urbanos e a

    prpria opo dos consumidores pelas vendas locais no momento de realizarem as

    compras e negociarem a produo agrcola de suas roas.

    A preferncia dos fregueses descortina outra faceta das vendas que seu

    carter socializador. Por ser um espao que promove a interao dos indivduos, a

    funo comercial o incio de relaes que, aos poucos, pela frequncia e

    intimidade, proporciona o estreitamento dos laos de amizade e solidariedade dos

    seus frequentadores.

    Segundo Sidney Chaulhoub (1986), a venda um reduto de lazer

    popular, pois congrega as pessoas em torno do lazer, da diverso, mas, tambm,

    abre margem a relaes diversas de convivncia, expondo conflitos e tenses da

    vida social. As vendas, desse modo, tm um significado importante na vida cotidiana

    do Tabuleiro. O povoado tornou-se famoso, justamente, por ter um comrcio

    influente, que atraa compradores e negociantes de localidades vizinhas. A partir

    dessas observaes iniciais, a pesquisa se direcionou no sentido de compreender

    como se davam as interaes cotidianas entre os frequentadores das lojas rurais e

    os desdobramentos na vida econmica, cultural e social do povoado.

    Esta pesquisa se apoiou nas vivncias e experincias de sujeitos de

    carne e osso, que sentem dores, alegrias, saudades e sonham. Assim, ao privilegiar

    suas lembranas e impresses sobre a vida ao longo de um tempo to incerto

    quanto o da memria, determinar um recorte temporal com preciso calendar

    tornou-se invivel. Aquilo que rememorado no se inscreve num tempo fixo; por

    vezes, datas e objetos significativos ajudam o processo de desencadeamento das

    lembranas, mas, neste trabalho, por sua natureza, optou-se adotar uma baliza

    temporal, a determinar temporalidades monolticas.

    No que tange s memrias dos indivduos entrevistados sobre os

    aspectos histricos do povoado, elas remontam a quase todo o sculo XX. Porm,

  • 16

    pela prpria formao histrica do Tabuleiro, pode-se dizer que, a partir da dcada

    de 1960 at os primeiros anos sculo XXI, o vilarejo sofreu profundas mudanas e,

    por seu carter dinmico e transformador, a pesquisa privilegiou as memrias

    referentes a essa temporalidade. Dentre essas transformaes, destacam-se: a

    desativao da Estrada de Ferro de Naraz; a decadncia do tropismo; a abertura

    de uma estrada de cho ligando o povoado sede do municpio; a chegada da luz

    eltrica; e o crescimento da pecuria e da produo cacaueira, entre outras.

    Alis, abro um parntese aqui para explicar ao leitor alguns aspectos que

    envolvem os sujeitos dessa pesquisa e a mim como pesquisadora. A escolha desse

    povoado como objeto de pesquisa foi influenciado pelas minhas vivncias no lugar,

    visto que meu pai, Juvenal dos Santos Andrade (1948-2002), foi vendeiro no

    Tabuleiro por mais de 30 anos. A histria de vida das pessoas que narro aqui, de

    certa forma, tambm a minha, na medida em que vivenciei o cotidiano desse lugar.

    Alguns dos entrevistados so meus parentes, como a Sra. Aurineide Theth

    Andrade, minha me, e o Sr. Carmerino Theth, meu av, e todos os outros citados

    so pessoas com as quais convivi durante grande parte da minha vida. Foi por

    compartilhar dessas vivncias que decidi fazer um estudo das vendas e do povoado.

    Esses lugares de memria, com caractersticas prprias, cheiros, sabores,

    sensaes tteis, remetem a lembranas de minha infncia e juventude, das horas

    que ficava sentada no balco da venda, observando meus pais trabalharem. E,

    embora, conserve a distncia necessria para manter o rigor do ofcio, deixo aqui

    tambm minhas prprias experincias e memrias.

    Ter vivido nesse povoado, assim como ter frequentado os espaos das

    vendas foi o que despertou o desejo de desenvolver uma pesquisa histrica sobre o

    Tabuleiro. No incio, desde a graduao quando comecei a pesquisar esse tema, me

    chamou a ateno o fato de um pequeno povoado possuir, em seu passado, uma

    quantidade significativa de vendas que mantinham um comrcio dinmico,

    absorvendo quase toda a produo agrcola local. A partir da outras indagaes

    emergiam medida em que a pesquisa se desenvolvia, tais como: por que as

    pessoas do lugar davam preferncia s vendas no momento de comercializar a

    produo agrcola de suas roas? Por que raramente iam ao centro urbano da

    cidade de Mutupe negociar? Por que o Tabuleiro era geralmente associado as suas

    vendas? O que havia nesse lugar que atraa tanta gente? O que as vendas

    representavam na vida dos moradores do lugar? Como elas influam no cotidiano do

  • 17

    povoado? Como as pessoas do lugar viviam, trabalhavam, divertiam-se? Enfim,

    esses questionamentos deram origem problemtica da pesquisa: analisar, atravs

    de um olhar histrico, o cotidiano de uma comunidade rural marcado pelas vendas.

    Para entender como esses estabelecimentos comerciais estavam

    entrelaados vida dos moradores do lugar, bem como suas memrias esto

    carregadas de impresses de um passado social, criado e recriado pela convivncia

    compartilhada entre os sujeitos e lugares, o dilogo com as fontes foi imprescindvel

    para dar liga a uma massa de lembranas de indivduos nicos. Fossem escritas,

    orais ou imagticas, cada fonte, dentro de sua especificidade de abordagem,

    contribuiu para compor um corpus de informaes suficiente, se no apenas para

    resolver as questes iniciais formuladas durante a pesquisa, mas para suscitar

    outras tantas, que se configuram em indcios valiosos para os pesquisadores que

    enveredam nas sendas incertas da histria.

    As fontes usadas na pesquisa foram variadas, somaram-se s narrativas

    orais, documentos escritos e fotografias. No obstante, as memrias expressas nas

    narrativas orais dos entrevistados constituem o cerne deste trabalho, no pela

    inexistncia de outros tipos de evidncias, mas por tratar-se de uma pesquisa que

    lida com as sensibilidades de homem e mulheres do campo. O ato de narrar

    demonstra comportamentos prprios de cada um, permeados de impresses to

    diversas da vida, que proporciona ricos objetos de investigao.

    Nos momentos de dilogo com os narradores, um gesto furtivo, uma

    pausa demorada na fala, uma queixa sobre a vida, os sorrisos provocados por

    lembranas to variadas acrescentaram pulsao pesquisa, o que, s vezes,

    escapa impessoalidade do registro escrito. Para Raphael Samuel (1989-90,

    p.231), h tipos de pesquisas que apenas podem ser realizadas com a ajuda de

    uma testemunha viva, ou testemunhas, que, atravs de suas memrias expressas

    pela fala, podem contribuir para acrescentar pesquisa outras nuances muitas

    vezes diferentes a outros tipos de fontes.

    O historiador lida com seres nicos; portanto, depara-se com diferentes

    verses de um determinado acontecimento. Cada pessoa pode produzir um grande

    nmero de histrias em potencial, a memria no est desassociada do indivduo,

    mas passa por ele. Procurar semelhanas nas narrativas ou dados que confirmem

    as informaes pode levar o historiador ao anacronismo. Quem sabe sejam nas

    diferenas, nas inconstncias entre as impresses dos sujeitos que esteja aquilo que

  • 18

    vai descortinar um novo mundo de possibilidades pesquisa. Para apreender tais

    sensibilidades, Portelli (1997) alerta e, at mesmo, orienta o historiador que trabalha

    com narrativas orais para o ato de ouvir e estar disposto a mudar seus

    posicionamentos a partir dos indcios dados pelas fontes. Para esse autor,

    A arte essencial do historiador oral ouvir (...) se ouvimos e mantivemos flexvel nossa pauta de trabalho, a fim de incluir no s aquilo que acreditamos querer ouvir, mas tambm o que a outra pessoa considera importante dizer, nossas descobertas vo superar nossas respostas (PORTELLI, 1997, p. 22).

    Durante a realizao das entrevistas foram ouvidos diversos indivduos,

    dentre eles os vendeiros, fosse homem ou mulher, os moradores do Tabuleiro, alm

    de sujeitos que frequentavam o povoado e tinham memrias diversas do lugar.

    preciso destacar que muitos aspectos apreendidos nas entrevistas foram registrados

    em longas conversas informais, ocasies em que, muitas vezes, o gravador no

    registrou, mas que, durante o momento do cafezinho, da conversa descontrada,

    ficaram gravados na minha memria e, de alguma forma, permeiam as

    interpretaes das fontes e a escrita do texto.

    As narrativas foram transcritas na ntegra, como uma forma de respeitar

    valores culturais e formas orais de expresso de um grupo de pessoas que criaram

    socialmente sentidos prprios as suas vivncias. A inteno era no deixar fugir, na

    transcrio reinterpretativa das fontes orais, aspectos lingusticos que caracterizam

    as formas de dizer dos indivduos. Na fala, emoes podem ser captadas, logo,

    uma transcrio feita sem critrios pode comprometer o sentido daquilo que se

    queria dizer, quanto mais prximo ao dito pelo narrador, mais rico torna-se o relato

    oral.

    J as fotografias constituem as fontes imagticas, muitas delas recolhidas

    entre os moradores locais, outras produzidas durante a pesquisa de campo. As fotos

    foram utilizadas como objetos de investigao histrica que apreenderam

    experincias de trabalho, de lazer e aspectos cotidianos dos moradores do

    Tabuleiro. As imagens mostraram-se como elementos portadores de memrias,

    objetos tcteis que carregam consigo valores sociais e afetivos, significativos nas

    vidas das pessoas.

  • 19

    Susan Sontag (1981), que h dcadas vem se dedicando aos estudos da

    fotografia, chama a ateno para o fato de que o sentido da imagem fotogrfica

    permite a presentificao do passado, que, todavia, s ganha sentido se tiver sido

    identificado ou caracterizado (SONTAG, 1981, p.18). A imagem um texto e

    apresenta um contexto, sua compreenso fica afetada ao analisar a imagem por ela

    mesma. Portanto, a fotografia ganha sentido no momento em que mediada,

    traduzida interpretativamente em palavras que a signifiquem. Da a importncia de

    ter junto aos portadores da fotografia a histria da prpria imagem. s vezes, o

    contexto em que foi produzida pode contar mais sobre um determinado fato do que o

    momento eternizado no papel.

    Dentre os documentos escritos, utilizou-se uma carta, escritura de terra,

    leis, vales de compra e venda cedidos por vendeiros, assim como estudos

    econmicos e demogrficos desenvolvidos por centros de pesquisa como o IBGE,

    SEI e SEBRAE. O cruzamento de tais fontes foi importante por evidenciar aspectos

    polticos e socioeconmicos constituintes da vida cotidiana e produtiva do povoado,

    e proporcionar as conexes com acontecimentos regionais e nacionais, j que o

    Tabuleiro est inserido em um contexto macrorregional.

    A anlise de cada tipo de documento ajudou a formar um arcabouo de

    informaes que compe no s o trabalho aqui apresentado como contribui para

    desmitificar as associaes que comumente se faz do meio rural como lugar de

    atraso, ignorncia e limitao (WILLIAMS, 1989, p.11), quando, constitui-se, dentro

    de sua ampla gama de objetos e sujeitos, um vasto campo de estudo para histria.

    E, ao abordar os modos de vida da populao local, suas manifestaes culturais,

    sua relao com as vendas, contribui-se para, atravs da oralidade e da memria,

    apreender aspectos de sua vida passada, que os documentos no registraram e so

    importantes para entender, hoje, as rupturas e permanncias, valores e

    experincias, comportamentos e atitudes marcantes e/ou constituintes de sua

    histria.

    Nessa perspectiva, a relevncia desta pesquisa est em mostrar como

    uma localidade rural, aparentemente sem grandes acontecimentos importantes e

    aspectos histricos ditos relevantes, pode constituir um rico objeto de estudo capaz

    de revelar a histria de um local e sua gente. Principalmente, por lanar luz sobre a

    participao das vendas na vida cotidiana do homem do campo, que embora no

    seja um tema desconhecido, pouco abordado pelos historiadores. Assim, busco

  • 20

    aqui aprofundar e problematizar tais espacialidades enquanto lugares de

    socializao e trocas econmicas e culturais.

    A feitura de um trabalho de pesquisa histrica requer uma srie de

    cuidados e tratamentos especficos. Alm de estabelecer os tipos de fontes que

    sero usadas, os mtodos de investigao, os referenciais bibliogrficos e,

    sobretudo, quais campos historiogrficos ir percorrer, importante ter um

    referencial terico-metodolgico coerente com a pesquisa desenvolvida, pois evita

    torn-la um apangio de abordagens distintas, perdida na hiperespecializao do

    conhecimento histrico.

    Barros (2004) chama a ateno para esse aspecto ao enfatizar e discutir

    como os historiadores tm sentido dificuldades em situarem os trabalhos

    historiogrficos nos diversos campos da histria. Para esse autor, a crescente

    fragmentao do conhecimento, consequentemente, da prpria histria em

    subespecialidades tem gerado uma fragmentao de perspectivas. Assim, no h

    mais uma nica maneira de ver os acontecimentos, justamente pela ausncia de

    certezas que serviam de modelo para o enquadramento do conhecimento cientfico.

    O historiador no tem mais uma ideia homognea de seu ofcio. Os modelos de

    histria total passam por uma crise paradigmtica. Diante disso, Barros (2004)

    enfatiza que no h uma obrigao de encaixar o trabalho historiogrfico em um

    determinado campo da histria,

    Na verdade isso no possvel, j que a ampla maioria dos bons trabalhos historiogrficos situa-se na verdade em uma interconexo de modalidades. Se so bons, so complexos. E se so complexos, ho de comportar algum tipo de ligao de saberes, seja os interiores ou exteriores ao saber historiogrfico (BARROS, 2004, p. 7-8).

    Uma alternativa proposta por Barros (2004) seria estabelecer alguns

    critrios de diviso que facilitariam o processo de interconexo dos diversos

    domnios da histria. Segundo ele,

    A chave para compreender estes vrios campos, (...) est em distinguir muito claramente as divises que se referem a dimenses (enfoques), as divises que se referem a abordagens (ou modos de fazer a Histria), e as divises interminveis que se referem aos domnios reas de concentrao em torno de certas temticas e objetos possveis (BARROS, 2004, p. 8).

  • 21

    As consideraes iniciais sobre a problemtica da feitura de um trabalho

    historiogrfico apontadas por Barros (2004) serviram para refletir as abordagens que

    a pesquisa sobre o povoado do Tabuleiro requereu ao discutir sua vida cotidiana,

    analisando as relaes que as pessoas do lugar estabelecem com as vendas, bem

    como as formas de sociabilidades e conflitos presentes na vida cotidiana daqueles

    que vivem nessa localidade. Tais abordagens terico-metodolgicas se fizeram

    necessrias visto que a pesquisa passeia por diversas dimenses da histria e por

    outros domnios. Essas ponderaes deram um norte pesquisa e ajudaram a

    pensar os problemas e desafios inerentes a ela.

    Ainda no que diz respeito pesquisa em foco, foram contempladas, entre

    as abordagens e dimenses propostas por Barros (2004), pelo menos, trs ramos da

    histria: a Histria Regional e Local, a Histria Cultural e a Histria Oral, alm de

    outros caminhos pelos quais tais campos da histria enveredam como os estudos do

    cotidiano e da memria.

    Dentre os diferentes conceitos de Histria Regional e Local, Neves (2002)

    ressalta a ideia de pertencimento ao espao, que o indivduo o reconhece como

    parte de sua Histria e a noo espacial se dilui, o homem se funde ao lugar,

    reconhece-o como seu, criando uma identificao. Conforme esse autor,

    A Histria Regional e Local consiste numa proposta de estudo de atividades de determinado grupo social historicamente constitudo, conectado numa base territorial com vnculos de afinidades, como manifestaes culturais, organizao comunitria, prticas econmicas, identificando-se suas interaes internas e articulaes exteriores e mantendo-se a perspectiva de totalidade histrica (NEVES, 2002, p. 45).

    Diferente de Neves (2002), que v a regio como uma construo histria

    de indivduos que criam laos de pertencimento ao lugar, para Albuquerque (2003,

    p. 8) a noo de regio mais que uma delimitao territorial, ela uma construo

    histrica, cultural e imagtico-discursiva. Definio essa a que o autor chegou ao

    observar como o surgimento de uma identidade nordestina se deu a partir de um

    discurso circunscrito numa relao de poder, na qual a decadente aristocracia

    nordestina, diante de um momento histrico que alimentava um discurso de

    apagamento das diferenas regionais e integrao nacional, se via ameaada,

  • 22

    portanto fazia-se necessrio manter uma memria espacial, que conservasse viva

    essa dominao. A Regio Nordeste surge, assim, como uma inveno discursiva.

    Embora o Nordeste, estudado por Albuquerque (2003), tenha sido

    resultado da construo discursiva de uma elite social, sua concepo de regio

    desenvolvida no livro A inveno do Nordeste se configura uma realidade diferente

    daquela na qual o Tabuleiro est inserido. Porm, os conceitos de Histria Regional

    destacados por Albuquerque (2003), aplicados a essa pesquisa, fazem pensar como

    o sentimento regionalista no se limita a meras fronteiras geogrficas. A regio pode

    ser uma criao histrica, um discurso construdo de uma dada visibilidade e

    dizibilidade.

    A existncia fsica de um lugar, de um espao, s ganha sentido na

    prtica cotidiana, nas relaes afetivas, nas sensibilidades que se constituem entre

    os sujeitos e os lugares por eles frequentados. Neves (2002, p. 45) destaca que o

    regional e o local no esto desvinculados do extrarregional, do nacional, do que

    acontece em outras localidades.

    O Tabuleiro no est parte de acontecimentos macrorregionais. Houve

    a preocupao de fazer, sempre quando possvel, a ponte entre os acontecimentos

    no s do lugar como do Brasil e do mundo. Afinal, como aponta Ana Fani Carlos

    (1996, p. 28-29),

    O lugar aparece como um fragmento do espao onde se pode apreender o mundo moderno, uma vez que o mundial no suprime o local. O lugar se produz na articulao contraditria entre o mundial que se anuncia e a espacialidade histrica do particular.

    Como se pode depreender das ideias de Ana F. Carlos (1996), nesse

    processo de interao, entre o particular e o geral, do micro com o macro, que

    possvel estabelecer um nmero maior de relaes e interpretaes nas aes

    cotidianas. As especificidades se explicam e ganham significado, possibilitando

    atingir as sensibilidades dos homens do passado, revelar como eles representavam

    a si prprios e ao mundo. Um mundo simblico repleto de sentidos, por vezes

    imperceptveis, multifacetados e, ao mesmo tempo, mensurveis em certos

    aspectos, em aes concretas, palpveis, passveis de medio e comprovao.

    O palco de atuao dos indivduos no o mero espao delimitado por

    seus passos inscritos, provisoriamente, no cho que corresponde ao territrio onde

  • 23

    habitam. O espao significado nas vivncias dirias, na forma como os indivduos

    o praticam. As aes dirias urdem experincias de vida, que relevam como homem

    e mulheres pensam e se comportam. Assim, o cotidiano o lugar privilegiado para

    observar como a vida se desenrola, porque longe de ser o lugar da banalidade, no

    dia-a-dia que as vidas ganham sentido.

    No Tabuleiro, o cotidiano est ligado ao trabalho no campo, ligao dos

    moradores com a natureza, agitao das vendas, s festas tradicionais, s

    conversas nos passeios das casas, enfim a cada lugar por onde passam esses

    indivduos deixando suas marcas. Os estudos sobre o cotidiano se mostram de

    grande valia para aqueles que se dedicam aos estudos locais. Muitas vezes, na

    vida de todo dia que os historiadores encontram as chaves que abrem as portas que

    conduzem ao entendimento do conhecimento histrico produzido pelos indivduos

    nas relaes sociais, sobretudo, em um ramo da histria onde as experincias de

    vida so fundamentais para sua compreenso.

    Acerca dessas consideraes, as ponderaes feitas por Certeau (1994,

    p. 41) no livro A Inveno do Cotidiano so de grande valia. O autor argumenta

    que os mecanismos de poder, regulamentao e disciplinamento da sociedade, que

    tentam regular e controlar a vida dos homens, podem ser burlados por prticas,

    tticas e estratgias de sobrevivncia que os indivduos criam na dinmica cotidiana.

    A vida social torna-se espao de negociao dentro de um cotidiano improvisado,

    sempre possvel de ser re-inventado.

    Por sua vez, Agnes Heller (1992, p. 17) argumenta que a vida cotidiana

    a vida de todo homem. Ele est imerso na cotidianidade, no escapa a sua

    dinmica. O indivduo , ao mesmo tempo, um ser particular e ser genrico, porque

    cada sujeito nico e capaz de fazer escolhas individuais, assim como produto de

    suas relaes sociais e sujeitos as suas influncias a partir de assimilaes. Esse

    termo usado pela autora para se referir s formas de intercmbio social, nas quais

    o indivduo mediado por grupos (famlia, escola, comunidade, etc.) apreende os

    elementos da cotidianidade (HELLER, 1992, p. 21).

    Os estudos do cotidiano encontram guarida tambm na Histria Cultural,

    pois, como afirma Barros (2004, p. 57), a vida cotidiana est inquestionavelmente

    mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, o indivduo j produz cultura. A histria,

    que, por muito tempo, se recusou em ver historicidade na cotidianidade, nas suas

    prticas e representaes sociais, tem na Histria Cultural uma gama de objetos de

  • 24

    estudo, diversidade to grande que os historiadores que se debruam sobre os

    estudos culturais tm sentido dificuldade de estabelecer noes de cultura e limitar

    seus domnios de investigao. J que se trata de uma dimenso mltipla, plural,

    complexa e que pode gerar diversas aproximaes diferenciadas.

    Diante dessa diversidade, interessante abordar algumas das principais

    discusses acerca da temtica da cultura e dos tericos que contriburam com suas

    concepes pesquisa. Nas ltimas dcadas questes, como a prpria concepo

    de cultura, a legitimidade na diviso entre cultura popular e erudita, a consistncia

    de certos conceitos como: os de biculturalidade de Burke (1989); circularidade,

    utilizado por Ginzburg (1987); multiculturalismo, usado por Hall (2003); e

    hibridismo cultural de Bhabha (2005). Esses so alguns exemplos de conceitos de

    cultura que tm gerado uma larga produo historiogrfica. Para se ter uma noo

    do que vem sendo produzido, vale citar alguns nomes de referncia nos estudos

    culturais e como eles abordam o tema cultura.

    A concepo de circularidade cultural que prope como recprocas as

    influncias entre a cultura dos segmentos dominantes e subalternos movendo-se

    de baixo para cima constitui-se noutra importante contribuio de Ginzburg (1987),

    inspirado nos trabalhos de Bakhtin (1987). No movimento de circularidade, ambas as

    culturas popular e erudita se influenciam mutuamente, de acordo com valores

    prprios de cada classe social.

    Aproximando-se do conceito de circularidade cultural, Peter Burke (1989,

    p. 56) cunhou o termo biculturalidade, para expressar o quanto os membros das

    elites conheciam e participavam da cultura popular, ao mesmo tempo em que

    preservavam sua cultura; ou seja, prticas culturais eram compartilhadas entre

    membros do povo e das elites. Todavia, a expresso cultura popular e erudita/elite

    criticada dada a extenso e a impresso homogeneizante que passa. Roger Chartier

    (1991, p. 138-178), um de seus crticos, defende a ideia de que os sujeitos se

    apropriam e representam as prticas culturais de formas diversas. H imbricaes

    entre elas e diferentes maneiras de apropriao dos objetos, no sendo, por vezes,

    possvel estabelecer a fronteira entre popular e erudito, encontrando formas originais

    de cultura do povo como queria alguns historiadores.

    Thompson (1987), em outra perspectiva e mais ligado Histria Social,

    foi um dos pioneiros no que tange aos estudos de Histria Cultural, aproximando os

    dois campos, ao afirmar que a classe social se constitui numa formao econmica

  • 25

    e tambm cultural (THOMPSON, 1987, p. 10). Nos seus estudos culturais sobre a

    classe camponesa e urbana, assim como as transformaes operadas na Inglaterra

    do sculo XVIII, observou que a cultura popular pode ser inserida nos movimentos

    das classes trabalhadoras em defesa de seus costumes ante as mudanas do

    mundo industrial moderno, o que ele chamou de economia moral da multido

    (THOMPSON, 1998, p. 152), assumindo um ntido vis de luta de classes na defesa

    de seus costumes que incluam tanto condies de trabalho como festas, feiras, vida

    em tabernas e ritos sociais.

    Os diferentes pontos de vista demonstram que, ainda hoje, arriscado

    assumir conceitos cristalizados sobre cultura. Os tericos mencionados e outros

    tantos revelavam que a cultura no pode ser reduzida a meros esquemas, limitada

    em um conjunto de crenas e costumes. A cultura permeada de representaes,

    apropriaes, simbologias, variando de acordo com experincias e vivncias dos

    diferentes sujeitos histricos, lugares, espaos, relaes econmicas, polticas e

    sociais. Cabendo queles que se dedicam ao estudo dessa temtica avaliar quais os

    melhores conceitos ou procedimentos a serem adotados diante da vasta gama de

    significaes do termo.

    Em maior ou menor grau, esses autores contriburam para essa pesquisa,

    embora em suas obras as discusses a respeito da cultura se debatam com

    realidades diversas e conceitos mpares. Trabalha-se, aqui, ento, com a ideia de

    cultura como uma ao tecida no dia-a-dia das relaes sociais, permeando as

    prticas cotidianas dos indivduos, conforme as contribuies conceituais e tericas

    dos autores mencionados.

    Como j foi abordada anteriormente, a narrativa oral constitui a principal

    fonte usada no trabalho e, embora no necessite que os documentos escritos ou

    imagens a sustentem, ela, por si s, j uma evidncia. s vezes, para certas

    realidades, espaos e lugares pesquisados, a fonte oral se torna essencial, uma vez

    que capaz de ampliar a compreenso do contexto, produzir outras informaes

    disponveis apenas na memria das pessoas.

    Os defensores do status da Histria Oral como disciplina, apesar de

    inmeras divergncias entre eles sobre determinados pontos tericos, partem de

    uma ideia fundamental: a histria oral inaugurou tcnicas especficas de pesquisa,

    procedimentos metodolgicos singulares e um conjunto de procedimentos prprios

    (AMADO & FERREIRA, 1998, p. 13). Ainda na concepo de Janaina Amado e

  • 26

    Marieta de M. Ferreira, como disciplina, a Histria Oral dispe de um corpus terico,

    que seus crticos consideram impreciso e inconsistente. Aqueles que a tomam como

    uma metodologia fazem uso das suas tcnicas de recolhimentos das fontes orais e

    procedimentos de interpretao da Histria Oral, mas no a dispem como uma

    dimenso histrica capaz de se sustentar como uma disciplina.

    Muitas crticas Histria Oral se ancoram em uma suposta no

    confiabilidade, inconsistncia das memrias, imprecises de seus objetos de

    estudos. A est o plus da Histria Oral, justamente por tratar da subjetividade, da

    memria, das narrativas, depara-se com esse complexo mundo dos desejos, das

    fantasias, dos sonhos que fazem parte de cada indivduo. Ao historiador cabe

    analisar como se do essas subjetividades, como se constroem nas relaes

    sociais; nesse sentido Thomson (1998) lembra que, no trabalho com as narrativas

    orais,

    (...) procuramos explorar as relaes individuais e coletivas, entre memria e identidade, ou entre entrevistador e entrevistado. De fato, frequentemente estamos to interessados na natureza e nos processos da rememorao quanto no contedo das memrias que registramos (THOMSON, 1998, p. 69).

    Thomson (1998) chama a ateno para a importncia de como se do os

    processos de rememorao, o que uma questo delicada na Histria Oral. Para

    evitar o uso indiscriminado da memria, a sua manipulao requer um procedimento

    tico do historiador na utilizao das narrativas, para que no produza uma farsa

    histrica, colocando o valor da Histria Oral em xeque. Segundo Portelli (1997, p.

    13), os historiadores orais tm a responsabilidade no s de obedecer a normas

    confiveis, quando coligem informaes, como tambm de respeit-las, quando

    chegam a concluses e fazem interpretaes.

    Alis, o objeto de estudo do historiador oral so as histrias de vida dos

    indivduos. O ato de narrar traz tona memrias de um tempo passado que vive no

    presente e novas experincias ampliam constantemente as imagens antigas e no

    final exigem e geram novas formas de compreenso (THOMSON, 1997, p. 57). Ou

    seja, as memrias esto em um constante processo de ressignificao. Desse

    modo, o que rememorado, de que forma so reconstrudas essas memrias e

  • 27

    como elas do sentido vida dos sujeitos constituem aspectos a serem investigados

    pelos historiadores.

    As narrativas orais, ento, remetem s memrias, j que as expressam

    com toda fora. Nas entrevistas, notou-se que os indivduos pensam e sentem de

    formas diversas, e essa profuso de reminiscncias distintas requer ajuda terica de

    autores que se dedicam problemtica das memrias (para no incorrer no risco de

    interpretaes precipitadas), bem como abordagens interdisciplinares que auxiliem

    no entendimento de seus mecanismos de funcionamento.

    Fala-se muito em memria coletiva, memria individual, memria social,

    enfim, vrios tipos e formas de rememorar e de construir memrias. Dentre os

    diversos conceitos, algumas consideraes se tornam necessrias. Burke (2000, p.

    74-75) traz duas abordagens sobre memria: primeiro, ele a considera uma

    construo social, que se vale de esquemas de identificao que levam ao

    aparecimento de outras memrias; e segundo, como a memria social influenciada

    por organizaes sociais e meios de comunicao de massa. O autor elenca,

    tambm, cinco elementos de propagao e formao das memrias sociais: as

    tradies orais, os relatos escritos, as imagens, aes que transmitem memrias

    como ritos de comemoraes e os espaos, lugares de memria. Esses elementos

    de construo no so ingenuamente usados, muitas vezes so tentativas de

    convencer, formar a memria de outrem ou tentativas de impor interpretaes do

    passado e construir representaes sociais, formadoras de identidades sociais.

    O que Burke (2000, p.83) busca enfatizar como os grupos sociais

    utilizam a memria de formas diferentes. Uma guerra, por exemplo, pode ser sentida

    de formas distintas, os vencedores podem dar-se ao luxo de esquecer, enquanto os

    perdedores no conseguem aceitar o que aconteceu e so condenados a remo-lo,

    reviv-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente. Isso expe as

    multiplicidades de identidades sociais, de memrias, que podem se valer de

    esquemas vrios de conformao e identificao. Muitas vezes at o esquecimento

    um ato proposital de apagamento de uma memria inconveniente, uma amnsia

    social, na definio do autor.

    A memria tambm feita de esquecimentos, de silncios, de selees e

    incluses, to mltiplas em seus aspectos constituintes que prope vrios desafios

    aos historiadores. Porm, pensar nas razes pelas quais ocorrem o esquecimento e

    o silncio, diz muito histria. Segundo Pollak (1989, p. 3), o silncio pode surgir

  • 28

    como uma forma de resistncia de uma memria reprimida e que, por muito tempo,

    no encontrou vazo, mas foi conservada e transmitida pelas geraes posteriores.

    O mesmo autor argumenta, ainda, que o silncio sobre o passado est ligado a uma

    necessidade de encontrar um modus vivendi, cujo esquecimento acomoda e ajuda a

    superar experincias traumticas.

    As variadas consideraes acerca da memria e suas imbricaes com a

    Histria Oral e aos estudos culturais e regionais remetem a Raphael Samuel

    (1989/1990, p. 232) ao chamar ateno para o fato de que o historiador pode fazer

    com que a pedra de toque se torne a experincia real da vida das pessoas,

    presentes no cotidiano, na vida cultural, nas memrias, nas vivncias que guardam

    um mundo de possibilidades de investigao histrica.

    Na perspectiva de pesquisar a vida cotidiana do povoado do Tabuleiro,

    partindo da questo inicial de observar como as vendas da localidade influam na

    vida social, cultural e econmica da populao do local, foram selecionadas algumas

    referncias bibliogrficas a fim de dar suporte terico-metodolgico pesquisa. Na

    ausncia de ttulos que tenham o povoado do Tabuleiro como objeto de estudo foi

    necessrio recorrer pesquisa de obras que tivessem algum registro histrico da

    cidade de Mutupe, da qual o Tabuleiro parte. Nesta busca foi selecionado o livro

    Mutupe, Pioneiros e descendentes, de Helena Rebouas (1992). O livro traz, de

    forma geral e, por vezes, descritiva, a histria da cidade, abordando desde sua

    formao at aspectos de cunho poltico, econmico, social e cultural do municpio;

    porm, no deixa de construir uma referncia bibliogrfica de grande valor diante da

    escassez de trabalhos historiogrficos a respeito do municpio.

    Para tratar do mundo rural (um dos objetos de estudo deste trabalho),

    foram selecionados alguns trabalhos de pesquisa histrica que tm em comum a

    reflexo sobre cotidiano do trabalhador rural, suas vivncias e experincias, bem

    como suas prticas de sobrevivncias, expresses culturais, costumes e tradies.

    Dentre eles, Fartura e Ventura Camponesas de Charles D Almeida Santana

    (1998), que se prope a discutir sobre as migraes de trabalhadores rurais das

    cidades de Santo Antnio de Jesus e Conceio do Almeida, entre os anos de 1950

    a 1980, e a forma como homens e mulheres conseguiram sobreviver perda da

    possibilidade de trabalho em suas cidades, assim como preservaram na memria

    percepes e recordaes da vida no campo, utilizadas pelo historiador, a fim de

    apreender mudanas / permanncias / incorporaes em seus costumes, hbitos,

  • 29

    valores e tradies no processo de rompimento com os laos que os prendiam

    regio, na medida em que, pressionadas pelas transformaes em seus modos de

    vida e trabalho, foram levados a assumir, em seus horizontes, a migrao para a

    capital baiana.

    Tambm foi de grande contribuio o trabalho de Edinlia Maria Oliveira

    Souza (1999), Memrias e tradies: viveres de trabalhadores rurais do municpio

    de Dom Macedo Costa Bahia (1930-1960). Trata-se de um estudo sobre a vida

    cotidiana e experincias de descendentes de escravos e mestios pobres, marcados

    por um passado de lutas contra a pobreza e por lembranas da escravido

    traduzidas em comportamentos, atitudes, valores, tradies e costumes que

    caracterizam a forma de viver dos trabalhadores do campo.

    Por sua vez, Sylvia Maria dos Reis Maia (1985), em Dependency and

    survival of Sapeau small farmers, contribui para o estudo do cotidiano no campo

    da cidade de Sapeau, localizada no Recncavo da Bahia. Nesse trabalho, a autora

    discute as estratgias de sobrevivncias, sobretudo, das trabalhadoras rurais, suas

    vivncias nas casas de farinha, a lida com os animais, enfim, o dia-a-dia nas roas.

    Aspectos fundamentais para entender como homens e mulheres do campo

    desenvolvem tticas de sobrevivncias na vida cotidiana.

    No que tange bibliografia sobre as vendas poucos foram os ttulos com

    essa referncia, e quando o fazem sempre de forma rpida e sucinta, restando a

    busca por obras com temticas prximas, compartilhadoras de certos pontos em

    comum com esses estabelecimentos comerciais. Abaixo seguem algumas obras

    com as quais tive contato e considero prximas do assunto em investigao:

    Os trabalhos de Fernand Braudel (1997/1998), primeiro e segundo

    volumes da trilogia Civilizao Material, Economia e capitalismo Sculos XV - XVIII.

    Obras que analisam o conjunto das trocas, desde o escambo at o mais sofisticado

    capitalismo, e cuja relevncia justifica-se por tratar do pequeno comrcio e seus

    mecanismos de funcionamento, aspecto indispensvel para compreender como as

    vendas influenciavam na vida econmica e social do povoado;

    O estudo de Sidney Chaulhoub (1986), Trabalho, Lar e Botequim,

    embora trate do dia-a-dia da classe trabalhadora no Rio de Janeiro da Belle poque,

    traz uma importante discusso sobre o botequim como observatrio popular. Palco

    de relaes sociais reveladoras de comportamentos, atitudes e valores culturais

  • 30

    desses sujeitos histricos, constituindo um estudo imprescindvel na compreenso

    das vendas no s como espao de trocas econmicas como de sociabilizao;

    O estudo de Maria Izilda Santos de Matos (2001), Meu Lar o

    Botequim, que outro importante referencial bibliogrfico. O livro tem como eixo

    central o alcoolismo e a construo da masculinidade nos discursos musical e

    mdico entre 1889 a 1940, atravs de campanhas sanitrias e publicitrias que

    veiculavam padres de sensibilidade, construindo novos hbitos, valores e costumes

    para homens e mulheres. O que contribui para entender questes de identidade,

    aspectos psicolgicos e outras peculiaridades inerentes aos frequentadores das

    vendas;

    As obras relacionadas constituem apenas a seleo de algumas

    referncias utilizadas nessa pesquisa, mas com a juno dos pressupostos

    terico-metodolgicos que o trabalho assume uma identidade, mesmo que mltipla

    em seus aspectos constituintes.

    Este texto est dividido em trs captulos. No primeiro, intitulado O

    cotidiano das vendas, discute-se o espao das vendas na sua estruturao

    organizacional, e o modo como essa espacialidade revestida de significados

    diversos para os sujeitos que a praticam. Tambm so analisadas as mltiplas

    funes das vendas e papis assumidos pelos vendeiros, com destaque para sua

    funo sociabilizadora, alm de discutir como elas influam na dinmica

    socioeconmica do Tabuleiro.

    No segundo captulo, abordada a vida cotidiana da populao do lugar,

    desde as atividades dirias, como o trabalho no campo, at os laos de

    solidariedade estabelecidos em atividades como os adjutrios, e as formas de lidar

    com as adversidades dirias atravs de jogos de astcias. Assim como foram

    discutidas as mudanas operadas no povoado com a introduo de elementos da

    modernizao tais como, a luz eltrica, a TV, os eletrodomsticos, a utilizao de

    mquinas nas atividades laborais, a construo de uma estrada ligando o povoado

    sede do municpio de Mutupe e seus impactos. Vale salientar que essas mudanas,

    a partir da segunda metade do sculo XX, foram apontadas pelos entrevistados

    como responsveis pela introduo de novos costumes e tradies, provocando

    rupturas e permanncias na tessitura sociocultural e fsica do lugar.

    Ainda no segundo captulo, em uma outra seo, trata-se das formas de

    sociabilidade presentes no povoado, dentre elas destacam-se o folguedo da burrinha

  • 31

    e o brinquedo de roda. Tais aspectos so observados em uma abordagem cultural, a

    fim de perceber como algumas dessas prticas sociais e muitas dessas festas e

    espaos de socializao foram deixando de existir ou ganharam novas

    configuraes, num processo de ressignificao de suas prticas, a partir de

    mudanas operadas no s no povoado como na sociedade brasileira.

    No terceiro e ltimo captulo, discutem-se os fatores que levaram

    decadncia das vendas e a forma como isso afetou o povoado. Dentre esses

    aspectos, destacam-se o crescimento da pecuria e da lavoura cacaueira, atividades

    concentradoras de terras, que motivaram migraes da populao para outros

    estados brasileiros, na busca de melhores condies de vida. Sem falar, no maior

    acesso da populao local a outras localidades e aos bens de consumo ofertados

    pela introduo de elementos da modernizao no lugarejo ou o aumento da

    violncia, como identificado nas narrativas ao longo da pesquisa.

    O trabalho apresentado tentou seguir os passos dos moradores do

    Tabuleiro ao analisar e discutir suas aes e atitudes, possibilitando apreender

    aspectos histricos no s de um lugar, como vivncias de pessoas que imprimiram

    no espao sua prpria histria. Uma vez que esses sujeitos, ao darem voz a suas

    experincias, deixando emergir as memrias de um tempo passado que ressoam no

    presente, possibilitaram o estudo de uma memria social criada e forjada na vida

    campestre.

  • 32

    CAPTULO I

    O COTIDIANO DAS VENDAS

    Tinha uma vendinha no canto da rua, onde o mangaieiro ia se animar. Tomar uma bicada com lamb assado, e olhar pra Maria do Jo.

    Sivuca

    1.1 AS LOJAS DAS ROAS

    Lugares de memria, assim refere-se Pierre Nora (1993) aos lugares

    onde a memria se cristaliza e se refugia; so vestgios do passado presentes no

    espao, no gesto, na imagem, nos objetos. Seguindo esses rastros de memria,

    encontram-se evidncias de um passado que o historiador, com seu olhar

    perscrutor, mesmo carregado de signos do presente, pode usar para buscar, em

    recordaes de um tempo passado, aspectos constituintes da histria de um lugar.

    No caso do povoado do Tabuleiro, os lugares de memria se apresentam

    nos caminhos abertos pelos trabalhadores rurais que diariamente se dirigem para

    suas roas ou de seus patres para trabalhar, em uma casa velha, no balco das

    vendas, onde muitos indivduos se recostam para conversar, beber, jogar, comprar

    ou vender produtos, nas fotografias antigas que congelaram no papel momentos de

    alegrias e tristezas, enfim, lugares de memria que trazem marcas concretas de um

    passado construdo socialmente por aqueles que l conviveram ou convivem.

    Para os antigos moradores, esses lugares so relembrados ou vistos com

    um misto de alegria, tristeza e saudade; muitos s existem em suas lembranas.

    Mas, graas capacidade dos indivduos de guardarem em suas memrias os

    acontecimentos significativos de sua vida, foi possvel aos sujeitos que vivenciaram

    as transformaes cotidianas do local narrarem as suas memrias sobre as festas, o

    dia-a-dia nas vendas, a chegada de elementos da modernizao e seus efeitos

  • 33

    sobre as pessoas e o lugar, entre outros tantos aspectos da vida social de uma

    comunidade rural.

    Dentre os lugares de memria, as vendas, certamente, marcam a histria

    do Tabuleiro e as lembranas daqueles que l convivem. Ao se dirigirem a esses

    estabelecimentos comerciais, os indivduos criam laos de familiaridade por meio de

    prticas cotidianas imperceptveis, que ajudam a compor lembranas e, mais que

    isso, de alguma forma, fossem quais fossem os caminhos escolhidos para

    percorrerem, no Tabuleiro, quase todos os caminhos levavam s vendas,

    atravessando vidas, compondo destinos.

    As marcas que os passos dos indivduos deixam no cho de terra batida

    do vilarejo, e que o tempo e o vento tratam de apagar, embora no tenham permitido

    deixar registros materiais de sua passagem, criaram nas lembranas dos moradores

    um cabedal de memrias que marcam definitivamente suas vivncias. Ao falar do

    Tabuleiro, remete-se, inevitavelmente, s vendas. Durante as entrevistas com os

    moradores locais fica evidente como esses estabelecimentos comerciais permeiam

    suas memrias. As vendas, no passado, eram como a seiva que revigorava a vida

    do povoado, o corao de um corpo social cuja alma do lugar alimentava. Tanto que

    as crises econmicas sentidas pelas vendas, a partir dos anos de 1990, abalaram de

    forma direta a dinmica social do Tabuleiro.

    A venda se constitui mltipla em seus diversos aspectos, ultrapassa o

    esteretipo de lugar de trocas econmicas. Os frequentadores mais do que comprar

    e vender buscam as vendas para se divertirem, elas promovem o encontro, a festa,

    o lazer. Mas as vendas podem ser tambm palco de desentendimentos, de brigas e

    conflitos. Aspectos discutidos por Sidney Chalhoub (1986, p.231) ao se referir s

    vendas e botequins do Rio de Janeiro na virada do sculo XX. Para o autor, a venda

    um

    Centro aglutinador e difusor de informaes entre populares. E mais do que isto, a referncia a venda como um observatrio popular, sugere que este um ponto privilegiado uma espcie de janela aberta para o estudo de padres de comportamento dos homens pobres (...). E, com efeito, a venda ou o botequim cenrio para o surgimento e desenrolar de rixas e conflitos pelos mais variados motivos, desde os problemas ligados ao trabalho e habitao, passando pelas questes de amor e relaes entre vizinhos, e chegando at as contendas por motivos mais especificamente ligados ao lazer, como os jogos (...) ou a bebida.

  • 34

    Muitos entrevistados trazem em suas narrativas os vrios aspectos que

    envolvem a vida cotidiana nas vendas, explcitos por Chalhoub, ao relembrarem das

    brigas e assassinatos, das conversas animadas, dos dias que ficavam at altas

    horas da noite cantando, tocando, jogando e bebendo; demonstrando, assim, que as

    vendas no so apenas lugares de atividades comerciais e de bebedeira, mas

    importantes espaos de sociabilidade e conflitos.

    Aqueles que entravam por uma das diversas portas da venda, pelo menos

    a partir da segunda metade do sculo XX, viam naquele ambiente imagens que lhes

    eram e continuam, em parte, sendo prprias. As vendas, em sua estrutura fsica, tm

    um balco separando o espao do vendedor e do fregus, sobre o qual eram

    colocados fardos de carne do sol e do serto (conhecida em outras regies do Brasil

    como carne seca ou charque), peixes salgados, toucinhos de porco, rolos de fumo

    dos quais os fregueses costumavam tirar algumas lascas, picar e fazer cigarros sem

    pagar nada. At mesmo costumavam provar as carnes salgadas e cruas como tira-

    gosto acompanhado quase sempre por um copo de pinga ou um punhado de

    farinha de mandioca que tambm estava venda.

    Nas paredes, podia-se ver uma profuso de mercadorias expostas nas

    prateleiras ou penduradas em ganchos, outras se espalhavam em cima de tbuas

    pelo cho. Havia, tambm, uma mesa ou escrivaninha onde o vendeiro colocava o

    dinheiro ganho, seus cadernos de anotaes e outros instrumentos de trabalho. Do

    lado do fregus, na parte externa do balco, havia alguns bancos, cadeiras ou toras

    de madeira colocadas em posio vertical servindo como assentos. Em algumas

    vendas de maior tamanho haviam sinucas e mesas utilizadas para o jogo de cartas

    ou simplesmente para servir os clientes. Pelo cho se espalhavam mercadorias,

    sacos de farinha de mandioca, caixas, rolos de corda de sisal, etc.

    As vendas eram vistas, tambm, por alguns como lugares de sujeira e

    desorganizao; ali os fregueses cuspiam no cho, as moscas zanzavam sobre as

    carnes e os vendeiros, na sua maioria, no mantinham hbitos higinicos na

    manipulao dos alimentos. Alis, aqueles que buscam nas vendas um ambiente

    assptico, provavelmente, no o encontrar. H at um dito popular na regio que

    diz: quem no quer casa cuspida, no ponha venda. Ou seja, o cho das vendas

    quase sempre estava sujo, mas h que se entender que isso faz parte de prticas

    comuns aos frequentadores desse espao. A cachaa jogada no cho, por exemplo,

    tem origem no ritual dos bebedores de ofertar uma parte aos santos; outros porque

  • 35

    mascavam fumo e cuspiam a borra no cho. Enfim, era um lugar onde muita gente

    circulava, com costumes e hbitos diversos, logo lhe dava esse aspecto

    aparentemente de desorganizao, mas que parte de sua essncia diversa de

    sentidos simblico e funcional.

    Foto 01: Venda Santa Ana. Povoado do Tabuleiro, Mutupe. Fonte: Fotografia - Josiane Theth Andrade, setembro de 2003.

    Esse cenrio pode ser observado em algumas representaes imagticas

    das vendas. A fotografia usada como elemento de abordagem do passado pode

    conter, em sua superfcie sensvel, a marca indefectvel do passado que a produziu

    e consumiu (MAUAD, 1996, p 10). E, talvez, seja nas memrias que a fotografia

    carrega ou nas que ela pode revelar que a histria surge, como um lampejo do

    passado, despertando lembranas adormecidas que retornam velozes (BENJAMIN,

    1993, p. 225), e que devem ser apresadas pelo historiador antes que se evanesam

    como uma luz que se extingue.

    A fotografia do estabelecimento comercial do falecido Sr. Juvenal

    Santos Andrade (1948 2002). Com a morte do proprietrio, a venda passou a ser

    administrada por seu scio e irmo Szinio Santos Andrade. No que diz respeito

    produo da prpria imagem fotogrfica, preciso destacar que a inteno era

    captar um ngulo capaz de contemplar o mximo possvel o espao da venda, para

    mostrar e ampliar o leque de elementos a serem analisados no documento. Ao

  • 36

    observar a imagem, nota-se que a venda conserva sua estrutura fsica e

    organizacional, mas, na fotografia, outras espacialidades se revelam. Segundo

    Mauad (1996, p.10),

    A prpria fotografia um recorte espacial que contm outros espaos que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espao geogrfico, o espao dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), o espao da figurao e o espao das vivncias, importamentos e representaes sociais.

    Quanto organizao das mercadorias nota-se que elas esto

    espalhadas e misturadas sem nenhum critrio quanto forma e tipo. Por exemplo,

    nas prateleiras superiores observam-se garrafas de bebidas alcolicas lado a lado

    com vasilhames de leo lubrificante para motores automotivos, produtos que por

    serem inflamveis, no deveriam estar nesse lugar. Embora a disposio dos artigos

    venda seja feita com a inteno de mostr-los e incentivar o consumo, esses

    estabelecimentos possuem uma organizao prpria, a preocupao maior era com

    o sortimento dos produtos, pois o esprito dessas lojas das roas fornecer de tudo

    um pouco.

    Na imagem aparece com clareza o balco que separa duas

    espacialidades bem distintas, o lado do fregus e o lado vendeiro. Simbolicamente,

    h uma separao entre o pblico e o privado. O balco assume uma configurao

    limtrofe e constitui um elemento carregado de representaes significativas para

    entender as atitudes dos sujeitos e as intenes na concepo cnica dos espaos

    da venda.

    Goffman (2009, p. 120) discute como espaos pblicos e privados podem,

    por sua natureza, estabelecer atitudes comportamentais diferenciadas. A partir de

    uma anlise dramatrgica da sociedade, o autor enfatiza que os indivduos

    assumem diversos papis sociais, agindo como atores em um jogo de simulao,

    que varia conforme o palco e os interesses, dos papis que eles querem assumir ou

    dos que so obrigados a representar. Na concepo do autor, a forma como as

    pessoas se comportam nesses espaos uma questo a ser problematizada, visto

    que revelam muitas aes por trs das atuaes dos atores sociais.

    Pode-se, distinguir, dentre outras, quatro regies simblicas no espao da

    venda: a fachada da venda; a parte externa e interna ao balco e os fundos da

  • 37

    venda. Cada espacialidade vivenciada e significada de forma diversa pelos

    indivduos que ali circulam. Na fachada, os batentes das portas so divisas entre

    trs mundos complementares: a rua, a venda e por trs do balco. O que acontece

    na rua, embora seja exterior venda, no aberta a qualquer ao por parte dos

    sujeitos que a passam. A rua funciona como uma extenso da venda, embora fosse

    pblica e livre circulao de todos. Para ali se estendiam as mesmas regras de

    comportamento respeitadas no interior das vendas, o pblico e privado se fundem.

    Da Matta (1997, p. 47) discute esses aspectos ao afirmar que a casa e a rua

    constituem

    Esferas de significao social - casa, rua e outro mundo - que fazem mais do que separar contextos e configurar atitudes. que eles contm vises de mundo ou ticas particulares (...), esferas de sentido que constituem a prpria realidade e que permitem normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas prprias.

    Numa passagem de sua entrevista, Dona Aurineide ressaltou que os

    comcios polticos e festejos tradicionais nas portas da venda, (em outras palavras,

    na frente da casa comercial) para se realizarem era pedida, geralmente, autorizao,

    no caso, ao seu marido, o vendeiro Juvenal:

    Eles chegava aqui na venda, chamava a gente avisando do que ia acontecer e pregava os cartaz. Se fosse na frente da venda o pessoal pedia autorizao a Juvenal, se j fosse na frente da escola pedia ao prefeito (Aurineide Theth, 50 anos, entrevista em 14/04/2007).

    Nessa fala, dois aspectos destacam-se: a parte da rua frontal venda

    tratada como propriedade do vendeiro; e a rea em frente escola como um

    espao pblico, controlado pelo governo. No primeiro caso, a dicotomia casa e rua

    quebra sua barreira, o pblico tratado como privado, talvez isso ocorra porque nas

    comunidades rurais o terreiro da frente, como chamado esse espao, uma

    extenso da casa, como os passeios e caladas nas casas urbanas.

    No momento em que os ps dos transeuntes ultrapassam as portas das

    vendas e adentram em seu espao interior, outros comportamentos e atitudes

    morais so esperados dos praticantes desse espao. Como a rua ficou para trs,

  • 38

    comportamentos arruados so malvistos, no se pode misturar o espao da rua

    com o da casa sem criar alguma forma de grave confuso ou at mesmo conflito

    (DA MATTA, 1997, p.50), uma vez que a venda possui tambm um carter de casa.

    Segundo Bachelard (2008, p.25), todo espao, realmente habitado traz

    consigo a essncia da noo de casa, ou seja, nele os praticantes sentem-se

    acolhidos, protegidos; sem falar, que a casa o lar primeiro, espao que

    Na vida do homem, (...) afasta contingncias, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantm o homem atravs das tempestades do cu e das tempestades da vida. Ela corpo e alma. o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo", como o professam as metafsicas apressadas, o homem colocado no bero da casa. E sempre, em nossos devaneios, ela um grande bero. Uma metafsica concreta no pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que ele um valor, um grande valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser imediatamente um valor. A vida comea bem; comea fechada, protegida, agasalhada no regao da casa (BACHELARD, 2008, p. 26).

    Ao pisar no cho da venda, penetra-se simbolicamente no espao da

    casa, portanto, os indivduos sentem-se em um lugar que acolhe e protege; invadir

    esse espao ou desrespeit-lo pertubar a paz, pois o espao destas lojas rurais

    sentido de forma sentimental pela maioria dos fregueses, visto que compe as

    memrias afetivas de muitos que cresceram frequentando a venda, conhecendo o

    vendeiro e suas famlias.

    Para Bachelard (2008, p.64), a casa um espao que deve condensar e

    defender a intimidade. A ideia de privacidade remete a um estado no qual o

    indivduo pode exercer sua intimidade sem se preocupar que outros estejam

    observando ou censurando, sentir-se vontade. Dessa forma, comportamentos

    ofensivos, que agridam a intimidade e o sossego dos fregueses so reprovveis; e

    agir, no espao da venda, como se estivesse na rua um comportamento

    inaceitvel.

    Tanto a parte externa quanto a interna do balco no propiciam plena

    privacidade. Mesmo representando um limite entre o pblico e privado, divisar tais

    instncias uma tarefa inexata. O balco constitui uma meia barreira, ele permite

    visualizar as aes do vendeiro, seus procedimentos, quem entra e sai daquele

    ambiente, da mesma forma que o comerciante tambm o faz em relao parte

  • 39

    externa. Por outro lado, se algum, sem permisso, pular o balco ser visto como

    um invasor quebrando a regra de convivncia que permeia a conduta moral daquele

    ambiente. Mais que isso, invaso propriedade privada, assim como intimidade

    do vendeiro; a parte interna o seu lugar de atuao, onde ele e sua famlia

    circulam. At porque muitas vendas so conectadas prpria casa do vendeiro,

    quase sempre por uma porta que d acesso aos dois espaos, o que chamo aqui de

    fundos da venda, o lugar, realmente, de privacidade dos proprietrios dessas casas

    comercias.

    As diversas espacialidades, funes e representaes das vendas que

    existiam no Tabuleiro faziam delas um difusor de sensaes aos sentidos com

    cheiros tpicos, vindos das carnes salgadas espalhadas no balco, das cachaas,

    das especiarias espalhadas em sacos pelo cho, um cheiro misto de cravo e cacau,

    alm das cores diversas configuradas pelas mercadorias dispostas nas prateleiras,

    pelos doces expostos em frasqueiras giratrias cujo movimento encantava as

    crianas, fazendo-as sonhar e salivar com as guloseimas. Sem contar as sensaes

    tcteis dos objetos dispostos no ambiente, enfim, a venda funcionava como um

    espao sinestsico, e como uma porta de entrada das novidades, fossem

    tecnolgicas ou dos noticirios referentes aos ltimos acontecimentos no Brasil ou

    no mundo.

    Em consonncia com a ideia de espao da novidade, voltando anlise

    da fotografia (Foto 01), perceptvel a introduo de elementos da modernizao no

    espao da venda como frzeres, televiso e balana digital, entre outros,

    evidenciando melhoramentos tcnicos dos instrumentos de trabalho do vendeiro,

    possibilitados, em parte, pela chegada da luz eltrica no povoado em 19793.

    Alis, o fato da venda do Sr. Juvenal ter conseguido se modernizar e, ao

    mesmo tempo, ter aliado sua prtica comercial ao antigo sistema de socializao do

    homem do campo podem ter sido fatores que fizeram com que sua venda tenha se

    mantido por mais de trinta anos em funcionamento, com uma freguesia fiel,

    enquanto esteve em atividade. Como afirma Certeau (1996, p.120), ao se referir s

    pequenas mercearias tradicionais dos bairros franceses, a modernizao suscita

    sempre alguma desconfiana quanto qualidade dos produtos; a padronizao, a

    3 A luz eltrica chegou ao Tabuleiro em 1979, devido iniciativa de alguns moradores que recorreram

    aos servios da Companhia Baiana de Eletrificao Rural. Informaes retiradas do contrato do proprietrio da Venda Santa Ana. Cf: COBER, Contrato n 1623/79.

  • 40

    mercadoria previamente embalada, todos esses processos na apresentao dos

    alimentos que inquietam o fregus ante as mudanas. Portanto, foi justamente o

    equilbrio entre o novo e o antigo que evitou uma ruptura simblica entre aquilo que

    as vendas representam com toda sua tradio e as inovaes trazidas pela

    introduo gradativa de elementos modernizantes.

    A chegada da televiso, no entanto, foi sentida pela populao local de

    uma forma bastante significativa. Abriu-se um mundo de possibilidades. A venda

    passou a oferecer no s mais um meio de distrao e lazer, mas um portal para um

    mundo da cultura de massa. As novelas, o telejornalismo, os filmes e desenhos

    animados passaram a adentrar naquele universo rural, mudando costumes,

    interferindo nas prticas sociais. Assim a senhora Aurineide Theth descreve a

    novidade da TV:

    A, ia os meninos assistir televiso, outros eu vou assistir o jornal. J vinha pra venda ver televiso, assistir novela. Tinha uma novela chamada Marrom Glac que o povo j gostava de assistir essa novela, foi logo quando botou televiso aqui (Aurineide Theth, 50 anos, entrevista em 14/04/2007).

    Hobsbawn (1994, p.300) comenta como o fenmeno da televiso chegava

    s populaes de pases mais pobres, a partir da segunda metade sculo XX, por

    meio de espaos pblicos, que aglutinavam as pessoas diante da caixa mgica, j

    que os primeiros aparelhos de televiso eram caros e, por conseguinte, no

    acessveis a todos. Ir a lugares pblicos como bares, clubes, praas para ver TV

    tornou-se um costume de muitos, no incio atrados pela novidade da tecnolgica,

    depois pelo hbito ou, quem sabe, ver TV s era mais um pretexto para sair,

    encontrar gente nos lugares pblicos.

    A chegada da TV um exemplo dos impactos causados pela introduo

    de elementos modernizantes no espao da venda, que funcionava como uma

    espcie de catalisador das transformaes sociais do povoado, na medida em que

    havia uma interao entre os sujeitos e o lugar, atravs de formas de apropriao,

    utilizao e ocupao do ambiente fsico da venda. Se fosse definir o espao das

    vendas, diria que sua geografia emocional desde quando ele ressignificado

    sentimentalmente pelos indivduos enquanto construo social.

  • 41

    1.2 A VENDA E SUAS MLTIPLAS FUNES

    As lojas das roas, como Guimares Rosa (1969) trata as vendas no

    conto A estria do homem do pinguelo, caracteriza-se pela diversidade de funes.

    No Tabuleiro, elas deveriam atender s necessidades de consumo dos moradores e

    absorver a produo agrcola da regio, por isso o ambiente da venda teve que se

    adaptar a tais necessidades. As vendas, comumente, agregavam no mesmo espao

    as funes de armazm, aougue e, at mesmo, casa de jogos e, por conseguinte, o

    prprio vendeiro acabava assumindo diversos papis.

    O Sr. Carmerino Theth (1925 - 2008), que viveu toda sua vida no campo,

    sempre de chapu na cabea e vestido com camisa de manga e cala de linho,

    gostava de andar sempre alinhado e, por anos, participou da vida cotidiana do

    Tabuleiro, assim descreveu como se davam as relaes comerciais nas vendas:

    O povo leva mercadoria pra vender, levava coisa pra vender na venda e trazer mercadoria da venda. Vendia e comprava, que tinha armazm. A mesma venda servia de armazm, comprava a farinha, comprava o caf, comprava o cacau, comprava fumo, nesse tempo tinha fumo! Comprava fumo e comprava mercadoria na venda. Isto tudo eu arcancei; s vezes ia e no. Levava o dinheiro, levava as mercadoria nos anim. Vendia e comprava mercadoria ( Carmerino Theth (1925 2008), entrevista em 16/03/2003).

    Com essas palavras, o Sr. Carmerino Theth traduz o papel da venda

    como instrumento elementar da troca, termo usado por Fernand Braudel (1998)

    para se referir s trocas comerciais que escapam ao grande mercado, que as

    estatsticas no controlam, uma espcie de civilizao material, que compe esta

    infraeconomia, esta outra metade informal da atividade, a da autossuficincia, da

    troca dos produtos e dos servios num raio muito curto (BRAUDEL,1997, p.51).

    Isto perceptvel numa pesquisa encomendada pelo SEBRAE-BA

    (Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas da Bahia) em 1995, na qual a

    microrregio do Vale do Jiquiri, onde o municpio de Mutupe se localiza,

    apontada como uma regio de produo predominantemente agrcola, em que os

    sistemas de comercializao adotados diferem em se tratando de pequenos ou

    mdios/grandes produtores.

  • 42

    Os maiores produtores realizam a comercializao da sua produo com intermedirios tradicionais ou, em condies adversas de preos, levam o produto diretamente ao mercado. J os pequenos, por falta de maior poder e barganha, entregam o resultado da sua atividade aos bodegueiros 4 ou caminhoneiros sempre presentes s feiras municipais. (SEBRAE, 1995, p.51)

    Os vendeiros exerciam a funo de intermedirios das trocas5, limitando-

    se a comprar e vender sem fabricar com as mos a maior parte daquilo que

    ofereciam. Os trabalhadores rurais (maioria de seus clientes), pelo contrrio,

    vendiam seus gneros agrcolas e compravam imediatamente as mercadorias que

    necessitavam nos prprios estabelecimentos ou em outros locais, como j foi

    relatado pelo Sr. Carmerino que levava as mercadoria no anim, vendia e comprava

    mercadoria, ou seja, era uma relao direta. Os lavradores com pouco poder

    aquisitivo no tinham como segurar os produtos e esperar a elevao dos preos.

    No obstante, pelo menos at a dcada de 1960, era difcil o acesso cidade de

    Mutupe, devido s dificuldades de locomoo e dada precariedade das estradas,

    as vendas acabavam surgindo como opes mais confortveis para comerciarem;

    porm, preciso salientar que isso no era regra geral, muitos encontravam outras

    formas de negociar seus produtos.

    A diversidade de produtos pode ter contribudo para que os moradores e

    trabalhadores rurais procurassem com mais frequncia as vendas do Tabuleiro e

    no o comrcio da cidade. Durante as entrevistas com vendeiros ou ex-vendeiros do

    povoado, quase todos demonstraram a preocupao em fornecer de tudo um

    pouco para a populao local, atendendo s necessidades dos consumidores,

    vendendo desde alimentos, ferramentas usadas no campo a remdios, s pra citar

    alguns exemplos.

    Para o Sr. Jos Gonalves, tocador de violo, vendeiro no Tabuleiro,

    entre as dcadas de 1960 a 1990, a venda deveria estar sempre sortida:

    Era carne, era sabo, era acar, era feijo, era arroz e mais alguns cereais. De tudo a gente botava: manteiga, cachaa, fumo de corda, cigarro. Isso as coisas da venda. Comprimido, ali, para febre, dor de cabea, essas coisa, gripe. Tudo a gente botava, retalho. Sabe?

    4 Bodegueiros outra denominao dada aos donos de vendas da regio.

    5 Conferir referncia feita por Braudel aos lojistas europeus do sculo XVIII, como intermedirios das

    trocas, insinuando-se entre os produtores e compradores, sem quase nunca fabricarem com suas mos o que vendiam. Atividade semelhante a do vendeiro, como pequeno comerciante que . Cf: Civilizao Material, Economia e Capitalismo sculos XV XVIII: Os jogos das trocas. v.2, p. 48.

  • 43

    (Jos Gonalves de Oliveira, 87 anos de idade, entrevista em 19/01/2003).

    O princpio de fornecer de tudo um pouco nas vendas foi apreendido no,

    j citado, conto do escritor Guimares Rosa (1969), A estria do homem do

    pinguelo. Rosa relata o cotidiano de um vendeiro chamado Cesarino, que havia

    herdado a venda do pai e vivia em um arraial, nas palavras do autor, em um

    princpio de mundo cercado de campos e tabuleiros. No conto, Cesarino descrito

    como um homem querido de todos, influente no lugar, mas que tambm sofria com

    as dvidas e concorrncia de outras casas comerciais. Ao descrever o cotidiano das

    vendas, as prosas ao p do balco, o ritual dos bebedores, Rosa (1969, p.107)

    destacou como as vendas em sua essncia deveriam ser sortidas de produtos ao se

    referir aos estoques de uma loja da roa, onde de tudo h armarinho, fazendas,

    ferragens, armas, secos e molhados gneros, toucinho, artigos fnebres, tinta,

    cadernos, panelas e velas.

    Na fala do Sr. Pedro Andrade, ex-vendeiro do Tabuleiro e agricultor

    famoso por ser um exmio contador de causos, ele descortina uma realidade que

    se aproxima daquela que se configura na fico de Rosa (1969): eu vendia secos e

    molhados e comprava cereais. Matava boi, matava porco. Tinha casa de jogo, tudo

    que participava da diverso eu tambm tinha e supria o povo (Pedro Andrade, 75

    anos, entrevista em 06/07/2003).

    A variedade de funes e de produtos comercializados por essas lojas

    das roas traz tona alguns questionamentos. Como as mercadorias eram

    adquiridas? De que formam chegavam ao povoado? A resposta para tais

    questionamentos remete a uma reflexo sobre o acesso que os vendeiros tinham

    aos meios de transporte, dificuldade de localizao do povoado e sobre a prpria

    rota percorrida pelos produtos at chegarem ao Tabuleiro e, consequentemente, a

    sua populao. Alm do que, preciso observar as mudanas de infraestrutura

    ocorridas no povoado a partir da segunda metade do sculo XX, reflexo de

    transformaes em nvel nacional que interferiram no acesso s mercadorias e em

    antigos costumes e tradies.

    At a dcada de 1960 as mercadorias chegavam ao Tabuleiro, quase

    sempre, transportadas por mulas, cavalos ou jumentos que os vendeiros possuam.

    Eles mesmos iam at cidade montados nos animais, carregando-os de

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    mercadorias nos armazns, que, por sua vez, adquiriam os produtos chegados

    atravs da j decadente Estrada de Ferro de Nazar, que cortava o municpio de

    Mutupe, ou nas mos dos tropeiros que trabalhavam para os donos dos armazns,

    trazendo os produtos de regies vizinhas; e como relembra Sr. Jos Gonalves,

    tropeiro era ns mesmo, e ele continua:

    [As mercadorias] vinha daqui de Mutupe, nesse tempo no tinha nem estrada diretamente, a gente andava era no lombo dos anim, tanto eu quanto Maninho. A gente muntava no meio da cangalha, botava panacum6 e tudo, a ia buscar as coisas (Jos Gonalves de Oliveira, 87 anos de idade, entrevista em 19/01/2003).

    O Sr. Carmerino Theth, em outro trecho de sua entrevista, narra com

    riqueza de detalhes a maneira como os vendeiros adquiriam as mercadorias:

    A mercadoria da venda vinha de Laje, vinha de Mutupe, vinha de Valena, vinha de todo o canto, em lombo de anim, ia buscar de lombo de anim! A estrada de ferro trazia, botava em Laje, o trem de ferro botava em Mutupe, era carregado pelo trem de ferro. Agora, de Mutupe pra c, vinha em lombo de anim, porque no tinha estrada de carro